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OS MOTIVOS QUE LEVARAM À


EXPANSÃO MARÍTIMA
PORTUGUESA: A POLÍTICA, A FÉ E
O IMAGINÁRIO MÍTICO
Diego Roggenbach

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A AT UALIZAÇÃO DO IMAGINÁRIO PORT UGUÊS EM T ORNO DA BUSCA DO PREST E JOÃO DURA…


Diego Roggenbach

Last ros de viagem - expect at ivas, projeções e descobert as port uguesas no Índico (1498-1554)
José Carlos Vilardaga

Sit iados. Os cercos às fort alezas port uguesa na Índia (1498-1622)


Andrea Dore
1

OS MOTIVOS QUE LEVARAM À EXPANSÃO MARÍTIMA


PORTUGUESA: A POLÍTICA, A FÉ E O IMAGINÁRIO MÍTICO

Diego Roggenbach,
2017

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar os principais motivos que levaram às grandes
navegações no século XV, empreendidas inicialmente pelos portugueses. O estudo discorre sobre o
tema baseado em três eixos principais: o interesse econômico; a religiosidade e o imaginário mítico. A
pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica, utilizando principalmente autores portugueses,
que em sua maioria defendem a tese de que foram vários os motivos que levaram os portugueses a
empreenderem as grandes navegações e não somente o ouro e as especiarias. Por isso, este artigo
apresenta uma visão mais ampla do contexto português do século XV que levou à política
expansionista, trazendo ao leitor leigo um conhecimento mais claro a respeito das mentalidades do
período, não se prendendo apenas nos interesses econômicos.
2

1. INTRODUÇÃO

A expansão marítima portuguesa teve seu início oficial em 1415, com a conquista
de Ceuta, uma posição muçulmana localizada estrategicamente no norte da África. A
partir dessa data, os portugueses passaram a investir recursos em uma longa
campanha de viagens pela costa africana, entrado em conflito com o Islã e com as
diversas tribos habitantes do litoral. Aos poucos, acabariam por formar um verdadeiro
“Império marítimo português”, termo que o historiador britânico Charles Boxer, notável
estudioso da história colonial portuguesa, utilizou para intitular um de seus livros1.
Essas viagens, no entanto, não surgiram sem planejamento e objetivos, mas foram
o resultado de uma série de acontecimentos que ocorreram em Portugal desde a sua
formação inicial, ainda na Idade Média, dando razões para que o reino português
voltasse seus interesses para o mar2.
Mas afinal, que razões foram essas e que fatos levaram Portugal a empreender os
descobrimentos, que não por acaso são apontados por muitos estudiosos como um
dos mais importantes acontecimentos da história da humanidade3?
Quando estuda-se a respeito dessa temática, costuma-se destacar os principais
motivos como econômicos, que são de forma muito simples apontados como a busca
pelo ouro e pelas especiarias, necessidades muito valiosas para os europeus do
século XV. Contudo, ao nos aprofundarmos no tema, podemos perceber que os
portugueses foram impulsionados por diversos motivos que os levaram a empreender
o projeto de expansão, sendo alguns mais importantes e outros desenvolvidos ao
longo da política expansionista conforme as necessidades surgiam. Um exemplo é o
caso da produção de açúcar, que mais tarde com a descoberta das ilhas do Atlântico
(Madeira, Açores, Cabo Verde, entre outras) tornou-se mais lucrativo do que o
esperado4.
De acordo com Boxer:
“(...) os impulsos fundamentais por trás do que se conhece
como a ‘Era dos Descobrimentos’ sem dúvida surgiram de uma mistura
de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos(...) Correndo
o risco de uma simplificação exagerada, pode-se, talvez, dizer que os

1
BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
2 FAUSTO, Boris. As causas da expansão marítima portuguesa e a chegada dos portugueses ao

Brasil. In: História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p.19.


