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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
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DOGMÁTICA»

FEVEREIRO 19
10 Vil! N' 86
ÍNDICE
Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "A Medicina possui lioje em dia recursos de extraordi


nario alcance para salvar a vida dos pacientes. Até que ponto o
médico estará em consciéncia obrigado a aplicarlos ?
Que diser da chamada 'obstinacáo (acharnement,) terapéutica'!" 40

n. SAGRADA ESCRITURA

2) "Como entender a doutrina do pecado original, & lúe da


filosofía e das ciencias contemporáneas ?" 56

III. DOGMÁTICA

3) "Em nossos tempos poderla a Igreja rever a sua posicáo


negativa frente ao divorcio ?" ■ ^
4) "No Concilio Ecuménico, um hispo oriental sugeriu maior
tolerancia da Igreja para rom o divorcio, tendo em vista a praxe
dos orientáis cismáticos. Que dizer ?

De resto, vivemos numa sociedads pluralista. Os católicos tém


que reconhecer a existencia de corrcntes nao-católicas" SO

IV. MORAL

5) "Que julga a so consciéncia a respeito da moda dos cha


mados 'Beatles' ? Cabeleira é algo de inofensivo I" 83

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

C) "Alguna escritores se mostram célicos em relacáo a Teresa


Neumann-, pois, disem, desobedecen ás autoridades eclesiásticas,
recusando ser examinada pelos médicos.

Que consta a propósito ?"

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


« PERGUNTE E RESPONDEREMOS »

Ano VIII — N? 8ó (N. S.) — Fevereiro de 1967

I. CIENCIA E RELIGIÁO

ARMANDO (Curitiba) :

1) «A Medicina possui hoje em dia recursos de extraor


dinario alcance para salvar a vida dos pacientes. Até que ponto
o medico estará* em consciéncia obrigado a aplicá-Ios ?
Que dizer da chamada 'obstinacao (acharnement) tera
péutica* ?»

Em maio de 1966 realizou-se em ParJs o II Congresso Internacional


de Moral Medica. O Professor J. Hamburger, da Faculdade de París,
especialista em cirurgia dos rins, apresentou entao urna tese notável
sobre os assuntos abordados no cabecalho ácima. Valer-nos-emos désse
documento para elucidar as questoes propostas.

Inegávelmente, a Medicina em nossos dias adquiriu, com


rapidez surpreendente, extraordinario poder de intervir na vida
e na molestia dos pacientes : abre coiagóes e cerebros, retira
pulmóes, substitui rins, aplica drogas quo modificam quase por
completo as personalidades, faz voltar á vida individuos tidos
como mortos, detém a fecundidade da mulher... Em conse-
qüéncia, dizia o biologista francos Jean Rostand: «Hoje em
dia, a Medicina nos torna deuses, antes mesmo que merecamos
ser homens».
Ésses extraordinarios progressos da ciencia nao deixam
de suscitar problemas novos no setor da Moral Médica; há
realmente situares em que a consciéncia do médico pode
indagar se a profissáo de salvar a vida do próximo o obriga,
em todo e qualquer caso, a aplicar os poderosos recursos que
a ciencia lhe aponta.
É o que as linhas abaixo procurarlo estudar, na certeza
de que o problema é complexo e por ora nao pode ser resol-
vido de maneira única e válida para todos os casos.
Examinaremos sucessivamente as principáis facetas do
tema.

1. Um principio geral

Antes do mais, importa íazer urna observacáo que, embora seja


muito obvia, se presta a conclusáo importante. Ei-la :

— 49 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 1

Do ponto de vista puramente científico (ao qual a fé crista


nao se opóe), deve-se dizer que a morte é, para todo ser humano
(considerado com tal), um fenómeno natural, correspondente
ao nascimento e á reprodugáo biológica.

Embora a ninguém seja licito querer de antemáo restringir as


possibilidades da ciencia, deve-se reconhecer que a imortalizacüo ou
a conservaeüo ilimitada da vida do composto humano é algo de teórico,
é um ideal que cm nossos dias ainda nao pode ser executado.

Por conseguinte, o que interessa ao médico diante da rea-


lidade «morte», é distinguir dois tipos de óbito: a morte cau
sada de maneira prematura por um acídente ou por urna mo
lestia que poderia ser debelada, e a morte que ocorre por irre-
parável desgaste do organismo, por assim dizer, em sua hora
normal.
Feita esta distingáo, observe-se que a tarefa do médico
nao é a de manter a vida a todo prego, nao é a de impedir a
morte natural, mas apenas a de profligar a morte prematura
ou recuperar os casos de acidentes e doengas reversareis.

Nao há dúvida, na prática é difícil ater-se a esta distincáo ; tor


na-so muito arduo averiguar cm determinado caso so a morte seria
prematura ou normal; em conseqüéncia, deverseá tratar o anciáo
como se trata o adulto. Nao obstante, as consideracóes ácima nao
dcixam de projetar luz sobre a questáo da «obstinacáo (achamememt)
terapéutica».

2. Quando comeca a morte ?

O dever, que ao médico incumbe, de salvar a vida dos


pacientes supóe que se conhega com certa precisáo até onde
váo as fronteiras da vida no individuo e onde comegam as
da morte; em outros termos: supóe que se possa perceber com
exatidáo se o enfermo ainda está vivo e, por conseguinte, sus-
cetível de recuperacáo ou se já está simplesmente morto.
Esta, avaliacáo parecía mais fácil há vinte anos atrás do
que em nossos dias : empregavam-se criterios tradicionais, ba-
seados principalmente sobre os sinais circulatorios do orga
nismo. Atualmente, porém, verifica-se que tais síntomas já sao
insuficientes; há, sim, centenas de doentes em estado de vida
artificial; os novos meios terapéuticos fazem que a morte seja
cada vez menos algo de preciso e definido; ela se torna, ao
contrario, urna realidade que se vai dilatando no próprio indi
viduo; «desmembra-se», atetando separada e sucessivamente
as diversas partes do corpo.

— 50 —
«SALVAR A VIDA» NA MEDICINA MODERNA

A Medicina consegue hoje, num homem decapitado, conservar


artificialmente o ritmo vital do coracáo, dos pulmoes e dos rins;
pode-se dizer, por isto, que tal homem sem cabeca aínda está vivo ?
Para declarar que deixou de viver, será preciso esperar que seja
irremediávelmente atingida a última porcáo de tecido do organismo?
— Na verdade, dever-se-á asseverar que, apesar dos síntomas de cir-
culacáo, tal individuo decapitado já nao é um homem vivo; a morte
difusa o irremediável do sistema nervoso equivale á morto do
individuo.

A fim de ilustrar esta afirmagáo, o Prof. Hamburger citou


o seguinte caso :
Urna jovem de 17 anos foi transportada para o Hospital Necker,
onde trabalhava o Dr. Hamburger. Tal era o seu estado que neces-
sitou imediatamente de ser colocada em regime de respiragáo arti
ficial ; caiu em coma total; desapareceram todos os reflexos, inclu
sive os reflexos pupilares ; o eletroencefalograma era retilineo; a
temperatura nao ultrapassava 34,5°. Todavía o eletrocardiograma era
mais ou menos normal, pois a pressáo arterial vinha sendo mantida
artificialmente em nivel bom; a cota de uréia no sangue estava con
trolada por um rim artificial; a oxigenacáo do organismo se mantinha
em virtude do baláo de oxigénio.
Depois de alguns dias, a situagáo da paciente se conservava inal
terada, sem reativagáo do sistema nervoso. Foi entáo chamado a
consulta o Prof. Frangois Lhermitte, o qual, depois de longo e me
ticuloso exame, dcclarou:
«Creio que a enferma está morta já há alguns dias !»
«Palavras de que sempre me lembrarei!», comentou o Prof.
Hamburger.
Com oícito. Pouco depois, a pressáo arterial caiu, e o coracáo
estacionou. Cinco horas mais tarde, foi feita a autopsia: esta revelou
um aspecto do cerebro análogo ao que se verifica em autopsias rea
lizadas alguns dias após o óbito do paciente...

Referindo tal caso, intencionava o Prof. Hamburger evi


denciar que hoje em dia muitos dos clássicos síntomas de vida
já nao correspondem á realidade ; sao sinais meramente arti
ficiáis, os quais apenas encobrem o processo de morte que,
embora dilatado, se vai desenvolvendo irreparávelmente no en
fermo. Em tais casos, é claro que nao tem propósito a dita
«obstinado terapéutica»; ao médico, em consciéncia, nao cabe
a obrigagáo de salvar urna «vida» que, na verdade, nao é senáo
morte atuante de maneira protraida.

3. Escolher os doentes a ser salvos ?


O mesmo Prof. J. Hamburger apresentou novo problema susci
tado pela Medicina moderna, narrando suas experiencias no setor de
sua especlalidade: o dos rins artificiáis.

Existe um aparelho, descoberto por um dentista norte-


-americano, que permite a sobrevivencia aos doentes de uremia
crónica : estes trazem no braco urna especie de circuito elé-

— 51 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 5

trico «artéria-veia»; urna vez por semana, comparecem ao Hos


pital a fim de passar por urna depuragáo do sangue (diálise);
após éste processo, que dura algumas horas, conseguem de
senvolver suas atividades normáis.
Ora, salientava o Prof. Hamburger, existem no mundo
algumas centenas de pacientes de uremia que, há meses ou
anos, sao assim conservados, levando vida normal ou quase
normal, embora os seus dois rins estejam quase definitivamente
destruidos ou mesmo amputados (éste era o caso de urna se-
nhora que o Dr. Hamburger tratava, havia dois anos).
A Medicina está, pois, de posse de um recurso terapéutico
capaz, em teoría, de impedir a morte de cérea de dez mil fran
ceses que sucumbem anualmente á uremia. Todavía observaya
o conferencista que um Centro Médico como o que ele dirigía,
equipado para aplicar tal tratamento, podía atender a quinze
ou vinte doentes no máximo. Para satisfazer as necessidades
de todos os pacientes de uremia da Franja, seria preciso criar
500 centros do mesmo tipo no país. Ora a construcáo e a apa-
relhagem de cada um désses Postos Médicos implicaría numa
despesa de 1.500.000 francos; por sua vez, cada paciente de-
veria despender 50.000 francos por ano para se beneficiar do
tratamento respectivo.
Mais ainda : cada ano sobe o número de doentes a tratar
por tal vía, pois que os enfermos atendidos em primeiro lugar
devem prosseguir a sua terapéutica sob pena de morte ime-
diata desde que se suspendam as intervengóes de diálise (ou
depuracáo do sangue). Em conseqüéncia, verifica-se o se-
guinte: caso se atribua a cada um de tais doentes a esperanca
de sobreviver durante dez anos, será necessário, para tratá-los,
criar na Franga em dez anos 5.000 Centros Médicos especiali
zados e ai atender a cem mil pacientes de uremia; isto importa
urna despesa global de cérea de 35 bilhóes de novos francos.
— Mesmo obtida esta quantia, nao estaría resolvido o pro
blema : para trabalhar em tais Hospitais, tomar-se-ia neces-
sária urna numerosa equipe de médicos e enfermeiros especia
lizados, que nao poderiam ser recrutados nem formados com
a devida prontidáo.
Á vista disto, pohderava o Dr. Hamburger: a Medicina
moderna progrediu a ponto de permitir ao homem escapar de
urna molestia até nossos días tida como mortal; contudo o
respectivo tratamento ainda é demasiado oneroso (em dinheiro
e passoal) para poder ser aplicado a todos os que déle preci-
sam. Nem os cidadáos em particular nem a sociedade como tal
estáo em condigóes de arcar com as despesas exigidas pelos
modernos recursos. Em conseqüéncia, apresentam-se situagóes

— 52 —
«SALVAR A VIDA» NA MEDICINA MODERNA

em que o médico tem que se decidir a deixar morrer; a norma


de «salvar a vida», embora teóricamente conserve todo o seu
vigor (e vigor apoiado pelos recentes progressos da Medicina),
na prática deverá sofrer derrogagóes (derrogagóes ocasio
nadas pelos mesmos progressos da Medicina). E que impor
ta, por ora, é que, se o médico é obrigado a escolher entre
os pacientes a ser atendidos, escolha de acordó com a es-
trita justiQa, colocando o valor da personalidade humana
ácima de quaisquer interésses de ordem meramente material
ou subjetiva.
Oxalá se aproxime o dia em que a Medicina disporá dos recursos
humanos e financeiros necessários para que os mais novos e eficazes
tratamentos, hoje ainda extraordinarios, se tornem ordinarios e, por
isto, acessiveis a todos os pacientes!

4. Os remedios que salvam, acarretando grandes riscos


A Medicina contemporánea possui, sem dúvida, medica
mentos de imenso alcance e poder para debelar determinadas
molestias; acontece, porém, geralmente que, quanto mais efi
cazes sao tais remedios no seu respectivo setor, tanto mais
perigosos se tornam para o estado geral do organismo.
Observa o Prof. Hamburger :

«Os medicamentos eíicazes, mas perigosos, tornaram-se hoje em


dia inumeráveis. A droga totalmente inofensiva é exceeáo; o reme
dio perigoso é a regra. Mesmo os nossos processos de pesquisas com-
portam riscos : a arteriografia, a flebograíia, as biópsias de órgáos
e outros recursos necessários para diagnosticar sao todos ameacados
por certo número de acidentes graves ou mortais. Qualquer injecáo
endovenosa poderia, segundo alguns autores, ser causa de definitivo
estacionamento do coracáo. É inútil prolongar a lista de exemplos».

O Dr. Hamburger ilustra suas afirmagóes, referindo ainda


o seguinte caso :
«N. N., de 47 anos de idade, sofría de hipertensao arterial desde
os 15 anos. Foi operado de aneurisma da aorta abdominal aos 5 de
feyereiro de 1965 ; a intervencáo, muito ardua, exigiu que se substi
tuisse um segmento da aorta por urna prótese de plástico. Quatro
dias após a operagáo, a temperatura do paciente era de 40°; sobre-
vieram sinais de perigosa infeceáo; o enfermo entrou entáo em coma
e passou para a tenda de oxigénio; averigüou-se outrossim urna anuria
total... No caso, sonriente um antibiótico poderia ser eficaz : a kana-
micina; cantudo éste preparado acarretava elevado risco, se nao a
certeza mesma, de produzir surdez irreversível. Caso se quisesse
evitar esta surdez, era quase inevitável a morto do doente, atacado
da mais grave das septicemias. Os médicos resolveram entáo aplicar
a kanamicina: o paciente ficou um mes de coma, sofreu sete diálises,
duas totais transíusóes de sangue; permaneceu seis sernnnas sob res-
piragáo artificial, e acabou por sobreviver. Estava curado da sua grave
infeceáo, mas doravante surdo e enfermo...»

— 53 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 1

Que dizer diante de tais situacóes ?


Antes do mais, notar-se-á que é impossível deixar de re
correr a toda e qualquer agáo ou intervengáo que comporte
um risco : isto equivaleria a atar as máos do médico, a impor
á Medicina um retrocesso de 50 anos.
É preciso, pois, ter a coragem de aplicar os fortes recursos
da ciencia moderna, usando-se, porém, o senso de ponderagáo
exigido por cada situagáo de per si; avaliem-se os pros e con
tras de cada agáo medical.
O Prof. Hamburger desee ás seguintes proposigóes (que
a consciéncia crista bem pode aceitar):
1) Caso se prevéja que urna enfermidade, nao tratada,
acarretará a morte com 90 % de probabilidade, ao passo que
o respectivo tratamento oferece menos de 10 % de riscos de
sastrosos, nao naja hesitacáo em recorrer a tal tratamento.
2) Nao se empreenda terapéutica cujos riscos nao sejam
notávelmente inferiores ao perigo de desencadeamento fatal
da molestia.
3) Em casos de doen?as que se mostrem constantemente
benignas, nao se aplique tratamento que acarrete risco de
morte, aínda que o risco seja fraco.
4) É lícito recorrer a um tratamento arriscado, mesmo
etevadamente arriscado, no caso de urna molestia que, nao
tratada, seja por certo mortal. — É lícito...; nao, porém, obri-
gatório. Cabe ao paciente (se ele o pode) ou aos seus fami
liares ou ao médico avaliar se tal recurso licito é oportuno.

Éste aspecto do tema será aínda desenvolvido no inciso


abaixo.

5. A quem toca a responsabilidade ?


Há casos em que um tratamento licito, pelo fato de ser
extraordinario, nao obriga a consciéncia do enfermo, podendo
ser rejeitado por éste sem ofensa á Lei de Deus.
Por conseguinte, antes de aplicar tal tratamento, reza a
Ética que o médico consulte a respeito o paciente ou os seus
familiares.
O Prof. Hamburger, porém, lembra que, na praxe da
Medicina moderna (que conhece táo numerosos recursos, táo
numerosas hipóteses, táo numerosos pros e contras), tal con
sulta se torna por vézes desaconselhada ou mesmo nociva.
Haveria, com efeito, situagóes em que o médico deveria dizer
ao enfermo :

«Sem tratamento, tens nove probabilidades sobre dez de morrer


na semana próxima. Meu trainmento traz tres probabilidades sobre dez

— 54 — .
«SALVAR A VIDA» NA MEDICINA MODERNA

de te tirar a vida, mas reduz a 40 % o receto que temos de te ver


sucumbir».

