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PÚBLICO • SÁBADO, 28 JAN 2006

TRÊS ROSTOS DO MLM


Memória de
MARIA ISABEL BARRENO
A CEREBRAL
história. Do ponto de vista do activismo,
não sou muito empenhada, não digo isto
com orgulho. Eu na tal manifestação do
debate no Porto, com a mesma determi-
nação com que superou situações como o
facto de ter sido espancada, perto da rua
uma tarde
Parque Eduardo VII nem estive. Tinha
ido aos Estados Unidos dar uma série de
onde morava no pós-25 de Abril, por três
homens que a avisaram: “Isto é pelo que
à portuguesa
conferências, depois conheci um escritor
americano, com quem vivi. Estive na fun-
dação e estive na ocupação da casa que foi
queres ensinar às nossas mulheres.”
antiga
a nossa sede.”
ADELINO GOMES

O
M A R I A T E R E S A H O R TA acontecimento constava de
todas as agendas. Um comu-
A EMOCIONAL nicado do MLM – organização
Maria Teresa Horta ainda hoje, aos 68 onde pontificavam figuras
anos, se emociona, indigna e explode com como Maria Teresa Horta, uma das “Três
a discriminação da mulher. Romancista Marias” que o regime ditatorial pusera em
Escritora consagrada, autora de uma obra e poeta, uma das co-autoras das Novas tribunal – anunciava para aquela tarde a
de peso, onde se salienta A Morte da Mãe, Cartas Portuguesas, Maria Teresa Horta queima de objectos simbólicos da opressão
Maria Isabel Barreno transborda segu- tem uma visão do feminismo próxima dos da mulher em Portugal. Dias antes, uma
rança e transpira tranquilidade. Aos 66 movimentos libertários e continua empe- notícia (não assinada, como era de uso ao
anos, continua a ser uma personalidade nhada como no primeiro dia na defesa dos MADALENA BARBOSA tempo) no Expresso – já então um jornal de
discreta, a medir as palavras, a gerir a sua direitos das mulheres. Pioneira no acti- referência – aguçara o apetite mediático:
exposição pública com pinças. Mas não se vismo feminista no pós-25 de Abril, é com
A A C T I V I S TA ia-se assistir ao strip-tease de uma noiva,
confunde nem se baralha no que é, para alguma perplexidade, mas com uma força Madalena Barbosa tem sido, ao longo de de uma dona de casa e de uma vamp, que
si, a causa de uma vida: a defesa dos direi- imensa, que se mostra disponível para mais de trinta anos, a mais consequente deitariam a uma fogueira ateada no Alto do
tos das mulheres. Intelectual de peso e de “não dar o dito pelo não dito” e manter-se activista feminista em Portugal. Presente Parque Eduardo VII a flor de laranjeira, o
consistência, Maria Isabel Barreno foi um fiel aos princípios, que a fazem resistir a na fundação do MLM, Madalena Barbosa avental e o biquini.
elemento fundamental, determinante, na insultos em público, como recentemente integrou desde a fundação todas as orga- Fui encarregado de fazer a reportagem
fundação do MLM, quem o garante é Maria aconteceu por parte de um escritor num nizações feministas com carácter nacional para os noticiários do Rádio Clube Por-
Teresa Horta, que, com ela e com Maria que existiram até hoje em Portugal. Licen- tuguês, então chamado “A Emissora da
Velho da Costa, escreveu as Novas Cartas ciada em História e mestre em Ciências da Liberdade”, por ter sido através das suas
Portuguesas. De forma desprendida, Maria Comunicação, Madalena Barbosa especia- antenas que o Movimento dos Capitães
Isabel Barreno afirma ao PÚBLICO sobre lizou-se em problemas relacionados com os emitiu os primeiros comunicados do golpe
si mesma e o seu papel na fundação do direitos das mulheres. Integrou o Conselho de Estado do dia 25 de Abril de 1974.
MLM e no feminismo em Portugal. “A Te- Consultivo da Comissão da Condição Femi- Dispúnhamos de vários rádios-móveis,
resa tinha uma ligação ao feminismo mais nina logo em 1975, e, em 1986, entrou para com os quais, aliás, fazíamos a cobertura
emocional, não é que ela não lesse os li- funcionária da CCF, actual Comissão da constante do processo em curso. Mas julgo
vros das feministas, mas eu tinha chegado Igualdade para os Direitos das Mulheres não errar se disser que nenhum de nós en-
ao feminismo enquanto reflexão política (CIDM), onde ainda hoje, aos 63 anos, é carou sequer a hipótese de fazer um directo
alargada. Passei muitos anos em pesqui- quadro superior. Dona de currículo inter- da iniciativa. Que, julgávamos, atrairia
sas para escrever a ‘A Morte da Mãe’, tive nacional nesta área, é uma das principais umas centenas de pessoas, não mais.
de ir ao fundo do tema, li e recolhi muitos especialistas em questões de igualdade de Parti, por isso, apenas com um gravador.
dados sobre o papel da mulher, revisitei a género em Portugal. Alguns minutos antes da hora marcada, a
pé, pois os estúdios situavam-se ali a dois
passos. Deparei com uma enorme aglo-
meração de pessoas. Primeira surpresa,

