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A Força do Amor

Barbara Cartland
“The fire of love”

Inglaterra, 1901

Últimos dias da sociedade vitoriana.


Carina era uma governanta incomum. Apesar de pobre, era jovem, linda, e tinha,
sem dúvida, traquejo social.
Também não se podia dizer que seu emprego no Castelo Lynche fosse como qualquer
outro. Segredos, trapaças e mentiras povoavam a vida dos habitantes daquele
lugar.
Tudo dava a impressão de que a catástrofe em breve se abateria sobre o castelo.
Mas o amor, com suas asas salvadoras, trouxe de volta a paz almejada: menos para
Carina!

CAPÍTULO I
1901
— Você trouxe referências? — perguntou a sra. Macey, dona da agência de empregos.
— Sim, tenho esta carta — respondeu a moça, do outro lado da escrivaninha.
Com as mãos ligeiramente trêmulas, entregou à dona da agência um envelope com papel
de excelente qualidade, tendo ao alto um brasão impresso.
A sra. Macey leu devagar a carta de recomendação e murmurou um som de aprovação.
— Lady Judith parece ter gostado muito de você, srta. Warner!
— Sim... Lady Judith era muito bondosa — respondeu a mocinha, enrubescendo.
— Bem, as referências são muito boas. Porém, receio não ter vagas para o tipo de
emprego que você está procurando.
— Por favor, sra. Macey, deve haver alguma coisa nos seus registros — disse a moça,
quase em pânico. — Vim procurar a sua agência porque eu tinha certeza de que a senhora me
ajudaria.
— Você parece ansiosa — observou a sra. Macey com expressão de desconfiança.
— Preciso do emprego porque... não posso permanecer onde estou no momento. E tenho
de trabalhar para me manter.
Depois de um resmungo, a sra. Macey tocou a sineta que estava sobre a escrivaninha e
ordenou à mulher magra, de meia-idade, que apareceu à porta da sala contígua:
— O livro de registros, srta. Cruickshank.
Ansiosa para agradar a patroa, a humilde srta. Cruickshank apressou-se para cumprir a
ordem recebida.
A sra. Macey observou com olhar crítico a moça à sua frente.
— Estou vendo que é muito jovem para o cargo de governanta, srta... Como é mesmo seu
nome?
— Warner. Carina Warner.
— Carina! — A sra. Macey repetiu em tom de desagrado.
— Catherine seria mais comum.
— Fui batizada com o nome de Carina — tornou a moça erguendo a cabeça com orgulho.
Os grandes olhos cinzentos, que antes pareciam desesperados, ganharam um brilho súbito.
— Os pais, por vezes têm um gosto estranho — murmurou a sra. Macey.
Porém, voltou a atenção para a srta. Cruickshank que se aproximara da escrivaninha com
um grande livro de capa dura.
— O que me diz, srta. Cruickshank? Temos vagas para governantas?
— Há uma, sra. Macey. Foi solicitada ainda esta manhã. É para lady Lynche, mas... — A
srta. Cruickshank curvou-se e disse alguma coisa ao ouvido da patroa.
Carina ouviu apenas duas palavras: "estranho" e "comum".
— Ah, sim, é verdade — disse a sra. Macey em voz alta.
— Em todo caso, se não há mais nenhuma vaga...
Ela dirigiu-se a Carina:
— Bem, srta. Warner, alguém procurou esta agência, em nome de lady Lynche. Eu não
conheço Sua Senhoria, mas consta do registro que ela precisa de uma pessoa de confiança
para acompanhar o filho em uma viagem.
— Uma viagem ao exterior? — indagou Carina com interesse.
— Não, senhorita, é na Inglaterra mesmo. Não tenho certeza se é ao Norte ou Oeste —
disse a srta. Cruickshank.
— Isso é o de menos — cortou a sra. Macey. — O importante é que lady Lynche exige
uma pessoa de confiança para viajar com o filho e presumo que se considere digna de
confiança, srta. Warner.
— Sim, claro.
— Muito bem. Vou dar-lhe o nosso cartão com o endereço de lady Lynche e você poderá
procurá-la em seguida.
Carina sorriu e deixou a sala. Desceu a escada e, ao chegar à rua, ficou parada por um
instante, apenas observando a multidão, o grande movimento, os ônibus puxados por cavalos,
as carruagens fechadas às quais estavam atrelados magníficos animais com lindos arreios, as
bridas de prata enfeitadas com plumas, os cabriolés conduzidos por rapazes elegantíssimos,
suas cartolas brilhantes colocadas meio de lado, os cavalariços sentados na parte traseira do
veículo, tendo os braços cruzados, prontos para correr até a cabeça dos cavalos e segurá-los a
cada parada.
Carina consultou o cartão que a sra. Macey lhe dera e leu o endereço: Eaton Terrace, 187.
Lembrou-se de que o Terrace ficava do lado da Eaton Square. Era bem distante para ir a pé e
ela foi até o ponto de ônibus mais próximo, tomando o primeiro ônibus que passou. Recusou o
convite do condutor para sentar-se dentro do ônibus e subiu para a parte superior do veículo
porque queria sentir o vento no rosto. Sentou-se a um canto, fechou os olhos e lutou contra
as lágrimas, prestes a rolarem pelas faces, ameaçando seu autocontrole.
O ônibus contornou as ruas elegantes, nas quais os veículos populares não eram
permitidos, e chegou a Victoria, onde Carina desceu. Estando agora com pleno controle de
suas emoções, desceu a Ebury Street, desviou-se de um bêbado que saíra cambaleando de
um pub, e chegou à Eaton Square. Daí a Eaton Terrace era uma curta caminhada. Viu-se
diante do número 187 e tocou a campainha.
Enquanto esperava que a atendessem, observou o prédio. Notou que a aldrava da porta
estava muito escura, por falta de polimento, os degraus estavam sujos e, do lado de dentro,
em uma das vidraças, estava um papelão com os dizeres: "Alugam-se quartos".
"Deve haver algum engano. O número não pode ser este", pensou.
Mal acabara de abrir a bolsa para pegar o cartão da agência a fim de verificar o endereço,
a porta abriu-se e uma criada usando avental sujo e toucado apareceu à frente de Carina.
— Estou procurando por lady Lynche, mas acredito que esta não seja a casa dela.
— Ela mora aqui, sim — afirmou a criada. — Sua Senhoria a espera?
— Creio que não. A sra. Macey, da agência de empregos, mandou-me aqui — Carina
explicou.
— Ah, sim. A sra. Bagot foi até a agência esta manhã. — Entre. Qual é o seu nome?
— Srta. Cl... srta. Warner — respondeu Carina entrando no hall e sentindo um cheiro forte
de cigarro misturado com cebola.
Confusa por estar naquele lugar tão pobre, Carina acompanhou a criada. Subiram uma
escada e seguiram por um corredor escuro. A criada parou diante de uma porta, deu duas
leves batidas e entrou no quarto sem esperar que a atendessem. Carina seguiu-a. As
persianas estavam descidas e ela demorou um pouco para acostumar-se com o escuro. Pouco
depois percebeu que havia uma mulher deitada em uma cama.
— Ah, a agência mandou alguém — murmurou a mulher.
Ela falou muito baixo e com um sotaque que Carina não soube identificar. Ainda duvidava
que aquela fosse a pessoa que estava procurando e indagou:
— A senhora é lady Lynche?
— Sim, sou eu mesma — lady Lynche confirmou. Ordenou em seguida, ofegante: — Erga
a persiana e dê-me alguma coisa para beber. Então poderei conversar com você.
Carina obedeceu. A persiana subiu de uma vez, com barulho e a luz penetrou no quarto
pelas vidraças sujas.
— Uma bebida! — lady Lynche insistiu. — Há brandy na garrafa.
Olhando para o lado, Carina viu a garrafa e um copo sobre o lavatório onde também havia
uma bacia e um jarro, ambos de porcelana, velhos, sujos e trincados. Foi até lá e despejou a
bebida no copo. Voltou para perto da cama e ia colocar no brandy um pouco de água da
moringa, mas a enferma avisou-a:
— Sem água!
Ergueu a mão magra, os ossos do pulso muito salientes, e levou o copo aos lábios. Estava
tão trêmula que os dentes batiam no copo enquanto ela bebia.
A claridade permitiu que Carina observasse lady Lynche e ficou penalizada ao constatar
que estava muito doente. Já tinha percebido pelo sotaque que ela não devia ser inglesa. Agora
notava os olhos amendoados, negros como os cabelos, e deduziu que lady Lynche era oriental.
"Ela deve ter sido linda antes da doença", refletiu.
Lady Lynche colocou o copo vazio sobre o criado-mudo, ergueu-se um pouco no
travesseiro e perguntou:
— Você está a par do que deve fazer?
— A sra. Macey disse-me que eu devia acompanhar seu filho numa viagem — Carina
respondeu.
— Isso mesmo. Estou muito doente e não posso viajar.
Carina correu os olhos pelo quarto esperando descobrir o menino escondido, mas viu um
grande baú aberto, como se alguém tivesse começado a arrumá-lo e não terminara a tarefa.
Dentro do baú, sobre o encosto de uma poltrona e sobre o tapete estavam vestidos finos, de
seda, cetim, brocado, de todas as cores: carmesim, malva, azul, verde-esmeralda, ouro. Havia
também casacos, blusas bordadas com pedraria, xales com longas franjas de seda. Mas
nenhum sinal da criança.
Como se soubesse o que Carina estava procurando, lady Lynche explicou:
— Meu filho está com a senhoria. Ela trouxe o médico para me examinar... eu não tenho
muito tempo de vida. Não posso levar o menino.
— Para onde ele deve ir?
Lady Lynche franziu o rosto, como se estivesse sentindo muita dor. Quando encontrou
forças para falar, murmurou:
— Para o pai. — Lady Lynche segurou a mão de Carina. — Você promete que levará o
pequeno para o pai e dirá a ele o que eu lhe pedir para dizer?
— Está bem, mas onde ele mora? E o pai do garoto é lorde Lynche?
— Sim, é esse o nome dele — lady Lynche afirmou. — Ele sempre me dizia que não tinha
dinheiro. Vivia repetindo: "Somos pobres! Dependo do meu pai e serei muito rico só depois da
morte dele. Então tudo será diferente". Recentemente ele herdou a fortuna do pai, pois o
velho lorde Lynche faleceu. Mas eu não viverei para ter as coisas que ele me prometeu.
— Não fale assim. A senhora ficará curada — Carina falou em tom confortador.
— Eu sei que a minha doença não tem cura. Mas não quero viver, pois não posso mais
dançar. Porém, meu filho... o menino... deve ficar aos cuidados do pai...
— O pai do menino cuidará dele... pagará seus estudos... e dará ao filho... o que me
negou. Você promete que... levará meu filho?
— Sim, milady. Levarei o menino até o pai — Carina prometeu.
— Obrigada. E tudo que eu queria saber. Agora... vá até a porta e chame a sra. Bagot.
Uma mulher robusta veio ao encontro de Carina.
— Lady Lynche pediu-me para chamá-la. Sua Senhoria deseja vê-la.
— Você foi indicada pela agência Macey, não? Pretende fazer o que Sua Senhoria lhe
pediu? — indagou a sra. Bagot.
— Sim, prometi levar o menino ao pai.
— Ótimo. Essa era a maior preocupação da pobre mulher. Estou vendo que a agência
soube escolher a pessoa certa. Você tem aparência de lady e merece confiança. Foram estas
as qualidades que exigi quando fui à agência esta manhã. Lady Lynche pode entregar
tranqüilamente o garoto aos seus cuidados.
— Obrigada — Carina agradeceu com um sorriso. — A senhora acha que lady Lynche vai
morrer?
— Não há nada que possa salvá-la e ela sabe disso. Pobre alma! Quando chegou aqui era
pele e osso. Essas dançarinas são frágeis, não têm resistência.
— Ela era uma dançarina famosa?
— Eu diria que sim, não por ter ouvido falar dela, mas pelo que vi nos recortes de jornais
e revistas. Lady Lynche tem um álbum cheio deles, colados com capricho.
— Qual a nacionalidade dela?
Depois de ter feito a pergunta, Carina achou que não devia mostrar-se tão curiosa. Porém
notou que a sra. Bagot tinha prazer em dar as respostas.
— Lady Lynche me disse que a mãe era javanesa e o pai holandês. Antes da doença ela
era muito bonita. Mas agora, o coração e os pulmões estão comprometidos. O médico deu-lhe
apenas alguns dias de vida. Que Deus tenha piedade de sua alma quando chegar a hora.
— Não seria melhor mandarmos chamar lorde Lynche? — Carina sugeriu.
— Não, Sua Senhoria não quer. De mais a mais, é bem provável que ele não queira vê-la.
Lorde Lynche abandonou-a há quase seis anos. Fez com que ela deixasse a dança, jurou que a
amava e depois abandonou-a. Oh, os homens são todos iguais! Lady Lynche não morava na
Inglaterra. Ela e o menino estiveram viajando durante nove meses para chegar aqui. Ela
trabalhava um pouco, ganhava algum dinheiro e continuava a viagem. Foi uma peregrinação.
— Lorde Lynche sabe que tem um filho?
— Nunca soube. Pelo menos foi o que disse lady Lynche. O garoto é um encanto. No
momento está lá embaixo brincando com meu gato.
— Quer dizer que eu devo levar o menino para o pai e lorde Lynche nem sabe da
existência do filho?
— Exatamente. Mas é a última vontade de lady Lynche e quem pode deixar de atender ao
pedido de uma pessoa no seu leito de morte? A pobre alma se matou para chegar até aqui.
— Não sei o que dizer. Esta é uma situação incomum.
— Você precisa do emprego, não? Pois faça o que Sua Senhoria lhe pediu e receberá pelos
seus serviços.
— Dê-lhe... vinte libras — pediu lady Lynche com voz sumida.
Surpresa, a sra. Bagot ia dizer que era muito dinheiro, mas conteve-se. Com os dedos
gordos tirou da carteira quatro notas de cinco libras e entregou-as a Carina.
— Agora dê-lhe cinco guinéus... para a viagem — acrescentou a enferma.
Carina pegou um grande envelope cinzento e entregou-o na mão trêmula de lady Lynche,
que tirou de dentro dele duas folhas de papel e explicou:
— Aqui está a certidão de nascimento de Dipa. Veja... o nome do pai... nela. Lorde Lynche
não poderá negar que o menino é seu filho. Este outro documento é... a nossa certidão de
casamento. Nós nos casamos em Paris e a criança nasceu em Java, sete meses após meu
marido ter-me abandonado.
Carina olhou para os dois documentos e refletiu que estava vivendo uma estranha
experiência. Nunca lhe passara pela mente que, ao subir a escada para ir à agência da sra.
Macey, iria lhe acontecer algo semelhante.
A voz de lady Lynche interrompeu-lhe a divagação.
— Os recortes! São importantes! Não consigo achá-los.
Ela recostou-se nos travesseiros, parecendo exausta e fechou os olhos. A sra. Bagot
pegou o envelope, procurou no seu interior e, encontrando um pequeno recorte de jornal,
entregou-o a Carina e ela leu o que estava assinalado com lápis vermelho:

Londres, Inglaterra, 3 de novembro de 1900. Lorde Lynche, governador do condado de


Gloucestershire, faleceu em 23 de outubro, no castelo Lynche, com a idade de 75 anos.
Sucedeu-o seu filho.

— Esta é a prova de que o marido de lady Lynche herdou o título e a fortuna deixada pelo
pai — disse a sra. Bagot.
— Bem, aqui não menciona onde fica o castelo e eu ainda não sei aonde devo levar o
menino — observou Carina.
— Espere um momento. Sei que há outro recorte — replicou a sra. Bagot, voltando a olhar
dentro do envelope. — Achei.

Ela entregou a Carina um recorte tirado de uma revista. Nele estava assinalado o trecho:

O Castelo Lynche, pertencente à família Lynche, é uma das mais famosas residências da
Inglaterra. Está situado perto dos montes Cotswolds e voltado para o vale de Evesham e os
montes Malvern. Foi construído no período normando e vem passando de pai para filho desde
1092.
— Como pode ver, você irá para um lugar histórico — assinalou a sra. Bagot. — Já me
informei sobre a viagem. Você e o menino devem pegar o trem na estação de Paddington e
viajarão até Moreton-in-Marsh. E agora, posso pedir a Agnes que chame uma carruagem de
aluguel?
— Não! Um momento! — Carina exclamou. — Tenho de pegar a minha própria bagagem.
— Você poderá fazer isso a caminho da estação — tornou a sra. Bagot. — Não vê que Sua
Senhoria está ansiosa para que o filho vá ao encontro do pai?
— Está bem — Carina concordou.
— Isso mesmo. Agora vou buscar Dipa. Não sei o que o pequeno está aprontando.
A sra. Bagot saiu e Carina ficou no quarto. Pouco depois, lady Lynche abriu os olhos.
— Onde está meu filho?
— Ele já vem para despedir-se da senhora.
— Eu o amo muito e... nunca me separaria dele... nunca...
Emocionada, Carina sentiu os olhos rasos de lágrimas. Imaginou como lady Lynche estaria
sofrendo por saber que iria morrer em breve e teria de entregar o filho aos cuidados de uma
estranha. Para tranqüilizar a enferma, falou com bondade:
— Prometo cuidar bem do pequeno Dipa.
Lady Lynche fechou os olhos e mergulhou num estado de inconsciência.

Assim que a carruagem de aluguel chegou, Carina deu ao cocheiro o endereço: Park
Street, 89. Ao chegar ao rico e elegante bairro de Mayfair, ela desceu do veículo, pediu a Dipa
para ficar quietinho por alguns minutos enquanto ela ia buscar sua bagagem. Entrou em
seguida em uma mansão imponente e a mulher idosa, de cabelos brancos que abriu a porta
exclamou ao vê-la:
— Até que enfim está de volta, srta. Carina! Eu já estava preocupada, achando que teria
acontecido alguma coisa.
— Aconteceu muita coisa, Nannie — respondeu Carina entrando no amplo hall e indo para
a sala de estar, cujas janelas se abriam para um jardim.
Tanto o hall como a sala de estar estavam vazios.
— O que foi? — Nannie indagou, apreensiva. — O que esteve fazendo?
— Nannie, consegui um emprego. Apesar de estranho e até assustador, aceitei-o. O
importante é que não estarei aqui amanhã cedo, quando eles chegarem.
— Veja bem, minha querida, o que vai fazer. Talvez fosse melhor você ficar em casa.
Afinal, aqui você estará segura — ponderou Nannie.
— Segura? — Carina repetiu com desdém. — Que importa a segurança, tendo de suportar
a prima Emma e o primo Herbert? Você sabe que eles sempre nos detestaram. Prefiro morrer
a viver da caridade deles.
— Bem, querida, fale-me sobre esse emprego. Você vai trabalhar para pessoas de
respeito, não é mesmo?
— Não sei o que dizer da pessoa que me empregou. Ela deu-me vinte libras.
— Vinte libras! — A velha governanta ficou pasmada.
— Exatamente. Parece uma fortuna, depois do que passamos nas últimas semanas, não?
— Carina tirou da bolsa duas notas de cinco libras e deu-as à governanta. — Fique com isto,
Nannie. Com esse dinheiro você poderá ir para a casa de seu irmão, em Hertford, e ainda lhe
sobrará o bastante para ir vivendo até que eu lhe mande o que conseguir economizar.
— Não posso pegar esse dinheiro, srta. Carina. Vai precisar dele — protestou Nannie,
empurrando a mão de Carina.
— Eu insisto, Nannie — disse Carina colocando as duas cédulas no bolso do avental da
governanta. — Não seja teimosa. Você sabe que lhe devo muito mais do que isso. Usei as
suas economias anos atrás.
— Vou guardar o resto das suas coisas no baú. Deixei só os artigos do toucador para fora.
Mas você ainda não me disse para onde está indo.
— Para Moreton-in-Marsh.
— Esse lugar fica em Gloucestershire. É uma longa viagem até lá. Você vai precisar de um
agasalho. Já é quase setembro e as noites costumam ser frias. Vou tirar de um dos baús a
estola de pele de marta que pertenceu a sua mãe.
Carina não respondeu. Foi até a janela para ver a carruagem. Não viu o cocheiro e
deduziu que ele já tinha entrado na casa para ajudar Robert. Não tardou a ouvir a voz do
criado dando suas instruções:
— Firme aí! Vamos descer a escada!
Lágrimas. vieram aos olhos de Carina. Lembrou-se da mãe tão alegre, e, depois, do seu
caixão sendo carregado devagar por aquela mesma escada. A voz de Nannie trouxe-a de volta
ao presente.
— Está tudo pronto, querida. Aqui está a estola de peles. Use-a sobre os ombros, pois nos
trens costuma haver vento encanado.
A governanta parou ao ver lágrimas descendo pelas faces de Carina. Falou em outro tom:
— Vamos, minha criança, não chore. Tudo correrá bem. Você passou por maus
momentos, mas Deus olhará por você.
Por um instante Carina encostou o rosto no da governanta e sentiu-se confortada pela
velha senhora que lhe dedicara tanto amor e afeição naqueles vinte e um anos. Por fim,
ergueu o rosto.
— Preciso ir. Estou cuidando de uma criança e deixei-a sozinha na carruagem.
— Oh, por que não a trouxe para dentro? Eu lhe daria leite e biscoitos. Qual é o nome da
menina?
— É um menino, Nannie, e chama-se Dipa.
— Que nome estranho!
— Deve ser javanês. O garoto nasceu em Java. Os olhos de Nannie turvaram-se,
preocupados.
— Em que está se envolvendo, srta. Carina? Está trabalhando para estrangeiros?
— Sim e não, Nannie. O pai de Dipa é inglês, seu nome é lorde Lynche e mora no Castelo
Lynche. Vou levar o menino para ele — Carina esclareceu.
— Lorde Lynche... Esse nome não me é estranho. Sim, ouvi falar no Castelo Lynche, que
fica em Gloucestershire. Houve alguma coisa no castelo... — Nannie murmurou como se
estivesse falando consigo mesma. De repente, disse em outro tom: — Fique tranqüila,
querida. Lorde Lynche é inglês e você estará bem no castelo. Tenho certeza disso.
Não passou despercebido a Carina que a governanta ia mencionar uma coisa bem
diferente. Porém se calara, lembrando-se a tempo de que não devia dizer nada que pudesse
tornar a viagem mais difícil ou deixá-la preocupada, antecipando que iria defrontar-se com
uma situação desagradável.
A vontade de Carina foi dizer:
— Oh, Nannie, Nannie, você é tão transparente quanto um copo com água da fonte!
Contudo, ficou em silêncio. Pegou a estola que Nannie tinha no braço, a bolsa, e seguiu
para a escada, dizendo:
— Devo apressar-me para não perder o trem. Nannie desceu a escada atrás dela. No hall
encontraram
Robert e o cocheiro terminando de carregar o ultimo baú para a calçada. A seguir os dois
colocaram alguns baús na parte traseira da carruagem, outros na boléia e os menores dentro
do veículo.
Dipa estava na janela da carruagem falando com os dois homens.
— Um, dois, três. Estes são grandes. Vocês querem ajuda?
— Não saia daí, filhinho. Se descer e ficar debaixo dos meus pés, sou capaz de esmagá-lo
como um besouro — tornou o cocheiro.
— É este o menino? — Nannie perguntou, os olhos fixos no garoto e uma expressão de
espanto. — Ele é todo oriental.