3 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p.15.
4
SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1976, p.48.
3

quatro motivos principais que inspiraram os dirigentes portugueses (...)


foram: (1) o fervor empenhado na cruzada contra os muçulmanos; (2)
o desejo de se apoderar do ouro da Guiné; (3) a procura de Preste
João; (4) a busca de especiarias orientais”.5

Ora, podemos ver que os impulsos para a investida contra o norte da África e
posteriormente as viagens de descobrimento foram variados. É claro que não
podemos diminuir o peso da necessidade econômica, que interessava tanto aos
políticos do reino quanto aos navegadores e os integrantes da nobreza, como o
famoso Infante Dom Henrique, que com suas descobertas e investimentos no ultramar
enriqueceu e ganhou a tão esperada dignidade de cavaleiro cristão 6 (conquistada
preferencialmente no ardor da guerra contra os infiéis7) Contudo, outras motivações
tiveram seu papel, ora de justificar a guerra contra os muçulmanos, como é o caso da
religiosidade, que retomava o ideal de cruzada e “guerra santa”, ora do imaginário,
que resgatava os mais variados mitos e crenças da Idade Média, despertando nos
navegadores o desejo de aventura8.
Dessa forma, podemos apontar alguns eixos que guiarão essa pesquisa,
objetivando apresentar os principais motivos que impulsionaram as viagens
portuguesas, partindo de uma análise de cada item. Assim, utilizando-se de diversas
fontes bibliográficas sobre a temática, busca -se chegar a uma compreensão mais
geral do contexto expansionista dos século XV a partir de três eixos relevantes: o
“econômico”; “a religiosidade” e o “imaginário mítico”, que em proporções diferentes,
porém não menos importantes, influenciaram os portugueses nesse importante evento
histórico.

5 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p.34.


6 ALMEIDA, Fortunato de. História de Portugal – Tomo II. Coimbra: Imprensa da DIN, Universidade,
1923, p.23-24.
7 Infiéis: termo pejorativo utilizado pelos cristãos para se referir aos muçulmanos e vice versa.

Também eram comuns as expressões mouros e sarracenos.


8 FAUSTO, Boris. Op cit, p.22.
4

2.1 O INTERESSE ECONÔMICO

No período que se tem início a época das grandes navegações, em meados do


século XV, as especiarias tornaram-se o grande símbolo do empenho comercial além
mar. Por isso, muitas das viagens portuguesas foram marcadas pelas tentativas de
chegar à Índia, onde o comércio de especiarias asiáticas era muito intenso.9 O ouro
era outro motivo das viagens de descoberta pelo continente Africano, que aos poucos
tornou-se uma grande fonte de exploração para a coroa portuguesa. Mais tarde, o
tráfico de escravos também resultou um lucrativo comércio, à medida que os
navegadores empreendiam suas conquistas pelo litoral.
Mas afinal, por que os portugueses tomaram essa iniciativa de buscar esses
recursos em lugares tão desconhecidos?
Primeiramente devemos considerar que o reino de Portugal se unificou muito
cedo, mais especificamente em 1140. Porém, mais importante que a delimitação de
seus territórios, foi a centralização monárquica, que pode apontar Portugal como um
dos primeiros reinos modernos europeus, já que desenvolveu um poder real
centralizado por volta do século XIV, quando importantes reinos europeus ainda eram
assolados pela fome, guerra e pela peste.10 Mas qual o significado disso em relação
à política expansionista?
Quando se tem início em Portugal a Dinastia de Avis, após vários conflitos
internos e com Castela por interesses de sucessão ao trono real, o novo rei D. João I,
mestre de Avis, inicia uma política centralizadora, que busca unir o povo e consumar
sua autoridade. Esses fatos tem grande importância na política comercial portuguesa,
pois a centralização monárquica e a extinção dos conflitos com os reinos cristãos
vizinhos permite que D. João I estabilize a economia e possa financiar as expedições
marítimas.11
Assim, ao nos questionarmos sobre a importância dada ao investimento em
viagens de descobrimento, devemos considerar que no final da Idade Média Portugal
ainda sofria com a escassez de recursos básicos. Isso decorria da dificuldade de
plantio, visto que o solo português não tinha condições ecológicas favoráveis às
necessidades do reino. A maior parte do solo era muito rochoso e íngreme, as chuvas

9 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p. 49.


10 RUCQUOI, Adeline. Op. cit. p. 198.
11 Ibid. p.200.
5

eram irregulares e haviam poucas estradas adequadas para o comércio interno.


