Você está na página 1de 2

CRIME E CASTIGO HOJE

Jorge Alexandre Alves1

Nesse começo milênio, as discussões sobre a questão da violência urbana foram


intensificadas e retornaram (se é que saíram) à ordem do dia, sobretudo após uma seqüência
de eventos trágicos ocorridos no Rio de Janeiro ano passado, pausadas pelo aparato de
segurança que tranqüilizou a cidade durante o Pan, culminando com a polêmica chegada em
cartaz do filme “Tropa de Elite”. O ano de 2007 começou com uma cena chocante, vista por
várias pessoas (e descrita na imprensa) em Janeiro daquele ano, que vitimou um menino de
seis anos numa região da cidade, Osvaldo Cruz (outrora conhecida apenas por sua
identificação com as raízes do samba carioca), detonando uma série de reações das “pessoas
de bem”, estarrecidas pela atrocidade que levou à morte daquela criança.
Em Julho de 2008, um carro ficou na linha de tiro numa rua de classe média na Tijuca.
Um menino de três anos, que estava no automóvel com a mãe, foi alvejado e morreu. Segundo
consta, os disparos foram realizados pela polícia, que havia confundido aquele carro com o dos
bandidos. Novamente todos se escandalizaram. Engraçado que ninguém faz muito alarde
quando essa violência atinge crianças e jovens nas periferias e morros da cidade ou da
Baixada Fluminense...
Culpa de quem? O que fazer? Como evitar? Fizemos todas as perguntas e tivemos
respostas de todo tipo, em diversos ambientes. Mas, naquelas ocasiões, nem tivemos tempo
direito para organizar a discussão porque, mal terminamos de lamentar a tragédia de Osvaldo
Cruz, fomos informados que mais três crianças foram mortas, vítimas de balas perdidas (ou
seriam balas achadas?...) provenientes dos confrontos ocorridos cidade afora. E o ano foi por
aí, de confronto em confronto, de morte em morte, de tragédia em tragédia... Em 2008 ocorreu
o mesmo, mais tantos forma mortos após o episódio da Tijuca...
Isso tudo deve significar algo em relação a nós mesmos, enquanto grupo social.
Entretanto, se observarmos atentamente os dados e as pesquisas sobre a violência, veremos
que elas nos dirão algumas coisas que não gostaríamos de ouvir.
Um dado da Associação Federal dos Magistrados revela que existem cerca de 550 mil
mandados de prisão não cumpridos no Brasil. Esse número equivale a quase 125% da
população carcerária em nosso país. Essa gente é oriunda das camadas mais baixas da
sociedade, a maioria sequer completou o Ensino Fundamental. Em outras palavras, são
miseráveis e pobres. O sistema penitenciário é uma selvageria tal que, em certas situações, o
único critério de encarceramento dos presos no Rio de Janeiro é o de pertença a essa ou
aquela facção criminosa, independentemente do crime cometido. A razão, dizem os
responsáveis, é a segurança (sic) do preso, cuja tutela e a integridade deveriam ser garantidas
pelo Estado, que acaba por delegar essa tarefa aos grupos criminosos dentro das prisões...
Surreal!
Uma pesquisa feita pela antropóloga Alba Zaluar, da UERJ, há algum tempo, mostrou
que, numa comunidade carente com 70 mil moradores, apenas 2700 estavam envolvidos com
o crime. Um desavisado, atendo-se ao número, o considerará significativo, mas em termos
relativos, tal valor representa apenas 3,85% da população dessa comunidade. Todavia, as
medidas repressivas se concentram nos lugares onde vivem os mais pobres, que ficam no
meio do fogo cruzado entre policiais, bandidos e, mais recentemente, milícias.
A contradição está posta: Existe um discurso oficial das pessoas “civilizadas”,
politicamente correto, defendendo a punição para promover a reinserção do transgressor, a
reeducação moral do delinqüente para que, ressocializado, retorne ao convívio social. Porém,
na prática, a sociedade entende o criminoso enquanto resto, escória, lixo que não tem como
ser aproveitado ou reciclado, a cadeia não reintegra nem recupera ninguém dada a sua