CAPÍTULO II
Depois de muita excitação, Dipa cansou-se e adormeceu nos braços de Carina bem antes
da chegada a Moreton-in-Marsh, tarde da noite.
Na estação de Paddington Carina recebera a informação de que teria de ir até Oxford,
onde haveria outro trem com conexão para Moreton-in-Marsh. Entretanto, por causa de um
problema na linha, eles perderam o primeiro trem e só embarcaram no seguinte, três horas
mais tarde.
Ocorrera a Carina que talvez fosse mais conveniente ela e Dipa dormirem em um hotel.
Porém, a urgência de chegar ao castelo, ainda que em horário impróprio, fez com que
decidisse esperar na estação de Oxford com o garoto.
Tudo estava deserto na estação de Moreton-in-Marsh. Carina procurou o chefe da estação
e explicou que queria ir até o castelo Lynche. A menção das duas últimas palavras teve um
efeito mágico e homem, bem impressionado com a visitante, mandou imediatamente um dos
funcionários acordar um cocheiro para levar a jovem lady e uma criança até o castelo.
O que pôde conseguir foi uma carruagem velha, cheirando a mofo e couro apodrecido,
puxada por um cavalo mais velho ainda.
O trajeto até o castelo não era longo, mas foi demorado porque a estrada era íngreme e o
animal lento demais. Dipa continuou dormindo, recostado em Carina. Passava da meia-noite
quando a carruagem parou na frente de um imponente portão de ferro batido, preso a pilares
de pedra tendo cada um deles, ao alto, um leão heráldico.
Um guarda sonolento abriu o portão. Ao ver-se aproximando do castelo, Carina sentiu
medo e quase se arrependeu de ter-se envolvido na presente situação. Mas Dipa mexeu-se e
ela apertou-o junto do peito, decidida a lutar pelos direitos do pobre menino. Lorde Lynche se
casara com a mãe do garoto; portanto, não poderia renegar a criança que nascera desse
casamento e tinha o sangue dele.
Contudo, não sendo tola, Carina tinha certeza de que sua tarefa seria difícil, muito difícil.
Fechou os olhos e fez mentalmente uma oração para tudo correr bem. Quando os abriu, teve
a sensação de que o céu respondia à sua prece, pois a lua apareceu subitamente entre as
nuvens e seus raios luminosos pratearam a paisagem. Ali estava o castelo, enorme e
majestoso, com suas torres, delineado contra o céu. Na frente dele, o lago parecia feito de
prata.
A carruagem atravessou a ponte de pedra e, pouco depois, parava na frente dos degraus
de entrada da construção muitas vezes centenária. Apesar de ter visto luz em algumas
janelas, Carina sentiu o coração apertado de medo. Delicadamente, afastou Dipa do seu peito
para acordá-lo e falou suavemente:
— Chegamos, querido.
O menino esfregou os olhos com as mãos, bocejou, murmurou alguma coisa em javanês e
depois, desperto, perguntou:
— Que lugar é este? Ainda é de noite? Está escuro.
— Chegamos ao Castelo Lynche. Seu pai mora aqui — Carina respondeu.
No trem, durante a viagem, ela havia explicado ao menino que estavam indo para o
castelo do pai dele.
— O meu pai é lorde Lynche?
— Isso mesmo. E você tem o nome dele, você é o pequeno lorde Lynche.
— Eu sou Dipa. Dipa não tem pai lorde Lynche — corrigiu o garoto, rindo.
Carina compreendeu que era cedo para explicar certas coisas a uma criança que começara
a aprender inglês só recentemente. Entusiasmado, Dipa ficou repetindo como um papagaio.
— Chegamos! Chegamos!
O cocheiro desceu da boléia, subiu os degraus da frente do castelo e puxou o cordão da
campainha. Para surpresa de Carina, nem um minuto se passou e a porta abriu-se. Um feixe
de luz clareou os degraus de pedra. Um lacaio perfeitamente uniformizado apareceu seguido
de outros dois.
O cocheiro voltou para a carruagem, abriu a porta para Carina descer e ergueu Dipa nos
braços, colocando-o no chão. O menino quis sair correndo, mas ela segurou-lhe a mão e
recomendou-lhe:
— Espere-me e quando entrar no castelo, tire o boné. Ambos subiram os degraus e
entraram em um imenso e magnífico hall com piso de mármore branco e preto e altas
colunas, também de mármore, sustentando o teto com arcos. Estava iluminado por dezenas
de velas que ardiam em arandelas de prata. Um mordomo idoso, de cabelos brancos, veio ao
encontro de Carina.
— Lorde Lynche encontra-se em casa? — ela perguntou. Para sua própria surpresa, a voz
soou clara e firme.
— Sua Senhoria a espera?
— Não, mas eu gostaria de vê-lo imediatamente. Por favor, avise-o que vim de longe e
jamais o perturbaria em hora tão imprópria caso o assunto não fosse de grande importância.
— Irei avisar Sua Senhoria da sua chegada. Queira acompanhar-me, madame.
Os olhos do mordomo não se voltaram para Dipa uma única vez, porém Carina teve a
desconfortável sensação de que o velho estava surpreso e curioso, só não o demonstrava
porque seu cargo exigia discrição.
Sempre segurando na mão de Dipa, Carina seguiu o mordomo. Eles atravessaram o
grande hall, chegaram a um menor onde havia uma majestosa escadaria de mármore, curva,
com a balaustrada toda esculpida. O mordomo abriu uma porta à direita da escadaria, mas
antes de convidar os visitantes para entrar, outra porta atrás deles abriu-se. Ouviu-se o som
de vozes, risos e um homem apareceu no hall.
Pela porta aberta Carina pôde ver vários homens sentados a mesas de jogo, cobertas de
feltro verde. Eles tinham cartas nas mãos e do seu lado viam-se copos de vinho. Havia fumaça
no ar e cheiro de tabaco. Era uma cena que ela vira tantas vezes antes que sentiu uma
pontada no peito.
A porta fechou-se e Carina prestou atenção ao homem parado a poucos passos de
distância. Sua primeira impressão foi a de jamais ter visto um homem tão atraente. Logo
notou que havia nele uma expressão de ceticismo no modo como ele curvava os lábios.
— O que é, Newman? — ele perguntou com certa rudeza.
— Esta lady acaba de chegar, milorde, e deseja vê-lo.
— A esta hora da noite?
O homem encarou Carina de modo tão hostil que ela sofreu um choque. Ele olhou de
relance para o menino e perguntou com rispidez:
— Quem é você e o que deseja? Carina inspirou fundo.
— Talvez seja melhor conversarmos a sós — ela sugeriu, nervosa.
— Por quê? Estou ocupado — lorde Lynche alegou. — Volte pela manhã e marque o
horário com Newman. Ele sabe quando estarei livre para atendê-la.
Ele teria virado as costas para entrar na sala, mas Carina deu um passo e estendeu a
mão.
— Um momento. Desculpe-me por vir aborrecê-lo em horário tão inconveniente, mas foi
impossível chegar antes. Preciso falar-lhe sobre algo importante, que lhe diz respeito.
— Importante e me diz respeito? Que droga!
Lorde Lynche parou. Carina percebeu que ele não estava bêbado, mas bebera em
excesso. Oscilava um pouco e a voz não estava tão clara.
— Olhe aqui — ele prosseguiu —, se você veio pedir dinheiro, diga logo e me deixe em
paz. De quanto precisa? Cinco libras? Acho que é ótima quantia. Mais do que eu ganhei esta
noite.
— Não, não! Não vim pedir-lhe dinheiro — Carina disse depressa. — Por favor, vamos
conversar a sós e eu lhe explicarei do que se trata.
— Veja bem, cara jovem, estou com hóspedes e não tenho tempo de ouvir sua história.
Deve ser triste e histórias tristes me aborrecem. Aceite as cinco libras que estou lhe
oferecendo ou vá embora de mãos vazias.
Acabando de falar ele encarou Carina, novamente, com interesse. Um sorriso malicioso
marcou-lhe os lábios como se ele tivesse notado, só então, que se achava diante de uma
jovem muito bonita. Sentindo-se insultada, Carina indagou:
— Não concorda em falar comigo a sós?
— Não — lorde Lynche replicou, segurando a cédula de cinco libras.
— Muito bem. Tentei ser discreta, milorde, mas vou dizer a que vim. Estou aqui a pedido
de sua esposa.
— Minha esposa?! — lorde Lynche repetiu, atônito. — Por Deus, o que está dizendo?
— Sua esposa está morrendo e não pôde vir pessoalmente. Por isso pediu-me para trazer-
lhe seu filho. Tenho comigo a certidão de casamento e a de nascimento do menino.
Por um momento lorde Lynche apenas fitou Carina como se estivesse achando que ela era
maluca. Depois, com a voz apertada na garganta, conseguiu dizer:
— Meu filho?!
— Sim. — Carina abriu a bolsa e apresentou dois documentos a lorde Lynche. — Aqui
estão as certidões de seu casamento com lady Lynche e a de nascimento do garoto. Ele
nasceu em Java, sete meses depois que o senhor abandonou a mãe dele.
Lorde Lynche pegou as certidões e ficou por um instante com os olhos fixos, ora em uma,
ora na outra, tendo uma expressão de incredulidade.
— Meu filho — repetiu baixinho.
De repente, inclinou a cabeça para trás e deu uma sonora risada. O som ecoou pelo hall e
Carina olhou para aquele homem, perplexa, achando que ele estava fora de si. Dipa, que até
então se mantivera quieto, alheio à conversa dos adultos, riu também.
— Creio que o senhor não entendeu que a sua esposa está morrendo! — Carina falou em
tom severo.
A voz dela fez com que o riso de lorde Lynche cessasse imediatamente. Ele fitou-a com
uma expressão que ela não soube definir e disse:
— Vamos subir.
Antes que eles se dirigissem para a escada, a porta atrás de lorde Lynche abriu-se e um
homem de meia-idade, com as têmporas grisalhas, trajado com elegância, mas meio curvado,
apareceu no hall e disse, impaciente:
— Justin, o que faz aí? Estamos esperando por você!
— Chegaram visitantes, Percy — lorde Lynche respondeu e acrescentou depois de uma
pausa: — ...para minha mãe.
— A esta hora da noite! — reclamou Percy, aproximando-se de lorde Lynche.
Carina olhou para Percy e refletiu que jamais vira um homem com expressão tão
depravada. Na camisa dele reluziam os botões e as abotoaduras, todos de pérola cercada por
pequenos diamantes.
— Não vai apresentar-me a moça, Justin? — indagou Percy, os olhos concupiscentes fixos
em Carina.
Ela sentiu repugnância ao ouvir aquela voz pastosa.
— Não, Percy, nada de apresentações — replicou lorde Lynche. — Volte para suas cartas.
Estarei com vocês num instante.
Lorde Lynche deu as costas ao amigo e indicou a escada para Carina. Ansiosa para
afastar-se daquele homem com olhar lascivo, ela segurou firme na mão de Dipa e subiu com
ele a majestosa escadaria.
— Aonde vamos? Escada muito grande! — o menino foi tagarelando.
Lorde Lynche seguiu-os e quando todos chegaram ao patamar, ele adiantou-se e
caminhou apressado pelo corredor.
"Vamos ver a mãe dele", Carina pensou, com certo alívio.
Pelo menos havia uma mulher no castelo. Só então ela teve consciência do perigo que
poderia ter encontrado, chegando a uma casa estranha, no meio da noite, para ver um
homem que vivia como solteiro.
Do alto da escadaria ela olhou para baixo e viu Percy no meio do hall, fitando-a de modo
libidinoso. Ela virou a cabeça imediatamente e apressou o passo para seguir lorde Lynche. Ele
parou no final do corredor e bateu numa porta alta, de mogno.
— Entre! — respondeu uma mulher com voz aguda e autoritária.
Lorde Lynche abriu a porta e entrou em um quarto amplo, seguido de Carina e Dipa. Ela
admirou a cama enorme, com quarto colunas entalhadas com anjos dourados, tendo cortinas
de brocado azul-pavão. No alto do dossel havia um tufo de plumas azuis e carmesins que
quase tocavam o teto. Mas não foi a cama que chamou a atenção de Carina após o primeiro
instante, mas, sim, a mulher recostada nos travesseiros.
Era pequenina, idosa, muito enrugada, porém dela emanava majestade e força. Tinha os
cabelos grisalhos, ou talvez fosse uma peruca, artisticamente penteados, formando um grande
coque no alto da cabeça. Ao redor do pescoço magro ela usava um colar com várias fileiras de
pérolas magníficas e nos dedos nodosos e nos pulsos de ossos salientes havia anéis e
braceletes de pedras variadas: esmeraldas, rubis e diamantes.
— Que surpresa vê-lo a esta hora, Justin! — exclamou a viúva lady Lynche.
— Temos visitantes, mamãe, e achei que a senhora iria querer vê-los — explicou lorde
Lynche.
— Visitantes? — Lady Lynche voltou o olhar para Carina e Dipa. — Quem são eles e por
que vieram até aqui a esta hora?
— Eu tinha certeza de que a senhora iria ficar curiosa. Carina notou, perplexa, que lorde
Lynche falava com a mãe em tom provocativo.
— Quem são eles? Diga de uma vez! — exigiu a velha senhora, zangada.
Subitamente, Dipa soltou da mão de Carina e correu para perto da lareira, onde estava
um spaniel preto e branco, deitado sobre o tapete.
— Um cachorro! Cachorrinho! — gritou o menino, entusiasmado.
— Vim até este castelo a pedido de lady Lynche, para trazer o garoto para o pai — disse
Carina, aproximando-se da cama.
— Lady Lynche?! Quem é lady Lynche? — inquiriu a velha senhora, alteando a voz.
— Então? Está interessada na história, mamãe? — volveu lorde Lynche colocando na
cama, do lado da mãe as duas certidões que Carina lhe dera.
Ela pegou o lornhão1, leu os dois documentos, depois atirou-os com força para o lado e
exclamou:
— Não é verdade! É um engano ou uma trama! É tudo mentira...
— Enganada está a senhora, mamãe. O que está escrito aí é verdade — o filho a
contradisse. — E agora, o que a senhora sugere que façamos com o garoto?
Lady Lynche não se dignou a responder. Olhou para Carina e perguntou em tom hostil:
— Quem é você? De onde vocês vieram?
— Fui contratada como governanta por lady Lynche, que está morrendo. Ela pediu-me
para trazer o filho a este castelo, para morar com o pai. Aquele é Dipa; tem cinco anos e fala
um pouco de inglês — Carina respondeu.
— Fala um pouco de inglês! E um insulto você dizer que ele é um Lynche!
— Eu só repeti o que a mãe do menino me disse. Dipa é filho de lorde Lynche e da
senhora que me contratou.
— Você mencionou que a mãe do menino está nas últimas. Quem é ela? E por que o
garoto tem traços de oriental? — inquiriu a viúva lady Lynche.
— A mãe dele é javanesa — explicou lorde Lynche.
— Javanesa! — a velha senhora exclamou, pasmada.
— Lamento, mamãe, mas a senhora terá de aceitar o fato de que essas certidões são
verdadeiras.
— Não aceito! São mentirosas. Vamos falar com nossos advogados e provar que estes
documentos são falsos! Mande buscar essa mulher e obrigue-a a dizer a verdade, Justin!
— Provavelmente lady Lynche já está morta — disse Carina suavemente. — E mesmo que
não esteja, ela não terá condições de viajar.
— Fique quieta! — ordenou a velha senhora, zangada. — Não pedi a sua opinião.
Carina baixou os olhos, reconhecendo que falara demais.
— A senhora deve aceitar a situação, mamãe. As certidões são autênticas. — insistiu lorde
Lynche.
— Rasgue esses papéis e atire-os ao fogo! — esbravejou a viúva.
1
Instrumento de óptica, formado de duas lentes engastadas em uma armação sem hastes, com um cabo, e
que se põe sobre o nariz
— De que adiantaria? — questionou o filho. — A senhora não acha que está recebendo seu
neto de maneira muito descortês?
— Neto?! Não se atreva a dizer que esse pirralho de raça amarela é meu neto!
— E seu neto, sim, mamãe.
— Você quer dizer que... ele realmente é...
A velha senhora falou devagar e olhou para o filho como se houvesse um entendimento
secreto entre ambos. Ele assentiu com a cabeça e a mãe fechou os olhos, como se não
pudesse suportar a dura realidade.
— O que podemos fazer? — murmurou. — Este castelo... o nosso nome pelo qual sempre
zelei. E agora... isto?
— Não há nada que possamos fazer, mamãe, sabe disso. A viúva lady Lynche pareceu
recuperar as energias e voltou a falar com rispidez.
— Cale-se, Justin! Pensa que estou derrotada? Pois não estou!
Ela voltou-se para Carina.
— Vá até aquele horror e traga-o aqui. Quero vê-lo melhor.
Obediente, Carina foi até Dipa, distraiu-o para que deixasse de brincar com o cão e levou-
o para perto da viúva deixando-o sentado na cama. Ele encantou-se com as jóias de lady
Lynche e estendeu a mão para tocar os braceletes.
— Bonito! Bonito! — exclamou.
A viúva lady Lynche encolheu os braços e exclamou:
— Ele é todo amarelo! Se há uma gota de sangue inglês nele, não é visível. Quem é a
mãe dele?
— O nome dela é Chi-Yun — respondeu lorde Lynche.
— Isso não me diz nada. Como é essa mulher?
Notando que a pergunta tinha sido feita para ela, Carina respondeu:
— Sei bem pouco sobre lady Lynche. Ela era dançarina e deve ter sido linda, pois mesmo
agora, apesar da doença, é bonita.
— Dançarina! — repetiu a viúva com desdém. — Uma prostituta, certamente.
— Ora, mamãe! — protestou lorde Lynche. — A senhora está escandalizando a nossa
hóspede.
— Que fique escandalizada. Vamos, senhorita, o que mais você sabe sobre a mãe do
menino?
— A pessoa que estava cuidando de lady Lynche disse-me que a mãe dela era javanesa e
o pai holandês.
— Essa é, sem dúvida, uma história tirada de alguma revista feminina ou de uma das
novelas baratas, baseadas na vida das orientais do cais de Marselha para explicar o
nascimento de uma filha ilegítima! — a viúva exclamou com menosprezo. — O que mais?
— Não sei mais nada. Fui contratada hoje para trazer o menino até aqui — tornou Carina.
— Cumpri a minha tarefa e posso ir embora, se a senhora desejar.
Mal terminou de dizer tais palavras, ela reconheceu que estava quebrando a promessa de
cuidar de Dipa. Para o bem do menino ela devia mostrar-se determinada e não ser humilde e
submissa como queriam aquelas duas pessoas autoritárias e odiosas.
— Ir embora? Acha que eu iria permitir que você nos deixasse para espalhar aos quatro
cantos o que viu aqui? — desferiu a velha senhora.
— Mamãe! Mamãe! Está indo longe demais! — interveio lorde Lynche.
— E você? O que está fazendo para ajudar? Como sempre, está provando que é um fraco.
E melhor deixar que eu cuide deste assunto. Quem mais viu esses dois quando chegaram?
— Newman atendeu-os e deixou-os entrar. Depois sir Percy Rockley apareceu no hall
quando eu conversava com a moça.
— Então aquele homem os viu! — observou a viúva, acidamente. — Neste caso a criança
não pode ficar aqui, escondida.
Ela olhou para Carina e ordenou:
— Ponha o menino no chão. Quero falar com você. Assim que se viu no chão, Dipa correu
para perto do spaniel e foi dizendo com sua voz aguda, meio cantada:
— Cão! Cãozinho, quer brincar com Dipa?
A velha senhora, que tinha os olhos fixos em Carina, como se a analisasse, indagou:
— Será que podemos confiar em você?
Imediatamente Carina ergueu a cabeça, altiva, e retrucou:
— Depende do que a senhora irá pedir-me para fazer.
— Você tem espírito forte, hem? — A viúva deu uma risadinha. — Gosto de garotas assim.
Como se chama?
— Carina... Warner.
— Bem, srta. Warner, quem são seus pais?
Ambos estão mortos.
— Tem parentes?
— Bem poucos e raramente os vejo.
— Suponho que esteja trabalhando porque não quer depender de parentes e gosta de sua
independência.
— E verdade.
— Ótimo! Neste caso, você precisa de dinheiro. Bem, estamos dispostos a pagar-lhe muito
mais do que você já recebeu em um de seus empregos no passado. O que me diz?
— Vai depender do que a senhora pedir-me para fazer Carina repetiu.
— Queremos que você cuide do garoto, naturalmente — tornou a viúva, ríspida. — E não
será preciso acrescentar que você deve manter a boca fechada!
Notando que lorde Lynche mantinha-se impassível, ouvindo a mãe e parecendo concordar
com ela, Carina disse a si mesma:
"Ele é desprezível!"
— Você e o menino poderão permanecer no castelo — continuou a viúva —, mas ninguém
deve saber quem são os pais dele, entendeu?
— Mamãe! O que está dizendo? — lorde Lynche interrompeu a mãe novamente, mas
calou-se diante do gesto imperioso da velha senhora.
— Não seja tolo, Justin. Esta é a única saída. Não podemos mandar o garoto embora; e,
se ele tem de ficar aqui, é necessário que ninguém saiba quem é ele. Ou melhor, quem ele
finge ser, pois, eu, pessoalmente, não acredito que seja um Lynche.
A velha senhora estendeu a mão para pegar as certidões, mas o filho, entendendo o que
ela pretendia fazer, adiantou-se e pegou os dois documentos.
— Não, mamãe! Não pode destruí-los! Vou guardá-los em um lugar seguro.
— Queime-os! Obedeça-me e queime-os, agora! — ordenou a mãe.
— Não, mamãe. Vou guardá-los.
Mãe e filho entreolharam-se e, para surpresa de Carina, foi a viúva quem primeiro desviou
o olhos e falou sem agressividade:
— Está bem. Que diferença faz ter ou não esses documentos? Agora, o mais importante é
arranjarmos uma boa explicação para a presença do menino aqui. O que você disse a sir
Percy?
— Eu disse apenas que os dois eram visitas para a senhora.
— Muito bem. Você tem um pouco de inteligência — admitiu a viúva. — A srta. Warner e o
menino são apenas visitantes. Anos atrás, em uma de nossas viagens, seu pai e eu visitamos
o pequeno reino de Singora e nos hospedamos no palácio do rei. O garoto irá passar por neto
do rei e está hospedado neste castelo a meu convite. Anunciarei aos criados que ele é um
príncipe e deve ser tratado por "Alteza".
— Ora, mamãe, que história é esse de reino de Singora? O menino é javanês.
— Quem irá saber a diferença? — questionou a viúva bruscamente. — Para os ignorantes
todas as pessoas da raça amarela são chinesas. Os criados não fazem a menor distinção entre
um singorês, cingapuriano, cingalês, javanês ou o chinês da lavanderia.
— Seu plano é impraticável, mamãe.
— Por quê? Quem irá questionar o que eu disser? Ou quem irá se interessar por um
menino de cinco anos que recebi como hóspede? — A velha senhora olhou para Carina. — E
você, trate de mantê-lo longe de mim, ouviu bem? Recuso-me a pôr os olhos nesse pequeno
bastardo!
— Mamãe, o garoto é filho legítimo — corrigiu lorde Lynche calmamente.
— E o que dizem os registros — replicou a viúva. — Mas eu disse claramente que não
acredito que ele seja meu neto e nada me fará pensar de outra forma. Um Lynche! Uma
linhagem que remonta aos tempos normandos! Oh, Deus, se não fosse tão trágico, seria
cômico. E agora, Justin, volte para seus hóspedes e seja muito cuidadoso com o que disser a
sir Percy e àqueles seus amigos. Se houver a menor suspeita entre aqueles maledicentes, os
comentários correrão soltos no White's Club.
Novamente mãe e filho se entreolharam e algo se passou entre eles. Era uma mensagem
sem palavras, mas que ambos entenderam. Quase abruptamente, lorde Lynche desviou o
olhar e questionou:
— Por que não dizer a verdade, mamãe?
A mãe esmurrou a cama com as duas mãos.
— Está louco? Posso mandar colocá-lo em uma camisa de força se continuar a repetir
essas idéias malucas. Vamos, saia daqui. Volte para as suas cartas! Você só serve mesmo
para jogar è beber.
Para perplexidade de Carina, lorde Lynche não se importou nem um pouco com as ofensas
da mãe. Riu e, segurando a mão dela, levou-a aos lábios.
— Como eu sempre digo, mamãe, a senhora nasceu no século errado. A senhora é a
última das ladies do tempo da Regência. A sua linguagem, seu orgulho e, principalmente, a
sua coragem nada tem a ver com a Inglaterra vitoriana.
A velha senhora puxou a mão que o filho ainda segurava. Havia, porém, um meio sorriso
nos seus lábios, como se tivesse ouvido palavras lisonjeiras e divertidas.
— Saia! Volte para seus amigos e suas cartas — ela disse menos asperamente. — Deixe-
me a sós com nossos visitantes.
Lorde Lynche virou-se, curvou-se diante de Carina e olhou para Dipa que brincava com o
spaniel, sentado no tapete. Em seguida saiu, fechando a porta.
A velha senhora voltou-se para Carina e falou-lhe como se dirigisse a uma criadazinha
desobediente:
— Bem, srta. Warner, ficará neste castelo, mas já sabe como deve comportar-se, não?
O primeiro impulso de Carina foi replicar que iria sair daquela casa de loucos
imediatamente e que não tinha a menor intenção de envolver-se naquelas mentiras. Pensou
melhor e reconheceu que, se fosse contra o plano da velha senhora, só iria deixá-la furiosa e
ainda mais obstinada. Para seu próprio bem e pelo do menino, convinha ficar no castelo. Teria
um ordenado, casa para morar e estaria o tempo todo perto de Dipa, protegendo-o da avó
que o odiava e de lorde Lynche que não demonstrara afeição pelo filho.
Com altivez e até bravura, pois lady Lynche era tão dominadora, Carina respondeu:
— Tomarei conta do garoto e aceito as suas condições, milady. Farei isso não apenas
porque sinto afeição por Dipa, mas também porque eu não gostaria que mal nenhum lhe
acontecesse.
O tom de Carina ao invés de irritar a velha senhora, provocou-lhe o riso.
— Está com receio de que eu mate o pirralho? Bem, pode ser que você não esteja muito
enganada. — Bem séria a velha senhora acrescentou: — De uma coisa esteja certa, srta.
Warner: eu sempre digo a verdade. Não nego que eu gostaria que esse menino nunca tivesse
nascido e não me entristeceria se o visse morto. Entretanto, ele está aqui e suponho que devo
fazer alguma coisa por ele. É por isso que vou aceitá-la no castelo. Cuide do garoto e jamais
revele quem é ele realmente. Se uma palavra sair de sua boca, não me responsabilizo pelo
que possa acontecer.
Por um momento Carina apenas encarou a viúva, atônita. Parecia-lhe incrível que tivesse
ouvido semelhante discurso em uma sociedade que considerava civilizada e numa época tida
como moderna.
De repente, a velha senhora assinalou, a voz mais branda:
—Você é jovem e muito bonita para ser uma governanta. Não haveria outra coisa que
pudesse fazer?
— Não, milady, nada.
— Você parece uma lady. Suas roupas, a estola de pele de marta me fazem pensar que
você já viu tempos melhores. Pode imaginar o que seja a vida de uma governanta? Não será
fácil viver numa casa ocupando um cargo que não a deixará à vontade com os patrões,
tampouco com os criados.
— O que mais uma moça da minha idade, minha educação e cultura poderá fazer para se
manter? Ocorreram-me duas possibilidades: trabalhar como governanta ou acompanhante de
uma senhora idosa.
— E você preferiu ser governanta. Bem, está empregada.
Porém, só Deus sabe se conseguirá ensinar alguma coisa a esse menino. Conheço os
orientais; superficialmente são espertos, mas são obtusos na essência. Enfim, o que isso
importa?
— Importa para Dipa — tornou Carina.
—Será? Duvido.
O tom da velha senhora pareceu a Carina conter uma ameaça. Se pudesse, sairia daquele
lugar com Dipa e iria para bem longe daquelas pessoas incompreensíveis e excêntricas,
principalmente daquela mulher horrível que desejava ver o garoto morto. Contudo, viu-se
dizendo em tom de desafio:
— Cuidarei de Dipa, vou dar-lhe aulas e também o protegerei de tudo e de todos.
— Muito bem — assentiu a velha senhora sem dar importância ao tom de Carina. —
Esqueça quem é o menino. Nós o chamaremos pelo nome "Dipa", com o qual ele está
acostumado. No entanto, ele será daqui por diante o príncipe Dipa de Singora, neto do
presente rei. Está na Inglaterra por tempo indeterminado, por motivo de saúde.
Terminando de falar, ela pegou uma sineta de prata que estava na mesinha do lado da
cama e tocou-a com força. Uma criada de cabelos brancos, aparentando sessenta anos,
atendeu prontamente e surpreendeu-se com a presença de Carina e o menino.
— Desculpe, milady, eu não sabia que a senhora tinha visitas. Não ouvi ninguém subir —,
disse a mulher.
— Estava dormindo, como sempre, não, Matthews? — acentuou a velha senhora
rispidamente. — Se dormisse apenas quatro horas por noite, como eu, sobraria mais tempo
para os seus deveres.
— Devo ter cochilado por um instante. Lamento, milady. Tive uma de minhas dores de
cabeça.
— Poupe-me de ouvir suas queixas, Matthews. Vá chamar a sra. Barnstaple.
— Sim, milady.
A sra. Matthews fez uma mesura e saiu do quarto. Mal a porta se fechou, a velha senhora
disse:
— Matthews é minha criada pessoal há quarenta anos e a conheço bem. Sei que ela está
morrendo de curiosidade para saber quem são vocês. Cuidado com ela, pois é capaz de extrair
a verdade de um surdo-mudo.
Antes de Carina responder, Dipa correu para perto da cama e perguntou:
— Qual é nome do cachorro? Dipa gosta dele.
— O nome dele é Bracken — lady Lynche respondeu.
Inclinando-se, olhou bem para o menino e sua expressão transformou-se, como se ela
estivesse sofrendo. Um murmúrio de incredulidade escapou dos seus lábios:
— Meu neto!
Uma mulher idosa, trajando vestido de seda preta, tendo presa à cintura uma corrente de
prata com um molho de chaves, entrou no quarto, apressada, e fez uma mesura diante da
patroa.
— Mandou chamar-me, milady?
— Sim, sra. Barnstaple. O príncipe Dipa de Singora honrou-nos com sua visita. Você deve
estar lembrada que anos atrás Sua Senhoria e eu visitamos aquele lindo país. Bem, o rei de
Singora pediu-me para hospedar seu neto durante um longo período, pois os médicos lhe
recomendaram uma mudança de clima. Infelizmente, por culpa de nosso correio ineficiente,
não recebi a carta de Sua Majestade avisando-me que o neto já havia partido. Para minha
grata surpresa, recebi o pequeno príncipe Dipa e sua governanta, a srta. Warner. Já expliquei
à srta. Warner qual o motivo de a nossa carruagem não estar na estação para esperá-los ou
mesmo por que Sua Senhoria não foi até Southampton para dar-lhes as boas-vindas assim
que deixaram o navio — explicou a viúva. — Agora, sra. Barnstaple, mande preparar os
aposentos para Sua Alteza e a governanta.
— Em poucos minutos a suíte do terceiro andar, onde há a sala de estudos e a de
brinquedos, estará em ordem — prontificou-se a sra. Barnstaple. — Ainda esta semana as
arrumadeiras arejaram aqueles cômodos e fizeram uma boa limpeza neles. Só falta arrumar
as camas e tirar os panos que cobrem os móveis.
— Deixo tudo em suas mãos. Ordene também que preparem um lanche para os nossos
visitantes.
— Certamente, milady. A cozinheira e suas ajudantes estão acordadas, pois Sua Senhoria
está oferecendo uma festa cara os amigos.
— Ótimo, sra. Barnstaple. — A viúva lady Lynche recostou-se nos travesseiros e fechou os
olhos, com evidentes sinais de cansaço. — Acompanhe Sua Alteza e a srta. Warner aos seus
aposentos e ordenem que levem o lanche lá para cima.
Nada mais havia a dizer. Carina foi até Dipa que tinha voltado a brincar com o cachorro,
deu-lhe a mão e acompanhou a sra. Barnstaple até o terceiro andar.
— Esta é a sala de estar e de brinquedos, que se comunica com a sala de estudos — disse
a mulher, abrindo a porta de um cômodo amplo com janelas que ocupavam toda a extensão
de uma parede. — Do lado ficam os quartos e o banheiro.
Vendo um cavalo de balanço a um canto da sala, Dipa correu para o brinquedo. Carina,
por sua vez, olhou ao redor e lembrou-se do seu tempo de criança. Havia na sua casa um
cômodo como aquele, com um biombo de quatro folhas, muito parecido com o que tinha à sua
frente, onde ela prendia seus recortes e, pelo Natal, ali fixava os cartões de Boas Festas.
A sra. Barnstaple sorriu ao notar o interesse de Carina e comentou:
— O velho biombo! Quantas vezes eu mesma prendi recortes nele. Nanny se zangava por
puro ciúme. É que Sua Senhoria gostava de mim e ficava me chamando: "Barnie, Barnie".
— Toda Nanny costuma ser ciumenta — Carina observou com simpatia, lembrando-se do
tempo em que Nannie cuidava dela, em Claverly, a mansão onde ela morava com os pais, no
campo.
— Ora, ora, senhorita, não devo ficar aqui com conversa — tornou a sra. Barnstaple. —
Vou chamar as arrumadeiras e pedir a um dos lacaios que traga alguma coisa para você e Sua
Alteza comerem. O que desejam?
— Comemos sanduíches na estação enquanto esperávamos pela carruagem. Traga apenas
um copo de leite e biscoitos para Dipa. E, se não lhe der muito trabalho, eu aceitaria um
xícara de chá.
— Não é trabalho nenhum.
A sra. Barnstaple saiu da sala e Carina foi para perto de Dipa.
— Este é um cachorro bem grande — disse o menino, puxando o cavalo para frente e
empurrando-o para trás, fazendo-o balançar.
— Este animal é um cavalo, Dipa. Repita: "cavalo".
O garoto repetiu a palavra várias vezes para demonstrar que a aprendera. Mas ele estava
cansado e adormeceu no colo de Carina antes de seu leite chegar.
As criadas arrumaram as camas e a bagagem também foi trazida para cima. Carina trocou
as roupas de Dipa, vestiu nele a camisa de dormir e deitou-o. Com os movimentos ele abriu os
olhos e quando encostou a cabeça no travesseiro, ergueu os bracinhos e passou-os pelo
pescoço de Carina, murmurando, sonolento:
— Dipa gosta do cavalo e gosta de você. Em seguida fechou os olhos.
Carina voltou para a sala de estar e encontrou a sra. Barnstaple à sua espera com o chá,
o leite, biscoitos e sanduíches.
— Deseja que as criadas desfaçam a bagagem, srta. Warner?
— Não, obrigada. Já é muito tarde e preciso de bem pouca coisa esta noite. Mas eu
agradeceria se mandasse uma das arrumadeiras ajudar-me, amanhã. Também lhe peço para
agradecer a quem preparou o lanche, mas só vou tomar o chá, pois Dipa já dormiu — Carina
falou amavelmente.
A sra. Barnstaple ia sair, mas decidiu perguntar depois de um instante de hesitação:
— A senhorita ensina há muito tempo?
— Não. Há pouco tempo.
— Talvez este seja o seu primeiro emprego — aventurou a sra. Barnstaple.
— E tão óbvio assim? — inquiriu Carina com um sorriso. — Eu esperava que a minha
aparência fosse de alguém experiente.
— Você parece muito jovem. — A sra. Barnstaple dirigiu-se para a porta e, antes de sair,
recomendou: — Perdoe-me, mas convém trancar a porta a chave.