Somado a isso, Portugal tinha uma população muito reduzida, o que dificultava a
economia.12
Portanto, visto que o território português passava por dificuldades de produção
própria, surgiu a necessidade da busca de recursos no exterior. Ora, Portugal tem
uma posição privilegiada para o mar, já que praticamente todo o seu território ocidental
é banhado pelo oceano. Assim, facilita-se o empenho do poder real em investir em
viagens marítimas, que buscam suprir as necessidades econômicas e comerciais do
reino.
Os bens mais cobiçados pelos portugueses eram o ouro, as especiarias e mais
tarde, os escravos. O ouro tinha tanto o atrativo comercial quanto ornamental. Era
ainda a principal moeda de troca, inclusive na compra de especiarias que circulavam
pela Europa vindas do Oriente. Já no que concerne à ornamentação, era utilizado nos
palácios, igrejas, em roupas e utensílios de adorno.13
O interesse pela exploração do comércio de ouro e especiarias Africanas
começa efetivamente por volta de 1442, quando os portugueses deixaram de ver a
África como apenas um caminho para as Índias e passaram a empreender várias
viagens de descoberta ao sul da costa ocidental.14 Logo, os exploradores informaram-
se sobre o comércio realizado até então pelos habitantes de diversos reinos e tribos
da região com árabes, que levavam o ouro em pó até o Norte da África e passavam
para a Europa. 15 A estratégia utilizada pelos portugueses foi a construção de feitorias
na costa Africana, que nada mais eram que fortes protegidos que inicialmente
recebiam o ouro dos habitantes locais (e aos poucos, os escravos) trocando –o por
armas, bebidas e utensílios. Dessa forma, os portugueses foram desviando o ouro
dos comerciantes árabes e lucrando com o transporte e comércio desse ouro para a
Europa, que na época passava por uma escassez do produto. O principal forte foi o
de São Jorge da Mina, que conseguiu desviar o ouro vindo da Guiné, que antes era
transportado e comercializado por caravanas árabes em rotas terrestres no deserto
do Saara.16

12 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p. 18.


13 FAUSTO, Boris. Op cit, p.25.
14 SÉRGIO, António. Op cit. p.46.
15 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p. 44.
16 Ibid. p.44.
6

O interesse dos portugueses pelas especiarias reflete a importância que estes


produtos raros tomaram no cenário europeu. Isso decorre ainda da Idade Média,
especialmente pela necessidade de conservação e tempero dos alimentos,
principalmente a carne bovina, que tinha uma conservação insuficiente para as
necessidades, geralmente conservada com sal, defumação ou exposição ao sol.17
Visto a demanda cada vez maior das especiarias vindas do oriente, geralmente
comercializada pelos árabes e venezianos, estas eram em geral um produto caro e
difícil de se encontrar na Europa.
O objetivo dos portugueses era buscar essas especiarias diretamente na Índia,
tomando o monopólio do comércio dos árabes e venezianos, que até então distribuíam
esses produtos para os europeus.18 No entanto, as descobertas na África ao longo da
primeira metade do século XV já começaram a render aos portugueses o comércio de
alguns tipos de especiarias próprios do continente, especialmente a malagueta e de
certa forma o açúcar, popularizado a partir da alta produção iniciada nas Ilhas do
Atlântico.19
Apesar dos esforços de encontrar o caminho para a índia ao longo do século
XV, somente no final deste é que os portugueses conseguiram chegar à Calicute, com
a viagem de Vasco da Gama, entre 1497 e 149920. Apesar das dificuldades
encontradas, especialmente pela distância e falta de informações claras sobre como
adquirir as especiarias, somente compradas com ouro em espécie, os portugueses
finalmente iniciaram sua conquista comercial no oceano Índico, permitida graças aos
descobrimentos e sucessos econômicos no continente Africano.