Tais dizeres, que sao a expressáo fiel da situagáo como a


ciencia moderna a considera, tém que ser atentamente leva
dos em conta pelo médico; ele os deve ponderar para poder
ser útil ao doente. — Quanto a éste, em lugar de se beneficiar
com táo exato conhecimento de sua situagáo, poderá muitas
vézes ser abalado e prejudicado; a sua recuperagáo será assim
gravemente comprometida. O médico entáo nao Ihe poderá
pedir o consentimento para proceder a determinado tratamento
extraordinario.
Estará conseqüentemente obrigado a solicitar a anuencia
dos familiares do enfermo ?
Em circunstancias ordinarias, sim. Acontece, porém,
observa o Prof. Hamburger, que nem os familiares estáo sem-
pre habilitados a avaliar plenamente a situagáo do enfermo
com as múltiplas facetas que a Medicina moderna sabe desco-
brir. O médico terá, por vézes, que falar aos familiares do
doente em termos simplificados e esquemáticos. Conseqüente
mente, em tais casos a resposta dessas pessoas será criterio
imperfeito para nortear a conduta do médico.
Frecuentemente, concluí o Prof. Hamburger, será o pró-
prio medico quem, em última instancia, deverá arcar a sos
com a responsabilidade de sua atitude (intervengáo ou náo-
-intervengáo) na situagáo do enfermo.
Sao muito sabias as ponderagfies que assim sugere o ilustre mes-
tre. Todavía é de crer que o médico encontrará nao raro urna ou mais
pessoas (familiares do doente, colegas de profissáo) com quem possa
compartilhar a responsabilidade de suas decisoes; é mesmo para de-
sejar que procure tais conselheiros co-responsáveis, a fim de evitar
um passo errado perante os homens e perante Deus.

Em conclusáo, após percorrer as questóes ocorrentes neste


artigo, verificamos que a Medicina moderna, ao mesmo tempo
que enriquece extraordinariamente o cabedal científico e os
recursos práticos do médico, exige outrossim que torne mais
e mais apurada a sua formagáo moral ou deontológica. Cabe-
-lhe, sem dúvida, procurar salvar a vida; seria váo, porém, ten
tar seguir éste principio sem levar em conta os matizes que
ele apresenta diante das novas situagóes que a ciencia mo
derna descobre em muitos casos patológicos. A ciencia de nos-
sos días nao simplificou a Moral médica; ao contrario, tornou-a
mais complexa; toca em consciéncia a cada clínico a imperiosa
necessidade de se inteirar das vastas possibilidades e também
das impossibilidades da Medicina, a fim de poder realmente
beneficiar o próximo.

— 55 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967. qu. 2

II. SAGRADA ESCRITURA

MATTOS (Rio de Janeiro) :

3) «Gomo entender a doutrina do pecado original, á luz


da filosofía e das ciencias contemporáneas ?»

A doutrina do pecado original tornou-se em nossos dias


objeto de interrogagáo por motivos diversos:

a) a mentalidade moderna tende a conceber a historia do mundo


e do homem em termos otimistas, segundo urna ascensáo gradativa
e bela — o que dificulta a admissáo de urna falha nos primordios
dos tempos;
b) a contaminacáo de todos os homens por urna falta que nao
cometeram, suscita estranheza;
c) as descobertas da Paleontología nao parecem fazer eco aos
textos bíblicos referentes a Adáo e Eva.

Daí as dúvidas na mente de muitas pessoas bem intencionadas.


Conscientes de tais dificuldades, em julho de 1966 reuniranuse grandes
exegetas e teólogos em Roma, a fim de procurar formular a doutrina
do pecado original em linguagem condizente com o dogma de fé e,
ao mesmo tempo, com os postulados do pensamento contemporáneo.
Em tal ocasiáo, S. S. Paulo VI reuniu ésses estudiosos, propondolhes
brevemente a doutrina da fé referente ao pecado original.

Nos últimos tempos, tém sido publicados numerosos livros e arti-


gos tendentes a atenuar a realidade do pecado original e suas conse-
qüéncias : recorrem a teses das ciencias naturais, da psicología, fia
lingüistica e da jiistória antiga... Nao se pode negar o cabedal de
erudicáo contido nesses ensaios. Contudo, aos olhos da fé e do autén
tico filho da Igreja, sobre todas as teorías e hipóteses prevalece a
palavra do Sumo Pontífice, máxime quando se sabe que foi dita jus
tamente em vista das novas tentativas de explicaeáo do dogma. É
por isto que ñas páginas que se seguem, adotaremos os pontos indi
cados par Sua Santidade como pontos essenciais á fé católica.

1. O texto bíblico

Antes do mais, convertí lembrar o conteúdo da passagem


bíblica que refere a queda original (Gen 3), com brevidade,
porém, pois urna exegese minuciosa do texto já se encontra
em «P. R.» 18/1959, qu. 5; cf. também «Ciencia e Fé na historia
dos primordios» de E. Bettencourt (Ed. AGER).

1) Deus quis que o género humano descendesse de um


só casal: Adáo e Eva.
As ciencias modernas nao o provam nem o recusam. Em nome da
fé, S. Santidade Paulo VI o reafirmou recentemente, como veremos
adiante.
— 56 —
O PECADO ORIGINAL

2) Ao criar os primeiros pais, Deus os podia ter deixado


no plano natural, entregues apenas aos recursos da sua natu-
reza racional. Por benevolencia gratuita, porém, o Senhor lhes
infundiu:
a) dons sobrenaturais: a graca santificante, as virtudes infusas,
os dons do Espirito. Santo. O homem íoi assim elevado á dignidade
de filho adotivo de Deus e habilitado a ver a Deus face a face na
eterna bem-aventuranca;

b) dons prcternaturais, que aperíeicoavam a natureza humana;


corroboravam a submissáo da carne ao espirito (ou alma), dando
origem a harmonía dentro do próprio homem e em torno déle.
Assim os primeiros pais deviam ser Isentos de sofrimentos, doen-
cas e morte, de ignorancia e de concupiscencia desregrada (luta
da carne contra o espirito) e gozariam de dominio sobre as criaturas
inferiores. Sabe-se que tais prerrogativas nao sao inerentes á natu
reza .humana como tal: esta, por séus principios constitutivos, é levada
a experimentar a luta, o desenvolvimento paulatino de suas faculdades
e a decomposicüo de si mesma pela morte.

Nao é necessário admitir que ésses dons modificassem o


semblante dos primeiros homens ou o ambiente em que viviam.
Pode-se muito bem conceber que tais dotes existiam apenas
virtualmente ou em potencia na alma dos primeiros pais; deve-
riam expandir-se plenamente, caso Adáo e Eva comprovassem
sua fidclidadc o obediencia a Deus; seriam entáo transmitidos
pelo primeiro casal a todo o género humano.

3) Éste belo designio foi por Deus condicionado ao «Sim»


ou a aquiescencia do homem.

O Criador, que fez o homem livre, quis que éste tomasse posse da
sua definitiva bem-aventuranca de maneira consciente e livre, ao
invés das criaturas inferiores, que sao levadas ao seu fim supremo
por cegó instinto ou por intervencáo de outras criaturas.

4) Para tanto, propós aos primeiros pais um preceito


ou urna norma a seguir, preceito que representava a vontade
e o plano de Deus a respeito do homem.
A Escritura Sagrada diz que tal mandamento foi a proibigáo de
comer do fruto de determinada árvore (cf. Gen 3,2s). Esta proposicáo
pode ser tomada ao pé da letra como também ser entendida metafó
ricamente, pois os antigos costumavam falar de árvorcs simbólicas
para designar os dons e as comunicac5es da Divindade aos homens.
Nao nos interessa (nem é possivel) conhecer exatamente qual a
materia do preceito dado aos primeiros pais; o que importava a
Deus, nao era um fruto ncm outro objeto material, mas a entrega
livre e filial da personalidade humana ao sabio designio do Criador.

5) Q homem, porém, seduzido pelo demonio (que a Biblia


apresenta como serpente), nao se rendeu á intimagáo divina;
preferiu ser como Deus, desviando-se de Deus. O orgulho, por-

— 57 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 2

tanto, o levou a desobedecer, violando a norma de comporta-


mentó ou o preceito x que o Criador lhe havia dado.
O pecado de Adáo foi a soberba, o tánico pecado que um
espirito isento de paixóes desregradas possa cometer.

Urna sentenga antiga, hoje assaz difundida, assevera que se tratou


de pecado sexual; tal interpretacáo, porém, carece de suficiente fun
damento no texto; os autores que a propóem, recorrem a hipóteses
um tanto sutis; pleitoiam tal transposicíio de versículos e táo alegó
rico uso de vocábulos que já nao merecem audiencia. Note-se outros-
sim que o escritor bíblico apresenta a concupiscencia desregrada como
algo de posterior ao pecado (cf. Gen 3, 8. 11. 21). Ademáis Eva foi
punida na sua fungáo de máe (dores no parto) porque éste é o papel
específico da mulher, como Adáo foi castigado ñas suas func5es de
lavrador ou trabalhador porque estas representam bem a tarefa espe
cífica do varao (cf. Gen 3, 16-20).

6) Pecando, os primeiros pais se afastaram de Deus;


perderam, portante, os dons paradisíacos que, outorgados gra
tuitamente, ficavam condicionados ao «Sim» do homem. A
ruptura da sujeigáo do homem a Deus acarretou conseqüente-
mente, dentro do homem, a ruptura da submissáo da carne ao
espirito e, fora do homem, a insubordinado das criaturas infe
riores ao seu senhor aqui na térra. Por conseguinte, a carne
já nao colabora com o espirito do homem : fá-lo sofrer, con-
traindo miserias, enfermidades e a própria morte; instiga-o
também a cometer atos que a sá razáo repudia; mais ainda:
os seres irracionais, longe de prestar sua cooperacáo ao ho
mem, entravam-no freqüentemente, ocasionando desastres,
inundacóes, secas, ataques de animáis daninhos, etc.

Assim explica o texto sagrado a origem do mal no mundo. Éste


se deve á desordem livremente introduzida pelo homem na harmonía
estabelecida pelo Criador. Afastando-se de Deus, que é a Vida, o homem
nao pode senSo experimentar a acáo da morte e de seus precursores;
estes seriam algo de meramente natural e normal, se nao houvera
a elevacáo e a queda dos primeiros pais; após o pecado de Adáo,
porém, toda essa miseria tem a característica de conseqüéncia e
punicao do pecado. Note-se bem : nao era necessário que Deus de
cretaste explícitamente infligir tal pena ao homem pecador; ela de-
corre lógicamente da desarmonia que o homem introduziu ñas suas
relacóes com o Criador..

7) Adáo e Eva, após a queda original, comegaram a gerar


filhos e filhas (cf. Gen 5,4). Nao lhes podiam transmitir senáo
a natureza humana tal como a possuiam, isto é, despojada dos
aons gratuitos que haviam recebido, sujeita a concupiscencia
aesregrada, as dores e á morte. Em conseqüéncia, todos os
descendentes de Adáo nascem num estado que destoa do seu
exemplar ou daquilo que deveriam ser segundo a reta ordem

— 58 —
O PECADO ORIGINAL

das coisas; tal deformidade constituí uma nódoa na alma de


todo ser humano,. nódoa que se chama «o pecado original».
Sem dúvida, os homens após Adáo nao tém culpa pessoal no pecado
de Adáo e Eva; contraem-no por solidariedade de linhagem, nao por
revolta contra Deus. Por isto também o Senhor nao trata o pecado
original como o pecado atual, em que a vontade da pessoa age de
maneira consciente e dLreta. As criangas que, antes do uso da razao,
morrcm com ossa deformidade original, sem a poder repudiar cons
cientemente, nao sao punidas com o inferno; nao podem, porém, ver
a Deus face a face ou gozar da bemaventuranca sobrenatural. Os
teólogos julgam que as almas désses pequeninos váo para o limbo:
passam a gozar para todo o sempre da íelicidade de que é capaz a
natureza humana como tal, ou da visáo analógica de Deus.
Mais adiante veremos como se conciliam o pecado de Adao e
sua transmissáo a todos os homens com a Bondade e a Sabedona
infinitas de Deus.

Consideremos agora o lugar que a doutrina do pecado


original ocupa dentro do conjunto da mensagem crista.

2. Pecado original e mensagem crista


Nao se poderia entender adequadamente a doutrina do pecado
original como uma proposicáo isolada entre outras do Credo cristáo;
parecería sempre estranha, principalmente por apresentar todos os
homens solidarios com a culpa de um só homem. Na verdade, tal
doutrina deve ser considerada a luz do Cristo Jesús e da sua obra.

1) Com efeito, Deus Pai concebeu todos os homens em


vista de Jesús Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus.
É em Cristo e por Cristo que todo ser humano vem a existencia
e chega á sua consumacáo. Lembra Sao Paulo que o Pai pre-
destinou os homens a se tornarem conformes la imagem de
seu Filho, a fim de que Éste seja o Primogénito entre muitos
irmáos (cf. Rom 8, 29; Ef 1, 4. 11; Col 1, 15.18); «ao Cristo
Jesús compete o primado em toda a criagáo» (cf. Col 1,18),
e ninguém vai ao Pai senáo por Cristo (cf. Jo 14, 6).
Destas verdades se depreende que o Cristo Jesús e como
que um Homem-compéndio, no qual estáo coñudas as sortes
■ de todos os homens; a existencia de Cristo condiciona a de
todas as criaturas; a vida de Cristo, a dos demais homens.
Assim Cristo constituí o eixo central da historia, que marca
com sua figura os tempos passados, presentes e futuros : «Jesús
Cristo ontem, hoje e por todos os sáculos» (Hebr 13,8).

2) Ora, antes que aparecesse Cristo na plenitude dos


tempos, Deus Pai quis que no inicio dos sáculos Ele projetasse
uma miniatura de si mesmo : o primeiro homem, Adáo, tipo
do futuro Homem, Cristo, que seria o segundo Adáo (cf. Rom

— 59 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 2

5,14). O primeiro pai do género humano, portante, foi também


um homem-compéndio, no qual estavam envolvidas as sortes
de todos.
Isto se compreende de algum modo quando se considera que
todos os membros de urna estirpe estáo incluidos no seu Patriarca;
ó o Patriarca quem dá o nome e as características raciais á sua
Hnhagem. Pois bem; Deus Pai quis íazcr todos os homens solidarios
com Adáo nao somonte no plano natural, genealógico, mas também
no plano religioso.

3) Adáo frustrou o seu ideal. Em vez de levar a si e a


toda a sua linhagem para Deus Pai, ele se voltou contra Deus
e acarretou sobre o género humano miseria e morte.
4) A esta altura, talvez pergunte alguém : pode Adáo
ser realmente responsabilizado de táo importante falta ? Tinha
consciéncia do que fazia ?
— Por certo, Adáo nao possuia a ciencia e a cultura de
um cidadáo de século XX; nao obstante, Deus lhe comunicou,
como foi dito atrás, o dom preternatural da ciencia, isto é,
as luzes necessárias no plano religioso e moral para que desem-
penhasse devidamente a sua fungáo patriarcal; em caso con
trario, o Senhor Deus teria sido injusto.
5) Mais ainda. Pergunta-se: o Deus Pai nao sabia que
Adáo seria infiel, tornando infelizes todos os seus descendentes ?
E, se o sabia, porque depositou tanta responsabilidade sobre
Adáo ? „.. • j
Nao há dúvida, Deus Pai previa a desobediencia de
Adáo. Esta havia de decorrer exclusivamente da liberdade de
arbitrio do primeiro homem; Deus nao a provocou. Para impe-
di-Ia, o Criador deveria ter retirado ou suspenso milagrosamente
o livre arbitrio que Ele havia dado como característica da
nobreza humana. Ora o Senhor Deus nao quis retirar, por pouco
que fósse, o que Ele havia outorgado. Nao o quis, pois isto
seria indigno. Mas, usando de maior sabedoria e magnanimi-
dade, Deus Pai se comprometeu consigo mesmo a remediar
maravilhosamente á desgraga do género humano decaído;
tomaría ocasiáo da própria falta de Adáo para derramar maior
amor e maior bondade sobre o género humano.
Ensina S. Agostinho que Deus «jamáis teria permitido
existisse qualquer mal em suas obras, se a sua Onipoténcia e
a sua Bondade nao fóssem tais que pudesse tirar do próprio
mal o bem» (Enchiridion III 11). Éste sdlene principio, reafir
mado mais tarde por S. Tomás, é como que a chave que abre
o misterio do pecado neste mundo; é ele que ilumina o procedi-
mento aparentemente frió e desconcertante de Deus frente á
liberdade humana; Deus nao faz o que julgamos deveria fazer,

— 60 —
O PECADO ORIGINAL

porque quer fazer algo de muito mais sabio e grandioso. Admi


tida esta norma, esvanece-se a perplexidade ocasionada pela
historia do pecado original: Deus quis, sim, respeitar até o fim
a liberdade do homem, mas houye por bem servir-se da própria
ruina do homem para o beneficiar ainda mais.

