Você está na página 1de 5

O homem que tinha uma árvore na cabeça

… continuação

Distraído como era, não reparou certa vez que o tronco da árvore que tinha escolhido
era um corpo de homem e que esse homem era Arbóreo. Por isso, foi com enorme surpresa que
ouviu sair do meio dos ramos e das folhas largas uma voz que dizia:
– Não se assuste que eu não sou uma árvore igual às outras. Sou um homem-árvore.
Kepler imaginou que alguém lhe estava a pregar uma partida. Mas quem seria, se em
Praga praticamente não conhecia ninguém?
– Vamos deixar-nos de brincadeiras – sugeriu ele – que eu estou com pouca
disposição para entrar nelas.
– Não se trata de uma brincadeira – esclareceu Arbóreo. – Eu tenho uma árvore na
cabeça e talvez o senhor, que tem ar de ser pessoa de ciência, me possa ajudar a decifrar este
mistério.
Kepler olhou com atenção e verificou que não se tratava, na realidade, de uma
partida. Era mesmo um homem com uma árvore na cabeça. E era uma árvore de ramos grossos
e compridos, com bonitas folhas de um verde acastanhado. Como se poderia explicar um
fenómeno tão estranho?
– Gostava de o ajudar – respondeu Kepler – mas confesso que nunca os meus olhos
observaram um caso assim. Nem disponho de meios nem de conhecimentos para encontrar uma
resposta que o satisfaça, até porque sou um homem de ciência e aos homens de ciência só as
respostas bem fundamentadas podem servir.
– Mas eu – lamentou-se Arbóreo – vivo numa grande infelicidade. Quando a árvore
começou a crescer não dei grande importância ao caso. Pensei até que ser diferente, numa
cidade como esta, me podia trazer vantagens de vária ordem. Mas depois vi que me tinha
enganado. Comecei a dar nas vistas e a tornar-me suspeito. Hoje não tenho casa onde possa
morar e os meus únicos amigos são os pássaros, algumas crianças e as estrelas que iluminam a
noite imensa.
Ao ouvir da boca de Arbóreo a palavra “estrelas”, Kepler sentiu que o coração lhe
batia mais depressa dentro do peito. Era para ele uma palavra mágica, carregada de sentidos.
Sendo ele astrónomo, ou seja um cientista dos astros e dos grandes mistérios do Universo, um
homem deslumbrado com o brilho pálido das galáxias perdidas na noite, não podia ficar
indiferente àquela palavra.
– És amigo das estrelas? – perguntou.
– Claro que sou – respondeu Arbóreo com convicção – e tanto assim é que, quando
me sinto mais sozinho e desconsolado, são elas que vêm dar-me novo ânimo e apontar-me
novos caminhos.
– Isso quer dizer – concluiu Kepler – que temos em comum a paixão pelas estrelas e,
se calhar, também pelos planetas.
– Também pelos planetas – confirmou Arbóreo.
– Sendo assim – adiantou o astrónomo – talvez eu possa ajudar-te, ou pelo menos,
tentar ajudar-te com o pouco que sei.

