Você está na página 1de 6

A cidade e o sangue – Episódio 4 – Luiz César Baptista

A cidade e o sangue

Episódio IV – Shadow

Escrito e criado por Luiz César Baptista

luizcesarbaptista.blogspot.com

A manhã solta-se como pequenos desejos que fazem recordar. Os sons das gotas
de chuva a bater nos vidros são sons de um desespero adquirido que se quer afogar. No
ar, existe um odor a podridão que provoca vómitos breves. Esta manhã é outra manhã,
mas é diferente das restantes. Esta manhã é uma noite mascarada de manhã.
No nº 5 da rua S., a manhã surge e no interior de Hank Fisher é um
prolongamento da noite que a precedeu. Este manhã está envolta numa escuridão que se
espalha e os fantasmas, os fantasmas são mais do que alguma vez foram. As memórias,
as memórias ganham relevos de ardor e rasgam como gumes de uma existência perdida.
No chão, o remédio que cura, as garrafas vazias que se amontoam numa escultura
disforme. O desejo e a morte. Lado a lado, de mãos dadas. E de repente, o mesmo que já
houve. Subitamente, uma repetição do que já se passou. O passado e o presente, o
mesmo amontoado de tempo indefinido.
Hank tem os olhos fixos nas folhas amparadas pelo tampo da secretária. As
palavras dançam à sua frente e cada palavra é uma imagem com trinta anos. Cada frase
é uma espada que o atravessa com a veemência dos anos, uma angústia desenterrada. As
pálpebras querem fechar-se mas uma corrente que o percorre impede-o. Hank sente um
rodopiar de sensações que o despedaçam, e como um maltrapilho, é arrastado por
alucinações de cores e texturas. E uma alucinação é o que lhe surge pela frente como
uma aparição maldita. Olha-a e os traços balançam. Olha-a e sente que olha um anjo,
um anjo que o vem buscar. O anjo da morte.
- Leva-me – balbucia num forçar de voz, tão ténue – Leva-me…já.
O anjo da morte aproxima-se e parece rodeado por uma áurea venenosa que o
quer engolir. Aproxima-se e cada passo é o ressoar de um gemido que cospe. O anjo da
morte aproxima-se e já tão perto de Hank. A esperança que nasce em Hank, o desejo de
fim que lhe surge como uma possibilidade. Hank olha o anjo da morte e o anjo da morte
parece fazer-lhe um gesto. Levanta o braço e faz um movimento brusco na direcção da
sua face. Hank sente a bofetada como um força que o acorda, um soar de consciência
imediata. Hank olha o anjo da morte e no lugar do anjo da morte vê Katherine.
Hank não resiste, e apenas com o tempo necessário para colocar o balde do lixo
a jeito, deixa que o vómito expluda. Hank vomita e sente-o como uma limpeza interior,

1
A cidade e o sangue – Episódio 4 – Luiz César Baptista

uma exorcização de demónios que o ocupavam. Hank vomita, e o som que faz a vomitar
é o som dos demónios que o abandonam.
Katherine olha-o com desprezo. Quer-se arrepender da ideia que teve de se aliar
a Hank. Olha para Hank e vê uma criança estragada e incapaz. Vê uma réstia de lixo
humano que se vai mantendo. Hank acaba de vomitar e está ofegante. Foi um esforço
que o esgotou. Deixa cair o corpo sobre a secretária, fecha os olhos e adormece como
que se alguém tivesse pressionado um botão para o desligar.
Só quando Hank acorda é que se apercebe que ainda está vivo. Tinha-se
convencido que a morte já o tinha vindo buscar e é com um sentimento de desolação
que confronta o continuar da sua existência. Os seus sentidos ainda estão dispersos e
quando repara que Katherine continua ali, sentada à sua frente, vê-a como um borrão
que se mexe. Katherine lê qualquer coisa, segura com interesse uma pasta que vai
folheando com atenção, tanto, que só desvia o olhar quando ouve os movimentos
desengonçados de Hank. Hank vai recuperando a sua consciência e percebe que deve
uma desculpa a Katherine, mas quando vai começar a falar, ela faz-lhe um gesto e
estica-lhe qualquer coisa.
- Não me apetece sentir o hálito de um bêbado que acabou de vomitar – comenta
Katherine enquanto Hank contrariado mete a pastilha elástica na boca e começa a
mascar.
- Há quanto tempo estás aqui? – pergunta Hank sentido que a sua cabeça é
martelada por maços de ferro.
- Há tempo demasiado, creio. Estava aqui a dar uma vista de olhos ao que me
roubaste…muito interessante…
Hank consegue esboçar um sorriso ténue que lhe causa dor:
- Eu não te roubei nada, eu apenas encontrei aquilo que tinhas perdido.
Katherine lança-lhe um olhar de raiva:
- Acho que temos problemas de confiança a resolver. Sabes quanto tempo tive
ontem à procura deste processo, pensando que o tinha perdido ou que alguém o tinha
roubado? E afinal estava aqui a fazer-te companhia enquanto secavas o stock de álcool
da cidade…Qual foi a ideia? O que quiseste provar com isso? Que o mestre és tu? Que
eu sou apenas um fantoche? Não, se é isso que queres podes crer que saio por aquela
porta e vou procurar outra pessoa…
Hank ri-se com sarcasmo:
- Outra pessoa? Achas mesmo que alguém vai querer arriscar o que quer que
seja para investigar a morte de uma gaja rica só porque alguém se lembrou de a matar
da mesma forma que um padre fez há trinta anos?
- Espera, agora estou confusa, ainda no outro dia disseste que não acreditavas
que tinha sido o padre Malone o assassino e agora já dizes que foi…
- Eu sei lá quem foi o assassino…- suspira Hank num desabafo – se eu soubesse
quem tinha sido não estávamos aqui…
- Eu acho que para além do problema do alcoolismo também tens problemas de
múltipla personalidade…- interrompe Katherine ironizando.
2
A cidade e o sangue – Episódio 4 – Luiz César Baptista

