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A Outra face do Amor.

Barbara Cartland

Título Original: Lost Laughter.

NOTA DA AUTORA

A prisão que fica perto do Fleet Market, em Londres, era o lugar onde

ficavam detidos os credores que não pagavam suas dívidas até que
fossem

postos em liberdade sob fiança ou até que parentes e amigos pagassem


a

dívida deles.

Smollet, que foi preso por difamação e calúnia, escreveu mais tarde um
livro onde contou o tratamento que recebiam os prisioneiros.

Tal como em outras prisões, ali tudo dependia do fato de se ter dinheiro

para subornar carcereiros e poder comprar, através deles, tudo o que

fosse necessário dos vendedores ambulantes e comerciantes das lojas


da

vizinhança.

Entretanto, existia nas prisões um perigo bem maior do que estar sem

dinheiro. Era a "febre carcerária", que na época se alastrava por todas

as cadeias, devido às precárias condições de higiene e à água

contaminada. Ser encarcerado na Fleet Prision significava não apenas a

perda da liberdade mas, com muita frequência, a perda da própria vida.

Este é o primeiro romance que escrevo, no qual o herói é um visconde.

Esse título de nobreza data do começo do século X e teve origem no


cargo

de oficial ou tenente de um conde - vice-conde.

Henrique VI, coroado rei da Inglaterra e França, nomeou, em 1440,


John

Lord Beaumont, visconde de Beaumont nos dois países.

Tal título tem primazia sobre todos os barões e só se tornou mais


popular

no século XVII.

O filho mais velho de um marquês ou de um conde em geral recebe o


título

honorário de visconde, mas nesse caso ele não pode participar da


Câmara

dos Lordes.
CAPÍTULO I

1818

O Visconde Ockley saiu da casa correndo, desceu os degraus num salto,


e

pulou para a carruagem.

Pegou as rédeas e chicoteou os cavalos fazendo com que eles


arrancassem

tão bruscamente que o cocheiro que os estava segurando mal teve


tempo de

saltar para o lado para não ser derrubado.

A carruagem afastou-se balançando à medida que os cavalos galopavam

alameda abaixo, a uma incrível velocidade, fazendo erguer o cascalho à

sua passagem e o visconde fez a curva de saída dos portões numa roda
só.

Na estreita estrada rural o pó subia enquanto ele passava como uma

ventania deixando os aldeães atónitos.

Só depois de uns três quilómetros é que os cavalos diminuíram um


pouco a

velocidade. Ele pareceu nem notar, sentado na boleia com o olhar fixo
na

estrada, os olhos fuzilando e os lábios apertados num rícto de raiva.

Era um homem com uma bela aparência, de traços bem feitos e bonitos,
e

ombros largos. Tinha um bom porte e era um pugilista de

destaque na Academia de Boxe Gentleman Jackson. Também montava


muito bem
e praticava equitação com destreza. Era um forte concorrente nas

competições de salto de obstáculos.

Portanto, tinha, inevitavelmente, muito sucesso com o chamado belo


sexo.

As mulheres da sociedade que frequentava viviam suspirando por ele e


suas

conquistas eram sempre comentadas.

Por sua vez, Niobe Barrington arrebatava corações masculinos, o que


não

era de se admirar, sendo ela não apenas de uma beleza sem par mas
também

herdeira de uma considerável fortuna.

O pai dela, sir Aylmer Barrington, era um homem muito rico e todos
sabiam

disso, aliás, ele próprio fazia questão de mostrar sua riqueza. Queria

que a filha única fosse sempre o centro das atenções e para isso dava

bailes fabulosos, gastando enormes quantias com as festas. Fazia


questão

de hospedar todos os convidados.

Estava sempre disposto a oferecer hospitalidade a qualquer aristocrata

que mostrasse desejo de frequentar sua casa desde que fosse solteiro,
bom

partido, e fosse um pretendente à mão de Niobe.

O visconde, que era conhecido por saber apreciar as mulheres belas,


ficou

caído de amores assim que viu Niobe pela primeira vez.

Ele tinha recebido o convite para ir à casa dela, por escrito, num papel
timbrado um tanto pretensioso para seu gosto, e como não tinha nada
para

fazer naquela noite resolveu ir à mansão de sir Aylmer, em Grosvenor

Square, tal como vários outros contemporâneos seus. Entretanto, foi

preparado para o pior; era muito cético em relação a herdeiras, pois em

geral elas não tinham nada mais que pudesse atrair a não ser uma
enorme

conta bancária.

Porém, logo ficou claro que com Niobe era muito diferente.

Ela era de uma beleza arrebatadora com os cabelos da cor do trigo


maduro,

olhos de um azul profundo, pele acetinada e fresca, capaz de inspirar

grandes poetas.

Quando ela cravou aqueles olhos azuis nos olhos acinzentados do


visconde,

ele sentiu que estava perdido.

Daquele momento em diante, ele passou a procurar Niobe com um


ardor que

surpreendeu seus amigos mais íntimos.

Seus credores, entretanto, não ficaram apenas surpresos, ficaram

entusiasmados e começaram a acalentar esperanças de receberem o


dinheiro

que lhes era devido, pois as contas do visconde cada ano aumentavam
mais

e ninguém via possibilidade de receber.

Na verdade, o alfaiate dele chegou a abrir uma garrafa de vinho, para


comemorar o fato com a esposa, quando ouviu comentários de que o
visconde

estava prestes a conquistar uma das mais ricas herdeiras daquela

sociedade.

- Eu não me importaria se ela não tivesse um tostão! - comentou o

visconde com seu amigo mais íntimo, Frederick Hinlip.

- Mas aposto como ela não ia gostar de morar naquela sua mansão
caindo

aos pedaços. Tenho certeza de que, com o dinheiro que tem, a primeira

coisa que ela vai fazer é restaurar aquilo tudo - retrucou Freddy. - Além

disso, você está precisando de uns cavalos novos...

O visconde ficou meio envergonhado.

- Eu lhe sou muito grato por ter me emprestado os seus, Freddy.

- Ora, não tem de quê. - O amigo sorriu para ele.

- Ela é a coisa mais linda que já vi! - exclamou o visconde num ímpeto,

mudando por completo de assunto.

- Concordo plenamente com você, mas não se esqueça que para casar
com

Niobe você tem primeiro que conquistar o pai dela.

- O que quer dizer com isso?

- Sir Aylmer é rigoroso e severo, é um osso duro de roer. Ele quer o

melhor para Niobe e nesse aspecto é inflexível. E, pensando bem, não


se

pode censurá-lo por isso...

- Está insinuando que eu não estou à altura da escolha? - perguntou o

visconde.
- É que ouvi dizer que Porthcawl também é pretendente.

- Ah, aquele bobalhão! - zombou o visconde com desprezo. Parece que


não

tem força nem para um aperto de mão e tem cara de peixe morto!

- Só que ele é um marquês!

- Niobe nem sequer vai olhar para ele! Só de pensar, me dá vontade de

rir! - disse o visconde com arrogância.

Contudo, no íntimo, sentiu-se apreensivo. Lembrou-se de que Niobe

havia lhe dito há uma semana que seu pai não estava muito propenso a

aceitá-lo como genro.

- O que está querendo dizer com isso? - perguntara na ocasião.

- Exatamente o que eu disse - retrucou Niobe. - Papai acha que você é

irresponsável demais para ser um bom marido. Aliás, meu querido


Valient,

receio que ele vá proibi-lo de vir aqui.

- Se ele fizer isso, nós fugiremos para casar! - disse o visconde com

firmeza.

Niobe fitou-o de olhos arregalados e ele continuou:

- Vou conseguir uma licença especial de casamento e nós poderemos


nos

casar na primeira igreja que encontrarmos no caminho. Depois que você


se

tornar minha esposa, seu pai não poderá fazer mais nada.

- Ele ficará furioso! - disse ela. - Além disso, eu quero um casamento

grandioso com damas de honra e uma festa espetacular depois da

cerimónia...
- Você terá isso tudo, minha querida, se seu pai der o consentimento

dele. Mas, se ele recusar, não teremos outro recurso... só fugindo!

Niobe ergueu-se do sofá onde estavam sentados e andou com infinita


graça

até a janela que dava para o jardim dos fundos, consciente de que,
parada

ali, com o sol fazendo brilhar seus cabelos dourados, ela era a própria

imagem da beleza e sedução.

O visconde contemplou-a como se estivesse enfeitiçado.

- Ah, como você é linda... tão linda, meu amor! Eu não posso perder
você!

Ela sorriu com certa vaidade e num instante ele se ergueu e tomou-a
nos

braços.

- Eu amo você, Niobe!

Depois, ele a beijou sedento e apaixonado e ao sentir que ela

correspondia com a mesma intensidade, certificou-se de que não havia


o

que temer em relação ao futuro deles.

Quando os dois já estavam com a respiração ofegante, Niobe afastou-se

dele e falou, depois de alguns instantes.

- Esqueci de lhe dizer que vamos para nossa propriedade de campo


neste

fim de semana. Papai organizou um outro baile para mim e convidou

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nossos vizinhos em Surrey. Vai ser uma festa incrível, com fogos

de artifício, gôndolas no lago, uma orquestra cigana no jardim, além da


outra que vai tocar no salão de baile!

- No momento, estou detestando bailes! - disse o visconde com


petulância.

- Quero você só para mim. Não acha melhor eu falar com seu pai e
tratar

de nosso casamento logo? Quero, casar antes do fim da temporada!

Niobe agitou as mãos no ar, horrorizada.

- Não, não! Isso só serviria para enfurecê-lo e fazer com que ele me

proibisse definitivamente de ver você. - Ela fez uma pausa e


acrescentou:

- ele já não vai convidá-lo para o baile.

- Quer dizer que seu pai me desaprova a esse ponto? - perguntou o

visconde, incrédulo.

Jamais em toda sua vida tinha sido proibido de entrar numa casa e
achava

incrível que sir Aylmer ousasse fazer isso com ele. Niobe baixou as

pálpebras.

- O problema, Valient, é que papai acha que estou começando a gostar

muito de você...

O olhar do visconde se iluminou.

- É exatamente isso que eu quero que aconteça! Diga que me ama!


Quero

ouvir de você.

- Eu acho que amo você... tenho quase certeza - respondeu Niobe -,


mas

papai diz que amor é uma coisa e casamento é outra.


- O que ele está querendo dizer com isso? - perguntou o visconde,
bravo.

Niobe suspirou baixinho.

- Papai quer um casamento excelente para mim... com alguém muito

importante!

O visconde arregalou os olhos, atónito.

- Você está querendo dizer que seu pai não me acha socialmente

importante? - disse ele, devagar, destacando bem as palavras. - Pois

fique sabendo que os Ockley estão entre as famílias mais importantes


da

aristocracia dessa região! Não há um só livro de história que não

mencione nosso nome!

- É, eu sei - disse Niobe depressa -, não é por isso. É que papai tem

outras ideias.

- Que ideias? - perguntou ele, com voz sinistra. Niobe movimentou as


mãos

delicadas e expressivas.

- Quer dizer que existe alguém que seu pai acha melhor do que eu? -

insistiu o visconde.

Niobe não respondeu e ele a envolveu nos braços outra vez.

- Você é minha. Você me ama e sabe disso! Precisa ter coragem, meu
amor,

para dizer isso a seu pai,

- Ele não me daria ouvidos.

- Então, vamos fugir.

O visconde ia começar a explicar o plano de fuga quando Niobe ergueu o


rosto angelical e fitou-o nos olhos, dizendo:

- Beije-me, Valient! Eu adoro seus beijos e estou com medo de perder

você...

O visconde beijou, -a com ardor e acabou esquecendo a conversa e os

planos. Só quando já estava indo embora de Park Lane é que ele se


lembrou

que afinal não haviam combinado nada. Por isso escreveu a ela uma
carta

apaixonada e fez com que seu criado a entregasse às escondidas à


criada

de quarto de Niobe para que não fosse interceptada por sir Aylmer.

Como resposta recebeu duas linhas escritas por Niobe dizendo que ele

fosse encontrá-la na casa de seu pai, em Surrey, na próxima


segundafeira.

O visconde sabia que o baile para o qual não fora convidado seria no

sábado, e concluiu que Niobe queria vê-lo a sós, depois que os


convidados

tivessem ido embora.

Contudo, era enervante saber que a maioria de seus amigos iria à festa.

Muitos estavam até hospedados na mansão de sir Aylmer e outros em


várias

propriedades vizinhas.

Como não tinha nada para fazer, resolveu ir para sua casa em

Hertfordshire, apesar de saber que seria deprimente encontrá-la


naquele

estado de decadência. Assim que o dinheiro de Niobe fosse para suas


mãos,
pretendia restaurar a casa e devolver-lhe a beleza de antigamente.

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A guerra dilapidara a fortuna da família e quase levara o pai do visconde

à ruína total. Ele havia investido uma grande soma sem pensar em fazer

uma reserva de capital.

O visconde lutou na guerra com o exército de Wellington e passou um


ano

com o Exército de Ocupação. Seis meses depois de ter voltado à

Inglaterra, seu pai faleceu e Valient descobriu que herdara apenas uma

velha propriedade, caindo aos pedaços por falta de reparos, uma


montanha

de dívidas e nada na conta bancária para que pudesse saldá-las.

Devido aos longos anos que passara na guerra, Valient queria divertirse

para compensar o precioso tempo de sua juventude que perdera


guerreando.

Por isso, protelou a solução do problema financeiro e entregou-se com

entusiasmo aos prazeres e distrações que Londres podia oferecer.

Sem se preocupar com despesas, ele reabriu a casa da família, em


Berkeley

Square, apesar de saber que estava totalmente hipotecada, e passou a

viver como um lorde embora estivesse de bolsos vazios.

Depois de uns dois anos nessa vida, começou a pensar seriamente que
devia

fazer algo para resolver aquela situação, e era óbvio que só um


casamento

com uma rica herdeira poderia salvá-lo. Aliás, essa solução não era

novidade na família Ockley.


A maioria das gerações tinha seguido o impulso da razão e não do
coração,

escolhendo uma esposa que trouxesse dinheiro ou terras. Olhando com

cinismo a galeria de retratos da família, o visconde costumava comentar

para si mesmo que dinheiro tinha sido a única vantagem daquelas


esposas,

pois eram quase todas mulheres feias ou sem nada de extraordinário.

Enquanto estava lutando em Portugal ou na França, várias noites, no

silêncio do acampamento, ele se pusera a pensar romanticamente no


tipo de

mulher com quem gostaria de se casar.

Não que ele fosse convencido, mas tinha consciência de que era um belo

homem e que fazia palpitar os corações femininos.

Queria uma esposa que também fosse bonita para que juntos tivessem
belos

filhos, cujos retratos futuramente viessem a enriquecer aquela galeria


da

família.

Niobe poderia ter sido uma resposta às suas preces. Sabia, pela sua
vasta

experiência com mulheres, que ela se sentia atraída por ele e que

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seus beijos a deixavam excitada. Havia um brilho nos olhos dela quando

estavam juntos que garantia a conquista total daquela linda mulher.

Na segunda-feira de manhã, dirigiu-se para Surrey, impaciente para ver

Niobe. Mas, apesar disso, preocupou-se em não forçar demais os


cavalos
lembrando-se que eles pertenciam a Freddy.

Passara todo o fim de semana arquitetando o plano de fuga e apalpava


com

ar sonhador a licença de casamento que estava bem guardada no bolso


de

dentro de seu elegante paletó, que, aliás, ainda não tinha sido pago.

Enquanto dirigia a carruagem, ia falando com seus botões:

Sir Aylmer pode ficar aborrecido, mas depois que Niobe e eu estivermos

casados, não vai poder fazer mais nada... ainda bem que ela já tem o

dinheiro no nome dela e nem deserdá-la ele vai poder.

Tudo parecia estar correndo exatamente como ele queria. Havia só uma

pontinha de incerteza e apreensão porque Niobe tinha insistido num

casamento grandioso, com uma estrondosa festa. Ela falara várias vezes

nisso. Valient lembrava-se muito bem de tê-la ouvido contar que o

príncipe regente fora ao casamento de uma das suas amigas e que


ficaria

infelicíssima se ele não fosse o convidado de honra do casamento dela.

O visconde, sem dúvida, já havia encontrado o príncipe em várias

ocasiões, mas não tinha a menor intenção de estreitar relações. Achava

terrivelmente tediosos aqueles jantares em Carlton House e os serões

musicais que se seguiam faziam-no bocejar.

O que ele gostava mesmo era de frequentar os salões de jogos, das

noitadas nas casas de prazer e das tabernas onde dançava, sempre

acompanhado de seus melhores amigos. Ou, então, de participar das

corridas de obstáculos, das corridas de cavalo em Newmarket ou Epson


e
das noitadas de bebedeiras que sempre aconteciam depois de um dia de

turfe.

- Tenho certeza de que Sua Alteza ficará encantada em comparecer ao


nosso

casamento -, dissera o visconde, na ocasião, apenas numa atitude de


mera

cortesia.

Mas sabia que isso era pouco provável de acontecer. Entretanto, tinha a

certeza de poder proporcionar outros prazeres a Niobe, para compensála

dessa frustração.

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Quando entrou na alameda bem cuidada da propriedade e viu, à


distância, a

enorme mansão de sir Aylmer, o visconde esqueceu-se de tudo o que


estava

pensando para só se lembrar da beleza de Niobe e de seu desejo de tê-


la

em seus braços.

Niobe estava à espera dele no salão, decorado tão pomposamente que

chegava às raias do mau gosto. Contudo, ele não tinha olhos para isso,

naquele momento, só para Niobe que ergueu-se do sofá perto da janela


e

foi ao encontro dele, mais linda do que nunca.

O vestido que usava combinava com a cor dos cabelos e realçava as


formas

perfeitas de seu corpo. Embora estivesse usando jóias demais para uma
jovem que está no campo, o visconde só reparava naqueles lábios
femininos

e suaves.

Quando chegaram perto, ele a abraçou.

- Não, Valient. Não! - disse Niobe empurrando-o com suas mãos alvas e

delicadas.

- Não? Por quê... - perguntou o visconde, desconfiado.

- Você não deve me beijar... precisa ouvir o que tenho a lhe dizer.

- Eu também tenho muita coisa a lhe dizer.

- Mas primeiro deve me ouvir.

Querendo agradá-la, ele preparou-se para escutar.

- Receio que isso vá aborrecê-lo, Valient, mas papai acha melhor eu


mesma

lhe contar.

- Contar-me o quê? - perguntou ele, fazendo esforço para se concentrar


no

que ela dizia e para controlar o impulso de estreitá-la nos braços e

beijar aquela boca macia e tentadora.

- Contar-lhe que... - disse Niobe - eu prometi casar com o marquês de

Porthcawl.

Por um instante o visconde não conseguiu entender, era quase como se


ela

tivesse falado numa língua estranha. Depois, à medida que foi


assimilando

as palavras e entendendo o significado, sentiu-se como se tivesse


levado

uma pancada na cabeça.


- Por acaso está brincando? Isso é uma pilhéria?

- Não, é claro que não. Papai está muito satisfeito. O casamento foi

marcado para o mês que vem.

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- Não acredito! E, depois, se isso foi decisão do seu pai, então vamos

fazer o que tínhamos combinado... vamos fugir!

Pela expressão de Niobe ele sabia, mesmo antes de acabar de falar, que

ela não iria com ele. Apesar disso quis ouvi-la falar.

- Eu tenho uma licença especial - continuou ele. - Nós nos casaremos na

primeira igreja e depois será impossível seu pai tirá-la de mim.

- Sinto muito, Valient, sabia que você ia ficar aborrecido com isso... Eu

amo você e gostaria de ser sua esposa, mas não posso recusar o pedido
do

marquês.

O visconde respirou fundo.

- O que está querendo me dizer é que esteve me iludindo esse tempo


todo,

mantendo-me na reserva, caso Porthcawl não fizesse o pedido. Agora


que

ele pediu sua mão, você simplesmente se desfaz de mim como se eu


fosse um

brinquedo velho!

- Sinto muito, Valient - repetiu ela -, gostaria que você entendesse e

que pudéssemos ser amigos depois que eu me casar.

Então, o visconde perdeu a calma de uma vez e não se controlou mais.


Ele
sempre tivera génio forte e explosivo, era uma característica dos
Ockley,

só que não se manifestava com frequência. Mas também quando isso

acontecia era uma verdadeira explosão vulcânica.

Mais tarde, o visconde mal conseguia se lembrar de tudo o que dissera

para Niobe. Só sabia que não tinha gritado. Falara baixo, mas com

intensidade e usando palavras que feriam como açoite. Ela ficara

completamente pálida e não respondera nada.

Quando sentiu que já havia dito tudo, ele saiu da sala feito um furacão,

querendo afastar-se depressa daquela mulher que o traíra.

Depois de algum tempo dirigindo a carruagem, ele começou a se


acalmar e a

respiração ficou mais fácil. Percebeu, então, que estava correndo


demais,

os cavalos estavam suados e ele próprio estava com calor. Olhou de

relance para o chão da carruagem e notou ali uma manta que não havia

antes. Estava imaginando quem pusera aquilo ali, num dia tão quente
como

aquele, quando notou um movimento sob a coberta e viu, atónito,


aparecer

um rosto.

Era um rosto oval e pequeno com olhos grandes e negros que o fitavam

apreensivos e súplices.

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- Posso... sair daqui agora? - perguntou uma voz delicada. Estou


morrendo

de calor.
- Quem é você? - perguntou o visconde, ríspido. - E que diabos está

fazendo aqui?

A manta foi jogada para o lado e surgiu uma garota delgada e frágil que

subiu na boleia e sentou-se ao lado do visconde.

O vestido dela estava todo amarrotado e os cabelos negros em


desalinho. O

visconde fitou-a perplexo e depois olhou de novo para a estrada.

- Creio que você deve ter algum motivo para estar na minha carruagem,
não

é? Como explica isso?

- Estou fugindo.

- De quem?

- Do meu tio Aylmer.

- O quê? Está me dizendo que sir Aylmer Barrington é seu tio? disse o

visconde furioso.

- Nesse caso, mocinha, pode descer imediatamente! Não quero ter mais

nenhum relacionamento com os Barrington pelo resto da minha vida!

- Sabia que seria essa sua reação.

- Sabia? Como, se você não viu o jeito como fui destratado? Ou por
acaso

você está envolvida nessa trama diabólica para me insultar?

- Não, não tenho nada a ver com isso. É que acompanhei tudo, de
longe, e

vi o modo como você estava sendo mantido na reserva, caso o marquês


não

fizesse o pedido de casamento.


O fato da garota ter dito o que ele havia pensado fez com que o
visconde

ficasse mais furioso e puxou as rédeas com violência fazendo os cavalos

pararem.

- Saia já daqui! - explodiu ele. - Vamos, desça e vá para o inferno! E

diga a seu tio e a sua prima que eu desejo que eles apodreçam no
inferno!

O modo como falou e a expressão de raiva no rosto dele deveriam ter

intimidado a garota, mas em vez disso ela o olhou cheia de comiseração


e

disse:

- Sinto muito, mas, na verdade, embora você possa não acreditar em


mim,

eu acho que se livrou de boa. Teve sorte de não ter ficado com ela.

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- Que diabos quer dizer com isso?

- Você não conhece Niobe como eu conheço. Ela é invejosa, má,


vingativa e

interesseira. Ia fazer você muito infeliz.

- Não acredito que Niobe seja nada disso, e se continuar falando assim,

vou acabar esbofeteando você! - ameaçou.

- Não seria nenhuma novidade para mim - respondeu ela, sem se


alterar. -

Hoje de manhã, mesmo, tio Aylmer me bateu e foi então que decidi
fugir.

Por isso estou aqui.

- Bateu em você? Não acredito!


- Posso lhe mostrar as marcas, se quiser. Ele sempre bate em mim. A

primeira vez, logo que vim morar aqui, ele me bateu porque Niobe
mandou,

depois se acostumou e eu vivo apanhando por qualquer coisinha.

O visconde olhou para ela, perplexo. Estava pasmo. Era difícil acreditar

naquilo, mas a garota estava falando com sinceridade, quanto a isso não

tinha dúvidas. Contemplou-a mais detidamente. Era tão jovem, quase

parecia uma criança.

- Que idade você tem?

- Dezoito anos.

- E qual é seu nome?

- Jemima Barrington.

- Então, você é mesmo prima de Niobe?

- Minha mãe era irmã de sir Aylmer. Ela fugiu com o meu pai para se

casar, eles eram primos distantes. Eram muito pobres mas muito
felizes.

Quando eles morreram e eu fiquei órfã, tio Aylmer me levou para morar
com

ele. Foi por isso que disse que você escapou de boa. Eu os conheço
bem.

Quando o assunto voltou para ele de novo, o visconde ficou novamente

muito irritado.

- Sinto muito, pela sua situação, mas você sabe que eu não posso me

envolver com seus problemas. O máximo que posso fazer é levá-la para
onde

você quiser ir, contanto que ninguém fique sabendo que fui eu.
- Não acho que alguém vá se interessar em saber de mim. Niobe não
gosta

de mim e tio Aylmer me considera um fardo, um estorvo. Suspirou


baixinho,

antes de acrescentar: - Afinal, quem é que se preocupa com parentes

pobres?

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- Você é pobre?

- Sou. Mamãe sempre deu mais importância ao amor do que à riqueza.


Ela

foi a única exceção da família.

O visconde não pôde deixar de concordar com ela nesse ponto. Niobe

preferira um título de nobreza mais importante do que o dele. Como se

adivinhasse o pensamento dele, Jemima disse:

- Niobe é esnobe como o pai! O sonho dela é estar entre as esposas dos

pares do reino, e se por acaso agora aparecesse um duque, pode estar

certo de que ela se livraria do marquês como se livrou de você!

- Já lhe disse para não falar assim!

- Um dia você ainda vai me dar razão e ver que estou falando a
verdade.

O visconde ia retrucar mas refreou o impulso achando que seria indigno


da

parte dele.

- Para onde quer que eu a leve? - perguntou, segurando de novo as


rédeas.

- Para onde você quiser ou puder.

- Você tem dinheiro?


- Só dois guinéus que roubei de cima da cómoda de tio Aylmer. O
visconde

largou as rédeas e olhou para ela.

- E você me diz, assim, com essa cara, que está saindo para enfrentar o

mundo, sozinha, só com dois guinéus? Você é maluca?

Houve um pesado silêncio e depois Jemima falou, num tom de voz


amargurado

e cheio de comoção:

- É a única saída que me resta. Não posso continuar sendo espancada e

maltratada... levando uma vida desesperadamente... infeliz.

A última palavra foi dita num soluço comovente.

- Você não tem nenhum outro parente na casa de quem possa ficar? -

perguntou, preocupado.

