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VIEIRA, Alberto (1996), Os Ingleses a ilha e o vinho Madeira, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital,
disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/ingles.pdf, data da visita: / /
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OS INGLESES, A ILHA E O VINHO MADEIRA
Em 1873 Álvaro Rodrigues de Azevedo afirmava que “a Madeira está em grande parte
anglizada, na raça, nos costumes, a propriedade, no comércio, na moeda; e a língua inglesa é
aqui a mais falada depois da nacional. Se nós somos imprudentes em dizer isto, o que são os
governos se o ignoram? E pior, se não o ignoram, pois que o não evitam, o que serão? Só o
brio português nos mantém portugueses”.
Ainda em 1924 a mesma ideia persiste no testemunho presencial de Raul Brandão: ”Esta ilha
é um cenário e pouco mais-cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e
desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em
inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa”
O cosmopolitismo britânico, hoje cada vez menos evidente, era um facto que coroava todo
um processo histórico de forte impacto desta comunidade. Algumas das páginas mais
significativas da História da ilha escreveram-se pelas suas mãos e impulso. Note-se que os
ingleses foram os últimos (há quem diga que teriam sido os primeiros, baseando-se na
fatídica aventura de Machim) a serem envolvidos pelo fascínio da ilha. Primeiro foram os
portugueses a desbravar as clareiras e a abrir os caminhos para a presença europeia. Depois
surgiram os italianos, franceses e flamengos a fruir as suas riquezas. E só mais tarde vieram
os ingleses, atraídos pelo aroma da célebre malvasia. A fama da malvasia madeirense,
proclamada na obra de Shakespeare, foi o mote para a sua imposição ao paladar apurado da
aristocracia britânica, que se delicia até ao afogamento nos toneis cheios deste vinho. Na
verdade ela encantou a aristocracia e coroa inglesas, animando os serões dos súbditos de Sua
Majestade, dentro e fora da grande ilha.
Depois da malvasia o inglês veio a descoberta das infindáveis qualidades terapêuticas da ilha,
a raridade das suas espécies botânicas e, por fim, o deleite das infindáveis belezas do interior
da ilha, que passou a ser devassado a pé, a cavalo ou de rede. São inúmeros os testemunhos
desta realidade, captados na pena de alguns registos ou no traço de alguns exímios
aguarelistas e gravadores. Na verdade, os ingleses tiveram o mérito de descobrir duas
inigualáveis marcas que definem este rincão: o vinho e as belezas paisagísticas. E como tal
foram dos primeiros e principais fruidores destas qualidades. Por muito tempo a ilha foi para
eles apenas sinónimo disso. Depois a ilha, com a plena afirmação da hegemonia britânica no
Atlântico e Indico foi um pilar importante desse vasto império: ela foi base imprescindível
para o corso marítimo( a forma usual de represália nos mares) e porto obrigatório para o
abastecimento dos porões das suas embarcações de malvasia, tão procurada nas tabernas
londrinas como nas messes das hostes britânicas além-Atlântico.
Múltiplas e variadas razões fizeram com que o Funchal se afirmasse a partir do século XVIII
como um centro chave das transformações sócio-políticas então operadas, de ambos os lados
do oceano. Aqui deverá, sinalizar-se a forte presença da comunidade inglesa e o facto desta a
ter transformado num importante centro para a sua afirmação colonial e marítima, a partir do
século XVII. Esta vinculação da ilha ao império britânico é bastante evidente no quotidiano e
devir histórico madeirenses dos séculos XVIII e XIX.
No decurso do século XVIII a Madeira firmou a sua vocação atlântica, contribuindo para isso
o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho madeirense na sua
estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pelos
tratados de amizade, de que merece relevo especial o de Methuen (1703), foram os meios
que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo inglês.
Aos poucos, esta comunidade ganhou uma posição de respeito na sociedade madeirense que,
por vezes, se tornava incomodativa. A presença e importância da feitoria inglesa, no decurso
do século XVIII, é uma realidade insofismável. De acordo com isto poderá afirmar-se que a
Madeira funcionava para os ingleses como uma colónia que jogou um papel fundamental
entre a metrópole e as possessões norte-americanas das Índias Ocidentais e orientais,
assumindo uma dupla função para os ingleses: porto de apoio para as incursões no oceano e
abastecedor de vinho às embarcações e colónias.
As ilhas assumem na centúria oitocentista uma nova função para os Europeus. De primeiras
terras descobertas passam a campos de experimentação e a escalas retemperadoras da
navegação na rota de ida e regresso. Finalmente, no século XVIII desvendou-se uma nova
vocação: as ilhas como campo de ensaio das técnicas de experimentação e observação
directa, que comandam a ciência das "luzes", e escala das constantes expedições científicas
dos europeus. O enciclopedismo, as classificações de Linneo(1735) têm nas ilhas um bom
campo de experimentação.
O homem do século dezoito perdeu o medo ao mundo circundante e passou a olhá-lo com
maior curiosidade, deste modo como dono da criação estava-lhe atribuída a missão de
perscrutar os seus segredos. É esse impulso que justifica todo o afã cientifico que explode
nesta centúria. A insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a
Europa, mas foram os ingleses aqueles que entre nós marcaram um forte presença, sendo
menor a de franceses e alemãs.