6) E como o bcneficiou ainda mais ?


Cristo, centro da historia, veio ao mundo nao sómente
como Meslxe e Modelo, mas também como Instaurador de urna
ordem de coisas ainda mais estupenda do que a inicial; nao veio
apenas para restabelecer o homem no estado donde decaíra,
mas para elevá-lo a destino mais sublime.
Escrevem os teólogos carmelitas de Salamanca (séc.
XVII):
«Seria desordem e como que urna especie de crueldade permitir
o mal em vista apenas de o reparar e de nos reconduzir ao nosso
estado inicial. Isto, porém, nao se dá, quando o mal é permitido em
funcáo de um grande bem que de longe ultrapassa ésse mal e o
apaga... Ora eis aqui o caso. Se Deus permitiu a catástrofe humana,
n&o íoi apenas para lhe dar remedio posteriormente, mas íoi na
previsáo da gloria de Cristo Redentor, cuja dignidade supera de muito
a malicia da queda permitida...; foi outrosim em vista de um bem
maior do género humano mesmo, que recebe mediante o sangue de
Cristo urna graca mais abundante e urna suprema nobreza» (De
Incarnatlone, disp. 2, dub. 1, n* 36).

É Síio Tomás (f 1274) quem oscreve :


«Nada impede que a natureza humana tenha sido elevada a um
estado melhor após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males
aconteíam para déles tirar maior bem. Donde a palavra de Sao Paulo
aos Romanos: 'Onde o pecado abundou, a graca superabundou' (5,20).
E o canto do 'Exultet': 'Ó feliz culpa, que mereceu tal e tño grande
Redentor !p» (S. Teol. III qu. 1, a. 3, ad 3).

É o que permite ao Cardeal Charles Journet, em nossos


dias, concluir:
«A quem pergunta por que o poder de Deus nao impediu, por
algum milagre, o pecado do primeiro homem, pode-se responder que
ele se preparava a compensá-lo sobej amenté por um milagre mais
estupendo» (Le Mal, Desclée de Brouwer 1961, pág. 284).
Enfim, Deus jamáis teria permitido a queda do homem se
no mesmo instante divino e eterno nao tivesse previsto a Re-
dencáo.

7) Contudo ainda urna objecáo surge espontáneamente:


O mundo atual, constantemente visitado pela dor, pelas
epidemias, pelas catástrofes, pela miseria, cheio de escándalos,
crimes, mentiras e injustigas, o mundo que se convulsiona em
guerras intercontinentais, aterrorizado pela bomba atómica,

— 61 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 2

manchado pelos campos de concentragáo e as cámaras de gas,


tal mundo de hoje após a vinda de Cristo como pode ser consi
derado melhor, em seu conjunto, do que o mundo anterior á
culpa, em que havia inocencia apenas e nenhuma afligáo ?
Existe em nosso mundo de hoje algum bem que nao existisse
no paraíso terrestre e que compense sobejamente o peso quase
esmagador das miserias atuais ?

Eis o núcleo mais intimo do todo o problema do pecado original


e da Redencao ; eis o ponto decisivo da questüo debatida nestas páginas.
Urna resposta cabal jamáis poderia ser dada com a filoso
fía ou com o raciocinio apenas. É a fé que a formula.
— A fé?!—Sim; o cristáo n3o se intimida de o dizer ; está
escrito em tres passagens do Novo Testamento : «O justo vive da fé»
(Rom 1, 17 ; Gal 3,11; Hebr 10, 38). É, pois, a fé a luz do cristao
também diante da dúvida ácima expressa.

Ora a fé ensina que Cristo, o segundo Adáo, o novo Pai


do género humano, nao é mero homem, mas é o Filho eterno
de Deus, possuindo dignidade infinita. Ele comunica aos homens
a sua vida mediante o Batismo ou o sacramento da regeneragáo;
nao lhes dá apenas vida humana, mas vida imortal, eterna,
fazendo-os participar da comunháo de vida do próprio Deus
(Pai, Filho e Espirito Santo).
Para fazer-nos solidarios consigo, com sua bem-aventuran-
ga infinita, Cristo féz-se primeiramente solidario conosco, com
nossas miserias e nossa morte; nao as quis cancelar ou apagar
da historia, pois constituem a sancáo que em justica o género
humano deve carregar, a fim de que a ordem seja devidamente
reparada; Cristo preferiu assumir tais miserias, passar por elas
e acompanhar-nos na dor e na morte, a fim de transfigurar
- ésses males, tornando-os vestíbulo para a ressurreicáo e a gloria.
Conseqüentemente afirma Sao Paulo :

«É digna de crédito esta palavra :


Se morremos com Ele (Cristo), com Ele viveremos,
Se nos conservarmos firmes com Ele, com Ele reinaremos.
Se O renegarmos, também Ele nos renegará.
Se somos infiéis, Ele permanece fiel,
Pois nao se pode renegar a Si mesmo».
(2 Tim 2, 11-13)

O que quer dizer : se compartilharmos o sofrimento e a


morte com Cristo, ressuscitaremos triunfantes com Ele. Se O
rejeitarmos de maneira definitiva na hora da nossa morte,
Ele reconhecerá e respeitará a nossa recusa. Mas, se O repu-
diarmos transitoriamente nos altos e baixos da vida cotidiana,
sempre O encontraremos pronto a nos receber de volta; pode-

— 62 —
O PECADO ORIGINAL

mos estar certos de que Ele nunca retirará de nos o seu convite
e a sua solidariedade, pois, em caso contrario, se desdiría e
nao seria Deus.
É a inabalável certeza destas verdades que, para o cristáo,
toma refulgente o espectro sinistro do sofrimento, transfor
mando a cruz, patíbulo de ignominia, em árvore de vida. O
mundo de hoje é ambivalente aos olhos da fé: profundo motivo
de dor, sim, mas também, e mais ainda, profundo motivo
de exultagáo.
O cristáo nao se ilude; nao julga que, com o decorrer dos tera-
pos, haverá menos pecado e menos pranto nesta térra ; com efeito.
a Escritura Sagrada, no Evangelho e no Apocalipse, prediz a multi-
plicacáo de iniquidades e afíleles no íim da historia. Contudo o
cristáo sabe que, quanto mais intima lhe é a participacáo da cruz
do Senhor, tanto mais bela será também a sua partilha no Reino
de Cristo.
É nestes termos que a visáo crista do mundo é otimista.
Ela nao receia dizer que houve urna queda original e que carre-
gamos as conseqüéncias desta queda; mas ela afirma a exis
tencia de urna Providencia Divina, que, respeitando o livre
jógo da vontade humana e suas conseqüéncias, nao permite
as quedas senáo a fim de as fazer servir a maiores bens. Todo
homem que toma consciéncia disto, concebe a grande preocu-
pagáo de ser incondicionalmente fiel a Deus em todas as con
junturas da sua existencia; só Ele pode fazer da ignominia
gloria, da morte vida.
Consideremos agora mais um aspecto da questáo.

3. Pecado original e ciencia contemporánea


1 No inicio do Simposio de teólogos reunidos em Roma
no mes de julho de 1966, o S. Padre Paulo VI dirigiu urna
alocugáo a ésses estudiosos, lembrando-lhes os dados da fé con-
cernentes ao pecado original, dados que nao podem ceder a
hipóteses da ciencia humana.
Eis, entre outras verdades, o que dizia Sua Santidade
Paulo VI:
«Convictos de que a doutrina do pecado original, tanto no que
diz respeito á sua existencia e universalidade, como no que concerne
ao seu caráter de verdadeiro pecado, mesmo nos descendentes de
Adáo, e ás suas tristes conseqüéncias para a alma e o corpo, é urna
verdade revelada por Deus em diversas passagens dos livros do
Antigo e do Novo Testamento, principalmente nos textos que muito
bem conheceis, de Génesis 3,1-20 e da epístola dos Romanos 5,1219,
tende grande cuidado, ao aprofundar e precisar o sentido dos textos
bíblicos, em permanecer fiéis ás normas iníalíveis que emanam da
«analogía fideb, das declarares e definieses dos Concilios ácima
citados e dos documentos oriundos da Sé Apostólica. Assim estaréis

— 63 —
■rPKROUNTR KJR.ESPONDERKMOS^ «fí/1067. qu. 2

certos de respeitar 'o que a Igreja Católica, esparsa em todo o uni


verso, sempre compreendeu', isto é, o modo de sentir da Igreja uni
versal, docente e discente, que foi considerado 'regula íidei pelos
Padres do segundo Concilio de Cartago, o primeiro Concilio que, con
tra os Pelagianos, tratou do pecado original.
É pois evidente que julgareis incompativeis com a sa doutrma
católica as explicagóes do pecado original propostas por certos autores
modernos. Estes, partindo de um pressuposto jamáis provado, o pon-
genismo, negam, de maneira mais oú menos clara, que o pecado que
acarretou tantos males para o género humano, tcnha sido, antes do
mais a desobediencia de Adáo, 'o primeiro homem', figura do homem
vindouro (cf. 'Gaudlum et Spes' n* 13 e 22), desobediencia cometida
no inicio da historia. Por conseguinte, essas explicacQes estaoem
desacardo com os ensinamentos da Sagrada Escritura, da Tradigao
e do Magisterio da Igreja, segundo os quais o pecado do primeiro
homem é transmitido a todos os seus descendentes nao por vía de
imitacáo, mas de propagagáo, 'inest unicuique proprium, e e (tal
pecado) a morte da alma, ou seja, urna privagáo, e nao mera ausen
cia de santidade e de justica, mesmo mas criancas recem-nascidas.
' Igualmente vos parecerá inaceitável a teoría da evolucáo na me
dida em que nao se concille francamente com a criagáo imediata por
Deus de todas as almas humanas e de cada urna délas, nem respeite
a importancia capital, para as sortes da humanidade, da desobedien
cia de Adáo, o primeiro pai de todo o género humano.
Essa desobediencia nao deve ser considerada como se nao tivesse
feito Adáo perder a santidade e a justica ñas quais fóra constituido.
Eis, caros Filhos, as reflexóes e exortacóes que julgamos opor
tuno confiar a vos no inicio do vosso Simposio. Na luz do Salvador
universal, prometido aos nossos primeiros pais como reconforto e
esperanca logo após a queda, perscrutareis o abismo da malicia nu-
mana aberto pelo pecado original, que teve em Jesús Cristo o seu
Reparador triunfante, pois 'onde o delito abundou, a graca foi dada
em superabundancia por Jesús Cristo Nosso Senhor' (Rom 5, 20-21)».
Logo no inicio do seu pronunciamento, recordava o Pontífice:
«O misterio do pecado original está intimamente associado ao
misterio do Verbo Encarnado, Salvador do género humano, a Sua
Paixáo, á Sua Morte, á Sua gloriosa Ressurreicáo e, por conseguinte,
também á mensagem de salvagáo confiada k Igreja Católica. Em
verdade a que finalidade pode tender a acáo pastoral da Igreja se
nao á Redencáo da natureza humana, que por Deus Todo-Poderoso
admirávelmente criada em Adáo e em Adáo mámente decaída foi
por Deus misericordioso, pela graga do único. Mediador Jesús CrUto,
aínda mais admirávelmente recriada e regenerada para a vida
divina ?»

2. De tais palavras do S. Padre depreendem-se os seguin-


tes pontos:
a) O próprió Deus, pelas Escrituras Sagradas, revelou que
o primeiro homem, Adáo, desobedeceu a um preceito divino,
acarretando sobre si e todos os seus descendentes a nódoa e
as tristes conseqüéncias do pecado (a concupiscencia desre-
grada, as miserias físicas e a morte).

— 64 —
O PECADO ORIGINAL

A transmissáo do pecado nao consiste no fato de que todos


os homens ímitam Adáo, caindo por sua vez em faltas consci
entes e voluntarias (embora de gravidade diversa); mas o
pecado de Adáo comunica-se por gera$áo biológica: toda cri-
anga, ao receber a natureza humana de seus genitores e, em
última análise, de Adáo, é herdeira da nódoa do pecado de Adáo.
Essa nódoa consiste no fato de que a crianga nasce sem
a santidade e os dons que Adáo possuia antes do pecado e que
ele devia transmitir a sua linhagem, juntamente com a natu
reza humana. Tal natureza humana carecente de santidade
destoa do que deveria ser e constitui urna ofensa á ordem
instituida por Deus.
b) Verifica-se, pois, que algumas hipóteses e teorías cien
tíficas (note-se bem : nao se trata de conclusóes comprovadas
pela ciencia) nao podem ser aceitas pelo fiel católico:

aa) A primeira a ser mencionada é o poligenismo ou a


tese que supóe varios casáis na origem do genero humano.
Na verdade, como já insinuamos, toda a visáo crista da historia
se enquadra entre dois homens individuáis, que sao «tipos» ou
«compendios» para todo o género humano: o primeiro Adáo
e o segundo Adáo. O primeiro Adao decaiu da sua missáo _de
Pai para a vida, tornando-se Pai para a morte; o segundo Adáo,
Jesús Cristo, assumindo a morte do primeiro, tornou-se Pai
para a ressinreicáo e a vida eterna. Em linguagem crista,
deve-se dizer: todos nos nascemos do primeiro Adáo e, pelo
Batismo, renascemos do segundo; a nossa grande tarefa na
térra consiste em nos transferirmos mais e mais da vida mor
tal e deficiente do primeiro Pai para a vida nova do segundo
Pai, vida nova que é como um germen depositado em nossas
almas e tendente a desabrochar cada vez mais, até transfigurar
nossos corpos no dia da ressurreicáo final.
Por isto insiste a Igreja no fato de que todo o género
humano hoje existente descende de um só casal. Esta sentenga
de fé, embora nao seja comprovada pelas ciencias modernas,
de modo nenhum é por elas contraditada; na verdade, a pale
ontología nao tocou (nem pode assegurar que esteja perto de
tocar) a estaca zero da historia do género humano; nao está em
condicóes de dizer que tal ou tal fóssil é necesariamente o pri
meiro dentre todos os representantes da especie humana, e*que
nao se pode encontrar outro mais antigo. Sendo assim, as cien
cias humanas nao estáo habilitadas a definir se o género hu
mano provém de um só ou de mais de um casal; neste caso,
para o cristáo é a fé que dirime a questáo por criterios de reve-
lagáo divina.

— 65 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 2

A título de complemento, pode-se dizer que a Escritura Sagrada


nao excluí a existencia de verdadeiros homens anteriores a Adáo ou
pré-adamitas ; ter-se-áo extinto com o aparecimento de Adáo sobre
a térra, de sorte que todos os homens hoje existentes sao íilhos de
Adáo. A respeito dos pré-adamitas, pode-se admitir que se tenham
originado de varios casáis (poligenismo); a íé nada ensina a tal
propósito.
Visto que a Biblia nao nos indica a época em que vivou Adáo,
nao há dificuldade em atribuir tal ou tal lóssil a estirpes anteriores
a Adáo ou préadamiticas. — Isto seja dito aqui ünicamente para
tranquilizar os espíritos que julguem absolutamente dever admitir o
poligenismo: nao se incompatibilizam com a fé crista, desde que se
coloquem no plano dos pré-adamitas. Apenas lembraríamos que con-
vém sermos sobrios neste terreno, que fácilmente escapa ao dominio
dos dados positivos, favorecendo as divagagoes da fantasía.
Ulteriores indicagóes a respeito do monogenismo e dos pré-adami
tas se encontram em «P.R.» 20/1959, qu. 4; 52/1962, qu. 5.

bb) Além da tese mencionada no item aa), nao se conci-


liam com a doutrina crista as teorías evolucionistas que asse-
verem a origem do homem inteiro, corpo e alma, a partir da
materia. Segundo a sá filosofía e a fé revelada, nao há dificul
dade em admitir que o corpo humano, sendo materia, provenha
de materia inferior em evolucáo; toda criatura humana, porém,
possui urna alma espiritual, que nao se pode derivar da materia,
pois o ser espiritual ó radicalmente diverso do material. Donde
se segué, por exigencia nao sómente da fé, mas também da
razáo, que todas as almas humanas sao diretamente criadas por
Deus e infundidas á materia orgánica; isto se aplica também
a origem dos primeiros pais, caso se admita que seus corpos
se tenham formado por evolucáo.