- Tenho outros parentes, mas nenhum ficaria comigo. Todos têm muito
medo

de tio Aylmer e logo me mandariam de volta para a casa dele.

- Era o que eu também devia fazer.

Ele franziu o cenho, pensando no que fazer, mas a simples ideia de


voltar

e ter de encarar Niobe de novo, ou o pai dela, fez o sangue subir a sua

cabeça.

19

- Que praga! Por que é que você foi me aparecer logo agora? Eu não
quero

voltar lá - disse ele, furioso -, estou louco para sumir e mostrar àquela

sua priminha interesseira o que eu penso dela! - Ele riu com desprezo. -
Eu disse a ela como me vingaria e é exatamente o que pretendo fazer.

- O que você disse a ela? - perguntou Jemima, curiosa. O visconde

semicerrou os olhos.

- Eu disse que me casaria com a primeira mulher que encontrasse, só


para

não deixar que ela me humilhasse diante de todos!

Os olhos dele faiscavam de ódio e ele olhava fixo para a estrada sem
ver

nada. Estava lembrando do rosto de Niobe quando ela dissera que ia se

casar com o marquês.

Então, ao seu lado, uma voz suave, um tanto hesitante disse:

- Se... foi isso o que você falou... ahn... eu sou a primeira mulher que

você encontrou...

O visconde virou a cabeça para fitá-la.

- Meu Deus... é mesmo! E talvez seja até maior a vingança se eu me


casar

com uma Barrington...

Ele olhou para a frente de novo, com ar pensativo, e ouviu Jemima


dizer:

- Nada deixaria Niobe mais furiosa do que... o fato de eu me casar antes

dela... e, ainda mais, com você!

O visconde deu uma risada sinistra e um tanto assustadora.

- Deve haver uma igreja aqui por perto.

Ele chicoteou os cavalos, com certa satisfação íntima de ter encontrado


o

melhor meio de se vingar da mulher que o humilhara. Como ele era há


muito
tempo um solteirão convicto, sabia que aquele casamento repentino

causaria sensação e comentários nos clubes de St. James. Todos sabiam


que

ele estava cortejando Niobe; por isso já deviam estar fazendo apostas

para saber se ele conseguiria ou não conquistá-la, portanto seria uma

surpresa bastante irónica, aliás, quando ele anunciasse que se casara


com

a prima dela.

O visconde sabia muito bem que Niobe gostava de ser sempre a figura

central de todos os acontecimentos importantes. E apesar de ela estar

agora noiva de um marquês esse fato ia passar para segundo plano


quan20

do todos soubessem que o visconde, que a cortejava, casara-se com a


prima

dela. O visconde seria o principal comentário da temporada e Niobe

ficaria furiosa.

Quando parou a carruagem diante de uma igrejinha de pedra, o


visconde

tinha um sorriso quase cruel nos lábios.

- Aqui está bom - disse ele.

Olhou em redor e chamou uns garotos que brincavam ali perto para que

segurassem os cavalos.

- Você pretende mesmo... casar comigo? - disse Jemima, com voz


tímida.

- Creio que essa é a melhor solução. Você só tem a ganhar! Ou será que

prefere ficar vagando pelas calçadas de Londres?

- Não... é claro... Eu lhe fico muito grata.


- Pois não precisa. Só estou fazendo isso para dar uma lição à sua

priminha e espero que ela sofra bastante.

- Sem dúvida, vaj sofrer mesmo!

O visconde desceu da carruagem, sem se preocupar em ajudar Jemima,


e

perguntou a um dos garotos onde estava o vigário.

- Está na igreja, fazendo um batismo, sir - respondeu o moleque. Ele

atravessou o portão de ferro em direção à igreja e deixou Jemima

para trás. Ela desceu sozinha da boleia, amarrou o chapeuzinho e foi

atrás dele.

Quando chegou ao portão, esperou sairem um homem e uma mulher


carregando

um bebé, seguidos de várias pessoas. De longe viu o visconde


conversando

com o vigário e mostrando a ele uma folha de papel. Nervosa, ajeitou o

vestido amarrotado e quando o visconde lhe fez um sinal ela se


aproximou

e foram até o altar.

- Eu disse a ele que seu primeiro nome tinha sido inadvertidamente

omitido na licença especial - disse o visconde, em voz baixa e tom

impessoal - por isso ele vai chamar você de Jemima Niobe.

Jemima fez que sim com a cabeça. Estava pálida e com olhar assustado.

O visconde nem olhou para ela, foi andando para o altar sem sequer lhe

oferecer o braço. Jemima apressou o passo e colocou-se ao lado dele.

A cerimónia foi curta e rápida. Na hora da troca de alianças, o visconde

percebeu que se esquecera desse detalhe, por isso tirou um anel com o
21

brasão da família, que usava no dedo mínimo, e colocou-o no dedo do


meio

da mão de Jemima, e mesmo assim ainda ficou largo

O Vigário declarou-os marido e mulher, o visconde pagou a taxa de

casamento e foi saindo sem nem prestar atenção ao padre que o

cumprimentava e desejava felicidades.

- Obrigada muito obrigada - disse Jemima, e correu atrás do marido


com

medo de que ele a deixasse ali.

22

CAPÍTULO II

Jemima acordou num sobressalto, achando que dormira demais e que


estava

atrasada, mas quando abriu os olhos e viu aquele quarto diferente

lembrou-se que estava em outro lugar.

Percebeu que alguém havia entrado no quarto e logo viu que era uma

criada, abrindo as cortinas.

- Que horas são? - perguntou.

- Mais de nove horas, milady.

Jemima quase perdeu a respiração. Ser tratada de milady era uma

confirmação de que tudo o que acontecera na véspera era realidade,


embora

parecesse sonho.
Estava cansada quando chegaram em Londres, mas não tinha dito nada,
pois

não estava acostumada a falar de si nem a esperar que alguém se

interessasse por ela.

Os dois tinham feito o percurso todo em silêncio, desde que saíram da

igreja, o visconde sempre sisudo. Quando chegaram em casa, assim que


o

cocheiro surgiu, Valient entregou a ele as rédeas, desceu e foi seguindo

na frente sem dar atenções a Jemima. Ela o seguiu, calada. Sem dizer
uma

palavra aos empregados que o receberam, o visconde foi para a


biblioteca

e sentou-se diante de uma enorme escrivaninha.

23

Jemima ficou parada na porta, sem jeito, vendo-o retirar de uma caixa
de

couro, uma folha de papel timbrado que colocou sobre a mesa. Quando
ele

pegou a pena para começar a escrever, Jemima falou com timidex

- Bem... o que você quer que eu faça?

- Espere um pouco! - retrucou o visconde, irritado. - Quero que levem

logo esta participação de casamento para que dê tempo de sair no


jornal de

amanhã cedo.

- É claro... desculpe.

Jemima entrou em silêncio e sentou-se em uma poltrona. Enquanto


esperava,
ficou examinando o ambiente. Percebeu que, embora o lugar fosse

luxuosamente decorado, os móveis já estavam bem gastos e precisando


de

uma bela limpeza. Depois, recriminou-se por estar criticando em vez de

agradecer o estranho destino que fizera com que ela encontrasse pelo

menos um teto onde se abrigar.

Tudo acontecera tão rápido que ela nem tivera tempo de refletir sobre o

que estava fazendo, ao se casar com o visconde. A única coisa em que

pensara fora no fato de não ter de voltar à casa do tio e ainda apanhar

por ter fugido.

Ela o odiava tanto que só de lembrar daquele rosto autoritário,

estremecia. A surra que ele tinha lhe dado na última manhã, como em

tantas outras vezes, não só machucara seu corpo como principalmente a

humilhara e ferira seu orgulho. Ela nunca imaginara que no mundo


pudesse

haver pessoas tão cruéis, egoístas e insensíveis como sir Aylmer e a

filha.

Sabia que Niobe não gostava dela porque, apesar de ser pequena e

insignificante, era uma mulher e portanto a prima a considerava uma

rival.

Fizera com que o pai batesse nela, logo no início, com medo que ele

começasse a gostar da prima. Teve ciúmes do afeto do pai. Se ele


gostasse

de Jemima, Niobe iria se sentir lesada.

Niobe era possessiva e egocêntrica, achava que o mundo devia girar em


torno dela.

Bastava Jemima se arrumar um pouco melhor e ficar um pouquinho


atraente

que fosse, Niobe brigava com ela, beliscava-a e obrigava-a a mudar de

roupa. Se ela se negasse, Niobe ia fazer intrigas para o pai e ele

acabava batendo na sobrinha.

24

Além disso, usava Jemima como se fosse sua empregada, aliás, a


palavra

mais certa seria escrava, pois a prima trabalhava para ela de graça e

ainda recebia maus-tratos e ouvia desaforos. Às vezes, no fim do dia,

depois de subir e descer centenas de vezes aquelas escadas, ser

maltratada e humilhada, ela se sentia tão cansada e infeliz que nem

conseguia dormir. Ficava chorando, sozinha, no escuro.

O contraste entre a vida que levava na suntuosa mansão do tio e a que

levara na modesta casa de seus pais era tão grande que ela se sentia
como

se tivesse sido expulsa do paraíso e caído no inferno.

Houve vezes em que ela chegou a pensar em suicidar-se afogando-se


no lago

ou com um tiro de uma das pistolas de duelo que o tio possuía. Mas o

orgulho a mantinha firme e cheia de coragem, e ela repetia para si

própria que não ia se deixar vencer por pessoas que ela odiava e

desprezava tanto.

Tudo na casa do tio era o oposto da bondade, carinho e compreensão


que
sempre recebera da mãe. Sabia que seu pai jamais gostara de sir
Aylmer e

dava graças a Deus por ele ignorá-los por serem parentes pobres e não

terem posição social de destaque.

Aquela manhã Jemima chegara ao limite do que podia suportar.

Tinha apanhado porque Niobe, embora não admitisse, estava nervosa


por ter

que dizer ao visconde que não ia mais se casar com ele, e o tio estava

nervoso com o acordo de casamento que estava em andamento com o


marquês

de Porthcawl. Jemima, como sempre, era o bode expiatório de tudo e


tivera

o azar de, justo naquele dia, esbarrar sem querer numa mesinha e
derrubar

uma estatueta de porcelana.

Ela não costumava ser desastrada, mas é que um dos cachorros de sir

Aylmer entrara correndo para fazer festa e dera um encontrão nela

fazendo-a perder o equilíbrio e virar a mesinha.

Sir Aylmer, que acabara de chegar, ainda estava com o chicote de


montaria

na mão e imediatamente avançou para ela. Quando, afinal, conseguiu


correr

para o quarto, dolorida e magoada, resolveu que precisava fugir. Não

havia outro meio de se proteger daquelas surras e não queria mais se

sujeitar aqueles maus-tratos.

Sabia que o visconde iria visitar Niobe depois do almoço e quando


desceu
para fazer uma das muitas tarefas de que era encarregada, viu a

25

carruagem dele parada no jardim. Viu que ele tinha vindo sozinho, sem

cocheiro, e imediatamente armou um plano de fuga.

Sabia que não tinha tempo para pensar muito, era preciso agir rápido.

Conseguiu passar pelo saguão sem ser vista, pegou uma das mantas de

carruagem que ficavam no baú e correu para fora sorrateiramente.


Entrou

na carruagem, deitou-se no chão, cobriu-se com a manta e ficou ali

esperando, o coração palpitando de medo. Agora estava livre, afinal!

Mas enquanto se vestia depressa, depois que a criada dissera que o

visconde já estava tomando o café da manhã, Jemima ficou pensando


se não

teria apenas mudado de um carrasco para outro. Não sabia como era o

visconde. Ela o vira várias vezes de longe, é claro, pois não lhe era

permitido conhecer nenhum amigo de Niobe. Mas gostava de olhar,

furtivamente, os admiradores que cortejavam a prima. Achava ridículo

aquilo tudo e observar o espetáculo a divertia muito. De todos os

pretendentes, o visconde tinha sido o que ela achara mais bonito e

simpático.

Só quando a família estava sozinha, Jemima comia com eles à mesa,


mas

Niobe e o pai a recriminavam tanto e caçoavam dela que preferia


mesmo

comer com os empregados.


Agora, olhando para aquele homem, que tão de repente e
inesperadamente se

tornara seu marido, ela imaginava como seria sua vida dali em diante.

Será que seria diferente da vida na casa do tio? Ou ali também viveria
em

escravidão?

Quando o visconde terminou de escrever a participação de casamento,


ele

se ergueu.

- Vou até o clube - disse ele -, de lá mando entregar a notícia no

jornal. É melhor você ir para a cama.

Jemima também se ergueu da poltrona.

- Será que... - disse ela com voz titubeante -, alguém pode me mostrar

onde é que vou dormir?

- Ah, claro, a governanta pode fazer isso. Ele tocou o sino para chamá-

la.

- Será que eu poderia... se não for incómodo... comer algo antes de

deitar? - pediu Jemima, timidamente.

- Você está com fome? - perguntou ele surpreso.

26

- Eu não tomei nem café da manhã, hoje. Estou em jejum.

Ela disse apenas isso, sem se preocupar em explicar que ficara sem
comer

por causa da surra e porque ficara chorando até a hora do almoço.


Nesse

momento, a porta se abriu e entrou o mordomo.


- Esta senhora deseja comer e depois diga a sua mulher para mostrar a
ela

onde vai dormir.

- A lady vai dormir aqui? - perguntou ele, com certa impertinência.

Estava realmente admirado.

- Esta é minha esposa, Kingston - anunciou o visconde -, e a partir de

agora a patroa de vocês!

Ele falou e foi saindo da biblioteca, deixando o mordomo boquiaberto e


de

olhos arregalados. Houve um ruído de porta batendo, depois o


empregado

olhou para Jemima e disse, ainda de um certo modo impertinente:

- Será que entendi bem o que disse milorde? Ele se casou com a
senhora?

Jemima olhou para ele de cabeça erguida.

- Você ouviu muito bem o que ele disse - retrucou. - Agora, por favor,

peça para sua mulher me mostrar meus aposentos. Acho que seria
melhor

levarem a comida para mim numa bandeja.

- Não sei como vai ser - disse o mordomo -, o cozinheiro já foi embora e

hoje de manhã milorde não deu ordens para que se preparasse jantar.

- Bem, não quero ser inconveniente. Se não houver comida, ficarei

satisfeita com um pouco de pão com queijo e um chá.

- Não sei quem vai preparar isso para a senhora. O cozinheiro não gosta

que os outros empregados mexam na cozinha.

Jemima olhou bem para o mordomo e percebeu então que ele andara
bebendo.
Admirou-se de o visconde admitir um empregado insolente como
aquele, mas

de repente lembrou-se de uma conversa com Niobe que analisava os


prós e

os contras dos seus pretendentes, enquanto a prima a arrumava.

- Eu gosto de Valient Ockley -, disse Niobe, na ocasião. - Ele é bonito e

nós dois faríamos um belo par. Todos dizem isso! Só que ele não tem

dinheiro.

27

retrucou Jemima. - Afinal,

- E por que se preocupar com isso? - retrucou Jemima. - Afinal, você já


é

muito rica!

- Não pretendo gastar meu dinheiro com homem nenhum, seja quem
for. Além

disso, papai disse que a casa dele está caindo aos pedaços e vai ser

preciso gastar uma bela quantia para deixá-la em ordem. Ao passo que
a

mansão do marquês está em perfeito estado... Aliás, papai disse que a

casa dele é a casa de um nobre de verdade!

- Mas o marquês é velho - disse Jemima -: e eu acho que ele é


horroroso!

- Quando você o viu?

- Eu o vi chegar ontem à noite e quando entrou no saguão pude ver


bem a

cara dele. Tenho certeza de que é um bobalhão. Não tem cara de


homem
inteligente ou interessante.

- Você nem o conhece, não sabe nada sobre ele! - disse Niobe, com

rispidez. - Ele é rico, viúvo e é um marquês. Já pensou na posição que

vou ter? Eu, a marquesa de Porthcawl!

- Mas ele vai ser seu marido... vai beijar você... vai dormir na mesma

cama... já pensou nisso?

- Ora, Jemima, francamente! Como se atreve a falar nessas


intimidades?

- Antes de aparecer o marquês você dizia que amava o visconde...

- E eu o amo mesmo - disse Niobe, com um delicado suspiro. Gosto


quando

ele me beija e me abraça... mas um marquês é muito mais importante


do que

um visconde.

Agora Jemima constatava que não só o visconde era muito pobre como
também

muito mal servido em termos de criadagem.

Uma mulher um tanto desleixada, que nem de longe parecia uma


governanta,

conduziu Jemima até um quarto, com muita má vontade, dizendo que


era ali

que devia ficar se era mesmo verdade que tinha se casado com o
patrão.

- Nós nos casamos hoje mesmo, numa aldeia - retrucou Jemima.

- Então, é esse mesmo o seu quarto. É pegado ao dele. Ouvi dizer que a

senhora quer comer alguma coisa.

- Agradeceria muito se me arranjasse algo. Estou com muita fome.


28

Afinal, foi-lhe servido um prato com um pedaço de carneiro e três

batatas, tudo frio, pão e manteiga numa vasilha mal lavada. Mas
Jemima

não estava em condições de reparar nessas coisas. Comeu até matar a


fome,

depois, como ninguém foi buscar a bandeja vazia, ela colocou-a do lado
de

fora do quarto, tirou a roupa e se deitou.

Apesar do cansaço, não pôde deixar de notar que os lençóis estavam

rasgados e encardidos e que havia uma camada de pó na água que


estava no

jarro de louça, junto à bacia, em cima da cómoda.

Deitou-se com cuidado para não machucar mais as costas doloridas,


cheias

de-vergões das chicotadas. De qualquer forma, suspirou aliviada. Pelo

menos ali estava fora do alcance do tio e de Niobe, o resto não tinha a

menor importância.

Enquanto descia as escadas para tomar o café da manhã, usando o


mesmo

vestido com que saíra da casa do tio, Jemima ficou pensando se o


visconde

não estaria arrependido de ter se casado com ela, num gesto impulsivo.

Achou que devia ter recusado e tê-lo impedido de fazer uma coisa tão

absurda, só para se vingar. Mas, ao mesmo tempo, para ela tinha sido

muito conveniente, a maior felicidade de sua vida, embora ainda não

soubesse o que esperar daquela situação.


Não precisava mais temer a crueldade do tio: agora era a viscondessa

Ockley, e não importava o que acontecesse no futuro, mesmo que o


visconde

a mandasse embora, que não quisesse mais vê-la, pelo menos tinha um
nome

e um título honroso.

Quando o visconde começara a cortejar Niobe, ela ficara fascinada não

apenas com ele mas também com a linhagem de nobreza a que


pertencia.

- Os Ockley são muito importantes - repetira Niobe inúmeras vezes. -

Vários aristocratas que não aceitariam papai, por ele ser apenas um

cavaleiro com título adquirido e ter feito fortuna em vez de herdá-la,

jamais fechariam as portas para um Ockley.

Por isso, naquela manhã, Jemima sentia-se feliz por ter adquirido o
nome

do visconde, embora se sentisse um pouco nervosa porque não sabia


com que

humor ele estaria.

Desceu as escadas e ficou procurando a sala de jantar pois não havia

29

ninguém ali para lhe dizer onde era, até que ouviu vozes e caminhou na

direção de onde vinham.

O visconte estava com dor de cabeça, de ressaca, por ter bebido vinho

demais. Ele detestava quando acontecia isso, pois normalmente não era
de

beber muito. Era bastante cuidadoso com relação a isso. Comia e bebia
sem
exageros, preocupado em manter uma boa saúde para ter um bom
desempenho

nos esportes que gostava de praticar.

Entretanto, na véspera, depois de ter mandado levar a notícia de

casamento para o jornal, ele encontrou vários amigos no clube e ficou

bebendo com eles até de madrugada. Resolveu não contar nada a eles
para

que o impacto da notícia no jornal fosse maior no dia seguinte. Sorriu

com a satisfação íntima de saber que para Niobe, sem dúvida, seria uma

surpresa bem desagradável.

Quanto mais pensava no modo como ela o iludira, mantendo-o na


reserva

caso o marquês falhasse, com mais raiva ele ficava.

Tinha ficado bebendo no clube, mas não falara, não participara da

conversa como sempre fazia. Ficara só ouvindo. Todos estranharam e

perguntaram o que tinha acontecido, por que estava tão calado. Como
ele

não respondesse, os amigos se entreolharam, certos de que Niobe havia

dado o fora nele.

Só Freddy, porque era o amigo mais íntimo, resolveu perguntar de


novo,

quando deu a ele uma carona em sua carruagem, na hora de irem


embora.

- Sei que você foi até a casa de campo deles, hoje, Valient - disse.

- Ela recusou seu pedido?

- Não quero falar nesse assunto - disse o visconde com voz um pouco
arrastada. - Amanhã eu falo, Freddy. Venha tomar o café da manhã
comigo.

- Está bem, pode me esperar. Sinto muito, meu amigo, se aconteceu o


que

eu desconfio... mas, afinal, ela não é a única herdeira rica no mundo.

Ânimo, rapaz!

O visconde, enrolou a língua, emitiu um som confuso e desceu da


carruagem

sem nem dizer boa noite.

Freddy tocou a carruagem e ficou com pena do amigo. Desconfiava

30

que Niobe tinha preferido o marquês e que Valient estava sofrendo por

isso.

O visconde tinha acabado de entrar na sala de jantar e estava


examinando

o que havia na mesa do café, arrumada com pratarias escurecidas e

malcuidadas, quando Freddy entrou sem ser anunciado.

- bom dia, meu caro Valient -, foi ele cumprimentando num tom
caloroso. -

Espero que esteja mais bem-disposto hoje.

- Pois eu lhe digo que estou em péssimo estado - retrucou o visconde

largando a tampa de prata que cobria um dos pratos e olhando para


Freddy.

- O que não é de se admirar, considerando-se o que você bebeu ontem.


Deve

ter bebido pelo menos umas três garrafas!


O visconde resmungou qualquer coisa e serviu-se de café. Freddy
acomodou-

se numa cadeira e abriu o jornal que tinha trazido.

- Você já leu as notícias? - perguntou ele. - Os agricultores estão

protestando veementemente contra a competição no mercado de


alimentos

importados, que são mais baratos. - Virou algumas páginas examinando


por

alto o conteúdo e de repente exclamou. - Meu Deus!

- Leu de novo a notícia que tanto o surpreendera, depois disse. Então,

ela aceitou seu pedido! Mas por que diabos não me disse nada? Por que
não

me contou ontem? Só que o jornal publicou errado... aqui estão dizendo

que vocês já se casaram!

- Leia para mim.

- Puxa, mas como é que foram cometer um erro desses? - comentou


Freddy

admirado. - Ouça, está escrito assim: - "Realizou-se ontem


secretamente o

casamento entre o Quinto visconde Ockley, de Ockley Hall,

Northamptonshire e a srta. Barrington".

- Exatamente, está certo - afirmou o visconde.

Freddy olhou para ele atónito e boquiaberto, mas antes que formulasse
a

pergunta que tinha em mente a porta se abriu e Jemima entrou. Freddy

virou a cabeça e ao vê-la ergueu-se imediatamente.

- bom dia, Jemima -, disse Valient. - Quero lhe apresentar meu melhor
amigo, Frederick Hinlip. Freddy, esta é minha esposa, Jemima
Barrington,

agora viscondessa de Ockley.

31

Por instantes, Freddy ficou sem fala por completo. Os olhos de Valient

brilhavam com cinismo e ele parecia estar se divertindo.

- Desculpe eu ter me atrasado... - disse Jemima - mas é que dormi


demais.

Estava tão cansada!

- Não tem importância - disse o visconde. - Não precisava ter levantado

cedo. Sirva-se, por favor. Não sei se você vai achar a comida muito

apetitosa, em todo caso...

- Claro que vou, eu ainda estou com fome - sorriu Jemima. O visconde

ficou meio sem jeito.

- Kingston não levou comida para você, ontem?

- Levou o que ele conseguiu arranjar. Disse que o cozinheiro já havia

saído.

Freddy, afinal, recuperou a fala.

- Isso é alguma brincadeira? - perguntou ele, sem entender nada.

- É claro que não! - respondeu Valient. - Se você quer saber a verdade,

vou lhe contar, mas não é para espalhar para todo mundo. Niobe
realmente

preferiu o marquês e Jemima, a prima dela, estava louca para fugir das

garras do tio. Coisa, aliás, que não censuro!

Freddy fitava os dois com olhos semicerrados.


- Quer dizer que se casou para se vingar de Niobe?

- Você entende rápido, Freddy. Foi justamente isso que eu fiz! Só queria

saber os comentários que estão fazendo lá no clube... e quanto tempo


vão

demorar para descobrir que a Barrington com quem me casei não é a


que

estão pensando!

- Sem dúvida, você resolve as coisas de um modo-mui to especial!

- comentou o amigo.

Freddy contemplou Jemima com olhos críticos enquanto ela se


aproximava da

mesa e se sentava. Ela sorriu, meio tímida, e ele concluiu que a moça
era

de certa forma atraente se não fosse comparada com a prima.

- Então, estão casados, ora vejam só! Preciso cumprimentá-los. E agora,


o

que pretendem fazer?

- Como assim? - perguntou o visconde. - Você acha que devemos fazer


algo?

32

Estava só imaginando... Por que não tive o prazer de conhecê-la

antes, milady?

- Eu não tinha permissão de ser apresentada aos convidados de meu tio,

nem de frequentar as festas para as quais ele e a filha eram convidados


-

respondeu Jemima. - É que sou apenas uma parenta pobre.

- Parenta pobre? - repetiu Freddy, incrédulo.


- Muito pobre - confirmou ela. - Minha fortuna resume-se em dois
guinéus.

De novo Freddy olhou atónito para o visconde.

- Pois é, não é para contar a ninguém - disse o visconde - mas Jemima

estava fugindo para Londres, só com esse dinheiro e sem ter onde ficar

nem a quem recorrer.

- Meu Deus! Então você foi a salvação para ela - disse Freddy -, embora

também tivesse tido seus motivos para se casar assim tão

precipitadamente!

- E eu sou muito grata a ele por isso. - Fitou o visconde sentado à sua

frente e quando seus olhares se encontraram ela teve a impressão de


que

era a primeira vez que ele olhava para ela. - Só que estava com medo
de

que hoje já estivesse arrependido de sua benevolência...

Freddy percebeu o olhar e falou apressado.

- Bem, creio que vocês desejam ficar a sós e você, Valient,


naturalmente

não vai mais comigo à luta de boxe em Hampstead Heath conforme


tínhamos

combinado, não é?

- É claro que vou! - respondeu o visconde de imediato. - Tenho certeza


de

que o sargento Jenkins vai ganhar e pretendo apostar nele!

