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VIEIRA, Alberto (1996),

Os Ingleses a ilha e o vinho Madeira

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (1996), Os Ingleses a ilha e o vinho Madeira, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital,
disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/ingles.pdf, data da visita: / /

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OS INGLESES, A ILHA E O VINHO MADEIRA

Em 1873 Álvaro Rodrigues de Azevedo afirmava que “a Madeira está em grande parte
anglizada, na raça, nos costumes, a propriedade, no comércio, na moeda; e a língua inglesa é
aqui a mais falada depois da nacional. Se nós somos imprudentes em dizer isto, o que são os
governos se o ignoram? E pior, se não o ignoram, pois que o não evitam, o que serão? Só o
brio português nos mantém portugueses”.
Ainda em 1924 a mesma ideia persiste no testemunho presencial de Raul Brandão: ”Esta ilha
é um cenário e pouco mais-cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e
desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em
inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa”
O cosmopolitismo britânico, hoje cada vez menos evidente, era um facto que coroava todo
um processo histórico de forte impacto desta comunidade. Algumas das páginas mais
significativas da História da ilha escreveram-se pelas suas mãos e impulso. Note-se que os
ingleses foram os últimos (há quem diga que teriam sido os primeiros, baseando-se na
fatídica aventura de Machim) a serem envolvidos pelo fascínio da ilha. Primeiro foram os
portugueses a desbravar as clareiras e a abrir os caminhos para a presença europeia. Depois
surgiram os italianos, franceses e flamengos a fruir as suas riquezas. E só mais tarde vieram
os ingleses, atraídos pelo aroma da célebre malvasia. A fama da malvasia madeirense,
proclamada na obra de Shakespeare, foi o mote para a sua imposição ao paladar apurado da
aristocracia britânica, que se delicia até ao afogamento nos toneis cheios deste vinho. Na
verdade ela encantou a aristocracia e coroa inglesas, animando os serões dos súbditos de Sua
Majestade, dentro e fora da grande ilha.
Depois da malvasia o inglês veio a descoberta das infindáveis qualidades terapêuticas da ilha,
a raridade das suas espécies botânicas e, por fim, o deleite das infindáveis belezas do interior
da ilha, que passou a ser devassado a pé, a cavalo ou de rede. São inúmeros os testemunhos
desta realidade, captados na pena de alguns registos ou no traço de alguns exímios
aguarelistas e gravadores. Na verdade, os ingleses tiveram o mérito de descobrir duas
inigualáveis marcas que definem este rincão: o vinho e as belezas paisagísticas. E como tal
foram dos primeiros e principais fruidores destas qualidades. Por muito tempo a ilha foi para
eles apenas sinónimo disso. Depois a ilha, com a plena afirmação da hegemonia britânica no
Atlântico e Indico foi um pilar importante desse vasto império: ela foi base imprescindível
para o corso marítimo( a forma usual de represália nos mares) e porto obrigatório para o
abastecimento dos porões das suas embarcações de malvasia, tão procurada nas tabernas
londrinas como nas messes das hostes britânicas além-Atlântico.
Múltiplas e variadas razões fizeram com que o Funchal se afirmasse a partir do século XVIII
como um centro chave das transformações sócio-políticas então operadas, de ambos os lados
do oceano. Aqui deverá, sinalizar-se a forte presença da comunidade inglesa e o facto desta a
ter transformado num importante centro para a sua afirmação colonial e marítima, a partir do
século XVII. Esta vinculação da ilha ao império britânico é bastante evidente no quotidiano e
devir histórico madeirenses dos séculos XVIII e XIX.

No decurso do século XVIII a Madeira firmou a sua vocação atlântica, contribuindo para isso
o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho madeirense na sua
estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pelos
tratados de amizade, de que merece relevo especial o de Methuen (1703), foram os meios
que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo inglês.
Aos poucos, esta comunidade ganhou uma posição de respeito na sociedade madeirense que,
por vezes, se tornava incomodativa. A presença e importância da feitoria inglesa, no decurso
do século XVIII, é uma realidade insofismável. De acordo com isto poderá afirmar-se que a
Madeira funcionava para os ingleses como uma colónia que jogou um papel fundamental
entre a metrópole e as possessões norte-americanas das Índias Ocidentais e orientais,
assumindo uma dupla função para os ingleses: porto de apoio para as incursões no oceano e
abastecedor de vinho às embarcações e colónias.

