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PECULATO

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85.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO


CRIME

O peculato está assim tipificado no art. 312 do Código Penal:

“apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem


móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-
lo, em proveito próprio ou alheio”.

A pena cominada é reclusão, de dois a doze anos, e multa.

O bem jurídico protegido é o patrimônio dos entes da administração pública direta


e indireta.

O peculato é crime próprio. Sujeito ativo é o funcionário público. O não-funcionário


pode ser co-autor ou partícipe do crime. Sujeito passivo é o Estado. A entidade que sofre o
dano ou o particular, se o objeto material for deste, também será sujeito passivo
juntamente com o Estado

85.2 TIPICIDADE

No caput do art. 312 estão descritos os chamados peculato-apropriação e o


peculato-desvio. No § 1º o peculato-furto, e no § 2º, o peculato culposo. O § 3º contém
uma causa de extinção da punibilidade e uma de diminuição de pena, aplicáveis ao
peculato culposo.

85.2.1 Peculato-apropriação e peculato-desvio


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85.2.1.1 Conduta

O peculato-apropriação é uma espécie de apropriação indébita, realizado pelo


funcionário público. A conduta é apropriar-se. Significa tornar-se dono, tratar o objeto
material do crime em todos os sentidos como se fosse próprio.

O agente, que não é proprietário do objeto material do crime, com a conduta, passa
a agir como se lhe pertencesse, exercendo em relação a ele direitos que só o proprietário
pode. O agente, estando na posse ou apenas detendo-o, passa, em dado momento, a sentir-
se o dono dele, agindo como tal.

A conduta será comissiva quando o agente doa, vende, empresta, consome, esconde
o objeto material. Será omissiva quando instado a devolvê-lo, recusa-se a fazê-lo, atitude
esta própria de quem é dono.

No peculato-desvio a conduta é desviar. Desviar é modificar o destino do objeto


material, desencaminhá-lo, mudar sua aplicação ou sua destinação. Dar-lhe finalidade
diversa da que ele tem ou empregá-lo em outro fim, em proveito próprio ou alheio.

85.2.1.2 Elementos objetivos e normativos

O objeto material do peculato é dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel


público ou particular que esteja na posse do agente em razão do cargo. É, em outras
palavras, a coisa móvel alheia que é objeto dos crimes de furto, roubo e apropriação
indébita.

Dinheiro é a moeda metálica e o papel-moeda com curso legal no país. Pode ser
também a moeda estrangeira.

Por valor deve-se entender o título representativo de dinheiro ou mercadoria.


Assim os títulos da dívida pública, letras, apólices, ações etc.

Qualquer outro bem móvel é a outra coisa material de valor juridicamente


relevante.

O dinheiro valor ou bem móvel pode ser público ou particular. Pertencer ao


Estado ou a qualquer dos entes a ele equiparados, à sociedade de economia mista,
autarquia, empresa pública, fundação instituída pelo poder público ou empresa
contratada ou conveniada para executar atividade típica da administração pública. Pode
o bem pertencer a qualquer pessoa, mas que esteja em poder do agente em razão da
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função que ele exerce. O bem particular pode ter sido apreendido ou depositado,
emprestado, locado, enfim, pode estar sob o poder da administração pública.

A coisa deve encontrar-se na posse do agente em virtude do cargo que ele ocupa na
estrutura administrativa do ente público ao qual está vinculado. O termo cargo, contido na
norma, alcança, por força da norma do art. 327, o emprego e a função pública exercidos em
autarquias e entidades paraestatais e a relação de trabalho entre o agente e a empresa
prestadora de serviço contratada ou conveniada.

É indispensável, portanto, uma relação de fato entre o agente e a coisa, originada


licitamente. A coisa vai ter às mãos do agente ou a seu poder de fato em razão de sua
qualidade de funcionário. O agente exerce sobre ela o poder de disposição, podendo decidir
sobre sua destinação. A posse deve ser compreendida em seu sentido mais amplo,
incluindo a detenção de fato e também a disponibilidade jurídica sobre a coisa.

Na condição de funcionário, o agente tem a posse da coisa, para guardá-la,


conservá-la, dar-lhe a destinação própria, enfim, deve poder decidir sobre sua destinação,
e, por isso, estar em condições de dela se apropriar ou de desviá-la, realizando, assim, a
conduta típica.

Não haverá crime quando a coisa tem valor insignificante. A apropriação ou o


desvio de uma folha de papel ou de um lápis não constitui lesão que desperta o interesse do
Direito Penal. A conduta continuada no tempo em relação a bem de valor insignificante,
todavia, torna a lesão significante, perfazendo-se o tipo.

Não há peculato se o agente apenas usa a coisa, salvo quando se tratar de dinheiro
público ou outra coisa fungível, porque o uso destes constitui desvio de sua finalidade. A
utilização, em proveito próprio ou alheio, de máquinas, veículos e equipamentos deve, a
meu ver, ser entendida como peculato-desvio, uma vez que seu emprego em atividades
privadas constitui inequívoca destinação diversa da que tem; todavia, não é esse o
entendimento predominante na doutrina.

