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Domingo, 15 de Fevereiro de 2009

Contra a escola-armazém

Merece toda a atenção a proposta de escola a tempo inteiro (das 7h30 às 19h30?), formulada
pela Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). Percebe-se o ponto de vista
dos proponentes: como ambos os progenitores trabalham o dia inteiro, será melhor deixar as
crianças na escola do que sozinhas em casa ou sem controlo na rua, porque a escola ainda é
um território com relativa segurança. Compreende-se também a dificuldade de muitos pais
em assegurarem um transporte dos filhos a horas convenientes, sobretudo nas zonas
urbanas: com o trânsito caótico e o patrão a pressionar para que não saiam cedo, será melhor
trabalhar um pouco mais e ir buscar os filhos mais tarde.

Ao contrário do que parecia em declarações minhas mal transcritas no PÚBLICO de 7 de


Fevereiro, eu não creio à partida que será muito mau para os alunos ficar tanto tempo na
escola. Quando citei o filme Paranoid Park, de Gus von Sant, pretendia apenas chamar a
atenção para tantas crianças que, na escola e em casa, não conseguem consolidar laços
afectivos profundos com adultos, por falta de disponibilidade destes. É que não consigo
conceber um desenvolvimento da personalidade sem um conjunto de identificações com
figuras de referência, nos diversos territórios onde os mais novos se movem.

O meu argumento é outro: não estaremos a remediar à pressa um mal-estar civilizacional,


pedindo aos professores (mais uma vez...) que substituam a família? Se os pais têm maus
horários, não deveriam reivindicar melhores condições de trabalho, que passassem, por
exemplo, pelo encurtamento da hora do almoço, de modo a poderem chegar mais cedo, a
tempo de estar com os filhos? Não deveria ser esse um projecto de luta das associações de
pais?
Importa também reflectir sobre as funções da escola. Temos na cabeça um modelo escolar
muito virado para a transmissão concreta de conhecimentos, mas a escola actual é uma
segunda casa e os professores, na sua grande maioria, não fazem só a instrução dos alunos,
são agentes decisivos para o seu bem-estar: perante a indisponibilidade de muitos pais e face
a famílias sem coesão onde não é rara a doença mental, são os promotores (tantas vezes
únicos!) das regras de relacionamento interpessoal e dos valores éticos fundamentais para a
sobrevivência dos mais novos. Perante o caos ou o vazio de muitas casas, os docentes, tantas
vezes sem condições e submersos pela burocracia ministerial, acabam por conseguir guiar os
estudantes na compreensão do mundo. A escola já não é, portanto, apenas um local onde se
dá instrução, é um território crucial para a socialização e educação (no sentido amplo) dos
nossos jovens. Daqui decorre que, como já se pediu muito à escola e aos professores, não se
pode pedir mais: é tempo de reflectirmos sobre o que de facto lá se passa, em vez de
ampliarmos as funções dos estabelecimentos de ensino, numa direcção desconhecida. Por
isso entendo que a proposta de alargar o tempo passado na escola não está no caminho certo,
porque arriscamos transformá-la num armazém de crianças, com os pais a pensar cada vez
mais na sua vida profissional.

A nível da família, constato muitas vezes uma diminuição do prazer dos adultos no convívio
com as crianças: vejo pais exaustos, desejosos de que os filhos se deitem depressa, ou pelo
menos com esperança de que as diversas amas electrónicas os mantenham em sossego
durante muito tempo. Também aqui se impõe uma reflexão sobre o significado actual da vida
em família: para mim, ensinado pela Psicologia e Psiquiatria de que é fundamental a
vinculação de uma criança a um adulto seguro e disponível, não faz sentido aceitar que esse
desígnio possa alguma vez ser bem substituído por uma instituição como a escola, por
melhor que ela seja. Gostaria, pois, que os pais se unissem para reivindicar mais tempo junto
dos filhos depois do seu nascimento, que fizessem pressão nas autarquias para a organização
de uma rede eficiente de transportes escolares, ou que sensibilizassem o mundo empresarial
para horários com a necessária rentabilidade, mas mais compatíveis com a educação dos
filhos e com a vida em família.

Aos professores, depois de um ano de grande desgaste emocional, conviria que não
aceitassem mais esta "proletarização" do seu desempenho: é que passar filmes para os
meninos depois de tantas aulas dadas - como foi sugerido pelos autores da proposta que
agora comento - não parece muito gratificante e contribuirá, mais uma vez, para a sua
sobrecarga e para a desresponsabilização dos pais.

Pública 15 de Fevereiro de 2009

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