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Nildo Viana
FREUD E OS INSTINTOS
Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada
como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente
mensurável) daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido pela
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palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e
é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com
a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso – que, em qualquer caso, tem sua
parte no nome ‘amor’ , por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e
pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a
objetos concretos e a idéias abstratas.
Em psicanálise o conceito do que é sexual abrange bem mais; ele vai mais baixo e também
mais acima do que seu sentido popular. Essa extensão se justifica geneticamente; nós
reconhecemos como pertencentes à ‘vida sexual’ todas as atividades dos sentimentos ternos
que têm os impulsos sexuais primitivos como fonte, mesmo quando esses impulsos se
tornaram inibidos com relação a seu fim sexual original, ou tiveram de trocar esse fim
por outro que não é mais sexual. Por essa razão, preferimos falar em psicossexualidade,
colocando assim ênfase sobre o ponto de que o fator mental na vida sexual não deve ser
desdenhado ou subestimado. Usamos a palavra ‘sexualidade’ no mesmo sentido
compreensivo que aquele em que a língua alemã usa a palavra lieben [amar].
Se essa suposição for correta, uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos,
como é vista pela antropologia social, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela
psicanálise, está destinada a mostrar numerosos pontos de concordância e lançará nova
luz sobre fatos familiares às duas ciências.
A vida sexual desses canibais pobres e desnudos [não deveria ser restrita por uma moral
como a nossa]. Entretanto, verificamos que eles estabelecem para si próprios, com maior
escrúpulo e o mais severo rigor, o propósito de evitar relações sexuais incestuosas. Na verdade,
toda a sua organização social parece servir a esse intuito ou estar relacionada com a sua
consecução (FREUD, 1974b, p. 21).
A psicanálise nos ensinou que a primeira escolha de objetos para amar, feita por um
menino, é incestuosa e que esses são objetos proibidos: a mãe e a irmã. Estudamos também
a maneira pela qual, à medida que cresce, ele se liberta dessa atração incestuosa. Um
neurótico, por outro lado, apresenta invariavelmente um certo grau de infantilismo
psíquico; ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam em
sua infância ou a elas retornou; duas possibilidades que podem ser resumidas como inibição
e regressão no desenvolvimento.
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram
o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-
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lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (Algum
avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de
força superior). Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas
matavam, mas também devoraram a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida
o temido e invejado modelo de cada um dos irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam
a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição
totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição
e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas:
da organização social, das restrições morais e da religião (FREUD, 1974b, p. 170).
A fim de que estas últimas conseqüências possam parecer plausíveis, deixando suas premissas
de lado, precisamos apenas supor que a tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos
mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos-pai
ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que
representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais;
mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio
e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha
sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um
sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo
o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo – pois os acontecimentos
tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda
hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos
próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas
psicanálises, sob o nome de ‘obediência adiada’. Anularam o próprio ato proibindo a
morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da
reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento
de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão,
corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo.
Se Oedipus Rex comove tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega da
época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no contraste entre o destino e a
vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do material com que
esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar
pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao passo que podemos
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descartar como meramente arbitrários os desígnios do tipo formulado em Die Ahnfrau
(de Grillparzer) ou em outras modernas tragédias do destino. E há realmente um fator
dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo. Seu destino comove-nos apenas porque
poderia ter sido o nosso – porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a
mesma maldição que caiu sobre ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro
impulso sexual para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para
nosso pai (FREUD, 1987, p. 257-8).
Isso é tudo que pode ser dito à guisa de uma caracterização geral dos instintos sexuais.
São numerosos, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam em princípio
independentemente um do outro e só alcançam uma síntese mais ou menos completa
numa etapa posterior (FREUD, 1987, p. 146).
CONCLUSÃO
Notas
1
“O prazer condicionado pela amizade, pelo esforço científico, pela luta por um sucesso econômico,
tudo isso continua a ser aquilo que se afigura à consciência. Apenas se estabelece que todas essas coisas
são derivativos da sexualidade, e que a sua capacidade para dar satisfação é baseada no total de descarga
que foi, em última análise, posta de reserva, se nos é permitida esta comparação, para crédito do
instinto sexual” (ALLERS, 1970, p. 154).
2
Na verdade, Freud reconhecia o papel da consciência como outro motor da ação humana, bem
como as relações sociais. No entanto, as forças motrizes da ação humana têm sua fonte primordial no
organismo, nos instintos, e a consciência e a sociedade são elementos externos, que criam desvios,
mutações etc, desta energia orgânica, criando um conflito no interior do indivíduo, que introjeta a
moral externa produzida pela civilização e com isso produz uma situação de conflito no aparelho
psíquico.
Referências
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NILDO VIANA
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Mestre em Filosofia e Sociologia. Professor na
Universidade Estadual de Goiás. Sociólogo. Filósofo.
E-mail: nildoviana@terra.com.br
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