A presença de armadas inglesas no Funchal era constante e o relacionamento com as


autoridades locais amistoso, sendo recebidos pelo governador com toda a hospitalidade .
Destas relevam-se as de 1799 e 1805, compostas, respectivamente de 108 e 112 embarcações.
Para além disto era assídua a presença de uma esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense,
sendo a de 1780 comandada por Jonhstone .
É esta quase esquecida dimensão da ilha como motivo despertador da ciência e cultura
europeia desde o século XVIII que importa realçar. Ela partiu de campo experimental dos
descobrimentos a sua afirmação, com a filosofia das luzes, como novo campo experimental
de nova ciência que desabrocha, mercê da sua nova função de escala das expedições
científicas. Mais uma vez fica demonstrado o activo protagonismo da Madeira no devir
histórico ocidental. A sua acção não se resume apenas aos planos político-económico e
social, pois alarga-se ao científico, como acabamos de constatar.

As ilhas assumem na centúria oitocentista uma nova função para os Europeus. De primeiras
terras descobertas passam a campos de experimentação e a escalas retemperadoras da
navegação na rota de ida e regresso. Finalmente, no século XVIII desvendou-se uma nova
vocação: as ilhas como campo de ensaio das técnicas de experimentação e observação
directa, que comandam a ciência das "luzes", e escala das constantes expedições científicas
dos europeus. O enciclopedismo, as classificações de Linneo(1735) têm nas ilhas um bom
campo de experimentação.

O homem do século dezoito perdeu o medo ao mundo circundante e passou a olhá-lo com
maior curiosidade, deste modo como dono da criação estava-lhe atribuída a missão de
perscrutar os seus segredos. É esse impulso que justifica todo o afã cientifico que explode
nesta centúria. A insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a
Europa, mas foram os ingleses aqueles que entre nós marcaram um forte presença, sendo
menor a de franceses e alemãs.

Aqui são protagonistas as Canárias e a Madeira. Este protagonismo resulta da função das
mesmas como escala à navegação e comércio no Atlântico e para fora deste. Foi também aqui
que a Inglaterra estabeleceu a sua base para a guerra de corso no Atlântico. Se as
embarcações de comércio, as expedições militares cá tinham escala obrigatória, mais razões
assistem às científicas para essa paragem obrigatória. As ilhas pelo seu endemismo, própria
história geo-botânica, levavam obrigatoriamente a esse primeiro ensaio das técnicas de
pesquisa a seguir noutras longínquas paragens. Também as ilhas foram um meio revelador
dessa incessante busca do conhecimento da geologia e botânica. Instituições seculares, como
o British Museum, Linean Society, e Kew Gardens, chegam a enviar especialistas a proceder
à recolha das espécies. Importantes estudos no domínio da geologia, botânica e flora são
resultado deste presença fortuita ou intencional dos cientistas europeus.

Esta foi uma moda, no decurso do século XVIII, que levou a que algumas instituições
científicas europeias ficassem depositários de algumas dessas Colecções: o Museu Britânico,
a Universidade de Kiel, Universidade de Cambridge, Museu de História Natural de Paris. E,
por cá, passaram destacados especialistas da época, sendo de destacar John Byron, James
Cook, Humbolt, John Forster. A lista é infindável, contando-se, entre 1751 e 1900, quase
uma centena de cientista. Está aqui uma riqueza historial que ainda não foi devidamente
explorada.

James Cook escalou a Madeira por duas vezes(1768 e 1772), numa réplica da viagem de
circum-navegação, mas desta feita apenas com interesse científico. Os cientistas, Joseph
Banks, J. Reinold Forster, que o acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à busca
das raridades botânicas para a sua classificação e depois revelação à comunidade científica.
Na primeira viagem, que aportou ao Funchal a 12 de Setembro, foi muito bem recebido,
sendo homenageado com uma festa na casa do cônsul, Thomas Cheap.

A tudo isto é de referenciar a função de hospital para a cura da tísica pulmonar ou de


quarentena na passagem do calor tórrido das colónias para os dias frios e nebulosos da
vetusta cidade de Londres. Esta função catapultou a ilha para um evidente protagonismo. O
debate das potencialidades terapêuticas da climatologia propiciou um numeroso grupo de
estudos e criou uma escala de estudiosos, dentro e fora da ilha. Mais do que estes é de
salientar os demais que correspondem, ao seu apelo.