O movimento que nunca existiu mas agiu mas nada de preocupante, à partida, dado
o estado de manifestação permanente
em que Lisboa se encontrava naqueles
meses. Também não me espantava o facto
O MLM é um movimento que hoje é Organizaram manifestações, influenciaram a Horta. Será por acção das dirigentes de serem, quase todas, do sexo masculino,
praticamente ignorado e que nunca do MLM que, anos depois, em 1987, jovens ou de meia-idade. Pertenciam a esse
foi muito conhecido. Oficialmente, Constituição, defenderam a despenalização do aborto, será organizada em Portugal a pri- género e a essa faixa etária os frequentado-
aliás, nunca existiu, isto é, nunca mas nunca se registaram no cartório meira conferência sobre violência res habituais dos desfiles e acções de rua
foi registado legalmente. Viveu do doméstica. posteriores ao 25 de Abril.
activismo de algumas mulheres e da feminista holandesa e da Fundação como o MDM, achavam que não era Mas a acção do MLM estendeu- No local previsto, avistei a noiva, a dona
sua capacidade de movimentação Ford, norte-americana. Soubemos conveniente. Será o MLM uma das se à organização de vários debates de casa e a vamp. Meio desamparadas, já,
e de mobilização. “Nunca tivemos que a Gulbenkian tinha financiado principais organizações a integrar, sobre a condição da mulheres entre as filas de homens que as rodeavam,
existência orgânica. A força e a fra- uma organização feminista inglesa em 1979, a CNAC – Campanha Na- – os encontros-assembleias de empurrando-se, pisando-se uns aos outros.
queza dos movimentos feministas é e pedimos, mas só nos deram um cional pelo Aborto e Contracepção, mulheres domésticas, por exem- Como gostava de fazer, liguei o gravador
não terem existência orgânica”, diz subsídio, depois mais nada.” movimento que esteve na base da plo – e à actividade editorial. Em para descrever o que ia vendo – a flor de
Maria Teresa Horta. Mesmo sem existirem formalmen- pressão social para que os partidos 1977, é formada a Cooperativa laranjeira já à banda, no vestido branco;
Ainda que sem escritura passa- te, agiram e muito, e adquiriram um de esquerda parlamentar, nomeada- Editorial de Mulheres e o Centro a dona de casa a arrastar a vassoura e o
da em cartório, o MLM nasceu em estatuto daquilo a que mais tarde se mente o PCP e o PS, agissem para de Informação/Documentação de balde; carantonhas de olhos esbulhados
Maio de 1974, na noite do dia em que veio a chamar parceiro social. “Fo- que a lei fosse por fim parcialmente Mulheres – IDM, cujo espólio foi postadas diante da vamp. E frases no ar.
terminou o julgamento das “Três mos ouvidas por acção do Zenha mudada em 1984. agora doado ao futuro Centro de Cada vez mais claras. Cada vez mais ordi-
Marias”, Maria Isabel Barreno, para a Concordata, o Código Civil, O combate à violência doméstica Documentação Feminista Elina nárias. Cada vez mais alto. E a multidão,
Maria Teresa Horta e Maria Velho o direito de família”, relata Madale- foi outra das causas em que o MLM Guimarães, para cuja fundação agora compacta, em movimentos de vai e