Freddy olhou de um para outro.

- E a sua esposa?
- Ah, será que eu não poderia ir também? - pediu ela. - Adoraria ver
uma

luta, eu sempre tive vontade!

- Uma lady nunca frequenta esse tipo de lugar - retrucou o visconde.

- Ah, eu esqueci que agora sou uma lady... é difícil me acostumar com a

ideia.

- É, sua primeira aparição em público deve ser de modo apropriado,


milady

- disse Freddy, depois olhou para o visconde. - Sem dúvida

33

você deve estar sabendo que todo mundo vai ficar louco para conhecer
sua

esposa. Imagino que a essa hora os comentários já devem estar


fervilhando

e quando descobrirem que não foi com Niobe que você casou vão ficar

mortos de curiosidade para conhecer sua mulher!

- É claro que vão ficar curiosos e acho isso ótimo! Niobe vai ficar

furiosa - disse Valient.

- Isso é verdade - disse Jemima. - Será que... posso pedir algo?

- Certamente - respondeu o visconde.

- É que... - Jemima corou enquanto falava. - Bem, eu saí do jeito que

estava... não trouxe nada.

- Nada? - espantou-se Freddy.

- É, foi tudo tão de repente! Eu desci e vi a carruagem, logo depois da

surra que levei de tio Aylmer, e achei que era minha chance de
escapar...
não aguentava mais...

- Quer dizer que sir Aylmer costumava bater na senhora, milady? Não é

possível!

- Pode parecer impossível, mas é verdade -, retrucou Jemima e se virou


de

costas. O vestido que usava tinha sido de Niobe e era um pouco grande

para ela, além de ter um pequeno decote atrás. Por isso, os dois
puderam

ver bem os vergões vermelhos, marcando a pele branca e delicada, que

chegavam quase até o pescoço. Ela se virou de frente de novo.

- Estão vendo? Mais para baixo está pior ainda! Agora sabem que não
estou

mentindo.

- Mas isto é um despropósito! Que coisa absurda! - indignou-se Freddy.


-

Aquele homem é um monstro!

- Eu jamais gostei dele e sempre o considerei um intrometido


acrescentou

o visconde -, mas nunca imaginei que ele fosse tão vil a ponto de tratar

com brutalidade uma delicada jovem!

Olhou para Jemima, enquanto falava, e achou que ela parecia uma
menina,

pequena e frágil. Por um instante, passou por sua cabeça a ideia de que

poderia ser acusado de raptar uma menor, porém logo se lembrou de


que sir

Aylmer não ia querer fazer alarde do caso para que o mundo social em
que
vivia ficasse sabendo o modo brutal e repulsivo com que tratava uma

parenta pobre que estava sob sua tutela.

34

Estava pensando - disse Freddy, depois de uma longa pausa que assim
como

milady está...

Ora, pelo amor de Deus, Freddy, chame-a de Jemima e trate-a de

você! - interrompeu o visconde. - Senão, parece que você está falando


de

minha mãe!

- Está bem. O que eu quero dizer é que já que Jemima vai ter que
comprar

algumas roupas, é melhor que faça um enxoval digno de uma lady. É


preciso

que fique patente porque entre ela e Niobe você a preferiu!

Tanto o visconde quanto Jemima entenderam de imediato o que ele


estava

tentando dizer, com muito tato, para não ferir a suscetibilidade da


moça.

- Meu Deus! Eu vou mesmo ter roupas novas, lindas, e feitas


especialmente

para mim? Mal posso acreditar! Há dois anos que eu só uso os vestidos

velhos de Niobe, que ela não quer mais, e por mais que eu tente
reformá-

los nunca ficam bem em mim. Eu sou morena e mamãe sempre dizia
que cor

pastel não combina comigo!

- Pois compre quantos vestidos quiser - disse o visconde -, e é melhor ir


à loja de madame Bertha. Eu já estou mesmo devendo uma grande
quantia a

ela!

- Você tem conta na madame Bertha? - disse Jemima atónita, mas


depois de

alguns instantes caiu na risada. - Ah, mas é claro, como sou boba!
Devia

ser lá que você comprava presentes para as mulheres com quem


andava!

- Meu Deus! Isso não são modos de falar! - repreendeu o visconde.


Tanto

ele quanto Freddy estavam tão espantados com o jeito dela que

Jemima corou.

- Desculpe... não sabia que era errado...

- Claro que é errado - disse o visconde. - Você não devia nem saber
uma

coisa dessas, quanto mais mencionar o assunto! Não posso Creditar que
seu

tio tenha...

- Não foi tio Aylmer que falou nisso, foi um primo, Oliver Barington.

- Que sujeito mais inoportuno! - comentou Freddy. - Aliás, eu nunca

suportei Oliver, desde os tempos de escola.

35

- Concordo com você - disse o visconde -, e quanto a você, Jemima, é

melhor esquecer as besteiras que seu primo lhe disse.

- Ah, ele não disse díretamente para mim. É que as pessoas sempre
acham
que os criados são surdos e imbecis e falam coisas indiscretas perto

deles. E parentes pobres estão na mesma categoria de empregados...

Freddy não pôde deixar de rir.

- Pois, minha cara, agora você tem de esquecer essa história de parente

pobre. Valient não pode ter uma esposa humilde. Portanto erga a
cabeça e

trate de convencer a todos que Valient escolheu a melhor esposa do


mundo.

Jemima fitou-o de olhos arregalados e disse com voz ténue:

- Acha mesmo que... que eu consigo...

- Você tem que conseguir - disse Freddy. - Valient se meteu nessa... -

ele ia dizer "encrenca", mas trocou a palavra a tempo situação e é muito

importante que nem Porthcawl nem Niobe riam dele agora!

- Ah, isso não! É claro, eu entendo! - disse Jemima. - Talvez fosse

melhor... eu desaparecer, ir embora... - Ela suspirou. - Acho que foi um

erro eu ter concordado em me casar com você... mas é que, naquela


hora,

me pareceu tão maravilhoso que você pudesse me ajudar num


momento de

desespero tão grande...

- Fico contente de ter podido ajudá-la - disse o visconde com deter

minação -, mas Freddy tem razão. Agora temos que enfrentar a situação
de

cabeça erguida, não podemos ficar feito cachorros escorraçados, com o

rabo no meio das pernas,

- Assim é que se fala, meu caro! - aprovou Freddy. - Agora está nas
mãos
de Jemima.

Freddy a contemplou de onde estava e Jemima sentiu que ele a estava

analisando, estudando os pontos favoráveis.

- Farei o que vocês quiserem e acharem melhor - disse ela -, mas estou

bem ciente de que não posso me comparar a Niobe.

- Lembro-me de uma vez - disse Freddy -, quando criança, em que


perguntei

a mamãe se ela gostava mais de mim ou de meu irmão Ela pegou duas
flores

do jardim, uma rosa e um lírio, e depois me disse

36

Qual das duas você acha mais bonita?.

- Não sei, mamãe - respondi eu -, as duas são lindas de forma


diferente.

Cada uma tem sua beleza especial.

Justamente! - disse ela. - Não se pode estabelecer comparação

entre elas. As duas são dignas de admiração. E é assim que eu me sinto

também com você e seu irmão Charlie. Vocês são duas pessoas
diferentes e

eu admiro e amo os dois como meus filhos. Não existe primeiro e


segundo, só

dois garotos que eu adoro.

- Que resposta maravilhosa! - encantou-se Jemima. - Vou dar bem


isso,

caso aconteça o mesmo com meus filhos. - Depois, percebendo o que


dissera,
ela corou e mudou de assunto. - Vou me esforçar para ficar o melhor
que

posso! Talvez com vestidos bonitos e o cabelo bem penteado milorde


não se

envergonhe de mim...

- Não tenho a menor intenção de me envergonhar, ao contrário,


pretendo me

orgulhar de você! - disse o visconde num tom de voz que soou um


pouco

forçado.

Houve uma pequena pausa, depois Jemima disse:

- Então... será que poderia fazer o favor de ir comigo e ajudar-me a

escolher os vestidos certos? Eu não sei se saberei escolher sozinha .O

visconde olhou-a com ar de surpresa e Freddy riu.

- Por que não, Valient? Você tem bom gosto, como já pôde demonstrar
em

várias ocasiões... - disse com malícia.

- Ora, cale-se! Está se mostrando pior do que Oliver BarringtoH'

- Não diga isso nem brincando! - retrucou Freddy. - Mas, minhas irrnãs,

quando querem comprar roupas para ocasiões muito especiais


costumam desfilar

com os vestidos para mim, para que eu dê palpit e ajude na decisão.

- Pois bem - decidiu o visconde -, nós iremos com Jemima fazer as


compras.

- Mas não podemos sair com ela assim como está agora! - disse Freddy

depressa.

- Por que não? - perguntou o visconde.


- Porque depois de meia hora toda Londres já estará comentando que,

perdoe-me, Jemima, ela não está à altura de ser sua esposa.

Jemima sabia que ele tinha razão. O vestido que usava ainda estava

37

todo amassado, por ela ter ficado deitada no chão da carruagem sob a

manta, embora o tivesse dependurado cuidadosamente quando o tirara


à

noite. E, além do mais, estava grande para ela e a cor não combinava
nem

um pouco, deixando sua pele pálida. Quanto ao cabelo, estava solto e

rebelde, sem um penteado da moda. Nunca tivera tempo ou meios de


cuidar

da aparência e Niobe não gostava de vê-la bem-arrumada. Naquele


momento

tomou consciência de como devia estar causando má impressão a lorde

Hinlip e ao próprio visconde. Passou a mão pelos cabelos, um tanto

constrangida e sem jeito.

- Faremos o seguinte - disse Freddy. - Primeiro mandarei minha


carruagem

a Bond Street para trazer madame Bertha aqui com alguns vestidos
para que

Jemima possa se trocar e depois iremos fazer compras. E, se você me

permite, Valient, vou transformá-la numa Prima Donna.

Jemima bateu palmas, entusiasmada.

- Isso seria maravilhoso... maravilhoso! - fez uma pausa e depois

acrescentou. - Mas, e a luta de boxe, não vou atrapalhar?


- A luta é às duas horas - disse Freddy - e não vamos demorar tanto
assim

fazendo compras. Temos bastante tempo ainda.

Jemima estava maravilhada. Era a coisa mais emocionante que


acontecera em

sua vida. E mal cabia em si de contente quando, duas horas mais tarde,

saiu na companhia do visconde e Freddy, toda arrumada com um


vestido cor

de morango e chapéu com flores combinando. Entraram os três na


carruagem

e foram para Bond Street.

Não visitaram só a loja de madame Bertha, foram também a outras


onde

tanto o visconde quanto Freddy eram bem conhecidos.

Cada vez que Jemima era apresentada como a nova viscondessa, a

proprietária ficava toda sorridente e querendo agradar. Quando, às


quinze

para uma, ela voltou para casa, cheia de roupas novas, estava se
sentindo

a heroína de um conto de fadas. Os três iam conversando na


carruagem.

- Ainda há muitas outras coisas que você precisa comprar... sombrinhas,

sapatos, luvas e coisas assim, mas isso você pode comprar hoje à tarde

mesmo, enquanto vamos assistir a luta. Só que não deve sair sozinha -

disse Freddy.

- E quem vou levar comigo?

- Uma de suas criadas pode acompanhá-la, não é, Valient?


38

Posso levar a criada que foi me acordar hoje de manhã? - pediu

Jemima. - Ela me pareceu simpática.

É, pode sim - respondeu o visconde com um tom de desinteresse.

Obrigada... muito obrigada por dizer que eu posso comprar o

que quiser. E mil vezes obrigada por todas essas coisas maravilhosas
que

acaba de me dar! Nunca pensei... nunca sonhei que um dia pudesse ter

vestidos tão lindos!

- Tenho certeza de que vai ficar muito bem com eles - disse o visconde
no

mesmo tom de voz que usara antes.

Freddy percebeu um certo desapontamento no olhar dela.

- Sabe o que acho que devemos fazer? - disse ele depressa. Acho que

devemos comemorar depois da luta. Valient, você deve convidar os


amigos

para jantarem com vocês hoje. Tenho certeza de que todos ficarão

encantados de conhecer Jemima!

- Está bem - concordou o visconde. Depois, virou-se para a esposa.

- Diga a Kingston para avisar o cozinheiro que eu quero que providencie

jantar para umas dez pessoas.

- Eu direi. - respondeu ela, sentindo-se importante.

Quando pararam diante da casa, Freddy ajudou-a a descer da


carruagem.

- Ponha seu melhor vestido, Jemima - disse ele, baixinho -, não se

esqueça que precisa impressionar bem os amigos de Valient. É muito


importante!

- Eu não esquecerei.

Freddy apertou de leve a mão dela e subiu de novo na carruagem.


Enquanto

se afastavam, ele virou-se e viu-a ainda parada no último degrau.


Parecia

tão frágil e desamparada! Acenou e ela respondeu.

- Sabe de uma coisa, meu caro Valient - disse ele virando-se para

O amigo. - Você é mesmo um homem de sorte!

39

CAPÍTULO III

Assim que a carruagem desapareceu, virando a esquina, Jemima entrou


e um

dos empregados veio correndo até a porta.

Era Hawkins, um homem baixo, magro, que tinha sido ordenança de


Valient

enquanto ele estava no exército e voltara à vida civil junto com ele,

servindo-o como empregado, conforme a governanta tinha lhe contado


na

véspera.

- Milorde já foi embora? - perguntou ele, ainda ofegante.

- Foi - respondeu Jemima. - Ele e lorde Hinlip foram assistir a luta em

Wimbledon Common.

Hawkins resmungou algo ininteligível e Jemima perguntou:


- Por que, aconteceu algo errado?

- É, milady, aconteceu sim... não sei o que fazer.

- Talvez eu possa resolver ou ajudar. Diga o que é. Hawkins ficou um

tanto embaraçado antes de responder.

- Bem, milady, é que os empregados estão indo embora.

- Indo embora? Mas por quê?

Houve um silêncio, depois o criado disse, constrangido.

- Eles não gostaram de milorde ter se casado... Jemima olhou-o,

consternada.

40

- Mas eu não pretendo criar problemas!

Ao mesmo tempo, pensou na poeira acumulada na casa, nos lençóis

encardidos, na refeição fria que tinham lhe servido na véspera, nos


maus

modos e concluiu que os Kingston não seriam uma grande perda.


Entretanto,

como não sabia qual seria a reação do visconde, disse

apenas:

- Vou falar com eles. Tenho certeza de que quando eu disser que

não pretendo interferir na rotina da casa, eles resolverão ficar. Será

que pode me mostrar onde fica a cozinha?

- Certamente, milady.

Sem que houvesse explicação para isso, ela teve a impressão de que

Hawkins pensava o mesmo que ela a respeito dos Kingston.


Atravessaram um corredor e desceram uma escada que, sem a menor
dúvida,

estavam precisando de uma bela limpeza. No andar de baixo, o chão

ladrilhado estava imundo.

Ao passarem pela despensa, Jemima viu um objeto de prata saindo para


fora

de uma maleta de couro que estava no chão. Parou na porta e Kingston

surgiu de trás de um armário com um candelabro de prata na mão.

Jemima entrou na despensa.

- Parece que você e sua mulher estão abandonando a casa de lorde


Ockley,

não é isso? - disse ela num tom de voz que soou corajoso.

Percebeu que Kingston surpreendeu-se ao vê-la e imediatamente


recolocou o

candelabro no armário, antes de responder, em tom grosseiro. - Fomos

contratados para trabalhar para um homem solteiro.

- Posso entender o descontentamento de vocês - retrucou Jemima - mas

naturalmente é de se esperar que peçam demissão com certa


antecedência.

Não podem sair assim de repente.

- Nós vamos já! - disse Kingston, com petulância e ar de pouco caso. -

queremos receber os salários a que temos direito.

Jemima olhou para a maleta preta e viu que o objeto de prata que
estava

saindo para fora era o pé de um candelabro, par daquele outro que ele

tinha tirado do armário.

- Creio que você ia levar este candelabro que está ali na maleta para
41

consertar, mas já que vai embora, pode deixar que eu providencio isso.

Quer fazer o favor de guardá-lo de novo no armário?

Houve um silêncio pesado e por instantes ela temeu que Kingston fosse

desafiar sua ordem, mas então Hawkins, que ficara parado na porta
entrou

e ele mudou de atitude.

- É verdade, milady, eu ia levar os candelabros para consertar - ele

respondeu. - Eu não disse? Tinha certeza de que a senhora ia começar a

interferir e ficar criticando o serviço, por isso não vou mais ficar para

ouvir reclamações.

- Dobre a língua - repreendeu-o Hawkins com rispidez -, e trate milady

com respeito! Isso não é modo de falar!

Kingston sabia que não estava com a razão e entregou os pontos.


Retirou o

candelabro da maleta e Jemima viu que lá dentro havia vários outros

objetos de prata. Ela não disse nada, apenas ficou olhando até que a

maleta ficasse totalmente vazia. Então, Hawkins adiantou-se, trancou a

porta do armário e entregou a chave a ela.

- Obrigada, Hawkins.

Jemima sabia que ela o estava agradecendo não apenas por lhe
entregar a

chave mas sim pelo apoio que dera a ela. Assim que saiu da despensa,
ela

o ouviu dizer:

- O quanto antes sair daqui, melhor, senão vou dar parte de você à
polícia!

Kingston respondeu com um palavrão que Jemima fingiu não ter


escutado

enquanto ia para a cozinha. Hawkins apressou o passo e alcançou-a na

porta.

A sra. Kingston estava lá, toda arrumada, pronta para sair e em cima da

mesa havia uma porção de pacotes ao lado de uns restos de comida. Ela

olhou com animosidade para Jemima e já ia dizer algo rude quando


Hawkins

impediu-a, dizendo:

- Você não vai embora enquanto não abrir todos esses pacotes e
mostrar

a milady o que tem dentro! Acabamos de surpreender seu mari do com


os

candelabros de prata na maleta. - A sra. Kingston ficou sem fala e

Hawkins continuou: - Você sabe tão bem quanto eu qual é pena para
quem

rouba seja lá o que for!

A governanta deu um grito, pegou uma cesta que devia conter

42

roupas dela, passou correndo por Hawkins e saiu antes que ele pudesse

dizer qualquer outra coisa.

Ouviram-na chamar o marido, lá fora, em seguida o ruído do portão dos

fundos batendo e depois o silêncio.

- , Bem, eles se foram! - disse Hawkins. - E se quer saber minha


opinião,

milady, acho que já foram tarde. Eles não prestam.


- Eu também achei isso - retrucou Jemima. - Só não queria ter de

aborrecer meu marido.

- Os Kingston beberam o vinho dele e dividiram entre os três a metade


do

dinheiro que milorde deixou para o cozinheiro comprar comida.

- Onde está o cozinheiro, agora?

- Foi embora, há uma hora. Ele estava com medo que a senhora
descobrisse

o que estavam tramando, milady.

- Por que você não avisou lorde Ockley que eles o estavam atraiçoando?

Hawkins refletiu por alguns instantes, antes de responder.

- Por que estou acostumado assim, milady. No exército, é cada um por


si.

Viver e deixar viver. Se milorde tivesse perguntado, eu teria lhe contado

a verdade, mas como não falou nada achei que não devia criar
problemas.

- Acho que posso entender sua posição - disse Jemima. - Agora, que tal

vermos o que eles iam levar embora?

Abriram os pacotes sobre a mesa e descobriram que continham vários

pequenos objetos recolhidos da casa, alguns dos quais bastante


valiosos,

outros meras bugigangas, mas Jemima ficou contente que tudo tivesse
sido

salvo das mãos dos ladrões.

Só quando estavam colocando os objetos numa bandeja para


recolocálos nos

lugares certos, é que Jemima lembrou-se do recado do visconde.


- E, agora, o que vamos fazer, Hawkins? - disse ela aflita. Lorde Ockley

disse que teremos, no mínimo, uns dez convidados para Jantar hoje!

- Duvido que consigamos arranjar outros empregados tão depressa


assim,

milady...

- Pois, então, já sei o que vamos fazer!

43

-f

O visconde voltou da luta com um bom humor extraordinário. Tinha se

divertido a valer, não apenas observando a luta, cujo vencedor foi o

sargento em quem apostou e que arrasou o adversário em vinte e seisf

rounds, mas também recebendo com cinismo os cumprimentos de seus


amigos

e conhecidos que ficaram sabendo do casamento.

Não pôde deixar de pensar que todos eles estavam sendo tão efusivos I
e

amáveis só por saberem da grande fortuna de Niobe.

A atitude dos amigos, em geral, era de quem o considerava


extremamente

inteligente e hábil por ser bem-sucedido num golpe invejável. Enquanto

que o visconde estava tão eufórico de não ter sido humilhado: quanto
um

garotinho que consegue roubar uma maçã de um pomar sem ser pego.

Voltaram, como sempre, na carruagem de Freddy com o visconde se


gurando

as rédeas. Freddy sabia que o amigo manejava os cavalos e bera melhor


do
que ele e por isso preferia deixá-lo conduzir.

- Por quanto tempo vai continuar com essa farsa? - perguntou Freddy,

assim que ficaram a sós.

- Até que eles descubram a verdade.

- Vão ficar furiosos quando perceberem que você os fez de tolos!

- Não poderão dizer nada. Afinal, eu casei com uma Barrington, não
menti

quando publiquei a notícia, nem disse a eles que tinha me casado com

Niobe. Ah! Só gostaria de ser uma mosca para poder escutar o que ela e
o

pai estão dizendo disso tudo!

- Meu caro amigo, você está se tornando um sádico!

- Ora, ela jogou sujo comigo e merece o mesmo em troca - disse o


visconde

com displicência.

- É, quanto a isso, concordo com você, mas ao mesmo tempo não posso

deixar de achar que você está patinando em gelo fino, Valient.

O visconde ficou em silêncio por alguns instantes.

- Veremos o que acontece esta noite - disse ele, depois. - Você viu
quem

eu convidei para jantar?

- É, confesso que fiquei surpreso com sua escolha.

- Alvanley é o maior tagarela e espalha-boatos de Londres e se ele

aprovar Jemima os outros seguirão a atitude dele. Chesham é um


grande

admirador da beleza feminina e não resiste a um rosto bonito...


44

Freddy não disse nada e depois de uma pausa o visconde acrescentou:


sei o

que está pensando, mas acontece que ele não gosta de Niobe.

Por quê?

Ela o desprezou antes de saber quão importante ele era. Depois

que descobriu e tentou reconquistá-lo ele não quis mais saber, não se

deixou levar.

- Isso é bem próprio dela! Se quer saber minha opinião, Valient, quanto

mais ouço falar de Niobe e do pai, mais me convenço de que você


deveria

agradecer o fato de ter se livrado deles e não procurar se vingar!

- Nós vemos as coisas de modo diferente - disse ele, apenas,


encerrando o

assunto.

O visconde acabou chegando tarde em casa porque não resistiu à


tentação

de parar um pouco no clube White só para ouvir o que tinham a dizer


sobre

seu casamento.

Algumas pessoas ele já havia encontrado durante a luta, mas muitos


tinham

passado a tarde ali nas confortáveis poltronas do clube comentando


sobre

acontecimentos da sociedade e era a opinião desses que ele queria


ouvir.

Só quando Freddy percebeu que já era tarde e o chamou para ir embora


é
que o visconde saiu e dirigiu a carruagem a toda velocidade para
Berkeley

Square.

- Só espero que o cozinheiro tenha feito um bom serviço, pelo menos


dessa

vez! - disse ele puxando as rédeas e fazendo os cavalos pararem diante


da

casa.

- Você devia ter esperado até que Jemima se acostumasse a ser uma
dona-

de-casa. Ela mal acabou de chegar! - comentou Freddy.

- Jemima? Ora, duvido que ela saiba como dirigir uma casa! E, dePois,

agora é tarde demais.

Os dois se olharam apreensivos.

- É melhor servir bastante vinho. Isso sempre esconde possíveis falhas.

O visconde desceu da carruagem, subiu correndo os degraus de entrada


e

quem o recebeu foi Hawkins e não Kingston.

45

- Está bem, Hawkins - disse ele -, sei que estou atrasado mas espero
que

tenha providenciado tudo para mim.

Sem esperar resposta ele subiu a escada, de dois em dois degraus e

encontrou, tal como esperava, seu banho preparado e suas roupas


limpas

estendidas sobre a cama.


Ainda estava tão alvoroçado com os cumprimentos e imaginando o que
os

convidados iam achar de Jemima que não reparou em mais nada.


Tomou banho e

arrumou-se depressa e quando desceu as escadas, impecavelmente


vestido,

viu lorde Alvanley, lorde Worcester e sir Stafford Lumley entrando no

saguão.

Cumprimentou-os com grande efusão e conduziu-os até a sala


descobrindo,

surpreso, que Freddy já estava lá. Ele tinha ido até a casa dele, trocado

de roupa, voltado, e ainda chegara antes do visconde.

Não havia o menor sinal de Jemima e quando chegaram mais quatro

convidados ele já estava pensando em mandar chamá-la, quando seu


criado

se aproximou e disse em voz baixa:

- Mtlady manda pedir desculpas, milorde, mas diz que está atrasada e
não

pode vir já. Pediu que o senhor começasse o jantar sem ela.

O visconde franziu a testa, mas sabia que era incorreto demonstrar

aborrecimento em público, por isso disse apenas:

- Diga à lady que venha o mais rápido possível! - E voltou-se para os

convidados.

Tudo estava em ordem e bem arrumado, as bebidas providenciadas com

capricho e exatamente na hora marcada o jantar foi anunciado.

O visconde desculpou-se pela ausência da esposa e conduziu as visitas

para a sala de jantar.


Assim que foi servido o prato de entrada o visconde percebeu de
repente

que quem estava servindo à mesa era seu criado de quarto e uma
jovem que

era arrumadeira da casa.

Já ia perguntar o que acontecera a Kingston quando se lembrou que não

seria de bom-tom, naquele momento. e como o jantar transcorria


perfeito,

sem a menor falha, ele não se preocupou mais com isso.

Percebeu, satisfeito, que a comida estava melhor do que nunca. Jamais

provara coisas tão deliciosas e até Alvanley, que era um conhecido

gourmet, fizera elogios a pelo menos dois dos pratos.

46

fjawkins mantinha todas as taças cheias de vinho, com presteza e


atenção,

havia um clima de jovialidade e bom humor e a conversa estava mais

animada que de costume.

A única coisa que aborrecia o visconde era aquela cadeira vazia na outra

cabeceira da mesa. Não conseguia imaginar por que Jemima estava


demorando

tanto. Pensou que talvez os vestidos novos não tivessem sido entregues
ou

que talvez ela tivesse tido um súbito ataque de timidez, o que era mais

improvável.