2.2 A RELIGIOSIDADE

“Os reis da Península Ibérica, no decorrer da Idade Média, não pensavam no


poder em termos de fixação territorial, como o puderam fazer os seus vizinhos
do Norte, que chegaram a unir indissoluvelmente uma dinastia e um território.
O poder dos príncipes hispânicos vinha lhes sobretudo de uma missão divina,
a da reconquista da península aos infiéis para entregar à cristandade.” 21

17 FAUSTO, Boris. Op cit, p.25.


18 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Colonialismo. In: Dicionário de
Política – Volume I. Brasília: Unb, 1998, p.182.
19 SÉRGIO, António. Op cit. p.46-47.
20 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p. 53.
21 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995,

p.215.
7

De diversas formas, podemos perceber ao estudarmos as grandes navegações


o caráter religioso que a envolve. Diferente dos objetivos econômicos de Portugal, o
discurso religioso é utilizado mais como uma justificativa para os atos praticados pelos
exploradores e conquistadores além-mar. Muitas vezes, o ouro, os escravos e as
especiarias são apresentados pelos discursos inflamados apenas como uma
consequência de um “bem maior” realizado pelos portugueses: o de levar a fé aos
pagãos e infiéis e introduzi-los no cristianismo. Ora, essa mentalidade acabava por
justificar a guerra contra os muçulmanos como uma missão divina, um serviço
prestado a Deus22.
Esse discurso, no entanto, não foi imposto pelos dirigentes portugueses
somente na necessidade da expansionista. Pelo contrário, ele foi desenvolvido ao
longo dos séculos, herdado do contexto Medieval europeu, decorrente principalmente
da época das Cruzadas.
Primeiramente deve-se destacar que o período Medieval no Ocidente, que se
estende desde 476 d.C. até 1453 d.C. (datas representadas pela queda do Império
Romano no Ocidente e a queda de Constantinopla, respectivamente)23 é marcado
pela ascensão do Cristianismo, que mesmo em meio a disputas com o poder real e a
constante dedicação papal em manter a unidade, torna a Igreja a “instituição
dominante da Idade Média”24. Dessa forma, no auge da Idade Média, por volta do
século XII, a religião não era uma parte separada da sociedade, mas estava presente
em todos os Âmbitos da vida das pessoas. Como afirma o historiador Jérôme Baschet,
“a Idade Média ignora toda a autonomização do domínio religioso, pois a Igreja como
comunidade, é a sociedade em sua globalidade, enquanto, como instituição, ela é sua
parte dominante, que determina suas principais regras de funcionamento.” 25 Dessa
forma, a mentalidade religiosa abrange todos os meios da sociedade, legitimando
tanto a paz como a guerra, de acordo com as necessidades da cristandade.
A “reconquista”, termo que designou a guerra travada pelos cristãos para
recuperar as terras tomadas pelos muçulmanos desde o século VIII, foi uma
continuidade das cruzadas. Na mentalidade religiosa dos portugueses e espanhóis,
estes estavam prestando um serviço a Deus e lutando uma guerra justa, pois seu

22
Ibid. p.32.
23 FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo, 2001.
24 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo:

Globo, 2006.
25 BASCHET, Jérôme. Op. cit. p.168.
8

objetivo era devolver esse território à cristandade.26 A guerra de Reconquista foi


intensificada pelos portugueses em meados do século XIII, quando muitas expedições
militares foram realizadas no sul da península Ibérica, expandindo aos poucos o
território português ao mesmo tempo que expulsava os muçulmanos da Europa27.
No século XV, o termo “reconquista” foi largamente utilizado pelos portugueses
como justificativa para suas missões no norte da África. Segundo os discursos
religiosos que procuravam legitimar a guerra contra os muçulmanos além-mar, a
expansão para o norte da África e mediterrâneo nada mais era que uma continuidade
do empenho cruzado, já que essas terras eram cristãs antes do Islã se estabelecer e
converter os habitantes da região mediterrânea. Era ainda, uma forma de vingança
pela ocupação muçulmana da península Ibérica, que estabeleceu-se desde o século
VIII, só sendo completamente reconquistada em 1492, quando os espanhóis
retomaram Granada, ao sul da Espanha.28
Ao escrever sobre o projeto da conquista de Ceuta, planejado ainda antes de
1415, Fortunato de Almeida diz:

“Repelir os mouros do Algarve de além – mar, como dois séculos antes os


expulsavam da nesga portuguesa da península, era justamente reatar a
tradição nacional de defesa da civilização cristã contra o islamismo 29. A ideia
de difundir o cristianismo nas paragens africanas e talvez o desejo (...) de
reconhecer a costa ocidental da África, deviam contribuir para a aprovação
do projeto.”30