Quanto ao aspecto físico de Adáo, nao há dificuldade em conci-


liá-lo com os dados da ciencia. A tradicao judaico-cristá sempre julgou
que o primeiro pai era dotado de harmonía ou beleza física corres
pondente ás riquezas sobrenaturais de sua alma; terá perdido é.sso
encanto após o pecado, gerando entáo urna estirpe caracterizada por
traeos somáticos primitivos e cultura rudimentar ; tal é, sim, a linha-
gem de que nos falam os fósseis. — Contudo nao há necessidade de
admitir que Adáo tenha sido físicamente mais belo e culturalmentc
mais evoluído do que os demais homens da pré-história; pode-se muito
bem conceber que os dotes de alma que ele possuia, nao se espelha-
vam sobre o seu carpo; a manifestado désses dons estava condicio
nada a perseverarla de Adáo no estado de inocencia. O primeiro pai,
porém, nao perseverou ; por isto, nao se terá diferenciado, no plano
meramente natural, dos demais homens pré-históricos. — A respeito
da ciencia infusa ou preternatural de Adáo, sabemos que tinha Índole
religiosa e moral; era apenas o conhecimento necessárlo para optar,
consciente e livremente, por Deus ou contra Deus.

ce) O Santo Padre Paulo VI, em sua alocucáo, exclui


também o otimismo exagerado que, embora nao negué o pecado

— 66 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BIBLIA

original, Ihe atenúa o significado e as conseqüéncias. Tal oti-


mismo tende a conceber a historia como gradativa e indiscutida
ascensáo do homem para Deus, ascensáo em que os males
moráis e físicos sao apenas os acidentes necessários para que
haja progresso (tenha-se em vista que o aperfeigoamento, na
ordem mecánica ou material, supóe sempre destruigáo, mutila-
cáo). Em tal concepgáo, a obra da Redengáo por Cristo já nao
ocuparía o lugar capital que a fé crista Ihe atribui na historia.
O cristáo é sorridente em relacao á historia do género hu
mano, nao por causa do primeiro Adáo, mas, sim, por causa do
Segundo Adáo, que pela dor e a morte remiu todos os homens da
dor e da morte em que o primeiro pai os havia projetado. É, portante,
sobre Cristo que se fundamenta o humanismo cristáo e nao sobre
Adáo e a heranga que éste legou a seus descendentes.
Em conclusáo, a doutrina crista concernente ao pecado
original nao deixa de ser perpassada de profundo otimismo.
É, porém, estritamente baseada na fé. E quem faz, de maneira
coerente, a experiencia da fé, sabe que esta nao mente !

III. DOGMÁTICA

BANCAltIO (Curitiba) :

3) «Em nossos tempos poderia a Igreja rever a siía po-


sicüo negativa frente ao divorcio ?»
Abordaremos o assunto ácima, examinando primeiramente
alguns costumes matrimoniáis dos povos pré-cristáos; a seguir,
consideraremos os fundamentos bíblicos e tradicionais da posi-
gáo da Igreja perante o divorcio. Esta análise permitirá com-
preender qual possa e deva ser a atitude da Igreja frente as
modernas tendencias divorcistas.
Já as respostas de «P. R.» 7/1957, qu. 4, 5 e 6 trataram da in-
dissolubilidade do matrimonio; foram ai explanadas as razóes pelas
quais esta deve ser tida como exigencia nao sómente da fé crista,
mas fambém da lei natural. É o que nos dispensa de voltar a éste
aspecto do assunto na presente resposta. Cf. também a propósito
«P. R.» 49/1962, qu. 2.

1. O mundo pré-cristao

Pode-se dizer que a prática do divorcio era geral entre os


povos anteriores a Cristo. Os legisladores antigos trataram
apenas de regulamentar tal costume a fim de tentar coibir
abusos e escándalos demasiado prejudiciais. ao bem comura.
Sejam realcados apenas os seguintes tópicos mais signi
ficativos :

_ 67 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 3

a) O mais antigo Código Legislativo que se conheca, a Lei de


Hamurapi, da Babilonia, estipulava os seguintes motivos de divorcio:
para o marido: esterilidade da mulher (art. 138-140);
o fato de ter a mulher «provocado a divisao,
negligenciado seu esposo, apedrejado sua casa»
(art. 141);
enfermidade da esposa nao era motivo suficiente
de repudio, a menos que a própria mulher pedisse
a separacáo (art. 148);
para a esposa: «caso um homem abandone sua cidade, fuja e,
depois déle, sua mulher entre em outra casa, se
ésse homem voltar e quiser retomar sua mu
lher. .. a mulher do fugitivo nao voltará a ter
com o seu marido» (art. 136) ;
«se um marido 'negligencia muito' sua esposa,
quando esta é caseira, irrepreensível...» (art.
142),.

Nótese que a legislado de Hamurapi é talvez a única na anti-


güidade em que certa igualdade de direitos é reconhecida ao marido
e á mulher. Segundo outros códigos jurídicos antigos, apenas o varáo
tinha o direito de repudiar sua espdsa ou, caso a mulher gozasse de
direitos em tal setor, estes eram considerávelmente mais limitados.
b) Na China, eram sete os casos em que o marido podía repudiar
a esposa: desentendimento da mulher com o sogro ou a sogra; es
terilidade; falta de pudor; comportamento que perturbasse a paz da
familia; eníermidade repugnante; intemperancia no falar; furtos do
mésticos. Admitiam-se, porém, excegoes : se a mulher, órfá, nao ti-
vesse onde se refugiar...; se estivesse em luto de pai e máe por
espaco inferior a tres anos...; se ela tivesse enriquecido o marido
que esposara pobre...
c) Na India, o direito de repudiar ficava estritamente reservado
ao marido. Podía ser exercido nos casos seguintes: esterilidade da
mulher verificada durante oito anos ; certos defeitos físicos ou moráis,
enunciados com certa precisao nos textos legislativos ; se a mulher
perdesse todos os seus filhos ou so gerasse filhas...
d) Na Pérsia, o marido podia rejeitar a esposa por motivo de
insubordinacáo ou de vida escandalosa, por causa de libertinismo cho
cante, por haver praticado a magia...
e) Os gregos parecem ter sido, por mais témpo, fiéis á indisso-
lubilidade conjugal; o divorcio nao foi por éles praticado até os tem-
pos de Hornero inclusive. Tornou-se, porém, muito freqüente ma época
clássica; em certas regióes o marido podia impó-lo sem dar contas a
quem quer que fósse. Houve maridos que deram a esposa a amigos
ou mesmo a pessoas de categoría inferior ; assim Péneles, assim o
banqueiro Sócrates (que a deu a Sátiro, escravo liberto). A mulher
era licito repudiar o esposo, quando ela Julgava que sua vida, sua
saúde ou seus costumes corriam perigo.
f) Entre os romanos, o divorcio parece ter sido hábito antigo.
Contudo urna lei particular atestava a estima em que era tlda a indis-
solubilidade conjugal: nao se admitía divorcio para o matrimonio dos
flámines ou sacerdotes de Júpiter, matrimonio consagrado pela «con-
farreatio» (cerimonia que consistía em oferecer um pao na presenca
do Pontífice Máximo).

— 68 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BIBLIA

Contudo as leis nao puderam deter a onda de libertinismo que


aos poucos íoi invadindo a sociedade romana. Instituiu-se o casamento
sine manu, isto é, sem poder do marido sobre a esposa; esta ficava
sob a patria potestas ou sob o poder paterno, de sorte que o paterfa-
mitins ou o pai da esposa a podia subtrair ao marido quando bem lhe
aprouvesse. Instituiu-se também o casamento em que a mulher f'cava
sui iuris, isto é, conservava o direito de obrigar o marido a dissolver
a manus ou a renunciar ao poder que tinha sobre a esposa. Segundo
as tendencias da época, Catao de Utica cedeu sua mulher Márcia a
Horténsio ; Cila, Pompeu, César trocaram de esposa, de acordó com
o seu capricho. O historiador romano Estrabáo atesta que o exemplo
dos maiorais foi contagioso, fazendo que a cessáo mutua de esposas
se tornasse usual na sociedade romana. Foi declarado imoral o pacto
pelo qual os nubentes se comprometiam a nao aceitar o divorcio (cf.
Lei 2, Cod. 8, 39). Em suas Sátiras, Juvenal incriminava a licencio-
sidade conjugal: «Assoas o nariz com demasiada freqüéncia, diz o
marido á esposa; toma tuas alfaias, e vai-te ! Outra mais jovem a
substituirá!» (VI 146-148).

e) No povo de Israel anterior a Cristo, os costumes foram


disciplinados por continuas interven?6es do Senhor Deus, o que
nao impede que a rudez humana também ai se tenha ma
nifestado.
O Patriarca Abraáo, emigrando de Ur da Caldéia, levou
consigo para a térra de Canaá os hábitos de seus antepassados,
os quais foram transmitidos á linhagem de Abraáo. Como bom
pedagogo, o Senhor foi paulatinamente intervindo ñas obser
vancias primitivas do povo israelita infantil, a fim de despertar
nessa estirpe urna consciéncia moral mais apurada e urna
conduta de vida que se fósse aproximando do Evangelho.
Assim Abraáo, em sua fé simples e ardorosa, tinha urna esposa e
urna concubina; máo hesitou em despedir a concubina quando isto lhe
pareceu oportuno, dando-lhe entáo apenas os víveres mais necessários;
cf. Gen 16,1-16; 21,1-21.

O divorcio era comum tanto na Mesopotámia, patria de


Abraáo, como no Egito, para onde emigraram os descendentes
do Patriarca. Israel, conseqüentemente, o praticava quando
no séc. XIII Moisés entregou ao povo a famosa Torah (Lei);
esta, por certo, nao introduziu nem também extinguiu o divor
cio, mas tratou de o regulamentar, restringindo a sua prática.
Eis o que se lé em Dt 24, 1-4 :
«Se um homem, tendo escolhido urna mulher, se casar com ela
e vier a aborrecé-Ia por descobrir nela qualquer coisa inconveniente,
escreverá um libelo de divorcio, entregar-lho-á na máo e a despedirá
de sua casa. Se ela, depois de ter saído de casa, desposar outro homem
e éste também a aborrecer, escrevendo e dando-lhe na máo um libelo
de divorcio e despedindo-a de sua casa, ou entáo, se éste segundo
marido vier a íalecer, nao poderá o primeiro marido, que a repudiou,
tomá-la de novo por mulher, depois de se ter ela contaminado, por
que isto é urna abominacáo aos olhos do Senhor...»

— 69 —
«FERGUNTE E RESPONDEREMOS» 36/1967. qu. 3

O repudio nao podia ser praticado pela mulher, mas apenas


pelo marido. Todavía éste era destituido do direito de se divor
ciar, quando alegava motivos falsos ou caluniosos contra a
esposa (cf. Dt 22, 13-19) ou quando lhe fizera violencia antes
de se casar (cf. Dt 22,28s).

Eis, conforme o Talmud (colegáo de leis e casos dos rabinos do


inicio da nossa era), a fórmula usual do libelo de repudio (scfcr kcritot,
em hebraico):
«No dia... da semana... do mes de... ano do mundo..., segundo
a computacáo vigente na cidade de..., situada junto ao rio... (ou
á fonte...), eu..., filho de..., e de qualquer nome por que me
chamem, presente hoje..., nativo da cidade de..., agindo com plena
liberdade de espirito e sem sofrer constrangimento algum, .repudiei,
dimití e expulsei a ti..., filha de..., e de qualquer nome por que te
chamem, da cidade de..., tu que fóste até o presente minha esposa.
Despego-te agora, filha de Em conseqüéncia, estás quite e podes,
com todo o direito, casar-te com quem quiserés; ninguém to impeca!
Estás, por conseguinte, livre em relacao a qualquer homem. Éste é o
teu libelo de divorcio, o ato de repudio, o bilhete de expulsáo, segundo
a lei de Moisés e de Israel» (seguem-se os nomes das testemunhas).

Em todas as fórmulas de repudio da tradicjio talmúdica se encon-


tra explícitamente a cláusula: «Poderás esposar todo homem que qui-
seres» ou «És mulher licita para todo homem». — Tais dizeres mos-
tram que nao havia, para os judeus, repudio ou separacáo sem possi-
bilidade de novas nupcias. O mesmo, alias, se observa fora de Israel.
Eis, por exemplo, urna fórmula de libelo de repudio originaria da
Mesopotámia na época do .rei Hamurapi (séc. XVIII) :

«Chamach-rabi fez divorcio com Narámtum. Calculou-lho o scu


ziku e ela recebeu o dinheiro do divorcio. Se Narámtum esposar um
pretenden te, Chamach-rabi nao poderá levantar queixa» (cf. Ch.-F.
Jean, Le milieu biblique avant Jésus-Christ II. Paris 1923, 66).

O fato de que os antigos nao conheciam separacáo conjugal sem


direito a novas nupcias é muito importante para se avaliar devida-
mente a mensagem de Cristo.

Note-se ainda que a mulher divorciada em Israel nao podia


esposar um sacerdote (cf. Lev 21,7.14; Ez 44,22), ao passo
que éste se podia casar com a viúva de outro sacerdote (cf. Ez
44,22). Tal cláusula é indicio de que o legislador de Israel tendía
a incutir no povo certas reservas em relagáo ao divorcio.
Inegávelmente, porém, a prática do repudio foi-se alas
trando cada vez mais no povo eleito, de sorte que até as mulhe-
res tomavam a iniciativa de se divorciar.

Tornou-se famoso entre os judeus o caso de Salomé, irmá de


Herodes o Grande, que repudiou seu marido. Assim escreve o histo
riador judaico Flávio José:
«Após certo tempo, Salomé entrou em desavenca com Costobar;
logo mandou-lhe urna carta, repudiando o seu casamento, o que nao
é conforme as leis judaicas. Entre nos, é ao marido que cabe assim

— 70 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BÍBLIA

proceder; a mulher que se separou espontáneamente, nao tem o


poder de se casar de novo a nao ser que o seu primeiro marido a
tenha repudiado. Salomé usou nao a lei do seu povo, mas a que estava
em vigor (entre os romanos)» (Ant. XV 7,10).

Por sua vez, os varóes, seguindo a escola de Hillel, se


prevaleciam de qualquer pretexto fútil para despedir as esposas.

Foi sobre éste fundo histórico que o Cristianismo apareceu


no mundo, apregoando em materia de matrimonio algo de
totalmente novo, cujas exigencias surpreenderam os próprios
Apostólos. «Se tal é a condicáo do homem em relagáo á sua
esposa, nao é vantajoso casar-se!» (Mt 19,10), exclamaram
os discípulos ao ouvir os ensinamentos do Divino Mestre.
É a tais ensinamentos que vamos agora voltar nossa
atencáo.

2. Os textos do Novo Testamento

1) SAO PAULO: pela Páscoa de 57, o Apostólo escrevia


a sua primeira carta aos Corintios, em que recolhia a mais
antiga tradigáo da Igreja. Ainda viviam os Apostólos, que
tinham ouvido diretamente as palavras de Cristo e conheciam
o auténtico sentido que o Senhor lhes havia dado. Ora Sao
Paulo proclamou a absoluta indissolubilidade do matrimonio
entre cristáos, sem fazer excecáo nem mesmo para os casos
de adulterio.

Indissolubilidade: depois de afirmar a excelencia da vir-


gindade, Sao Paulo voltou sua atencáo para as pessoas casadas:
1 Cor 7 «10 Aqueles que estáo unidos pelo matrimonio ordeno,
nSo eu, mas o Senhor, que a mulher nao se separe de seu marido.
11 Se estiver separada, que permaneca sem se casar, ou entáo se
reconcilie com o marido. Igualmente o marido nao repudie sua esposa».
Ó Apostólo aqui tem em vista os casáis cristáos. A seguir, trata
«dos outros», isto é, dos fiéis casados com um consorte que nao tenha
aderido ao Cristianismo.

Note-se que o Apostólo tinha consciéncia de proferir seu


ensinamento nao por autoridade própria, mas em nome do
Senhor; transmitía simplesmente aquilo que Jesús consignara
aos Apostólos.
Nao será necessário irisar que a regra ácima dada contrastava
abertamente com os costumes judaicos e pagaos. Contudo S3o Paulo
a afirmava sem atenuacáo.

Separasáo de corpos: as palavras do Apostólo evidenciam


que nao era considerada ilícita a separacao de esposo e esposa,

— 71 — '
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 3

desde que nao contraíssem segundas nupcias (cf. v. 11 ácima).


Sao Paulo nao enumera os motivos que possam dar ocasiáo
á separagáo; além do adulterio e da infidelidade, outras razóes
poderiam ser admitidas, como realmente foram no decorrer
da historia da Igreja. Observe-se, porém : ao cónjuge que tome
a iniciativa de se separar, só cabem duas atitudes: viver na
continencia ou reconciliar-se com o consorte, ficando excluidas
novas nupcias em vida da comparte.