O desvio de mão-de-obra paga com recursos públicos para atividades particulares


do próprio agente ou de outra pessoa, todavia, não realiza o tipo de peculato, porque a
mão-de-obra ou a atividade laborativa do empregado não se enquadra na definição do
objeto material contida no tipo. É que, como se pode concluir, o peculato não alcança os
serviços públicos, mas apenas dinheiro, bens e valores.

O Decreto-lei nº 201/67 – que dispõe sobre a responsabilidade dos prefeitos e


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vereadores –, entretanto, define como crime do prefeito municipal a apropriação e o desvio


de bens ou rendas públicas e também a utilização indevida de bens, rendas ou serviços
públicos.

O reconhecimento do tipo não depende de prévia prestação de contas pelo


funcionário, nem tampouco a aprovação destas pelo Tribunal ou Conselho de Contas
competente tem o condão de excluir a tipicidade do fato, porque a responsabilidade penal
independe da administrativa.

85.2.1.3 Elementos subjetivos

O crime é doloso. A consciência do agente deve alcançar sua qualidade de


funcionário público, mormente quando por equiparação. Deve, também, saber que a coisa
não lhe pertence, mas ao ente público ou a particular, e que apenas se encontra em sua
posse ou detenção e, por fim, agir com vontade livre de dela apropriar-se ou de desviá-la.

Aquele que trabalha para empresa contratada ou conveniada para a execução de


atividade típica da administração pública deve estar consciente de sua condição de
funcionário público por equiparação, do contrário não cometerá peculato, mas crime
contra o patrimônio da empresa ou de outra pessoa.

O outro elemento subjetivo é o animus rem sibi habendi. A vontade de


assenhoreamento definitivo, o fim de obter proveito pessoal ou para outra pessoa. Sem
esse fim especial, não haverá peculato-apropriação nem peculato-desvio.

Quando o agente desvia dinheiro público, dando-lhe destinação diversa da que


deveria dar ou que ela tinha em proveito da própria Administração Pública, o fato poderá
ajustar-se ao delito do art. 315 – emprego irregular de verbas ou rendas públicas.

85.2.1.4 Consumação e tentativa

O peculato-apropriação consuma-se quando o agente age como se fosse dono da


coisa, quando a retém, aliena, empresta, oculta etc. Consuma-se o peculato desvio no
momento em que a coisa é empregada em destinação diversa daquela a que se presta,
independentemente da obtenção do proveito pelo agente ou por outra pessoa, que nem
precisa ocorrer.

A tentativa é possível, quando o agente não consegue, por circunstâncias alheias a


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sua vontade, apropriar-se da coisa, ou desviá-la em seu proveito ou de outrem.

85.2.1.5 Aumento de pena

Se o agente ocupa cargo em comissão ou exerce função de direção ou


assessoramento do órgão da administração direta, de sociedade de economia mista,
empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, a pena será aumentada de um
terço (art. 327, § 2º).

Não há aumento de pena quando o agente é dirigente ou exerce função de


assessoramento em empresa privada conveniada ou contratada para executar atividade
típica da administração pública.

85.2.2 Peculato-furto

Manda o § 1º do art. 312 que seja aplicada a mesma pena de reclusão de dois a doze
anos e multa,

“se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o
subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio,
valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário”.

85.2.2.1 Conduta

São duas as condutas incriminadas. Subtrair a coisa ou concorrer para que ela seja
subtraída. É o mesmo verbo empregado no tipo de furto, do art. 155. Subtrair significa tirar
a coisa do poder de quem a detém.

A outra conduta incriminada é concorrer para a subtração realizada por outrem.


Significa auxiliar, colaborar, cooperar, ajudar a subtração. É, em outras palavras, participar
da subtração feita por outra pessoa. É a participação elevada à categoria de delito
autônomo.

85.2.2.2 Elementos objetivos e normativos

O objeto material é o mesmo: dinheiro, valor ou bem público ou particular que


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esteja em poder do ente público ou a este equiparado.

Diferentemente do peculato-apropriação e do peculato-desvio, no peculato-furto o


agente não tem a posse, nem a detenção, da coisa. Ela encontra-se em poder de outro
funcionário não tendo o agente, com ela, qualquer relação de fato ou de direito. Não pode,
por essa razão, dela se apropriar, nem pode promover seu desvio. Pode subtraí-la ou
contribuir para sua subtração.

Todavia, para realizar o tipo, sua qualidade de funcionário deve permitir-lhe


facilidade para subtraí-la ou auxiliar a subtração. Se não tem a posse, deve ter, contudo,
em razão de sua condição de funcionário, a possibilidade de subtraí-la, seja porque sabe
onde se encontra guardada, conhece os mecanismos de proteção a que está submetida,
pode ingressar no local sem dificuldades ou goza da confiança dos que a protegem, enfim,
não tem, por ser funcionário, dificuldades para tirá-la ou contribuir para que outrem o
faça.

O tipo somente se realiza quando a subtração é feita pelo agente, ou com o concurso
deste, que deve ter facilidade para executá-la. Se a subtração é feita sem que o agente se
prevaleça da qualidade de funcionário, valendo-se da facilidade para realizá-la, não haverá
peculato-furto, mas um crime de furto, pois nesse caso a qualidade de funcionário em nada
terá contribuído para a subtração.