CAPÍTULO III

O sol brilhava no lago e os cisnes deslizavam com majestade sobre a água serena. Entre
os juncos viam-se patos de plumagem com belíssimo colorido e pequenos pássaros cantavam
nos arbustos.
Dipa corria pelo gramado, tentando fazer com que os patos viessem comer na sua mão os
pedacinhos de pão que ele lhes oferecia.
Por um momento, Carina esqueceu o castelo enorme, de pedras cinzentas, delineado
contra o céu azul, o lago com as águas serenas refletindo o sol, e Dipa rindo, brincando com
os patos. Veio-lhe à mente uma cena familiar tão querida, em que ela corria risonha e feliz
para os braços da mãe, vestida de branco...
— Espero que tenha dormido bem — disse uma voz grave.
Sobressaltada. Carina virou-se e viu lorde Lynche a poucos metros dela, montado em um
soberbo cavalo negro. No seu alheamento ela não o ouvira aproximar-se. Ele ergueu o chapéu
ela notou que seus cabelos eram castanhos; na noite anterior tivera a impressão de que eram
negros.
— Dipa e eu passamos muito bem a noite, obrigada! — respondeu.
— Estão cuidando bem de vocês? Se precisar de alguma coisa, basta pedir para a sra.
Barnstaple.
— A sra. Barnstaple nos atendeu ontem à noite. Ela tem sido muito amável.
Lorde Lynche olhou para Dipa que ainda tentava fazer os patos se aproximarem, mas
acabava por espantar as aves com seus pulos e gritos. Sempre atenta a lorde Lynche, Carina
esperou notar na expressão dele alguma suavidade ao observar o menino, mas ele logo
voltou-se e disse-lhe com frieza:
— Mamãe quer vê-la ao meio-dia. Ela não recebe ninguém até esta hora.
— Obrigada pelo aviso. Irei com Dipa até ela.
Não passou despercebido a Carina o modo como lorde Lynche comprimiu os lábios.
Imaginou que aquela era uma maneira de ele demonstrar que não gostava do garoto; que não
queria cuidar do filho nem, ao menos, protegê-lo.
Não se contendo, Carina disse:
— Espero que me perdoe, lorde Lynche, mas talvez o senhor não tenha ouvido claramente
eu dizer que lady Lynche está morrendo.
— Eu a ouvi, sim — ele afirmou sem a menor emoção.
Diante de tal atitude, Carina viu-se forçada a dizer:
— A senhora que estava cuidando de lady Lynche esperava que o senhor fosse visitá-la
assim que soubesse do seu estado. Quando ela morrer, ninguém acompanhará o enterro.
Os olhos de lorde Lynche ganharam um lampejo de lâmina de aço e ele respondeu em
tom gélido:
— Creio, srta. Warner, que o assunto não lhe diz respeito!
Ruborizada, Carina deu as costas a lorde Lynche e foi ao encontro de Dipa.
"Bem que eu mereci essa resposta", disse a si mesma, embora não se arrependesse de
ter procurado fazer alguma coisa pela mulher que estava morrendo e que lorde Lynche um dia
tinha amado. "Por que são sempre as mulheres que sofrem? Lady Lynche deu um filho a lorde
Lynche e agora ele quer lavar as mãos, como se não tivesse responsabilidade nenhuma para
com a criança? Isso está errado, muito errado."
Ela pensou que o romance dos dois devia ter sido um período de beleza, entrega e paixão.
Porém, não conseguiu visualizar lorde Lynche vivendo emoções intensas. Ele parecia tão
reservado, frio e ríspido. Era de admirar que tivesse um filho tão sensível, dócil e amoroso
como o pequeno Dipa.
Carina ajoelhou-se perto do menino e ele abraçou-a, dizendo:
— Bonitos patos! Eles querem mais pão.
— Amanhã voltaremos para dar-lhes pão. Agora vamos passear um pouco. Nós
descobriremos outras coisas bonitas — Carina sugeriu.
— Eu quero ver mais patos, mais cachorros e cavalos. — Dipa virou-se e viu lorde Lynche.
— Um cavalo! — Ele correu pelo gramado com os braços abertos, indo ao encontro de lorde
Lynche, gritando sem medo: — Um cavalo! Um cavalo bem grande!
O animal empinou, assustado e lorde Lynche levou-o para longe do menino. Carina correu
atrás de Dipa chamando-o, mas ele não parou. Estava tão empolgado que continuou correndo
na direção do animal. Por fim, ela alcançou-o e recomendou-lhe:
— Cuidado, querido. Não grite nem chegue muito perto do cavalo. Assim você o assusta e
ele pode machucar você.
— Tome conta do garoto e ensine-o a não correr desse jeito, pois é perigoso — tornou
lorde Lynche em tom reprovador.
— Lamento, milorde — Carina desculpou-se. — Estou vendo que Dipa gosta de animais,
mas não está acostumado a vê-los e empolgou-se.
Lorde Lynche tocou a aba do chapéu com um gesto descuidado, esporeou o cavalo e
partiu a galope na direção do parque. Observando-o Carina admitiu que não poderia haver
cavaleiro mais elegante ou que montasse tão bem.
— Dipa também quer montar no cavalo — o menino pediu.
— Hoje, não. Um outro dia você fará um passeio a cavalo — Carina replicou, ressentida
porque lorde Lynche aparecera para perturbar aquela manhã tão tranqüila.
Segurando na mão do menino, caminharam para um dos lados do castelo onde vira os
jardins formais. Naquela parte ficavam o jardim de rosas, o de flores variadas e os tanques,
com plantas aquáticas e fontes esculpidas, representando figuras da mitologia. Todos eram
muito bem cuidados e maravilhosamente coloridos, em estilo elisabetano. Sebes de teixos
separavam um jardim do outro e além de um muro de tijolos vermelhos ficava o jardim de
plantas medicinais.
Em outra circunstância Carina teria ficado maravilhada com os jardins, mas no momento
estava aborrecida com a atitude de lorde Lynche e se recriminando pelo modo como tinha
falado com ele.
"Devo ter sempre em mente que sou apenas uma governanta", pensou, lembrando-se de
que as governantas que conhecera guardavam seus sentimentos para si próprias, eram
extremamente discretas, só falavam quando lhes dirigiam a palavra e mantinham-se de olhos
baixos.
Ela estava admirando a estátua de uma ninfa sendo perseguida por um sátiro quando
ouviu passos de alguém se aproximando. Imaginou que fosse lorde Lynche, mas olhou para o
lado e viu com desprazer sir Percy Rockley vindo na sua direção fumando um grande charuto.
A luz do dia ele pareceu-lhe ainda mais devasso e comparou-o ao sátiro de mármore que tinha
diante de si.
— O que está achando do castelo Lynche, srta. Warner? — ele perguntou ao chegar perto
de Carina.
— É muito bonito — ela respondeu, baixando os olhos recatadamente, como convinha a
uma governanta.
Sir Percy estava tão próximo que ela sentiu a rica fragrância do charuto de excelente
qualidade e também o leve perfume de água-de-colônia masculina.
— Você viu o nosso anfitrião?
— Lorde Lynche está cavalgando no parque.
— Creio que do nosso grupo só ele e eu estamos de pé. Os outros continuam dormindo.
Fomos para a cama muito tarde ontem à noite.
— Ah, sim — tornou Carina com indiferença.
Olhou para Dipa aflita, tentando arranjar uma desculpa para chamá-lo para perto dela. Sir
Percy prosseguiu:
— Será que você não achará a vida no castelo muito monótona? Nosso anfitrião me disse
que você e o garoto pretendem ficar aqui algum tempo.
— O príncipe foi convidado para passar pelo menos o inverno na Inglaterra.
— Uma jovem como a senhorita deve preferir as luzes e os divertimentos de uma cidade
grande à monotonia do campo.
— Gosto do campo. Morei no campo a maior parte da minha vida.
— Bem, vamos fazer o possível para que não fique entediada, srta. Warner — sir Percy
sorriu.
— Não se preocupe, sir. Ensinar um garotinho e cuidar dele exige tanto de uma
governanta que não lhe permite sentir tédio — Carina assinalou.
— Mas você terá as noites livres. Ontem eu disse a mim mesmo que você era muito
bonita. Mas vejo que o termo melhor para descrevê-la seria "linda".
"Realmente, esse homem é repulsivo", Carina pensou. Consultou o relógio de ouro, em
forma de broche, que tinha no casaco e desculpou-se:
— Lamento, mas devo levar Dipa à presença de lady Lynche. Ela nos espera.
— Ainda é cedo. A viúva Lynche não os receberá antes do meio-dia — argumentou sir
Percy. — Por que está querendo fugir de mim?
— Não estou fugindo.
— Tem medo de ouvir elogios?
— Não é medo. Apenas não gosto de ouvi-los.
— Que tolice! Toda mulher tem prazer de ouvir alguém dizer que ela é bonita. Toda
mulher gosta de saber que é capaz de fazer o coração de um homem pulsar mais forte. E o
que você está fazendo comigo no momento.
— Francamente, sir Percy, não é correto o senhor falar-me dessa maneira! — Carina
protestou.
— Pouco me importa se é correto ou não! — sir Percy exclamou. — Tento fazer sempre o
que eu quero. E, no momento, o meu desejo é falar-lhe de amor e, depois, amar você.
— Sinto muito, mas não posso continuar a ouvi-lo, sir. Está dizendo coisas absurdas.
Virando-se, Carina foi até Dipa que estava perto do tanque, pegou-o no colo e afastou-se
depressa com ele.
— Quero descer! Me põe no chão! — ele reclamou, esperneando. — Dipa quer ver
peixinhos.
— Por que está fugindo? — indagou sir Percy. — Deixe o menino fazer o que deseja.
Venha cá para continuarmos conversando.
Sem dar uma resposta, Carina saiu daquele jardim fechado por uma sebe e subiu os
degraus que conduziam a um terraço. Zangado por afastar-se dos peixes e do jardim, Dipa
começou a reclamar na sua língua materna. Embora não entendesse uma palavra, o sentido
delas ficou bem claro a Carina. Cada vez mais exaltado, o garoto passou a fazer tanto barulho
que ela sacudiu-o e ordenou-lhe:
— Dipa, fique quieto e comporte-se. Agora temos de entrar; se você for um bom menino,
eu o levarei novamente ao jardim.
A tempestade passou tão rapidamente quanto começara. Dipa abraçou o pescoço de
Carina, encostou o rosto no dela e declarou, sorridente:
— Você é boazinha.
Quando ambos subiam a escada, ele foi apontando para os objetos que via e repetia o
nome dos mesmos:
— Quadro... tapete... cadeira...
Ainda era cedo e, chegando aos seus aposentos, Carina brincou com o menino, sempre
atenta ao relógio. Faltavam alguns minutos para o meio-dia e ela desceu com Dipa para o
primeiro andar. Encontrou a sra. Matthews à porta do quarto da viúva lady Lynche e
perguntou-lhe:
— Será que lady Lynche quer ver o príncipe?
— Não sei — a sra. Matthews respondeu. — Sua Senhoria está de péssimo humor. Receio
que esteja zangada com o filho novamente. Quando Sua Senhoria se encontra em tal estado
de espírito, todos nós agimos com a maior cautela.
— Nesse caso, creio que será melhor eu não aborrecê-la — Carina observou.
— Espere. Vou perguntar a Sua Senhoria se deseja ver vocês dois. Não se surpreenda se
ela disser "não".
A sra. Matthews bateu na porta e entrou no quarto em seguida. Voltou depressa com um
sorriso nos lábios.
— Ela concordou em recebê-los — informou. — E, por incrível que possa parecer, seu
humor melhorou.
Como na noite anterior, lady Lynche estava recostada nos travesseiros. Usava, em vez de
pérolas, um colar de diamantes. As pedras eram tão grandes que Carina fixou o olhar nelas,
maravilhada.
A luz do dia Carina notou que as cortinas no leito eram muito velhas e havia partes
cerzidas. A colcha de arminho estava amarelada e a mobília mal-conservada.
— Bom dia, srta. Warner — a viúva cumprimentou Carina e esta viu que a velha senhora
usava peruca.
— Bom dia — Carina respondeu e fez com que Dipa chegasse bem perto da cama e
estendesse a mão para lady Lynche.
— Estou vendo que menino é mais amarelo do que imaginei — replicou a viúva.
— Não é culpa dele — tornou Carina impulsivamente.
— Sei disso. Também sei que você me acha rude e sem sentimentos por não abraçar meu
neto com expressão de alegria.
Carina enrubesceu.
— Não foi o que eu disse.
— Não, mas vejo no seu rosto que é exatamente o que você pensa. E devo acrescentar
que você é franca demais e até atrevida para o cargo de governanta. Função que você não
desempenha muito bem.
— Não compreendo.
— Compreende, sim — a viúva insistiu. — É claro que este é o seu primeiro emprego.
Carina ia responder que tinha nos seus aposentos uma carta de recomendação da antiga
patroa, mas mudou de idéia e disse a verdade:
— Sim, milady.
— Foi o que eu pensei. Diga-me, por que está trabalhando?
— Preciso de dinheiro para me manter e foi este o único emprego que consegui.
— Gosto da sua franqueza. Mas não pense que sua vida vai ser um mar de rosas. Lembre-
se de que temos um segredo que jamais poderá ser revelado e não admitirei o menor deslize
de sua parte. Esta manhã você esteve conversando com meu filho. O que você lhe disse?
Surpresa, Carina notou que as janelas do quarto não estavam voltadas para a frente do
castelo. Portanto, alguém a vira conversando com lorde Lynche e viera contar à velha
senhora.
— Lorde Lynche perguntou-me se eu estava bem acomodada no castelo — Carina
respondeu.
— Mais alguma coisa?
Como se a velha senhora tivesse o poder de hipnotizá-la, Carina viu-se respondendo com
sinceridade.
— Sugeri que lorde Lynche fosse visitar a mãe de Dipa que está morrendo e não tem
ninguém para acompanhar o enterro. Lorde Lynche irritou-se e replicou que eu devia cuidar da
minha vida. Reconheço que eu não tinha o direito de me intrometer... mas lady Lynche está...
morrendo.
— Todos nós temos de morrer um dia — retrucou a viúva. — Os médicos me
desenganaram anos atrás e ainda estou aqui. Ouça, srta. Warner, o que eu tenho para lhe
dizer. Se você tiver metade da inteligência que aparenta, irá entender-me. Este castelo vem
passando de pai para filho desde a conquista normanda e o nome Lynche consta de todos os
livros de História. Nossos ancestrais lutaram pelo rei de sua época e serviram-no. Todos eles
foram súditos leais e respeitaram as tradições. Este quarto viu chegar ao mundo e dele partir,
geração após geração. Cada cômodo do castelo está cheio de tesouros e lendas. Todo Lynche
herdou, não apenas o nome, mas também a glória e as tradições de seus ancestrais. Você
pode entender o que isto significa?
— Sim, compreendo, milady.
— Como eu disse, tudo vem passando de pai para filho, geração após geração... E agora
aparece este pequeno bastardo vindo de algum bazar oriental. Você acha que podemos ficar
contentes?
— Seu filho devia ter pensado nisso quando se apaixonou por uma oriental — Carina
assinalou.
A velha senhora torceu o nariz.
— Apaixonou-se? Homem nenhum se apaixona por prostitutas. Meu filho ficou
enamorado, desejou uma mulher que, sem dúvida, fez o possível para satisfazer-lhe o apetite,
a luxúria e, ao mesmo tempo, tirar-lhe o dinheiro. Pode dar a isso o nome de amor? Há
termos bem mais apropriados para esses sentimentos.
— Mas lorde Lynche casou-se com ela — Carina argumentou.
— Ele só poderia estar bêbado ou maluco! — retrucou a velha senhora. — Só podia estar!
Como não se lembrou de que era um Lynche? Como pôde chegar a tal ponto? E agora nós
temos de suportar uma criança como esta!
— Por favor, não odeie o garoto, milady — Carina suplicou. Olhou para o menino que
passava nos cabelos uma escova com cabo de ouro e acrescentou: — Pobre Dipa!
Lady Lynche também voltou sua atenção para o neto e vendo como ele fazia caretas
diante do espelho enquanto escovava os cabelos, murmurou com expressão de profunda
tristeza:
— Um macaco! Um macaquinho vindo da selva! Ele não pode ser um Lynche.
— Por favor, não diga isso! Dipa tem o seu sangue, milady. É parte dessa tradição e
herança que mencionou. Mesmo que a senhora esteja ressentida, terá de aceitá-lo. Deve
ensiná-lo a amar este castelo.
— Nunca! — zangou-se lady Lynche. — Jamais aceitarei que um oriental herde o título e
sente-se à cabeceira da mesa, da sala de jantar!
— O que pretende fazer, milady?
— Estive pensando ontem à noite e decidi que seria melhor mandar o garoto para Java.
Ele deve ter parentes por lá. Avós, tios, primos.
— Quem o levaria?
— Você. Por que não?
— Não posso. Prometi à mãe de Dipa que cuidaria dele.
— Seria muito melhor para ele morar no país de origem, com sua gente. Você já imaginou
como será a vida dele aqui, onde não é querido? Ele irá sentir-se fora de lugar em qualquer
escola para onde o mandemos e será muito infeliz.
— Mandá-lo embora não será a solução — Carina discordou. — Sei que é difícil para a
senhora aceitar o menino e posso compreender o que está sentindo. Mas a criança existe, tem
seu sangue e não pode ser mandado embora como se fosse um animalzinho rejeitado, sem
nenhum direito.
A viúva lady Lynche suspirou.
— Se há alguns séculos um Lynche tivesse de enfrentar problema semelhante, teria
jogado a criança no lago ou a deixaria trancada em uma das masmorras até morrer.
— Pode ser. — Carina sorriu. — Mas estamos em 1901 e somos mais civilizados. Além
disso, as pessoas não desaparecem sem mais nem menos. Há sempre perguntas,
investigações e, no caso de crimes, punição.
Não passou despercebido a Carina a súbita palidez de Lady Lynche e o modo como
apertou as mãos, até as juntas ficarem brancas.
— Sim, você está certa — ela concordou.
Olhou novamente para o menino que cantarolava uma canção, em javanês e falou em voz
baixa:
— Um Lynche! Um Lynche! Impossível!
Havia tanta tristeza na voz dela que Carina falou-lhe com bondade:
— Sinto muito. Infelizmente, nada posso fazer senão educar o menino esforçar-me para
que se torne um gentleman inglês. Dipa é uma criança dócil e com certeza irá crescer sabendo
amar e respeitar as tradições da família à qual pertence.
— Gosto de você, srta. Warner — declarou lady Lynche. — Você é honesta e não tem
medo de dizer o que pensa. É verdade que a sua atitude não é a de uma governanta.
Entretanto, admiro a sua coragem. Leve o pirralho para cima e eduque-o da melhor forma
possível. Faça-o comportar-se como um cristão e que Deus a ajude a torná-lo um gentleman.
— Vou tentar. — Carina foi até Dipa e chamou-o com firmeza: — Vamos, Dipa. Está na
hora de subirmos.
Ela tentou tirar a escova da mão do menino, mas ele agarrou o cabo com força e gritou:
— É minha! Minha!
— Não. A escova pertence a sua avó e você vai colocá-la no lugar de onde a tirou — disse
Carina. — Você tem os seus brinquedos lá em cima.
Como o garoto continuou segurando a escova, Carina pegou-a com firmeza e colocou-a
sobre a penteadeira.
Inconformado, Dipa fechou as mãos e começou a dar murros em Carina e a dizer uma
série de palavras em javanês que soaram como imprecações.
— Um perfeito gentleman inglês! — exclamou lady Lynche com sarcasmo.
— Às vezes ele é malcriado — Carina falou em tom de desculpa. — Porém logo se
arrepende e entende que estava errado.
Percebendo que as duas falavam sobre ele, Dipa escondeu o rosto no pescoço de Carina
que acabara de erguê-lo no colo. Ambos deixaram o quarto.
A sra. Matthews estava esperando do lado de fora e inquiriu:
— Sua Senhoria está bem?
— Sim — foi o que Carina arriscou-se a responder, com receio de que a voz a traísse.
Subiu a escada devagar, sempre carregando Dipa. Abriu a porta da sala e disse bem
séria:
— Você foi malcriado, muito malcriado, entendeu?
O menino, no entanto, lutou para libertar-se dos braços dela, pulou para o chão e, cheio
de entusiasmo, correu para o cavalo de balanço, exclamando:
— O cavalo! Meu cavalo!
Carina suspirou e, ao virar-se, levou um susto; a preocupação com Dipa fugiu-lhe da
mente. Parado, perto da lareira, estava sir Percy Rockley.
— Subi para ver se está confortável — disse ele.
— Não creio que tal assunto seja atribuição de um hóspede, sir Percy — Carina replicou,
zangada.
— Oh, eu a irritei! — zombou sir Percy. — Sabe que fica mais bonita quando está
zangada? Gosto de ver uma mulher brava. Acho divertido fazê-la sorrir e ouvi-la desculpar-se