Dessa forma, há no projeto de expansão um desejo de unir novamente os


cristãos nos seus interesses, especialmente no que se refere a uma luta contra os
muçulmanos, que tem seu caráter religioso como base para defender a guerra como
justa e necessária para expandir a fé cristã. Ora, esses discursos além de legitimar as
missões portuguesas, mobilizam toda a sociedade para contribuir com a guerra,
especialmente com ofertas destinadas a esse fim.31
Por conseguinte, é interessante vermos como uma série de bulas eclesiásticas
são utilizadas pelos portugueses para legitimar suas expedições e conquistas,

26 BERTOLI, André Luiz. Guerra Legitimação e Poder no norte da África. As fontes portuguesas
(1415-1471). Revista eletrônica Roda da Fortuna. Volume 2, número 1-1, pp. 335-353. Disponível em:<
http://www.revista-ped.unifei.edu.br/> Acesso em: 01 de maio de 2014, p.342.
27 RUCQUOI, Adeline. Op. cit. p. 196.
28 BERTOLI, André Luiz. Op cit. p.342.
29 Grifo meu.
30 ALMEIDA, Fortunato de. Op cit. p.23-24.
31 RUCQUOI, Adeline. Op. cit. p. 217.
9

principalmente no que se refere a uma retomada de ideais cavalheirescos e à ideia de


cruzada, ou guerra santa. Isso é verificado ainda em 1415, ano da conquista de Ceuta,
quando foi promulgada uma “bula de Cruzada pelo Frei João de Xira”32, onde este
afirma que a luta contra os muçulmanos é uma “Guerra Santa, com caráter redentor;
por outro, é uma guerra justa, uma vez que os cristãos não fazem mais do que
recuperar territórios usurpados”33.
Isso é salientado ainda em diversas bulas papais expedidas por Roma a pedido
dos reis portugueses ao longo do século XV. Estas são mais frequentes no período
de viagens do Infante D. Henrique, onde este é exaltado pelo seu “zelo apostólico de
soldado de Cristo e defensor da fé”34. As principais bulas desse período foram a Dum
diversas (1452); a Romanus Pontifex (1454) e a Inter caetera (1456)35.
Em resumo, as três bulas procuram legitimar a guerra contra o Islã, autorizando
os reis portugueses a atacar e escravizar os infiéis e pagãos, além de tomar posse de
suas terras e bens. As bulas apresentam ainda, uma espécie de justificação ao
imperialismo português, pois não medem esforços ao descrever uma longa descrição
das obras do Infante Dom Henrique, apresentando-as simplesmente como
evangelizadoras, ocultando o caráter militar das expedições portuguesas. Por fim, o
essencial nessas bulas é a autoridade da igreja dada aos portugueses para
empreender a guerra. De acordo com Bertoli:

“No que diz respeito à manutenção do processo de legitimação da guerra


contra o muçulmano e das conquistas territoriais lusitanas ao nível da
cristandade, os Papas do século XV favoreceram reis, infantes, nobres e o
clero português com a concessão de Bulas, o que também denota uma
continuidade nas medidas que legitimavam a guerra contra o Islã.” 36

Ora, com a autoridade legitimada por Roma, muitos cristãos tinham consigo a
confiança de estar servindo à Deus nas guerras de reconquista e, caso morressem
em batalha, tinham a salvação e o paraíso garantidos.37

32 ZURARA. Apud BERTOLI, André Luiz. Op cit. p.343.


33 ROSA. Apud BERTOLI, André Luiz. Op cit. p.343.
34 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p.37.
35 Ibid.p.37.
36 BERTOLI, André Luiz. Op cit. p.344.
37 RUCQUOI, Adeline. Op cit. p. 217
10