Segundas nupcias: dado, porém, que morra um dos con- (


juges, dissolve-se o matrimonio. Abre-se entáo a possibilidade
de novo casamento, pois a uniáo conjugal possibilita ao varáo
e á mulher levar urna vida digna:

«A mulher casada está ligada pela lei a seu marido, enquanto


ele vive. Se seu marido morrer, estará livre da lei que a ligava ao

Será portanto, qualificada de adúltera se, estando vivo o marido,


ela se unir a outro homem. Mas, se seu marido morrer, estará livre
diante da lei e nao se tornará adúltera, unindose a outro homem»

( ^Enquiñto o marido está vivo, a ele está ligada a mulher. Se


seu marido morrer, estará livre. Cásese com quem quiser, desde que
seia no Senhor Será, porém, mais feliz, se permanecer como está,
seguindo meu conselho. Julgo que também cu possuo o Espinto de
Deus» (1 Cor 7, 39s).

Embora aconselhe a permanencia em estado de viuvez


(que seria algo de muito -nobre, pois constituiría a «virgindade
após as nupcias»), Sao Paulo reconhece que novo casamento
pode ser recomendado as jovens viúvas :
«Quero que as viúvas jovens se casem, tenham filhos, governem
sua casa e .nao proporcionem ao adversario motivo de maledicencia.
Pois algumas já se desviaram para seguir a Satanás» (1 Tim 5, 14s).

Os textos do Apostólo sao suficientemente claros para que


possamos passar aos ensinamentos diretos do Senhor.

2) EVANGELHOS: Jesús, interrogado pelos fariseus a res-


peito do matrimonio, afirma a unidade (monogamia) e a indis-
solubilidade do mesmo: Deus criou o homem e a mulher para
constituirem urna só carne; por conseguirte, nenhuma instancia
humana tem direito de destruir a unidade dos cónjuges, san
cionada pelo próprio Deus.

«Nao lestes que o Criador no principio os criou homem e mulher


e lhes disse : 'Por isto o homem deixará seu pai e sua mSe e se
unirá á sua esposa e os dois íormarao urna só carne' ? Assim já nao
sao dols, mas urna só carne. Portanto nfio separe o homem aquilo quo
Deus uniu» (Mt 19, 4-6).

— 72 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BIBLIA

Ouvindo isto, os fariseus apresentaram urna obje;ao deri


vada do próprio texto da Lei de Moisés :
«Por que entáo mandou Moisés dar o documento de repudio e
abandonar a esposa ?» (Mt 19,7).

Ao que Jesús respondeu:

«Foi por causa da dureza do vosso cora gao que Moisés vos per-
mitiu abandonar vossas esposas, mas a principio nao íoi assim.
Eu vos digo que todo aquéle que repudia sua esposa, a nao ser em
caso de adulterio, e se casa com outra, comete adulterio, e aquéle que
se casar com a que foi .repudiada, comete também adulterio» (Mt 19,8s).
«Eu vos digo que todo aquéle que repudiar sua mulher, fora do
caso de adulterio, exp6e-na a adulterio; e todo aquéle que esposa urna
mulher repudiada comete adulterio» (Mt 5, 31s).

Ou, conforme outros Evangelistas :


«Todo aquéle que repudia sua esposa e toma outra, comete adul
terio, e também comete adulterio aquéle que recebe a que foi repu
diada pelo maridos (Le 16, 18).
«Todo aquéle que abandona sua esposa e se casa com outra,
comete adulterio contra ela. E, se a esposa, depois de abandonar seu
marido, se casar com. outro, cometerá adulterio» (Me 10, lis).

Como se vé, os textos de Sao Mateus contém urna restricto


(«exceto no caso de adulterio»). Esta restrigáo, conforme os
gramáticos, recai sobre os motivos do repudio, nao sobre os
efeitos do mesmo. Em qualquer caso, os efeitos do repudio
sao os mesmos : nao dissolvem o vinculo matrimonial; em con-
seqüéncia, qualquer nova uniáo contraída após a separagáo
vem a ser ilícita. Jesús declara, sim, adúltero

(Le) o marido que repudie sua mulher e espose outra,


o vara o que espose urna mulher repudiada;

(Me) o marido que repudie sua mulher e espose outra,


a mulher que repudie seu marido e espose outro;

(Mt 19) o marido que repudie sua mulher e espose outra,


o varáo que espose urna mulher repudiada;

(Mt 5) o marido que repudie sua esposa : respansável pelo adul


terio a que ele a expóe,
o varao que espose urna mulher repudiada.

Em suma, Jesús quer dizer, em primeiro lugar, que,


segundo os designios do Criador manifestados em Gen 2, o ma
trimonio é uno e indissolúvel. A seguir, atendendo ao costume
dos judeus, leva em consideracáo a separagáo ou o divorcio
praticado em Israel. E declara que, mesmo nos casos de sepa
ragáo, o vínculo conjugal, na legislagáo crista, nao é dissolvido;
assim Jesús recusava á separacáo dos esposos o principal efeito

-=- 73 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967. qu. 3

que os judeus e os demais povos antigos lhe atribuiam. Os


cónjuges separados que se casam de novo (enquanto o respec
tivo consorte sobrevive), cometem adulterio; o que quer dizer
que nao recuperam a liberdade, ficam sendo ineptos para con-
trair novo matrimonio legitimo.

Em Mt 5 e 19, a cláusula «a nao ser em caso de adulterio* tem


íeito correr rios de tinta por parte dos comentadores... A lim de
nao nos cstendcr demais sobre o assunto, proporemos apenas as
seguintes observaeñes, que, segundo parece, bastam para esclarecer
o texto :

a) as passagens de Mt 5 e 19 nao podem ser interpretadas em


sentido contrario as de Me, Le e I Cor, que aíirmam incondicional-
mente a indissolubilidade do vinculo matrimonial. Nao é provável que
Cr-isto tenha caido em contradicáo consigo mesmo ou que os Apostólos
hajam contraditado o Mestre.

b) Sao Mateus resumiu numa só frase compendiosa (e, por isto,


sohrecarregada ou diíicll) as respostas a duas questSes: «Quais seriam
os legítimos motivos de separacáo ?» (pergunta implícitamente for
mulada pelos fariseus), «E quais os efeitos da separacáo?» (pergunta
que Jesús mesmo quis elucidar).
Os fariseus haviam, sim, interrogado: «Será licito ao homern
repudiar a mulher por qualquer motivo?». Jesús entáo responde,
aceitando a separacáo dos esposos no Novo Testamento por um mo
tivo gravé (dá como exemplo o adulterio), mas acrescenta que, mesmo
no caso de separacáo legitima, as novas nupcias ficam sendo ilegitimas.
Por conseguinte, a cláusula «a nao ser em caso de adulterio»
recai. como ensinam os filólogos, sobre as causas, nao sobre os efeitos
da separacáo, Gramaticalmente, ñas frases de Mt 5,32 e 19,9 ela se
prende ao verbo «repudiar» («todo aquéle que repudia...), e nao ao
verbo «comete adulterio».
Naturalmente, Sao Mateus teria expresso com mais clareza o
pensamento de Jesús, dizendo como Sao Marcos : «Quem repudia sua
mulher e esposa outra, comete adulterio», e acrescentando: «Em
caso de adulterio, porém, é licito repudiar», o que nao implicaría
em segundas nupcias nem para éste caso.

Jesús apresentava assim urna disciplina matrimonial de


teor inaudito na historia. O motivo de tal teor é a dignidade do
matrimonio cristáo: o Senhor quis que éste fósse a imagem
e a participagáo da uniáo misteriosa e indivisível de Cristo e
da sua Igreja. É o Apostólo quem o explica:

«Maridos, amai vossas esposas, como Cristo arnou a Igreja e se


entregou por ela... Ninguém jamáis odiou sua própria carne; antes
cada qual «a nutre e cerca de cuidados, como faz Cristo em relagáo á
Igreja, porque somos membros do seu carpo. Por isso o homem aban
donará seu pai e sua máe e se unirá á sua esposa e os dois se tornaráo
urna só carne. Grande é éste misterio, quero dizer, em relacao a Cristo
e á Igreja» (Ef 5, 25. 29-32).

— 74 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BÍBLIA

Como Cristo, Divino Esposo da Igreja, jamáis a abandona,


mas a nutre, protege e se entrega por Ela, assim o marido
há de se saber unido á sua esposa até a morte.
Apraz citar aqui o comentario de um autor protestante ao texto
de Mt 19,6 («O que Deus uniu...») :
«A idéia de vínculo era desde muito aplicada ao matrimonio;
entre os gregos, era a lei que constituía e garantía ésse vínculo
(Xenofonte); alhures, era a vontade dos genitores, ou do varáo apenas,
ou um consentimento recíproco (é éste o conceito moderno). Aqui
(no Evangelho) é Deus quem une... Qualquer que séja o momento
em que o matrimonio é contraído, é preciso considerá-lo unido por
Deus; misto consiste a originalidade do pensamento do Evangelho»
(Pierre Bonnard, L'Évangile selon Saint Matthieu. Neuchátel 1963,
ad loe).

Realmente, importa frisar tal conclusáo: a absoluta indis-


solubilidade do matrimonio é, com a estima da virgindade,
urna das expressóes mais características da mensagem de Cristo
ao mundo. Estes dois pontos de doutrina foram apregoados
aos homens por Jesús e pelos Apostólos, sem que os costumes
dos povos pré-cristáos os tivessem preparado, ou mesmo foram
apregoados contrariamente á praxe de tais povos. Passaram
Ímediatamente a nortear a conduta dos cristáos e perduraram
através dos séculos, porque em verdade se relacionam intima
mente com a Boa-Nova ou o Evangelho de Jesús. «Cristia
nismo» diz espontáneamente «virgindade» em alguns de seus
membros e «indissolubilidade matrimonial» em outros dos
seus seguidores.
A veracidade destas consideracóes pode ser comprovada
mediante a análise da praxe dos antigos cristáos.

3. A historia dos tres primeiros séculos


Os documentos da Igreja antiga atestam que, desde as
primeiras geracóes cristas, foi posta em prática a doutrina da
indissolubilidade matrimonial.

Por cérea de 140, merece atencáo o opúsculo denominado


«O Pastor», de Hermas. Foi escrito em grego, na cidade de
Roma, sob forma apocalíptica, isto é, no estilo de diálogo de
Hermas com um anjo; sua linguagem é popular e de forte
colorido bíblico. Eis o trecho que nos interessa :

«Hermas : Se alguém tiver urna mulher fiel no Senhor e a sur-


preender em adulterio, cometerá pecado vivendo com ela ?
O anjo: Nao o cometerá enquanto ignorar a falta. Se contudo
vier a saber do pecado de sua mulher e ela, em vez de se arrepender,
persistir na infidelidade, o marido, continuando a viver com ela,
compartilhará o pecado da mulher e participará do seu adulterio.

— 75 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 3

Hermas: Que deverá entáo íazer o marido, Senhor, se a mulher


persistir em sua paixáo ?
O anjo: Repudie-a, e permanega só. Se, depois de ter repudiado
a mulher, ele esposar outra, cometerá adulterio.
Hermas: Senhor, e, se, depois de repudiada, a muLher se arre-
pender e quiser voltar para junto de seu marido, nao deverá élé
recebé-la ?
O anjo: Sim. Se o marido nao a acolher, pecará; contrairá grave
pecado, pois é preciso acolher a quem pecou e se arrepende... Preci
samente em vista do arrependimento, o marido nao se deve casar de
novo. Tal modo de proceder, alias, vale tanto para a mulher como
para o marido» (Mand. IV 1, 5-8).

Tal passagem mostra bem qual a interpretagáo mais antiga


que os cristáos davam aos textos do S. Evangelho : o adulterio
nao rompía o vínculo conjugal. Ao marido e á mulher eram
atribuidos os mesmos deveres e direitos.

Sao Justino (f 165), escrevendo em grego na cidade de


Roma, dava semelhante testemunho: «Quem esposa urna mu
lher repudiada, comete adulterio» e considerava «aqueles que,
segundo a lei dos homens, contraem duplo matrimonio, como
culpados diante do nosso Mestre» (Apol. I XV 3-6).

No inicio do séc. III, Clemente de Alexandria no Egito


(t 215) referia-se a Sao Mateus (5,32; 19,9), dando-lhe a
interpretac.,áo tradicional:
«No tocante ao matrimonio, a Escritura estabelece manifestamente
que nunca é permitido a um dos cónjuges rompé-lo: 'Nao repudiarás
tua esposa, lora o caso de iníidelidade'. E ela declara adúltera o
consorte que durante a vida da comparte se casar de novo» (Stromat.
II 33). —

Em Cartago, Tertuliano (t após 220) reconhecia a sepa-


ragáo dos esposos, mas acrescentava que Cristo condenou o
repudio quando o marido o pratica com a intenc.áo de se casar
de novo. Dado que o esposo se separe de sua mulher por mo
tivo de adulterio, nenhum dos dois cónjuges está habilitado a
contrair novas nupcias (Adv. Marcionem IV 34).
Poder-se-iam multiplicar as citacñes de semelhante teor. Estas,
porém já bastam para evidenciar que a indissolubilidade do matrimo
nio é um legado auténticamente cristao. Seja licito repetir : o mundo
judaico grego e romano que precedeu e acompanhou os inicios do
Cristianismo, era bem alheio a tal doutrina. Por conseguinte, só se
pode explicar que tenha sido professada e praticada desde os primordios
do Cristianismo, pelo íato de que Jesús Cristo mesmo, com sua auto-
ridade divina, a promulgou; em caso contrario, mem os Apostólos nem
os seus sucessores a teriam feito prevalecer.

Importa agora considerar o que se poderia chamar

— 76 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BIBLIA

4. Urna bifurcado na historia

A partir do séc. IV, a tradigáo crista referente ao vínculo


conjugal, unánime até aquela época, foi-se diversificando no
Oriente e no Ocidente.

1) No Oriente: já no sáculo m Orígenes de Alexandria


(t 255) apontava um fenómeno novo : alguns bispos permitiam
á mulher repudiada contraísse novas nupcias, mesmo em vida
do seu marido.

Observava : «Contrariam ao que está escrito : 'A mulher perma


nece ligada ao seu marido, enquanto ele vive' (1 Cor 7, 39) e aínda :
'A mulher que, em vida de seu esposo, pertencer a outro varáo, será
chamada adúltera' (Rom 7,3)». Contudo, acrescentava Orígenes, os
bispos que assim procedem, tém suas raz3es : procuram «evitar males
maiores, julgando preferível a condescendencia £ observancia do que
íoi decretado no inicio e se encontra ñas Escrituras» (In Mt XIV 23).

A condescendencia («para evitar maiores males») que


Orígenes averiguava, foi-se acentuando no séc. IV. Com efeito,
os Imperadores romanos, convertidos ao Cristianismo, procura-
ram modificar em sentido cristáo as leis do Imperio; contudo
nao conseguiram desvencilhar-se da aprovagáo do divorcio com
novas nupcias sancionada pela legislacüo de Roma pré-cristá.
Assim é que as leis civis do Imperio sempre admitíram a rup
tura do vínculo conjugal por motivo de adulterio e por outras
razóes. Isto aos poucos induziu urna situagáo estranha: número
crescente de bispos orientáis, seguindo o seu senso pessoal,
tendeu a reformar a clássica interpretac.áo de Mt 5,32 e 19,9;
na prática, pois, comegaram a aprovar segundas nupcias em
casos de adulterio previo.

Esta mudanca de atitude dos prelados orientáis explica-se, em


grande parte, pelo íato de que o bispo de Constantinopla (mais tarde,
Patriarca) se achava lortemente sob a dependencia do Imperador
bizantino, ao qual a sede episcopal de Constantinopla devia a sua
importancia (basta recordar o Cesaropapismo dos Imperadores bizan
tinos ou a ingerencia indevida dos Césares prientais em questdes de
legislacáo estritamente eclesiástica !).

No séc. VI, o Código de Justiniano Imperador (527-65)


enumerava nove causas de divorcio própriamente dito (cf. No
vela CVII). Essas nove causas foram no séc. IX inseridas no
Direito Canónico da Igreja bizantina (cf. Nomocánon dos XIV
títulos). Em Bizáncio, a cláusula de Mt 5,32; 19,9 «a nao ser
em caso de adulterio» era considerada como mero exemplo
de motivos que pudessem legitimar o divorcio, exemplo .ao qual
os juristas bizantinos nao hesitaram em acrescentar outros.

