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Um signo arisco (Derrida – Bergstein)

13/Jun/98
Leyla Perrone-Moisés
JACQUES DERRIDA

O que é o subjétil? é a pergunta que fazemos, ao ler esse título; a mesma que vai percorrer
todo o texto de Derrida, levando-nos, curiosos, em seu encalço. Pergunta que não será
respondida por um é, mas por um pode ser, com a ênfase posta no verbo poder.
Examinando a força e as virtualidades implicadas nesse "poder ser", Derrida costura, com a
minudência e a argúcia que caracterizam suas leituras, fragmentos de Antonin Artaud e
tece, a partir deles, um belo texto sobre a arte e a loucura, ou melhor dizendo, sobre o
intervalo entre a subjetividade e a objetividade no qual a arte se engendra.

Embora a palavra subjétil pareça ser um daqueles neologismos de que usaram e abusaram
os teóricos dos anos 60, na verdade ela é antiga e tem um significado preciso, técnico.
Derivada do latim "subjectus" (colocado embaixo), foi usada, no Renascimento italiano,
para designar uma superfície servindo de suporte a uma pintura (tela, parede ou painel). A
palavra subjétil aparece em três textos de Artaud, datados respectivamente de 1932, 1946 e
1947. Nas três ocorrências, trata-se de textos ilustrados ou de desenhos comentados. Entre
essas datas, "desde um determinado dia de outubro de 1939, nunca mais escrevi sem
também desenhar", diz Artaud. Acontecimento aparentemente tranquilo, mas com fundas
implicações e graves consequências para o sujeito a quem isso acontece.

Podemos evocar, à guisa de informação, os momentos da atribulada biografia de Artaud em


que se inserem esses textos. Em 1932, já haviam malogrado seus projetos de fundar um
teatro, ou mesmo de poder apresentar regularmente suas encenações, restando-lhe apenas o
recurso de expor verbalmente suas idéias teatrais. Em 1946, ele recuperara a liberdade,
depois de nove anos de internamento em vários hospícios, dos quais saíra destruído, física e
mentalmente. Nesse ínterim, escrevera e publicara duas obras importantes: "O Teatro e Seu
Duplo" e "No País dos Tarahumaras". O ano de 1947, data da terceira ocorrência, é o ano
de publicação de "Artaud le Momo" e "Van Gogh, le Suicidé de la Société"; é também o de
sua rumorosa conferência-libelo no teatro do Vieux-Colombier e de sua exposição de
desenhos na Galerie Pierre.

Derrida não segue esse percurso biográfico, mas o pressupõe conhecido. As sucessivas e
recomeçadas estratégias do filósofo, que traz à baila outros textos de Artaud, em particular
aqueles acerca de Van Gogh, vão-nos dando pistas de leitura. A perseguição do subjétil
submete o leitor a um tempo de aproximação que é, também, um tempo de cogestação do
objeto perseguido. Um tempo ou um percurso que, o leitor verá, terá valido a pena. Não
porque, ao fim da leitura, se saiba literalmente o que é o subjétil. Mas porque ao cabo desse
trabalho efetuado por Derrida sobre o significante "subjétil", nós efetivamente o
conhecemos ou reconhecemos. Afinal, o próprio Artaud jamais disse que o subjétil era uma
coisa, mas referia-se a ele como "o que é chamado de subjétil".

O subjétil é aparentemente estável (ele é suporte); mas o prefixo "sub" o esconde, e a


terminação "étil" o coloca em brusco movimento, como um projétil; "entre jazer e lançar".
É preciso pois persegui-lo, como num jogo de adivinhação, ou na caçada de um objeto sutil
e mesmo traiçoeiro. Pois, como diz Artaud, na carta de 1932: "Incluo nesta um desenho
ruim em que isso que se chama subjétil me traiu". Como? Ainda nem bem sabemos o que é
o subjétil, e já temos de levar em conta que ele, assim como pode ser enlouquecido, pode
trair. Uma leitura linear poderia estabelecer uma gradação, da traição à loucura. A "traição"
do subjétil, de 1932, teria sido a perda de um controle exercido pela razão, e um aviso da
"dilapidação do subjétil" (como dispersão e perda do sujeito), referida em 1946, a qual teria
sido seguida de um trabalho agressivo e curativo em 1947.

Embora viável, tal leitura cronológica corresponderia à pacificação de um signo arisco, que
se situa aquém e além da expressão verbal. A palavra subjétil excede à língua, é
intraduzível. A questão da intraduzibilidade do termo é tratada em vários níveis por
Derrida. O fato de seu próprio texto, este que estamos lendo, ter sido escrito para ser
publicado em tradução alemã, é um desses níveis. Para Artaud, tratava-se de detonar a
linguagem, de desviá-la de sua função utilitária.