2.3 O IMAGINÁRIO MÍTICO

Além dos interesses econômicos e religiosos que envolveram a política


expansionista portuguesa, o imaginário mítico teve um papel muito importante no que
concerne às mentalidades e visão de mundo predominante até então. Herdado da
Idade Média, o imaginário português sobre o mar e o desconhecido, ainda era
carregado de mitos, lendas e medos, que por vezes influenciaram nos interesses
portugueses. O medo do mar, causado principalmente pelas lendas de este ser
intransponível ao se chegar a uma certa distância, criaturas monstruosas que nele
habitavam, entre outros temas, dificultava as descobertas. Por outro lado, esses
mesmos mitos incentivaram o desejo de aventura, que impulsionou exploradores a
viajarem para lugares desconhecidos até então.
O gosto pela aventura se dava muitas vezes pelo desejo de descoberta dos
lugares desconhecidos, ou mesmo para comprovar os mitos que atribuíam a estes
como lugares fantásticos, cheios de criaturas exóticas e riquezas muito cobiçadas.38
Junto a esse desejo que impulsiona a descoberta, os europeus ainda carregam
consigo o medo em relação do mar. Segundo Fonseca, “Em certa medida, o oceano
está associado à ideia do medo; com efeito, ele é o espaço aberto de onde – para
além de certo limite – é impossível regressar”39 É justamente esse medo que impele
alguns europeus a buscarem o chamado “paraíso terrestre”, que segundo crenças
estaria no oriente, em alguma parte da Índia40. Essa busca pelo paraíso acaba por
incentivar os cristãos do século XV, pois além de lá poderem encontrar as maiores
riquezas e maravilhas do mundo, alcançariam principalmente a salvação41.
Essa busca pelo paraíso é baseada principalmente nos relatos de viajantes,
como São Brandão, que teria partido em uma viagem em busca do paraíso e do
inferno por volta do século VI, relatando os perigos e os méritos espirituais que
alcançou com os sofrimentos no caminho42 e a viagem de Santo Amaro, que teria
viajado com 16 companheiros em busca do paraíso, passando também por perigos e
descrevendo diversos lugares cheios de criaturas misteriosas, como uma ilha habitada

38 FAUSTO, Boris. Op cit, p.23.


39 FONSECA, Luís Adão da. O imaginário dos navegantes portugueses dos séculos 15 e 16. Porto:
Estudos Avançados, 1992, p. 42.
40 LE GOFF, Jacques. Uma Longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p.299.
41 FONSECA, Luís Adão da. Op. cit. p. 45.
42 Ibid.p.44.
11

por leões e outra rodeada de monstros marinhos que devoravam corpos de


navegadores naufragados43. De acordo com Almeida, “(...) em meio à documentação
monástica portuguesa, a viagem de Santo Amaro surpreende não apenas pela
semelhança com a viagem de São Brandão, mas pelo fato de surgir registrada em
português e não em latim.”44 Isso pode ter contribuído para a difusão dos relatos do
santo entre os navegadores portugueses e sua permanência no imaginário nos
tempos dos descobrimentos.
Outro fator importante no imaginário português do século XV foi o mito do
Preste João:
“A lenda do Preste João foi divulgada na Europa no tempo da 1° cruzada, em
finais do séc.XI. A necessidade de aliados favoreceu a crença, entre os
cruzados, de que iriam receber o auxílio de um poderosíssimo soberano,
vindo da Ásia, e que atacaria o Islã pelas costas. Ora, começou a circular
uma mensagem dirigida ao imperador Manuel Coménio, de Bizâncio, que
alimentava tal esperança.”45

A carta logo foi traduzida para o latim e difundida pela Europa. Vários fatores
influenciaram o seu sucesso entre os cristãos: Primeiramente, porque oferece auxílio
de um poderoso exército para combater os muçulmanos no Oriente em uma época de
cruzada; depois, a carta se desenrola em uma descrição de um reino cristão
paradisíaco localizado na Índia, cheio de riquezas muito cobiçadas, como o ouro, as
pedras preciosas e a pimenta em abundância; por último, destaca que esse reino
exótico é governado por um poderoso rei e sacerdote cristão, o Preste João.46
Apesar da descrição romântica, a carta foi considerada por muito tempo como
um documento pelos europeus, e não um escrito fictício. 47 Isso acaba por prolongar
a crença de que o cobiçado “paraíso terrestre” estaria localizado na Índia, o que
explica a constante busca dos navegadores cristãos pelas riquezas e especiarias
indianas.48
A esperança de encontrar o reino do Preste João, possível aliado militar e
comercial contra os muçulmanos, acabou por despertar interesse nos exploradores
portugueses do século XV-XVI, na época da expansão marítima. Isso é demonstrado

43 ALMEIDA, Neri de Barros. Em busca do Paraíso. In: História Viva: Grandes Temas, n°14. São
Paulo: Duetto, s/d.p.34
44 Ibid.
45 VILHENA, Maria da Conceição. O Preste João: Mito, Literatura e História. Ponta Delgada:

Arquipélago - História, 2002, p. 627.