pelo repentino mau humor.
— Se nos der licença, sir Percy, Sua Alteza e eu temos de nos preparar para o almoço —
disse Carina com frieza.
— Não há pressa. O almoço será servido à uma.
— Engana-se: o nosso é servido ao meio-dia e meia.
— Você se julga muito esperta, não? Mas devo dizer-lhe que ignora muitas coisas. Você
não sabe, por exemplo, que nas grandes casas é correto as crianças descerem para o almoço.
Cheguei a dizer isso a Justin, uma vez que ele não está acostumado com crianças e
desconhecia esse costume. Adverti-o de que o rei de Singora, avô do príncipe, poderá
ressentir-se se souber que o neto não está recebendo em uma casa inglesa o tratamento que
merece.
— Eu gostaria que o senhor não interferisse, sir — pediu Carina. — Prefiro fazer as
refeições com Sua Alteza nestes aposentos.
— Nesse caso eu não terei o prazer de vê-la — queixou-se sir Percy. — Gosto de olhar
para uma mulher tão linda. E verdade que no momento você mais parece uma potranca
indomada. Mas uma potranca acaba aprendendo a obedecer ao comando do seu dono.
Indignada, Carina fingiu não ter ouvido tais palavras. Aproximou-se de Dipa, olhou para
as mãos dele e embora estivessem limpas, pois ele as havia lavado antes de ir ver a avó, ela
ergueu-o no colo para levá-lo ao banheiro.
— Deixe o menino e venha cá — ordenou sir Percy.
— Como pode ver, estou ocupada — Carina retrucou.
— Venha, garota, quero falar com você — sir Percy insistiu.
— Se o príncipe e eu tivermos de descer para o almoço, o senhor poderá falar comigo lá
embaixo — Carina alegou.
— O que eu tenho para lhe dizer não pode ser dito na frente dos outros.
Sem esperar pela resposta, sir Percy caminhou para Carina. Ela pensou em desviar-se
dele ou sair da sala correndo, mas sua indignação fez com que mudasse de idéia. Colocou
Dipa no chão, ergueu a cabeça e enfrentou o atrevido cavalheiro.
— Quer sair daqui, sir? Caso não se retire imediatamente, falarei com lorde Lynche. Não é
correto um cavalheiro vir à sala de estudos ou a qualquer outro cômodo que faça parte dos
aposentos de uma governanta e uma criança. Por favor, saia!
— Como você é impetuosa e irascível! Por Júpiter! Uma mulher assim merece ser domada
— escarneceu sir Percy.
— Saia! Lamento por estar sendo rude, mas faço questão de deixar bem claro que não
quero conversar com o senhor.
Sir Percy riu e, estendendo o braço, segurou o queixo de Carina.
— Você é encantadora!
A voz melosa e o contato dos dedos grossos e mornos na sua pele fizeram com que Carina
sentisse repugnância por aquele homem depravado. Torceu o corpo, libertou-se dele e correu
para o quarto, trancando a porta a chave.
Ofegante, aguardou um momento, os ouvidos apurados. Ouviu a risadinha de sir Percy e
soube que ele não ficara nem um pouco perturbado com a raiva dela. Pelo contrário, parecia
divertir-se por tê-la deixado irritada.
Em seguida, ele atravessou a sala e saiu para o corredor. Só quando o som dos passos
dele não pôde mais ser ouvido,
Carina girou a maçaneta com a mão trêmula e voltou para a sala de estudos onde estava
Dipa, feliz e inocente, brincando com o cavalo de balanço.
Dipa adormeceu pouco depois do almoço e Carina percebeu que ele estava febril. Achou
que não era nada sério, apenas um resfriado resultante das horas que ele passara ao ar livre
brincando na beira do lago e do tanque de peixinhos.
Ela procurou um termômetro na sua bagagem e, não o encontrando, decidiu ir ao quarto
da sra. Barnstaple. O que menos queria era aborrecer lady Lynche. Fechou a porta do quarto
do menino sem fazer barulho e saiu para o corredor.
"Sendo tão experiente, a sra. Barnstaple me orientará sobre o que fazer para que Dipa
fique são", pensou enquanto andava, apressada.
Imersa nos seus pensamentos, não percebeu que se encontrava em uma parte do castelo
onde nunca havia estado. Era a ala Tudor. À suíte que ela e Dipa ocupavam, ficava no terceiro
andar, no centro do prédio, acima do grande hall de entrada. A esquerda deste estendia-se a
ala Tudor.
Era mais antiga, os corredores eram estreitos, o teto mais baixo e as paredes tinham
belíssimos painéis entalhados, de carvalho. Pelo silêncio, Carina deduziu que aquela ala não
era usada e todos os cômodos deviam estar vazios. Por fim, ela chegou a uma escada, desceu
por ela e ficou aliviada ao ver a certa distância um valete carregando uma bandeja coberta
com um guardanapo branco. Ele usava colete listrado de amarelo e azul, as cores da libré
Lynche.
Apressou o passo para alcançá-lo, pois não ficava bem gritar, chamando-o para pedir-lhe
que a orientasse. Ficou atônita ao constatar que o homem desaparecera como por encanto.
Teve a impressão de que ele atravessara uma das paredes. A primeira coisa que lhe ocorreu
foi que tinha visto um fantasma!
O pensamento provocou-lhe o riso. Fantasmas não existiam. Em Claverly, os criados,
muito simplórios, acreditavam que a mansão era assombrada pelo fantasma que diziam ser de
uma senhora usando vestido cor-de-cinza. Entretanto, a tal senhora jamais aparecera para as
pessoas da família.
Por um momento Carina ficou olhando para as paredes apaineladas, pensando em
passagens secretas, esconderijos, e relembrando as histórias sobre os religiosos ou
monarquistas perseguidos no decorrer dos séculos. Essas pessoas só conseguiam escapar da
fúria de seus perseguidores caso fossem abrigados pelos grandes senhores em cômodos
secretos existentes em suas mansões e castelos.
Compreendeu imediatamente que os painéis entalhados eram perfeitos para ocultar
portas de acesso a passagens secretas e esconderijos. Uma súbita excitação tomou conta de
Carina. E se procurasse naqueles desenhos, representando rosas Tudor, algum dispositivo
que, pressionado, fizesse uma porta girar, revelando uma passagem secreta? Será que teria
coragem de entrar nessa passagem, ou iria embora? Eram perguntas intrigantes que a
deixaram com os dedos formigando, tal a vontade de examinar os entalhes, de tocá-los até
achar alguma mola escondida.
— O que faz aqui, srta. Warner?
Carina reconheceu a voz de lorde Lynche. Virou-se e viu-o perto da escada. Sua
expressão severa deixou-a vermelha e embaraçada.
— Eu estava à procura da sra. Barnstaple — respondeu, recatadamente.
— Não encontrará a sra. Barnstaple nesta parte do prédio — tornou lorde Lynche
rispidamente.
— Creio que me perdi...
— Vou acompanhá-la até a escada que leva ao aposento da sra. Barnstaple — propôs
lorde Lynche.
Sentindo-se como uma estudante que foi repreendida pelo diretor do colégio, Carina
acompanhou lorde Lynche até o outro andar. Chegando ao patamar, eles pararam.
— Creio que lhe devo desculpas por comportar-me de maneira rude esta manhã — disse
lorde Lynche. — Eu estava muito aborrecido e preocupado, por isso falei-lhe de modo tão
ríspido.
Um pedido de desculpas era o que Carina menos esperava de um homem como lorde
Lynche que lhe parecera tão arrogante e insensível. Ergueu a cabeça para encará-lo e viu os
olhos cinzentos fixos nela.
— Não precisa desculpar-se, milorde. Reconheço que fui insolente. Mas o que eu fiz foi
pensando no bem de Dipa.
— Eu sei disso e não devia ter sido tão indelicado. Mas, acredite, srta. Warner, as coisas
nem sempre são fáceis para mim.
Havia rugas fundas entre as sobrancelhas dele e na sua voz uma nota de angústia.
Penalizada, Carina disse depressa:
— Lamento ter contribuído para aumentar as suas preocupações. Eu pensei que o senhor
não se importasse...
— Você deve ter pensado que sou insensível — lorde Lynche completou. — Deus! Se você
soubesse!
Ele fez uma pausa, depois acrescentou em outro tom:
— Por favor, srta. Warner, não me interprete mal se eu aconselhá-la a partir. Este
emprego não serve para você.
— Por que diz isso?
— Porque você é honesta, sincera, franca e não deve envolver-se nos assuntos de nossa
família, muito menos nas maquinações e planos de minha mãe.
— Sua mãe?
— Exatamente. Você deve ter percebido que mamãe tem forte personalidade e é uma
mulher extraordinária. Porém, está idosa e às vezes reage de forma estranha. E por isso que
lhe peço para deixar este castelo quanto antes.
— O senhor está sugerindo que eu fuja — replicou Carina erguendo a cabeça altivamente.
— Não, não! — volveu lorde Lynche. — E claro que você não compreende, nem poderia
compreender. Não é questão de o seu emprego tornar-se difícil para você, de alguma forma.
O problema é que você deve partir, uma vez que não concorda com toda esta mentira e farsa
envolvendo o menino.
— Está querendo dizer que devo partir com Dipa, como lady Lynche pediu que eu fizesse?
— Mamãe lhe pediu para fazer isso?
— Sim, disse que eu devia levá-lo para Java. Ela não suporta vê-lo.
Lorde Lynche levou a mão à testa, num gesto de desalento, e murmurou:
— Mamãe tem idéias estranhas. É muito difícil lidar com ela. Siga meu conselho, srta.
Warner, vá para casa e...
— Não tenho casa — Carina interrompeu-o. — Aceitei este emprego e, a menos que seja
despedida, farei tudo que estiver ao meu alcance para cuidar do pequeno Dipa. E, para falar a
verdade, não tenho coragem de deixar o menino aqui, sozinho; pode lhe acontecer alguma
coisa bem desagradável.
Pela primeira vez, desde o início da conversa, lorde Lynche riu.
— Você acredita que eu possa ser um assassino?
— Não duvido que ontem à noite a idéia de assassinato passou por sua cabeça e pela de
lady Lynche.
— Você é muito ousada e sabe disso. Por acaso não lhe ocorreu que um homem com
instinto assassino poderá afogá-la em um poço ou dar-lhe um tiro na cabeça? Tudo irá parecer
um acidente e ninguém jamais suspeitaria que um lorde quisesse livrar-se de uma
governanta.
A conversa estava sendo tão absurda que Carina replicou com uma nota de humor:
— Cuidado. Posso aparecer depois de morta para assombrá-lo.
— Nunca. Este castelo é imune a fantasmas. Todos os que moravam aqui foram
exorcizados por meu bisavô, em um ritual com sinos, velas e livros de oração.
— Mas eu... — Carina começou e calou-se imediatamente. Ia dizer que vira um valete
desaparecer como por encanto, mas teve certeza de que lorde Lynche iria rir dela. Ele voltou a
ficar sério e perguntou-lhe:
— Quem é você? Não gostaria de falar sobre si mesma? Afastando-se dele, depressa,
Carina lembrou-o:
— Nós estávamos indo para o apartamento da sra. Barnstaple. Preciso pedir-lhe um
termômetro. Achei Dipa febril.
— Lamento por tomar seu tempo — lorde Lynche desculpou-se formalmente.
Ele conduziu-a por um corredor e ao chegar a uma escada, disse:
— O apartamento da sra. Barnstaple é o primeiro ao alto da escada.
— Obrigada.
Depois de curvar-se, lorde Lynche afastou-se. Sozinha, Carina refletiu que ele tentara ser
amável e ela desestimulara seus esforços. Mas não havia tempo para tais considerações.
Segurou a saia com uma das mãos e subiu a escada depressa. Chegando à sala do
apartamento da sra. Barnstaple, encontrou a porta aberta. A gentil senhora recebeu-a com
um sorriso.
— Que agradável surpresa, srta. Warner!
— Vim saber se a senhora teria um termômetro para emprestar-me.
— Sim, tenho. A senhorita sente-se mal?
— Não. E para medir a temperatura do... do pequeno príncipe. Ele está muito corado e
achei-o febril. Ele brincou muito no jardim com roupas leves. Receio que esteja resfriado.
— Ou, quem sabe, Sua Alteza tenha comido demais no almoço — opinou a sra.
Barnstaple. — Acho que as crianças devem comer separado dos adultos e com cardápio
apropriado para a idade delas.
— E exatamente o que eu penso — Carina concordou.
— Creio que, de amanhã em diante, Sua Alteza e eu devemos almoçar em nossa sala. Só
desci porque me disseram que era correto o príncipe sentar-se à mesa lá embaixo.
— Quem lhe disse isso?
— Bem, a idéia foi de sir Percy Rockley.
— Oh, ele! — A sra. Barnstaple torceu o nariz com expressão de desdém. — Pois ouça,
srta. Warner, quanto menos você vir aquele cavalheiro, melhor.
— Sim, eu sei disso.
— Tenha cuidado, srta. Warner. Sir Percy é mau. Eu já conhecia a fama dele e sempre
que ele se hospeda no castelo, tiro todas as criadas jovens do andar que ele estiver ocupando.
— É uma atitude sensata — Carina aprovou.
— Conheço bem o tipo — prosseguiu a sra. Barnstaple.
— E não é apenas com relação a mulheres que ele representa um perigo.
— O que a senhora quer dizer?
— Você não tardará a descobrir se permanecer neste castelo por algum tempo. Eu
poderia...
Ela parou de repente porque um lacaio apareceu à porta. Acrescentou em outro tom:
— O termômetro! Ah, sim, agora me lembro. A sra. Matthews veio buscá-lo para Sua
Senhoria e não o devolveu. Temos de ir buscá-lo.
Voltando-se para o lacaio, ela perguntou:
— Bem, James, o que você quer?
— Lady Lynche pediu-me para avisá-la que a sra. Featherstonehaugh irá partir esta tarde,
no último trem.
— Que surpresa! Vou ordenar a Mildred que cuide da bagagem imediatamente.
James afastou-se assobiando; a sra. Barnstaple voltou-se para Carina e segredou-lhe:
— De fato, eu ouvi a sra. Featherstonehaugh e lorde Lynche discutindo logo depois do
almoço. Porém, não imaginei que ela iria mandar arrumar a bagagem. Pensei que a beldade
tinha Sua Senhoria nas suas garras.
Não houve necessidade de a sra. Barnstaple dar explicações ou entrar em detalhes. Carina
notara durante todo o almoço que a sra. Featherstonehaugh flertara abertamente com lorde
Lynche e deixara claro aos presentes que ele era sua propriedade.
Mas Carina não sabia se a lady em questão era casada ou viúva. Entretanto, qualquer que
fosse seu estado civil, a pintura exagerada do rosto, seus modos e as roupas que usava
revelavam que a sra. Featherstonehaugh era leviana. Como dizia Nannie, "pela casca já se
conhece a madeira".
O almoço fora para Carina um tormento que ela preferia esquecer. As duas ladies
presentes desprezaram-na, enquanto os cavalheiros fitaram-na com uma expressão atrevida
e, ao mesmo tempo, curiosa. Todos eles, apesar de elegantes, eram barulhentos, cheios de si
e dissolutos. Homens muito diferentes dos rapazes e senhores que freqüentavam sua casa
quando os pais eram vivos.
Sir Percy, sem dúvida, era o pior deles. Quando foram para a sala de jantar ele fizera o
possível para sentar-se perto dela, mas lorde Lynche a salvara, indicando a extremidade da
mesa para Dipa e ela. Mesmo assim, tivera de suportar os olhares lascivos de sir Percy e ouvir
suas histórias com duplo sentido, pois ele estava sentado na frente dela e tudo o que dizia era
endereçado a ela.
Com esforço, Carina mantivera os olhos baixos e em silêncio, a não ser quando tinha de
falar com Dipa para ajudá-lo e ensinar-lhe a usar o garfo e a faca. Sentira o corpo tremendo
de raiva por ter de suportar aquela humilhação. Será que toda governanta era submetida a tal
afronta? Sabia a resposta. Ela era muito jovem e atraente para trabalhar em uma casa como
aquela. Se fosse mais velha e sempre tivesse sido pobre, com certeza suportaria tudo mais
facilmente.
Levantara-se da mesa aliviada ao término do almoço e voltara depressa para o terceiro
andar que para ela parecia o céu onde podia ter paz e segurança.
"Vou dizer que o almoço não fez bem a Dipa. Será uma desculpa para não almoçarmos lá
embaixo", Carina pensou enquanto acompanhava a sra. Barnstaple até a suíte de lady Lynche.
A mulher bateu na porta e não a abriu, pois estava trancada a chave. Ela e Carina
aguardaram e não puderam deixar de ouvir a conversa entre lady Lynche e o filho, pois
falavam alto.
— Está louco? Não vê que ele pretende arruiná-lo como já arruinou uma dezena de outros
tolos? — lady Lynche zangou-se. — Fiquei sabendo que você perdeu cinco mil libras ontem à
noite.
— Não sei quem lhe deu tal informação, mas é verdade — lorde Lynche respondeu.
— É claro que é verdade! Sei de tudo o que acontece aqui. Posso estar presa a uma cama,
mas não sou imbecil. Você está se comportando como um beberrão e deixa aquele aventureiro
tirar-lhe até a roupa que veste.
— A senhora não pode chamar sir Percy de aventureiro. Ele é um jogador, mas...
— Ele é muito pior que um aventureiro — cortou a velha senhora. — É um depravado que
usa sua esperteza para extorquir tudo o que pode de idiotas como você. Mas não vou permitir
que isso continue entendeu?
A sra. Barnstaple bateu na porta novamente e desta vez lorde Lynche ouviu-a.
— Creio que há alguém batendo, mamãe.
Sem esperar a ordem da mãe, foi depressa abrir a porta. — Entre, sra. Barnstaple. A
senhora ouvirá melhor se estiver dentro do quarto.
— Não há motivo para falar-me dessa maneira, milorde — a sra. Barnstaple replicou
calmamente. — Acabei de chegar com a srta. Warner. Viemos buscar o termômetro. O
pequeno príncipe está com febre.
— A senhora não tem seu próprio termômetro? — indagou lorde Lynche.
— Tenho, realmente, milorde. Mas a sra. Matthews tomou-o emprestado para lady Lynche
e não o devolveu.
— Entre, entre — convidou lady Lynche. — Não fique aí à porta tagarelando. O que há
com o menino?
A sra. Barnstaple deu alguns passos para dentro do quarto e Carina, seguindo-a, explicou:
— Sua Alteza passou mal depois do almoço. Com a sua permissão, milady, eu gostaria
que as refeições do príncipe fossem mais leves e servidas lá em cima, nos aposentos dele.
— Em primeiro lugar, quem os convidou para almoçar lá embaixo?
— Eu dei a ordem — tornou lorde Lynche. — Sir Percy me disse que em se tratando de
alguém de sangue real, ainda que fosse uma criança, o correto era sentar-se à mesa.
O tom irônico fez com que a mãe lhe dirigisse um olhar fulminante e dissesse com
rispidez:
— Sir Percy de novo! Entendo perfeitamente que não era o garoto que ele queria ver
sentado à mesa. De amanhã em diante a srta. Warner e o garoto farão as refeições nos
aposentos que ocupam.
— Obrigada — Carina agradeceu, aliviada.
— E agora, saiam todos — ordenou a velha senhora fechando os olhos. — Estou cansada e
quero dormir até a hora do chá. Chamem Matthews e eu direi a ela para devolver-lhe o
termômetro, sra. Barnstaple. E ridículo haver apenas um termômetro em casa. E você, Justin,
lembre-se do que eu disse. Aquele homem não presta e tem de deixar o castelo.
— Duvido que eu consiga obrigá-lo a partir. Mas farei o possível para mandá-lo embora —
replicou lorde Lynche.
Ele esperou que Carina saísse e seguiu-a, deixando a sra. Barnstaple para trás. Chegando
ao corredor, lorde Lynche observou:
— Notei que você não gostou de almoçar conosco e que detesta sir Percy.
— É verdade. Sua mãe tem razão. Sir Percy não presta.
— Concordo, embora pense que as más companhias são preferíveis às boas quando se
quer esquecer coisas que nos fazem sofrer.
Por um momento Carina sentiu pena de lorde Lynche. Porém, certa de que ele queria
esquecer a esposa que estava morrendo e o filho, cuja aparência era totalmente oriental,
disse em tom severo:
— Há coisas que jamais podem ser esquecidas.
Eles chegaram à escada e Carina viu que a sra. Barnstaple tinha ido à procura da sra.
Matthews.
— Eu gostaria de poder contar-lhe tantas coisas. Como não posso, só lhe peço para não
me julgar com severidade.
— Não me sinto no direito de julgá-lo. Deixo isso por conta da sua consciência.
Com essas palavras, Carina subiu a escada depressa sem olhar para trás. Tinha, porém,
certeza de que lorde Lynche permanecera imóvel, com olhos fixos nela até vê-la desaparecer.