Derrida observa aí o uso da palavra latina, subjétil, para dizer o não-latino, isto é, o
anticlássico, o anticartesiano, e saboreia de antemão a intervenção, talvez o
"enlouquecimento", a que terá de ser submetido seu texto ao ser vertido para o alemão. Pois
Derrida partilha, com Artaud, a desconfiança quanto às "idéias claras" que, segundo este,
são "idéias mortas e acabadas".

As relações entre escritura e desenho são traçadas (seria inadequado dizer examinadas) por
Derrida. Artaud pretendia "abandonar o princípio do desenho", o princípio da
representação, e buscar uma expressão que não fosse a do eu subjetivo, mas que
correspondesse à produção de uma realidade nova, uma expulsão, um nascimento. Derrida
observa que Artaud não escreve sobre seus desenhos, mas diretamente neles, escritura e
desenho imbricados em busca da "natureza nua, a pura visão". O que se chama
habitualmente de loucura, mas, quem sabe, devesse ser chamado de resgate. O subjétil,
tratado e mal tratado nessa escritura-desenho, revela-se como louco de nascença, para abrir
passagem ao inato que um dia foi aí assassinado.

Estamos cada vez mais perto de um saber do subjétil. O subjétil é o lugar de uma luta, de
um duelo; é leito, lugar de nascimento e de morte. Seria o subjétil aquilo que é chamado de
inconsciente? Derrida se exime de o positivar como tal. Mas o modo como ele descreve as
forças condensadas no subjétil, entre as superfícies do sujeito e do objeto, oferecendo
resistência e revelando, somos tentados a chamá-lo assim. Maltratado/trabalhado, o subjétil
"nunca se queixa, por pai ou por mãe", escreveu Artaud. Porque maltratá-lo, elucida
Derrida, é rasgá-lo e costurá-lo a um só tempo, como numa operação cirúrgica: ferir,
costurar, cicatrizar, curar.

Outra aproximação do subjétil, explicitamente sugerida por Derrida, efetua-se por meio da
noção platônica de "khora". Desde 1968, num texto que se tornaria muito conhecido, citado
e explorado ("A Farmácia de Platão", Ed. Iluminuras), o filósofo trouxera a tona essa
noção, que aparece no "Timeu". E retomou-a em 1993 num livro ("Khôra", Galilée). A
"khora" é o lugar da inscrição originária das formas, uma terceira instância entre o modelo
e a cópia, entre o mundo das Idéias e o mundo real.
Receptáculo, matriz, mãe, ama-de-leite, tais são as metáforas utilizadas por Platão para
definir a "khora": "Ela recebe sempre todas as coisas, e nunca adquire uma figura
semelhante às que nela entram (...); ela é posta em movimento e recortada em figuras pelos
objetos que nela penetram"; ela é suporte e portadora de impressões, infinitamente plástica
e geradora. Exatamente como o subjétil: "Nem objeto nem sujeito, nem tela nem projétil, o
subjétil pode tornar-se tudo isso, estabilizar-se sob essa ou aquela forma ou mover-se sob
qualquer outra". Essa possibilidade de um "terceiro gênero" foi sempre buscada por
Derrida, como meio de quebrar o dualismo da metafísica, de forçar a abertura da
representação. "O subjétil é tudo isso e Antonin Artaud. E eu."

Outro ponto em que se manifesta um prosseguimento, via Artaud, do pensamento


derridiano, é o que diz respeito à relação entre loucura e verdade: "O homem é doente.
Artaud diz a verdade". Desconstruído e desconstrucionista "avant la lettre", Artaud
questionou a representação e arrancou, de seu sofrimento, uma verdade. Que tipo de
verdade? É o que Derrida tem buscado, pacientemente; é o que o subjétil revela, dissimula,
produz, quando o sujeito-artista enlouquece.

O denso texto de Derrida, cuidadosamente traduzido, encontrou um belo "subjétil" (aqui no


sentido original de suporte material) neste volume projetado e desenhado por Lena
Bergstein. Ouvinte e leitora sensível do filósofo, a artista brasileira recorta fragmentos de
seu texto, reacomoda-os em colagens. Assim como Derrida não pretende escrever como
Artaud, o que seria uma "contorção mimética", Lena não desenha como ele, nem escreve
como Derrida. Ela dialoga com ambos. O diálogo pictórico com Derrida se prolonga, por
meio deste, com Artaud, de quem Lena cita os procedimentos (rasgar, queimar, costurar); e
por meio de Artaud, com Van Gogh, no uso do ouro bronzeado como cor dominante.

Leyla Perrone-Moisés é crítica literária e coordenadora de pesquisas no Instituto de Estudos


Avançados da USP.

Copyright © 1994-1999 Empresa Folha da Manhã S/A

PERRONE-MOISÉS, L. . Um signo arisco (Derrida - Bergstein). Caderno de Resenhas, Folha de São


Paulo, p. 7, 13 jun. 1998.

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