Aqui são protagonistas as Canárias e a Madeira. Este protagonismo resulta da função das
mesmas como escala à navegação e comércio no Atlântico e para fora deste. Foi também aqui
que a Inglaterra estabeleceu a sua base para a guerra de corso no Atlântico. Se as
embarcações de comércio, as expedições militares cá tinham escala obrigatória, mais razões
assistem às científicas para essa paragem obrigatória. As ilhas pelo seu endemismo, própria
história geo-botânica, levavam obrigatoriamente a esse primeiro ensaio das técnicas de
pesquisa a seguir noutras longínquas paragens. Também as ilhas foram um meio revelador
dessa incessante busca do conhecimento da geologia e botânica. Instituições seculares, como
o British Museum, Linean Society, e Kew Gardens, chegam a enviar especialistas a proceder
à recolha das espécies. Importantes estudos no domínio da geologia, botânica e flora são
resultado deste presença fortuita ou intencional dos cientistas europeus.
Esta foi uma moda, no decurso do século XVIII, que levou a que algumas instituições
científicas europeias ficassem depositários de algumas dessas Colecções: o Museu Britânico,
a Universidade de Kiel, Universidade de Cambridge, Museu de História Natural de Paris. E,
por cá, passaram destacados especialistas da época, sendo de destacar John Byron, James
Cook, Humbolt, John Forster. A lista é infindável, contando-se, entre 1751 e 1900, quase
uma centena de cientista. Está aqui uma riqueza historial que ainda não foi devidamente
explorada.
James Cook escalou a Madeira por duas vezes(1768 e 1772), numa réplica da viagem de
circum-navegação, mas desta feita apenas com interesse científico. Os cientistas, Joseph
Banks, J. Reinold Forster, que o acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à busca
das raridades botânicas para a sua classificação e depois revelação à comunidade científica.
Na primeira viagem, que aportou ao Funchal a 12 de Setembro, foi muito bem recebido,
sendo homenageado com uma festa na casa do cônsul, Thomas Cheap.
Felizmente muitos cientistas e escritores - porque a doença era cega! - deverão ter sentido os
seus efeitos benéficos ou retornaram desiludidos à terra natal onde os esperava a morte.
Alguns ainda tiveram oportunidade de passar para o papel sob a forma de escrita ou gravura,
as suas impressões. Vem daqui muito do espólio hoje disponível na Casa Museu Frederico
de Freitas e Biblioteca Municipal.
Subjacente a este fascínio britânico, dizem alguns, está a polémica questão da “lenda de
Machim”. Diz-se até que ela era reabilitada a cada momento que semelhante conjuntura fosse
realidade. Teria sucedido assim na década de sessenta do século dezassete com a promoção
feita pela “Epanáfora Amorosa” de D. Francisco Manuel de Melo , repetindo-se em 1814
com o benemérito Robert Page, que dizia ter encontrado o madeiro da vera cruz que encimou
a cova do par amoroso. Mas tudo isto não passará de mera coincidência, considerada por
alguns, como Álvaro Rodrigues de Azevedo e o Pe Eduardo Pereira, como de origem
duvidosa. Todavia nunca vingaram os argumentos históricos na reivindicação inglesa para a
posse do arquipélago. Ela aconteceu de facto, servindo-se de favores estabelecidos em
tratados, de uma paulatina conquista do comércio da sua maior riqueza, o vinho. Existiu na
verdade uma forte contestação a esta presença britânica na ilha, ideia que ganhou corpo no
século XIX. Uma destas está patente nas palavras do juiz do povo, que em 1770 os
responsabilizava pela situação de crise do comércio do vinho resultado da impunidade com
que actuavam na ilha.
O VINHO E AS COLÓNIAS
A relação da ilha com o mundo inglês deve ser encarada num âmbito mais vasto. Não foi um
jogo de interesses de um punhado de britânicos - náufragos na ilha, a exemplo de Machim -
versus o dos madeirenses, martirizados pela opressão destes. Tudo isto faz parte de um
processo mais vasto. As suas origens devem ser encontradas nos tentáculos que o império
dessa outra ilha definiu. O polvo surgiu com Cromwell e manteve-se até que o ideário
idependentista, revelado pelos náufragos do Mayflower, fez esboroar-se todo o vasto império.
Nesta estratégia imperial a Madeira foi uma pedra chave. Não era o seu clima ameno, nem
tão pouco a necessidade de uma antecâmara de adaptação ao tórrido calor tropical ou frio do
nevoeiro, que a valorizavam. Tudo isso foi um bónus a mais para o real empenho de fazer do
Funchal uma base para as incursões além-Atlântico. A ilha foi, primeiro para refresco dos
veleiros, depois para os vapores, sedentos de carvão. A estas condicionantes associa-se o
vinho. A sua necessidade na dieta alimentar de marinheiros, soldados e colonizadores é
inquestionável. O vinho, não só “alegrava o coração”, como também supria as deficiências
calóricas. Era assim que o encaravam os homens da época. Hoje, afirmar isto é uma afronta
aos princípios da saúde pública. Mas, o vinho da Madeira era mais do que isso. Ele, haviam-
no provado os portugueses, era o único que resistia ao calor dos trópicos e se adaptava muito
bem às constantes mudanças de temperatura. Tudo junto veio gerar a eterna aliança da
Madeira com o império britânico. O vinho e a posição geográfica da ilha são os principais
protagonistas. Esta aliança fez prosperar a ilha, encheu-a de latadas, de quintas e de ingleses,
sedentos do seu rubinéctar.