— 77 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 3

Tais fatos dáo a compreender que, em nossos tempos, ao


menos o adulterio seja reconhecido pelos cristáos orientáis
cismáticos como motivo para divorcio com novas nupcias.
Nao falta, porém, entre os próprios orientáis quem reconheca
que sua praxe atual representa urna ruptura em relac.áo aos usos
da Igreja primitiva. Tenha-se em vista a obra do Arquimandrita
Atanásio Hage, Superior Geral da Ordem Basiliana Chuarita Mslquita,
obra datada de 1965, com o titulo «L'indissolubilité du mariage et
le cas d'adultére dans la discipline matrimoniale de l'Églisc Oriéntale
dans les premiers siécles»; o autor assim" concluí:
«A tradicjio geral da Igreja oriental dos cinco primeiros sáculos,
com excecáo de urna ou duas vozes discordantes, afirma categórica
mente o caráter indissolúvel do vinculo matrimonial, mesmo em caso
de adulterio. É o que certos canonistas e teólogos da Igreja ortodoxa
confessam francamente, reconhecendo que a Igreja antiga ignorou
a prática do divorcio e a condenou, mesmo em caso de adulterio...
Foi apenas mais tarde que o uso 3o divorcio acabou por se estabelecer
ñas Igrejas orientáis sob a influencia da lei civil».

Déstes dados históricos deprende-se que a aprovagáo do


divorcio completo em casos de adulterio no Oriente se deve
a motivos heterogéneos ou náo-cristáos, ou seja, á influencia
do poder civil sobre a legislagáo eclesiástica.

2) No Ocidente: a Igreja ocidental foi, de certo modo,


beneficiada pela transferencia da capital do Imperio do Roma
para Bizáncio (Constantinopla). Viu-se assim subtraída á inge
rencia cesaropapista dos Imperadores, e, consecuentemente,
mais livre para firmar sua legislagáo matrimonial de acordó
com os principios do Evangelho e a praxe dos primeiros séculos.
Assim se entende que até hoje nos cánones da Igreja ocidental
se tenha conservado a absoluta indissolubilidade do matrimonio.
Nao faltaram, por certo, entre os ocidentais, vozes que
tentaram admitir excegóes para a indissolubilidade do casa
mento. Isto se explica pelo fato de que a antiga legislagáo roma
na continuava a exercer sua influencia sobre os cristáos; além
disto, os povos bárbaros que se instalaram no antigo mundo
romano, reconheciam e praticavam o divorcio, motivando assim
hesitagáo entre os próprios cristáos sobre o assunto. Contudo
as vozes tolerantes para com o divorcio nunca chegaram a
predominar no Ocidente; sempre, e quase em toda parte, houye
Papas, bispos, exegetas ou teólogos que lembrassem os princi
pios do S. Evangelho.
A titulo de ilustracSo, seja aqui citado um ou outro tópico mais
saliente:

Tornou-se famoso o Sínodo regional de Verberie (Oise, na Gália)


em 756. Reconheceu alguns motivos de divorcio, que bem reíletem

— 78 —
DIVORCIO NA HISTORIA E NA BIBLIA

as circunstancias de vida da Idade Media. Podem-se notar, por exemplo,


os seguintes:

Canon 2: Admita-se que um homem casado tenha tido relagSes


com a donzela que sua mulher concebeu em matrimonio anterior.
Doravante tal homem nao poderá mais ter consorcio matrimonial
nem com súa esposa nem com a donzela cúmplice; os dois réus deveráo
perder para todo o sempre a esperanca de se casar com quem quer
que seja. Quanto á mulher inocente, é-lhe reconhecida a faculdade
de contrair novas nupcias, se a continencia lhe íór muito penosa.
Canon 5: Dígase que urna mulher tramou com outros homens o
morticinio de seu esposo. Éste, porém, ao se defender dos agressores,
matou um déles. Caso possa provar que foi vitima de trama, é-lhe
facultado repudiar sua esposa e tomar outra.
Canon 6: Quando um dos dois cónjuges é íeito escravo, o outro
se torna livre para novas nupcias.

Canon 9: Movido por absoluta necessidade, um homem foge para


outro Ducado ou outra provincia ou segué o seu senhor com. quem
se comprometeu por juramento de vassalagem. A esposa, porém,
recusa-se a acompanhá-lo, embora o possa, cedendo assim ao afeto
para com os seus genitores ou a exagerado apego aos seus próprios
bens. Tal mulher nao poderá contrair novas nupcias; mas ao marido
estas sao facultadas, dado que nao se possa conter e que se submeta
á penitencia pública (!).

O Sínodo regional de Compiégne (Gália) em 758 promulgou


cánones scmelhantes, dos quais se podem destacar os seguintes:

Canon 8 : Um homem tem urna esposa legitima; seu irmáo, porém,


comete adulterio com ela. Os dois cómplices perdem entáo perpe
tuamente a faculdade de se casar. O marido inocente, porém, pode
contrair novas nupcias.

Canon 19: O marido leproso pode dispensar sua mulher e permi-


tir-lhe novas nupcias. O mesmo poderá fazer a mulher leprosa em
relacáo ao seu marido.
A propósito déstes dois Sínodos costuma-se, entre os historiadores,
observar que nao íoram reuniOes estritamente eclesiásticas, mas, sim,
assembléias mistas em que oficiáis civis se assentaram ao lado de
bispos. Nao se lhes pode, portante, reconhecer própriamente a auto-
ridade de órgáoa legislativos da Igreja.

Na mesma época (séc. VIII) varios Códigos penitenciáis (com


pendios de casuística e tabelas de penitencias a ser infligidas aos
pecadores contritos) autorizavam novas nupcias em conseqüéncia
de adulterio. Contudo ésses Códigos penitenciáis, que eram obras de
legisladores particulares, foram rejeitados pela reforma carolíngia
(séc. IX) sem jamáis ter logrado a aprovacáo de urna assembléia
puramente eclesiástica.

Conseqüentemente, foi-se extinguindo aos poucos a idéia


de que o matrimonio cristáo possa ser dissolvido por adulterio
ou outro motivo. Finalmente no séc. XII, mediante a obra
legislativa de Graciano (t 1204), implantou-se definitivamente
no Ocidente o costume de nao admitir segundas nupcias de

— 79 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 4

um cónjuge (masculino ou feminino) cujo consorte estivesse


vivo, fósse ele adúltero ou incestuoso.
No séc. XVI o Concilio de Trento só fez corroborar esta
posigáo.
Eis, sumariamente, os fundamentos bíblicos e históricos
sobre os quais se baseia a S. Igreja para afirmar incondicional-
mente a indissolubilidade do vínculo conjugal (os fundamentos
naturais já foram explanados em «P. R.» 7/1957, qu. 4). Abrir
máo desta posigáo seria, para Ela, o mesmo que cair em infi-
delidade ao Senhor Jesús, aos Apostólos e aos primeiros sáculos
cristáos; seria renunciar a urna doutrina que se lé explícita
mente em tres dos Evangelhos e em duas das grandes epístolas
de Sao Paulo, doutrina que o povo cristáo teve que sustentar
ardorosamente contra os ventos e as mares da antigüidade e
da Idade Media. Tal patrimonio seria espezinhado em troca
de acomodagóes a pontos de vista que tiveram sua grande voga
no mundo pré-cristáo...

Nao seria necessário dizer algo mais sobre o assunto para


se deduzir a reta conclusáo.
Veja-se a respeito de propalados casos de divorcio reconhecido
pela Igreja
«P. R.» 11/1958, qu. 8 (o caso de Napoleáo Imperador)
«P. R.» 60/1962, qu. 7 (Luís VII e Eleonora da Aquitánia)
«P. R.» 60/1962, qu. 8 (Luís XII)
«P. R.» 77/1964, qu. 9 (Lee Radziwill).

PROFESSÓRA (Santos) :

4) «No Concilio Ecuménico, um bispo oriental sugeriu


mador tolerancia da Igreja para com o divorcio, tendo em vista
a praxe dos orientáis cismáticos. Que dizer ?
De resto, vivemos mima sociedade pluralista. Os católicos
tem que reconhecer a existencia de correntes nao-católicas».

As questSes ácima, colhendo duas objecóes recentes, daráo ensejo


a completar o que íoi dito sobre o divorcio no artigo anterior. Aborda-
-las-emos cada urna de per si.

1. No Concilio, urna intervencáo sensacional

O bispo Mons. Elias Zoghby é no Egito o Vigário do Patri


arca de Antioquia dos Melquitas...
Vejamos primeramente o que éste titulo significa.
Melquitas é o nome dado aos cristáos orientáis da Siria e do Egito
que aderiram á doutrina do «Melek» ou do Imperador bizantino, quando

— 80 —
DIVORCIO, ORIENTÁIS E PLURALISTAS

éste nos séc. V/VII era tido como tutor da doutrina ortodoxa em
oposicáo á heresia monofisita. Os Melquitas seguem sua Liturgia
própria, que os caracteriza como grupo muito venerável dentro da
Igreja Católica. Em Antioquia (Siria) reside o seu Patriarca, o qual
tem em Alexandria do Egito um Delegado ou Vigário, Mons. Elias
Zoghby, ambos unidos á Sé de Roma.

Ora éste Prelado, aos 29 de setembro de 1965, em plena


assembléia conciliar (138a. Congregagáo Geral), se declarava
defensor da doutrina evangélica referente á indissolubilidade
do matrimonio, mas, em nome mesmo déste ensinamento,
pleiteava para os cdnjuges abandonados pelo respectivo con
sorte o direito de contrair novas nupcias... Tal intervensáo,
como se compreende, causou sensacáo tanto no episcopado cató
lico como no mundo inteiro. Mons. Zoghby era provavelmente
movido a tal pronunciamento por urna intengáo ecuménica, ou
seja, pelo intuito de facilitar aos orientáis cismáticos a apro-
ximagáo de Roma.
A tese de Mons. Zoghby, porém, era insustentável, pois
implicava em infidelidade ao ensinamento de Cristo. Nao sendo
necessário demonstrar isto, citaremos aqui apenas um trecho
do jornal francés «La Croix» de 5/X/1965 :

«Perguntamos a Sua Bcatitude Máximos IV — Patriarca grego


melquita católico de Antioquia — o que pensava a respeito da recente
intervengáo de Mons. Elias Zoghby sobre a indissolubilidade do casa
mento em caso de infidelidade de um dos cdnjuges. Sua Beatitude
nos deu os esclarecimentos seguintes :
'Mons. Zoghby, como todos os Padres do Concilio, goza da plena
liberdade de dizer o que pensa. E, embora seja mosso Vigário no Egito,
só empenha sua própria pessoa.
Pessoalmente, nao tomei conhecimento dessa intervencáo senáo
r.o momento em que a ouvi na assembléia conciliar. '"
Quanto ao fundo do problema, a Igreja deve insistir firmemente
na indissolubilidade do matrimonio, pois, ainda que em certos casos
o ednjuge inocente seja duramente provado por efeito dessa lei, a
sociedade doméstica seria abalada e arruinada sem essa lei. Ademáis,
se o divorcio pr&priamente dito se tornasse licito por motivo de adul
terio, nada seria mais fácil aos cdnjuges conscientes do que suscitar
ésse motivo de divorcio.
A praxe contraria das Igrejas Orientáis Ortodoxas pode apelar
para alguns textos de certos Padres. Mas ésses textos sao contra-
ditados por outros e nao comstituem urna tradieáo suficientemente
constante e universal para levar a Igreja Católica a mudar sua disci
plina nesse ponto.
Nao obstante, tal questáo, com os matizes necessários, poderia
ter sido apresentada ao Concilio como urna dificuldade seria a ser
resolvida no diálogo com os cristaos ortodoxos. Formulada, porém,
como foi, sem os esclarecimentos necessários, ela pode causar con-
fusáo nos esplritos'».

Parecem supérfluos ulteriores comentarios.

— 81 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 4

2. Sociedade pluralista.

Por «sociedade pluralista» entende-se um estado social em


que nao há sómente católicos, mas também cidadáos «liados a outras
correntes de pensamento. Embora nem todos os homens professem
entáo os mesmos conceitos filosóficos, é preciso que todos coexistam
pacificamente, sem constrangimento mutuo.

Tal é inegávelmente o tipo de sociedade predominante no


mundo de noje; raras sao as nagóes integralmente católicas.
Em vista disto, tem-se pleiteado que a Igreja abra máo
da indissolubilidade do matrimonio, reconhecendo que esta nao
se concilia com o modo de pensar de muitos cidadáos que vivem
na mesma sociedade, lado a lado, com os fiéis católicos.
Em resposta a esta demanda, dever-se-á observar que a
indissolubilidade do matrimonio nao é exigencia do Evangelho
apenas, nem é ditada únicamente pela fé crista, mas é, sim,
decorréncia da própria lei natural, que rege todo homem, antes
mesmo que opte por alguma forma de Religiáo. Cf. «P. R.»
7/1957, qu. 4; 49/1962, qu. 2.
Ora a Igreja, a quem Cristo confiou a administragáo dos
bens sobrenaturais, nao pode deixar de ser simultáneamente
a tutóra dos interésses naturais do homem e da sociedade. O
mesmo Deus, Autor da ordem sobrenatural, é também o Autor
da natureza, devendo, portanto, ser respeitado também ñas
instituigóes naturais.
É por isto que a Igreja, embora saiba que grande número
de homens é favorável ao divorcio, nao deixa de manter sua
posigáo antidivorcista; com isto, Ela pretende atender nao a
determinada fase de cultura (que alguns diriam «ultrapas-
sada»), nem a determinada escola filosófica, mas, sim, aos
ditames da própria natureza humana e, por conseguinte, do
próprio Deus, ditames que muitos homens de hoje talvez nao
saibam ou nao queiram mais auscultar. É, pois, a dignidade
humana mesma, obliterada no pensamento de muitos homens,
que a Igreja deseja salvaguardar, quando contradiz as moder
nas teses divorcistas. — De resto, os ditames da lei natural
condicionam a felicidade do próprio homem, de sorte que
«violá-los» é procurar solugáo ilusoria para problemas que só
se resolvem mediante dodlidade e fidelidade k obra de Deus.
A sociedade pluralista ó justamente pluralista para per
mitir que as personalidades desabrochem sem coacáo, supondo-
-se que cada qual ausculte lealmente os ditames da natureza.
Consciente disto, a Igreja pode lembrar a todos os homens que
o pluralismo auténtico nao implica em derrogagáo á indisso
lubilidade do matrimonio.

— 82 —
«CABELUDOS» \$/* ■
Corroborando tal posicáo, o Concilio Ecumémc>^¿M&ti
cano II frisou
s que aos
que aos esposos
esposos cristáos
cristáos toca
toca o
o dever
dever de
de exigir
exigi
do Estado a salvaguarda
ld das d instituigóes
ititió d natureza concer-
da
nentes a familia :

«Constituiu sempre tarefa dos esposos, mas hoje chega a formar


a contnbuicao máxima de seu apostolado: manifestar e provar por
SLE Va indifsolub"id.ade e santidade do vínculo matrimonial;
afirmar ativamente o direito e o dever, imposto a pais o tutores dé
educaran de man eirá crista a prole; defender a dignidade e autono
mía legítima da familia. Cooperem, pois, éles e os demais cristáos
junto com os homens de boa vontade, para que na legislaeáo civil
tais direitos se preservem intatos» (Decreto «Apostolicam Actuosi-
tatem» n* 11).

Nao se pode, portante, dizer que após o Concilio Ecumé


nico se deve mudar a atitude dos fiéis católicos em relacáo as
tendencias divorcistas de nossos dias, nem mesmo numa socie-
dade pluralista...

«Quem quer que visse no Concilio... urna especie de Cris


tianismo mais cómodo e menos exigente, enganar-se-ia»
(x cLUiO VI),

IV. MORAL

JOVEM AMIGO (Sao Paulo) :

5) «Que iulga a sá consciéncia a resneito da moda dos


chamados 'Beatles' ? Cabeleira é algo de inofensivo!»
Inegávelmente, os cábelos sao algo de indiferente do ponto
de vista moral; tanto é lícito ao homem deixá-los crescer como
cortá-los, penteá-los déste modo como daquele modo. Todavía
ésse algo de indiferente em si tem muitas vézes a índole de
smal para a sociedade. Como a veste costuma denotar a pro-
fissáo de quem a traja (tenha-se em vista a farda do militar,
o uniforme do colegial, a toga do jurista, a beca do profes-
sor...), assim também a maneira como cada um apresenta
sua cabeleira e seus cábelos pode significar algo da atitude que
a pessoa nssume perante a sociedade e a vida.
É isto que explica a atengáo que se tem dado á moda dos
«cabeludos» (ou «Beatles») contemporáneos ; por detrás de
sua aparente despreocupacáo, éles tem suscitado o interésse
público, despertando ou avivando a consciéncia de problemas
na sociedade de nossos dias.

— 83 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 5

Procuraremos refletir sobre o assunto, mencionando primeira-


• mente algumas premissas históricas; a seguir, deternos-emos sobre
o significado das cabeleiras masculinas em nossos días.

1. Um pouco de historia

A cabeleira sempre foi tida como ornamento da mulher, simbo


lizando a graga e o encanto femininos, ao passo que nos horneáis a
barba foi considerada como símbolo da virilidade e da autoridade
masculinas (segundo as tradicóes do Oriento, até hoje um varüo
em posto de relevo e o anciao veneravel trazem barba longa). Disto
se segué que, quando urna mulher cuida de seu penteado, segué um
costume natural e consentáneo com a sua índole feminina.
Quanto ao comportamento dos homens em relacáo á cabeleira,
importa registrar aqui algo de seu histórico.