46 Ibid, p.628.
47 LE GOFF, Jacques. Op. cit. p.297.
48 Ibid, p.297.
12

nas viagens de vários exploradores, como a do Infante D. Pedro (1425-1428); D.


Afonso (1410) e Constança Basiléia (1438-1439). 49
Na segunda metade do século XV, em meados de 1480, o rei português D.João
II prosseguiu com a busca pelo reino do Preste João, enviando dois embaixadores ao
Oriente: Pero de Covilhã e Afonso de Paiva.50 No entanto, tinha –se ainda uma ideia
muito vaga da localização da Índia, e durante a viagem os dois embaixadores se
separaram e Pero de Covilhã se deslocou para a Abissínia (Etiópia), na África, após
receber informações que o reino do Preste João agora se localizava lá. Ao chegar ao
destino, o embaixador foi recebido com honras pelo rei etíope, contudo, casou-se e
foi impedido de deixar o país.51
Apesar disso, essas viagens renderam um conhecimento das rotas comerciais
do mediterrâneo, proporcionando que mais tarde outros viajantes fossem enviados a
Índia com informações mais claras para estabelecer um comércio direto de
especiarias entre Portugal e o Oriente.
Por fim, a busca pelo Preste João acabou por impulsionar os exploradores
europeus a prosseguir com suas viagens, animados pela esperança de encontrar um
poderoso aliado contra os muçulmanos e um rico comércio de especiarias, tão
almejadas pelos europeus do século XV. O mito pôde oferecer ainda uma expectativa
religiosa, pois quem o encontrasse, descobriria também o “paraíso terrestre”.

3. CONCLUSÃO

A expansão marítima portuguesa foi um dos maiores acontecimentos da


história. Isso é reforçado não só pelo comércio que movimentou a economia europeia
com o resto do mundo, até então pouco conhecido, mas pelas descobertas que
proporcionou, entre elas a do Brasil.

Contudo, por meio desta pesquisa, conseguimos perceber como as


possibilidades de estudo sobre o tema são vastas, podendo abranger não só o
interesse econômico de Portugal, mas o contexto político em que se desenvolveu o
projeto expansionista, que ao estabilizar-se após o término das guerras com os reinos
vizinhos, pôde investir na formação de uma economia voltada para a navegação. Com

49 ALMEIDA, Neri de Barros. Op cit .p.41.


50 Ibid.
51 BOXER, Charles Ralph. Op cit. p.49.
13

o surgimento da dinastia de Avis, Portugal tornou-se um dos primeiros reinos


Medievais a centralizar seu poder, desenvolvendo uma burocracia real e como
consequência uma melhor organização política e econômica.

Como pudemos ver, não só os interesses econômicos influenciaram a


expansão marítima, pois a religiosidade ainda tinha muita força nas mentalidades dos
navegadores. Isso serviu não só para dar ânimo aos exploradores portugueses, que
tinham a esperança de alcançar graças por meio das conquistas oferecidas à
cristandade, mas também para justificar a guerra contra os muçulmanos e a tomada
de suas terras, permitidas pelos reis e legitimadas pelas bulas papais, que ofereciam
indulgências aos soldados cristãos.

Por último, o imaginário mítico pôde despertar nos exploradores portugueses o


desejo de aventura, de descoberta e a esperança de alcançar o “paraíso terrestre”.
Isso foi reforçado ainda pelo mito do Preste João, que durante as explorações
portuguesas no século XV, ofereceu a expectativa de encontrar esse reino
paradisíaco, rico em ouro, especiarias e governado por um rei cristão, possível aliado
contra os muçulmanos no Oriente.

Por fim, esta pesquisa não deixa de ser uma das possibilidades de análise
desse importante período histórico, que em sua complexidade pode oferecer ao leitor
uma visão geral sobre o contexto português do século XV que levou à expansão
marítima.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA, Neri de Barros. Em busca do Paraíso. In: História Viva: Grandes Temas,
n°14. São Paulo: Duetto, s/d.

ALMEIDA, Fortunato de. História de Portugal – Tomo II. Coimbra: Imprensa da DIN,
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