Intermináveis filas de aristocratas, escritores, cientistas desembarca no calhau e vão encosta


fora à procura do ar benfazejo da ilha. A lista é volumosa, e é quase sempre recordada
quando se pretende valorizar as funções turísticas deste rincão. A desgraça, a doença e
sofrimento destes ilustres da sociedade e das letras, os anónimos que a história perdeu o
rastro, são um cartaz turístico. Eles lançaram os caminhos do turismo e criaram em todos nós
este ancestral desejo da viagem retemperadora onde a tísica deu lugar ao hodierno "stress.
Daqui resultou o progresso do turismo incentivado também pela comunidade britânica. Os
hotéis são primeiro as quintas e depois instalações feitas a preceito para alojar as comitivas
numerosas das famílias inglesas. W. Reid foi um dos principais promotores e o Hotel Reid’s
é a manifestação ainda visível dessa época.

Felizmente muitos cientistas e escritores - porque a doença era cega! - deverão ter sentido os
seus efeitos benéficos ou retornaram desiludidos à terra natal onde os esperava a morte.
Alguns ainda tiveram oportunidade de passar para o papel sob a forma de escrita ou gravura,
as suas impressões. Vem daqui muito do espólio hoje disponível na Casa Museu Frederico
de Freitas e Biblioteca Municipal.

Perante tudo isto só faltava hastear a bandeira no torreão do palácio de S. Lourenço,