Finalmente, quando serviram pêssegos, uvas moscatel e castanhas


como
sobremesa, a porta se abriu e Jemima entrou na sala. O visconde a viu

primeiro, e se ergueu de imediato. Os convidados olharam para a porta

e ao vê-la levantaram-se também. Ele não pôde deixar de sentir uma

satisfação íntima ao constatar que ela estava linda

e extremamente atraente.

O vestido cor de carmim, ornamentado com tule e babados nos ombros


e na

barra, realçavam a pele alva e acetinada. Os cabelos negros bem


penteados,

de acordo com a última moda, por um cabeleireiro que Hawkins


trouxera à

tarde, estavam brilhantes e com reflexos azulados e deixavam à mostra


o

rosto delicado onde brilhavam os enormes olhos escuros.

Ela se aproximou da mesa e quando o visconde percebeu os olhares de

interrogação das visitas, disse:

- Permita que lhe apresente meus amigos. Cavalheiros... minha esposa!

Foi com grande satisfação que ele ouviu um ligeiro murmúrio antes que

Jemima inclinasse a cabeça num gesto de cortesia e se sentasse à

cabeceira da mesa, na cadeira que Hawkins puxou para ela.

- Peço que me desculpem o atraso - disse ela, com voz suave e Musical,

quebrando o silêncio que se seguira à apresentação.

- Estava preocupado com a demora - retrucou o visconde. Creio que


você

perdeu um excelente jantar. Faço questão de elogiar Pessoalmente o

cozinheiro amanhã cedo.


Um brilho de malícia passou pelos olhos de Jemima, mas ele não
entendeu.

- Espero que faça isso mesmo, milorde.

47

Lorde Alvanley foi o primeiro que teve a coragem de formular a


pergunta

que estava formigando na língua de todos.

- Deve ter havido um erro de imprensa na Gazette dessa manhã Ockley


-

disse ele -, pois do jeito que saiu a notícia entendi que você havia se

casado com a senhorita Barrington.

- A notícia estava certa - retrucou o visconde laconicamente - acontece

apenas que minha esposa é sobrinha de sír Aylmer e não filha dele.

Todos os presentes ficaram atónitos, com exceção de Freddy, é claro, e

várias exclamações foram ouvidas. O visconde não pôde deixar de achar

graça na maneira como todos se portavam para se adaptarem à


novidade

- Pois quero ser o primeiro a ter o privilégio - disse, afinal, lorde

Chesham que estava sentado à direita de Jemima - de brindar à saúde


da

noiva e desejar a ela felicidades. E, é claro, cumprimentar Ockley pela

escolha.

Não havia dúvidas de que ele falava com sinceridade e Jemima olhou
para

ele com um sorriso que, como sempre, formava covinhas em suas faces.

Estava mesmo tão bonita e encantadora que todos os brindes feitos e


todos
os elogios ditos foram sinceros.

Lorde Worcester, que estava sentado perto do visconde, expressou o


que

todos deviam estar pensando.

- Você, meu caro Valient - disse ele -, está sempre surpreendendo


mesmo

seus amigos mais íntimos! Hoje, sem dúvida, você nos nocauteou a
todos,

tal como o sargento Jenkins na luta.

O visconde sorriu complacente e o lorde disse em voz baixa, só para ele

escutar.

- E o que houve com Niobe? Eu estava certo de que você e ela estavam

apaixonados.

- Meu caro, sempre achei mais prudente esconder minhas cartas num
jogo -

retrucou o visconde sem responder.

- E neste jogo escondeu bem mesmo! Mas eu não o censuro por isso. Se
os

outros a tivessem visto antes, estou certo de que você teria de vencer

vários rivais para conquistá-la. Ela é fascinante!

E essa foi a palavra mais usada pelos convidados, quando mais tarde,

depois de saírem da casa do visconde, queriam descrever Jemima.

48

Todos, cada um por sua vez, fizeram elogios sinceros quando se


despediram

dela e muitos tentaram em vão fazê-la explicar por que não havia

aparecido na sociedade até então.


Era óbvio que todos os cavalheiros ali presentes acharam que havia
algum

mistério ou talvez até certa esperteza por parte do visconde por havê-la

mantido escondida e só aparecer já como esposa dele. Estavam todos

admirados por terem descoberto a existência dela só naquele momento.

- Não posso imaginar por que nunca a encontrei na casa de seu tio -

diziam todos eles, mais ou menos do mesmo jeito. - Ou será que não
morava

lá com ele, é isso?

- Quando meus pais eram vivos eu morava em Kent com eles -,


respondia ela

de modo evasivo.

Conseguia se esquivar de todas as perguntas sem mentir e evitando


uma

resposta direta de tal modo que quando as visitas se retiraram sabiam


tão

pouco sobre ela como quando chegaram.

A única coisa que conseguiram saber era que o visconde tinha se casado
e

que a noiva não era quem estavam imaginando, mas sim uma jovem
miúda e

delicada, amável, encantadora e fascinante que ouvia com atenção tudo


o

que lhe diziam e corava graciosamente a cada elogio que ouvia

Muitos dos cavalheiros ali presentes tinham sido tratados com


arrogância

e desdém por Niobe que, se deixara estragar pelo sucesso de sua


beleza.
Antes mesmo da festa terminar, tanto o visconde quando Freddy tinham

certeza de que os comentários sobre a "esposa de Ockley" seriam os


mais

favoráveis.

Quando todos se foram, e só Freddy ficou, o visconde disse a Jemima:

- Por que diabos, afinal, demorou tanto para aparecer e não jantou

conosco? Pensei que tivesse tido um ataque de nervos ou qualquer coisa

assim.

Ele não falava em tom de censura, pois estava com excelente humor
devido

ao sucesso do jantar. Estava até mais eufórico do que à tarde. Jemima

contemplou-o por instantes, depois disse:

49

- Aposto um guinéu como você não adivinha o motivo. O visconde


refletiu

por um momento.

- Creio que, como todas as mulheres, você demorou demais para se


arrumar

ou o cabeleireiro se atrasou. Lembra-se, Freddy, daquela bailarina que

nunca cheg... - ele interrompeu bruscamente, lem brando-se que


Jemima era

uma senhora. - Pois bem, diga qual foi o motivo.

- Você perdeu a aposta - disse Jemima e estendeu a mão aberta para


ele. -

Pode me pagar!

- Ei, espere um pouco! Primeiro quero saber o motivo.

- Bem, na verdade, foi por causa do jantar que me atrasei.


- O jantar? Como assim? Você preferiu jantar sozinha? E por falar

nisso... o que houve com Kingston? Por que Hawkins é que estava
servindo

à mesa?

- É justamente isso o que eu ia explicar. - Jemima fez uma pausa

- Sinto muito mas os Kingston foram embora.

- Embora?

- É. Hawkins e eu ainda conseguimos impedi-los de levar uns objetos de

prata que estavam roubando - acrescentou ela depressa antes que ele

dissesse algo.

- Não é possível uma coisa dessas! Sabia que Kingston bebia mas
sempre

pensei que fosse honesto! - admirou-se o visconde.

- Pode perguntar a Hawkins, se quiser. E eles foram embora porque


acharam

que não iam poder continuar roubando agora que você casou e tem uma

esposa para tomar conta da casa.

Os olhos do visconde se anuviaram ameaçadoramente e Freddy se


apressou em

dizer:

- Sempre achei Kingston um imprestável e muito insolente, E bebia


demais

mesmo, aliás, da sua adega, meu caro. Tenho certeza de que Jemima
irá

encontrar criados bem melhores do que esses!

- Não gosto que a rotina doméstica seja perturbada! - disse o visconde

com petulância. - Em todo caso, pelo menos o cozinheiro saiu-se bem e


mostrou grande competência!

- Muito obrigada - disse Jemima. - Estou pronta para ouvir os elogios


que

você disse merecer o jantar

50

por instantes os dois homens se entreolharam e depois olharam fixo ara

ela como se não acreditassem no que acabavam de ouvir.

Freddy falou primeiro.

Está nos dizendo que foi você quem fez o jantar?

É. Não havia mais ninguém para fazer... e devemos agradecer a

Hawkins também. Ele comprou todos os ingredientes necessários em


tempo

recorde. Depois eu fiz a comida e ele serviu. Foi isso.

Houve um silêncio total, depois o visconde começou a rir alto e, como se

fosse contagioso, Freddy riu também e depois Jemima.

- Meu Deus!... Se eles soubessem! - disse o visconde sacudido pelo riso.

- A noiva que eles pensavam ser a mais rica herdeira, preparando a

refeição que eles comeram e depois aparecendo linda, com o frescor de

quem repousou o dia todo! Você merece um prémio, Jemima! Se eu sou


um bom

jogador, que gosta de surpreender, você também é! Ah, eles engoliram


tudo

direitinho!... Isca, anzol e linha... ha, ha ha ha...

- Como é que você sabe cozinhar tão bem assim? - perguntou Freddy
quando

o riso diminuiu um pouco e ele conseguiu falar.


- Meu pai gostava de comer bem e mamãe e eu gostávamos de agradá-
lo

porque o amávamos. Por isso, tínhamos vários livros de receitas e

vivíamos preparando coisas diferentes.

- Céus! A comida de hoje foi a melhor que já provei em toda a vida! -

exclamou Freddy.

- Mal posso crer! - disse o visconde. - Pena que não possamos contar
aos

outros porque ficaria mal para Jemima.

- Você quer dizer que não ficaria bem para a esposa do visconde Ockley
-

corrigiu Jemima. - Agora sei que poderia ter arranjado emPrego de

cozinheira se você não tivesse feito de mim uma lady.

- Aliás, acho que as duas coisas são perfeitamente compatíveis disse o

visconde. - com você cozinhando desse jeito para que vou Querer
contratar

um cozinheiro?

- No momento, o que precisamos é de alguém para arrumar a cozinha -


disse

Jemima. - Hawkins levou a louça lá para baixo, mas ainda é preciso


lavar

tudo aquilo.

Freddy riu de novo.

51

- Creio que amanhã, em vez de ir às lojas fazer compras para o seu


enxoval,

você vai a uma agência de empregados domésticos.


- É justamente o que pretendo fazer. Só há uma dificuldade.

- E qual é? - perguntou o visconde.

- É que Hawkins me disse que uma das razões do descontentar de todos

criados, além da minha chegada, é o fato de não estarem recebendo

salários há algum tempo.

O visconde ficou embaraçado.

- Confesso que tenho sido um tanto descuidado em relação a isso mas a

verdade é que meus bolsos estão vazios.

- Mas vamos ter que dar um jeito nisso, não é? - disse ela.

- Concordo plenamente, só que no momento não sei o que poderemos


fazer

para sair dessa situação.

Então os três se lembraram que ele tinha pensado em resolver as

dificuldades financeiras casando-se com Niobe. Freddy ergueu-se de

súbito.

- Bem, eu vou indo. Está na hora de eu me deitar. Foi uma noite

maravilhosa, Jemima, graças a você! E, Valient, meu caro, pode estar

certo de que você riu por último e se vingou de todos, principalmente de

quem mais merecia!

O visconde acompanhou-o até a porta e quando voltou para a sala


Jemima

ergueu-se da poltrona onde estava.

- Bem, creio que está na hora de dizer boa noite. Foi tudo muito

engraçado e excitante mas também me cansei bastante. - disse


Jemima.
- Quero agradecê-la pelo magnífico desempenho desta noite.

- Não é preciso. E, depois, se vamos começar a trocar agradecimentos,


eu

nem sei por onde começar de tão grata que estou a você.

Ela tocou de leve o vestido novo como se mal pudesse acreditar que o

estivesse usando.

- Você está tão diferente da meninínha esfarrapada que se escondeu sob

uma manta, na minha carruagem! - sorriu o visconde.

- Espero que não tenha desperdiçado seu dinheiro comigo, milorde. O

visconde ergueu o cálice de licor que estava pela metade, fazendo

um brinde a ela.

52

- A noite hoje foi um sucesso, Jemima... foi sua consagração definitiva!

Ela se afastou com graça.

Boa noite, milorde. Estou feliz por compartilhar da sua vingança,

ou melhor, do seu triunfo. O café da manhã só será servido depois das

nove horas. Hawkins vai ter de sair cedo para comprar ovos. Nós hoje

comemos tudo o que havia na casa!

Antes que o visconde pudesse dizer qualquer coisa, ouviu os passos dela

se afastando no saguão em direção à escada.

- Um triunfo! - repetiu ele para si e bebeu o resto do licor, satisfeito.

Mas, lá no fundo da consciência, uma voz desagradável lembrou-o de


que

havia um futuro para se preocupar e que, além, de tudo, agora ainda


tinha
que manter uma esposa. com que dinheiro?

Jemima e Emily voltavam para casa depois de uma visita infrutífera à

agência de empregados domésticos. Ela ia pensando se Hawkins tinha


ou não

providenciado as coisas que ela queria para o almoço. Ele passara um

tempo enorme lavando a louça, limpando a cozinha e a copa. Jemima


sabia

que era uma concessão da parte dele pois não era esse seu serviço, mas

ele estava sempre disposto a fazer qualquer coisa em benefício do

visconde.

Jemima refletiu que era fácil julgar o caráter das pessoas,

principalmente dos homens, a partir da lealdade que inspiravam a seus

empregados.

Na casa de seu tio, todos os empregados dele o odiavam e detestavam


Niobe

pela maneira como ela os tratava e falava com eles. Se algum dos

empregados não a agradasse, ela pedia ao pai que o despedisse, sem

motivo, e não o deixava dar cartas de referências. Por isso, ficara

surpresa logo que conhecera os Kingston e não entendia

como o visconde os tinha contratado. Eles não eram em absoluto

O tipo de criados que ela esperava encontrar na casa de um nobre. Mas


logo

Emily forneceu a explicação, enquanto conversavam na carruagem de

aluguel, a caminho de casa.

Eu acho, Emily - disse Jemima -, que nós vamos ter dificuldades


53

em encontrar, nesta época do ano, um casal que sirva. Vi muita

gente do campo passar a temporada em Londres e a procura de


empregados é

muito grande.

- Isso é verdade, milady, ainda mais que milorde não pode pagar os
preços

altos que esses empregados treinados pedem...

Jemima olhou para ela de olhos arregalados.

- Quer dizer que o lorde empregou os Kingston porque eles cobravam

barato? - Emily ficou embaraçada e Jemima insistiu

- Diga-a verdade, por favor, só vai me ajudar.

- Está bem, milady, eu vou dizer. Assim que cheguei a Londrdres eu fui
à

agência da sra. Dawson para conseguir um emprego de domestica. Lá


me

disseram que havia pedido de três casas para eu escolher e uma delas
era a

do visconde. - Ela fez uma pausa e continuou meio sem jeito. - Meus
pais

vivem na propriedade de campo dos Ockley eu ouvia falar do sucesso do

visconde com as corridas de cavalo desde que era pequena... por isso,

disse à sra. Dawson que era na casa do visconde Ockley que eu queria

trabalhar. Ela me respondeu que fiz uma má escolha porque o visconde

pagava mal e que depois eu não fosse reclamar que ela não tinha
avisado.
Eu fiquei admirada, pois pensava que gente com esses títulos era
sempre

rica. Mas logo descobri que a sra. Dawson tinha razão. Às vezes, eu
recebo

meu pagamento mas às vezes não recebo e mesmo assim é sempre


menos do que

eu ganharia em outras casas.

- E apesar disso você continua com o visconde?

- Bem, ele é sempre tão generoso e bonito... achávamos que ele ia sair

logo dessa situação. Todos nós pensávamos isso quando...

Emily parou bruscamente mas Jemima sabia muito bem o que ela ia
dizer. E

pela primeira vez pensou que se até os empregados estavam contando


com

um casamento vantajoso para resolver a situação financeira do


visconde, o

que aconteceria agora?

A carruagem de aluguel chegou a Berkeley Square e Jemima pagou o

cocheiro, com um pouco do dinheiro que pedira ao visconde de manhã


para

as despesas, e ficou imaginando se haveria mais dinheiro e onde ele

poderia consegui-lo.

Entrou no saguão, tirando o chapéu novo e elegante, pensando que

54

era melhor tirar aquele vestido chique para preparar o almoço. Nesse

momento, Hawkins aproximou-se dela e ela sentiu que havia algo


errado.
O que houve? - perguntou ela.

Há um cavalheiro que deseja vê-la, milady. É sir Aylmer Barrington!

Jemima ficou petrificada.

Seu primeiro impulso foi fugir, mas logo o orgulho e a coragem voltaram
e

ela resolveu enfrentá-lo, fossem quais fossem as consequências.

- Onde está o cavalheiro?

- Na sala, milady.

Jemima olhou-se no espelho do saguão por um instante e ao ajeitar os

cabelos deu-se conta de que estava com os olhos maiores e cheios de


medo.

Sentiu um nó na garganta e os lábios secos. Era assim que se sentia,

sempre que tinha que enfrentar o tio, porque já sabia que acabaria

levando uma surra de chicote.

Em seguida, recusando-se a ser covarde, respirou fundo, caminhou


resoluta

para a porta da sala e abriu-a.

Sir Aylmer estava em pé diante da lareira, sinistro e ameaçador como

sempre parecia aos olhos de Jemima mesmo quando não estava bravo.

Pela expressão do olhar e os lábios apertados ela sabia que ele estava

furioso.

Sentiu o coração palpitar agitado e começou a tremer de medo.

- Ah, então você está aqui mesmo, Jemima! - disse sir Aylmer, com a
voz

ríspida que sempre usava com a sobrinha e que seria uma surpresa para

muitas pessoas da sociedade.


- É... tio Aylmer - disse ela, aproximando-se dele hesitante.

- Você deve estar pensando que foi muito esperta, não é? Casar, se é
que

se casou mesmo, com um homem que está profundamente apaixonado


por Niobe!

Ora, essa é boa! Pois vou lhe dizer uma coisa, mocinha, não pretendo

deixar que me façam de tolo e já que seu casamento não tem valor
legal

vou levá-la de volta comigo e vou castiga-la, por essa atitude leviana,

de um jeito que você não vai esquecer tão cedo! Quero ver se vai ter

coragem de fugir de novo!

Sir Aylmer não estava gritando, falava baixo mas com severidade e
energia

o que tornava as palavras ainda mais assustadoras.

55

- Sinto muito... tio Aylmer se eu... aborreci o senhor, mas o senhor dizia

tanto que eu era um fardo... um estorvo... que ni pensei que fosse


sentir

minha falta.

- Não se trata de sentir sua falta! É simplesmente que não vou admitir

que desafiem minha autoridade, nem vou permitir que uma sobrinha
minha

se porte como uma vagabunda qualquer, indo deitar-se com o primeiro


homem

que encontre! Vamos! Vá buscar suas coisa já a não ser que queira
apanhar aqui mesmo. Você bem que merece.

- Mas... eu acho, tio Aylmer, que devíamos... esperar meu marido, para
saber o que ele acha disso...

A resposta de Jemima enfureceu sir Aylmer a ponto de fazê-lo per der o

controle e ele começou a gritar com a sobrinha.

- Faça o que eu lhe disse! Não discuta!

Ele ergueu o braço e se aproximou como se fosse bater nela.

Jemima instintivamente encolheu-se, incapaz de disfarçar seu terror.

Nesse momento a porta se abriu e o visconde entrou na sala.

Sir Aylmer baixou o braço e Jemima, num gesto impensado, correu para
o

marido. Teve vontade de se atirar em seus braços e agarrar-se a ele,


mas

refreou o impulso a tempo. Parou bem perto e ele percebeu que ela
estava

tremendo.

- Posso lhe perguntar, sir Aylmer - disse o visconde em tom sarcástico -,

por que está gritando com minha esposa?

- Sua esposa! - retrucou ele com escárnio. - Você acredita mêsmo que

ela é sua esposa? Ora, vamos, você não é nenhum tolo, Ockley! Sabe
tão

bem quanto eu que neste país casamento com menor de idade só é


válido

legalmente com o consentimento do tutor.

- Nós casamos com uma licença especial - disse o visconde -, o vigário

que realizou a cerimónia não fez perguntas. Portanto, se preferir, estou

disposto a levar a questão aos tribunais e vou alegar compaixão, diante

dos juizes, como motivo que me levou ao casamento- Compaixão? Você


pode
ameaçar e fazer barulho, Ockley, mas eu vou levar minha sobrinha
comigo

imediatamente e dar a ela o castigo que merece por fugir de casa e se

atirar nos seus braços.

Sir Aylmer estava falando aos gritos e ficou surpreso de ver um sorriso

nos lábios do visconde.

56

Espero que repita o que acabou de dizer, exatamente com essas

alavras, diante dos juizes. Como já disse, fossem quais fossem meus

sentimentos em relação a sua sobrinha, não posso permitir que uma

garota delicada, que é pouco mais do que uma criança, seja tratada com

essa brutalidade e desumanidade que arrancaria lágrimas aos jurados

mais insensíveis!

Fez-se silêncio por algum tempo, depois sir Aylmer falou já sem gritar.

- Não sei de que está falando.

- Estou dizendo - disse o visconde, ríspido -, que se decidir recorrer à

Justiça para anular nosso casamento, eu pretendo levar minha mulher


ao

tribunal e mostrar a todos o modo como tem sido tratada. O senhor


deixou

suas marcas bem nítidas nas costas dela e isto, sir Aylmer, servirá para

mostrar ao mundo, principalmente, ao mundo social no qual gosta tanto


de

brilhar, exatamente o tipo grosseiro e bruto que é e sempre foi!

Houve um total silêncio. Em seguida sir Aylmer falou, em tom


conciliador.
- Bem... talvez eu tenha sido um pouco precipitado... é claro que se está

satisfeito com esse casamento esquisito, não tem sentido eu querer


anulá-

lo.

- Seria absolutamente inútil! E agora, sir Aylmer, tenho certeza de que

seus cavalos estão impacientes para irem embora -, disse o visconte,

abrindo a porta da sala.

Sir Aylmer arregalou os olhos para ele, incrédulo.

- Está me expulsando de sua casa, Ockley?

- Estou apenas deixando claro que prefiro o senhor lá fora e não aqui

dentro. bom dia, sir Aylmer!

Não havia mais nada a fazer e sir Aylmer atravessou o saguão e saiu. O

rosto estava contorcido de raiva e ele resmungava baixinho. Assim que

saiu, Hawkins bateu a porta estrondosamente.

Da sala, o visconde ouviu e Jemima não pode reprimir um gritinho de

entusiasmo.

- Ah... você foi maravilhoso! Obrigada... muito obrigada mesmo! Ela


disse

isso e cobriu o rosto com as mãos como se quisesse impedir

as lágrimas que queriam rolar de seus olhos.

57

CAPÍTULO IV

O visconde e Jemima estavam voltando para casa depois de terem ido


almoçar fora. No caminho, os dois riam divertidos.

A notícia de que o visconde se casara com uma Barrington, mas não


com a

que o mundo social chamava de "a certa", já chegara aos ouvidos de


vários

amigos e conhecidos.

Quando saíram para almoçar com a condessa de Lincoln, Jemima tinha

certeza de que o convite tinha sido motivado por curiosidade pura. Fato

que foi confirmado quando viu a expressão do olhar dos outros


convidados.

Ela e o visconde tinham chegado mais tarde, depois da maioria das

pessoas, e quando foram anunciados e entraram fez-se um silêncio

repentino, o que indicava que estavam falando deles. Todos os olhares


se

concentraram nos dois enquanto a anfitriã os recebia e em seguida


levava

Jemima para ser apresentada primeiro às damas depois aos cavalheiros.

Jemima sabia que estava elegante e bem-arrumada no seu vestido


verde-

folha com chapéu combinando e isso lhe dava segurança. Tinha custado

caríssimo, mas, à medida que cumprimentava as pessoas e ouvia


elogios,

certificava-se de que valera a pena.

58

Durante todo o almoço, e mesmo depois, ela foi bombardeada por

perguntas. Todos queriam saber por que nunca a tinham visto em


Lodres
antes de se casar ou, pior ainda, por que nunca a tinham encontrado

na casa do tio, nas festas que costumava dar.

com muita esperteza ela conseguiu evitar as respostas diretas e não


tinha

dúvidas de que assim que ela e o visconde saíssem dali, os outros iriam

comentar tudo o que dissera e iriam concluir que havia algum mistério
em

torno dela.

O visconde, entretanto, estava encantado com o burburinho e agitação


que

tinha provocado na sociedade.

Enquanto almoçavam, ele observou que Jemima se portava muito bem e


estava

a altura das outras damas e que os homens estavam fascinados por ela,

cuja beleza era um contraste total com a da prima.

O visconde percebeu com satisfação que havia pelo menos quatro


pessoas

naquela sala que eram amigas íntimas de sir Aylmer e Niobe e tinha

certeza de que tudo o que fosse dito ali seria repetido para os parentes

de Jemima antes do fim do dia.

Ainda estava exultante pela maneira como tinha subjugado sir Aylmer.
Ele

o vencera de tal modo que tinha certeza de que o tio de Jemima jamais

voltaria a importuná-los. E tal atitude tinha provocado elogios de

Freddy.

- Você foi muito esperto, Valient - dissera ele. - Teve presença de

espírito. Não sei como lhe ocorreu tão rápido que a reputação social dele
era a única coisa que defenderia a qualquer preço!

- Está se esquecendo - retrucara o visconde -, que ele só ia casar a

filha comigo porque tenho um título e que preferiu outro mais


importante?

O tom amargo fez com que o amigo percebesse que seu orgulho ferido
ainda

não cicatrizara e com muito tato procurou mudar o rumo da conversa.

- Só acho uma pena não podermos contar a façanha a nossos amigos,


mas não

ficaria bem para Jemima se soubessem que ela apanhava do tio.

- Não, é claro que não! Isso é um segredo só entre nós três. Agora, ali

na mesa de almoço, olhando para Jemima, linda e elegante,

59

o visconde pensava que ninguém poderia imaginar que ela era a mesma
garota

mal vestida e assustada que se escondera em sua carruagem para fugir


de

outra surra.

Na volta, dirigindo a carruagem que Freddy emprestara, assim qUe se

afastaram da casa da condessa, Valient disse:

- Foi excelente! Aposto como estão todos comentando e falando de nós


e

era justamente isso que eu queria!

- Por que isso lhe dá tanta satisfação assim? - perguntou Jemima.

- Porque sei que Niobe vai ficar sabendo de como você está linda, dos

elogios que recebeu e de todos os comentários e vai ficar furiosa!

- Você a odeia, mesmo, hein?


- E o que você queria que eu sentisse por ela?

Jemima não pôde deixar de pensar que quando alguém ama de verdade
não

quer magoar o outro e depois que seria impossível deixar de amar assim

tão rápido, de uma hora para outra. Ele devia estar reagindo assim
porque

estava magoado e com o orgulho ferido, humilhado, seus

sonhos tinham sido desfeitos... era isso. Não podia ter deixado de

amar Niobe.