No Egito antigo, os varóes usavam o cábelo cortado cerce.


Os faraós, porém, príncipes, nobres, militares e homens de
classes acomodadas ostentavam grandes perucas, que equiva-
liam aos atuais turbantes dos orientáis.
Entre os assírios e babilonios, a cabeleira era sinal de
dignidade. Caía, cobrindo as orelhas, até o alto das costas, onde
terminava em forma de leque, frisada como a barba.
Os beduinos orientáis muito apreciavam o cábelo comprido;
as suas tribos se distinguiam urna das outras pelos diferentes
adornos das cabeleiras.
Os hebreus traziam cábelo longo e trangado; rapavam-no,
porém, em estilo de escovinha nos casos de luto, ao contrario
dos egipcios, que entáo o deixavam crescer.
Na Grecia, até o séc. V. a. C. (guerras médicas) predomi-
nava o uso de trangas á semelhanga de costumes orientáis.
Após o séc. V, quando cessou o influxo dos povos orientáis,
as longas cabeleiras tornaram-se nota distintiva da mulher;
os varóes traziam cábelo frisado, que nunca chegava até o
pescogo. Os escravos tinham o cábelo rigorosamente cortado
cerce.
Os romanos antigos apresentavam, em geral, cábelo e barba
compridos, dos quais, alias, pouco caso faziam. No séc. V a. C,
porém, chegaram a Roma os primeiros barbeiros e cabelei-
reiros, por influencia dos quais os homens comegaram a usar
cábelo curto; quando escapavam a um perigo, rapavam a cabega.
Os penteados variavam, podendo ser ou lisos ou frisados. Os
cidadSos elegantes, porém, ostentavam cabeleira encaracolada, dlsposta
em varias linhas é saturada de perfumes. Nos tempos do Imperio
Romano, quem se quisesse aformosear, usava peruca, cuja cor variava
freqüentemente; o branco, o azul e o amarelo eram os tons mais
comuns na corte imperial; perucas louras empoadas de ouro empol-
gavam a sociedade. O imperador César, porém, pouco antes de Cristo,
usava os cábelos táo curtos quanto permitiam as láminas de sua época.

— 84 —
«CABELUDOS»

Os povos bárbaros que invadiram a Europa no fim da


Idade antiga (a partir do séc. V d. C.), atribuiam á cabeleira
acentuado valor simbólico.
Assim entre os germanos a cabeleira era sinal de condigáo
livre; o devedor incapaz de solver suas dividas, apresentava
a cabega as tesouras do credor e tornava-se seu escravo até
a liquidagáo do débito.

O heról gaulcs Vercingetórix costumava recolher sua cabeleira


no vértice do cránio, formando com ela urna especie de «chignon>
ou de rolo de cábelo. — Nao obstante, a tradicao costuma descrevé-
-lo como homem de cabeleira e bigodes muito longos e densos. Por
qué ? — Porque a liberdade da cabeleira sempre exprimiu a liberdade
simplesmente dita; ora Vercingetórix, na historia da Gália, é tido
como o primeiro Resistente ao dominio estrangeiro.

Os lombardos misturavam os cábelos cortados de duas


pessoas para significar recondliagáo. Colocavam-nos sobre o
altar para confirmar urna doagáo. Os conjurados numa cons-
piracáo misturavam os cábelos para designar a fidelidade que
prometiam uns aos outros.
Os francos cortavam a cabeleira á altura do pescogo. Só-
mente a familia real merovíngia a conservava intata, como
símbolo de dignidade real, desde o seu nascimento; se algum
dos seus membros a cortasse temporariamente, perdía os di-
reitos de soberanía até que o cábelo atingisse de novo deter
minada altura.
Quanto ao Imperador Carlos Magno (t 814), 6 representado pela
lenda como tipo barbado e dotado de magnifica cabeleira. Na verdade,
nao era tal; mas cabeleira, no século IX, era símbolo de majestade,
poder paterno e tutelar.

Os godos eram ainda mais rigorosos do que os francos.


Quem cortasse o cábelo, fósse rei, fósse simples cidadáo, re-
nunciava a todos os seus direitos civis e políticos, ficando-lhe
aberta apenas a carreira eclesiástica. O godo que rapasse a
cabega á romana, declarava renunciar á sua nacionalidade e
tornar-se cidadáo de Roma.

Entre os crístáos, porém, fóssem de origem romana, fós-


sem bárbaros, os clérigos desde tempos antigos se abstinham
do uso de cabeleira; a tonsura ou rapagem do cábelo signifi-
cava renuncia as vaidades do mundo e total adesáo ao servigo
de Deus. A mesma praxe era seguida pelos monges.
No Ocidente europeu, a longa cabeleira foi aos poucos
perdendo o seu prestigio, de sorte que, a partir do séc. XI, se
tornou de uso comum o cábelo relativamente curto, caido até
o meio do pescogo. Contudo por toda a Idade Media e a Época

— 85 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 83/1967, qu. 5

Moderna a longa cabeleira e a peruca tiveram suas fases de


voga e de declínio.
Na fase do Renascimento italiano, o rei Francisco I (1515-1547),
da Franca, usava cabeleira muito bem tratada, como símbolo de graca
e cortesía.
Nos séculos XVII-XVIII, Luís XIV (1643-1715), o Rei Sol, usava
peruca perfumada, assim como os grandes artistas do classicismo;
os cortesáos costumavam imitar o monarca. Éste era cioso de dissi
mular a sua calvicie, a qual na época podcria ser interpretada como
sinal de íraqueza e de falta de personalidade.
Bonaparte usava cábelos longos, ao passo que seu irmao o Impe
rador Napoleao os tinha curtos; aquéle queria passar por revolucio
nario, enquanto éste almejava ser um novo César.
Pouco mais tarde, os grandes románticos franceses Musset, Dumas
traziam notáveis cabeleiras, em sinal de nao-conformismo ou de
ruptura com a sociedade de sua época.

Tentando resumir o significado désses dados históricos,


um psicólogo contemporáneo afirmava :
«Os cábelos curtos quasc sempre íoram sinal de um espirito co
rajoso, ativo, disciplinado, de tipo militar. Ao contrario, as cabeleiras
foram freqüentemente sinal de espirito dado ao sonho, á arte, á dis-
cussáo de idéias e á liberdade. Cada individuo, porém, representa um
caso que tem de ser avaliado dentro das respectivas circunstancias
sociais» (cf. «La Vie Catholique Illustrée» n« 1091, 6-12/VH/1966,
pág. 16).

A estes dados sucintos interessa acrescentar, antes de


empreender urna reflexáo final,

2. Dois casos bíblicos

Em se talando de cabeleira, nao poderiam deixar de se evocar dois


textos da S. Escritura que, por serem assaz significativos, tém sido
trazidos á baila nos debates contemporáneos.

1) O episodio de Sansáo (Jz 13-16). Sabe-se que Sansáo


(séc. XI a.C), portador de notável cabeleira, possuia extra
ordinaria fórca física.
Isto nao se deve a algum poder mágico dos cábelos, mas
ao fato de que Sansáo, filho de genitores esteréis, fóra con
sagrado ao Senhor desde o seio materno, tornando-se «nazireu».
Pertencia, portante, ao Senhor por inteiro, ... até as ponías
dos cábelos (conforme a mentalidade dos hebreus), de modo
que nem estas lhe deviam ser cortadas. A grande cabeleira
assim oriunda era sinal da adesáo integral de Sansáo a Javé.
Enquanto o nazireu se manteve fiel a Deus, Éste lhe deu poder
contra os adversarios, fazendo-o Libertador de Isarel. Certa
vez, porém, Sansáo cedeu aos amores ilícitos de Dalila, vio-

-_ 86 —
«CABELUDOS»

lando a Lei do Senhor; nessa aventura amorosa, a mulher


cortou-lhe os cábelos. Assim Sansáo se afastou de Deus interior
e exteriormente; em conseqüéncia, o Senhor lhe retirou o
extraordinario auxilio outrora concedido ao guerreiro fiel. Foi
por isto que Sansáo sem cabeleira (isto é, sem fidelidade a
Javé, sem a graca de Deus) se tornou impotente na guerra.
— A cabeleira era mero símbolo; o que o tornava forte, era
a sua incondicional consagracáo a Deus.
Veja-se a propósito E. Bettencourt, Para entender o Antigo Tes
tamento, 2* edicao 1965, pág. 266-271 (ed. AGIR).

2) O véu das mulheres em Corinto (1 Cor 11,2-16). Sao


Paulo tem em vista certo problema de disciplina entre os cris-
táos: as mulheres, que costumavam trazer véu sobre a cabeca
ñas assembléias de culto, já nao o queriam usar. O Apostólo
teceu entáo algumas reflexóes, das quais extraímos o seguinte
trecho :

«Toda mulher que reza ou profetiza de cabeca descoberta, desonra


sua cabeca ; é o mesmo que ter a cabeca raspada. Se a mulher nao
se cobre com o véu, que corte os cábelos! E, se é vergonhoso para a
mulher ter os cábelos cortados ou raspados, entáo cubra sua cabeca!
O homem nao deve cobrlr sua cabeca, porque ele é a imagem e a
gloria de Deus; mas a mulher é a gloria do homem...
Julgai em vés mesmos: é conveniente que urna mulher ore a
Deus sem estar de véu ? Nao é a propria natureza que vos ensina
que é vergonhoso para o homem usar cábelos compridos, ao passo
que para a mulher é gloria ter longa cabeleira, porque a cabeleira lhe
foi dada como véu ?> (1 Cor 11, 5-7.13-15).

Em poucas palavras, eis o que Sao Paulo quer dizer: a


natureza nao sómente isentou a mulher da calvicie, mas deu-lhe
mesmo urna cabeleira geralmente densa e bela, de tal sorte
que é vergonhoso, para a mulher, ter a cabeqa rapada. Ao
contrario, no homem a natureza favorece a calvicie; a cabe
leira parece secundaria, de tal modo que o varáo, sem perder
algo da sua dignidade, se pode apresentar de cabeca desnuda.
Ora, continua o Apostólo, estas realidades tém o valor de
sinais ou símbolos. A mulher possui um véu natural (a cabe
leira) sobre a cabega, porque na sociedade ela está sujeita a
algo de superior, isto é, a. autoridade do varáo ; a mulher é
auxiliar do homem (cf. Gen 2,18). O varáo, ao contrario, nada
tem de visível ácima déle na sociedade ; é o chefe da familia;
como tal, é ¡mediatamente subordinado a Cristo. O chefe do
varáo é diretamente Cristo; o chefe da mulher é, dirétamente,
o varáo e, indiretamente, Cristo.
Em conseqüéncia, concluía Sao Paulo, a fim de exprimir
devidamente esta ordem, deve a mulher trazer a cabeca coberta

— 87 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 5

com véu nas reunióes de culto (guando ela por excelencia toma
seu lugar na presenga de Deus), ao passo que o varáo terá a
cabeca descoberta.

Estas considerares do Apostólo nada tém de dogmático; seu


valor é disciplinar e contingente; nao há necessidade de as tomar
como norma para julgar penteados e véus de nossos dias. Citamo-las,
porque atestam com énfase como a cabeleira foi tida no decorrer da
historia como sinal das conviccpes do respectivo portador e mensa gem
para a sociedadc.

Voltemos agora a nossa atengáo para a moda dos


«Beatles:» contemporáneos.

3. Em nossos dias. ..

Através das declarares e atividades dos jovens amigos


da cabeleira, depreende-se que a sua moda nao é apenas urna
brincadeira ou urna expressáo de hilaridade, mas significa, ora
mais, ora menos conscientemente, duas realidades, que pode-
riam ser assim formuladas :

a) a tendencia, crescente na sociedade moderna, a usar


e abusar do sexo, com certa promiscuidade do que é masculino
e do que é feminino. Em seu subconsciente, muitos créem (ou
querem crer) que tudo ó permitido em materia sexual.

Para incutir esta tese, as mulheres, de um lado, se apresentam


em trajes de homem, adotando com isto atitudes e costumes do varáo
(o que seria lícito até determinado grau ; merece reprovacao. porém,
quando feito acintosa e desmedidamente). Do seu lado, os rapazes se
apresentam com aspecto feminino, de tal modo que a peia de «ser
efeminado» (outrora táo pungente) já nada significa.

Tal promiscuidade de modas parece nao raro servir de


cobertura ao libertinismo mais ou menos desenfreado. Alias,
a experiencia atesta quanto mal moral se tem cometido dentro
dessa onda de modas.

b) A cabeleira de nossos rapazes quer significar outros-


sim (como éles mesmos dizem) revolta dos filhos contra os
pais e as instituigóes vigentes. Era mais de um setor, os jovens
verificam lacunas no comportamento de seus genitores e da
sociedade em geral: os pais e familiares vivem desregrada-
mente, violando levianamente o vínculo matrimonial, em favor
do gozo ; cobica, divisáo e odio campeiam entre os homens (é
isso, alias, que leva O[ean-Paul Sartre e sua corrente existen-
cialista a apregoar a náusea de viver).

Tais falhas despertam ou avivam nos jovens a tendencia natural


a se colocarem ácima dos mais velhos ; apresentam-se, consciente

— 88 —
«CABELUDOS»

ou inconscientemente, como magnánimos e liberáis, que recusam qual-


quer artificio, qualquer pudor, porque o mal já loi sancionado como
«bem» pelos próprios pais ou pela opiniáo pública. Querem constituir
a «Jovem Guarda» que, numa atitude existencialista, avéssa á meta
física e ás longas reflexoes, vive cheia de alegria, desiludida ou cética,
em réplica á «Velha Guarda» ou aos mais velhos, que dizem ter pro
blemas, mas já fizeram época, entraram em decrepitude e perderam
autoridade.

Tais concepcóes parecem refletir-se fielmente na seguinte


passagem de famoso articulista, que escreveu num de nossos
jomáis cotidianos:
«Vi na televisáo o quinteto dos 'Beatles' brasileiros tocando a
Ave-Maria de Gounod. Voces, que perderam essa oportunidade, nao
podem avaliar como a música fica bonita...
Na forma da jovem guarda, no seu ritmo festivo, é um convite
a Maria para que venha ver, neste mundo á beira de urna guerra
atómica, pendente apenas do desentendimento final entre grupinhos
de velhos, como os mogos de todos os povos querem sómente cantar,
e pedem a paz para unirem suas vozes e os sons das guitarras idén
ticas» («O Globo» 3WIH/66).

Nessas linhas, os valores positivos e atraentes da sociedade


aparecem como que concentrados na juventude. O quadro nao
parece corresponder á realidade ; esta nao consiste em optar
ou pelo canto e a danca alegre, de um lado, ou pela guerra e
a destruicáo, de outro lado. Ela pede, antes, que todos se com-
penetrem de que o momento exige disciplina, disciplina severa
e, ao mesmo tempo, sorridente, cheia do otimismo que Cristo
veio anunciar ao mundo.

4. A ligáo dos fatos

A análise dos pontos obscuros que se prendem ao fenó


meno «Beatles» nao pode ser a etapa final de nossas reflexoes.
Exige procuremos remediar e sanear. Em vista disto, eis duas
observacóes :

1) Urna das mais poderosas causas da perplexidade dos


jovens de hoje vem a ser, como se sabe, o comportamento
decepcionante dos mais velhos, a comecar, muitas vézes, pelos
genitores. É freqüentemente no lar, na escola de seus pais, que
os filhos aprendem leviandade, absoluta despreocupacáo, irres-
ponsabilidade, desejo de vida prazenteira e vazia...
Tratem, pois, os casáis de reconstituir, onde e como fór
necessário, a sua vida conjugal honesta. Os pais cristáos res-
taurem em si a consciéncia da missáo ardua e, de certo modo,
sacerdotal que assumiram ao contrair matrimonio ; nao há
paternidade, como nao há sacerdocio, sem sacrificio ; justa-

— 89 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 5

mente o sacerdocio dos país implica o sacrificio déles mesmos


em uniáo com o sacrificio de Cristo. Lembrar-se-áo também
de que a autoridade perante os jovens se exerce nao sómente
por ensinamentos oráis, mas também, e necessáriamente, pelo
exemplo e a coeréncia de vida; a palavra clara e firme, ilus^
trada por urna conduta correspondente, é o melhor meio de
restaurar a autoridade dos genitores.

2) Os jovens, do seu lado, nao se esqueceráo de que éles


por si nao constituem a sociedade; cada idade da vida humana
tem seus valores ou predicados próprios, de tal sorte que ne-
nhuma pode dispensar as demais.
Os mais velhos possuem o estudo, a experiencia e a maturidade
que os jovens nao tém nem podem ter, pois sao bens que se adquirem
com o passar dos anos, mediante as vicissitudes da vida. Os jovens,
por sua vez, dispóem do vigor fisico, da coragem, do entusiasmo que
os mais idosos nem sempre podem ter.