proclamar a soberania britânica na ilha e reclamar do madeirense o juramento de fidelidade a
Sua Majestade. E foi isso que realmente sucedeu em 26 de Dezembro de 1807, como se pode
ver da proclamação do major general Beresford. Esta situação persistiu até 17 de Agosto de
1808. Anos antes (entre 24 de Julho de 1801 e 25 de Janeiro de 1802) a conturbada
conjuntura europeia e os pactos estabelecidos pela velha aliança levaram a que os ingleses se
limitassem apenas a ocupar a ilha, mantendo-se a soberania portuguesa. Mas neste momento,
razões imponderáveis conduziram a que se avançasse algo mais: a situação era por demais
crítica para os interesses britânicos, que só poderiam ser garantidos com esta atitude. Deste
modo os súbditos britânicos concretizavam uma velha ambição, fazer da ilha um recanto seu.
O primeiro indício desta apetência surgiu em 1661, quando nas negociações para o dote do
casamento da infanta D. Catarina com o rei Carlos II a parte inglesa reivindicou a inclusão da
ilha da Madeira. A tradição, pois ele surge sempre quando os documentos se calam, afirma
que os madeirenses teriam recusado tal opção levando a coroa portuguesa a substitui-la pela
ilha de Bombaim e a fortaleza de Tanger, para além de uma elevada quantia em dinheiro.
Este foi o resgate pago pelos madeirenses para manterem a fidelidade à coroa portuguesa.
Todavia a realidade parece ser outra. A doação feita em 1 de Novembro de 1656 por D. João
IV à Infante D, Catarina contraria o princípio que levou D. Manuel em 1498 ao fazer reverter
para a coroa a sua posse, ficando “realenga para sempre”, pelo que não poderia ser alienada.
À figura de Napoleão associa-se um período fulgurante da História da Madeira, definido pela
dominância do vinho e pela cada vez mais omnipresente posição do inglês, o único fruidor
das megalomanias napoleonicas. Também a ilha e o seu vinho desfrutaram de uma posição
inigualável. Talvez por tudo isso, quando o fatídico imperador passou pela ilha em Agosto de
1815 a caminho do exílio, o cônsul inglês, Henry Veitch, não encontro melhor lembrança
para lhe ofertar que tonel de vinho.
Quando nos referimos ao fim que teve Napoleão, todos, ou quase todos, reclamam a
inevitável referência à passagem do mesmo pela ilha ao caminho do cativeiro em Sta Helena
e o retorno dos seus restos mortais em 1840. Alguns, mais afoitos, recordam a importante
peça literária que a esse propósito leu J. Reis Gomes na sessão da classe de letras da
academia de Ciências em 18 de Janeiro de 1934. Na nossa mente estão outras questões mais
importantes, que definem o perfil do devir económico madeirense em tal momento.
A conjuntura europeia protagonizada por Napoleão fizera com que o vinho madeirense
adquirisse uma posição dominante no mercado atlântico, fazendo aumentar a riqueza dos
ingleses, os principais comerciantes e consumidores. Esta oferta de vinho era assim
simbólica, o mesmo sucedendo com a renitência do imperador em fazer dele o antídoto para
as agruras do exílio. Diz a tradição que o tonel com o precioso rubinéctar regressou à ilha,
reclamado pelo doador. O vinho regressado à ilha desmultiplicou-se, em 1840, em centenas
de garrafas, que fizeram as delícias de inúmeros ingleses. Churchill em 1950 foi um dos
felizes contemplados.
A conjuntura política envolvente ao governo imperial de Napoleão Bonaparte repercutiu-se
de forma evidente no espaço atlântico, provocando uma alteração no movimento comercial.
O mútuo bloqueio continental entre a França e a Inglaterra lançaram as bases para uma nova
era na economia atlântica. Os tradicionais circuitos comerciais que se iniciavam e
finalizavam nos portos europeus, desapareceram, por algum tempo, pois o cordão umbilical
que os mantinha foi cortado. Neste contexto é evidente a valorização das ilhas que passaram
a dispor de um mercado aberto para os seus produtos, como o vinho, até aqui alvo da
concorrência do europeu.
Os dados disponíveis em alguns estudos sobre a época revelam que o bloqueio não foi
assumido e fiscalizado na totalidade. Para a ilha ele significou uma alteração nalgumas rotas
comerciais. a Madeira perdeu os portos do reino e do norte da Europa, mas em contrapartida
ganhou nos contactos com os Açores e com as colónias inglesas do indico. A ilha da Madeira
que em finais do século dezanove ficara seriamente abalada com a concorrência dos vinhos
europeus, vê-se agora numa posição sem limites, livre desse obstáculo. Os ingleses, fiéis às
ordens de Sua Majestade acataram as determinações régias de 16 de Maio de 1806,
favorecendo, inevitavelmente, a Madeira. A partir daqui todas, ou quase todas as
embarcações que se dirigiam aos portos franceses e castelhanos foram desviados para a
Madeira. Ademais os ingleses desfrutavam na ilha de uma posição preferencial, adquirida
pela sua argúcia nas operações comerciais e nos amplos privilégios e garantias ditados pelas
forças britânicas que ocuparam a ilha. O empenho britânico pela ilha era por demais evidente,
sendo a única explicação plausível para as duas ocupações da ilha pelas tropas inglesas.
O facto mais evidente desta conjuntura não foi a subordinação do madeirense à soberania
britânica, mas o que isso implicou em termos da consolidação da comunidade britânica na
ilha. As principais casas comerciais viram reforçada a sua posição, acabando por dominar o
mercado da exportação do vinho e de importação de artefactos e alimentos. O período que
decorre a partir da década de noventa do século dezoito é demarcado por uma acentuada
subida da produção do vinho, resultante da cada vez maior procura nos mercados americano e
indico. Foi precisamente no momento de 1794 a 1813 ficou para a História do vinho
madeirense, como o de maior solicitação do mercado, atingindo-se no último ano o maior
número de pipas exportadas, isto é cerca de 22.000.
Esta insistente procura do vinho madeirense esgotou os stocks de vinho em envelhecimento e
projectou uma expansão da cultura. O preço de venda era elevado e a aposta na vinha era
compensatória. A par disso a situação a conjuntura revolucionou as técnicas de vinificação,
que tiveram que se adaptar a esta cada vez mais procura; generalizou-se o uso das estufas e
das aguardentes. As primeiras produziam o rápido e prematuro envelhecimento dos vinhos,
enquanto as segundas possibilitaram o recurso a vinhos de baixa qualidade para o embarque.
Esta adulteração circunstancial do vinho seria fatal para a boa reputação do vinho Madeira,
repercutindo-se, mais tarde, de forma negativa com a abertura dos mercados europeus. Deste
modo a conjuntura emergente das guerras napoleónicas propiciou o momento mais alto da
economia viti-vinicola, enquanto a derrota de Waterloo(1815) foi o prelúdio de uma próxima
fatalidade para o vinho e a ilha.
Não conhecemos qualquer manifestação de agravo por parte da coroa inglesa a esta
inesperada mudança, mas de uma coisa temos a certeza, os ingleses nunca voltaram as costas
a esta ambição. E, quando o momento o propiciasse esta esperança acabava por tornar-se uma
realidade. Assim sucedeu com a situação conturbada de princípios do século dezanove, e,
mais perto de nós, com a célebre “revolta da Madeira” de Abril de 1931. Por algum tempo os
ingleses não se coibiram de fazer jus à sua pretensão ao proclamarem em Dezembro de 1807
a soberania britânica na ilha.