da Costa, autoras do livro Novas na Barbosa, enquanto Maria Teresa foi pioneiro. “Quando recebíamos contribuirá o leilão de arte que vem, a noiva que corre, a segurar o véu, a
Cartas Portuguesas. Conta Maria Horta frisa: “Fomos as primeiras a queixas, eu ligava para o Otelo e hoje será feito na homenagem no vamp a ser apalpada, um delírio incontro-
Teresa Horta: “Já tínhamos as duas, levantar a questão do aborto.” E Ma- ele mandava o Copcon dizer aos ho- antigo Mercado da Ribeira. lado de frases, de risos alarves, de gritos de
eu e a Isabel [Barreno], falado várias dalena Barbosa recorda que o pri- mens que não podiam fazer aquilo, O primeiro livro editado foi gozo, de gestos boçais.
vezes da necessidade de fundar um meiro comunicado que reivindicou que tinha havido uma revolução e Aborto o Direito ao Nosso Corpo, Não afianço que assim tenha sido tudo
movimento feminista. Naquele a despenalização o fez por pressão o país agora era uma democracia”, escrito por Maria Teresa Horta, por esta ordem, verbalizo farrapos de me-
dia, ao ver todas aquelas mulheres do MLM, pois outras organizações, lembra, sorrindo, Maria Teresa Helena Mendonça e Célia Me- mória. Nem sequer garantiria que proferi
no tribunal a apoiarem-nos, as fe- trass. Recorda Madalena Barbosa: depois ao microfone a frase que Teresa Hor-
DR
ministas estrangeiras que vieram “Publicámos quatro livros, mas a ta amavelmente me atribui. De resto, não
e as portuguesas, a Isabel virou- distribuidora era a do Século e fui o único repórter chocado. Uma consul-
se para mim, depois da leitura da faliu. Primeiro, tínhamos tentado ta rápida às colecções de jornais do tempo
sentença, e disse: ‘Teresa, está na fazer um acordo com a Assírio e mostrar-nos-á em O Século, por exemplo,
altura.’ Marcámos uma reunião Alvim, mas eles queriam que nós um texto de Mário Contumélias sobre a
para a casa dela nessa noite, com traduzíssemos as obras e eles só demonstração que aquele acontecimento
muitas das mulheres que estavam publicavam e não havia direitos. fazia de que a mulher portuguesa sofreu du-
ali na Boa-Hora.” Não aceitámos. Editámos nós.” as ditaduras: a do fascismo e a dos homens.
A essa reunião seguiram-se vá- A iniciativa menos política e Lembro-me de ter pensado (se não,
rias outras, recorda ao PÚBLICO mais preocupada com o conví- mesmo, dito alto) que as organizadoras
Madalena Barbosa: “Nos primeiros vio das mulheres foi também ela tinham sido, no mínimo, imprudentes,
tempos, a casa de Isabel serviu de se- um êxito, conta Madalena Bar- agindo de uma forma tão revolucionaria-
de.” Depois ocuparam um andar na bosa: “Abrimos um bar na Rua mente vanguardista. Como se o dia 25 de
Rua Álvares Cabral e fizeram obras Filipe da Mata, que funcionava Abril do ano anterior tivesse sido poção
de recuperação. Mas funcionaram às sextas. Foi o que correu me- mágica para séculos de predomínio do
sempre sem grandes apoios, expli- lhor. Era dirigido pela Teresa macho lusitano. Que dali fez coutada,
ca Madalena Barbosa: “Recebemos Almeida e pela Madalena Ca- passeando-se à solta, naquela tarde à
financiamento de uma organização nha, esteve aberto até 1980.” ■ portuguesa antiga. E actual? ■

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