Os jovens, por conseguinte, precisam dos mais velhos para


receber as ligóes da vida, beneficiando-se das experiencias e
conquistas das geragóes anteriores. Reciprocamente, os mais
velhos precisam dos jovens para continuar as tarefas que os
anos já nao lhes permitem desempenhar com eficiencia. Nao há,
portanto, oposigáo entre «Jovem Guarda» e «Velha Guarda»,
mas, sim, complementagáo e respeito mutuo. A sociedade só
se constrói devidamente com a participacüo de todos os seus
membros, cada qual ocupando seu lugar próprio dentro do
conjunto.
* * *

A titulo de ilustracáo, transcrevemos aqui a apreciagáo da moda


dos «Beatles» íeita por um psicólogo francés :
«Alguém se torna cabeludo em 1966 por urna ou mais de urna
das dez razóes seguintes :
1 — Porque é urna boa forma de chamar a atencáo das mogas.
Estas, mais emancipadas do que no século passado, nao aguardam mais
'ser escolhidas'. Querem escolher o noivo de sua preferencia. Daí a
tendencia dos rapazcs a se fazer notar (cábelos longos, camisas em
cores, etc.).
2 Porque é urna forma de rivalizar em excentricidade com as
mogas... que trajam mini-saias.
3 Porque é um modo, como outro qualquer, de afirmar que o
individuo faz o que quer e vive como lhe agrada (sentenga de Antoine,
famoso 'beatnik' francés).
4 — Porque a cabeleira permite ao jovem diferenciar-se dos adul
tos, considerados como homens de outro século.
5 — Porque a cabeleira irrita os ditos decrépitos e todas as oca-
si5es de os provocar merecem ser aproveitadas.

— 90 —
TERESA NEUMANN DESOBEDIENTE ?

6 — Porque a cabeleira é moda e, na moda, ha urna época para


tudo: para os cránlos rapados (estilo 1960, Yul Brynner) e para os
cránios em brenha (estilo 1965, 'Beatnflt').
7—Porque pela cabeleira o individuo traduz o profundo desejo
de nao se dcixar assimilar por urna sociedade tida como fastidiosa e
criminosa (tenha-se em vista a guerra, a bomba atómica). O cabeludo
é alguém que protesta.
8 — Porque a cabeleira revela urna especie de angustia diante das
diíiculdadcs da vida. O cabeludo nao quer mais entrar no jógo da
sociedade. Procura permanecer crianca ou se marginalizar.
9 — Porque mediante a cabeleira o individuo procura vingar-se
de um íerimento secreto. Desgostoso da vida, ele a torna íeia, en-
íeiando-se a si mesmo.
10 — Porque a cabeleira é urna forma original de testemunhar que
o individuo pertence a um grupo, a um bando, a um clá...»
(Transcrito de «La Vie Catholique Illustrée» n» 1091, 6-12/VII/1966,
pág. 17).
Nao discutiremos a validade ou o grau de acertó e bom senso das
razóos ácima enumeradas. Apenas apraznos sublinhar que a cabeleira
pode ser tida em alguns casos como sinal de protesto, protesto contra
o mau comportamento da sociedade... É louvável e necessário tal
protesto; é preciso, porém, recordar que meros protestos nada con-
sertam ; há mesmo protestos que so concorrem para mais desatinar
e destruir... Oxalá aqueles que repudiam a iniqüidade e os maus
costumes da sociedade, colaborem eficazmente (com ou sem cabeleira)
para reerguer o nivel moral e os hábitos de nossa época !

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

EDUARDO (Sao Paulo) :

6) «Alguns escritores se mostram céticos em relacao a


Teresa Neumann, poís, dizem, desobedeceu as autoridades ecle
siásticas, recusando ser examinada pelos médicos.
Que consta a propósito ?»

Essa dita insubmissáo de Teresa á autoridade da Igreja


é urna das mais graves objegóes que se fazem contra a cam-
ponesa de Konnersreuth ; poder-se-ia crer que Teresa, fur-
tando-se obstinadamente ao controle médico, receava ser des-
coberta como embusteira ou fraudulenta.
Vejamos o que, na realidade, se deu.

1. Um primeiro exame

É notorio que, a partir de Natal de 1926, Teresa se absti-


nha de qualquer alimento sólido ou líquido. Cf. «P. R.» 85/1967,
qu. 6.

— 91 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 6

Em julho de 1927, urna comissáo de médicos desejou sub-


meter tal fenómeno a rigoroso exame.
Os pais da camponesa mostraram-se contrarios á inspegáo,
por motivo de honra da familia ; além do que, diziam, durante
os anos de grave enfermidade de sua filha os médicos pouco
se tinham importado com ela ; em conseqüéncia, já que nao
era mais necessária a assisténcia dos médicos, dispensavam o
interésse manifestado pelos mesmos.

Bons amigos da familia também cram avessos ao empreendimento.


Outrossim o diretor espiritual da vidente, o qual inculcava que a
plena honestidade e o profundo senso religioso da familia Neumann
podiam, sem mais, merecer o crédito do público.

Contudo a Curia Diocesana de Ratisbona interveio em


favor da junta médica.
Diante disto, Teresa e, pouco depois, seus pais consenti-
ram em que a donzela fósse submetida a estrita vigía em casa
de seus genitores. O velho pai obteve a promessa de que tal
prova seria a primeira e a última na vida de sua filha. Teresa
nao se perturbou com os acontecimentos, dizendo freqüente-
mente: «Senhor, Tu coméeoste ; Tu também levarás a termo
como Te agradar; entregamo-nos totalmente a Ti».
Constava que o prazo máximo durante o qual urna cria
tura humana pode viver sem comer nem beber, é de onze dias.
Por seguranca, porém, estipularam submeter Teresa a rigoroso
e continuo controle durante quinze dias. Para tanto, foram
designadas quatro Religiosas, que, por juramento, se obriga-
ram á tarefa, revezando-se duas a duas junto a Teresa.
Todas as possíveis cautelas foram tomadas para evitar
frustragáo do exame : era medida a agua com que Teresa la-
vava a boca, e controlada qualquer evacuacáo (muito rara
mente a donzela emitía alguma coisa); o seu sangue foi exa
minado ; os estigmas a sangrar, fotografiados.

Além disto, outras pericias, assaz vexantes, foram efetuadas fora


do programa estabelecido, sem que .se pedisse consentimento a Teresa.
Assim é que, durante o éxtase de urna sexta-feira, lhe lancaram diré-
tómente nos olhos abertos a luz de urna lámpada de 5.000 w ; no seu
estado normal, Teresa teria, em conseqüéncia, sofrido graves pertur-
bacSes visuais, ela que estivera cega durante mais de quatro anos.
Nao obstante, a vidente nem sequer pestanejou, mostrándose desti
tuida da sensibilidade habitual (como, alias, ocorria em seus éxtases).

Após os quinze dias de prova (14 — 28 de julho de 1927),


os médicos chegaram as seguintes conclusóes :

a) durante ésse periodo, Teresa nao ingeriu alimento de especie


alguma, nem sólido nem liquido ;

— 92 —
TERESA NEUMANN DESOBEDIENTE ?

b) nao houve defecagáo. Em duas ocasióes, a vidente eliminou


urina num total de 525 cm3 (sem que apresentasse síntomas de
uremia) ;

c) ao comecar a experiencia, Teresa pesava 55 kg ; na sexta-íeira


seguinte, durante a sua visáo dolorosa, pesava 51 kg ; na sexta-feira
posterior, 52 5kg. No final da prova, voltavá a 55 kg (de sábado a
meados da semanaseguinte, o peso normal da vidente se restaurava;
isto, alias, se deu nos restantes anos de sua vida);

d) nem durante ncm após a prova se averiguaram sinais de


exaustáo ou esgotamento físico em Teresa (ao contrario, todo transe
produzido por hétero-sugestáo ou auto-sugestáo acarreta enorme de-
pauperamento do organismo). Logo nos sábados subseqüentes as vi-
soes extáticas, Teresa se apresentava em condicóes perfeitamente
normáis.

Como reconheceram as autoridades médicas e religiosas,


a prova foi levada a termo com toda a exatidáo. Quinze dias
passados ñas condiqóes descritas teriam sido mais do que sufi
cientes para levar Teresa á morte ; embuste ou artimanha his
térica nao teriam resistido a tal prova. Assim a experiencia
dava a ver que a total carencia de alimentacáo em Teresa nao
podia ser explicada por via natural; sobre tal conclusáo mos-
traram-se de acordó os médicos assistentes.
O desfecho da experiencia, porém, nao punha termo aos
vexames que a familia Neumann comegara a sofrer.

2. Uní segundo examc

Com efeito, o Dr. Ewald, professor de Psiquiatría em Er-


langen, teve a iniciativa de publicar no jornal «Münchner Me-
dizinische Wochenschrift» (n° 46/1927) um relatório da pes
quisa realizada em Konnersreuth, relatório que depois apareceu
em brochura á parte. Já éste fato equivalía a violagáo do segré-
do profissional, pois nao se pediu para tal o consentimento de
Teresa. Ademáis dizia o relatório em seu sumario:

«O.s estigmas sao muito provávelmcnte reais, e provenientes de


estados histéricos. Nao explicada nem explicável é a pretensa absten-
cáo de alimentos, que dura já varios meses e é acompanhada de pe
riódico aumento de peso. A ciencia nao conhece milagres nem ruptura
da lei da causalidade. A clareza neste setor só poderá ser obtida por
controle em urna clínica aconfessional (neutra)».

Éste parecer tinha algo de ofensivo ao senso cristáo, em-


bora devesse servir como base para o julgamento da Curia
Diocesana de Ratisbona; dizia, sim, que «a ciencia nao conhece
milagres...», contrariamente ao que assevera a doutrina ca
tólica. Além disto, apelava para novo exame em urna clínica
neutra ou aconfessional, insinuando desonestidade por parte

— 93 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 86/1967, qu. 6

das enfermeiras e dos familiares que haviam acompanhado


Teresa na pesquisa realizada.
Como se compreende, o feito do Prof. Ewald só podia
descontentar país e parentes da estigmatizada. Contudo encon-
trou eco em varias pessoas de autoridade, de sorte que nos anos
seguintes foi crescendo o número dos que desejavam novo
exame de Teresa Neumann. A familia da camponesa, porém,
repelia qualquer pvoposta désse genero, alegando que os exa
mes nao teriam fim, pois sempre haveria quem contestasse a
honestidade dos examinadores.
Sobreveio em 1933 o regime nacional-socialista. Éste tinha
interésse em desfazer a fama e a estima de que gozava Teresa
na Alemanha e no estrangeiro. De quando em quando, a im
prensa governamental publicava um artigo desfavorável á
vidente. Avolumava-se a onda dos que pleiteavam nova inves
tigado ; já nao falavam de «examinar (beobachten, untersu-
chen) Teresa em urna clínica», mas de «entregar (einliefern)
Teresa a urna clínica neutra». Esta expressáo sugería aos fa
miliares da donzeia más intencóes por parte dos interessados.
Na verdade, as autoridades nazistas nao hesitavam em eliminar
por meio de injegóes e outras vías (em campos de concentragáo
ou em hospitais) as pessoas nao gratas ao regime; mais de
urna vez mesmo a familia Neumann recebeu bilhetes do se-
guinte teor:

«Quando a tivermos em urna clínica, trataremos do lho aplicar as


injecóes convenientes.»

A situagáo era tal quando, aos 10 de dezembro de 1936,


dois sacerdotes da Curia Diocesana de Ratisbona, os Padres
Doberl e Wührl, apareceram em Konnersreuth, levando um
decreto do S. Oficio de Roma : éste mandava que Teresa se
submetesse a novo exame em urna clínica, sob pena de passar
por «inoboediens» (desobediente). As causas que provocaram
tal intimajáo, sao assaz complexas e delicadas.
Diante da ordem superior, o Pároco de Konnersreuth,
Pe. Naber, chamou Teresa, a qual, cientificada do decreto, de-
clarou, por escrito, estar pronta a lhe obedecer. O velho pai,
porém, resistiu. Embora a donzeia já tivesse 38 anos de idade
e pudesse dispensar a autorizagáo paterna, nao quería entrar
em discordia com seu genitor, que declarara repetidas vézes :
«Enquanto Teresa morar em minha casa, há de me obedecer ;
se nao, poderá ir-se para onde quiser»; a camponesa sempre
acatara ésse ponto de vista, obedecendo ao pai. Acaloraram-se
entáo as conversagóes com o sr. Neumann, o qual finalmente
resoiveu consentir no exame sob certas condigoes, que ele, após

— 94 —
TERESA NEUMANN DESOBEDIENTE ?

madura reflexáo, haveria de apresentar á Curia Diocesana de


Ratisbona ; o anciáo estava consciente do perigo que corría
ao entregar sua filha a uma clínica do Terceiro «Reich», de
mais a mais que a donzela, em éxtase, nao poderia reagir con
tra intervengóes desleais.
Eis as tres principáis condigóes propostas pelo Sr.
Neumann:

a) nao se lizcsscm experiencias médicas em Torosa, mas apenas


observares e controle;
b) a genitora ou uma irma de Teresa pudessem acompanhar a
vidente durante todo o tempo de sua estada na clínica;
c) fósse garantida a Teresa a faculdade de comungar diariamente.

As autoridades diocesanas, porém, recusaram-se a aceitar


condigóes, o que colocou o Pe. Naber em graves apuros. Con-
tudo aconteceu que, pouco depois, o sacerdote recebeu uma
carta do arcebispo D. Karl Kaspar, de Praga, comunicando-lhe
que ia a Roma participar de um consistorio e oferecendo-lhe
seus prestimos para qualquer encargo. Sem demora, entáo, o
Pe. Naber lhe respondeu, relatando-lhe a triste situagáo em
Konnersreuth e pedindo-lhe seus bons servigos junto (á Santa
Sé. — A intervengo de S. Eminencia foi eficaz, pois, em tempo
oportuno, o bispo de Ratisbona recebeu do S. Oficio nova ins-
trugáo, conforme a qual Teresa devia ser convidada para um
segundo exame, nao, porém, formalmente obrigada a tal. Ainda
pouco mais tarde (dezembro de 1937), apareceu em Konners
reuth um emissário do S. Oficio, Mons. Giuseppe Graneris, pro-
fessor do Ateneu Lateranense de Roma, o qual ouviu atenta
mente os depoimentos de Teresa, seus genitores e seu pároco.
O visitador tomou apontamentos; mostrou-se satisfeito com
quanto observara, e, ao partir, deu a béngáo ao lar Neumann.
— Desde entáo, nunca mais as autoridades de Ratisbona ou
Roma fizeram mengáo de exame clínico em Teresa Neumann.

Para completar o quadro, deve se ainda dizer que o pai da vidente


era apoiado em sua resistencia pela opiniáo de alguns bispos e sa
cerdotes, os quais percebiam de perto os riscos de se entregar Teresa
a uma clínica. Como atrás foi dito, sao um tanto intrincados os mo
tivos pelos quais os superiores eclesiásticos insistiram em controle
médico.

3. Conclusáo

O leitor tem assim, em breves termos, uma visáo geral dos


episodios que maiores suspeitas levantaram no público contra
a autenticidade religiosa do caso Teresa Neumann. Esta, seus
familiares e amigos por vinte e cinco anos haviam de sofrer

— 95 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 86/1967, qu. 6

as conseqüéncias dos mal-entendidos que as tentativas de se


gundo inquérito médico provocaram.

Hoje, á distancia dos acontecimentos, vé-se que nao há


razáo para acusar de desobediencia a atitude de Teresa; en-
tende-se outrossim que a resistencia do velho genitor nao signi-
ficava receto da verdade, nem mau animo contra as autorida
des legítimas, mas apenas dedicacáo de um pai, que, melhor
do que ninguém, percebia as circunstancias concretas do caso
e a dolorosa aventura em que se envolveria sua filha.
Dissipem-se, portanto, as dúvidas que a propósito de tais
episodios surgiram na mente de varias pessoas acerca de
Teresa Neumann.

D. Estéváo Bettcncourt O.S.B.

ERRATA : Na capa de «P. R.» 85, em vez de «Ano X»,


leia-se « Ano VIII».

A RADIO TUPI DA GUANABARA

apresenta o programa

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

todos os domingos, das 6 h 30 min as 7 h, na palavra de

D. Estéváo Bettencourt O. S. B.

— 96 —
NO PRÓXIMO NÚMERO :

«O Santo Inquérifo»

Celibato do clero y

Padre e trabalho profesional

Milagres e fenómenos patológicos

Juízo particular e jutzo universal

Espirito, alma, mente, razáo...

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

porte comum Cr$ 10.000


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Colccao encadernada de 1957 a 1964 Cr$ 54.400

Índice Geral de 1957 a 1964 Cr$ 4.300

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