Subjacente a este fascínio britânico, dizem alguns, está a polémica questão da “lenda de
Machim”. Diz-se até que ela era reabilitada a cada momento que semelhante conjuntura fosse
realidade. Teria sucedido assim na década de sessenta do século dezassete com a promoção
feita pela “Epanáfora Amorosa” de D. Francisco Manuel de Melo , repetindo-se em 1814
com o benemérito Robert Page, que dizia ter encontrado o madeiro da vera cruz que encimou
a cova do par amoroso. Mas tudo isto não passará de mera coincidência, considerada por
alguns, como Álvaro Rodrigues de Azevedo e o Pe Eduardo Pereira, como de origem
duvidosa. Todavia nunca vingaram os argumentos históricos na reivindicação inglesa para a
posse do arquipélago. Ela aconteceu de facto, servindo-se de favores estabelecidos em
tratados, de uma paulatina conquista do comércio da sua maior riqueza, o vinho. Existiu na
verdade uma forte contestação a esta presença britânica na ilha, ideia que ganhou corpo no
século XIX. Uma destas está patente nas palavras do juiz do povo, que em 1770 os
responsabilizava pela situação de crise do comércio do vinho resultado da impunidade com
que actuavam na ilha.

O VINHO E AS COLÓNIAS

A relação da ilha com o mundo inglês deve ser encarada num âmbito mais vasto. Não foi um
jogo de interesses de um punhado de britânicos - náufragos na ilha, a exemplo de Machim -
versus o dos madeirenses, martirizados pela opressão destes. Tudo isto faz parte de um
processo mais vasto. As suas origens devem ser encontradas nos tentáculos que o império
dessa outra ilha definiu. O polvo surgiu com Cromwell e manteve-se até que o ideário
idependentista, revelado pelos náufragos do Mayflower, fez esboroar-se todo o vasto império.

Nesta estratégia imperial a Madeira foi uma pedra chave. Não era o seu clima ameno, nem
tão pouco a necessidade de uma antecâmara de adaptação ao tórrido calor tropical ou frio do
nevoeiro, que a valorizavam. Tudo isso foi um bónus a mais para o real empenho de fazer do
Funchal uma base para as incursões além-Atlântico. A ilha foi, primeiro para refresco dos
veleiros, depois para os vapores, sedentos de carvão. A estas condicionantes associa-se o
vinho. A sua necessidade na dieta alimentar de marinheiros, soldados e colonizadores é
inquestionável. O vinho, não só “alegrava o coração”, como também supria as deficiências
calóricas. Era assim que o encaravam os homens da época. Hoje, afirmar isto é uma afronta
aos princípios da saúde pública. Mas, o vinho da Madeira era mais do que isso. Ele, haviam-
no provado os portugueses, era o único que resistia ao calor dos trópicos e se adaptava muito
bem às constantes mudanças de temperatura. Tudo junto veio gerar a eterna aliança da
Madeira com o império britânico. O vinho e a posição geográfica da ilha são os principais
protagonistas. Esta aliança fez prosperar a ilha, encheu-a de latadas, de quintas e de ingleses,
sedentos do seu rubinéctar.

A afirmação e controlo do vital da vida económica - as relações externas- levou-os à


