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Veículo: G1
Seção: Ciência e Saúde
Data: 17/11/2006
Estado: Nacional
Daniele Piomelli é considerado uma das maiores autoridades quando o assunto é maconha
“Uma vez eu disse a um jornal norte-americano que a maconha era uma das substâncias mais
seguras que existem. Essa frase gerou o maior barulho e eu perdi minha paz por algum
tempo. Mas mantenho a afirmação: a maconha é uma das substâncias mais seguras que
existem”. Foi com essa convicção que o neurocientista e farmacologista Daniele Piomelli,
considerado um dos maiores especialistas do mundo no assunto, defendeu o uso medicinal da
polêmica erva.
Piomelli, da Universidade da Califórnia em Irvine, não é nenhum defensor da legalização da
maconha. “Isso é uma decisão que cabe à sociedade tomar. Nós, cientistas, só fornecemos os
fatos”, diz ele. Tampouco ignora os malefícios da droga. “Fumar maconha, como fumar
qualquer cigarro, aumenta o risco de câncer de pulmão, de câncer de boca, entre vários
outros. Isso não faz bem e uma pessoa sensata evitaria”, afirma. “Há outro problema: o vício.
Alguém que fuma maconha por um certo tempo e em certas quantidades acaba
desenvolvendo uma compulsão pela droga. Acaba tendo aquela vontade avassaladora de
fumar de novo”, diz ele.
No entanto, o cientista acredita que a droga tem potencial para tratar pacientes de doenças
graves, como câncer e Aids. “Seria imoral, antiético e desumano não fornecer esse alívio para
pessoas que estão sofrendo, por motivos que vão além da medicina e que a ciência não
fundamenta”, afirma. “Como você vai dizer para alguém com câncer terminal que ele não pode
fumar maconha para aliviar sua dor?”
Piomelli espera que as pesquisas científicas na área avancem, sem serem atravancadas por
questões políticas e sociais. “Chegou a hora de irmos além da maconha”, diz ele. “Quando
tivermos um remédio melhor, eficiente, sem efeitos indesejados, que faça todo o bem que a
maconha faz sem trazer todo o mal que ela causa, ninguém vai nem mais lembrar que
maconha existe.”
Para conhecer mais sobre os usos terapêuticos da erva e sobre os efeitos da maconha no
organismo, leia abaixo a íntegra da entrevista que o cientista deu ao G1.
G1 - O senhor disse que é preciso fumar a maconha para obter seus efeitos. Não
existe nenhuma forma além do fumo?
Piomelli - Na verdade, existe, mas não é tão eficiente quanto. Existe uma droga, feita a partir
do princípio ativo da maconha, o THC, que tem sido usada para fins terapêuticos em diversos
países. Existe a possibilidade de se consumir o THC oralmente, mas os resultados demoram
mais para aparecer. E quando você está com dor, quer alívio o mais rápido possível.
O consumo oral do THC passa pelo estômago. Mas quando você fuma a maconha, o THC vai
direto do pulmão para a corrente sanguínea, e daí para o cérebro. O efeito é muito mais
rápido.
Alguns pacientes também declaram que preferem fumar, porque eles podem controlar
exatamente o quanto vão consumir. Eles podem dar duas ou três tragadas, por exemplo, e
parar quando se sentem melhor. Quando você toma um comprimido, ele vai ter lá seus 10g ou
20g e você não tem escolha. Se não for o suficiente, vai ter que agüentar. Se for demais, não
tem como não absorver.
Ultimamente, tem sido testada uma nova forma de se consumir o THC que tem a velocidade
do cigarro, mas não faz mal à saúde: o aerosol. Os médicos pegam o composto e o
transformam para que ele possa ser aspirado. Dessa maneira, se tem os mesmos benefícios,
mas sem os riscos.
G1- Na sua opinião, o que podemos esperar do futuro das pesquisas com maconha?
Piomelli - Eu acho, e defendo isso exaustivamente, que chegou a hora de irmos além da
maconha. Se temos o composto e temos como ele age no cérebro, já está na hora de
podermos dispensar a maconha. Quando isso acontecer, tudo ficará mais fácil. Quando
tivermos um remédio melhor, eficiente, sem efeitos indesejados, que faça todo o bem que a
maconha faz sem trazer todo o mal que ela causa, ninguém vai nem mais lembrar que
maconha existe.
No passado, o ópio era consumido para curar e aliviar de tudo. Tínhamos milhares de pessoas
por aí usando. Hoje, o consumo do ópio caiu bruscamente. Ninguém mais usa. Por quê?
Porque avançamos. Porque fomos além do ópio. Desenvolvemos uma série de medicamentos
muito melhores, e daí ninguém mais precisava disso. É o que precisa acontecer com a
maconha.
Poucos assuntos criam mais controvérsia e geram mais curiosidade do que a maconha, talvez
porque se trate da droga ilícita que as pessoas comuns têm mais chance de conhecer ao longo
da vida – estima-se que até 4% da população mundial já a tenha consumido.
Mesmo assim, uma cortina de fumaça de desinformação ainda cerca a planta e seu uso. O G1
responde abaixo às dúvidas mais comuns sobre a maconha, utilizando as últimas descobertas
de médicos e cientistas para esclarecer quais são os perigos e o potencial da droga.
De cara, é bom avisar: maconha faz mal. Embora não seja muito diferente de fumar um
cigarro comum, com os mesmos riscos de câncer e outras doenças relacionadas ao trato
respiratório, ainda assim é o tipo de perigo que até mesmo os mais entusiastas do uso médico
da planta recomendam evitar.
Também vale lembrar que, como em qualquer área da ciência, esses dados estão sujeitos a
revisão constante: o que hoje parece uma certeza pode se revelar um equívoco com estudos
mais cuidadosos. Além disso, muitas características da droga e de sua ação sobre o organismo
ainda são pouco conhecidas.
Esse sistema de mensagens do cérebro foi descoberto graças às pesquisas sobre maconha e,
em homenagem à droga, foi batizado de sistema endocanabinóide (ou seja, a da “Cannabis
produzida dentro” do corpo). O sistema endocanabinóide atua em quase todas as regiões do
cérebro, mas o prazer gerado pela droga advém do fato de que ele atua sobre o córtex (a
sede da consciência e da razão), a amígdala (ligada às emoções) e o tronco cerebral
(responsável pela sensação de dor). É por isso que os usuários relatam experimentar
tranqüilidade e bem-estar durante o consumo – as mensagens químicas ligadas à ansiedade
ou a dor são barradas pela ação da droga sobre o sistema endocanabinóide.
No futuro, qual é a chance de que fumar maconha seja permitido por razões
médicas?
“Há quem defenda simplesmente fumar a maconha com objetivo terapêutico, mas a
preferência tem sido pelo uso de comprimidos de THC, que evitam os problemas causados
pela inalação da fumaça”, afirma o pesquisador da Unifesp. Mesmo o THC, por si só, não é
perfeito: ele tende a ir parar em regiões indesejadas do cérebro, agindo de forma pouca
específica e causando efeitos colaterais. Por isso, há também a intenção de criar versões
modificadas da molécula para implementar o uso clínico.