Ele tinha sido tão ardente ao cortejá-la! Como Niobe gostava de se

vangloriar, mostrava a Jemima todas as cartas que Valient escrevia a

ela... cartas apaixonadas, cheias de tal ardor e adoração que quase

chegavam a queimar o papel onde eram escritas.

- Jemima não conhecia o amor, mas sabia que era um sentimento muito

forte. Ela lera várias histórias de mulheres de aristocratas russos que,

por amor, seguiram seus maridos exilados na Sibéria, ou de francesas


que

tinham enfrentado a guilhotina com um sorriso nos lábios, só para

morrerem junto com o homem amado. E era assim que Jemima achava
que era o

amor: forte e indestrutível. Portanto, achava que por mais cruel que

Niobe fosse e por pior que ela tratasse Valient ele não deixaria de amá-
la

nunca, porque era inevitável.

Entendia bem a atitude dele de ter se casado com ela só para espicaçar

Niobe. Às vezes, à noite, quando estava sem sono, ficava pensando o


que
teria lhe acontecido se não tivesse se casado com o visconde e tivesse

ido para Londres conforme pretendia, apenas com dois guinéus na bolsa
e

sem conhecer ninguém.

60

O fato de estar casada com um homem que a tratava bem e com


consideração,

e que lhe dera um nome e um título, causava-lhe tanta alegria

que mesmo agora, depois de vários dias de casada, ela ainda se


perguntava

se não estaria sonhando.

Mas o que a deixava mais feliz do que tudo isso ainda, era o fato de ter

a agradável companhia de dois cavalheiros com quem podia conversar,

trocar ideias, rir e se divertir sem precisar temer recriminações,

caçoadas e surras.

Mil vezes por dia ela rezava e agradecia a Deus a sorte e a felicidade

que tivera. Tinha certeza de que fora sua mãe quem fizera o visconde

cruzar seu caminho na hora certa e salvá-la.

Enquanto morava com o tio, muitas vezes pensava que Deus não
existia, que

não havia céu nem nada disso e que os pais tinham morrido e nada
sobrara.

Mas agora sabia que estava enganada.

De algum lugar eles a estavam olhando e cuidando dela como faziam


em vida

e ela sabia que não os perdera por completo.


- Bem, um obstáculo já vencemos - comentou o visconde, já em
Berkeley

Square. - Agora, qual será o próximo?

Jemima ia responder com uma piada leve e descontraída, quando viu,

surpresa, Hawkins correndo na rua em direção a eles.

- Veja, é Hawkins. O que será que ele quer? - disse ela.

O visconde, que também o tinha visto, puxou as rédeas dos cavalos

obrigando-os a parar. Hawkins aproximou-se da carruagem e como


viera

correndo levou alguns segundos para tomar fôlego.

- O que houve? O que foi que aconteceu? - perguntou o visconde.

- Eu vim correndo para avisar milorde... temos encrenca!

- Que encrenca?

- Os credores descobriram que milody não é a srta. Barrington que eles

estavam imaginando.

Jemima olhou para ele espantada e apreensiva. - Como é que você sabe

disso? - perguntou Valient. - Eles estão esperando o senhor, milorde...

são uns dez... e estão furiosos e impacientes!

Por instantes houve silêncio, depois o visconde disse:

- Bem, a única coisa que posso fazer é enfrentá-los.

61

- Eu sabia que falaria assim, milorde, mas achei que devia avisar,

- Obrigado, Hawkins. Vá na frente. Nós iremos devagar. Hawkins não

contestou, virou-se e voltou para casa depressa. O


visconde esperou que ele se adiantasse bem e depois instigou os
cavalos.

- Você tem algum dinheiro para pagá-los? - perguntou Jemimc em voz


baixa.

- Nem um centavo!

- Está falando sério?

- É claro, estou dizendo a verdade. Eu tenho vivido de empréstimos

bancários, mas ontem mesmo recebi uma carta do banco dizendo que
não

podem mais me emprestar dinheiro.

- Mas por que você... - começou Jemima, mas mordeu a língua. Quem
era ela

para dizer a ele que tinha sido tolice ele fazer empréstimos que não

poderia pagar?

Afinal, ela própria tinha contribuído para agravar a crise financeira

dele, aceitando vestidos caros que tinham comprado em Bond Street e

vários outros acessórios que ela achara necessários na ocasião.

- O que vai fazer agora? - perguntou ela, assustada. O visconde parou a

carruagem em frente a sua casa e o cocheiro de Freddy, que estava

esperando, pegou as rédeas que ele entregou. Valient não respondeu a

pergunta. Desceu da boleia e já havia dado dois passos quando se


lembrou

dos hábitos de cortesia e voltou para ajudar Jemima descer.

Entraram juntos, enquanto Hawkins segurava a porta para eles. Os


homens

estavam esperando no saguão.

Eram todos comerciantes. Um deles Jemima sabia que era o açougueiro,


outro parecia ser o fornecedor de vinhos. Um dos homens adiantou-se
para

falar em nome de todos. Era o mais elegante e parecia ser um alfaiate.

- Boa tarde, cavalheiros! - disse o visconde em tom cordial. - O que

desejam?

- Acho que milorde sabe a resposta - disse o porta-voz do grupo.

- Estou representando o sr. Weston, milorde, e tenho aqui uma conta de

trezentos e oitenta e cinco libras que já é muito antiga e vamos pedir

pagamento imediato!

62

Todos os outros também retiraram contas dos bolsos, acenando com


elas

como se fossem bandeiras e dizendo em voz alta e ao mesmo tempo.

- Minha conta é de cento e oitenta e nove libras! A minha é de

duzentas!... a minha é de noventa e cinco!

Era difícil entender o que cada um dizia naquela balbúrdia mas era óbvio

que estavam todos muito agressivos e as vozes eram ríspidas e


exigentes.

- Será que se incomodariam de me dizer - falou o visconde, com calma


-,

por que decidiram de repente virem cobrar assim de modo tão impróprio
e

inconveniente, justo neste momento?

- Milorde sabe a resposta disso também - respondeu o mesmo homem


que

falara antes.

- Não tenho a menor ideia. Talvez seja melhor que vocês me expliquem.
Jemima sabia que o título de nobreza infundia um certo respeito
temeroso

neles e todos estavam constrangidos.

E então um homem que estava mais atrás no grupo e mal podia ser
visto,

gritou:

- O senhor não casou com a noiva que estávamos imaginando!

- Mas que descuido o meu! - disse o visconde, sarcástico. - É que não

podia imaginar que todos os clientes consultavam os senhores antes de

pedirem a mão de uma moça!

- Jogo de palavras não vai saldar suas dívidas, milorde - disse o

representante do alfaiate - e, depois, estamos todos de acordo.

- Sobre o quê?

- Decidimos que se o senhor não nos pagar, levaremos o que o senhor

possui ou, se preferir, poremos no protesto para que vá a leilão.

Houve uma pequena pausa, em seguida o visconde falou, ainda em tom

sarcástico.

- Se levarem estarão agindo contra a lei. Eu não possuo nada de que


possa

dispor. A propriedade no campo, as casas, a mobília, os quadros... tudo

pertence a meus herdeiros.

Houve um silêncio e Jemima percebeu que eles ficaram desconcertados


com o

que ouviram e sem saber o que fazer. Mas logo um dos homens gritou.

63

- Então, só lhe resta a prisão, milorde! Vai ficar na Fleet Prison, até
que nos pague!

O coração de Jemima quase parou. Ela conhecia a fama de Fleet Prison,

sabia que lá os devedores definhavam e às vezes até morriam em

consequência das péssimas condições, antes que um amigo ou parente


os

libertasse pagando as dívidas.

Olhou para o visconde horrorizada e percebeu que, com admirável

autocontrole, ele não mudara de expressão. Contudo, sabia que ele


estava

perturbado pois como estava bem perto viu uma veia pulsando.

- Se é essa a atitude que resolveram tomar, então não posso fazer nada
-

disse ele -, mas seria querer tirar leite de pedras!

Houve um pequeno rumor no grupo e Jemima não pôde deixar de


compará-los a

cães de caça quando encurralam a raposa. De repente, antes que


alguém

dissesse algo mais, ela falou:

- Gostaria de dizer algo.

Foi tão inesperado que não apenas os credores mas também o visconde

olharam para ela surpresos. O coração dela batia apressado e foi com

certa dificuldade que conseguiu falar afinal.

- Eu posso não ser a Barrington que vocês esperavam que fosse casar
com

milorde, mas sou sobrinha de sir Aylmer e acho que tenho uma solução
para

este problema.
- Estamos prontos para ouvir, milady. Qual é a solução?

- Como milorde disse - continuou ela -, ele não pode vender as casas
pois

estão vinculadas, mas isso não impede que as alugue por um bom
preço. -

Ela viu as expressões dos homens e disse depressa:

- Sei que pode não ser muito, diante do que ele lhes deve, mas pelo
menos

receberão aos poucos e agora que o visconde sabe da gravidade do

problema não vai aumentar a dívida.

Depois de uma breve pausa o mais agressivo deles falou de novo.

- E como é que a senhora sabe se ele vai encontrar alguém que alugue
esta

casa aqui?

- Na verdade, já tenho alguém em mente - retrucou Jemima. E o que eu

gostaria de sugerir, cavalheiros, é que dêem vinte e quatro horas ao

visconde para que ele e eu vejamos se podemos conseguir uma parte


desse

dinheiro que ele deve. Quanto ao aluguel, ele dividirá entre

64

os senhores, sem tirar nenhum centavo. Acho que poderão confiar na


palavra

dele. - Ela percebeu uma certa indecisão entre eles e acrescentou: - Os

senhores hão de concordar que essa é uma solução mais sensata, na


qual

levarão vantagem: se mandarem milorde para a prisão, náo receberão


um
centavo do que lhes é devido, mas se o deixarem em liberdade, ele e eu

juntos faremos o que pudermos para saldar todas as dívidas no menor


prazo

possível.

Por um momento, Jemima ficou em desespero, pensando que falhara


em sua

tentativa e que eles não iriam aceitar. Mas, então, o alfaiate que estava

mais perto dela e talvez tivesse se comovido com o tom de sinceridade


ea

indiscutível beleza dela, disse:

- A senhora permite, milady, que eu discuta com os outros a sua


sugestão?

Nós não demoraremos.

Jemima olhou para o visconde.

- Nós esperaremos na sala - disse ele -, enquanto os senhores decidem.

Deu um passo e o grupo abriu passagem para ele e Jemima. Hawkins


abriu a

porta da sala para que entrassem e fechou-a de novo. O visconde


caminhou,

em silêncio, até o fundo e parou diante da lareira com o olhar baixo.

- Peço que me desculpe... se o que disse foi inoportuno - disse ela num

fio de voz -, mas é que... fiquei com medo, fiquei apavorada de pensar

que eles iriam mandá-lo para a prisão.

- Não... foi muita presença de espírito dizer o que disse. Você agiu com

sensatez. O que está me preocupando é como é que eu fui deixar as


coisas
irem tão longe assim sem perceber que esse seria o fim inevitável de
quem

não paga dívidas.

- Talvez você consiga pagá-las... da forma que eu sugeri.

- Como? Você acha mesmo que pode conseguir um inquilino para esta
casa?

- Acho que sei de alguém que gostaria de alugá-la, mas é claro que só

isso não será suficiente para pagar os credores. Deve haver um Jeito de

conseguir dinheiro com as outras propriedades!

O visconde deu um riso nervoso.

65

- Se houvesse, meu pai já teria feito isso há alguns anos! Jemima, é

melhor deixar que eu vá para a prisão e acabe logo com isso.

- E vai entregar os pontos assim? - retrucou ela, sem refletir

- Nunca imaginei que você fosse covarde!

- Covarde? - Ele virou-se para ela e estava sem dúvida bravo. - Já fui

acusado de muitas coisas em minha vida, mas jamais alguém insinuou


que sou

um covarde!

- Pois então, é melhor começar a lutar, essa é sua batalha. É como se

estivesse em Waterloo!

Ele a contemplou furioso por alguns segundos e depois repentinamente

começou a rir. Foi tão inesperado que ela o fitou de olhos arre galados e

como ele não parasse, perguntou:

- O que você acha assim tão engraçado...


- Você! É engraçado pensar que uma mulher esteja me instigando a
lutar.

Logo eu que estive na guerra e vivi tão perigosamente vendo a morte de

perto.

- Pode ser que não esteja arriscando a vida nesta batalha, mas se você

perder a liberdade, não vai mais valer a pena viver. O visconde riu de

novo, depois ficou sério.

- Você tem razão, Jemima, é claro! E se você conhece mesmo quem


esteja

disposto a pagar bem por esta casa, eu lhe ficarei grato. Só espero que

essa pessoa exista mesmo, caso contrário os cavalheiros aí fora vão se

tornar extremamente desagradáveis.

- Ele existe sim, e nós iremos procurá-lo assim que as visitas saírem.

- Pode ser que não queiram sair a não ser para me levar com eles ao

Tribunal,

- Ora, deixe de ser tão pessimista e desanimado!

O visconde riu de novo e nesse momento Hawkins abriu a porta.

- Eles querem falar com o senhor, milorde - disse o empregado. O


visconde

dirigiu-se para a porta e Jemima o seguiu mesmo sem

ter sido convidada,

- Então, chegaram a um acordo? - perguntou.

- Nós decidimos - disse o alfaiate, que continuava a ser o portavoz do

grupo - aceitar a sugestão de milady para experimentar, mas

66
gostaríamos de deixar bem claro quê o aluguel integral tem que ser

Dividido entre nós e que pretendemos que a dívida esteja liquidada


antes

do Natal, milorde.

- Aceito a proposta dos senhores - disse o visconde - e assim que a casa

estiver alugada podem estar seguros de que farei o dinheiro chegar a


suas

mãos para que seja dividido, conforme sugestão de minha mulher.

- Obrigado, milorde.

Agora, diante da possibilidade de receberem o dinheiro, mesmo aos


poucos,

eles tinham mudado a maneira de falar e Jemima percebeu que alguns

estavam até embaraçados e um tanto apreensivos pelo modo como


tinham se

portado.

Ela não pôde deixar de pensar, com tristeza, que tudo acontecera por
sua

causa. Os credores jamais teriam feito aquilo se o visconde tivesse se

casado com a herdeira rica. Tinha quase certeza de que pelo menos
aqueles

comerciantes sabiam que ela era uma parenta pobre e sem dote. Eles
eram

todos muito unidos e estavam em contato com os criados das casas dos

aristocratas. Bastava que um dos empregados de sir Aylmer tivesse


aberto

a boca para dizer quão insignificante e sem importância Jemima era,


para

que logo todos estivessem sabendo. Por isso Jemima sentia que era seu
dever ajudar o visconde e salvá-lo daquela situação.

Assim que todos saíram e Hawkins fechou a porta, Valient olhou para
ela.

- Bem, e agora, o que faremos? - disse ele.

- Vamos pegar uma carruagem de aluguel e vamos à cidade.

- À cidade - surpreendeu-se o visconde.

Mas Hawkins, sem esperar instruções, já estava na rua fazendo sinal


para

parar uma carruagem.

No caminho, Jemima explicou o que iriam fazer:

- Embora eu nunca tenha participado das refeições que meu tio oferecia

aos nobres, quando ele recebia os sócios em vários de seus negócios ele

me pedia para ajudar a entretê-los. Achava que Niobe não tinha jeito
para

isso, que iria tratá-los com desdém e tio Aylmer não

67

queria ofendê-los para não prejudicar a sociedade. Por isso, ele


mandava

que eu me sentasse à mesa com eles e me fizesse agradável.

- E você obedecia? - sorriu o visconde.

- Que remédio? Mas muitos deles eram bastante simpáticos e


agradáveis.

E, depois, achava fascinante notar como eles eram diferentes dos


nobres

aristocratas como você. - O visconde escutava atento e ela continuou. -

Eles são rudes, astutos, calculadores, e às vezes até impo lidos e

incultos, mas todos têm algo em comum.


- O que é?

- Um jeito determinado e resoluto de quem conquista as coisas e não de

quem as recebe de mãos-beijadas. Não sei bem o quê, mas havia algo
neles

que eu achava muito interessante.

Ela fez uma pausa e o visconde disse:

- Continue! Estou entendendo bem o que me diz.

- O senhor Joshua Roseburg, que vamos visitar agora, é um deles e é o

mais bem-sucedido de todos financeiramente.

- O que ele faz?

- Ah, ele lida com tudo que dá dinheiro. Sei que há alguns anos até com

comércio de escravos ele estava envolvido. Ele e meu tio eram sócios.

- Comércio de escravos? - O visconde surpreendeu-se.

- É, sei que é algo vil e desprezível mas não resta dúvida de que várias

pessoas na Inglaterra fizeram fortuna à custa disso.

- Foi o que sempre ouvi dizer.

- Tio Aylmer ficou pouco tempo na sociedade desse negócio, mas acho
que

quando parou já havia feito um bom dinheiro.

- E por que seu tio continua sócio dele em outras coisas?

- É claro que ele não fala essas coisas para mim, mas um comentário
aqui

outro ali... juntando tudo compreendi que o sr. Roseburg é útil ao tio

Aylmer e é uma pessoa que ele não tem a menor intenção de ofender.

- Por que você acha que ele vai se interessar em alugar minha casa?
- Uma vez, quando estávamos almoçando na casa de tio Aylmer, em
Londres,

ele comentou antes de sair que meu tio é que era feliz de poder
desfrutar

de uma propriedade daquelas. Meu tio disse que ele

68

tinha dinheiro o bastante para comprar uma também, talvez até maior.

69

e disse que não tinha a menor chance de se equiparar aos nobres, que o

lugar dele era em Cheapside, do outro lado da cidade, e que ninguém

venderia uma casa para ele no bairro aristocrata.

- Mas por que você acha que ele vai alugar minha casa? - insistiu

O visconde.

- Porque tenho certeza de que o sonho dele é poder morar numa casa
como a

sua, bem no coraçãode Mayfair, e se nós oferecermos a oportunidade


ele

não vai recusar.

Mesmo sem ele ter dito nada, Jemima sabia que o visconde estava
descrente

e achando-a muito otimista.

Quando chegaram ao escritório do sr. Roseburg, em Cheapside, foram

conduzidos até a sala dele e o visconde ficou surpreso com o modo


efusivo

como foram recebidos.

- Ora, vejam só, milady, mas isso é uma grande honra! - disse ele
cumprimentando Jemima. - Quando me disseram que era a senhorita e
não sua

prima quem tinha se casado com o visconde eu pensei que fosse


mentira!

- Mas não é, sr. Roseburg, é verdade mesmo. Deixe-me apresentar meu

marido que está muito ansioso para conhecê-lo.

O sr. Roseburg estendeu a mão e trocaram cumprimentos cordiais.


Depois

ele pediu que se sentassem e mandou um criado servir vinho, mas tanto

Jemima quanto o visconde perceberam que ele os olhava meio


desconfiado.

- Pois bem, então, o que posso fazer pelos jovens? - ele perguntou, num

tom que deixava evidente estar pensando que os dois tinham ido pedir

dinheiro emprestado.

Jemima olhou para ele, sorrindo.

- Creio, sr. Roseburg - disse ela -, que podemos oferecer-lhe a

oportunidade de realizar uma de suas ambições. Ao mesmo tempo


estaria nos

ajudando, também.

- De que forma?

- Milorde e eu estamos ansiosos para irmos para o campo - disse


Jemima. -

Seria ótimo para uma lua-de-mel, ficarmos lá isolados, longe de todos.

Porque, o senhor sabe, desde que nos casamos, os amigos têm

69

sido muito gentis e nos cobrem de convites para jantar e almoçar mas o
senhor entende, nós bem que preferíamos ficar a sós por algum
tempo...

Ela fitou o visconde com olhar entre tímido e ardente para que sr.

Roseburg pensasse que eles estavam realmente apaixonados.

- E qual é a dificuldade, milady? - perguntou ele, sem entender onde ela

queria chegar.

- É que precisamos de alguém para tomar conta da casa de milori; em

Berkeley, e achamos que o senhor gostaria de ser nosso inquilino. Ele


fez

cara de surpresa como se nunca tivesse considerado tal hipótese e ela

continuou: - Já ouvi o senhor elogiar a casa de tio Aylme em Londres, e


a

de milorde é mais antiga e eu acho mais bonita ainda, além disso, a

vizinhança é bastante seleta, só moram nobres naquele bairro. E o que


é

mais importante, o senhor e a sua esposa vão achar bem mais prático e

mais fácil para fazer compras e ir a teatros.

À medida que falava percebia que o sr. Roseburg ia se entusias mando


com

a ideia. Tinha certeza de que a mente dele, ágil e astuta, já estava

considerando as vantagens de ser inquilino de um nobre e viver em uma

casa onde teria orgulho de receber seus amigos e colegas do comércio.

- É uma ideia que nunca me ocorreu, milady - disse ele, quando Jemima
fez

uma pausa. - E quanto estão pensando em pedir pelo aluguel da casa?

- Quanto o senhor quiser pagar! - respondeu Jemima, desarmando-o. -


O
senhor sabe muito bem, sr. Roseburg, e eu estou sendo muito franca
com o

senhor, que não sou uma rica herdeira como minha prima e não quero
ser um

fardo para meu marido. A vida está ficando cara.

Ele riu.

- Você sempre fala o que pensa - disse ele -, e é por isso que sempre

gostei de conversar com você quando ia visitar seu tio. Costumava


achar

uma pena que você não fosse um rapaz, pois poderíamos fazer negócios

juntos.

- Pois é justamente o que estou lhe propondo agora, sr. Roseburg!

70

Sem dúvida! - disse ele, surpreso, depois olhou para o visconde.

- E o que milorde acha disso tudo?

- Depois de tudo o que minha esposa me contou a seu respeito, sr.

Roseburg - disse o visconde -, eu ficarei encantado e muito honrado se


o

senhor ocupar minha casa.

- Eu lhe agradeço, milorde.

- Por que não vai nos visitar hoje à tarde, depois que sair daqui?

disse Jemima. - Pode levar sua esposa, é claro, assim poderão ver

se gostam da casa.

- Obrigado, mas ela sempre deixa essas decisões para mim - disse o sr.

Roseburg. - Contudo, aceito seu convite, milady, estarei lá às cinco

horas, se for conveniente para o visconde, é claro.


- Estarei a sua espera com muito prazer, sr. Roseburg - disse o
visconde.

No caminho de volta, na carruagem de aluguel, Jemima disse:

- Ele vai ficar com a casa, tenho certeza! Quanto deveríamos pedir a
ele?

- Quanto pudermos conseguir está bom. - O visconde olhou para ela. -


Será

que você sabe em que está se metendo?

- Como assim? Explique-me.

- É que você vai achar a propriedade de campo um horror.

- Por quê?

- Porque deixaram que ela se arruinasse totalmente, durante a guerra,

quando eu estava na França. Meu pai vivia em Londres e abandonou-a


de uma

vez. Depois não havia dinheiro para restaurá-la e eu nunca mais fui para

lá; desde que voltei para a Inglaterra, estive lá só de passagem para ver

o quanto está dilapidada.

- Pelo menos tem um teto?

- Espero que ainda tenha, embora, sem dúvida, esteja cheio de buracos.

- Quem está cuidando da propriedade?

- Ninguém. Não podia me dar ao luxo de manter empregados lá.

- Mas tem mobília, não tem? Louças e panelas para se cozinhar...

- Não posso responder essa pergunta porque na verdade nem sei

71

mais... Deve ter camas nos quartos e alguns móveis, mas o resto, não
sei.
Provavelmente deve ter sido comido por traças e ratos ou foram

roubados.

Houve um silêncio e quando Jemima falou foi em voz baixa.

- Mas, não há outra alternativa... há?

- Não, nenhuma. A não ser que peçamos abrigo na casa de amigos. Por
falar

nisso, estamos perto da casa de Freddy...

- Não! Isso nunca! - disse Jemima com veemência.

- Por que disse isso, assim?

- Porque como parenta pobre posso falar por experiência própia, e não

coisa pior do que depender de alguém e dever favores. Acho, embora

possa pensar que estou errada, que você devia recomeçar da estaca
zero,

recuperar-se e estabelecer-se sem a ajuda de ninguém.

- Sem dúvida você tem um tiro certeiro, sempre, Jemima - disse ele,

empertigando-se.

- Agora que você está casado, as coisas são diferentes. Você tem uma

esposa e eu acho que essa é uma batalha que nós dois devemos vencer

juntos sem recorrer a ninguém, mesmo que ofereçam ajuda.

- Parece-me que você está me dizendo o que devo e o que não devo
fazer...

- Acho que isso você sabe muito bem, estou apenas expressando minha

opinião, porque gosto de falar o que penso.

- Belas palavras para fatos desagradáveis! - comentou o visconde.


Jemima
olhou para ele e não conseguiu decifrar se ele estava ou não

aborrecido com ela.

Três dias depois, Jemima viu, pela primeira vez, a propriedade rural dos

Ockley que tinha sido um antigo mosteiro até o reinado de Henrique


VIII,

quando houve a Dissolução dos Mosteiros. Dois séculos mais tarde, foi

comprado por um Ockley que achou a construção bonita e interessante.

Tinha sofrido algumas reformas com o passar das gerações mas


conservava a

mesma estrutura básica e o mesmo estilo. Quando Jemima viu, não


pôde

reprimir uma exclamação entusiástica.

- Mas é linda! Que maravilha!

72

Realmente, de longe parecia linda: construída ao lado de um riacho


perto

de um bosque de pinheiros, era feita de pedras de cor cinza, grandes, e


as

imponentes chaminés se recortavam contra o céu. Concretizava o


natural

desejo dos monges de paz e quietude, de uma vida sossegada. E


Jemima,

olhando para aquele casarão ao longe, teve a estranha impressão de


que já

conhecia o lugar. Sentiu-se como se estivesse chegando em casa.

- Espere só para ver como está por dentro! - disse o visconde, num tom

seco, enquanto continuava a conduzir a carruagem que mais uma vez


pedira
emprestada a Freddy para fazer a viagem.

Freddy oferecera e embora Jemima tivesse dito que não aceitariam


nada,

sabia que ficaria muito caro alugar um coche para levá-los de Londres
até

lá. Por isso, teve de engolir o orgulho e aceitar mais esse favor.

Freddy estava entusiasmado com a ida deles, pois ficariam mais perto
de

sua propriedade que se situava a oito quilómetros dali, embora não

acreditasse que eles fossem ficar morando no campo para sempre. Foi

Jemima quem o chamou de lado e explicou toda a situação e o motivo


da

mudança.