CAPÍTULO IV

Dipa dormia tranqüilamente quando Carina entrou no quarto. A sra. Barnstaple chegou
pouco depois com o termômetro e, colocando-o na criança, constatou que a temperatura
estava quase normal. Mesmo assim, mandou que lhe preparassem um chá.
— O pequeno príncipe veio de um país quente e deve ter estranhado o clima da
Inglaterra. Precisamos ter cuidado para que ele não tenha gripe, crupe ou outra doença,
quando chegar o inverno — aconselhou a sra. Barnstaple.— Aqui é frio demais. Não entendo
como decidiram mandar o menino para um lugar como este.
— Sua Alteza passava mal... com o calor — Carina disse depressa.
— Estranho, não?
— Bem, foi o que me disseram. Imagino que, sendo neto do rei, o garoto devia ser
tratado pelos melhores médicos.
— Claro. — A sra. Barnstaple sorriu. — Para a realeza o dinheiro não é problema. E uma
pena que não posso dizer o mesmo em se tratando de Sua Senhoria. A sra. Newman me disse
confidencialmente que lorde Lynche tem perdido milhares de libras todas as noites desde a
chegada de sir Percy Rockley.
— Por que Sua Senhoria faz apostas tão altas? — Carina questionou. — Ele não parece ser
um jogador como os outros hóspedes da casa.
— Oh, aqueles homens são amigos de sir Percy — a sra. Barnstaple falou com desdém. —
Nunca imaginei que o sr. Justin andasse na companhia deles. Ele sempre foi um menino tão
meigo! Não podia haver rapazinho mais encantador quando foi estudar em Eton.
— Por que ele mudou tanto? — Carina indagou, sem se conter.
— Isso foi depois da morte do sr. Giles. Não creio que o sr. Justin queria ser o herdeiro do
título e do castelo.
Carina ficou muito surpresa.
— Lorde Lynche tinha um irmão mais velho?
— Sim. O sr. Giles era dez anos mais velho e lady Lynche o adorava. Ela ficou estranha
depois da morte do filho. Passou a ter verdadeira obsessão pelo castelo, a história da família e
sua grandeza. Por vezes ela parece desequilibrada mentalmente.
Sem saber o que dizer, Carina apenas murmurou um som indicando sua consternação.
— É por isso que ela gosta de suas magníficas jóias e não aceita que o filho perca tanto
dinheiro nas cartas. Ela diz que a fortuna não é dele, pertence à família, por isso não pode ser
dilapidada. Pelo contrário, deve ser aumentada. Por vezes lady Lynche fala durante horas
sobre a glória dos Lynche e sua importância histórica. Lady Lynche pertencia à família antes
de se casar, pois era prima em segundo grau do marido.
— O sr. Giles herdou o título com a morte do pai?
— Oh, não. O sr. Giles estava no exterior e morreu em um acidente, dois meses antes do
falecimento do pai. Pelo menos foi isso que lady Lynche nos contou. Você pode imaginar o
choque da pobre senhora: em dois meses perdeu o filho e o marido! Desde então ela decidiu
não sair do quarto. Entretanto, sabe de tudo o que acontece.
— Como é possível ela estar a par de tudo?
— Todos nós somos obrigados a contar-lhe o que se passa. Seremos despedidos
imediatamente se ela descobrir que escondemos dela alguma coisa, por mais insignificante
que seja.
A sra. Barnstaple olhou sobre o ombro, embora não houvesse ninguém no quarto e
acrescentou, baixando a voz:
— Lady Lynche é muito sensível, muito perceptiva e sabe até o que vamos dizer antes de
abrirmos a boca. Sabe também se deixamos de revelar-lhe o que quer que seja.
— Que estranho!
— É esse o termo! Se você ficar aqui algum tempo irá perceber que lady Lynche é muito
estranha.
A chegada da sra. Matthews com o chá interrompeu a conversa.
— Eu quis trazer o chá pessoalmente para saber como está o pequeno príncipe — disse a
criada.
— Sua Alteza está dormindo tranqüilamente. Parece não ser nada grave — respondeu
Carina.
— Ele é um menino adorável. Você conhece o rei de Singora, srta. Warner? — indagou a
sra. Matthews.
— Não, nunca vi Sua Majestade.
— Sua Senhoria falou-me sobre o avô do pequeno príncipe. Pela descrição imagino que
seja homem de aparência um tanto sinistra — comentou a criada.
— Bem, provavelmente ele nunca virá a este castelo, o que é muito bom. Já temos
pessoas sinistras demais na casa — retrucou a sra. Barnstaple.
— Eu sei a quem você se refere e concordo com você — assinalou a sra. Matthews,
torcendo o nariz.
Lembrando-se de suas tarefas, a sra. Barnstaple exclamou:
— Está na hora do chá. Vou descer para ver se tudo está em ordem. Também vou
repreender Emily que ainda não subiu com a sua bandeja, srta. Warner. Ela está sempre
atrasada e se continuar assim, terei de despedi-la, sem referências.
— Não faça isso, sra. Barnstaple — pediu Carina. — A pobre moça não está tão atrasada e
para mim, alguns minutos não faz diferença.
— Em uma casa deste tamanho as coisas têm que correr como se fosse um relógio, senão
será o caos — acentuou a sra. Barnstaple.
Em seguida ela e a sra. Matthews saíram do quarto. Sentando-se em uma poltrona,
Carina respirou fundo. Por fim, estava sozinha e podia refletir sobre os últimos
acontecimentos: a estranha conversa com lorde Lynche, o valete que aparecera e
desaparecera misteriosamente, e as informações obtidas através da sra. Barnstaple.
"Há coisas muito estranhas acontecendo aqui e eu gostaria de saber o que é", pensou com
um brilho travesso no olhar. "Creio que tropecei em um segredo e deve haver muitos outros
escondidos do mundo."
Ocorreu-lhe que, se fosse esperta, poderia fazer uma pequena chantagem com lorde
Lynche para forçá-lo a enterrar a esposa com decência e a aceitar o filho.
Imediatamente envergonhou-se de seus pensamentos. Não era correto interferir na vida
das pessoas, muito menos por meio de chantagem. Também não devia ser curiosa. Lembrou-
se de que Nannie costumava dizer em tom de advertência: "A curiosidade matou o gato".
Entretanto, o desaparecimento do valete não lhe saía da mente.
Emily trouxe a bandeja com o chá e Dipa acordou poucos minutos depois. Queixou-se de
dor de cabeça, tomou quase à força o chá de ervas medicinais, depois um pouco de leite
quente e não quis comer nada. Deitou-se novamente e adormeceu em segundos.
O tempo parecia arrastar-se. Dipa continuou dormindo e Carina procurou alguma coisa
para ler, mas ali só havia livros infantis. Ela tomou banho e terminara de pentear-se quando
um lacaio apareceu para dizer-lhe que Sua Senhoria queria vê-la na biblioteca.
— Que coincidência! — Carina exclamou. — Eu estava pensando em ir mesmo à biblioteca
pegar um livro para ler.
— A biblioteca abre-se para o grande hall — informou o lacaio com forte sotaque de
Gloucestershire. — Eu a acompanho até lá.
— E grande a biblioteca?
— Oh, sim. Há milhares e milhares de livros naquelas estantes. Sempre tive vontade de
ler vários deles.
— Você sabe ler?
— Leio bem, srta. Warner. Freqüentei a escola — o rapaz falou com orgulho. — Eu
gostaria de continuar estudando, mas mudei-me para Londres onde trabalhei como pajem.
Depois voltei para o campo e comecei a trabalhar neste castelo como ajudante de cozinha, fui
subindo de posto, e hoje sou o quarto lacaio.
— Muito bem! — Carina elogiou-o. — Você é tão novo.
— É um bom emprego — o rapaz admitiu. — O sr. Newman costuma ser severo, mas é
justo. Só não gosto da acomodação dos lacaios. Meu quarto, por exemplo, que fica perto do
telhado, é um forno no verão e gelado como o Pólo Norte no inverno.
Ambos saíram para o corredor e começaram a descer os vários lances de escada.
— Quantos empregados há no castelo, ao todo? — Carina quis saber.
— Nunca tive a curiosidade de contar. Talvez haja trinta. Mas há sempre os valetes, as
criadas pessoais e os cavalariços dos hóspedes.
— Um número considerável, não?
— Um lugar tão grande como este requer muitos empregados.
— Sem dúvida. Tudo neste castelo é lindo e muito bem-cuidado — Carina observou
quando ambos chegaram ao andar térreo. — Tanto este hall como o grande são magníficos,
com seus enormes lustres de cristal, as estátuas gregas, o piso e as colunas de mármore.
— Bem, srta. Warner, acho estes ambientes gelados e não gosto dessas figuras nuas, com
apenas uma folha de figueira para cobri-las. Minha velha mãe teria um ataque se as visse.
Carina não se conteve e riu.
— Você é simpática, srta. Warner. Não é como a maioria das governantas antipáticas, de
nariz empinado.
— Obrigada — Carina agradeceu, divertindo-se com a espontaneidade do elogio.
— Sua Senhoria já deve estar na biblioteca — disse o rapaz, abrindo a porta de mogno.
Não vendo ninguém ao entrar na biblioteca, Carina olhou ao redor. O cômodo era amplo e
decorado com austeridade, mas bom gosto. As estantes iam do chão ao teto, e perto da
lareira havia um sofá e quatro poltronas, todos revestidos com veludo cor de vinho como as
cortinas das altas janelas.
Para surpresa de Carina, um homem saiu de perto de uma das estantes e caminhou ao
encontro dela. Ao vê-lo, ela quase deu um grito.
Não era lorde Lynche, como imaginara, e sim, sir Percy Rockley.
— Desculpe. Pensei que lorde Lynche estivesse aqui — disse, e virou-se para sair.
— Espere! — A palavra era uma ordem, não um pedido.
— Fui eu quem mandou chamá-la.
— O senhor?!
— Exatamente, srta. Warner. Eu queria falar-lhe e mandei-lhe aquele recado. Não
mencionei meu nome de propósito, imaginando que você daria alguma desculpa e não
atenderia ao pedido se soubesse que o encontro seria comigo.
— Lamento, mas não posso ficar, sir. Dipa não está passando bem e precisa de mim. Só
vim até aqui, por ter entendido que era um chamado de lorde Lynche.
— No momento lorde Lynche não está no castelo — informou sir Percy. — Quero ter uma
palavrinha com você.
— Impossível.
— Sempre fugindo, hein? — Sir Percy indagou com seu horrível sorriso.
— Não é isso. Fui contratada para cuidar de uma criança e não posso deixá-la sozinha,
principalmente estando febril
— Carina argumentou.
— Ora, tomarei apenas alguns minutos do seu tempo. Vamos, seja uma boa garota e
sente-se para ouvir por que a mandei chamar.
— Pode dizer, sir. Prefiro ficar de pé — Carina replicou, admirada com a própria rudeza.
Sir Percy aproximou-se da lareira e empurrou uma das poltronas para a frente.
— Sente-se — repetiu. — Prometo não tocá-la, srta. Warner.
Ruborizada e contrafeita, Carina sentou-se na beirada da poltrona e, apreensiva, observou
sir Percy ir até a lareira e encostar-se no frontão de mármore esculpido.
— Você é linda, sabe disso — começou.
— Eu já lhe disse que não gosto de elogios — Carina cortou. — O senhor tem mesmo
alguma coisa para me dizer? Se tiver, diga logo.
— Na verdade eu não lhe fiz um elogio, apenas constatei um fato. E, para ser franco, acho
você bonita demais para ser uma governanta.
— Se é tudo o que tem a dizer... — Carina levantou-se.
— Não! Continue sentada e ouça-me. Tenho uma proposta a lhe fazer. Trata-se de um
novo emprego, melhor do que este. Você já pensou no tipo de vida que terá aqui?
— Claro. E se aceitei o emprego é porque este tipo de vida me agrada.
— Ouça, garota, você é linda e não terá paz neste castelo. Será perseguida por todo
homem que vier a este lugar e as mulheres, em contrapartida, a detestarão. O que eu tenho a
lhe oferecer é muito diferente. Quero dar-lhe uma casa, com a escritura no seu nome, em St.
John's Wood ou qualquer outro lugar da sua preferência. Você terá também sua própria
carruagem, dinheiro e divertimentos — enumerou sir Percy. — Só o que eu lhe peço em troca
é que seja amável comigo.
A indignação fez com que Carina respondesse em tom glacial:
— O que está sugerindo, sir Percy, é que eu me torne sua amante. Tudo o que eu posso
dizer é que prefiro cuidar de porcos e ficar um instante sequer do lado de um homem ordinário
como o senhor.
Ela alegrou-se ao ver que conseguira ofender sir Percy, pois notou que ele comprimira os
lábios e seus olhos estreitaram-se. Sem que ela esperasse, ele riu.
— Bravo! Bravo! Que belo discurso! A donzela inocente desafia o perverso lorde que
deseja seduzi-la!
Carina virou-se para sair da biblioteca, mas sentiu, horrorizada, a mão firme de sir Percy
prendendo-lhe o pulso. Ele falou em tom ameaçador:
— A representação terminou. Agora vamos ao que interessa. Está mesmo disposta a me
recusar?
— Será que o senhor não entendeu o que eu disse? — tornou Carina, lutando para
libertar-se.
— As mulheres não costumam ser sinceras. Dizem uma coisa e querem outra.
Percebendo que sir Percy a envolvia em seus braços, Carina gritou, ao mesmo tempo que
se debatia:
— Solte-me! Deixe-me ir!
Seus esforços foram inúteis. Ela sentiu a aproximação do rosto de sir Percy e os lábios
sensuais procurando os dela. Em pânico, sacudiu a cabeça de um lado para outro, enquanto
dava murros no seu captor. Tarde demais compreendeu que cometera uma loucura
concordando em ficar sozinha com aquele sátiro de meia-idade.
Ele era mais forte do que ela e o fato de vê-la lutar, querendo fugir dele, excitou-o ainda
mais. Com um puxão, sir Percy fez um rasgo na blusa de Carina. Apertou os braços, deixando-
a sem movimentos, quase sem respiração, e prendeu os lábios dela com os seus. Beijou-a
cruel e ferozmente, inflamado de desejo.
Enojada, ela teve a sensação de estar afundando em águas profundas e escuras de onde
não poderia sair. Percebeu que sir Percy lhe rasgava a blusa ainda mais, porém não teve
forças para fazer um gesto para impedi-lo.
Por fim, ele ergueu a cabeça, triunfante, e, com a voz alterada pela paixão, indagou:
— Você é uma diabinha excitante, hem?
Sem forças, Carina balbuciou:
— Deixe-me... ir.
— Nunca. Quero você e, por Deus, farei com que você também me queira. Depois de
amanhã iremos embora, juntos. Não haverá necessidade de explicações. Bastará você deixar
um bilhete dizendo que foi chamada de volta a Londres.
— Não! Não! — Carina quis falar com veemência mas sua voz não foi mais que um
sussurro.
Então uma sombra escura abateu-se sobre ela. Sentiu-se gelada e sem forças. Notando-
lhe a palidez e o corpo inerte em seus braços, sir Percy soube que alguma coisa estava errada.
Perguntou:
— Você está bem?
Não houve resposta. Ele levou Carina até o sofá, deixou-a reclinada e foi depressa até a
mesinha onde havia uma bandeja com bebidas. Voltou com um copo de cristal com um pouco
de brandy.
— Tome isto — disse, erguendo a cabeça de Carina e encostando o copo nos lábios dela.
Ela conseguiu engolir um pouco da bebida e sentiu a garganta em fogo. Pacientemente,
sir Percy fez com que ela tomasse todo o conteúdo do copo e aguardou um instante.
— Está melhor? — indagou.
Carina fez um leve movimento com a cabeça.
— Espero que você não seja dessas mulheres que vivem doentes — ele resmungou. — Já
basta minha esposa que está sempre acamada.
Sem dignar-se a responder, Carina endireitou-se no sofá.
— Assim é melhor — sir Percy aprovou. — Vejo que a cor voltou ao seu rosto. Aí está a
garota que eu admiro. Conversaremos mais tarde, quando você estiver perfeitamente bem. E
não se esqueça: iremos juntos para Londres.
Devagar, Carina ficou de pé. Sentiu que podia andar e caminhou para a porta.
— Um momento! Não vá embora assim — sir Percy chamou-a. — Dê-me um beijo.
O simples pensamento de ser tocada de novo por aquele homem repulsivo devolveu as
forças a Carina e ela conseguiu chegar à porta antes de ele alcançá-la. Já estava no corredor e
ouviu-o chamá-la pelo nome. Apressou-se e ao chegar à escada viu lorde Lynche descendo os
últimos degraus.
— Ah, está aí, srta. Warner. Subi aos seus aposentos para saber se o menino estava
melhor, mas não a encontrei lá — disse ele.
Mal acabou de falar, lorde Lynche notou a blusa rasgada de Carina e seus cabelos
desalinhados.
— Onde esteve, srta. Warner? — inquiriu em tom severo.
Sentindo-se fraca e com a cabeça zonza, ela não conseguiu articular uma palavra. Soube,
instintivamente, o que lorde Lynche estava pensando e, mortificada, ouviu-o dizer com
sarcasmo:
— Pelo que vejo, você está achando a vida aqui monótona demais e sente falta dos
divertimentos de Londres.
A insinuação e o desprezo que viu nos olhos dele, fez com que ela se defendesse:
— Como o senhor ousa fazer tal insinuação? Como pode julgar-me sem saber o que
aconteceu? Um dos lacaios disse-me que o senhor queria ver-me na biblioteca. Fui até lá e
não o encontrei, milorde. Fui humilhada, atacada por um de seus hóspedes e tive de ouvir sua
proposta indecorosa. Considero isso intolerável!
— Quem ousou comportar-se de maneira tão vergonhosa? — lorde Lynche indagou.
— O senhor deve conhecer bem seus amigos para saber quem foi, sem eu precisar dizer.
Por favor, deixe-me passar.
Erguendo bem a cabeça, mesmo com a desagradável sensação de que os cabelos
começavam a desabar sobre os ombros, Carina subiu a escada com dignidade. Chegando ao
quarto atirou-se na cama e chorou até não poder mais.
Quando se acalmou, a primeira idéia que lhe ocorreu foi sair do castelo. Entretanto, sabia
que isso era impossível; tinha de cuidar de Dipa e aquele emprego era sua única salvação.
Levantou-se, foi até a janela e olhou para a paz do lago e as árvores que deviam ter
quase um século. E pensar que na véspera ela saíra de casa, tão esperançosa, à procura de
emprego. Poderia tanta coisa ter acontecido em tempo tão curto?
Estava sozinha, terrivelmente só, naquele castelo assustador, entre pessoas estranhas,
cada uma parecendo mais horrível e sinistra do que a outra. Se lorde Lynche era digno de
desprezo pelo modo como se comportava em relação à esposa, ao filho e à própria mãe, o que
esperar de seus amigos? Estes só podiam ser jogadores, homens depravados e mulheres
levianas.
Novamente, ela pensou em deixar o castelo. Mas para onde iria? Não chegaria muito
longe com dez libras no bolso. De mais a mais, como poderia ter certeza de que um outro
emprego seria melhor do que o atual? Pelo menos, podia ficar sozinha com Dipa ali no terceiro
andar.
— Ficarei aqui — disse em voz alta. — Não permitirei que eles me derrotem.
Lavou o rosto na bacia de porcelana, refez o penteado, deixando-o preso em um coque,
na nuca, e trocou de blusa. Um barulho vindo do quarto de Dipa fez com que ela fosse até lá.
Encontrou o menino acordado e bem-disposto. Qualquer que tivesse sido o seu mal, tinha
passado e ele queria brincar, correr e pular. Calmamente, Carina aconselhou-o a permanecer
deitado para ouvir a história que iria contar-lhe. Mas o menino protestou:
— Quero levantar! Dipa não quer ficar na cama!
— Emily trouxe um lanche para você.
— Quero levantar — repetiu o menino.
Antes que Carina pudesse segurá-lo, ele saltou da cama. Correu e pulou pelo quarto
usando a camisa de dormir. Rindo, Carina foi atrás dele, pegou-o, colocou-o sentado na cama,
levou a bandeja com o lanche para o lado dele e sugeriu:
— Vamos fazer um piquenique.
Era uma novidade para Dipa e, depois de aprender a palavra e o significado da mesma,
ele gostou da idéia e comeu com satisfação sanduíches, torradas com mel, pão-de-ló e tomou
chá.
— Agora eu posso montar no cavalo? — perguntou.
— Descobri um brinquedo muito melhor. Encontrei no armário uma porção de soldadinhos
de chumbo. Vamos brincar de desfile, de batalha. O que você acha?
— Bom. Muito bom!
Habilmente, e com entusiasmo o menino enfileirou os soldadinhos e ficou entretido com
eles. Naquele momento de tranqüilidade, Carina refletiu que ela e Dipa estavam tão isolados,
que se sir Percy aparecesse ali, de nada adiantaria ela gritar, pois ninguém a ouviria.
Os chamados de Dipa fez com que ela prestasse atenção ao brinquedo do menino e
esquecesse seus problemas.
Mais tarde, tendo o menino voltado a dormir, a sra. Barnstaple veio saber se ele estava
bem e se ambos precisavam de alguma coisa.
— Sua Alteza acordou bem-disposto e com apetite. Brincou um pouco e adormeceu
novamente. Não precisamos de nada. Obrigada — Carina respondeu.
— Recebemos novos hóspedes. Esta noite Sua Senhoria oferecerá um grande jantar —
informou a sra. Barnstaple. — Tenho de verificar se os quartos estão bem arrumados. Ellen, a
segunda arrumadeira, é distraída e sempre esquece alguma coisa.
— Haverá baile depois do jantar?
— Oh, não, desde que Sua Senhoria fez amizade com sir Percy e seus companheiros,
todos só pensam em jogar. Parece até que não têm nada mais para fazer — criticou a sra.
Barnstaple. — Eu não gosto de sir Percy! Ainda esta manhã eu disse a lady Lynche que não é
bom para a saúde de Sua Senhoria ficar horas e horas fechado naquela atmosfera
enfumaçada.
— Talvez ele goste desse passatempo.
— Pois não devia gostar. Sua Senhoria não é mais o mesmo. Ele era um rapaz tão gentil!
E agora mal sorri para quem quer que seja.
— Por quê ele mudou tanto?
— Quem pode saber? Eu não ficaria surpresa se houvesse uma mulher envolvida nessa
transformação de Sua Senhoria. — A sra. Barnstaple suspirou. — Bem, preciso ir. Vou mandar
uma das criadas subir para ficar com o garoto, assim você poderá sair para dar uma volta.
— Não se preocupe... — Carina começou, mas a sra. Barnstaple já tinha saído.
Apesar de ter tomado a decisão de não descer, a vinda da criada fez Carina mudar de
idéia. Convenceu-se de que seria bom respirar o ar puro. Colocou nas costas um agasalho leve
e avisou a criada:
— Obrigada por ficar olhando Sua Alteza. Volto logo.
— Não tenha pressa, senhorita. E um prazer ficar aqui, pelo menos descanso os pés —
disse a moça com simplicidade.
Para não se encontrar com os hóspede e muito menos sir Percy, Carina desceu para o
jardim por uma escada estreita, dos fundos do castelo.
Uma vez lá fora, andou pelos caminhos entre os canteiros, tentando não se lembrar de
seus problemas. Porém, eles vinham-lhe à mente de maneira traiçoeira. Ela acabou se
convencendo de que devia ter paciência e esperar. Como Nannie sempre dizia: "Não há mal
que dure para sempre".
Ela havia chegado perto do muro de tijolos vermelhos que cercava o jardim de plantas
medicinais e sentou-se em um banco. Quando ouviu o relógio da igreja batendo sete horas,
achou que era tarde e caminhou de volta para o castelo.
Ao chegar à porta lateral por onde tinha saído, constatou que estava trancada.
"Que idiotice a minha", recriminou-se. "Eu devia ter avisado que ia sair e ter pedido que
deixassem esta porta aberta." Não querendo não entrar pela porta da frente, só lhe restou dar
a volta e entrar pela área de serviço. No pátio dos fundos do prédio encontrou alguns criados
que não prestaram atenção nela. Uma porta estava aberta e ela entrou em um corredor com
piso de pedra, de acesso à leiteria, às cozinhas, copas e despensas.
Da grande cozinha chegou até ela o som das vozes dos criados, o barulho das panelas e o
cheiro delicioso de assados. Ao passar pela porta, viu de relance o chef vindo de Londres,
usando seu gorro branco e alto. Seguiu adiante e estava quase chegando à escada que havia
ao fim do corredor quando um valete já idoso saiu de um cômodo carregando um par de
sapatos.
— Boa noite — ela cumprimentou-o polidamente.
— Boa noite, milady — o homem respondeu, parecendo surpreso.
Carina chegou à escada e, antes de começar a subir olhou para trás e viu o valete parado,
com o olhar fixo nela, com expressão de perplexidade.
"Por que será que ele surpreendeu-se tanto ao me ver?", ela questionou-se e subiu para
seus aposentos.
A criada estava cochilando e acordou sobressaltada ao ouvir passos. Ergueu-se depressa
ao ver Carina entrando no quarto e desculpou-se:
— Lamento, senhorita, acho que cochilei.
— Não precisa desculpar-se. Eu me demorei demais. Estava muito agradável no jardim.
— Já que a senhorita está de volta, devo ir até a sra. Barnstaple para saber o que ela quer
que eu faça. — A moça fez uma pequena careta. — Aposto que será algo desagradável.
— Bem, você deve mesmo ir até ela — Carina concordou. — Agradeça-lhe por deixar que
você me ajudasse.
— Foi um prazer, srta. Warner.
A criada caminhou para a porta e voltou-se antes de sair.
— Ah, eu ia me esquecendo de dar-lhe o recado, srta. Warner. A sra. Matthews esteve
aqui e disse que lady Lynche deseja vê-la. Talvez seja melhor eu continuar cuidando do garoto
enquanto a senhorita vai atender ao chamado de Sua Senhoria.
— Se você puder ficar eu lhe agradeço.
A caminho dos aposentos de lady Lynche, Carina refletiu que a velha senhora certamente
já estava sabendo do comportamento execrável de sir Percy e queria falar-lhe sobre isso, o
que seria constrangedor.
Ela bateu na porta do quarto, esperando que a sra. Matthews viesse dizer que lady Lynche
estava muito cansada para vê-la e a dispensasse. Porém a voz da velha senhora soou firme e
alerta ao autorizá-la a entrar.
No quarto profusamente iluminado, Carina notou que lady Lynche usava uma verdadeira
coleção de jóias, as mais deslumbrantes que ela já vira.
— Boa noite, srta. Warner — a velha senhora cumprimentou-a. — Como vai o pequeno
príncipe?
— Já está bom novamente, obrigada.
— Mandei chamá-la porque meu filho pediu-me para dizer-lhe que você está convidada
para jantar com ele e os amigos esta noite.
— Lorde Lynche convidou-me para o jantar desta noite?
— Carina indagou, pasmada.
— Sim. Eu disse a ele que isso era no mínimo incomum — observou lady Lynche
asperamente. — Entretanto, Justin insistiu e fez-me prometer que lhe transmitiria o convite.
Será um grande jantar e espero que se divirta.
Por um instante Carina ficou em silêncio imaginando o que haveria atrás daquele convite.
Seria um pedido de desculpas? Será que lorde Lynche não a considerava uma simples
governanta? Teria ele percebido que ela era uma lady?
Lady Lynche esperava uma resposta e Carina disse suavemente:
— Por favor, milady, queira dizer a lorde Lynche que prefiro jantar lá em cima. Não sou
uma pessoa muito sociável.
Ela viu um brilho súbito nos olhos da velha senhora.
— É uma decisão sensata, srta. Warner. Eu disse a Justin que o convite não tinha razão
de ser. Eu nunca fiz concessões às governantas que contratei para meus filhos.
— Lorde Lynche foi muito atencioso. E, se me der licença, vou voltar para junto de Dipa —
tornou Carina, ansiosa para livrar-se daquela senhora de língua ferina.
— Sim, você deve ir cuidar do menino — concordou lady Lynche. — Mas, antes, me
responda: você acha que está apaixonada por alguém?
Por um momento Carina julgou não ter ouvido direito. Depois respondeu:
— Não, claro que não. Por quê?
— Eu só queria saber. Pode ir.
Carina saiu do quarto intrigada. Qual a razão de lady Lynche ter feito a pergunta?
Certamente ela ainda não sabia do comportamento de sir Percy; se soubesse, teria ido
diretamente ao assunto. Então... estaria a velha senhora imaginando que ela, uma
governanta, se apaixonara por lorde Lynche?
O pensamento pareceu-lhe tão absurdo que lhe provocou o riso. Entretanto, a pergunta
parecia ressoar em sua mente quando ela chegou à paz e à quietude dos seus aposentos.
"Você acha que está apaixonada por alguém?"
Ao entrar na sala, surpreendeu-se ao vê-la bem iluminada. Um lacaio acabava de acender
um lampião de querosene e avisou:
— Trouxe-lhe dois lampiões, senhorita, mas não acendi o do quarto.
— Pode deixar; mais tarde eu mesma o acenderei. Nem bem o lacaio se afastou, Carina
ouviu a voz severa da sra. Barnstaple. Pouco depois ela entrou na sala.
— Como esse lacaio é lerdo! Só agora trouxe os lampiões. Com o fim do verão escurece
mais cedo.
— Não estava tão escuro e temos as velas.
— Sim, é verdade, mas não deve forçar os olhos, srta. Warner. Se fosse pela vontade de
lorde Lynche, não teríamos mais lampiões de querosene nem velas e, sim, iluminação a gás
de acetileno.
— Bem, em Londres temos esse tipo de iluminação, mas no campo as pessoas ainda
preferem usar velas e lampiões.
— Lady Lynche prefere as velas. Não quer nem ouvir falar em mudanças no castelo.
— Os lustres com centenas de velas, os candelabros de mesa e de parede são lindos. Mas
tenho medo de incêndio.
— Acho os lampiões a querosene mais perigosos. Eu sempre digo aos lacaios para lidar
com esse combustível com cuidado.
Cansada daquele assunto monótono, Carina perguntou:
— Onde eu poderia encontrar livros infantis apropriados para dar aulas ao príncipe? Estive
olhando nas estantes, mas não achei o que procuro.
— Os livros infantis estão todos nestes aposentos. Se não encontrou nenhum do seu
agrado, talvez seja o caso de encomendá-los — a sra. Barnstaple sugeriu
— É. Falarei com lorde Lynche sobre isso. Obrigada.
A sra. Barnstaple saiu e um lacaio não tardou a trazer o jantar. Olhando para a bandeja
onde havia apenas frango, pão, manteiga e um bule de chá, Carina sorriu. Que diferença do
jantar a ser servido aos convidados de lorde Lynche!
No salão a mesa devia estar esplêndida, enfeitada com candelabros de prata e arranjos de
orquídeas; do cardápio constariam pratos como: carne assada, trufas, codornizes 2 ou, quem
sabe, gaios3 silvestres vindos da Escócia. Pêssegos enormes seriam apresentados em pratos
de porcelana de Sèvres e haveria sobremesas elaboradas.
Não que fizesse questão de tudo isso, Carina pensou. Nem estava com fome. Tomou
apenas o chá e decidiu lavar a cabeça. Sentia os cabelos emplastrados por causa da fumaça
do trem e a poeira das estradas.
Foi ao armário do corredor onde as criadas guardavam os utensílios de limpeza, pegou
uma grande caneca de latão desceu com ela, pensando em ir até a cozinha pegar água
2
codorna
3
Grande gênero de pássaros da família dos corvídeos, que destes se distinguem por serem menores mais
arborícolas e terem, freqüentemente, a cauda mais longa, e crista; têm hábitos errantes, são belicosos,
onívoros, e costumam destruir os ninhos e matar os filhotes doutros pássaros.
quente. Chegando ao segundo andar, seguiu por um corredor, certa de alcançar ao fim dele
uma escada que a levaria à área de serviço onde havia estado cerca de uma hora atrás.
Porém, o castelo era tão grande, que ela se perdeu e acabou chegando novamente à ala
Tudor, onde julgara ter visto um fantasma. Qual não foi sua surpresa ao ver a sra. Barnstaple
vindo do sentido oposto e parecendo agitada.
— O que faz aqui, srta. Warner? — ela perguntou.
— Eu queria ir até a cozinha buscar água quente e perdi-me.
— Você não chegará a cozinha nenhuma andando nesta ala — tornou a mulher com
firmeza.
Ela segurou no braço de Carina e levou-a até uma escada.
— Vim a este mesmo lugar à tarde, quando estava procurando seu quarto, sra.
Barnstaple, para pedir-lhe o termômetro. Por sorte, lorde Lynche encontrou-me e mostrou-me
o caminho — Carina contou.
— Sua Senhoria encontrou-a aqui? — inquiriu a sra. Barnstaple admirada. — O que ele
disse?
— Da mesma forma que a senhora, ele ficou surpreso ao ver-me. Há alguma errada nesta
parte do castelo?
— Não há nada errado. Dizem que aqui há fantasmas.
— Fantasmas?! Eu... — Carina calou-se de repente.
Ia dizer que vira um fantasma, mas achou que seria um erro.
— Sim, fantasmas. Pelo menos há histórias de que este lugar é assombrado. Eu não quero
que os empregados venham aqui, nem gosto de tocar no assunto. Sei que se eles ficarem
amedrontados, deixarão o emprego.
— Como são esses fantasmas?
— Ah, não sei. Cada um os descreve de maneira diferente. Mas que eles existem, existem.
Lorde Lynche deu ordens para esta ala não ser usada.
— Que estranho — Carina murmurou.
Estava pensando no valete que desaparecera e tinha certeza de que não era um
fantasma. Pelo modo de o homem andar, de carregar a bandeja, podia jurar que ele era de
carne e osso.
— A senhora já viu um fantasma? — Carina indagou e observou bem a reação da sra.
Barnstaple.
— Não! Nunca. Não acredito nessas tolices — ela respondeu, irritada.
— Então, quem viu os fantasmas? Sim, alguém deve ter visto para surgir essa história —
Carina insistiu.
Fez-se uma pausa; depois, evidentemente aborrecida, a sra. Barnstaple replicou:
— Não posso responder o que eu não sei, srta. Warner. E há certas coisas que não devem
sequer ser mencionadas.
Elas chegaram à parte do castelo conhecida de Carina e esta agradeceu:
— Obrigada por salvar-me. Acabei não indo à cozinha.
— Mandarei uma criada trazer-lhe água quente. Boa noite, srta. Warner.
Carina foi para seu quarto intrigada. Qual seria o mistério da ala Tudor? Por que a sra.
Barnstaple ficara tão irritada ao vê-la? Por que afirmava que ali havia fantasmas, se ela
mesma não acreditava que eles existiam? O que ela e lorde Lynche estariam fazendo ali, se a
ala não era usada?
"Aposto que há alguma coisa escondida ali", ela pensou. "E, se houver, vou descobrir o
que é."

CAPÍTULO V

Carina deu um pequeno bocejo e entrou sob as cobertas agradavelmente perfumadas com
lavanda. Virou-se para apagar o lampião que estava sobre o criado-mudo e olhou as horas no
despertador: passava da meia-noite!
Fora dormir tão tarde porque tinha lavado a cabeça e sentara-se na frente da lareira,
esfregando com a toalha, uma por uma, as longas mechas loiras de cabelos que lhe chegavam
à cintura, esperando que secassem.
Ela dormiu logo após ter encostado a cabeça no travesseiro. Acordou com um sobressalto,
ao ouvir um leve ruído. Teve certeza de que viera da porta. Sentou-se na cama e pôde ver, à
luz do lampião, a maçaneta girando devagar para a direita. Permaneceu imóvel, com a
respiração presa, o coração batendo forte, de medo.
A maçaneta voltou ao lugar com um clique. Seguiu-se absoluto silêncio. Então Carina
ouviu uma leve batida na porta. Outra, e ainda uma terceira. Aterrorizada, soube que sir Percy
estava do outro lado, no corredor. Logo se acalmou, sabendo que estava segura atrás da
proteção da porta bem trancada. Só alguém com força hercúlea poderia arrombá-la.
Virou-se para o lado, tentando continuar o sono interrompido, mas achou que passaria a
noite acordada. Teve a sensação de estar correndo, fugindo de pessoas que a perseguiam.
Eram homens... e ela ia ser capturada. Pôde imaginar o terror que devia sentir uma raposa
correndo a toda velocidade pela charneca, sendo caçada por uma matilha de cães açulados,
certa de que seu tempo de vida se esgotava, bem como suas forças.
— Deixe-me... deixe-me sozinha...

Acordou suada, ouvindo as próprias palavras de desespero e, ao mesmo tempo, batidas