conquista de novas regalias e a afirmação no plano político, por meio de tratados ou de uma
interessada ligação às autoridades da ilha e do país. Neste caso a feitoria, ao nível local, as
autoridades consulares, no reino e ilha, conjugavam-se para o mesmo objectivo. A situação
dos ingleses na ilha era mesmo especial. Desde o século XVII a feitoria inglesa definiu um
estatuto à parte para esta comunidade. O seu estatuto permitia ter uma conservatória e juiz
privativos, situação que se manteve até 1812. Esse espírito de união da feitoria, que persistiu
até 1842, favoreceu a sua posição na sociedade madeirense e demarcou o fosso que existia
entre eles e os indígenas. A feitoria arrecadava o chamado tributo de nação, isto é uma
quantia sobre os produtos exportados pelos ingleses, que no caso do vinho era de 240 réis por
cada pipa, usado para auxílio mútuo, apoio aos serviços médicos e religiosos da comunidade.
Todos os anos no dia de Reis a comunidade retribuía os favores do governo da ilha na figura
do governador com uma oferta de 600$000, isto é metade do que auferia a dita autoridade de
vencimento durante um ano.
Muita dessa influência foi ganha nos bastidores do poder político e, muitas vezes, sob o olhar
complacente daqueles - os republicanos - que, à primeira vista, parecia ser seus inimigos. O
caso da família Hinton e o célebre engenho, é exemplo disso. Os relatórios exaustivos dos
consules, que surgem na ilha a partir de 1658, incidem sempre a sua atenção no plano
económico. Este ponto da situação, feito em Julho, era elaborado de acordo com as
orientações do Foreign Office. A incidência sobre os súbditos de Sua Majestade era, acima de
tudo, uma forma de controlo do trafico comercial de e para as suas colónias. A ilha era um
dos pontos dessa estratégia. Foi por isso que em princípios do século XIX a ilha foi ocupada
por duas vezes pelas tropas britânicas. Mais do que preservar os interesses britânicos na ilha
estava a necessidade urgente de impedir o avanço francês no Atlântico, o que poderia vir a
molestar os ainda importantes domínios coloniais.
A política, quase sempre expressa nas conversações diplomáticas e nos seus resultados finais.
Os tratados não eram um fim em si, pois faziam parte deste trama global. Eles, pela nossa
parte, sedimentavam a posição confortável dos ingleses, enquanto as leis de navegação do
século dezassete mais não faziam do que reforçar esses laços, definidos pelo mercantilismo
inglês.
A britanofobia madeirense, evidente em princípios dos séculos XIX e XX, e que se confunde,
por vezes, com a afirmação do liberalismo e republicanismo, não é nem deve ser entendida
como uma resposta a tal afirmação. Tudo muito simples. A crise económica - com especial
incidência no sector comercial- resultado de uma desestruturação do império britânico com a
perda das colónias, a partir da independência dos EUA, fez catalisar as vozes da revolta. O
inglês era o principal culpado, porque cortara o cordão umbilical que ligava a Madeira ao
Novo e Velho Mundo. Mas o mal ia mais fundo e filiava-se na secular ausência de uma
verdadeira burguesia comercial madeirense, capaz de protagonizar o papel dos súbditos de
Sua Majestade. Por isso, a Madeira foi o primeiro espaço a sofrer o impacto negativo da crise
do império.
Também a perseguição religiosa, embora no caso inglês existisse uma perfeita harmonia com
o estado, não deve ser entendida como mais uma forma de expressão da britanofobia dos
madeirenses, antes deve ser entendida como uma luta secular entre a igreja apostólica romana
e as novas igrejas protestantes. Outros casos, como o da irmã Wilson, revelam precisamente
isso. Aliás, a leitura de alguma da documentação disponível, em especial nos jornais, é
expressão disso. A perseguição religiosa sobrepõe-se à individual. No caso de Robert Kalley
o que estava em causa não era a pessoa e a sua origem mas as ideias que veiculava. Note-se
que o cirurgião de Glasgow chegou à ilha em 1838, atraído pelas vantagens do clima na cura
da tísica da sua esposa. Cá permaneceu entremeando o exercício da medicina com a pregação
religiosa, pois era pastor da igreja presbiteriana. A reacção sucedeu em cadeia e mobilizou a
igreja e o governo, levando à sua saída e fuga dos seus adeptos em 1846. É o início de um
périplo de algumas famílias madeirenses que passando pelas Antilhas terminou em Illinois.
Do outro lado, o lamento expresso nos documentos do Foreign Office, está a voz dos aflitos
que cá permanecem agarrados aos seus interesses e seduzidos pela sua beleza e clima. Mas. o
processo era irreversível e com a segunda guerra mundial todo o processo mudou. Não mais a
Inglaterra imperial. Não mais a ilha e o seu vinho e o porto para os vapores. Os grandes
transatlânticos, a aviação civil, fizeram dela uma miragem. Com isto mudou-se o
protagonismo da ilha e dos ingleses. Novos impérios definiram novos rumos. Novos desafios
ao paladar, novos líquidos para dessedentar, não marinheiros, lavradores ou exploradores,
mas aventureiros em busca de novas emoções ou noctívagos, para quem a noite é a
continuação do dia.

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