- Valient já lhe contou - perguntou ela -, por que somos forçados a sair

de Londres?

- Ele disse qualquer coisa a respeito de ter recebido uma boa oferta pela

casa dele em Berkeley Square.

- Os credores ameaçaram mandá-lo para Fleet Prison!

- Meu Deus! - Freddy ficou perplexo e não escondeu seu espanto. - Não

imaginava que as coisas estivessem assim tão sérias, que tivessem


chegado

a esse ponto! É claro que sabia que Valient estava numa enrascada,
mas...

- Jemima fez menção de dizer qualquer coisa, mas ele a impediu,

acrescentando logo: - Você sabe que se ele fosse mandado para a


prisão eu

o tiraria de lá sem titubear, não é?


- Tenho certeza de que faria isso - respondeu ela. - Mas acontece que o

visconde tem de enfrentar a realidade; e a realidade é que ele não tem

dinheiro e precisa fazer algo para consegui-lo.

- De que maneira?

- Nós ainda não sabemos bem. Por enquanto achamos um inquilino

73

para a casa de Berkeley Square e, quando chegarmos ao campo, ter de

pensar numa maneira de ganharmos algum dinheiro para que possamos


viver.

Freddy contemplou-a por alguns instantes.

- Você pode achar estranho o que vou lhe dizer, Jemima, mas você é

exatamente o tipo de mulher que Valient estava precisando encontrar


há muito tempo.

- Por quê?

- Ele precisava de alguém que o estimulasse e o pusesse em acção para

viver. - Fez uma pausa e continuou. - Na guerra, Valient foi

magnífico!

Não apenas de uma coragem extraordinária, mas cuidou sempre de


todos os

homens sob seu comando e tinha um poder de liderança espantoso!

- Mas a guerra acabou.

- Pois é. Acho que, depois disso, Valient ficou sem objetivos, meio

perdido, sem saber em que aplicar sua energia, inteligência e vitalidade

E acho que agora você talvez tenha encontrado esse objetivo para ele

- Não! O problema é justamente esse! Ele é quem tem de encontrar,


sozinho. O importante é o que ele faça, não o que nós façamos por ele.

Freddy contemplou-a longamente.

- Diga-me o que você quer que eu faça, então, e eu farei com prazer.

Jemima sorriu para ele.

- Obrigada. Só quero lhe pedir que não seja generoso demais com ele.
Não

sei em que estado vamos encontrar a propriedade rural, mas ele precisa

sair dessa situação sozinho.

- Em ruínas, cheia de pó e ratos! É assim que vão encontrá-la. Jemima


riu

com certa apreensão.

Agora, passando com a carruagem pela descuidada alameda de entrada,

Jemima entendia por que o casamento com uma rica herdeira teria sido
tão

importante. Era natural que Valient quisesse restaurar a casa de seus

ancestrais para poder viver lá. Por isso, escolhera Niobe! Acontece que

tinha se apaixonado por ela de verdade e isso seria a felicidade


completa

para ele se tivesse dado certo. Jemima suspirou baixinho,

74

lamentando o fato de não ser rica. Depois, lembrou-se que a casa de


seus

pais fora pobre mas cheia de felicidade e riso enquanto que a mansão
de

sir Aylmer era sombria e triste.

Não podemos ter tudo na vida! - disse ela mentalmente, com


firmeza. - O importante é aproveitarmos da melhor maneira o que
temos!

Quando o visconde fez parar os cavalos, diante da porta do antigo

mosteiro, ela viu a expressão do rosto dele.

- Bem, aqui começa nossa grande aventura - disse ela com bom humor,

tentando entusiasmá-lo. - Ele a olhou, cético, e ela continuou.

- Você há de convir que é bastante excitante. É como se estivéssemos

explorando uma região desconhecida e precisássemos achar um meio de

sobreviver. É ou não é uma aventura?

O tom de voz alegre e o brilho de euforia no olhar dela, por um


momento

afastaram a depressão do visconde.

- Espero que seu otimismo venha a ser justificado, Jemima.

- Se não for, podemos nos afogar no lago - continuou ela, em tom

brincalhão. - com esse calor que está fazendo, até que não é um modo
ruim

de morrer! Mas, por enquanto, acho que o lago vai servir é para
tomarmos

banho!

O rosto do visconde se desanuviou e ele caiu na risada.

- Acho que essa previsão está certa - disse ele. - Porém, agora vamos

entrar e ver como é que está isso aí. Cuidado para não se enforcar nas

teias de aranha!

Ele pulou da carruagem para o chão e ajudou Jemima a descer.


Hawkins, que

estava atrás, passou para a boleia e segurou as rédeas.


- Vou levar os cavalos para o estábulo, milorde - disse ele -, e espero

que possa encontrar alguém para me ajudar a descarregar a bagagem.

- Duvido muito - retrucou o visconde -, mas pode ficar sossegado que


eu

mesmo vou ajudar você.

- Assim é que se fala! Ânimo! - disse Jemima, parada diante da enorme

porta de carvalho almofadada.

O visconde tirou a chave do bolso.

75

- Está preparada? - perguntou ele. - Acho que vai ter uma surpresa
bastante desagradável quando entrar!

- Eu adoro surpresas! - respondeu Jemima, com firmeza. - Aliás, desde


que nos encontramos, só tenho vivido de surpresas.

- É, isso é verdade. Bem. . . então, aqui vamos nós!

Ele virou a chave na fechadura e Jemima prendeu a respiração, em


expectativa.

76

CAPÍTULO V

Jemima estava lavando a mesa da cozinha quando ouviu passos, no


corredor ladrilhado, que pararam diante da porta.

- E, então, conseguiu? - perguntou ela, sem olhar.

- Consegui me surpreender em saber que você é tão boa dona-decasa! -


respondeu uma voz que ela não esperava.

Ela levou um susto e virou-se para a porta. Lá estava Freddy, parado,

mais elegante do que nunca, o que a fez perceber de imediato que ela
estava justamente o oposto da elegância. Sob o avental todo sujo,
usava o

vestido com o qual fugira da casa do tio.

Afinal, não iria usar um dos caros vestidos comprados em Bond Street, e

que ainda nem tinham sido pagos, para fazer faxina na casa. Além do
mais,

não esperava receber visitas.

As mãos dela estavam vermelhas de tanto mexer na água e esfregar as

coisas para tirar a sujeira, já há alguns dias. Os cabelos em desalinho

emolduravam o rosto afogueado pelo esforço do trabalho.

- Devia tocar a campainha e se fazer anunciar, antes de entrar na casa

dos outros! - disse ela em tom zombeteiro, fingindo estar brava.

- Eu toquei - retrucou Freddy -, mas tenho certeza de que deve estar

quebrada.

77

Jemima riu.

- Você tem razão. É mais uma das coisas arruinadas do velho ca sarão!

Freddy entrou na cozinha, pegou uma cadeira e sentou-se ao contrario,


com

os braços apoiados no encosto.

- Já imaginava que iria encontrá-la fazendo essas coisas - disse ele. -

Será que não pode arranjar uma empregada na aldeia?

- Não podemos pagar empregados, mas os colonos que moram aqui têm
sido

maravilhosos!

Ela largou a escova dentro do balde com água e tirou o avental na


esperança de melhorar um pouco a aparência.

- Você disse para eu me afastar e não interferir e eu obedeci disse

Freddy -, mas agora não aguento mais de curiosidade. Conte-me como


foi a

chegada e o que aconteceu!

- Exatamente o que esperávamos! - respondeu Jemima. - Quando


chegamos,

isto aqui estava tão cheio de pó e teias de aranha que mal se podia

respirar.

- Daí você limpou tudo.

- com a ajuda de Hawkins e de Valient, por incrível que pareça.

- O quê? Ele ajudou você a fazer isso? - admirou-se Freddy. Jemima

sorriu.

- Pois é, embora às vezes ajudasse melhor ficando lá fora. A maior parte

quem fez foi Hawkins, eu e os colonos. Pelo menos agora alguns


aposentos

já estão habitáveis.

- Então, já pode me hospedar!

- Não!

- Céus, quanta hospitalidade! disse ele irónico.

- Ah, é que seria muito desconfortável para você!

- Pior do que na guerra não pode ser!

- Mas a situação é diferente. Você tem sido tão gentil com Valient que
eu

ficaria constrangida em acomodá-lo mal. Teria que tomar banho frio e

dormir em lençóis rasgados.


- Se essa é a única objeção, eu lhe digo que ficarei e você não vai me

fazer mudar de ideia.

78

- Está bem, então, mas não reclame se algum rato passar sobre a cama

enquanto estiver dormindo, ou se roerem suas roupas caras.

- Se está tentando me desanimar ou me assustar, pode desistir. Estou


com

saudades de você, Jemima, e sinceramente, Londres está muito sem


graça

sem Valient.

- Ah, por favor, não diga isso a ele! Ele já está mais resignado de estar

aqui e como tem andado tão ocupado, com tanta coisa para fazer, não
tem

tido tempo de sentir falta de Londres, como eu temia.

- Foi por culpa dele mesmo que chegou a esse estado de penúria. Por
que

ele nunca me disse que as coisas estavam tão mal? Quando penso nas

extravagâncias que fizemos!

- Agora não adianta lamentar. O que está feito está feito! Valient tem de

aprender a viver de acordo com as posses dele. Ainda não sei se vai dar

certo, mas que estamos tentando, estamos! - Ela fez uma pausa e

acrescentou em outro tom de voz. - Foi muita bondade sua ter dado a
ele o

dinheiro que estamos usando agora, mas eu tinha pedido que você não

fizesse isso...

- Eu não dei o dinheiro, eu comprei o relógio de ouro dele.


- com a condição de restituí-lo assim que ele conseguisse dinheiro para

recomprá-lo de você! Eu sei. Como é que eu posso fazer Valient


entender

que ele não deve esperar que os amigos o tirem de todas as


enrascadas,

sempre, se você o ajuda e até o apoia?

Enquanto ela falava, Freddy a contemplava e se perguntava quantas


outras

mulheres teriam agido de forma tão natural e estariam conversando


assim

sem constrangimento se tivessem sido pegas em flagrante, como ela,

fazendo um serviço vergonhoso que só devia ser feito por criados.

- Temos uma novidade que Valient vai lhe contar! - disse ela, em tom

alegre.

- O que é?

- Um de nossos colonos tem dois cavalos selvagens que Valient disse


que

vai domar e treiná-los, assim pelo menos teremos montaria.

- Eu ia justamente oferecer dois dos meus cavalos para isso.

- Não, Freddy, obrigada, mas não podemos aceitar. E não estou

79

pensando só em Valient, mas em você também. Os cavalos do colono


estão

muito bons para nós, por enquanto.

- Mas se são animais bravios como disse, pode ser perigoso... se o


cavalo

derrubar você? Aí sim, vai ser pior!


- Acontece que sei montar muito bem. Meu pai sempre foi pobre e eu

aprendi a cavalgar em cavalos bravios e não nesses que vocês,

aristocratas, têm. Nunca montei um desses!

- Por isso mesmo gostaria de oferecê-los a você.

- Mas não vai fazer isso, porque eu lhe pedi que não fizesse, não é?

- Se você prefere assim... - disse ele pesaroso. - Eu entendo o que está

tentando fazer, Jemima, e admiro-a muito por isso. Não sabia que uma

mulher podia ser tão maravilhosa em uma situação tão adversa!

Jemima ficou sem jeito com essas palavras e deu um sorriso tímido.

- Ah, em nome dos céus, por que não tive a sorte de ter encontrado
você

quando fugiu da casa de seu tio!

- Valient não me encontrou... eu praticamente o forcei a me levar com

ele!

- Pois eu ficaria encantado de ter sido forçado por você! Algo no tom de

voz dele fez com que Jemima o-fitasse, surpresa.

- Você se aborreceria, Jemima, se eu lhe dissesse que não pude mais


ficar

longe porque queria vê-la? - Jemima baixou as pálpebras, mas ele

continuou. - Acho que me apaixonei por você desde o primeiro instante


em

que a vi, maltrapilha e assustada, mas ao mesmo tempo incrivelmente


linda

e adorável... só, que, de modo tão absurdo, esposa de Valient.

- Por favor... Freddy, você não deve... falar-me assim... você não pode

dizer essas coisas, eu não devo escutar.


- Por quê? Não é como se eu estivesse querendo roubá-la de um
homem que a

ama! É diferente!

Ela suspirou baixinho e ele percebeu que a magoara com o que dissera.

- Valient tem sido bondoso e gentil comigo. Ele me salvou quando eu

estava no auge do desespero, decidida a enfrentar Londres sozinha e


sem

dinheiro... e eu serei eternamente grata a ele por isso...

- Pode ser que você se sinta grata, mas será que ele vai saber
reconhecer

80

o que você está fazendo por ele? Será que saberá demonstrar

gratidão?

Bela coisa eu estou fazendo! - exclamou ela, movendo as mãos

num gesto de desamparo. - Então, você não vê que se ele não tivesse

casado comigo, num ímpeto de momento, querendo se vingar de Niobe,

poderia facilmente ter arranjado outra herdeira rica? Eu sou apenas um

fardo a mais!

Houve um momento de silêncio.

- E se eu retirasse esse fardo de Valient? Se eu lhe pedisse, você iria

embora comigo, Jemima?

As palavras dele deixaram-na atónita e ela o fitou de olhos arregalados.

- Você está falando sério? - perguntou, quando conseguiu falar.

- É claro que estou. Eu amo você, quero você para mim e juro como a
farei
bem mais feliz do que Valient é capaz. Comigo, sem dúvida, você não
teria

que esfregar chão e viver nesta penúria.

Ela ficou em silêncio por instantes, depois disse:

- Eu me sinto muito honrada, mas nem preciso dizer qual a resposta.


Você

sabe.

- Mas por quê? Por que não vem comigo?

- O motivo principal, à parte as convenções ou a questão de certo ou

errado, é que eu não amo você.

- Eu ensinarei você a me amar. Jemima balançou a cabeça.

- O amor não é assim. Ou a gente sente, ou não sente. Ninguém pode


mudar

isso, ou mandar nos sentimentos - disse ela, como se estivesse


pensando

em outra pessoa.

- Não está querendo me dizer que Valient ainda ama aquela sua
priminha

mimada e antipática, está?

- É claro que sim. Ele pensa nela o tempo todo, achando que a está

odiando, mas na verdade o que está sentindo é amor. Ele vai amar
Niobe

para sempre...

Havia um tom de lamento na voz dela que não passou despercebido


para ele.

- Ah, agora estou entendendo porque você está me rejeitando.

81
Você o ama! - Ela não respondeu e ele insistiu. - É verdade, não é,

Jemima? Você ama Valient! Ela suspirou fundo.

- É, eu o amo sim. Acho que o amei desde o primeiro instante em que o


vi

na casa de meu tio, cortejando Níobe. Mas é claro que eu sabia que não

tinha esperanças... principalmente quando li as cartas que ele escrevia

para ela.

Como se não pudesse suportar o que Jemima estava dizendo, Freddy


ergueu-

se da cadeira, foi até a janela e ficou olhando com olhar ausente para o

quintal.

- Quer dizer que eu-não tenho a menor chance...

- É claro que não. Você não pode estar pretendendo causar um


escândalo,

fugindo com uma mulher casada, ainda mais esposa de seu melhor
amigo!

Pense no que os outros iriam dizer! Já imaginou? Valient poderia até

achar engraçado, mas você... arruinaria sua reputação! Freddy, eu


gosto

muito de você para lhe causar esse mal... nunca faria isso!

- Você me trata maternalmente... Jemima não pôde deixar de rir.

- Você tem razão! É exatamente como me sinto... uma mãe com dois
filhos

adoráveis!

Freddy virou-se para ela.

- Acho que sou capaz de raptar você... Quero levá-la comigo, para longe

daqui, cobri-la de jóias e fazer de você a mulher mais feliz do mundo


para não ter que ver mais esse rícto de tristeza em seus lábios e esse

brilho de solidão em seu olhar!

Jemima fitou-o, perplexa.

- É assim que eu pareço...

- De vez em quando... depende de como Valient a trata. Jemima olhou


para

ele um tanto confusa e depois de contemplá-la

ele mudou de atitude.

- Bem, mas eu não vim aqui para aumentar os seus problemas! disse,
em

outro tom de voz. - Vim fazer-lhes uma visita e trouxe algumas coisas

para você preparar para nós, além de uma caixa de champanhe para
Valient!

82

Antes que Jemima pudesse dizer qualquer coisa, ouviu-se uma voz

na porta - Será que ouvi alguém falar em champanhe?

- Olá, Valient! - exclamou Freddy, assim que o visconde entrou na

cozinha.

Ele largou sobre a mesa dois patos e três coelhos mortos e disse, cheio

de satisfação:

- Nada mal para uma manhã de trabalho, não é? Pelo menos já


podemos

convidá-lo para comer conosco, Freddy!

- Eu trouxe alguma coisa também - disse Freddy -, mas estou vendo


que

você continua bom de pontaria!


- Este velho bacamarte já está fora de moda - retrucou o visconde,

olhando para a arma que tinha na mão -, e para falar a verdade,


durante a

guerra, um francês era um alvo bem maior! Perdi vários cartuchos até

acertar esses animais...

- Não tem importância, isto já está ótimo! - disse Jemima, sorrindo. -

vou levar para a despensa.

O visconde nem fez menção de ajudá-la, sentou-se na beirada da mesa


e foi

dizendo:

- Estou contente por vê-lo aqui, Freddy! Por que não veio antes?

- Estava em Londres. - Ele viu o olhar do amigo se iluminar e


acrescentou

depressa: - Você não imagina como está monótono aquilo lá! Sempre as

mesmas festas, os mesmos mexericos... desde que você veio embora


não

aconteceu mais nada de interessante que merecesse comentários.

- Falaram muito de Jemima e de mim?

Ele ficou em silêncio como se estivesse refletindo sobre o que deveria

dizer, depois comentou apenas:

- Hoje de manhã foi anunciado o noivado de Niobe com o marquês!

- Bem, pelo menos acho que consegui estragar a sensação que isso
seria,

não é? - comentou o visconde.

- Sem dúvida. Tenho certeza de que ela sabe que a notícia do noivado
não

causou sensação nenhuma!


- Você não disse que trouxe champanhe? Pois então bebamos e

83

brindemos à infelicidade dela! - disse o visconde, erguendo-se. -. Onde


é

que você colocou?

- Está na carruagem, ou então meu cocheiro já trouxe para dentro.

- Vamos lá ver - disse o visconde, impaciente. - A única coisa que tem

na adega aqui é um vinho que não é dos melhores, aliás, foi por isso
que

meu pai deixou sobrar.

- Eu logo imaginei e como pretendo ficar aqui com vocês, se você não
me

expulsar, trouxe minha própria ração.

- Ótimo - aprovou o visconde.

E foi conduzindo o amigo até a porta da frente. Num dos longos


corredores

encontraram o cocheiro de Freddy que vinha carregando uma caixa de

mantimentos.

- Eu estou procurando a cozinha, sir - disse ele, dirigindo-se a seu

patrão. - Depois, onde quer que eu ponha o vinho?

- A cozinha é no fim deste corredor - respondeu Freddy - i pode deixar

que eu e o visconde cuidamos do vinho.

- Pois não, sir.

Jemima preparou o almoço usando muitas das coisas que Freddy tro
xera e

comeram os três juntos. Ao terminar a refeição, o visconde riu tão


contente, que ao contemplá-lo Jemima acabou concordando que a visita
de

Freddy tinha sido uma boa coisa. Há muito tempo que não se divertiam

tanto.

Logo que chegaram ali, ela havia ficado preocupada e aflita, para não

dizer horrorizada, ao constatar o quanto precisava ser feito para tornar

aquela casa habitável. Entretanto, não queria que o visconde percebesse


o

que estava sentindo, estava decidida a não demonstrar o menor


desânimo.

Por isso, mantivera sempre um tom de brincadeira, caçoando dele


quando se

enroscava numa teia de aranha e rindo quando ele dizia que era tarefa

para um Hércules, limpar a poeira dos séculos.

Na primeira noite, praticamente acamparam nos quartos cheirando a pó


e

mofo.

Logo Hawkins descobriu que os colonos estavam dispostos a ajudar por

alguns poucos tostões por dia e embora fossem quase todos bem
velhos, e

não trabalhassem muito, qualquer ajuda era bem-vinda.

84

Jemima foi ficando fascinada com a beleza do antigo mosteiro, de


grossas

paredes isolando todos os rumores, criando um clima de paz e

tranquilidade; o belo refeitório que resistira ao tempo e aos altos e

aixos da história.
Nos primeiros dias, ela sentia-se exausta quando ia se deitar e mal

percebiam os resultados do trabalho. Aos poucos, porém, as condições

foram melhorando e o fato de ela ver as melhorias e as transformações


que

havia conseguido servia de estímulo para querer melhorar ainda mais.

Quanto a alimentação, que era importante, já que estavam gastando


tantas

energias, descobriu, aliviada, que não precisavam gastar tanto dinheiro

quanto imaginara com comidas.

Valient caçava todos os dias coelhos e patos e, além disso, os colonos

cultivavam hortas nos quintais e quando viram o visconde instalado na

casa, faziam questão de oferecer a Jemima verduras e legumes e


ficavam

ofendidos se ela quisesse pagar. Entretanto, a manteiga e ovos ela

comprava deles e fazia questão de pagar, pois sabia que se eles


estavam

se mostrando generosos, era porque só estavam esperando o momento


de

pedir que o visconde fizesse restaurações em suas velhas casas que

estavam bem necessitadas.

Jemima várias vezes ficava imaginando como aquela propriedade devia


ter

sido bonita, na época em que Valient era criança e em que havia


dinheiro

para manter tudo funcionando perfeitamente e para pagar vários

empregados, para os mais diversos serviços que a propriedade


requisitava.
- Ah, estamos precisando de no mínimo uns seis empregados entre
cocheiro,

jardineiro e ajudante-de-caça, como no tempo de meu avô! queixou-se


o

visconde, um dia, ao voltar do bosque.

- Pois eu preferia ter seis empregadas domésticas! - retrucou Jemima.

- Não sei para quê! - disse ele, em tom zombeteiro. - A casa já está

limpa, quase tão impecável como era antes! Eu, sim, é que preciso de

cocheiros, jardineiros... e de uns doze cavalos, para atrelar no coche e

poder percorrer a propriedade dando minhas ordens!

85

Jemima jogou nele o pano de pó que tinha nas mãos que ele pegou no
ar e

jogou de volta para ela.

- Pare de me atrapalhar! - disse ela, rindo. - Se você está sem nada


para

fazer, é melhor ver se pesca umas trutas para o jantar, assim a gente

varia um pouco. Você já deve estar enjoado de comer carne.

- Não do jeito como você faz! - retrucou o visconde. - Sabe de uma


coisa?

Estou pensando que devemos oferecer um jantar aqui, qualquer dia

desses...

Ele falara de brincadeira.

- Se você se atrever a convidar alguém para vir aqui, antes que eu


tenha

transformado isso num lugar decente, eu vou embora! Você não imagina
o
quanto ainda falta fazer!

O visconde riu e depois que ele se foi, Jemima ficou pensando,

desesperada, que sem dinheiro e sem ajuda jamais conseguiria


restaurar

totalmente o casarão.

Em todos os aposentos havia pelo menos uma ou duas vidraças


quebradas,

em alguns o assoalho estava carcomido e o teto cedera e estava caindo.

Nos três primeiros dias não conseguiram esquentar a água e tomaram


banho

frio no lago.

Por isso, naquele momento, depois da refeição, vendo Freddy eo


visconde

rirem animados, Jemima sentiu que tinha valido a pena todc o esforço e

afinal não fora tão difícil assim! Embora a preocupação com o futuro

estivesse sempre presente, estavam vencendo, por enquanto, mas e


dali em

diante?

Se ela já estava decidida a não aceitar mais empréstimos de Freddy,


desde

que haviam partido para o mosteiro, agora então que ele tinha dito que
a

amava ela achava que seria ignóbil aceitar dinheiro dele.

Ao mesmo tempo, a conversa com Freddy tinha aquecido seu coração e


lhe

dado um novo alento. Ela não mentira ao dizer que amava o visconde.
Isso

era algo que tinha percebido desde que se casara com ele.
Bastava olhar para ele, com aquele rosto bonito e o corpo atlético, para

que sentisse o coração palpitar. Mas conhecia bem sua posição, por isso

não demonstrava nada e contentava-se com pouco. Só de poder falar


com ele

e cuidar dele, já se sentia feliz.

86

Imagine só se depois de ter amado alguém tão linda quanto Niobe ele ia

prestar atenção nela! Não, não tinha a menor esperança.

Ela apenas era útil a ele. Preparava boas refeições, cuidava das roupas

dele e acima de tudo tinha servido como instrumento de vingança para

fazer sofrer a mulher que o iludira e humilhara.

Jemima repetia para si mesma que seria muita ambição sonhar com
mais do

que tinha no momento, mas não podia deixar de se perguntar, também,


se

ficaria satisfeita com isso para sempre.

Ficou algum tempo olhando o visconde ir com Freddy até o estábulo


para

examinarem os cavalos que estavam lá, depois deu um suspiro e


começou a

arrumar a cozinha.

- Eu faço isso para a senhora, milady, pode deixar - disse Hawkins,

surgindo na porta.

- Mas você ainda nem almoçou! Vá comer primeiro. O sr. Hinlip trouxe
um

presunto delicioso.

- Eu sabia que ele não viria de mãos vazias!


- Ele tem sido muito generoso... e mandou o cocheiro dele hospedar-se
no

Green Man para não nos dar trabalho!

- Eu ouvi, milady.

- Mais tarde vamos preparar o quarto pegado ao do visconde para ele.

Ontem a sra. Benson lavou tudo e hoje você vê se consegue que os


outros

ajudem, também, para deixar o quarto o melhor possível.

- Eu farei isso, milady. E a sra. Groves disse que prefere lavar a louça,

assim não precisa se movimentar muito.

- Então vamos deixar que ela faça isso - sorriu Jemima.

Ela saiu da cozinha e resolveu ir ao estábulo reunir-se aos homens.


Antes

do almoço, havia tomado banho e trocado de roupa, estava com um dos

vestidos caros comprados em Londres e ficou pensando se não poderia

estragá-lo, se não seria melhor colocar outra vez o vestido velho que

estava usando quando Freddy chegou. Mas acabou concluindo que não
queria

mais que ele a visse desarrumada. Só que com aquela roupa não podia
mais

fazer nenhum serviço doméstico.

Ajeitou os cabelos diante do espelho e saiu para o pátio. Lá fora, achou

que seria falta de tato interromper a conversa dos amigos e em vez de


ir

para a cocheira onde eles estavam, ficou andando pelas imediações

87

e resolveu inspecionar a ala oeste da casa, uma parte do mosteiro


que ainda não tivera tempo de cuidar.