- Todos temos problemas de múltipla personalidade, o ser humano é demasiado


complexo para se limitar a uma única personalidade.
- Muito bem, mas se assim é, quando estiveres comigo quero que te limites a
uma única personalidade: à personalidade de detective experiente que quer resolver o
caso da morte de Dina Waters e clarificar o que aconteceu há trinta anos, tendo-me
como aliada e não apenas como uma mera assistente, e acredita que só assim podemos
ter sucesso.
- Sucesso? Eu na minha idade já não quero saber de sucesso…
- Seja. Não queres sucesso, mas queres destruir os fantasmas que te apoquentam,
não é?
- O que sabes tu de fantasmas?
- Pouco é certo, mas sei que não deve ser agradável viver com eles, e eu posso
ser uma grande ajuda para os mandar de vez. Talvez assim consigas voltar a viver
realmente.
Hank experimenta outra bofetada. Mas desta vez uma que não lhe atinge a carne,
muito pior, uma que lhe faz estremecer o seu interior e que o faz tomar um ar
introspectivo. Ela tem razão, aqueles malditos fantasmas já há tempo demasiado que o
atormentam, é hora de os apagar, para sempre.
- Acho que te devo um pedido de desculpas pelo que fiz. Sim, tens razão, fi-lo
apenas para mostrar que sou eu quem manda e que controlo tudo o que faças. Contudo,
podes vê-lo como um teste, um exame final para saber se tens estofo para isso…e foste
aprovada. Outra pessoa teria entrado de imediato em pânico e nem sequer se atreveria a
voltar a este escritório. A partir de agora aceito-te como minha aliada e juntos espero
que enfim possamos limpar o que aconteceu e impedir o que ainda mais virá.
Katherine regozija-se interiormente com aquela declaração de Hank, no entanto,
no exterior mantém o olhar sério e até ríspido.
- Assim seja, mas a partir de agora quero que mandes o teu amigo parar de me
seguir e põe-no a trabalhar para o caso – e dito isto, Katherine aponta para um canto
escuro do escritório de Hank, onde momentaneamente notam-se os movimentos de uma
forma.
Hank sorri convencido. Diz para o canto escuro:
- Shadow, podes sair, vêm dizer olá à nossa amiga. Não sejas tímido.
E eis que do canto escuro, os traços de uma figura são progressivamente
iluminados pela luz do início da tarde. Uma figura esguia, altura média para um homem
adulto, face de linhas pouco definidas, olhar perdido. Aproxima-se dos dois e Katherine
sente um arrepio breve quando o vê. Nas suas feições não se nota nenhuma expressão.
Parece despido de qualquer tipo de sentimento, por muito ténue que seja. A ideia de um
robot revestido de carne vem-lhe à ideia, e é esta ideia que se mantém quando ele se
senta junto deles, mantendo sempre a mesma expressão facial: vazia. Katherine tenta
perceber a sua idade mas não consegue precisar, parece-lhe novo mas ao mesmo tempo
parece carregar tantos anos de existência. Os cabelos são negros e os olhos, os olhos

