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SOBRE O CONCEITO HABERMASIANO DE ESFERA PÚBLICA

O conceito de esfera pública não se presta a uma assimilação definidora e definitiva.


Isso não só porque se encontra em constelação com várias noções correlatas, como
público (versus privado), público leitor, opinião pública, publicidade etc., ou porque,
claro, essa constelação se altera segundo o tempo histórico e o espaço social. O
conceito assume também, ao mesmo tempo, uma função sociológica de descrição das
práticas sociais e das instituições efetivas e um papel crítico-normativo fornecendo
critérios para julgar e, se possível, transformar essas práticas e instituições. Tamanha
complexidade obriga aqui a enfatizar somente alguns traços do conceito, extraídos da
obra do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, que em 1962 publicou o livro
Mudança estrutural da esfera pública, tornando-se talvez a principal referência do
assunto.

"Esfera pública" busca traduzir Öffentlichkeit, substantivação do adjetivo öffentlich


(público). "Publicidade", por sua vez, traduz Publizität, termo empregado no sentido do
caráter público dos debates judiciais e, de modo geral, no sentido de um procedimento
que garanta acessibilidade para um público em princípio irrestrito e crítico. Mas a
opção por esfera pública pode induzir a erro se sugere somente uma representação
espacial, isto é, um "espaço público" no sentido de ruas, praças, prédios públicos,
embora as discussões públicas precisem geralmente de espaços análogos. Ou se
sugere o âmbito do poder público, com todos os seus órgãos e aparelhos
administrativos. A esfera pública não se confunde com a esfera do Estado. Como uma
categoria histórica da sociedade burguesa, ela se formou antes em contraposição ao
poder, no interesse de estabelecer um Estado de direito que assegurasse, por lei e
sanções, a circulação de mercadorias e o trabalho formalmente livre, sem
interferências estatais na dinâmica do mercado.

Mas não é possível reduzir a esfera pública à realização de interesses de classe.


Certamente ela se constituiu como um público formado de pessoas privadas, de
burgueses, portanto socialmente restrito. É no âmbito privado que ela se desenvolve,
diferenciando-se aí do setor social definido estruturalmente pelo mercado bem como
da pequena família burguesa, esfera íntima em que se enraíza a “privacidade”. Porém
esse público de pessoas privadas é um público que lê e discute, por livros e imprensa
escrita, em cafés e salões, inicialmente arte e literatura, depois a própria ordem da
dominação política. Os pressupostos da discussão – igualdade, liberdade, publicidade
e inclusão universais – sobre arte e crítica de arte, ciência e filosofia, moral, direito e
política servem de critérios para a crítica e a transformação da ordem da dominação.
Da própria organização interna da comunicação pública, pressuposta por seus
participantes, se tiram os parâmetros da racionalização política e social. Com isso, a
ideologia burguesa da “opinião pública” traz consigo a medida de sua própria crítica,
tão logo se percebe o descompasso entre as idéias universalistas advogadas e a
realidade da sociedade de classes na seqüência das revoluções burguesas.

De certo modo, os movimentos operários, socialistas e democrático-radicais buscaram


efetivar a racionalidade pressuposta na esfera pública liberal. Só que as lutas por
direitos de participação democrática e por direitos sociais, condensados no Estado de
direito democrático e social, desembocaram também em uma mudança estrutural da
esfera pública, iniciada nas últimas décadas do século XIX. A esfera pública liberal
perde sua base social, a separação entre Estado e sociedade, entre público e privado,
pois o Estado é socializado sob a influência dos grupos econômicos, enquanto a
sociedade é estatizada sob um intervencionismo que pretende garantir o crescimento
econômico e conquistar a lealdade das massas através de compensações sociais. Se
a esfera pública se ampliou fortemente nas democracias de massa, ela perdeu
drasticamente em sua função crítica. De um público burguês restrito que pensa a
cultura se passou a um público de massa amplo que consome cultura, isto é, os
produtos da indústria cultural. O princípio da publicidade crítica é subvertido pela
publicidade/propaganda, a opinião pública passa a ser objeto de manipulação tanto
dos meios de comunicação de massa como de políticas partidárias e administrativas,
orientados por pesquisas de opinião, quer dizer, de manifestações de interesses já
privatizados.

Posteriormente Habermas relativizou esse diagnóstico, dadas as experiências políticas


e sociais que desmentiram uma total despolitização da esfera pública. A par dos
fenômenos de integração relativa do proletariado ao sistema capitalista, constatou-se
uma série de movimentos sociais diversos que escaparam até certo ponto à
capacidade de controle dos meios de comunicação de massa: o movimento negro por
direitos civis nos EUA, o feminista, que inclusive questiona formas patriarcais da
esfera pública, o dos estudantes, que buscou democratizar tanto o sistema
educacional ampliado como as estruturas institucionais gerais da cultura e da política,
o ecológico que lembra insistentemente os limites naturais da industrialização, o de
grupos sexualmente discriminados que reclama novas formas de identidade etc.
Diante dessas experiências, sempre ambivalentes, Habermas teve de repensar a
esfera pública com novas categorias (dadas por sua teoria da ação comunicativa).
Ganha relevo aqui a idéia de sociedade civil, contraposta ao âmbito do mercado e ao
do Estado e constituída por movimentos, organizações e associações mais ou menos
autônomos. Na sociedade civil se originam esferas públicas diversas, que, conforme o
caso, se generalizam através dos meios de comunicação. Nesse processo, as
discussões passam a sofrer geralmente um processo seletivo de informações e
argumentos, que se coaduna com tentativas de despolitização exigidas pelo sistema
político e econômico. Seja como for, para um projeto de democracia radical, coloca-se
a perspectiva de uma esfera pública cujo tema seja a própria possibilidade de uma
esfera pública não-atravessada por relações de poder.

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