O diálogo tornara-se de tal maneira cordial que, sem darem por isso, tinham
começado a tratar-se por tu, que é o tratamento familiar que os amigos dão uns aos outros.
Tinham-se, portanto, tornado amigos.
Nessa noite, num recanto abrigado do jardim, Arbóreo dormiu descansado e sonhou
com estrelas, com muitas estrelas, e com um amigo que cavalgava pelo meio delas à garupa de
um cometa extraordinariamente veloz. O amigo era Kepler.
Por sua vez, Kepler tinha um outro amigo. Era um homem rico, solitário e estranho.
Era dinamarquês e vivia exilado na corte do imperado católico Rudolfo II. Chamava-se Tycho
Brahe e estava mais avançando que Kepler no estudo dos segredos mais secretos do Universo.
Quando voltou a encontrar-se com Arbóreo, Kepler
contou-lhe:
– Escrevi ao meu amigo Tycho e expliquei-lhe o teu caso.
Se somos capazes de decifrar mistérios dos planetas e das estrelas,
também havemos de descobrir por que razão pode um homem viver
com uma árvore na cabeça.
Arbóreo, que não estava interessado em que a fama do seu
estranho caso desse a volta ao mundo, perguntou-lhe quem era esse
tal Tycho. E Kepler explicou-lhe:
– É um cientista. Um cientista como eu… bem, como eu
não, porque tem um nariz de ouro.
– Um nariz de ouro! – exclamou o homem-árvore.
– Sim, um nariz de ouro. Explico-te porquê. Ele, quando era jovem, era brigão e
atrevido e, num duelo que travou, o adversário, com um golpe certeiro, arrancou-lhe o nariz.
Imaginas o que é viver sem nariz? Aí ele, como era muito rico, decidiu arranjar um nariz postiço
e mandou que o fizessem em ouro. É um sinal da sua grande fortuna e da sua diferença em
relação aos outros homens.
– Que duelo mais estúpido! – comentou Arbóreo, indignado.
– E queres saber qual a causa do duelo? É que disputavam ambos o título de melhor
matemático do reino.
– Mas então ele é astrónomo ou matemático?
– É matemático, como eu, porque o estudo dos astros ainda não é considerado como
uma ciência e sim como a soma de conhecimentos de uns adivinhos que lêem no céu o destino
dos outros. E não há nada mais errado do que isso. A astronomia é uma ciência e é assim que a
queremos ver tratada.
Kepler não chegou a receber de Tycho Brahe uma resposta satisfatória sobre o caso
de Arbóreo porque, entretanto, Tycho adoeceu gravemente, morrendo ao fim de poucas
semanas. Sofria de uma infecção grave e não seguiu os conselhos dos médicos.
Kepler sentiu muito a sua perda, que só foi aliviada por ter recebido em herança os
cadernos com as notas das suas invenções de mais de trinta anos e os instrumentos ópticos com
que observava os planetas e os astros.
Foi com base nessas notas, conforme explicou a Arbóreo, que Kepler, à custa de
muito estudo e de muitas noites sem dormir, estabeleceu as leis do movimento planetário, que
viriam a tornar o seu nome famoso na história da ciência.
Ao mesmo tempo que os ramos lhe cresciam na cabeça, arqueando-se e caindo em
volta do seu corpo, vergados ao peso dos frutos, das folhas e dos pássaros que neles procuravam
abrigo, Arbóreo percebia que as ideias de Kepler também não paravam de crescer e de se
iluminar, como se tivessem luz própria.
O astrónomo fez dele seu confidente, porque, sabendo-o amigo das estrelas, podia
confiar nele e revelar-lhe muitos dos seus projectos e segredos.
Foi assim que ficou a saber que Kepler se preparava para publicar um livro chamado
«As Harmonias do Mundo», no qual dava explicações novas para muitas das coisas que
aconteciam no Universo. Tinha uma especial predilecção pela palavra «harmonia», porque era
dela que dependiam, segundo dizia, a beleza e a ordem de todo o movimento planetário. E
pensava outras coisas bonitas.
– O Universo – disse um dia a Arbóreo – é uma sinfonia de vozes e a cada planeta
corresponde uma nota de música. Para a Terra há duas notas, o Fá e o Mi, que se repetem
eternamente, até ao fim dos tempos.
Ao escutar estas palavras, Arbóreo murmurou baixinho:
– Quem diz coisas assim tão belas só pode ser um poeta.
E nunca chegou verdadeiramente a perceber que, afinal, os astrónomos também são
poetas, poetas da luz e da sombra, do brilho e da noite.
*
Quando Kepler concluiu a investigação que o conduziu à descoberta da terceira lei do
movimento planetário, quase não teve tempo para festejar o acontecimento, porque, passados
poucos dias, deu-se em Praga o incidente que originou a terrível Guerra dos Trinta Anos.
Tanto Kepler como Arbóreo odiavam a guerra, porque sabiam que ela não costuma
poupar nem vidas nem ideias, que semeia o terror e a destruição, que só espalha fome, doença e
desamparo. Ambos viriam a morrer em consequência desse conflito e estavam condenados a
sofrer bastante antes que o fim chegasse.
O rei que protegia Kepler e apoiava o seu trabalho científico foi deposto e assim o
astrónomo teve de se exilar, como já acontecera a muitos outros cientistas do seu tempo.
Aqueles que passaram a governar Praga nesses dias exigiram-lhe que aceitasse a sua doutrina e,
como Kepler tivesse recusado, ordenaram-lhe que partisse.
Ele hesitou bastante antes de o fazer. Tinha a mulher e o filho doentes, atingidos por
uma epidemia espalhada pelos soldados, que já matara muitos milhares de pessoas, e recebera a
notícia de que sua mãe, Catarina Kepler, fora presa
sob a acusação de praticar bruxaria. «A minha mãe
não é bruxa, não pode ser verdade», pensou,
mordendo os lábios de revolta.
Foi nesse estado de desânimo que
procurou Arbóreo para desabafar.
– Que hei-de eu fazer, meu amigo? Tudo
escurece à minha volta como se tivesse chegado a
noite do mundo e nunca mais voltasse a haver dia.
– É preciso que tenhas confiança e não
percas a calma. Melhores dias hão-de chegar, podes
estar certo.
– Onde descobriste tu isso? – perguntou
Kepler com uma ironia amarga. – Não me digas que o leste nos astros!
– Não – respondeu Arbóreo, com firmeza – aprendi-o contigo.
– A epidemia está prestes a roubar-me aqueles que mais amo, minha mãe pode ser
levada à fogueira. É terrível quando os homens usam o ferro e o fogo para imporem as suas
razões. Que vai ser de mim?
– Que vai ser de nós? Também a mim já me procuraram, ameaçando-me com a prisão
se não explicar o mistério da árvore que tenho na cabeça. Por isso, como vês, também eu não
vivo melhores dias.
Olhando em toda a volta para ver se estava em segurança, Kepler tirou um livro que
trazia escondido debaixo da roupa e entregou-o a Arbóreo.
– Guarda-o, por favor, no meio dos teus ramos, e não o dês a ninguém. Se te
perguntarem como foi aí parar, diz-lhes que foi uma estrela quem to ofereceu.

continua…

Você também pode gostar