na porta da sala. Tivera um pesadelo! Consultou o relógio: eram oito horas. Com grande
esforço levantou-se, atravessou o quarto e foi abrir a porta.
— Bom dia, senhorita — a jovem criada cumprimentou-a alegremente. — Eu lhe trouxe o
chá e também a água quente para lavar-se. O dia está lindo. Choveu um pouquinho de
madrugada, mas agora há sol. Em seguida um dos lacaios virá trazer-lhes o breakfast.
— Obrigada — Carina agradeceu com um sorriso.
Esperou que a moça saísse, vestiu um robe e foi ao quarto vizinho. Dipa estava sentado
na cama com as pernas cruzadas, cercado de soldadinhos de chumbo, blocos de madeira,
livros e outros brinquedos que pudera carregar.
— Dipa acordou, mas não quis acordar srta. Warner — disse ele com orgulho.
— Você é um bom menino — Carina elogiou-o. Reconheceu que o garoto podia ser
malcriado às vezes, mas tinha consideração com as pessoas. — Saia da cama, querido, para
lavar-se e vestir-se. Mas, antes, leve os brinquedos de volta para a sala.
Enquanto se arrumava, Carina ficou cogitando sobre o que fazer durante o dia. Talvez
fosse uma boa idéia sair com Dipa para um piquenique. Pelo menos isso os manteria longe de
sir Percy. No dia seguinte ele iria embora e ela esperava não voltar a vê-lo.
No entanto, teve a desagradável sensação de que o repugnante senhor era do tipo que
não aceitava derrotas. Quando queria uma coisa e esta lhe era negada, ele tornava-se mais
determinado a consegui-la, por bem ou por mal. Portanto, era mais provável que ele iria dar-
lhe muito trabalho e aborrecimentos.
Em poucos minutos ela aprontou-se e foi para a sala. O breakfast estava na mesa e um
lacaio servia Dipa. Acabara de despejar leite em uma caneca de porcelana e deixara na frente
dele uma tigelinha com mingau que o menino empurrou com aversão. Também não quis
torradas, pãezinhos, mel ou geléia.
— Creio que ele prefere frutas — Carina sugeriu.
— Posso ir buscar algumas — prontificou-se o lacaio.
— Ótimo. Traga o que encontrar.
O rapaz afastou-se e pacientemente Carina tentou fazer com que o garoto provasse um
pouco de mingau e, depois, ovos com bacon. Ele detestou ambos, cuspiu-os e reclamou:
— Comida ruim!
— O que você comia com sua mãe, em Paris? — Carina perguntou, exasperada.
— Não sei.
— Bem, tome seu leite.
— Não quero.
Carina estava perdendo a paciência quando o lacaio voltou com uvas e laranjas, as quais
Dipa aceitou com alegria.
Quando ele terminou, Carina lavou-o e vestiu-o. Ia sair para falar com a sra. Barnstaple
sobre a possibilidade de fazer um piquenique com Sua Alteza quando um lacaio apareceu à
porta e transmitiu o recado de lorde Lynche:
— Sua Senhoria envia-lhe os cumprimentos, srta. Warner, e quer saber se você e o
pequeno príncipe gostariam de cavalgar esta manhã.
Os olhos de Carina ganharam um brilho intenso. Logo ela lembrou-se de que Dipa talvez
não soubesse montar. Respondeu:
— Receio que Sua Alteza nunca tenha andado a cavalo.
— Sua Senhoria pensou nisso e sugeriu que o garoto poderá ir sentado na frente da sela
— disse o lacaio.
— Nesse caso, informe Sua Senhoria que Sua Alteza e eu aceitamos o convite. A que
horas ele pretende sair?
— Sua Senhoria já estava no hall quando eu subi.
— Desceremos em dez minutos. Diga a Sua Senhoria que não precisa se preocupar com o
cavalo a ser escolhido para mim. Sei montar muito bem.
Sentindo-se como uma criança a quem fora prometido algo especial, Carina correu para
seu quarto, abriu o guarda-roupa e, vendo um conjunto de montaria a um canto, tirou-o do
cabide e vestiu-o com rapidez. Não montava desde que deixara Claverly e ansiava por galopar
pelos campos, ouvir o canto dos pássaros, sentir o sol no rosto, o cheiro da vegetação e ter
um belo animal sob o comando de suas mãos.
Quando se mudara para Londres desejara cavalgar no Hyde Park, mas não havia dinheiro
para tal extravagância.
—Aonde nós vamos? — perguntou Dipa entrando no quarto.
— Você vai montar em um cavalo bem grande — Carina respondeu, já vestida, colocando
o chapéu de montaria na cabeça.
Abriu uma gaveta, pegou as luvas, vestiu depressa em Dipa um casaco cor de vinho com
botões dourados, que lhe assentou muito bem, deu-lhe a mão e ambos desceram correndo a
escada.
Ainda não eram nove horas quando eles chegaram ao grande hall. Lorde Lynche os
esperava à porta, muito elegante em seu traje de montaria de talhe perfeito, o chapéu de
copa alta meio de lado.
— Bom dia. — Ele tirou o chapéu.
Observando-o, Carina notou que estava abatido, com olheiras e perguntou a si mesma se
ele estaria doente. Disse em voz alta:
— Foi muito gentil de sua parte convidar-nos, milorde.
— Imaginei que você talvez precisasse cavalgar tanto quanto eu — lorde Lynche replicou.
Carina não entendeu o que ele quisera dizer, mas não se preocupou com isso. Todos
desceram os degraus e lorde Lynche colocou-a na sela de um belo animal. Em seguida ele
montou o outro, também soberbo. O cavalariço ergueu Dipa nos braços e colocou-o sentado
na frente de lorde Lynche.
Muito entusiasmado, o menino começou a falar em javanês e a alisar o pescoço do cavalo
com a mãozinha bronzeada.
— O garoto tem algum instinto esportivo — comentou lorde Lynche segurando Dipa com
firmeza.
Tais palavras alegraram Carina. Chegou a ter esperanças de que lorde Lynche, com o
tempo, deixasse de olhar o filho com aversão e viesse a amá-lo. Talvez esse fosse um desejo
impossível de ser realizado, considerou. Porém, no momento não devia aborrecer-se com os
problemas e dificuldades seus ou de lorde Lynche.
Era um prazer indizível poder segurar novamente as rédeas de um belo cavalo e fazê-lo
obedecer ao seu comando.
— Eu tinha certeza de que você sabia montar — observou lorde Lynche.
— Monto desde criança. O senhor não imagina o que significa para mim cavalgar
novamente. Faz quase três anos que não monto. Eu tinha quase me esquecido de como é
maravilhoso estar numa sela, tendo um animal excelente como este sob perfeito controle —
Carina falou impulsivamente.
Notando que lorde Lynche estava sombrio, muito pálido, parecendo exausto, perguntou,
solícita:
— Está doente, milorde?
— Apenas cansado — ele replicou. — Não dormi esta noite. Eles cavalgavam devagar e
Carina emparelhou sua montaria à de lorde Lynche para poderem conversar.
— Por que ficou acordado, milorde?
— Cartas. Como todo jogador idiota, achei que a sorte iria me favorecer.
— E isso não aconteceu?
— Não.
Subitamente ele fustigou o animal e afastou-se a galope. Carina ouviu os gritos de
felicidade de Dipa e também esporeou seu cavalo para alcançar lorde Lynche, mas isso levou
algum tempo, pois ele já se distanciara do parque, alcançara a campina e começava a subir
um morro.
Ela só o alcançou porque ele parou no alto do morro para olhar o vale. As faces dela
estavam coradas e sua respiração entrecortada.
— Lamento se fui rude — ele falou, amável. — Senti um desejo irreprimível de galopar a
toda velocidade, como se assim eu pudesse esquecer.
— Esquecer o que perdeu, milorde?
— Isso e muitas outras coisas. Mas esquecer o que nos atinge diretamente é impossível.
De fato, o maior castigo para quem comete um crime é jamais conseguir esquecer-se dele.
A infelicidade de lorde Lynche era tão evidente que tocou o coração de Carina.
— Por que o senhor não abandona o jogo? Despeça seus hóspedes — ela sugeriu. — Na
situação em que se encontra nenhum deles pode ajudá-lo.
— E você acha que eu não sei disso? Mas são todos amigos de sir Percy Rockley e só irão
quando ele resolver partir. São um bando de bajuladores! Eles se curvam diante de sir Percy
para conseguir seus favores.
— Mas o castelo é seu. O senhor pode arranjar um pretexto para livrar-se de todos. Pode
dizer que não quer mais saber de jogo.
— O castelo é meu...
Havia um meio sorriso cético e desanimado nos lábios de lorde Lynche e Carina quis
mudar de assunto para não fazê-lo sofrer ainda mais. Olhou para o vale e apontou para uma
casa linda, em estilo georgiano, com colunas brancas sustentando um pórtico alto. As
graciosas janelas abriam-se para amplos terraços, gramados e jardins floridos.
— Que lugar lindo! — exclamou. — A quem pertence?
— Aquela é a minha casa. É onde eu estaria morando se... Ele parou subitamente e Carina
entendeu que ele herdara o título porque o irmão tinha morrido e agora morava no castelo,
sob o domínio da mãe autoritária que controlava tudo, embora preferisse a linda casa do vale,
onde teria paz.
Sem dizer uma palavra, lorde Lynche desceu a encosta do morro e Carina seguiu-o. Logo
eles alcançaram o caminho largo de acesso à casa. De perto, os sinais de abandono eram
visíveis. A pintura das paredes estava descascando, nos canteiros floridos havia mato, a
grama precisava ser aparada, a hera dos terraços estava seca em algumas partes.
Além da casa estendiam-se os campos e avistavam-se a distância os contornos
arredondados dos montes Malvern.
— Que lugar encantador! — Carina falou quase para si mesma.
— Sim. Encantador e ninguém irá morar aqui — lorde Lynche falou com amargura. — Não
permitirei que fiquem com esta casa, ainda que eu tenha de destruí-la, tijolo por tijolo.
Notando que ele estava tenso e segurava as rédeas com força, Carina soube o que
acontecera.
— Quanto o senhor perdeu? — perguntou.
— Tudo.
— Para sir Percy Rockley?
Não havia necessidade de fazer aquela pergunta, mas Carina quis confirmar suas
suspeitas.
Lorde Lynche assentiu com a cabeça e inquiriu:
— Para quem mais poderia ser?
— O que representa, exatamente, "tudo"?
Com a voz apertada na garganta, ele respondeu:
— Prefiro não falar aqui. Vamos entrar na casa.
Eles desmontaram, amarraram as rédeas dos cavalos em um portão de ferro, perto da
grama alta, onde os animais podiam pastar, bastando baixar o pescoço.
Lorde Lynche ergueu Dipa da sela e colocou-o no chão. O menino correu na frente dos
dois, maravilhado com o que, para ele, parecia uma nova aventura. Lorde Lynche pegou uma
chave que ficava escondida sob o peitoril de uma das janelas e abriu a porta da frente.
Foi grande a surpresa de Carina ao ver-se em um hall magnificamente mobiliado, com
teto alto em forma de cúpula, tendo ao centro uma escada curva com balaustrada de ferro
batido. Esquecendo por um momento os problemas de lorde Lynche, ela espiou alguns
cômodos, encantando-se com a mobília suntuosa, várias peças com finíssimo trabalho de
marchetaria, os espelhos dourados nas paredes, as lareiras com frontão de mármore
esculpido, os valiosos tapetes persas.
Lorde Lynche convidou-a para entrar em um salão. Ela lembrou-se de Dipa e, não o
vendo, assustou-se. Mas ouviu a voz dele.
— Deixe o menino. Ele está indo de cômodo em cômodo e não corre perigo — lorde
Lynche tranqüilizou-a.
O salão tinha portas altas voltadas para o jardim e o parque, e a decoração era de
extremo bom gosto.
— Tudo aqui é tão lindo! — Carina exclamou. — Se eu fosse o senhor, deixaria o castelo e
me mudaria para cá.
— Você acha que não é isso que eu quero? Eu lhe disse que esta casa era minha, mas
agora... agora já não sei a quem pertence.
A tristeza dele era tão profunda que Carina sugeriu-lhe suavemente:
— Quem sabe o senhor irá sentir-se melhor se falar sobre isso.
— Há pouca coisa a dizer — lorde Lynche murmurou. — Eu estava bêbado, louco, e
apostei o castelo, as terras...
— E perdeu.
— Perdi. Parece incrível que eu tenha sido tão idiota. Porém, naquele momento, eu tive a
certeza de que iria ganhar.
— De quanto era a aposta?
— Cem mil libras, mais todos os cavalos de sir Percy e duas outras coisas das quais não
me lembro. Eu não estava interessado em nada do que ele ofereceu, mas ele forçou-me,
zombou de mim, disse que eu estava com medo, que era fujão, covarde, e eu aceitei a
aposta.
— Não é de admirar que tenha sido esse o comportamento de sir Percy.
— Nada justifica a minha atitude. Eu devia ter sido bastante homem para recusar a
aposta. — Lorde Lynche andou sobre o tapete macio com os punhos cerrados. — Eu estava
bêbado, repito, mas percebi o que ele estava fazendo. Meu Deus, por que não reagi?
Carina sentou-se numa poltrona perto da lareira, ansiosa para encontrar pelo menos
palavras que confortassem lorde Lynche, mas nada lhe ocorreu. As palavras eram
inadequadas em uma situação como a presente.
— E agora? Como vou contar a minha mãe o que aconteceu? O castelo e as terras têm
sido a razão de sua vida. Ela vive repetindo: "a herança dos Lynche", "a tradição dos Lynche".
Eu me irritava com esse apego, esse orgulho de mamãe e agora compreendo tudo é parte do
nosso sangue.
— Não lhe sobrou nada? Não haverá um modo de o senhor manter o castelo?
— Honestamente, não sei. Mandei buscar meu advogado.
— Sinto muito — Carina falou com sinceridade. Realmente, lamentava que um grande
império caísse nas mãos de um ordinário como sir Percy Rockley. Pela primeira vez via lorde
Lynche como um homem comum e não como um tirano que ela desprezava por ter
abandonado a esposa e não querer aceitar o filho.
— O pior é que dívida de jogo é dívida de honra — lorde Lynche continuou, como se
falasse consigo mesmo. — Sir Percy irá cobrá-la imediatamente e não haverá tempo de
notificar os arrendatários e fazendeiros. Também não poderei mais pagar os aposentados e
pensionistas.
— Talvez sir Percy possa...
Lorde Lynche ergueu a mão para interrompê-la.
— Você conheceu sir Percy. Pode imaginá-lo fazendo concessões, sendo bondoso com
quem quer que seja?
— Pensei que ele fosse seu amigo.
— Amigo! Pessoas como sir Percy não têm amigos, têm conhecidos, todos tolos que o
consideram um bom camarada pois os ajuda a preencher as horas de ócio.
— Foi por isso que o senhor o recebeu no castelo?
— Ele ajudava-me a esquecer.
Era a segunda vez que ele falava em tentar esquecer e Carina ficou imaginando se ele
queria apagar as lembranças de Chi-Yun ou haveria outras coisas tristes que ele tentava tirar
da memória entregando-se ao jogo, à bebida, e procurando a companhia de aventureiros e
libertinos.
— Para ser franco, eu o trouxe aqui para enfurecer minha mãe — confessou lorde Lynche.
— Mamãe sempre me desprezou. Vive dizendo que sou um fraco, tolo, sem vontade própria.
Bem, provei que ela está certa.
— Tenho certeza de que lady Lynche fala por falar. É o jeito dela. Toda mãe ama o filho —
Carina declarou, achando que naquele momento de tragédia lorde Lynche não podia sentir que
alguém do seu sangue estava contra ele.
— Engana-se. Minha mãe nunca se importou comigo — ele discordou. — Ela amava meu
irmão com loucura. Eu era o filho indesejado. Por esse motivo eu sempre quis ter minha
própria vida, longe da sombra deste castelo e de tudo o que tanto significava para os Lynche.
Meu sonho era afastar-me daqui. O sonho morreu quando herdei o título.
— O senhor não pode lutar? Não pode fazer alguma coisa? Lorde Lynche fitou-a, os olhos
escurecidos, cheios de dor.
— Você acha que não tenho feito essa mesma pergunta todas as noites? Ah, Percy
representou muito bem seu papel de gentleman! Antes de levantar-se da mesa, disse-me que
esta noite eu poderia ter a revanche. — O rosto de lorde Lynche contorceu-se. — Maldito! Ele
tinha plena consciência de que me havia sugado tudo. Tirou-me até a mobília francesa que
minha avó deixou-me em testamento. Era minha! Nunca pertenceu a mamãe ou meu irmão.
Um vislumbre de esperança iluminou o rosto de Carina.
— Pode ser que... o castelo...
— Sei o que está pensando, srta. Warner, mas está tudo perdido — lorde Lynche
interrompeu-a. — Num momento de embriaguez perdi o castelo e as terras pelas quais meus
ancestrais lutaram e morreram. É claro que tenho de falar com meu advogado. Porém, não
vejo como salvar alguma coisa.
— Não se torture. O que está feito, está feito. Deve pensar no futuro, milorde.
— Falar é fácil!
— Eu sei que a sua situação é difícil, pois tenho de fazer o mesmo: pensar no futuro.
Também perdi tudo.
— Você?!
Por um momento lorde Lynche deixou de pensar em si mesmo.
— Sim. Vi toda a minha vida desmoronar. Fiquei sozinha e sem nada. Cheguei a pensar
em morrer. O bom senso fez-me compreender que eu tinha de continuar vivendo e fazer isso
com dignidade. Procurei um emprego.
— Você é corajosa. Muito mais do que eu.
— E claro que o senhor também é corajoso. Por enquanto, não se recuperou do choque e
tudo parece escuro e assustador, sem esperança. Aos poucos, inexplicavelmente, as sombras
começarão a se dissipar e surgirá a luz — Carina falou com otimismo.
— Obrigado — ele agradeceu brandamente, os olhos fixos nela.
Carina soube que lhe dera força e notou que parte da aflição se afastara do rosto dele.
Sentiu também que havia um estranho magnetismo atraindo-os um para outro. Interpretou
essa força como um sinal de que deveria ajudá-lo. Iria fazer isso!
— Venha, senhorita! Venha ver! — gritou Dipa entrando correndo no salão.
Seus sapatos fizeram barulho no assoalho, depois os passinhos ligeiros foram abafados
pelo tapete persa. O menino segurou a mão de Carina e começou a puxá-la.
— Venha ver os gatinhos! Muitos gatinhos! Venha ver!
— Gatinhos?! Sim, quero vê-los.
Impaciente demais para esperá-la Dipa soltou a mão de Carina e saiu correndo na frente
dela. Ela voltou-se para lorde Lynche e vendo novamente sua expressão sombria, sugeriu:
— E melhor voltarmos para o castelo.
— Vá você, se quiser. Prefiro ficar aqui — ele respondeu, irritado. — No momento não me
sinto com coragem de enfrentar a situação.
— Vou ver o que Dipa está aprontando — disse ela, deixando o salão.
Encontrou o menino na cozinha, agachado sob uma mesa onde estava uma cesta com seis
gatinhos recém-nascidos.
— Está vendo, senhorita? Muitos, muitos gatinhos! — Dipa exclamou quando Carina
ajoelhou-se e agradou a mamãe gata.
Do lado da cesta havia uma tigelinha com leite, indicando que alguém estava cuidando
dos animaizinhos. Certamente a mesma pessoa que mantinha a casa limpa, as panelas de
cobre brilhando na prateleira e o tampo da mesa alvo. Carina ficou de pé, olhou à sua volta e
lamentou que, além do castelo, aquela propriedade iria pertencer a sir Percy.
Voltou ao salão e ao vê-la, lorde Lynche perguntou:
— Você não vai voltar ao castelo?
— Não. Eu não gostaria de deixá-lo sozinho. Ele esboçou um sorriso irônico.
— Receia que eu estoure os miolos? Saiba que não tenho coragem para isso.
— Acaba de me ocorrer que o senhor não deve ter comido nada até agora.
— Você acha que eu poderia comer o que quer que fosse?
— Pois devia, milorde — tornou Carina ignorando o tom hostil dele. — Minha mãe dizia
que as coisas não parecem tão negras depois de uma boa refeição. Há alguém que possa
cozinhar?
— Não. A esposa do fazendeiro vem diariamente cuidar da casa e das aves. Mas eles
moram há mais de uma milha daqui.
— Muito bem, vamos encontrar alguma coisa para comermos. Você falou em aves. Será
que não há entre elas galinhas poedeiras?
— Ora! Parece que está ordenando que eu saia à procura de ovos! — protestou lorde
Lynche.
— Por que não? Ficar aqui, sentindo-se péssimo, não irá fazer-lhe nenhum bem.
Ele suspirou.
Chegando à cozinha onde estava Dipa sob a mesa, brincando com os gatinhos, ela abriu
uma porta. Viu que era uma despensa. O teto era baixo, o piso de pedra e as prateleiras
revestidas de ardósia. Esses materiais tornavam o lugar mais frio. Chegando perto das
prateleiras onde havia cestas, potes, vidros e outros utensílios, Carina achou que estava
sonhando.
— Veja o que temos aqui, milorde! — ela gritou, chamando lorde Lynche.
Ele chegou até a porta e admitiu que havia motivos para a srta. Warner mostrar-se tão
empolgada. Nas prateleiras ela encontrara uma cesta cheia de ovos, várias bolas de manteiga,
queijo, uma jarrinha de barro com leite, vidros de geléia e tigelas com creme de leite.
Esquecendo seus problemas por alguns segundos, lorde Lynche sorriu e observou:
— Parece que você esfregou a lâmpada mágica de Aladim. Mas agora me lembro de que a
sra. Hobman pediu-me autorização para usar a despensa enquanto a da casa dela está em
reforma. Ela guarda aqui os produtos que leva ao mercado todo sábado.
— Graças a ela teremos o nosso lanche — Carina festejou, sorrindo também.
Pegou imediatamente o que queria e levou para a mesa da cozinha. Tirou o chapéu, o
casaquinho, e arregaçou as mangas da blusa. Notando que lorde Lynche a fitava de modo
estranho, ficou encabulada.
— Bem, é mais fácil trabalhar sem o casaco — explicou.
— Fique à vontade. Só estou achando que você é muito prática. A maioria das mulheres
não sabe pôr uma chaleira para ferver, quanto mais preparar algum prato.
— Fui criada no campo e mamãe jamais permitiu que eu fosse apenas uma fina lady,
incapaz de qualquer coisa mais cansativa do que escrever uma carta.
— Sua mãe estava certa.
— Aceito isso como elogio.
— Quem é você? Quero dizer, quem eram seus pais?
— Estamos conversamos demais e nem acendemos o fogo. Deve haver um depósito de
lenha nesta casa mágica. Será que o senhor e Dipa poderiam ir à procura de gravetos?
Lorde Lynche saiu sem fazer a menor objeção, porém não chamou o menino para
acompanhá-lo. Quando voltou com um punhado de carvão em um balde velho, Carina já havia
acendido o fogo com jornais e pedaços de lenha que encontrara debaixo da escada. Em um
armário havia caixas de fósforos, sal e vidros com condimentos.
Ela agradeceu a lorde Lynche e sorriu intimamente, imaginando que esta devia ser a
primeira vez que ele trazia alguma coisa para a cozinha. Se é que ele já entrara em alguma
cozinha em todos os seus anos de vida.
Demorou algum tempo para a chapa do fogão esquentar. Por fim, Carina colocou na mesa
uma grande omelete, queijo, geléia e leite. O último, ela teve certeza, estava reservado para
os gatos.
Lorde Lynche parecia mais calmo, mas comeu pouco. Para surpresa de Carina, Dipa,
talvez por estar com fome, gostou muito da omelete, tomou um copo de leite e ainda quis
queijo com geléia. Foi ele quem mais falou durante o lanche, entusiasmado com os gatinhos e
perguntando insistentemente se poderia levar um deles para casa.
— Ainda não. Eles são muito novinhos e precisam dos cuidados da mamãe gata. Se
levarmos um deles o coitadinho morrerá — Carina explicou. —Você não quer que ele morra,
não é mesmo?
Foi difícil para o menino entender; ele só parou de insistir porque Carina prometeu trazê-
lo novamente para ver os gatinhos. Ela vestira o casaco novamente para sentar-se à mesa e
olhando para o relógio preso à lapela, comentou:
— Já é quase meio-dia. Devem estar sentindo sua falta no castelo, milorde.
— O que direi a minha mãe? — lorde Lynche indagou, empurrando o prato. — Ela morrerá
se souber a verdade. Mamãe nunca foi pobre, sempre teve tudo. Não suportará ficar sem o
castelo, sem conforto e sem os criados. Enfim, sem o reino que ela governou durante meio
século.
— Talvez Sua Senhoria seja bem mais forte do que imaginamos.
— Tem razão. Mais provavelmente ela me matará.
— Seja como for, devemos voltar ao castelo. Então o senhor falará com sua mãe.
— Falarei com ela só depois de reunir-me com meu advogado. Pode ser uma esperança
vã, mas acredito que eu possa salvar alguma propriedade. Enquanto o advogado não chega
devo comportar-me como um gentleman. Terei de manter a cabeça erguida, fingindo para
aqueles que se dizem meus amigos que não estou abalado. Meu Deus, se eles soubessem! —
Em outro tom, lorde Lynche acrescentou: — Convidei você e o menino para cavalgar comigo
porque eu precisava falar com alguém. Obrigado por ouvir-me pacientemente e sem fazer-me
acusações. Você poderia querer vingar-se de mim, por ter sido tão rude. No entanto, você tem
sido... um anjo clemente.
— Ora, milorde, sou apenas uma governanta. E agora, como boa governanta, vou lavar
tudo o que usamos.
— Não é necessário. Vou deixar um bilhete para a sra. Hobman avisando que usamos a
cozinha e alguma coisa da despensa. Caso contrário, ela irá pensar que ladrões entraram na
casa.
Lorde Lynche tirou um cartão do bolso, escreveu nele algumas palavras e colocou-o na
mesa com uma libra esterlina. Antes de sair, comentou:
— Nunca imaginei que uma cozinha pudesse ser tão aconchegante.
— Com certeza o senhor nunca esteve numa cozinha antes. — Está enganada. Quando eu
vinha a esta casa visitar minha avó, eu corria para a cozinha porque a cozinheira sempre
guardava para mim biscoitos de gengibre em forma de bonecos com olhos de groselha.
— Não fique triste, milorde. Algo me diz que a situação não é tão grave como parece e
tudo ficará bem.
— Não sei, mas o que quer que aconteça, jamais me esquecerei da sua bondade.
Eles voltaram depressa para o castelo e pouco conversaram. A tarde estava linda, o sol
brilhava, mas o castelo pareceu a Carina mais cinzento e triste do que nunca. Não havia vento
e a bandeira da torre pendia mole e sem vida.
Ela sentiu um calafrio quando eles três entraram no grande hall. Lorde Lynche agradeceu-
lhe formalmente e ela ia subir com Dipa para seus aposentos, mas Newman perguntou-lhe:
— A senhorita vai almoçar com o pequeno príncipe aqui embaixo, srta. Warner?
— Não, obrigada. Já comemos alguma coisa e Sua Alteza irá descansar. Não precisamos
de mais nada.
Chegando ao terceiro andar, Carina tirou as roupas de Dipa, vestiu nele a camisa de
dormir, e colocou-o na cama. Mas ele, apesar de sonolento, ficou falando sobre o passeio a
cavalo e os gatinhos. Em tom severo Carina ordenou-lhe que ficasse quieto e dormisse.
Admirou-se ao vê-lo fechar os olhos, virar-se para o lado sem reclamar e adormecer quase em
seguida.
Carina também trocou de roupa e foi até a janela. Com uma pontada no peito refletiu que
nunca mais iria cavalgar com lorde Lynche. Não haveria mais cavalos e eles teriam de sair do
castelo. Para onde iriam?
Pensou em lorde Lynche e imaginou-o na sala de jantar fazendo o papel de bom anfitrião
e escondendo seu ódio por sir Percy, enquanto seus hóspedes estariam alegres e barulhentos.
Podia avaliar como ele estava sofrendo e desejou poder ajudá-lo. Mas, fazer o quê?
Sentindo-se impotente, decidiu arranjar um livro para ler. Porém, ir à biblioteca estava
fora de cogitação. Entrar ali iria trazer-lhe à mente o odioso encontro com sir Percy que ela
queria esquecer. Lembrou-se de ter visto uma grande estante em estilo chippendalle, com
portas de vidro, em um escritório ou sala de leitura que ficava do lado da sala matinal.
Certamente encontraria livros naquela estante.
Olhou para Dipa que dormia, afastou-se na ponta dos pés e fechou a porta sem fazer
barulho. No primeiro andar seguiu no sentido contrário ao dos aposentos de lady Lynche para
descer por uma das outras escadas que os hóspedes não usavam. Como na véspera, viu-se de
novo em um verdadeiro labirinto de corredores e compreendeu que estava na ala Tudor.
Parou na escada sentindo-se uma perfeita idiota, sem saber se descia os degraus
restantes ou voltava pelo mesmo caminho por onde viera.
"O problema é que estou sempre com o pensamento longe c não presto atenção no que
devia", censurou-se.
Reconheceu que o mais sensato seria voltar. Se continuasse a andar por aqueles
corredores, aí, sim, ficaria perdida de vez. De mais a mais, o que poderia encontrar ali?
Fantasmas? Não acreditava que eles existiam.
Ia subir os outros degraus quando viu um homem sair literalmente da parede, perto da
escada. Era o mesmo valete usando colete listrado que vira no dia anterior. Ficou gelada,
faltou-lhe o ar, quis fugir, mas não conseguiu mover-se. O homem olhou para cima e a viu.
Subiu depressa os degraus, na direção dela. Carina notou que tinha o rosto contorcido, estava
muito pálido, e era de carne e osso.
Ele gritou:
— Venha! Depressa! Acho... que eu o matei!

CAPÍTULO VI
— Venha! Depressa! — o valete repetiu.
A urgência na voz dele fez com que Carina descesse a escada sem pensar em mais nada.
O homem passou pela porta secreta do painel de carvalho que revestia a parede e ela foi atrás
dele. Quando se viu do outro lado, empurrou instintivamente o painel, fazendo-o girar e
encaixar-se no lugar com um clique.
Havia pouca claridade e Carina viu apenas o vulto do homem acabando de descer uma
escada estreita, em espiral. Segurando no corrimão, ela começou a descer devagar os degraus
os quais, felizmente, eram revestidos por grosso tapete, o que evitava escorregões.
Carina chegou ao cômodo mais estranho que já vira. Era pequeno e tinha uma forma
irregular. Deduziu que fora construído sob a escada e, certamente, era um esconderijo feito
séculos atrás para abrigar religiosos e políticos perseguidos. O valete estava ajoelhado junto
de um homem caído sobre o tapete.
— Achei que ele estava só ferido... mas está morto — o valete murmurou, aflito. — Não
foi a minha intenção... eu só o empurrei, mas ele caiu.
— Deixe-me ver — disse Carina calmamente, ficando também de joelhos.
Sentiu imediatamente um forte cheiro de brandy. Notou que o homem estendido no chão
tinha cabelos brancos e que escorria sangue de um ferimento que ele tinha na testa.
— Arranje-me toalhas limpas e água quente o mais depressa que puder — ela pediu.
O valete afastou-se e Carina segurou o pulso do homem ferido, depois verificou os
batimentos cardíacos. Ele estava vivo, não restava dúvida, e também embriagado. Caíra de
bêbado e devia ter batido na quina da mesa, o que o deixara inconsciente.
O valete voltou com uma bacia de porcelana finíssima e toalhas de linho bordadas a mão
com o monograma "L" sobre uma coroazinha. Carina notou que eram iguais as que tinha no
seu quarto e no banheiro.
Depois de limpar o corte da testa do homem, ela verificou que não era profundo e
tranqüilizou o angustiado valete:
— Seu amo está apenas inconsciente. Arranje-me dois lenços limpos para eu fazer um
curativo e amarrar a testa dele.
— Deus seja louvado! — exclamou o valete, indo depressa buscar o que lhe fora
solicitado.
— O que aconteceu? — Carina perguntou ao valete quando ele voltou.
— O amo fica violento quando bebe demais e... há pouco ele me agrediu. Eu apenas o
empurrei para livrar-me dos golpes e ele caiu. Quando vi o sangue... imaginei que estivesse
morto — contou o valete. Vendo que a moça terminara de fazer o curativo na cabeça do
ferido, ele perguntou: — Não é melhor colocá-lo na cama?
No fundo do cômodo onde eles estavam havia duas portas que se abriam para dois
pequenos quartos. Notando que o homem inconsciente era corpulento, Carina teve certeza de
que ela o franzino valete não conseguiriam carregá-lo.
— Convém deixá-lo onde está — sugeriu. — Coloque apenas um travesseiro sob sua
cabeça e cubra-o com um cobertor. Pode ser que ele sinta fraqueza quando acordar por ter
perdido sangue.
O homenzinho obedeceu-a prontamente.
— Seu patrão ficará perfeitamente bem. Mas não o deixe beber demais — Carina
aconselhou, notando a garrafa de brandy quase vazia sobre a mesa.
O valete encolheu os ombros magros.
— O que mais pode ele fazer? Meu pobre amo não viverá muito tempo.
— Como sabe disso? Alarmado, o valete encarou-a.
— Quem é você? — perguntou. — Eu não podia ter permitido a sua entrada aqui.
— Sou governanta de um menino que está hospedado no castelo.
— Por favor, não conte a ninguém que esteve aqui, muito menos o que viu. Se lady
Lynche souber, serei despedido — o valete suplicou.
— Não direi nada, prometo. Mas acho que o homem ferido deve ser examinado por um
médico. Esse corte precisa de uns pontos.
— Não é necessário. Eu sempre cuidei dele. Nós nos damos muito bem.
— Você se dão muito bem e ele o agride? Essa mancha no seu rosto é resultado de um
golpe bem forte — Carina observou.
— Por vezes o amo perde a paciência. Mas ele não sabe o que faz. Não se preocupe
comigo. E, por favor, nem uma palavra. Vejo que a senhorita é uma lady e não quebrará sua
promessa.
— Não quebrarei. Mas você também deve prometer-me que mandará chamar um médico
se o seu amo piorar.
— Prometo pela alma de minha mãe — o valete falou solenemente. — E agora, a
senhorita deve subir. Pode ser que tenham notado a sua falta e estejam à sua procura.
— Está bem.
Carina olhou mais uma vez para o homem inconsciente antes de sair. Notou que tinha o
rosto balofo por causa da bebida e bolsas sob os olhos. Os cabelos ralos, totalmente brancos
revelavam que tinham sido cortados por mãos inexperientes. As roupas eram caras, mas
estavam surradas e manchadas.
Quem seria ele?
Dirigiu-se para a escada e o valete acompanhou-a.
— Muito obrigado do fundo do coração — ele agradeceu-lhe com sinceridade. — Lembre-
se: a senhorita nunca esteve aqui.
— Dei-lhe a minha palavra e a manterei. Boa sorte.
— Vou precisar dela, senhorita.