3
A cidade e o sangue – Episódio 4 – Luiz César Baptista

parecem não ter cor, ou talvez tenham todas as cores. Tanto parecem castanhos como
azuis, pretos ou verdes.
- Katherine, apresento-te o Shadow. Eu sei que ele parece um pouco estranho,
mas garanto-te que a melhor ajuda que um detective pode ter. Devo-lhe muito. É um
mestre da camuflagem, é rápido como uma gazela e tem os movimentos dos melhores
carteiristas…aliás, como tu já deves ter percebido ontem. Lamentavelmente é incapaz
de demonstrar qualquer tipo de sentimento ou de pronunciar qualquer som. Também não
consegue tomar decisões importantes por ele próprio. Quase que precisa de autorização
para respirar e para se alimentar…
Katherine olha-o e sente uma presença tão maior do que o seu corpo. É como se
fosse um gigante no corpo de um anão, um espírito colossal restringido a um mero
corpo de homem. Balbucia enfim qualquer coisa, um cumprimento fugidio, e Shadow
não reage. Katherine sente outro arrepio e o desconforto da sua presença aumenta. Hank
nota a incómodo de Katherine e compreende. É preciso tempo para se habituar àquele
tipo de existência, ele próprio sabe quanto tempo demorou. Tenta avançar para questões
mais práticas:
- Pela análise que fiz do processo de há trinta anos, os vários assassinatos foram
separados por cinco ou seis dias, ora a Dina Waters morreu há quatro dias, o que faz
com que caso se confirme que possa existir um seguimento, o próximo ocorrerá amanhã
ou depois…
Katherine interrompe-o:
- Não será melhor antes de tentarmos prever o que quer que seja, tentar perceber
o que já aconteceu? Começando pelo que aconteceu há trinta anos? Perceber se sempre
foi o padre Malone o homicida?
- Sim, mas não podemos atacar o caso apenas por uma frente, temos que nos
começar a antecipar…
- E como vamos fazer isto?
Hank tira um cartão do bolso e estica-o a Katherine. Ela lê-o mas não percebe:
- Um ginásio? Achas que estou gorda?
- Sim, não - Hank atrapalha-se - quer dizer, sim é um ginásio, não, não acho que
estejas gorda. É o ginásio que a Dina Waters frequentava…
- Mas isto fica na zona oeste da cidade, porque haveria ela de ir tão longe…
- Exactamente. Esta é a questão.
- Achas que isto pode estar relacionado com a sua morte?
- É uma hipótese.
- E como vamos saber?
- Diz antes, como tu vais saber.
Katherine fita-o desconfiada:
- Então como é que eu vou saber?
- Simples. Hoje vais a este ginásio, inscreves-te, e começas a frequentá-lo.
Assim, cuidas da saúde e ao mesmo tempo começas a infiltrar-te, mas sem ninguém
desconfiar.
4
A cidade e o sangue – Episódio 4 – Luiz César Baptista

- O queres dizer com infiltrar?


- O normal. Analisas o ambiente, tentas perceber com que pessoas a Dina Waters
se dava, se ela tinha algum treinador pessoal com o qual pudesse ter mantido algum
relacionamento mais carnal…
- E porquê tenho que ser eu a fazer isto? – interroga Katherine ainda não
convencida.
- Olha bem para mim. Não achas que as pessoas iam desconfiar se um velho
gordo e a cheirar a álcool fosse de repente inscrever-se num ginásio? E o Shadow? O
rapaz nem é capaz de suar…
Katherine olha Shadow de soslaio e este preserva as mesmas feições,
imperturbáveis, como se na realidade estivesse noutra dimensão, bem longe dali.
Convence-se.
- Muito bem, assim farei. E vocês, o que vão fazer?
Hank agarra no processo, folheia-o e aponta para uma foto.
- Quem é? Alguém conhecido? - pergunta Katherine não reconhecendo o homem
de bigode e com ar de gangster.
- Bobby Thomas. Foi o promotor público responsável pela acusação ao padre
Malone.
- Nunca ouvi falar. E o que esperas saber dele?
- Muita coisa. Coisas que inexplicavelmente desapareceram do processo…
Katherine redobra a atenção:
- Alteraram o processo? Mas isto é ilegal…
- Que é ilegal sei eu, mas porquê é que alguém haveria de o fazer?
- Realmente é estranho. E sabes onde o encontrar?
Hank franze o sobrolho:
- Sim, na prisão. Foi preso há dez anos por corrupção.
- E achas que vais conseguir falar com ele? Achas que ele vai colaborar?
- Se não quiser vamos ter que o obrigar…
- E vais fazer o quê? Torturá-lo na prisão? – ironiza Katherine antes de uma
gargalhada ligeira.
- Não seria a primeira vez – responde Hank não percebendo a graça.
- Aposto que não – devolve Katherine não conseguindo evitar o riso, lançando
depois uma mirada repentina na direcção de Shadow e perguntando – E ele? O que ele
vai fazer?
- Não te preocupes que ele vai andar muito ocupado.
- Posso saber em quê?
- Acredita que neste momento apenas deves saber o estritamente necessário, não
é recomendável espalhar informação em demasia – Hank faz uma pausa e depois como
que se lembrasse de alguma coisa, remata – Ah, e já agora, podias parar de vender
informação aos jornais? É como digo, não convém espalhar em demasia a informação.

5
A cidade e o sangue – Episódio 4 – Luiz César Baptista

Luiz César Baptista Produções


2009
Todas as personagens e instituições citadas nesta narrativa são pura ficção. Qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.

Você também pode gostar