condição precária. Por sua vez, os órgãos públicos são duplamente ineficientes: por não
gerenciarem coerentemente as suas penitenciárias e por não investigar nem prender um
número significativo de delinqüentes. Logo, o Estado é autoritário e elitista, ainda mais por
1
Sociólogo e professor de sociologia e filosofia no Colégio Estadual Heitor Lira, da Escola Pio XII e do
CEFETQuímica.
concentrar a repressão à criminalidade nas áreas mais pobres, agindo arbitrariamente contra
os excluídos. Mesmo assim, queremos ver os facínoras na cadeia, não para recuperá-los, mas
para castigá-los
Dessa maneira, para além da redução ou não da maioridade penal, do maior rigor na
aplicação da punição ao criminoso, seria mais coerente avaliar o que se quer com a prisão,
qual a função da penalidade aplicada e quem queremos prender (apenas os jovens pobres?).
Da perversidade do sistema, que já não consegue mais dar conta do nosso desejo passional
de castigar o transgressor; da precariedade e da incoerência de propósito das instituições
responsáveis pela nossa segurança é que surge de forma vil a impunidade que nos provoca
um enorme sentimento de impotência, deixando a todos nós acuados, sem saber o que fazer.
Atualmente, a repercussão sobre “Tropa de Elite” demonstra toda a hipocrisia social
diante dessa realidade que cada vez mais nos entorpece. Às vezes, literalmente. O filme não é
fascista (O capitão Nascimento talvez seja...), é apenas um olhar sobre essa realidade a partir
da visão de um policial que simbolicamente representa um segmento especializado da PM.
Talvez o grau de correspondência do enredo filmado com a realidade não seja o mais
importante nessa reflexão sobre a violência, até porque, como toda boa obra de ficção, a
narrativa de “Tropa de Elite” constrói estereótipos que prendem a atenção do espectador. No
caso dessa obra, temos fortes imagens que, embora possam conter algumas distorções, se
tornam agora emblemáticas de grupos presentes na nossa sociedade: A polícia (convencional
e o BOPE), a ONG, o traficante, o “estudante burguês”, a classe média...
O mais significativo no filme é o seu impacto nas pessoas; são as reações produzidas
na platéia a partir da ação dos “caveiras” liderados pelo protagonista da história. O que salta
aos olhos é a quase mitificação do capitão Nascimento – alçado por uma parcela da população
a categoria de redentor da sociedade, tamanha foi a identificação que ele provocou em muitas
“pessoas de bem”. Esse fenômeno reflete bem a grande contradição entre aquilo que é
oficialmente proposto em termos de punição (e todos nós assinamos embaixo) ao criminoso e
o que efetivamente se quer que faça.
Contudo, é também desse mesmo estado de coisas, das nossas próprias incoerências
que permitimos surgir, como produtos não previstos da nossa reação indignada pela “ordem”, a
banalização da violência, a brutalidade da morte, a selvageria daqueles que, punidos pelas
contradições sociais (não é a miséria que provoca a violência, mas a falta de perspectivas
gerada pelas diferenças de classe e pela ineficiência do poder público), tornam-se algozes
daqueles que os discriminam e os excluem. Obviamente isso não significa não puni-los, mas
tornar a punição efetiva, ocorrendo de fato para qualquer delinqüente. Mais que isso, caberia
torná-la eficaz, capaz de produzir o efeito desejado. Mas qual é mesmo o efeito desejado?
Enfim, discutir a criminalidade é também refletir sobre a natureza do castigo, da sanção
e avaliar o tamanho da nossa hipocrisia. Além disso, cabe discutir também a qualidade e a
finalidade das nossas instituições de segurança pública, do sistema prisional e da justiça.
Afinal, o que nós, como sociedade, desejamos com as punições aos transgressores? Que tipo
de ação queremos de nossas polícias? Em outras palavras, que sociedade é essa e que
sociedade pretendemos ser?

Você também pode gostar