Carina chegou ao pequeno hall, abriu a porta secreta e fechou-a assim que saiu para o
corredor. Por curiosidade, examinou detidamente o painel e ficou impressionada ao constatar
que os primorosos entalhes ocultavam a porta secreta com perfeição. Nada havia que
revelasse uma articulação, gonzos, mola ou o contorno da porta.
Carina subiu os degraus e percebendo um movimento no pé da escada, olhou para baixo.
Viu um homem que desapareceu nas sombras, como se quisesse ocultar-se. Pelo uniforme,
teve certeza de que era criado de um dos hóspedes. De repente lembrou-se de que era o
valete idoso que cumprimentara e que olhara para ela muito surpreso. Mas o que estaria
fazendo naquela ala? Não quis pensar no assunto. O que descobrira no cômodo secreto já era
intrigante demais.
Quem seria aquele bêbado? Os cabelos brancos indicavam que tinha idade avançada.
Devia ser uma homem de posição pois tudo ao seu redor era luxuoso. O tapete era persa e as
cadeiras revestidas de brocado. Na estante havia livros com rica encadernação, em couro; os
lenços de cambraia e as toalhas de linho tinham o monograma "L" de "Lynche". Seria ele uma
pessoa da família? Bem, naquele rosto inchado por causa da bebida, não era possível notar
alguma semelhança com lorde Lynche ou a mãe.
Qual seria o destino do homem escondido e seu valete quando sir Percy tomasse posse do
castelo? Os dois, certamente não poderiam continuar ali. Eles recebiam comida e tudo o que
precisavam através da sra. Barnstaple, claro. Ela e lady Lynche deviam ser as únicas pessoas
que sabiam daquele segredo. E aquela história de fantasmas tinha sido inventada para afastar
os outros criados da ala Tudor.
Entrando na sala de seus aposentos, Carina sentou-se em um poltrona pensando em lady
Lynche e no seu sofrimento quando soubesse que o castelo fora roubado por um homem
desprezível como sir Percy Rockley. Sabia o que era perder o lugar amado que sempre
representara um porto seguro. Três anos atrás tivera de abandonar Claverly Court com os
pais. Eles mudaram-se para Londres. Na ocasião Carina não entendera o que tinha acontecido
e o assunto passara a ser proibido.
A mãe só lhe contara tudo antes de morrer, um ano atrás. O pai falecera havia poucos
meses.
Carina afastou as lembranças. Pensar no que estava perdido para sempre só lhe trazia
sofrimento. Devia, sim, tentar encontrar um meio de ajudar lorde Lynche.
Não cabia em si de ansiedade, querendo saber o que estava acontecendo lá embaixo.
Pensou em falar com a sra. Barnstaple para descobrir alguma coisa, mas reconheceu que não
ficava bem uma empregada intrometer-se nos assuntos dos patrões.
Dipa acordou e quis brincar no jardim e só então Carina notou que começara a chover. Ela
pegou alguns livros infantis e sentou-se com o menino sobre o tapete, determinada a ensiná-
lo, mas não conseguiu que ele se concentrasse no que ela lhe explicava. Sentindo-se uma
péssima governanta, concordou em brincar com os soldadinhos.
Horas mais tarde, não tendo visto ninguém, a não ser os lacaios que haviam trazido o
chá, os lampiões e o jantar, Carina colocou Dipa na cama, depois trocou de roupa para dormir.
Vestiu a camisola, um négligé e sentou-se diante do espelho para soltar os cabelos e escová-
los. Estava distraída, com o pensamento longe dali, quando viu pelo espelho um valete
entrando na sala carregando uma bandeja. Era o mesmo homem idoso que vira carregando o
par de sapatos e, depois, na ala Tudor, escondendo-se nas sombras. Ela levantou-se depressa
e ia repreendê-lo por ter entrado sem bater, mas ele disse formalmente:
— Perdão, por ter entrado, mas a porta estava só encostada. Bati e a senhorita não deve
ter ouvido. Sir Percy envia-lhe seus cumprimentos e este champanhe. Mais tarde virá fazer-
lhe companhia.
O valete colocara sobre a mesa uma bandeja de prata com a garrafa de champanhe no
gelo e duas taças. Sem dar a Carina tempo de mandá-lo embora com a bandeja, ele
exclamou:
— Claverly! Lady Claverly! É esse seu nome, não? Eu a reconheci quando passou ontem
por mim no corredor e me cumprimentou.
— Por que você acha que sou lady Claverly? — Carina inquiriu.
— Vi seu retrato, milady, e fiquei muito tempo admirando-o. Eu nunca tinha visto uma
mulher tão linda. Em pessoa você é ainda mais bonita.
— Lady Claverly era minha mãe. Onde você viu o retrato?
— Em Claverly Court. Onde mais podia ser?
Com a voz subitamente apertada na garganta, Carina perguntou:
— Você é o valete de sir Percy, não? E esteve em Claverly Court... com ele?
— Isso mesmo. Fomos ver a propriedade. O amo encantou-se com o lugar e disse,
satisfeito: "Vou ficar com Claverly, Jenkins". E não a vendeu como fez com tantas outras.
— Então... foi sir Percy quem tirou Claverly Court do meu pai — Carina murmurou. — Sir
Percy e Claverly...
— Perdão, sir Percy ganhou a propriedade no jogo — Jenkins corrigiu-a. — O amo é muito
esperto e tem uma sorte incrível. Eu sempre digo que ele tem uma sorte do diabo! Lamento
que seu pai tenha perdido a propriedade.
— Você sabe se sir Percy ganhou recentemente uma casa em Londres... na Park Street,
89?
— Sim... também pertencia a sir Hugo Claverly. Pobre alma. Foi triste o que aconteceu a
ele. Mas essa casa foi logo vendida. Uns parentes fizeram questão de comprá-la. Lamento,
senhorita — Jenkins repetiu. — Mas assim é a vida. Sorte de uns, azar de outros.
Não podendo mais ficar de pé, Carina sentou-se numa cadeira e cobriu o rosto com as
mãos. Parecia entorpecida, incapaz de sentir ou pensar. Por fim, levantou-se. Jenkins não
estava mais ali. Ela correu para a porta para trancá-la, mas a chave não estava na fechadura.
Achando que talvez tivesse caído no assoalho, pegou o lampião e procurou-a, passou a mão
sob os móveis. Nada. A chave tinha desaparecido.
As lágrimas, que começavam a nublar-lhe os olhos, desapareceram e seu rosto
endureceu-se. Determinada, ela abriu um dos baús onde Nannie guardara os objetos
pertencentes a lady Claverly e remexeu nele até encontrar o que procurava: maquiagem, um
porta-jóias e um estojo cravejado de ametistas, presente do grão-duque da Rússia. Abriu o
estojo forrado de veludo púrpura, com duas divisões. Em uma delas estava uma pequena
pistola com cabo de madrepérola, também cravejada de ametistas, e na outra as balas.
Carina pegou a pistola, carregou-a e deixou-a sobre a cômoda. Tirou do guarda-roupa um
lindo traje de noite de chiffon preto, que pertencera à mãe, e vestiu-o. Era bem decotado e
tinha ao redor dos ombros um babado de tule branco, tão fino que lembrava uma nuvem,
bordado com pedrinhas brilhantes.
Penteou em seguida os cabelos, deixando-os presos no alto da cabeça, em um bonito
coque, porém fofos ao redor do rosto. Fez uma leve maquiagem e, por fim, colocou o colar de
pérolas que tirou da caixa de jóias.
Olhando-se ao espelho Carina admirou a própria imagem. A recatada governanta
transformara-se em uma mulher linda, elegante e sofisticada.
Foi para a sala levando a pistola, sentou-se na poltrona que ficava bem na frente da porta
e esperou.
Passava um pouco da meia-noite quando ouviu passos no corredor. Passos firmes, de um
homem triunfante, certo de poder ganhar tudo o que desejasse. Perfeitamente controlada, viu
a maçaneta girar e a porta abrir-se. Sir Percy estava parado à entrada da sala, elegantemente
trajado, os botões de diamantes da camisa fulgurando à luz do lampião, o charuto já pela
metade, preso entre dois dedos. Nos lábios o odioso sorriso sensual, o olhar lascivo fixo no
rosto dela. Então, com visível sobressalto, viu a arma que ela segurava.
— Entre, sir Percy — Carina convidou-o, a voz calma e firme. — Eu o esperava.
— O que é isso? O que pretende fazer? — ele indagou sem afastar os olhos da pistola. —
Não seja tola, garota, e largue essa arma!
— Esta arma será muito útil, sir. Descobri por intermédio de Jenkins que foi o senhor
quem matou meu pai.
— Que tolice está dizendo?
— Meu nome verdadeiro é Carina Claverly. Isto lhe diz alguma coisa? Acho que o senhor
não se esqueceu de meu pai.
— Hugo Claverly! Não posso acreditar.
— Mas é verdade. O senhor tirou tudo o que era nosso, dinheiro, Claverly Court, as terras
e a casa de Londres — Carina enumerou.
— Seu pai era péssimo jogador! Um chorão! — exclamou sir Percy, nervoso, batendo o
dedo no charuto, derrubando cinza no assoalho.
— Não é bem assim. Para ele o jogo era um passatempo. Seu erro foi sentar-se a uma
mesa com um jogador profissional, sem escrúpulos, como o senhor!
— Você não tem o direito de fazer-me acusações. Se Hugo não sabia jogar e comportou-
se como um tolo, a culpa não foi minha.
— Foi. O senhor nunca o deixava sozinho, desafiava-o, mexia com seu orgulho, mandava-
lhe bilhetes.
— Isso quer dizer apenas que eu gostava da companhia de seu pai — defendeu-se sir
Percy.
— Gostava de extorquir-lhe tudo o que tinha. Quando conseguiu deixá-lo na miséria,
matou-o.
— Como pode dizer um absurdo desses? Hugo se matou. — Sim, matou-se e sei
exatamente o que aconteceu. Ele apontou-lhe uma arma, sir Percy, e o senhor,
covardemente, escondeu-se atrás de seus amigos, gritando, não apenas para que o
expulsassem do White's Club, mas também para ele ser bastante homem e acabar com a
própria vida.
— Isso é mentira! — sir Percy protestou.
— E a pura verdade. Dezenas de sócios testemunharam o fato. Porém, o senhor, com seu
dinheiro sujo, comprou os funcionários do clube, seus amigos e a imprensa para que seu
nome não fosse envolvido no escândalo — Carina falou com desprezo.
— Vamos, seja sensata. Seu pai está morto e nada o trará de volta. Sinto muito e, se eu
soubesse quem você era, não teria vindo aqui.
— E claro que não teria vindo. A sua intenção era seduzir uma pobre moça, assustada,
que não tinha a quem pedir socorro. Achou que eu, sendo uma governanta, iria ficar feliz com
o seu oferecimento, e jamais resistiria ao seu assédio. Então, depois de roubar a chave da
porta, mandou o champanhe para cá, imaginando que iria passar uma noite agradável. Pois
saiba que cometeu um grande erro. Não sou a governanta amedrontada que imaginou. Sou
Carina Claverly, filha do homem que tentou matá-lo e falhou. Mas eu não falharei.
Carina ergueu a pistola, apontou-a para o alvo e puxou o gatilho. Uma tremenda explosão
que ecoou pela sala e o corpo de sir Percy foi aos poucos se dobrando até cair inerte no
assoalho.
Imóvel como um estátua de pedra, ainda segurando a pistola, os olhos fixos no vazio,
Carina teve uma vaga sensação de que uma mulher entrara na sala, dera um grito agudo e
saíra apressada. Seguiram-se minutos de silêncio, quebrado pouco depois pelo som de passos
e uma voz:
— Você está bem?
— Atirei nele... porque matou meu pai. Meu nome é Carina Claverly — ela respondeu
mecanicamente.
— A filha de sir Hugo? — lorde Lynche indagou, perplexo. Lembrou-se da trágica morte de
sir Hugo Claverly, das notícias nos jornais e dos comentários no White's Club. Com voz
extremamente bondosa, murmurou:
— Pobre criança! Você devia ter-me contado quem era.
— Eu não queria que soubessem meu sobrenome verdadeiro e usei o da minha velha
governanta quando fui à agência procurar emprego.
— Você não sabia que sir Percy tinha ficado com tudo que pertencia a seu pai?
— Fiquei sabendo esta tarde. O criado dele mencionou Claverly Court.
— O que Percy veio fazer aqui? E como entrou?
— Ele roubou a chave. Mandou Jenkins trazer o champanhe e apareceu aqui logo depois
da meia-noite.
— Porco desprezível!
De repente, vários homens e uma mulher de voz aguda entraram na sala. Carina ficou de
pé e lorde Lynche passou o braço pelo ombro dela para protegê-la. Ela, que até então parecia
fria e inanimada como uma estátua de mármore, sentiu uma vibração intensa, uma chama
dentro de si, a vida pulsando nas veias o sangue afluindo-lhe ao rosto. Compreendeu que
amava lorde Lynche.
Não importava o que ele era, o que tinha feito ou até a que ponto descera. Amava-o com
todas as forças do seu coração e todo o seu corpo respondia ao toque dele.
— Bom Deus! O que aconteceu aqui, Justin? — perguntou o coronel Wakeford, um dos
cavalheiros que tinham acabado de chegar.
— Vocês estão vendo o que aconteceu. A srta. Claverly atirou num homem que merecia
morrer — replicou lorde Lynche.
— Claverly?! Bom Deus, que confusão! — resmungou o coronel. — Temos de mandar um
cavalariço chamar o médico. Um cavalheiro ajoelhou-se junto do corpo de sir Percy; os outros
e a mulher cercaram-no.
— Temos um médico na vila — disse lorde Lynche.
— Percy não está morto — declarou o cavalheiro que estava de joelhos. — Está perdendo
muito sangue. Vamos levá-lo para baixo.
Nem bem acabou de falar, ele e os amigos ergueram o ferido e carregaram-no para o
quarto dele.
— Sir Percy vai morrer. Chame a polícia. Devo pagar pelo que fiz — disse Carina a lorde
Lynche, quando ambos ficaram a sós.
— Acalme-se. Vamos esperar que o médico o examine — ele aconselhou-a.
Perturbada por causa da proximidade de lorde Lynche, Carina foi até a lareira. Ele
admirou-a a distância. Não se contendo, chegou perto dela e chamou-a:
— Carina...
Ela virou-se e notando a expressão no rosto dele, ficou magnetizada.
— Eu a amo — ele declarou. — Você sabe disso, não?
— Não... nunca imaginei...
— Eu a amei desde o instante em que a vi no hall. Mas notei que havia desprezo nos seus
olhos.
— Não falemos nisso... eu posso ir para a prisão. Não tenho medo, nem me arrependo de
ter atirado em sir Percy. Eu quis matá-lo, não apenas pelo que fez a meu pai, mas também a
você.
— Quer dizer que... você sente alguma coisa por mim? Diga que é verdade, porque eu a
amo. Eu não devia, nem podia declarar meu amor por você. Não sou livre e não posso propor-
lhe casamento. Agora, porém, quando tanta coisa pode acontecer, quero que você saiba o que
sinto.
— Compreendo. Você não é livre porque, legalmente, está casado com Chi-Yun.
— Não é nada disso — tornou lorde Lynche com uma expressão estranha no olhar. — Meu
advogado chegou esta tarde e me informou que a mãe de Dipa está morta. Eu gostaria de
contar-lhe tudo, mas não posso falar porque se trata de um segredo envolvendo outras
pessoas.
Carina ia perguntar se o segredo teria a ver com o homem escondido, mas lembrou-se de
que prometera ao valete não tocar no assunto com ninguém.
— É melhor descermos — ela sugeriu. — O médico deve estar chegando e, depois de
examinar sir Percy, mandará chamar a polícia.
— Nunca! — lorde Lynche declarou com veemência. — Se Percy estiver morto, jogaremos
o corpo no lago ou o enterraremos.
— Há tantas testemunhas — Carina falou calmamente.
— Todos sabem que Percy teve o que merecia.
— Isso não existe na lei.
— Por que não fugimos? Podemos sair pelos fundos do castelo e estaremos na França pela
manhã.
— Eu sei que você não teria coragem de fugir, deixando sua mãe desamparada.
— É verdade.
Um lacaio apareceu à porta.
— Com licença, milorde. O coronel Wakeford pede-lhe para ir ao quarto de sir Percy —
avisou o rapaz.
— Diga ao coronel que irei em seguida — lorde Lynche respondeu.
Ele voltou-se para Carina.
— Venha comigo. Não convém ficar sozinha.
— E Dipa? É de admirar que ele não tenha acordado.
— A sra. Barnstaple mandará uma das moças para ficar com o garoto.
Os hóspedes do castelo estavam reunidos no corredor, na frente do quarto de sir Percy,
conversando excitadamente. O coronel Wakeford foi ao encontro de lorde Lynche e Carina.
— O médico chegou há pouco e está examinando Percy. Você não gostaria de entrar,
Justin?
— Faça isso por mim, coronel — pediu lorde Lynche.
O coronel assentiu e entrou no quarto. Lorde Lynche dirigiu-se aos outros hóspedes.
— Vamos descer? No salão há mais conforto do que neste corredor com vento encanado.
Oferecendo o braço a Carina, lorde Lynche conduziu o grupo para o grande salão. Era a
primeira vez que ela entrava ali. Notou que era luxuoso, mas frio. Vendo ao fundo as mesas
revestidas de feltro verde que tinham causado a ruína de lorde Lynche, teve ímpetos de gritar
que as queimassem.
Os hóspedes se acomodaram nas poltronas e sofás, calados, nada à vontade. Lorde
Lynche permaneceu de pé, de costas para a lareira, a expressão inescrutável. Carina estava
achando que não podia mais suportar aquele ambiente, quando a porta abriu-se e o médico
entrou. Conversou em voz baixa com lorde Lynche, depois dirigiu-se a todos.
— Quero avisá-los que sir Percy será levado para o hospital. O tiro atingiu seu braço
direito, despedaçando o osso. Creio que o braço terá de ser amputado.
— Isso que dizer que Percy não poderá segurar as cartas! — um cavalheiro exclamou,
provocando sorrisos discretos.
— Então ele não corre perigo de vida? — outro cavalheiro indagou.
— Não. Ele estava apenas inconsciente mas já voltou a si. Desmaiou... de medo, imagino.
— Medo...
A palavra foi repetida num sussurro pelo salão. Poderia haver maior humilhação para um
homem arrogante como sir Percy do que ser motivo de chacota por ter desmaiado de medo ao
ver uma arma na mão de uma mulher?
Lorde Lynche saiu do salão com o médico e os hóspedes passaram a conversar alto e
descontraidamente. Alguns voltaram para as mesas de jogo e outros foram até o aparador
onde havia bebidas, gelo e copos.
Pouco depois, lorde Lynche voltou e sentou-se com Carina no sofá.
— Falhei — ela murmurou.
— Pelo contrário. Você infligiu a sir Percy um castigo pior do que a morte e ainda impediu-
o de roubar outras pessoas como me roubou e roubou seu pai.
— Ele vai ficar com o castelo e tudo que é seu?
— Ainda não me reuni com o advogado, mas não estou desesperado como antes. Você
ensinou-me que há coisas mais importantes do que o dinheiro e a posição social. Também me
infundiu coragem. Assim que falar com o advogado vou conversar com minha mãe.
— Se você tiver de sair do castelo, o que acontecerá a Dipa e a mim?
— Vocês irão comigo para onde eu for. Não posso propor-lhe casamento, por enquanto,
mas preciso tê-la perto de mim. Preciso vê-la e saber que está ali.
— Será que suportaremos ficar perto um do outro sem podermos viver o nosso amor?
Sem nos tocarmos? O que sentimos um pelo outro não é mais importante do que o seu
segredo?
— Por favor, não me tente... — ele pediu, a voz enrouquecida pela emoção. — Eu a quero
como jamais desejei uma mulher. Amo você, anseio por abraçá-la, beijá-la, torná-la minha,
mas não posso fazer nada disso.
Tais palavras e paixão com que foram ditas deixaram Carina trêmula. Ficou de pé e
despediu-se:
— Devo ir agora. Boa noite, Justin.
Lorde Lynche levantou-se para acompanhá-la até a porta, mas o coronel Wakeford veio ao
encontro dele com uma caixa na mão, cheia de maços de cartas de baralho.
— Veja o que tenho aqui, Justin! — exclamou. Caminhou para o fundo do salão, seguido
de lorde Lynche
e Carina, e jogou alguns maços sobre uma das mesas de jogo. Eram todos novos,
estavam embrulhados e com o selo inviolado. Vários cavalheiros se aproximaram. Um deles
perguntou:
— Que baralhos são esses? Onde os arranjou?
— Encontrei a caixa no quarto de Percy quando estive ajudando o médico a prepará-lo
para ir ao hospital — explicou o coronel.
— O que há de extraordinário nesses baralhos? Percy sempre presenteia o dono da casa
com dúzias de maços de cartas — comentou outro cavalheiro. — Todos nós sabemos que as
cartas devem ser sempre novas.
— É verdade. Percy deu-me uma caixa cheia de baralhos novos como esses — lorde
Lynche confirmou. — Agradeci e disse que usaria os dele mais tarde, pois eu também tinha
reservado uma caixa cheia de baralhos novos. Mas ele sugeriu que deixássemos os meus
baralhos para depois e usássemos os dele.
— Ele quis jogar com os dele, claro — disse o coronel, suas palavras carregadas de
insinuações.
Ele chamou o cavalheiro mais velho do grupo.
— Arthur, por favor! Abra um destes maços e espalhe as cartas na sua frente.
Lorde Arthur atendeu-o. Rasgou o selo, desembrulhou as cartas novinhas, e espalhou-as
sobre a mesa de feltro verde.
— Tomei a liberdade de pedir uma lente de aumento ao mordomo — O coronel examinou
com a lente a parte de trás de várias cartas e foi dizendo: — Temos aqui um ás de espadas,
esta outra é um rei de ouros...
— Bom Deus! Cartas marcadas! — Lorde Arthur exclamou.
— Exatamente — confirmou o coronel. — Quem quiser pode examinar as cartas. São
marcas minúsculas, não mais que um pontinho, quase invisível, como se fosse um pequeno
defeito de impressão. Mas estão em cada ás e cada rei.
Houve uma pequena agitação. Mãos se estenderam para pegar os maços de cartas e
seguiram-se exclamações de espanto e protestos.
— Que ladrão!
— Trapaceiro!
— Aquele porco irá pagar por isso!
— Percy terá que me devolver vinte mil libras!
— Fomos roubados, literalmente. Percy nos roubou descaradamente o tempo todo!
Ninguém tem tanta sorte!
— Muitas vezes ele jogou honestamente e era bom jogador. Isso não podemos negar —
apontou ò coronel.
— Seja como for, temos provas de que sir Percy é um trapaceiro — ponderou lorde
Arthur. — Tomarei providências para que ele seja expulso dos clubes de Londres e, juntos
iremos obrigá-lo a devolver o que tomou de seus parceiros de jogo e cancele as promissórias.
Lorde Arthur dirigiu-se a lorde Lynche.
— Preciso continuar, Justin? Creio que você está aliviado.
Lorde Lynche apenas sorriu. Um senhor desabafou:
— Eu gostaria de chutar o traseiro daquele suíno. Mas uma coisa é certa: não veremos
mais aquele ordinário jogando novamente.
— A srta. Claverly já cuidou disso — observou lorde Arthur, olhando para Carina.
— Mas nada trará meu pai de volta — ela murmurou e saiu depressa do salão com os
olhos rasos de lágrimas.

CAPÍTULO VII
Carina acordou com a sensação de que havia estado em um planeta distante e fora
arrastada de volta para a terra. Levantou-se, foi até a sala e viu o assoalho limpo, sem
nenhum sinal de sangue ou de que sir Percy havia caído, inerte, perto da porta.
Teria mesmo atirado num homem para matá-lo, ou fora apenas sua imaginação?
E quanto a lorde Lynche? Seria possível que o desprezo e ódio que sentira por ele tivesse
se transformado em amor ardente? A agitação que tomava conta dela e a chama que ardia em
seu interior, só de pensar em Justin fitando-a ou tocando-lhe o ombro, diziam que o amava
além da razão e de toda cautela.
Não duvidava, nem por um instante, do amor e da sinceridade dele. Mas por que ele
dissera que não podia pedi-la em casamento? Justin mencionara um segredo e este, sua
intuição lhe dizia, estava relacionado ao homem escondido na ala Tudor.
Foi até a janela. O dia estava triste, frio e as nuvens escuras prometiam chuva forte. Com
a aproximação do outono as árvores do parque começavam a perder as folhas e as noites
tornavam-se cada vez mais longas. Era muito bom saber que eles continuariam no castelo.
Isso, graças ao coronel Wakeford ter descoberto que a sorte fantástica de sir Percy não
passava de trapaça.
Se a desonestidade de sir Percy tivesse sido descoberta antes, seu pai poderia estar vivo,
Carina refletiu. Ao mesmo tempo, ela jamais teria conhecido lorde Lynche; tampouco saberia
o que era amar com todas as forças do coração.
Lembrando-se de Dipa, ela foi ao quarto dele esperando encontrá-lo brincando, mas na
cama havia apenas um monte de cobertas. Ela ergueu-as um pouco, espiou sob elas e
deparou com o garoto encolhidinho.
— O que foi, Dipa?
— Está frio. Muito frio — ele queixou-se.
— Levante-se que eu visto você na frente do fogo.
— Não quero! Não gosto! Frio, frio! Não tem sol — ele protestou e passou a falar em
javanês, intercalando palavras em inglês.
Carina compreendeu que ele sentia não apenas frio, mas também saudade do seu país e
da mãe.
— Pobre Dipa! — Carina sentou-se na cama, pegou o menino no colo e acariciou-o
durante algum tempo.
Talvez ele nunca fosse feliz na Inglaterra e nenhuma governanta, preceptores ou a
universidade o tornariam um verdadeiro lorde inglês.
De repente, com a vivacidade própria das crianças, Dipa saltou do colo de Carina para o
assoalho e começou a correr ao redor da mesa, foi para a sala, desafiando-a a alcançá-lo. Por
fim, aquietou-se um pouco e foi possível ela vesti-lo.
Um lacaio trouxe o breakfast. Fazer com que o menino comesse o que ele ficou repetindo
que era "comida ruim", foi novo desafio para Carina. Eles estavam terminando a refeição
quando outro lacaio veio avisar Carina que lady Lynche desejava vê-la e uma criada viria
cuidar do pequeno príncipe.
Surpresa e apreensiva, pois lady Lynche não recebia ninguém tão cedo, Carina deduziu
que a velha senhora já tinha sido informada sobre o que acontecera na noite anterior e queria
saber porque ela tentara matar sir Percy.
A sra. Matthews a aguardava, à porta, visivelmente tensa. Lady Lynche, ao contrário,
parecia muito bem-disposta. Naquela manhã usava brincos, colar, anéis e pulseiras de
diamantes que refulgiam a cada movimento seu.
— Por que você não o matou? — a velha senhora inquiriu, mal Carina a cumprimentou. —
Saiba que eu estava preparada para matá-lo e pode ter certeza de que não erraria o alvo.
— Eu também quis matá-lo... Sir Percy tirou tudo o que nos pertencia e causou a morte
de meu pai — Carina contou.
— Sim, eu sei. Sei também que o patife foi aos seus aposentos, pensando em seduzi-la e
encontrou-a com uma pistola na mão. — Os olhos da velha senhora ganharam um brilho
perverso. — Bravos, srta. Claverly. Você fez o que muitos queriam fazer, inclusive eu. Eu já
sabia que meu filho perdera o castelo para sir Percy. Ficou surpresa por eu estar a par do que
acontece aqui?
— Já percebi que nada foge ao seu conhecimento, milady.
— É verdade. Sei até que você, o garoto e Justin foram à casa dele, no vale, e tomaram
um lanche lá. Por quê?
Carina arregalou os olhos.
— Lorde Lynche quis levar o... menino para cavalgar e eu os acompanhei, claro. Sua
Senhoria estava deprimido por ter perdido o castelo e foi até a casa. Lá sentiu-se mais calmo.
Ele não tinha comido nada e preparei um lanche — Carina relatou.
— Tolo! Louco! Idiota! — zangou-se lady Lynche. — Como ousou apostar o que pertence à
família, não a ele?
— Por favor, milady, acalme-se — pediu Carina. — Tudo passou e o castelo está salvo. A
culpa não foi de lorde Lynche. Sir Percy encostou seu filho contra a parede e ele não pôde
recuar. Aquele demônio fez o mesmo com meu pai. Os homens, quase sempre, acham que
prudência é sinônimo de covardia.
A expressão de lady Lynche abrandou-se.
— Você ama meu filho. Eu já suspeitava disso. Imediatamente Carina empertigou-se e
ficou rubra.
— Eu... não... — balbuciou.
— Não diga nada — cortou a velha senhora. — Justin também a ama. Bem, podia ser pior.
Você é uma lady, embora seu pai tenha se comportado como um imbecil e causado um
escândalo. Mas será uma boa esposa e dará para Justin filhos que, se Deus quiser, terão mais
respeito pelas tradições e a história da família do que o pai.
— Deve lembrar-se de que Dipa é o filho mais velho e herdeiro do título — Carina
apontou.
— Herdeiro... — lady Lynche repetiu, o rosto sombrio. — O filho de uma prostituta...
— Ele é um Lynche, milady.
— Eu não o reconhecerei! Nunca!
Lady Lynche passou a mão pela colcha de arminho e só então Carina viu uma pistola. Com
agilidade agarrou a arma antes que a velha senhora a alcançasse.
— Não! Chega de mortes! Eu sei que a senhora não teria coragem de fazer mal a uma
criança inocente. Dipa é um bom menino e nós o faremos amar as tradições e a história da
família à qual ele pertence — Carina falou arrebatada-mente e surpreendeu-se ao ouvir o riso
de lady Lynche.
— Gosto de você, garota. Tem mais coragem do que meus filhos, juntos. Você irá se casar
com Justin; ambos terão a minha bênção.
— Não, milady. Seu filho não se casará comigo. Há alguma coisa que o impede de propor-
me casamento.
A velha senhora hesitou por um instante. Depois, olhou para Carina como se a avaliasse e
expôs:
— Falarei com Justin. Vocês são jovens e podem esperar. Sim, eu a quero como nora. Não
pensei que fosse gostar de uma nora, mas gosto de você. Para governanta você não serve. E
insolente e impetuosa. Mas será um boa esposa. Tem educação e beleza; as jóias de família
lhe assentarão muito bem. Veja aqui, srta. Claverly, tenho um presente para você.
Lady Lynche pegou um estojo de veludo azul, com os cantos já gastos, que estava
debaixo dos travesseiros e entregou-o a Carina que o abriu.
Ficou atônita ao ver um belíssimo colar de diamantes e exclamou:
— É maravilhoso! E o colar mais lindo que já vi! Mas não posso aceitá-lo.
— É claro que pode — lady Lynche a contradisse. — Não se trata de uma jóia de família.
Essas estão no banco. O colar é meu; eu pretendia dá-lo a você por ter arruinado sir Percy.
Agora, sabendo que você e Justin se amam, ofereço-lhe o colar como presente de noivado.
— Justin e eu não estamos noivos e não vamos nos casar!
— Então, aceite o presente por ter tentado livrar o mundo de um patife.
— Está bem, aceito. Nunca pensei que fosse ganhar algum dia um presente tão magnífico.
Obrigada. Só receio não ter onde usá-lo. — Carina esboçou um sorriso e acrescentou:
— Certamente os hóspedes de seu filho suspeitarão da integridade moral de uma
governanta se ela apresentar-se com uma jóia tão deslumbrante. Lady Lynche piscou para
Carina.
— Use o colar quando lhe convier, minha filha. Os outros que se danem.
Acabando de falar, a velha senhora fechou os olhos. Carina compreendeu que estava
sendo dispensada. Voltou para o terceiro andar com os pensamentos tumultuados. Do
corredor ouviu as risadas e os gritinhos alegres de Dipa. Viu ao abrir a porta o menino
brincando com uma jovem criada. Certificando-se de que ele estava bem e não precisava dela,
desceu para o hall.
— Sua Senhoria está no salão com os amigos? — perguntou a Newman.
— Está na biblioteca, senhorita. Quase todos os hóspedes partiram no primeiro trem. O
coronel Wakeford e dois senhores irão embora depois do almoço — o mordomo informou.
— Obrigada. Irei falar com Sua Senhoria.
Carina abriu a porta da biblioteca e viu lorde Lynche com as mãos na cabeça.
— Carina! Eu estava pensando em você! — ele exclamou ao vê-la.
— Vim mostrar-lhe o presente que sua mãe me deu por ter atirado em sir Percy. — Carina
abriu o estojo. — Aceitei o colar para não ferir os sentimentos dela, mas não posso ficar com
uma jóia como esta. Por isso lhe peço para guardá-la em algum lugar.
Lorde Lynche sorriu.
— Você conquistou mesmo minha mãe, hein? Se ela lhe deu o colar, há de querer que
você o use.
—Não posso aceitar um presente tão valioso... tão esplêndido.
— Por que não? Você o mereceu. Livrou-nos de um verme.
— Não é correto recompensar alguém que tentou cometer um homicídio.
— Pense no bem que você fez. Percy não poderá mais jogar. E, como o coronel descobriu
que ele trapaceava, Percy será forçado a deixar o país. Meu advogado foi para Londres e vai
defender todos aqueles que foram vítimas das trapaças daquele velhaco — lorde Lynche
assinalou. — Estamos livres...
Uma batida na porta interrompeu lorde Lynche. Newman avisou-o:
— O coronel Wakeford voltou do hospital e deseja falar-lhe, milorde.
— Sim, claro. Irei vê-lo no salão. Lorde Lynche voltou-se para Carina.
— Tenho muitas coisas para lhe dizer, mas estarei ocupado a tarde toda. Você poderia
descer esta noite, logo que o menino dormir?
— Claro. Está frio e Dipa vai para a cama cedo. Posso descer às sete e meia.
— Estarei aqui à sua espera — disse lorde Lynche, deixando a biblioteca em seguida.
O estojo com o colar estava em cima da escrivaninha e Carina guardou-o em uma das
gavetas. A noite iria pedir a Justin para guardá-lo no cofre.
O pensamento de que em poucos minutos estaria com Justin, emprestara uma
luminosidade ao rosto de Carina e um brilho singular aos grandes olhos cinzentos.
Antes de sair, ela foi ao quarto de Dipa. Verificando que ele dormia profundamente e
estava bem coberto, deixou os aposentos tranqüila, certa de que o menino só iria acordar de
manhã.