Naturalmente estava tudo sujo e empoeirado lá dentro, e ela ergueu

o vestido um pouco para que não encostasse no chão. Ia olhando as

coisas com interesse, descobrindo móveis e peças que com boa limpeza

ficariam bem melhores do que os que estavam usando na ala principal.

Jemima tinha decidido, logo de início, que a coisa mais sensata era

arrumar bem a sala de visitas e a biblioteca e esquecer o resto da casa.

O mosteiro era tão grande que desde que chegara ela ainda não

conseguira ver tudo, explorar todos os aposentos. Também não tivera

tempo. As medidas de primeira necessidade tinham sido limpar os

quartos, a sala, e a cozinha.

Agora, com mais tempo, pretendia começar a mudar algumas coisas e


depois,

então, se o visconde quisesse, poderiam convidar os vizinhos.

Já haviam examinado uma boa parte daquela ala e achou que podia ir
ao

encontro do marido e do amigo. Abriu a porta, pensando que desse para

fora, mas para sua surpresa viu-se num lugar muito estranho e havia
uma

mulher ali.

A mulher estava contra a luz, por isso Jemima não pôde ver logo o rosto

dela, mas assim que a viu a mulher virou-se para ela e fez uma mesura.

- A senhora deve ser a nova viscondessa Oclcley, não é? - disse ela,


com

voz nervosa, mas com palavra e pronúncia bem distintas e corretas. -


Espero que me desculpe por eu estar aqui sem ter ido falar com a
senhora,

mas eu pedi para seu empregado chamá-la e ele disse que o lorde ainda
não

estava recebendo ninguém aqui.

Jemima percebeu que ela estava ansiosa e aflita para explicar sua

presença, desculpando-se, e sorriu para ela, estendendo-lhe a mão.

- É que temos andado muito ocupados desde que chegamos, pondo as


coisas

em ordem - disse Jemima. - Não vai me dizer seu nome?

- É claro, milady, eu já devia ter dito! Eu sou a sra. Ludlow e meu

marido é o pastor da igreja, o vigário.

- Prazer em conhecê-la, sra. Ludlow.

Ela era uma mulher de meia-idade com um rosto simpático e afável e

cabelos grisalhos. Usava um vestido simples, sem adornos, e Jemima

88

percebeu que ela estava segurando um enorme pote e que havia outro
no

chão. A sra. Ludlow seguiu o olhar dela.

- Talvez tenha feito mal, milady, em não ter pedido a permissão á

senhora, mas eu vim buscar água. É que... tinha certeza de que tnilorde

não iria recusar.

- Buscar água - admirou-se Jemima.

- É, milady. Tem muita gente na aldeia que não passa sem ela e sempre
que

tenho uma folga na paróquia eu venho buscar água para eles.


- Mas, que água, senhora Ludlow? Não estou entendendo.

- Aquela ali, milady.

Ela apontou para o centro daquele estranho aposento coberto de sapé,


com

as janelas quase todas quebradas e Jemima viu que havia um pequeno


tanque

circular construído em pedras agora cobertas de musgo e meio


encoberto

por ervas daninhas que haviam invadido o local abandonado.

Ficou olhando, por instantes, sem entender o que a mulher do pároco

queria dizer e então percebeu um fio d'água brotando de entre as ervas


e

acumulando-se no tanque.

- Mas por que a senhora quer esta água? Naturalmente, deve haver
água na

aldeia, não é? - perguntou Jemima.

- Quer dizer que a senhora nunca ouviu falar da água do Mosteiro


Ockley?

Então, será que milorde...

- Ele nunca me disse nada sobre água nenhuma.

- Essa não é uma água comum, milady. É uma água milagrosa... e as


pessoas

da aldeia têm tanta fé que não passam sem ela.

- Explique-me melhor, conte-me essa história direito, por favor.

- Bem, é uma lenda, naturalmente... mas dizem que os monges que

construíram este mosteiro, escolheram este lugar porque o abade


superior
da ordem teve uma visão... Nosso Senhor apareceu para ele e disse que
a

missão dele era curar os doentes e que se construísse o mosteiro aqui


ele

encontraria o meio para curá-los...

- que seria esta água?

- É, milady. Depois, a lenda ficou esquecida por algum tempo, talvez

porque o outro visconde Ockley não deixasse os aldeães usarem a


fonte...

89

Jemima sorriu.

- E agora eles pedem para a senhora vir buscar.

- Pois é... a senhora verá que todos os seus colonos também bebem a
água

da fonte. Na verdade, todos aqui da região conhecem a fonte e os

benefícios dessa água.

- E quais são os benefícios?

- Todos acreditam que a água os mantém jovens e ativos, e na verdade


ela

acaba com dores mesmo. Eu própria tive a experiência. Vivia me


queixando

de dores e no inverno passado estava quase imobilizada pelo


reumatismo,

até que meu marido perguntou por que eu não experimentava beber a
água

também, já que vinha buscar para todos.

- Daí a senhora bebeu... e o que houve?


- Confesso que não estava acreditando muito, mas comecei a tomar.
Depois

de duas semanas, a dor começou a diminuir e acabou sumindo. Minhas


pernas

ficaram boas de novo e eu já não tinha mais dificuldade para subir

escadas.

- Então, é essa a história! - Jemima sorriu e viu que a água se


acumulara

no pequeno tanque. - E a fonte nunca seca?

- Não, nunca secou, até hoje. Só está correndo muito lentamente


porque

acho que essas ervas estão obstruindo a água. Talvez seja preciso

arrancá-las.

- Preciso dizer isso a meu marido... Por favor, sirva-se à vontade.

Talvez possamos conversar melhor um outro dia.

- É claro, com todo prazer, milady. Ficaria muito honrada. Espero que

milorde não ache atrevimento meu ter vindo buscar água sem pedir a

permissão dele.

- Ele vai gostar de saber que a água é tão útil - retrucou Jemima,

sorrindo.

Despediu-se e saiu apressada em direção à cocheira. Passou por entre

algumas árvores e descobriu que o visconde e Freddy estavam na cerca


do

pasto, olhando os cavalos soltos ali.

- Eu os batizei de Rômulo e Remo - dizia o visconde, quando Jemima se

aproximou. - Lembra-se da lenda das duas crianças que foram adotadas


por
uma loba e que depois fundaram Roma? Pois é,

90

áL

acho que para domar esses dois cavalos vou ter que ser mais forte que

um lobo!

Jemima andara tão depressa, que estava quase sem fôlego quando
parou ao

lado do visconde.

- Valient! - exclamou ela, ofegante. - Adivinhe o que acabei de

descobrir?

- Se é outro teto despencado, não quero nem ouvir falar agora


respondeu

ele.

- Não, não é nada disso! É a água... a fonte milagrosa do mosteiro!

O visconde fitou-a surpreso e por um instante pareceu não estar

entendendo. Depois exclamou:

- Ah, já sei de que está falando! Há uma fonte no fim da ala oeste que

dizem ter poderes milagrosos. Eu me lembro que meu avô contava essa

história, mas é claro que é tudo lenda!

- Não é o que pensa o povo da aldeia, e a mulher do pastor disse que


ela

curou o reumatismo com essa água.

- Bem, eu prefiro beber o champanhe que Freddy nos trouxe -, zombou


o

visconde - mas gosto é gosto e não se discute!


- Não é brincadeira, Valient. Isso é uma grande descoberta! Na
verdade...

acho que descobrimos o que estávamos procurando.

Ela falou com tanta seriedade que os dois homens olharam para ela

admirados.

- De que está falando? - perguntou Freddy. - Eu não sabia que Valient

tinha uma fonte milagrosa... mas, afinal, acho que isso era de

se esperar num mosteiro, não é?

- Vocês dois não estão me levando a sério! Ouçam o que eu tenho a


dizer.

A sra. Ludlow disse que todos na aldeia acreditam nos poderes; da fonte

e ela vem uma ou duas vezes por semana buscar água para

eles. Os colonos também bebem a água... e você já reparou como são

saudáveis e fortes apesar de serem idosos? - O visconde olhava para


ela,

atordoado, sem entender aquele entusiasmo, mas ela continuou. - Você


deve

saber que estações de águas minerais são bastante populares, não é?


As

águas quentes de Bath são muito famosas e as de Beaulah em Dulwich

também... sem falar nas Termas de Sadlers! - Fez uma

91

pausa para tomar fôlego e continuou: - Eu me lembro que papai e


mamãe

foram uma vez, há alguns anos, à Islington e disseram que as águas


eram

boas para gota, artrite e também para insónia. Houve um breve silêncio,
depois o visconde disse, incrédulo:

- Será que entendi mal ou você está mesmo sugerindo que façamos um

balneário aqui?

- Por que não? Basta que uma pessoa seja curada e centenas de outras
vão

querer experimentar e estarão dispostas a pagar qualquer preço,

principalmente se além de curadas acharem que vão rejuvenescer.

O visconde a fitava, atónito, de olhos arregalados.

- Meu Deus! - disse Freddy. - Acho que Jemima teve uma ótima ideia! E
a

primeira pessoa que vai querer experimentar será mamãe que sofre de

reumatismo há anos, e depois papai que está ficando cada vez mais
mal-

humorado por causa da gota.

- Você acha mesmo que eles gostariam de experimentar a água, para


depois

nos dizer sinceramente se houve ou não melhora? - perguntou Jemima.

- É claro que sim, é só eu pedir a eles. Eles já tentaram tantos remédios

sem nenhum resultado!

Jemima cruzou as mãos.

- Suponhamos que seja mesmo verdade o que a mulher do pastor


falou... que

haja mesmo cura... quanto acha que deveríamos cobrar pela água
Ockley?

- O máximo que pudermos conseguir! - respondeu o visconde. Depois,


ele e

Jemima se entreolharam e sorriram, lembrando-se de


que ela dissera essas mesmas palavras em relação ao sr. Roseburg.

- Venham dar uma olhada! - disse ela, eufórica. - Acho que vamos ter
que

limpar a fonte para que a água saia mais depressa, dar um jeito naquele

lugar... Parece uma capela! Já pensaram que maravilha se pudermos


ganhar

dinheiro e ao mesmo tempo curar pessoas e proporcionar alívio a seus

sofrimentos?

- Eu acho isso tudo uma loucura! - disse o visconde -, mas estou


disposto

a tentar qualquer coisa.

Os dois seguiram Jemima que ia na frente tão depressa que eles


precisaram

se esforçar para acompanhá-la.

92

- Sem dúvida, vai ser uma experiência bastante nova para você, ganhar

dinheiro em vez de gastá-lo, Valient - caçoou Freddy.

- É, e você vai me ajudar - respondeu o visconde. - Acho que vou


colocar

você na porta, cobrando entrada. Que tal? Será que devemos fazer um

uniforme para ele, Jemima?

Jemima já estava tão na frente que nem ouviu a brincadeira.

- Vou lhe dizer uma coisa - falou o visconde, com ar sério. Se não tiver

certeza de que esse é um bom modo de ganhar bastante dinheiro, não


vou

investir um centavo nem vou perder meu tempo com isso.

- Está sendo sensato, Valient. Mas não desencoraje Jemima, ela está tão
animada! Você há de convir, Valient, que nenhuma outra mulher que
você

conhece teria feito tanto por você, e agido com tanta

esperteza, quanto ela! Jemima não se queixa de nada, resolve tudo

facilmente e está sempre de bom humor!

O visconde olhou para o amigo, surpreso com o modo dele falar, depois

disse:

- É claro! Você tem razão! Eu reconheço e sou muito grato a Jemima.


Ela

tem trabalhado como não sei o quê!

- Você pode imaginar Niobe na mesma situação? - perguntou Freddy de

repente.

Houve um silêncio, depois quando já se aproximavam da porta que


levava

à fonte o visconde disse:

- Mas é claro que com Niobe não existiria essa situação, ou não é?
Freddy

não encontrou resposta, mas gostaria de ter conseguido dizer

algo, ou mesmo fazer algo, para que Valient percebesse que Jemima era

indubitavelmente uma pessoa extraordinária, uma mulher fora do


comum.

93

CAPÍTULO VI

Jemima entrou correndo na sala onde o visconde estava em pé ao lado


da
mesa contando umas moedas de ouro.

- Fizemos mais vinte libras! - exclamou ela, eufórica, agitando no ar


uma

bolsinha de couro. - Chegou um coche cheio de gente, bem na hora que

Freddy e eu já íamos fechar. O visconde contemplou-a admirado.

- Sabe o que isso significa? - disse ele. - Que já fizemos quase noventa

libras hoje! - Ele ergueu Jemima no ar como se ela fosse uma criança e

rodou com ela pela sala. - Noventa libras! Ah, Jemima, você é a mulher

mais inteligente do mundo!

Depois, parou de rodar e beijou-a nas duas faces, antes de colocá-la no

chão e em seguida beijou-a nos lábios.

Foi um beijo leve e rápido, sem nenhuma sensualidade, mas Jemima


sentiu

um arrebatamento que nunca sentira antes. Um arrepio percorreu-a da

cabeça aos pés e ela se sentiu desfalecer.

O visconde soltou-a, pegou a bolsinha de dinheiro e espalhou as moedas


na

mesa para contá-las.

- Oitenta e oito libras e cinco xelins... - disse ele, com ar sonhador. -

Será mesmo possível?

94

- E você não deve esquecer... que este é... o primeiro dia. Jemima

tentava falar com naturalidade, mas sua voz soava estranha

e ela sabia que era porque ainda estava ofegante e sentindo o corpo
todo

vibrar, desde que o visconde a beijara.


- Se vieram uma vez, com certeza vão voltar - disse ele -, ainda mais se

a água faz tão bem assim como lady Hinlip disse!

- A mãe de Freddy foi maravilhosa! E nem temos como agradecê-la.


Freddy

disse que ela escreveu dezenas de cartas para todos os seus conhecidos
no

condado e além disso o jornal publicou o que estamos fazendo... isso

ainda vai atrair muito mais gente.

- Ainda não posso acreditar! - disse o visconde, maravilhado. Mas


Jemima

não achava assim tão surpreendente aquele sucesso. Ela,

o visconde e Hawkins tinham trabalhado bastante para restaurar o que


ela

chamava de "capela". Desde a manhã até tarde da noite, quase sem


parar. E

Valient não parava de falar que o que suportara no exército tinha sido

brincadeira perto do que Jemima o obrigava a fazer.

Primeiro arrancaram todas as ervas daninhas que obstruíam o curso da


água

e então perceberam que quando o tanque se enchia, a água saía por

aberturas, de modo que nunca transbordava. Depois limparam as


pedras do

tanque e da fonte, tirando todo o musgo; conseguiram que um dos


colonos

recolocasse os vidros nas janelas da "capela" e restaurasse as paredes

cujo reboco estava caindo em vários lugares.

- Eu acho melhor tirar tudo de uma vez - disse Jemima -, e deixar a


pedra
nua como deve ter sido no início, quando os monges construíram isso
aqui.

Fica muito mais bonito. Está tudo saindo mesmo, olhe só...

Ela puxou um pedaço grande de reboco e fez uma exclamação.

- O que foi? - perguntou Freddy, erguendo os olhos do que estava


fazendo.

- Venham aqui, depressa! - disse Jemima, excitada. - Acho que


encontrei

alguma coisa!

De fato, ela havia descoberto uns murais antigos que deviam ter sido

pintados há vários séculos e que, sem dúvida, tinham sido tapados com

argamassa pelos Puritanos.

Demoraram vários dias para remover o reboco sem danificar os murais.

95

Foi um trabalho difícil, mas quando terminaram havia mais três

maravilhosos desenhos primitivos representando santos cercados de


aves e

pequenos animais.

As cores estavam um pouco desbotadas, mas os tons empalidecidos


pareciam

em perfeita harmonia com o clima de paz que circundava a fonte.


Assim, a

capela voltou a ser como tinha sido feita originalmente. O visconde


achou

umas peças de madeira entalhada, no sótão, que formavam uma


belíssima

mesa, depois procuraram mais até que encontraram umas cadeiras de


carvalho que combinavam.

Tudo isso levara tempo mas estavam animados com a descoberta e


ficaram

ainda mais entusiasmados quando lady Hinlip mandou um relatório com


os

efeitos benéficos da água que Freddy levara para ela experimentar.

Ela escreveu dizendo que seu reumatismo tinha melhorado


sensivelmente e

que estava se movimentando com muito mais facilidade. Além disso, a


gota

de lorde Hinlip parara de incomodar e a inflamação do pé estava


cedendo.

- Você ainda acha que é só lenda mesmo? - perguntou Jemima ao


visconde,

depois de lerem.

- Está bem, retiro o que disse e já que estou com dor nas costas de
tanto

que você me fez trabalhar, vou beber um pouco da água, embora


continue

preferindo o champanhe de Freddy.

- Por falar nisso, eu lhe trouxe mais duas caixas - disse Freddy.

- Você é generoso demais conosco - disse Jemima.

Ele a fitou com uma expressão que a fez compreender por que ele
preferira

ficar lá, apesar de todo o desconforto, e não voltar para Londres.

Contudo, ela estava contente por ele ter ficado. Freddy mantinha o

visconde bem-humorado e os três juntos se divertiam e riam muito,


apesar
de todo o trabalho que havia para ser feito.

com toda essa atividade, Valient nem tinha tempo para domar os
cavalos

selvagens, nem para montar os cavalos de Freddy que agora ocupavam


o

estábulo em ruínas.

- A primeira coisa que teremos que fazer quando começar a entrar o

dinheiro - disse o visconde -, é arrumar o telhado.

- Aí é que você se engana - retrucou Jemima, com firmeza. 96

Antes de gastarmos qualquer centavo conosco, temos de pagar as


dívidas. -

Ela viu uma expressão de rebeldia no rosto do visconde, mas antes que
ele

dissesse qualquer coisa continuou: - No começo, está certo que


fiquemos

com a metade, pelo menos, para podermos viver. Agora, depois que

saldarmos a dívida, teremos que fazer muita coisa aqui, não só no

estábulo mas principalmente na casa.

- Você acha mesmo que essa ideia maluca vai render o suficiente para

fazermos tudo isso? - perguntou, indeciso.

- Eu aposto como a descoberta de Jemima é uma mina de ouro! Freddy

comentou.

- Espero que você tenha razão - disse Jemima -, mas de qualquer forma

acho que vale a pena tentar.

Mas o visconde ficou impressionado com a carta da mãe de Freddy. Na

verdade, como lady Hinlip conhecia vários balneários, foi ela quem
sugeriu o preço que deveriam cobrar e explicou que iriam precisar de

vasilhas e garrafas para que as pessoas transportassem a água.

Ficaram sabendo que o balneário de Beaulah, como vários outros,


cobrava

três guinéus por uma inscrição de um ano para uma família, ou então
um

guinéu e meio por pessoa. Além disso, era possível comprar água a dois

xelins por galão ou garrafas pequenas de um xelin cada.

Jemima decidiu que os primeiros bilhetes de entrada que mandariam

imprimir, seriam distribuídos gratuitamente para os colonos e todos que

viviam na propriedade do visconde, além da sra. Ludlow, é claro.

Freddy foi a Londres para descobrir onde se comprava todo esse


material e

na volta limparam a alameda que ia até a fonte, arrancando raízes, e

cobriram o caminho com cascalho para que não ficasse enlameado


quando

chovesse. Era um trabalho pesado, mas só depois disso poderiam abrir


ao

público.

- Era melhor chamar um operário para fazer esse serviço! - disse o

visconde, empurrando um carrinho de mão e suando sob o sol de verão.

- E com o que iríamos pagá-lo? - respondeu Jemima.

Quase que instintivamente o visconde olhou para onde estava Freddy,

transportando um carrinho de mão, cheio de cascalho.

- Não! - falou Jemima com firmeza antes que ele dissesse qualquer
coisa.

- Você já deve muito a ele, Valient.


97

- Freddy não se importa com isso.

- Não se trata disso. Essa é a sua fonte, sua casa, sua propriedade e, se

preferir... seu reino!

Ela disse isso com ênfase e fitou o marido com um olhar revelador que
ele

não viu, pois estava olhando para as mãos machucadas.

- Só lhe digo uma coisa: se não aparecer ninguém para beber essa
bendita

água, depois de toda essa trabalheira, eu jogo você no lago, Jemima!

- Infelizmente, para você, eu sei nadar! - retrucou ela, rindo.

Ela percebeu que Valíent estava irritado e se afastou rezando baixinho,

como fazia sempre, para que tudo desse certo e que o balneário fosse
um

sucesso.

Naquele momento, olhando as moedas que o visconde contara e


empilhara

sobre a mesa, Jemima sabia que o sucesso tinha superado todas as

expectativas. Ela era esperta o bastante para saber que não fora só a

fonte e a carta de lady Hinlip que atraíra tanta gente, mas também a

curiosidade que muitos tinham de conhecer o visconde e ela. O fato era

que tinham chegado às dezenas, em carruagens e coches só para beber


um

copo d'água que Jemima, usando um de seus mais belos vestidos, lhes

entregava com um sorriso.

O visconde os cumprimentava, um a um, cordial e afável,


extremamente
elegante.

- Nossa, minhas roupas estão ficando apertadas - comentou Freddy, em


dado

momento. - Deve ser essa comida deliciosa que você faz para nós,
Jemima.

- É, mas quem traz a maior parte é você! - sorriu ela.

- Só para lhe poupar trabalho. Detesto ver você trabalhando tanto


assim!

Ele era tão atencioso e preocupado com esse aspecto que Jemima não
pôde

deixar de imaginar se o visconde alguma vez achara que ela trabalhava

demais e que era muito esforço para uma mulher, principalmente uma
tão

pequena como ela era.

Ela preparava quatro refeições por dia: café da manhã, almoço, lanche e

jantar, para dois homens cujo apetite aumentava cada vez mais.
Cuidava

das flores, enfeitava a casa, remendava lençóis e fronhas.

98

Às vezes estava tão cansada que adormecia, mal encostava a cabeça no

travesseiro, mas às vezes ficava acordada na cama, imaginando se o

visconde, no quarto ao lado, ainda estaria pensando em Niobe com


amor.

porque Jemima tinha certeza de que ela própria nunca estava presente
nos

pensamentos e sonhos do visconde.

Ele a tratava bem, era atencioso, fazia o que ela lhe pedia, elogiava sua
comida, mas Jemima tinha certeza de que nem por um momento lhe
ocorria

que ela era sua esposa no verdadeiro sentido da palavra, ou mesmo que
ele

pudesse achá-la uma mulher atraente como Freddy achava.

Costumava, então, abraçar o travesseiro, repetindo para si o quanto o

amava e se recriminava por desejar mais do que tinha. Devia se


contentar

apenas em vê-lo todos os dias e cuidar dele!

Às vezes, sentia que a mãe estava guiando seus passos de longe e tinha

quase certeza que fora ela que a fizera entrar na capela da fonte, na

hora em que a sra. Ludlow estava lá.

Se a mulher do pastor não estivesse lá, ela teria passado por ali e

seguido para a cocheira sem nem reparar na fonte escondida entre as

plantas.

Olhando o dinheiro sobre a mesa, ela falou:

- Alguém vai ter que ir a Londres amanhã, para buscar mais garrafas.
Nós

compramos bastante, mas depois da multidão que veio hoje o estoque


ficou

desfalcado.

- É, foi um movimento incrível! - disse o visconde.

- Sabe, acho que tive outra ideia.

- O que foi, agora?

- Uma das senhoras... acho que foi uma que você chamou de Betty,

perguntou-me se a alfazema daqui ainda era tão boa quanto costumava


ser...

- Ah, aquela é lady Cunningham - explicou o visconde. - Eu a conheço

desde criança, agora ela é casada e mora com o marido a alguns

quilómetros daqui. É nossa vizinha, portanto.

- Por que ela falou da alfazema?

- É que a de nossas terras foi sempre conhecida por ter um perfume


mais

forte.

99

- Eu vi essa alfazema! No jardim está cheio, embora esteja murada com

mato.

- É melhor arranjarmos alguém para cuidar desse jardim - disse o

visconde. - Agora já podemos pagar.

- E podemos também pedir à sra. Laing, que é habilidosa com essas


coisas,

para fazer saquinhos de sache de alfazema... Daí poderemos vendê-los.

- Você está pretendendo que eu vire dono de loja?

- Por que não? Se podemos vender água, podemos vender outras


coisas. Você

viu, hoje, como as pessoas ficam ansiosas para comprar lembrancinhas


e

outras coisas.

- É, quanto a isso você tem razão - disse ele com certa relutância.

- mas, que eu me lembre, nunca houve um Ockley comerciante.

- E se você estudar bem a árvore genealógica da sua família, duvido que

encontre outro Ockley que tenha sido pobre como você.


- É verdade... - disse ele sério, depois mudou de tom -, mas hoje estou
me

sentindo rico, graças a você, Jemima! E se Freddy não aparecer logo


para

fazermos um brinde, eu mesmo vou abrir uma garrafa de champanhe.

- Eu agradeceria muito se você fizesse isso! - disse Freddy da porta.

- Eu cortei o dedo num prego da caixa de champanhe e está san


grando!

- Então é preciso lavar isso - disse Jemima, depressa. - Eu vou fazer um

curativo para você.

- Não é tão grave assim! - protestou Freddy.

Mas Jemima já havia saído da sala. Logo voltou com uma pequena bacia
com

água fria e uma tira de pano. Valient e Freddy já haviam enchido as

taças.

- Um brinde a uma maravilhosa e esperta mulher de negócios, que nós

amamos e admiramos! - disse Freddy, erguendo a taça, assim que ela

entrou.

As palavras tinham sido simples, mas Jemima achou o modo dele falar
um

tanto indiscreto. Olhou apreensiva para o visconde, mas nem precisaria

ter se dado ao trabalho. Ele estava servindo-se de mais champanhe.

100

- Eu jamais poderia pensar - disse ele - que alguns copos d'água


pudessem

dar tanto dinheiro! Não estava acreditando nisso!

- Você sempre foi cético - retrucou Freddy.


- Mas você há de convir que isso era um tiro no escuro e, como acabei

de dizer a Jemima, sou o primeiro Ockley a entrar no ramo do comércio.

- E duvido que seja o último - disse Freddy. - Os tempos estão


mudando,

meu caro. Aquela época em que os nobres tinham imensas fortunas já

pertence ao passado, graças à guerra.

- Nós tivemos sorte, muita sorte mesmo! - disse Jemima. - Freddy, se

você vai a Londres amanhã, conforme disse, para comprar mais


garrafas,

quer fazer o favor de levar o dinheiro para Westons, o alfaiate, e dizer

para ele dividir com os outros credores?