85.2.2.3 Elementos subjetivos

O dolo é indispensável. Ao subtrair a coisa, o agente deve estar consciente de que o


faz valendo-se da facilidade que lhe dá a condição de funcionário, certo de que é coisa alheia
e com vontade livre de tirá-la do poder de quem a possuía em nome da administração
pública. Quando concorre para que outro a subtraia, igualmente, sua consciência deve
alcançar a facilidade que lhe proporciona a condição de funcionário e deve contribuir ou
colaborar com consciência e livre vontade.

Nos dois casos, é indispensável o fim especial: o proveito próprio ou alheio. O


agente deve agir com a finalidade de obter um ganho, para si ou para outra pessoa.

85.2.2.4 Consumação e tentativa

A consumação acontece no momento em que a coisa ingressa na posse do agente ou


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do terceiro que a subtrai com seu auxílio. Não é necessário que haja posse tranqüila da
coisa, nem que se realize o proveito decorrente da subtração. Basta que a coisa entre na
posse do agente ou do terceiro.

A tentativa é perfeitamente possível como ocorre no furto, desde que haja início de
execução interrompida por circunstâncias alheias à vontade do agente ou do executor da
subtração. Este responderá, igualmente, por peculato-furto, desde que tenha consciência
de que seu concorrente é funcionário público.

85.2.2.5 Aumento de pena

Quando o agente ocupa cargo em comissão ou exerce função de direção ou


assessoramento do órgão da administração direta, de sociedade de economia mista,
empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, a pena será aumentada de um
terço (art. 327, § 2º).

Não há, todavia, aumento de pena se o agente é dirigente ou exerce função de


assessoramento em empresa privada conveniada ou contratada para executar atividade
típica da administração pública.

85.2.3 Peculato culposo

O § 2º do art. 312 descreve a conduta culposa do funcionário público que concorre


para o peculato praticado por outro, punida com detenção de três meses a um ano.

85.2.3.1 Conduta

O peculato culposo é a contribuição, inconsciente ou só involuntária, para a prática


de um peculato-apropriação, um peculato-desvio ou um peculato-furto praticado por outro
funcionário público.

Possível sua realização por qualquer forma, omissiva ou comissiva, desde que com
negligência, imprudência ou imperícia.

85.2.3.2 Elementos objetivos e normativos

Para a existência de peculato culposo é indispensável a prática, por outro


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funcionário público, de um peculato doloso, em qualquer de suas modalidades, cuja


realização conta com a colaboração culposa do agente.

O agente atua com negligência, imprudência ou imperícia, numa situação previsível


e seu comportamento é contributivo da consumação do peculato de outro funcionário.

É necessário que o crime do outro seja previsível objetivamente para o agente,


ainda que ele não venha prevê-lo.

Para tanto, é indispensável que o agente tenha a posse ou detenção da coisa que
será objeto do peculato de outrem e, por descuido, colabora para que ocorra a subtração, o
desvio ou sua apropriação. Não deseja que ocorra e às vezes nem prevê mas, por
negligência, realiza ou deixa de realizar um comportamento que auxilia a apropriação,
desvio ou subtração da coisa que estava sob seu poder.

Não basta que a coisa que esteja na posse do agente seja apropriada, desviada ou
subtraída, devendo restar demonstrado que seu comportamento insere-se no processo
causal, influindo para a realização do crime do outro. Em outras palavras, a conduta do
agente do peculato culposo deve efetivamente ter contribuído para a realização do crime do
outro. Haverá peculato culposo quando o agente não adota as cautelas necessárias para a
guarda de coisa alheia valiosa que esteja sob sua custódia e que vem a ser subtraída ou
apropriada por funcionário recém-chegado na repartição.

85.2.3.3 Consumação e tentativa

A consumação coincide com a consumação do peculato-apropriação, do peculato-


desvio ou do peculato-furto. Como em todo crime culposo, não é possível a tentativa.

85.2.3.4 Aumento de pena

Quando o agente ocupa cargo em comissão ou exerce função de direção ou


assessoramento do órgão da administração direta, de sociedade de economia mista,
empresa pública ou fundação instituída pelo poder público, a pena será aumentada de um
terço (art. 327, § 2º).

Não há, todavia, aumento de pena se o agente é dirigente ou exerce função de


assessoramento em empresa privada conveniada ou contratada para executar atividade
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típica da administração pública.

85.2.3.5 Extinção da punibilidade e causa de diminuição de pena

O § 3º determina que se o dano for reparado antes do trânsito em julgado da


sentença condenatória, a punibilidade será extinta. Se ocorrer após transitar em julgado a
condenação, deverá ser reduzida de metade a pena imposta. Não é necessário que a
reparação seja feita pelo agente do crime, mas somente a ele aproveitará.

85.3 AÇÃO PENAL

A ação penal é de iniciativa pública incondicionada. O peculato culposo é crime cuja


competência é do juizado especial criminal, possível a suspensão condicional do processo
penal.

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