Lorde Lynche já estava na biblioteca, de pé, na frente da lareira, quando Carina entrou.
Aproximando-se, ela viu a súbita luz nos olhos dele e soube que ele só não correu ao encontro
dela e tomou-a nos braços graças a seu autocontrole. Por longo momento ambos se fitaram,
absortos, seus olhares mais expressivos do que as palavras.
— Você está linda — disse Justin, enlevado, rompendo o silêncio. — Cada vez que a vejo,
eu a acho mais bonita. Esta manhã você estava doce e recatada usando saia e blusa. Agora eu
gostaria de levá-la a um baile em Londres e deixar todos com inveja porque a mulher mais
linda que já tinham visto me pertencia.
— Mas isso não seria verdade — Carina contrapôs.
— Não seria — Justin admitiu. — Você pode imaginar o que estou sofrendo? Compreende
o que significa ficar perto de você, declarar que a amo e saber que não tenho o direito de
viver este amor?
— Devemos nos sentir felizes por podermos nos ver e conversar.
— Felizes? Revolta-me saber que os deuses me deram a maior riqueza; no entanto,
selaram meus lábios e ataram-me as mãos. — Os braços dele penderam dos lados do corpo.
— Ajude-me, Carina. Embora eu não a mereça, peço-lhe que me ame como sou.
Impetuosa por natureza, Carina passou os braços ao redor do pescoço de Justin.
— Você sabe que o amo. Diga-me, como posso ajudá-lo?
— Tudo o que eu quero é que não me abandone. Amo você, não suportarei perdê-la...
mas não posso pedir-lhe que seja minha esposa.
— Você está sugerindo que... eu me torne sua amante?
— Carina indagou, a voz sumida.
— Bom Deus, não! — Justin bradou. — Não! É claro que não pensei em nada semelhante.
Passou-lhe pela mente que eu possa ser tão desprezível? Acha que sou tão vil quanto Percy e
estou tentando seduzi-la? Oh, Senhor, o que posso dizer? — Ele afastou-se, tenso, com os
punhos cerrados.
— Eu... não compreendo...
O mordomo abriu a porta da biblioteca e lorde Lynche disse-lhe rispidamente:
— Estou ocupado, Newman. Não quero ser perturbado.
— Perdoe-me, milorde, mas o chefe de polícia, major Hartley, está aqui. Trouxe soldados
consigo.
"Qual será a razão da visita do major e seus homens?", lorde Lynche questionou-se.
— Diga ao major para entrar — ordenou. Newman saiu e Carina observou lorde Lynche.
Notou que estava alerta, porém, permaneceu imóvel, na frente da lareira.
— Talvez seja melhor eu sair — ela sugeriu.
— Fique. Sua presença pode ser útil.
— Útil? Para quê?
Não houve tempo para resposta porque Newman anunciou a entrada do chefe de polícia.
O major Hartley era um homem de meia-idade e usava uniforme de oficial. Lorde Lynche
foi ao encontro dele e estendeu-lhe a mão.
— Boa noite, major Hartley. Que surpresa!
— Uma surpresa desagradável, lamento dizer.
— Desagradável? — Lorde Lynche indicou uma poltrona. — Sente-se e fique à vontade
para falar-me sobre o que o está preocupando. Aceita um copo de vinho? Está frio esta noite.
— Não, obrigado. Não bebo em serviço. — O major olhou para Carina antes de
acrescentar: — Seria melhor se eu lhe falasse a sós.
— O que quer que tenha a dizer, major Hartley, pode ser dito na frente da srta. Claverly.
Ela merece toda a minha confiança — apontou lorde Lynche.
— Se prefere assim... Mas trata-se de um assunto delicado.
— Pode dizer, major. Um dos meus empregados foi apanhado roubando? Alguém deu um
desfalque?
— Eu não teria vindo até aqui com meus homens se fosse uma das coisas que o senhor
mencionou. Recebemos uma denúncia. Fomos informados de que o senhor tem sob seu teto
alguém que a polícia esteve procurando.
— Como? O senhor acusa-me de esconder um foragido da justiça?
— Não há necessidade de rodeios, milorde. O senhor sabe a quem me refiro — disse o
major em tom severo. — Giles Lynche cometeu um crime e devia ter sido preso, mas o senhor
apresentou-nos provas de que ele tinha morrido no exterior. Porém, como eu já mencionei,
recebemos a denúncia de que Giles Lynche voltou do exterior e encontra-se neste castelo.
— Posso saber quem lhe deu tal informação?
— Não costumamos revelar o nome de um informante. Mas posso adiantar que ele
hospedou-se aqui recentemente e seu valete notou coisas suspeitas em uma das alas deste
castelo.
Carina ficou tensa. Teve certeza de que o valete de sir Percy a vira saindo pela porta
secreta da ala Tudor e informara o patrão. Sir Percy avisara a polícia para assim vingar-se de
lorde Lynche.
Eles se alegraram cedo demais, pensando que tinham se livrado do abominável senhor.
— Não sei do que está falando — tornou lorde Lynche.
— O senhor permite que meus homens dêem uma busca no castelo? — indagou o major.
— Dar busca em um castelo tão grande? Será uma tarefa e tanto! Enfim, quem sabe seus
homens encontrarão algum criminoso sinistro escondido nos sótãos — ironizou lorde Lynche.
— Não perderemos tempo procurando nos sótãos. Tenho doze homens comigo e o
informante adiantou-nos onde devemos procurar o fugitivo.
— Que informante eficiente! Bem, devo ir até minha mãe, que já é idosa e está doente',
para avisá-la do que está acontecendo. O senhor pode imaginar que será um choque para ela
ver policiais irrompendo em seu quarto.
— Compreendo, milorde. Mas devo acompanhá-lo. Quem me garante que o senhor não irá
alertar a pessoa que procuramos, dando-lhe a chance de fugir? — conjeturou o major Hartley.
— O que é isso, major? Será que estamos representando um melodrama?
— Lamento, milorde. Só estou cumprindo meu dever.
— Fique à vontade, major, dê ordens para seus homens revistarem o castelo. Podem
começar por este cômodo — sugeriu lorde Lynche.
— Não, milorde — o major discordou. — Começaremos pela ala Tudor.
— Perfeitamente! A ala Tudor está a seu dispor. Eu os levo até lá.
Lorde Lynche falou em tom casual, porém, Carina sabia que sua calma era só aparente.
"Se eles baterem nos painéis, quando ouvirem um som oco, saberão que ali fica a porta
secreta", ela pensou, nervosa, imaginando os soldados chegando ao esconderijo e
encontrando o homem de cabelos brancos.
Agora sabia que o pobre alcoólatra era Giles Lynche, o irmão de Justin que todos diziam
ter morrido. Mas ele lhe parecera tão velho. A razão de estar escondido era ter cometido um
crime.
Lorde Lynche saiu da biblioteca e o major acompanhou-o. Falou com os policiais e todos
seguiram por um corredor até um pequeno hall onde havia uma escada. Uma voz vinda do
primeiro andar ordenou:
— Esperem!
Ao alto da escada estava a velha senhora segurando uma pistola. Usava um robe branco
de cetim, enfeitado com rendas, e seus diamantes refulgiam à luz das velas e do lampião que
estava sobre uma mesinha. Lady Lynche olhou para o filho.
— Justin, o que fazem esses homens em minha casa?
— Mamãe, a senhora não podia sair da cama — disse lorde Lynche.
— Responda à minha pergunta! — ela exigiu.
— Este é o chefe de polícia, major Hartley e está com seus homens — lorde Lynche
respondeu.
— Não conheço major Hartley nenhum — replicou lady Lynche rispidamente. — Onde está
meu velho amigo, o coronel Gibbon?
— O coronel morreu há pouco tempo. Falei-lhe sobre a morte dele na ocasião —
respondeu lorde Lynche.
— Ah, sim. E esse é o novo chefe de polícia — observou a velha senhora como se não
considerasse o major à altura do cargo. — O que o major faz neste castelo e porque trouxe
consigo seu exército particular? Não sou idiota e sei que vocês não estão aqui por cortesia. O
que esperam encontrar?
O major subiu alguns degraus da escada.
— Eu trouxe uma ordem que nos autoriza a revistar o castelo, madame. Recebemos uma
denúncia de que Giles Lynche não está morto, mas escondido neste castelo.
— Algum informante pago disse uma mentira à polícia e vocês acham que podem vir aqui
prender um Lynche! É muito atrevimento!
— Lamento, madame, mas cumpro ordens.
— Pois cumpra suas ordens! Você e seus policiais tentem encontrar escondido aqui o
homem que procuram! — desafiou lady Lynche.— Tentem tirá-lo do buraco onde se escondeu,
como se fosse um rato! Mas será trabalho perdido.
Carina, que estava mais para trás do grupo, admirou a fibra de lady Lynche. Mesmo
sabendo que havia poucas chances de salvar o filho, lutava por ele.
— Sinto muito, madame, mas devo cumprir minha obrigação — disse o major, subindo a
escada.
— Espero que se divirtam! — exclamou lady Lynche, rindo.
Subitamente ela largou a pistola, pegou com as duas mãos o grande lampião que estava
sobre a mesinha do seu lado e arremessou-o escada abaixo. Chegando ao chão ele explodiu e
chamas se espalharam pelo hall.
Com horror, Carina viu que também havia chamas no corredor do primeiro andar.
Lacaios e criados apareceram correndo e gritando:
— Fogo! Fogo!
— Tragam água!
— Toquem o sino de alarme!
Lorde Lynche virou-se para um policial e ordenou-lhe:
— Vá às cocheiras buscar o equipamento contra incêndio. Fale com os cavalariços.
Carina olhou para o alto da escada, preocupada com lady Lynche, mas ela havia
desaparecido. Subitamente lembrou-se de Dipa, sozinho no terceiro andar.
— Vou buscá-lo — disse lorde Lynche e afastou-se correndo para subir por outra escada.
Carina também correu, mas para fora do castelo.
Tendo ouvido o alarme de incêndio, empregados e o pessoal das fazendas foram surgindo
um após outro para ajudar a combater o fogo e a salvar o que fosse possível. O major Hartley
e seus homens mostraram-se corajosos e muito úteis.
O equipamento contra incêndio não demorou ser encostado na parte do castelo atingida
pelo fogo, porém era pequeno e inadequado. Não houve tempo de atrelarem os cavalos ao
carro que foi empurrado pelo policial e cavalariços.
Carina não cabia em si de aflição por não ver lorde Lynche de volta, trazendo Dipa, nem
saber o que tinha acontecido a lady Lynche.
Dois policiais apareceram carregando uma mulher e Carina reconheceu a sra. Matthews.
— Sua Senhoria! Não posso deixá-la — repetia a pobre criada soluçando.
— Ninguém pode fazer nada por ela — um dos homens falou gentilmente. — Ela ficou
presa nas chamas.
Ouvindo isso, Carina sentiu as lágrimas aflorando-lhe aos olhos. Depois do que pareceu
um tempo infinito, viu com alívio enorme, lorde Lynche saindo por uma porta lateral e
caminhando ao encontro dela carregando Dipa enrolado em um cobertor.
O menino que agora estava bem desperto, afastou o cobertor da cabeça e gritou,
empolgado:
— Fogo! Fogo bonito!
Carina não o ouviu. Lorde Lynche tinha passado o braço por sua cintura e ela escondeu os
olhos molhados de lágrimas no ombro dele.
Com o castelo quase todo destruído, Justin, Carina, Dipa e alguns criados transferiram-se
para a casa do vale para onde estavam sendo levadas as peças mais valiosas salvas do
incêndio. Os móveis mais pesados foram armazenados em cômodos do castelo onde o fogo
não tinha chegado.
Carina e um lacaio estavam no salão de baile fazendo a relação dos objetos.
— Lady Lynche, retratada por sir Thomas Lawrence — disse Carina anotando com sua
linda letra o nome de mais um quadro. — Este não foi danificado.
— Só precisa de uma boa limpeza — assinalou o lacaio. — Não posso dizer o mesmo das
tapeçarias. Os bombeiros com suas mangueiras fizeram um grande estrago nelas.
— Vamos esperar que sequem para saber se podem ser restauradas.
— Basta por hoje. Amanhã continuaremos a relação, senhorita. Não tarda a escurecer —
observou o lacaio.
Carina levantou-se da cadeira. Sentia as pernas adormecidas por ter ficado sentada
durante tantas horas. Deixou o salão e ao sair viu no carrilhão que eram quase cinco horas.
Estava ansiosa para falar com Justin, pois naqueles dois dias, mal o vira. Ele levantava-se de
madrugada e ia para o castelo e voltava de noite.
Dipa estava na cozinha brincando com os gatinhos. Gostava da gorda cozinheira que
também se afeiçoara a ele e procurava satisfazer-lhe todas as vontades.
— Deixe o pequeno príncipe comigo, senhorita — dissera a robusta mulher. — Sei como
lidar com crianças. Tive cinco filhos.
A ajuda da cozinheira foi muito bem recebida por Carina, uma vez que tinha muita coisa
para fazer.
As cenas dantescas da noite do incêndio estavam impressas na sua mente.
Depois de ter trazido Dipa para baixo, lorde Lynche tentara entrar na ala Tudor, mas as
chamas vorazes fizeram-no recuar. De repente, uma figura saíra do meio do fogo e da
fumaça, cambaleando, com as roupas incendiadas, os cabelos queimados, o rosto enegrecido.
Carina reconheceu o valete de Giles Lynche.
Caindo aos pés de lorde Lynche, o valete dissera, soluçando:
— Não pude movê-lo, milorde. Tentei... mas não pude... Lorde Lynche ajudara o homem a
ficar de pé e o carregara para a ambulância que ia levar as pessoas queimadas ao hospital.
Carina ouviu Justin confortando o valete:
— O sr. Giles não sentiu nada, Robert, ele estava em coma desde aquele ferimento na
cabeça. Você, sim, precisa de cuidados médicos.
Robert fora para o hospital, bem como a sra. Barnstaple, a sra. Matthews, o velho
Newman e dois lacaios. Porém só Robert ainda inspirava cuidados.
Carina ouviu passos e sentiu o coração pulsar mais forte, achando que Justin estava
chegando. Enganou-se. Era o administrador, capitão Andrews.
— Boa tarde, srta. Warner. Lorde Lynche ainda não voltou?
— Não, senhor. Ontem ele chegou bem tarde — Carina informou.
— Vou até o castelo — decidiu o capitão.
O administrador saiu e Carina foi ao salão. Achou-o muito diferente de quando ali estivera
pela primeira vez. O fogo na lareira, as cortinas afastadas dando claridade ao ambiente e os
vasos floridos, pareciam dar-lhe as boas-vindas.
Estava perto da lareira admirando os delicados enfeites de porcelana de Dresden
dispostos graciosamente sobre a cornija quando ouviu a distância o som de um cavalo a
galope. Soube que era Justin. Aguardou ansiosa e trêmula a chegada do homem que amava.
Nunca havia imaginado que o amor pudesse provocar nela o que estava sentindo.
Idealizara o amor como algo sereno, suave e confortante. Agora constatava que era um fogo
tão forte quanto o que consumira o castelo. Porém suas chamas não tinham um poder
destruidor, eram vivificantes e geradoras de energia.
Ela não mais se pertencia. Cada gesto seu era feito em função de Justin e pensar nele já
lhe proporcionava um êxtase impossível de ser explicado. Por mais que quisesse refletir com
lógica, não conseguia. O coração sobrepujava a razão.
Passos no hall fizeram com que ela se virasse para a porta com um brilho de estrelas no
olhar. Justin estava entrando. Apesar de cansado e abatido, sua expressão também
transfigurou-se ao vê-la.
— Carina! Você está bem? — indagou ao chegar junto dela.
— Sim, claro.
— Tenho pensado em você o tempo todo e estava ansioso para podermos conversar longa
e calmamente. — Os olhos dele fixaram-se nos dela, apaixonados.
Exultante, Carina teve a impressão de que ele iria tomá-la nos braços e beijá-la. Mas ele
afastou-se, deixando-a com o coração constrangido, a garganta apertada.
— Carina... — ele começou — Eu a amo, minha vida não tem sentido sem você. Quero
que seja minha esposa.. Todavia, preciso saber se me aceita como sou. Nada tenho para lhe
oferecer além do meu amor. Sou pobre, muito pobre.
— Eu... não compreendo — Carina balbuciou.
Os lábios de Justin curvaram-se num sorriso triste. — Como poderia entender? Venha cá.
— Ele deu-lhe a mão e levou-a até uma das janelas. — Vê aquilo?
— Sim...
Ela seguiu com o olhar a direção que Justin apontava. Admirou o vale de Evesham e os
contornos azulados dos montes Malvern contra o céu crepuscular.
— Eu acreditava que, toda essa terra que se estende até onde a vista alcança, me
pertenceria — Justin prosseguiu. — Como seu dono eu cuidaria dela e lhe dedicaria meu amor
como fizeram meus antepassados desde os tempos da conquista normanda. Mas agora sei que
nada pode ser meu. A casa continua, sendo minha, mas terá de ser a sede da família Lynche,
uma vez que o castelo se foi.
— O que está dizendo? Pensei que sir Percy...
— Isto nada tem a ver com Percy Rockley — Justin interrompeu-a. — Ele está liquidado e
deve ser esquecido. — Tudo o que você está vendo continua pertencendo à família Lynche. É
herança do cabeça da família.
— Mas o chefe da família é você! Compreendo que você se fazia passar por lorde Lynche
porque, para todos os efeitos Giles estava morto. Mas agora que seu irmão morreu,
realmente, sem deixar descendentes, você é o herdeiro do título e da propriedade — Carina
raciocinou.
— A verdade é que Giles deixou um filho: Dipa. O menino é o novo lorde Lynche, herdeiro
de tudo.
— Dipa?! — Carina repetiu, incrédula.
— É melhor eu contar a história toda desde o começo. Você tem todo o direito de
conhecê-la — tornou Justin. — Mas é melhor sentar-se.
Sentindo que as pernas fraquejavam, Carina aceitou a sugestão.
— A história é muito longa e tentarei resumi-la — Justin começou. — Giles era dez anos
mais velho do que eu e mamãe o adorava. Giles tinha tudo: beleza, simpatia e riqueza. Mas
era irresponsável, mulherengo, e acabou cometendo um crime. Matou o marido da mulher
com quem ele estava mantendo um romance.
— Um homicídio!
— Assassinato. E o termo correto — Justin emendou. — O homem era um simples lojista e
minha mãe conseguiu, graças a muita influência política e amigos devotados, que tudo fosse
abafado e não aparecesse nos jornais. Creio que a partir daí mamãe ficou meio
desequilibrada. Bem, houve uma ordem de prisão para Giles, mas mamãe conseguiu mandá-lo
para fora do país. Ocasionalmente ouvíamos falar de seus excessos em Paris, Monte Cario,
índia e vários países do Oriente. Ficamos sabendo, inclusive de seu romance com uma
dançarina de renome. Certamente era Chi-Yun.
— Mas vocês não ficaram sabendo que ambos se casaram? — Nunca! Pois bem, meu pai
ficou doente e um mês
antes do seu falecimento Giles voltou para casa. Chegou certa noite, às escondidas, muito
doente, sem um vintém, com os cabelos inteiramente brancos. Foi horrível para todos nós.
Mamãe não hesitou um instante, mandou que escondessem Giles em um dos cômodo secretos
do castelo, pois se soubessem que ele voltara, iria para a cadeia. Além de mamãe e de mim,
só Newman, a sra. Barnstaple e Robert sabiam do esconderijo de Giles e os três são íntegros,
leais e de inteira confiança. Não posso imaginar como Percy o descobriu. Enfim, dele pode-se
esperar tudo. O homem parece fareja qualquer coisa que possa trazer-lhe vantagem. Ele fez-
me várias perguntas sobre Giles. E aquele valete, Jenkins, era muito abelhudo. Seja como for,
minha mãe já tinha tudo planejado para o caso de Giles ser descoberto.
— Como assim?
— Mamãe sabia que Giles estava em estado de coma desde que levara um tombo e batera
a cabeça em um móvel. Também percebera que sir Percy andava desconfiado de alguma
coisa. Por isso planejou o incêndio.
— O incêndio foi planejado?!
— Sim. Newman contou para mamãe que o major Hartley tinha chegado com seus
homens com uma ordem para revistar o castelo. Ela recebeu a notícia calmamente. Ordenou a
Newman que levasse para a mesinha o grande lampião usado pela sra. Matthews quando
costurava à noite, e foi para o alto da escada. Porém, já havia ateado fogo às cortinas do seu
quarto. O resto você já sabe — relatou Justin, emocionado.
— Pobre Giles! Pobre lady Lynche!
— Giles não teve consciência de nada. Quanto a minha mãe, creio que, no seu desvario,
também não sofreu. Talvez ambos tenham tido a mais magnífica pira funerária que já existiu.
— E o major Hartley?
— Ele não pode fazer nada. A ala Tudor foi totalmente destruída, não deixando provas de
que havia ali algum esconderijo, tampouco um homem foragido da justiça.
— E agora?
— Como eu disse, Dipa, sendo filho de Giles, é o herdeiro do título e do castelo e das
terras.
— Eu pensei que Dipa fosse seu filho... — Carina murmurou.
— Eu sei disso. Chi-Yun também pensou. Quando leu no jornal a notícia da morte de meu
pai deduziu que o novo lorde Lynche era Giles. — Justin inspirou fundo. — Esta é a verdadeira
história. Eu não tenho nada, nada posso lhe oferecer além do meu amor. É claro que teremos
algum conforto enquanto eu for o tutor de Dipa, uma vez que ele é menor de idade. Depois,
quem sabe iremos morar em uma casinha na propriedade.
— Não importa que você não tenha título de nobreza, terras ou dinheiro. Eu amo e o
acompanharei aonde você for.
Justin fitou-a, mal acreditando no que acabara de ouvir. Então, com os olhos brilhando e
emitindo um som de triunfo, tomou Carina nos braços e apossou-se de seus lábios. Beijou-a
suavemente, mas, depois, louca e apaixonadamente, como se o anseio do seu coração não
pudesse ser controlado.
— Amo você, Carina — ele murmurava nas pausas que fazia para ambos respirarem. —
Deus, como a amo! Você será minha para sempre.
Nenhum dos dois ouviu as batidas na porta, tampouco esta sendo aberta por um lacaio.
Vendo os dois abraçados, o rapaz arregalou os olhos, encostou a porta novamente e repetiu as
batidas, desta vez com força.
O som fez com que os dois se separassem sobressaltados.
— Entre! — Justin ordenou, contrafeito.
— Lamento perturbá-lo, milorde, mas um senhor acaba de chegar perguntando por lady
Lynche. Respondi que ela estava morta e ele disse que precisava falar com Vossa Senhoria
com urgência.
— Quem é ele?
— Um estrangeiro, milorde. Disse que veio de Java. — Mande-o entrar.
— Um estrangeiro vindo de Java? Quem será? — Carina indagou, intrigada.
— Deve ser alguém relacionado a Chi-Yun. Quando ele perguntou por lady Lynche,
certamente referia-se à mãe de Dipa — Justin deduziu.
— Só pode ser.
O lacaio anunciou:
— O sr. Hayam, milorde.
Um homem pequenino apareceu à porta usando roupas modestas e segurando um chapéu
surrado. Curvou-se respeitosamente antes de dizer:
— Gostaria de falar com lorde Lynche.
— Eu sou lorde Lynche — Justin afirmou.
— Não, o senhor não é meu amo. Outro lorde Lynche.
— Creio que o senhor conheceu meu irmão, mas ele está morto.
— Lady Lynche morta... lorde Lynche morto...
Notando a perturbação do javanês, Justin perguntou-lhe:
— Em que posso ajudá-lo?
— Vim buscar meu filho. Lady Lynche, que tinha nome de Chi-Yun, roubou meu menino.
Ele se chama Dipa.
— Dipa? Ele não era filho de Chi-Yun e meu irmão? — Justin indagou.
— Não, sir. Filho de Chi-Yun e sr. Lynche morreu. Era fraco e muito calor. Morreu com
dois anos — o sr. Hayam explicou. — Chi-Yun chorou muito. Meu patrão, sr. Lynche tinha ido
embora. Minha esposa ficou com pena de Chi-Yun e deixava Dipa com ela. Então Chi-Yun
disse que meu amo era lorde Lynche e ela era lady Lynche e precisava ir para Inglaterra.
Outro homem, bom para Chi-Yun, deu dinheiro. Ela ia para o porto e quis levar Dipa para ver
navio grande. Dipa muito feliz porque ia de carruagem. Mas Dipa não voltou com cocheiro. Fui
até porto com esposa. Eles falaram que Chi-Yun viajou com menino.
— Chi-Yun raptou seu filho! — concluiu Justin, perplexo. — O que o senhor fez?
— Trabalhei muito, juntei dinheiro e vim para Inglaterra. Chi-Yun falar muito que família
de meu amo, sr. Lynche, tinha castelo grande. — O homem parou de repente, olhou para os
lados e perguntou, ansioso: — Dipa... meu pequeno filho... está aqui?
Carina ficou de pé.
— Espere um minuto, sr. Hayam — disse, saindo em seguida do salão.
Correu até a cozinha onde estava Dipa sentado à mesa, comendo com gosto um pedaço
de bolo de groselha. Deu a mão ao menino e foi dizendo, ofegante:
— Venha, Dipa, depressa!
Dipa pulou da cadeira, excitado, curioso para saber qual seria a empolgante novidade.
Chegando ao salão, Carina abriu a porta e deixou o garoto entrar sozinho.
Por um momento ele ficou parado, depois deu um grito de felicidade e correu para o pai,
os braços abertos, falando em javanês.
Os dois se abraçaram e começaram a conversar alegremente na sua língua. O pai ergueu
o menino no colo e encheu-o de beijos.
Lorde Lynche levou pai e filho para a copa e mandou que servissem um bom lanche para
o sr. Hayam. Voltou em seguida para o salão.
— O que pretende fazer? — Carina indagou.
— Vou dar uma boa quantia para o sr. Hayam, de modo que ele e a família possam viver
com conforto. E Dipa terá em seu nome uma poupança que, não somente lhe garantirá os
estudos como também o tornará um homem rico. O que acha?
— Aprovo a sua generosidade. Mas o mais importante para Dipa não é o dinheiro, mas a
alegria que está sentindo.
— E você? Está feliz?
— De certa forma, sim. Mas eu já estava imaginando nós dois vivendo numa casinha da
propriedade. Eu queria cuidar de você e mostrar-lhe que o nosso amor...
— ...irá durar para sempre, que amaremos um ao outro na riqueza e na pobreza... —
Justin interrompeu-a. — E o que iremos prometer um ao outro dentro de uma semana, na
igreja.
Eles voltaram a se beijar apaixonadamente. Para eles o mundo tinha parado. Esqueceram-
se de tudo, exceto que se pertenciam e tinham encontrado a felicidade.

Fim...

* * * *

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