- Você sabe que eu faço qualquer coisa que me pedir - disse Freddy -
mas

só que acho que, como amanhã é domingo e teremos muitos visitantes


outra

vez, seria melhor eu ficar aqui para ajudá-la.

- Você acha mesmo? Eu pensei que domingo fosse dia de as pessoas


ficarem

em casa descansando... - disse Jemima.

- Parece que os Tiverton, pelo menos, virão. Mamãe me disse que se


eles

não viessem hoje, viriam amanhã.

- Então, é claro que você deve ficar aqui - disse Jemima - e, depois, que

besteira a minha! Como você ia poder comprar as coisas num domingo?

- Vamos nós dois na segunda-feira - sugeriu o visconde. Jemima olhou

alarmada para Freddy.

- Ah, isso é impossível! - disse ele depressa.


- Por quê?

- Não podemos deixar Jemima sozinha aqui.

O visconde refletiu por alguns instantes e Jemima temeu que dissesse


que

ela sabia se cuidar bem sozinha.

- É, você tem razão - disse ele, afinal. - Vai você, então, e se for até

o clube conte a eles o que estamos fazendo. Eles vão se divertir com a

história!

- Se quiser posso colocar um aviso no quadro, dizendo que você

101

terá prazer em recebê-los aqui, já que quase todos sofrem de gota, e


que dará um desconto especial para os sócios.

- Você que se atreva a fazer uma coisa dessas! - indignou-se o


visconde. - E, pensando bem, talvez seja melhor não falar no assunto lá.

Nesse momento Hawkins entrou com algo nas mãos.

- É o The Times, Hawkins? - perguntou o visconde.

- Chegou da aldeia, hoje à tarde, milorde, mas o senhor estava muito


ocupado naquela hora.

- Há dias que não vejo um jornal! - exclamou Freddy. - Eu já ia


perguntar quando é que você ia providenciar uma assinatura.

- Fiz isso há uma semana - respondeu o visconde. - É que as coisas


andam devagar aqui. Espero que, de agora em diante, a entrega seja
regular, pelo menos!

- Também espero - disse Freddy. - Estamos tão sem contato com o


resto do mundo que até parece que estamos na lua.

-° Para falar a verdade, até que é um alívio - retrucou o visconde.

- Os jornais só têm reclamações contra o governo e queixas dos


agricultores falando de suas dificuldades.
- Você tem razão. Não há nada mais monótono do que isso. Os jornais
só melhoram quando há alguma guerra servindo de assunto.

- Graças a Deus, não há nenhuma agora! - exclamou Jemima. Ficou


horrorizada só de pensar na preocupação que teria se o visconde

e Freddy tivessem que ir lutar numa guerra, como haviam feito há três
anos.

Freddy colocou champanhe na taça dela e depois na dele. Largou a


garrafa e fez um brinde silencioso, lançando a ela um olhar eloquente.

Jemima desviou o rosto depressa, sentindo-se irritada por ele proclamar


seus sentimentos de maneira tão aberta e insistente.

Nesse instante, o visconde, que lia o jornal, soltou uma exclamação que
ecoou por toda a sala.

- Meu Deus! - disse ele. - Adivinhem o que aconteceu?

- O que foi? - perguntou Jemima.

- Porthcawl! - respondeu ele, relendo a notícia, incrédulo.

- Porthcawl? - repetiu Freddy. - O que houve com ele?

- Ele morreu!

102

- Morreu?

- Teve um ataque cardíaco na Casa dos Lordes. Saiu carregado, mas


morreu antes de ser colocado em sua carruagem.

- Meu Deus do céu! - disse Freddy. - Ele nunca me pareceu

muito saudável, mesmo.

Jemima largou a taça e saiu da sala. Enquanto subia as escadas,


devagar, ia pensando o que o visconde estaria sentindo. O primeiro
pretendente de Niobe morrera e o segundo da lista, o visconde, poderia
ser escolhido agora, se já não estivesse. . . casado.
Tal como Freddy previra, o balneário ficou lotado no dia seguinte. As
pessoas pareciam encantadas por terem descoberto uma nova distração
para o domingo.

Vinha gente de todas as partes do condado. Chegavam em coches,


carruagens e tílburis e da aldeia vinham os fazendeiros, de carroças,
com as famílias, vestindo as melhores roupas. Todos tinham recebido
bilhetes grátis.

A maioria trazia pessoas de idade que já estavam com as mãos


deformadas pelo reumatismo e que caminhavam com dificuldade devido
à artrite. Era animador ouvir o testemunho dos aldeães que já usavam a
água há algum tempo.

- Eu não saía da cama há dois anos, milady - disse uma mulher idosa a
Jemima que lhe servia a água. - Mas agora, embora ainda sinta um
pouco de dores, eu já posso ser útil de novo, ajudando minha filha a
lavar louça.

- E a senhora acha que isso é devido à água?

- Posso jurar para a senhora que sim, milady! Essa água é uma bênção
dos céus!

- Realmente! - concordou Jemima.

Havia várias pessoas que, tendo vindo de longe e conhecendo o


visconde desde que ele era criança, queriam entrar na casa.

Apesar de Jemima ter dito a Valient que ainda não estavam em


condições de receber visitas, inevitavelmente as pessoas acabavam
sendo levadas para a sala.

Jemima sentiu-se constrangida e sem jeito achando que estavam

103

reparando nas cortinas desbotadas, nos tapetes e estofamentos.


desgastado

Mas, afinal, no conjunto, a sala estava bonita e bem arrumada. As


madeiras

tinham sido polidas, as porcelanas lavadas e tudo estava limpo e parecia


combinar com a construção antiga do Mosteiro.

- Eu fui muito amiga da mãe de seu marido - disse uma senhora para
Jemima

- e estou tão contente que vocês dois tenham vindo morar aqui no

Mosteiro! Espero que possamos nos tornar amigas também!

- Obrigada pela gentileza, eu ficaria muito feliz e honrada com isso.

- Você é exatamente o tipo de esposa que eu sempre desejei que i


Valient

escolhesse - continuou ela. - Eu temia que ele se deixasse encantar por

uma dessas moças elegantes e esnobes de Londres, que detestam o


campo e

só pensam em vestidos bonitos e na própria aparência. - Ela examinou a

sala, de relance, e sorriu para Jemima. - Estou vendo que você

transformou isso num ambiente bastante acolhedor, um verdadeiro lar!


E

é justamente disso que Valient precisa, agora que a guerra acabou. E

aqui tem espaço para uma família de, no mínimo, umas doze crianças.

Jemima corou sem querer e a outra deu risada.

- Ora, não precisa ficar embaraçada, minha querida. vou dizer

a Valient que ele é mesmo um homem de sorte por ter casado com
você,

assim que terminarem a lua-de-mel quero que venham me visitar. E

Só depois que ela se foi é que Jemima ficou sabendo que estivera

conversando com a duquesa de Newbury, uma das figuras mais


importantes

e influentes na vida do condado.


Na segunda-feira, quando tudo parecia mais calmo, Freddy foi a
Londres.

Embora houvesse visitantes, eles chegavam aos poucos e com grandes

intervalos entre uns e outros. Jemima se apavorou e ficou imaginando


se a

novidade do balneário não tinha sido apenas um entusiasmo passageiro,


que

seria esquecido logo. Teve medo de que a fonte de renda secasse.

No dia seguinte, aconteceu a mesma coisa, o movimento foi pequeno.


às duas horas da tarde, mais ou menos, chegaram dois coches vindos

de longe, cheios de turistas. Estavam todos muito alegres e sem dúvida

104

deviam ter bebido durante a viagem. Todos fizeram inscrição para um

kO,

embora Jemima não acreditasse que eles fossem voltar, e compraram


uma

dúzia de garrafões com água e duas dúzias de garrafas, antes de irem

embora.

O visconde tinha se aborrecido de ficar sem fazer nada, esperando

visitantes, por isso tinha deixado Jemima sozinha.

Ela recebeu toda aquela gente, sem ajuda, pois não havia o menor sinal
do

marido por ali. Os homens a elogiavam com eloquência e ela sabia que
se

tivesse dado a menor confiança muitos teriam flertado e tomado


atitudes
mais ousadas.

Só Hawkins estava lá com ela, ajudando-a a impor respeito. Depois de

muita brincadeira e algazarra eles se foram, afinal, e o lugar pareceu

mais silencioso do que nunca.

- Por que a senhora não vai descansar um pouco, milady? - sugeriu

Hawkins. - Eu fico aqui atendendo as pessoas e se por acaso chegar um

grupo muito grande eu vou chamar a senhora.

- vou me sentir como se estivesse abandonando meu posto... respondeu

Jemima. - Mas se você promete que vai me chamar...

- Eu prometo, milady. No começo da semana o movimento é sempre


pequeno,

mesmo. Só começa a aumentar no fim.

- Como é que sabe disso?

- Eu conversei com um dos cocheiros de lorde Hinlip e ele me disse,

milady. Ele já levou os patrões a uma porção de balneários e sabe.


Aliás,

ele falou que muitos são uma fraude. Se aproveitam para ganhar
dinheiro

no início, antes que as pessoas descubram que a água não tem nada de

especial.

- Ah, Hawkins, mas o nosso não é assim!

- É claro que não, milady! A senhora ouviu a opinião de lady Hinlip! E

acho que não pode haver melhor recomendação do que essa.

- Também acho.

- Sabe, milady, eu estava pensando se não seria bom a senhora


escrever
essas coisas que as pessoas falam sobre a água... e depois, quem sabe,
o

visconde poderia escrever também uma pequena história do Mosteiro,


daí a

senhora mandava imprimir tudo junto... eu aposto como teria muita


gente

que compraria!

105

Jemima contemplou-o, em silêncio, por um breve instante, depois bateu

palmas.

- Hawkins, você é um génio! É claro que devemos fazer isso! como é


que não

pensei nisso antes?

- Eu tive essa ideia, milady, quando estava conversando com a sra


Burns.

Ela elogiou tanto essa água! Vive dizendo o quanto fez bem para ela.

- Amanhã cedo ela vem trabalhar em casa e eu vou fazê-la repetir para
mim

exatamente o que ela disse para você. Depois, falarei com os outros e, é

claro, com a sra. Ludlow. Ela pode me dizer com quem falar no
povoado. -

Ela fez uma exclamação de euforia e seus olhos brilharam quando disse:
-

Preciso ir contar essa novidade a Valient!

Ergueu um pouco a frente do vestido e pôs-se a correr em direçao à


casa,

ansiosa para contar ao marido. Estava com tanta pressa que correu até

chegar no saguão de entrada. Só então largou o vestido e andou mais


devagar até a sala de visitas. Diante da porta fechada, parou, e
enquanto

ajeitava os cabelos ouviu vozes lá dentro.

Ficou imaginando quem estaria lá conversando com o visconde e ao ver


pela

janela uma carruagem fechada, parada lá fora, achou que era algum
vizinho

fazendo visita. Já ia entrar na sala, quando algo na carruagem lhe


chamou

a atenção. Parecia conhecida... Olhou de novo e sentiu um frio na boca


do

estômago ao reconhecer a cor e os exagerados enfeites da porta.


Respirou

fundo, criando coragem, e abriu a porta devagar. Afinal, estava

apreensiva e até mesmo com um pouco de medo. Naquele momento


ouviu seu

nome e ficou petrificada, onde estava.

- Você se casou com Jemima só por despeito, para se vingar de min

- estava dizendo Niobe - e, Valient, eu reconheço que tratei você mal


até

me envergonho disso...

- Agora é tarde demais - respondeu o visconde.

- Assim que você saiu eu me arrependi.

Jemima a conhecia bem para saber que aquele tom de voz era falso,

fingido, e que ela sempre o usava quando era conveniente.

- Foi papai que me obrigou a dizer que eu ia casar com o marquês. Eu


pedi

a ele, eu implorei... disse que amava você mas ele nem quiz me ouvir...
Você sabe como papai é autoritário e severo e eu tive medo

106

de desobedecê-lo. - Ela se fazia de coitada, Jemima sabia. O visconde


porém

não respondeu nada e ela continuou: - Por favor, acredite em mim,


Valient!

Você tem que acreditar que eu o amei! Não pode ter imaginado que eu

quisesse casar com o marquês, sendo ele tão velho e doentio, não é? Eu

queria você... você! Tanto quanto eu quero agora!

Jemima fechou a porta devagar, sem fazer barulho, sentindo que não

suportava ouvir mais nada. Virou-se e subiu as escadas lentamente,


como

se de repente tivesse envelhecido cem anos. Entrou em seu quarto, foi


até

a janela, sentou-se ali perto e ficou olhando para fora com olhar

ausente.

Depois do que ouvira sem querer, sabia que seu pequeno e precioso
mundo,

que ela havia construído durante aquelas semanas, estava desabando a


seus

pés.

Agora já não era mais útil ao visconde, ao contrário, tornara-se um

pesado fardo, um empecilho a tudo o que ele mais desejava alcançar na

vida.

Ficou ali meditando e se perguntando o que deveria fazer. Então, de

repente, por amá-lo tanto, ela começou a pensar em como poderia


ajudálo.
Como poderia fazé-lo feliz. Entendeu, de súbito, que só havia uma
maneira

de fazer isso.

Devia sair da vida dele do mesmo modo como entrara, inesperada e

imprevisivelmente. Restava saber como fazer isso.

Por um breve instante, passou-lhe pela cabeça fugir com Freddy


conforme

ele lhe pedira. Mas sabia que isso iria repercutir negativamente para o

visconde. Ele ficaria mal aos olhos dos vizinhos e amigos que a haviam

acolhido tão bem.

Ela poderia divorciar-se dele, mas sabia que Niobe não esperaria, e o

visconde corria o risco de perdê-la outra vez, se nesse ínterim

aparecesse de novo alguém mais importante do que ele. Um processo


de

divórcio demorava muito.

Jemima acabou achando que a única solução viável seria ela morrer.
Pensou

no lago... em se afogar, mas concluiu que não poderia morrer na

propriedade do visconde para não comprometê-lo. Precisava pensar


num bom

modo.

Colocou a mão na testa. Sua cabeça ardia e ela mal conseguia


coordenar

107

os pensamentos. Só se lembrava da voz suave e sedutora de Niobe

dizendo a Valient que o amava.

Ficou imaginando como Valient se sentira ao ver aquela mulher linda lhe
dizendo aquelas coisas. Linda, loira, de olhos azuis, pele suave, a

mulher dos sonhos dele, a mulher que ele tanto amava! E que além do
mais

era rica!

O coração de Jemima parecia querer saltar do peito, a dor sufocava

Casando com Niobe, Valient poderia restaurar toda a propriedade e não

precisaria mais recorrer à fonte para ganhar dinheiro. Poderia abrila ao

público gratuitamente. Poderia pagar as dívidas e ele e Niobe poderiam

viver em Berkeley Square, com todo luxo e conforto, servidos por


criados

competentes.

Jemima pensava de novo que ela era o único empecilho para que o
visconde

pudesse ter tudo isso no dia seguinte mesmo. Não havia outra
alternativa

senão abandonar o homem que tanto amava. Mas como enfrentar um


futuro

sozinha, sem ele? Não, não iria suportar. Preferia mesmo morrer. Era o

único modo de dar felicidade ao homem que amava. E, afinal, um


grande

amor não é assim? Despreendido, disposto a grandes sacrifícios?

Fechou os olhos, atormentada, e de repente sentiu a presença da mãe

dentro de si, confortando-a e dizendo-lhe que tirar a própria vida não

era despreendimento, mas sim fraqueza. Além de ser pecado, pois a


vida é

uma dádiva de Deus!


Jemima começou a rezar baixinho e então, de repente, achou uma
solução.

108

CAPÍTULO VII

- E daí, o que foi que Niobe disse? - insistiu Freddy, pela milésima vez.

- Ela me disse que foi o pai que a obrigou a aceitar o casamento com o

marquês - respondeu o visconde. - Contou que pediu e implorou,


dÍzendo

que me amava, mas ele não quis escutar. - Freddy apenas exprimiu

descrença com uma interjeição de escárnio e o visconde continuou: -

Então, ela disse que ficou com medo de desobedecer ao pai mas que me

amava e que eu não podia ter imaginado que ela quisesse casar com o

marquês, sendo ele tão velho e doentio.

Houve um silêncio, depois Freddy, apesar de já ter ouvido a história,

perguntou:

- E você, o que respondeu?

- Eu fiquei sem responder por um longo instante porque, por mais


estranho

que pareça, percebi que Niobe não me atrai mais.

O visconde ergueu-se da cadeira, enquanto falava, e começou a andar


de um

lado para outro da sala.

- É difícil explicar o que estou sentindo... - continuou ele, depois de

uma pausa. - Eu tinha tanta certeza de que amava Niobe, eu a achava

linda! Mas de repente, não sei o que aconteceu, a beleza dela não
significa

109

mais nada para mim. É como se ela fosse uma bela estátua que a gente

admira, mas só!

- Em mim ela sempre provocou essa reação. Mas continue a com ar o


que

aconteceu.

- Acho que fiquei olhando para ela de modo estranho, achando quase

impossível que eu a tivesse amado tanto, pensando que seria para


sempre,

e de repente, ao vê-la ali, diante de mim, não sentir a menor emoção...

Era como se ela fosse uma dessas velhas que vêm aqui beber água. Ela

simplesmente não significa mais nada para mim! - Ele continuava


andando

pela sala. - Niobe deve ter percebido que havia alguma coisa estranha,

porque começou a dizer que me amava e que sabia que eu a amava


também e

que precisávamos resolver nossa situação. Ela fez menção de me


abraçar,

mas eu me afastei e disse que era tarde demais, que agora sou um
homem

casado e nós dois não tínhamos mais nada

a nos dizer.

- Deve ter sido uma surpresa e tanto para Niobe!

- Ela gritou e se atirou nos meus braços suplicando que eu me


divorciasse

de Jemima, que anulasse o casamento, que o pai dela conseguiria


arranjar isso... que nós devíamos nos unir... que éramos feitos um

para o outro... - O visconde fez uma pausa. - Foi quando ela mencíonou

o pai dela que eu entendi o que os dois tramavam e disse a Niobe

tudo o que penso dela e de sir Aylmer! Garanto que depois de tudo o

que ela ouviu, jamais nenhum dos dois falará comigo de novo!

- Graças a Deus! Agora, o importante é descobrirmos o que houve com

Jemima!

- Hawkins disse que ela saiu lá da capela para vir me contar uma nova

ideia que ele havia sugerido.

- Pois é, e isso quer dizer que ela deve ter ido para a sala, no momento

em que Niobe estava com você.

- E você acha que ela ouviu sem querer Niobe dizer que me ama e não

esperou para ouvir minha resposta?

- É a única explicação possível! Por que ela iria desaparecer assim, de

repente, sem deixar o menor sinal?

Os dois a procuravam incessantemente, sem resultados, há mais de


uma

semana. i

110

No início, Valient pensou que ninguém tivesse notado a visita de

Miobe.

Bem mais tarde, entretanto, Hawkins foi lhe entregar o dinheiro depois

de ter fechado o balneário e lhe perguntou:

- Milorde, o senhor sabe onde está milady? Ela não está preparando

o jantar como costuma fazer sempre a essa hora.


- Pensei que ela estivesse com você! - respondeu o visconde.

- Não, milorde, não está. Ela veio para cá por volta de três horas.

- Acho que ela deve ter ido descansar um pouco e pegou no sono

- disse o visconde, despreocupado. - Vá bater na porta do quarto dela

para acordá-la, Hawkins.

- Sim, senhor.

Poucos minutos depois, ele voltou dizendo que Jemima não estava

no quarto nem em nenhum outro lugar da casa.

O visconde não se perturbou. O jornal tinha acabado de chegar e ele

sentou-se para lê-lo, pensando que depois iria contar a Freddy a visita

de Niobe com os mínimos detalhes, embora não pretendesse contar a


Jemima.

Contudo, não conseguiu concentrar a atenção na leitura. Estava


preocupado

em descobrir por que deixara de sentir atração por Niobe. Era tão

estranho!

Antes, quando pensava nela, via-a cercada de uma aura especial que a

distinguia de todas as outras mulheres, tornando-a atraente e

irresistível. Aquele dia, entretanto, ela lhe parecera comum, quase

banal, e embora continuasse a achá-la bonita, descobriu que era uma

beleza que não o atraía mais como homem. Achou que deveria
conversar com

Freddy, talvez ele soubesse lhe explicar por que mudara tão
subitamente.

Quando Freddy chegou, no dia seguinte, encontrou o visconde


aborrecido,
irritado e ao mesmo tempo aflito por causa de Jemima.

- Ela simplesmente desapareceu, Freddy - disse ele. - Ela não veio fazer

o jantar, não dormiu aqui esta noite e ninguém tem a menor ideia do
que

possa ter acontecido a ela!.

Foi Freddy que descobriu, a partir do que Hawkins dissera, que ela devia

ter ido falar com o visconde para contar a nova ideia e chegou na sala
no

momento em que Niobe estava lá falando com ele.

111

Quando Valient contou a Freddy toda a conversa, este concluiu que ela
devia ter ouvido a prima se declarando e por isso tinha ido embora,
apesar de ele achar que não era do feitio de Jemima fugir e não
enfrentar uma situação.

Mas para onde Jemima poderia ter ido? Os dois não tinham a menor
ideia.

- Ela levou algum dinheiro? - perguntou Freddy.

- Não sei - retrucou o visconde -, acho que levou pelo menos os dois
guinéus que trouxe com ela quando fugiu da casa do tio. E ela estava
com o dinheiro para pagar uma conta, em uma loja da aldeia.

- E o resto do dinheiro ficou aqui?

- Ficou. Eu paguei o ordenado de Hawkins, a conta das garrafas e dos


materiais que usamos na restauração e o que sobrou está na minha
escrivaninha.

- Isso significa que ela não pode ter ido muito longe. Jemima tinha
algum outro parente, além de sir Aylmer?

- Para a casa do tio ela não pode ter voltado. . . e no primeiro dia em
que nos encontramos, ela disse que não poderia ir para casa dos outros
parentes porque todos tinham muito medo de sir Aylmer e por isso não
ficariam com ela.

- Mas, então, em que diabo de lugar ela se escondeu?

- Eu já pensei e repensei em tudo o que ela me disse, durante o tempo


em que estivemos juntos. Ela nunca mencionou nenhum amigo,
nenhuma pessoa, nem mesmo uma ama-de-leite, por quem tivesse
algum afeto especial. . .

- Como vamos fazer? Não podemos procurá-la a esmo, pelas ruas de


Londres! - disse Freddy, desolado.

- Foi justamente o que pensei esta noite. Não consegui dormir um


minuto, tentando achar uma solução. - O visconde fez uma pausa. Você
acha que eu deveria perguntar a sir Aylmer se ele sabe de alguma
coisa? De algum lugar onde ela poderia estar?

- Ele não deve saber de nada. Tenho certeza absoluta que ele é o último
homem na face da terra a quem Jemima recorreria ou pediria proteção!
Você sabe como ele a tratou e, além do mais, depois de ter

112

ouvido Niobe falar com você daquele jeito, Jemima não ia se sujeitar a

ficar à mercê da prima!

- É claro que não. Você tem razão. Mas, então, o que vamos fazer?
Onde

vamos procurá-la?

Eram as mesmas perguntas desesperadas que ele e Freddy repetiam dia


após

dia, esperando que Jemima voltasse. A única coisa que acharam sensato

fazer, foi não deixar a notícia do desaparecimento dela se espalhar. Era

um segredo só entre eles.

Quando os vizinhos ou visitantes, que vinham buscar água,


perguntavam por
ela, o visconde inventava uma desculpa dizendo que ela estava deitada

descansando ou que tinha ido à aldeia.

- Não podemos continuar assim! - disse Freddy revoltado, em dado


momento.

Os dias se arrastavam e nada mais parecia igual sem Jemima.

O número de turistas estava aumentando, mas o visconde não se


animava

mais com o dinheiro que estava recebendo e às vezes nem se dava ao

trabalho de contar as moedas, simplesmente jogava tudo na gaveta da

escrivaninha.

Freddy trazia comida de casa, mas não era nem de longe o mesmo
paladar

das coisas que Jemima preparava. Nem mesmo o champanhe parecia


ter o

mesmo gosto. Os dois amigos ficavam bebendo, desanimados, e falando


sobre

Jemima.

- Precisamos fazer alguma coisa - disse Valient, num ímpeto. Eu já sei o

que vou fazer!

Antes que Freddy abrisse a boca para dizer qualquer coisa, a porta se

abriu e Hawkins entrou na sala.

- Desculpe por não ter entregue antes, milorde - disse ele -, mas é que

eu estava ocupado lá na fonte quando isto chegou.

- O que é isso, Hawkins?

- Uma carta, milorde.

- Deve ser algum outro convite... - disse o visconde, pegando o


envelope
das mãos do empregado. - Já não sei mais que desculpa inventar para
dizer

que eu e Jemima não podemos comparecer ao jantar que um de nossos


gentis

vizinhos nos oferecem.

113

- Eles estão ansiosos para revê-la - disse Freddy - e nós também!

- com licença, milorde, - interrompeu Hawkins -, mas Emily está aqui e


eu

achei que o senhor gostaria de falar com ela.

- Emily? - disse o visconde, sem entender quem era.

- É, milorde. O senhor não se lembra dela? É a doméstica que


trabalhava

para o senhor, na casa de Berkeley Square, e que continuou


trabalhando

para o sr. Roseburg quando ele se mudou para lá.

- Ah é! Emily! - lembrou-se o visconde. - É claro que quero falar com ela

e saber o que está acontecendo em Londres!

- O que será que ela está fazendo aqui, se trabalha para Roseburg?

- perguntou Freddy.

- Os pais dela moram na aldeia, sir - explicou Hawkins - e ela veio aqui

para visitar milady. Emily gosta muito dela.

O visconde e Freddy trocaram um olhar significativo.

- Traga-a aqui, daqui a pouco, Hawkins - disse o visconde. Ofereça a ela

um chá, antes.

- Ela estava me ajudando lá na fonte, milorde, e agora que fechou nós


dois íamos tomar um lanche.

- Pois então, quando acabarem de comer, traga Emily para falar comigo.

- Sim, senhor.

- Eu estava pensando... - disse Valient, assim que o criado saiu e fechou

a porta. - Talvez Emily possa nos ajudar. Talvez ela tenha alguma ideia

de onde Jemíma possa estar!

- Eu pensei a mesma coisa - disse Freddy.

- Lembro-me de que Jemima gostava de Emily... ela não gostava dos

Kingston, e com razão.

Enquanto falava, ele abriu o envelope com displicência, mas quando leu
a

carta exclamou:

- Ah, meu Deus! Não pode ser verdade!

- O que foi? - perguntou Freddy, aflito. O visconde, em vez de

responder, entregou a carta ao amigo e foi até

a janela onde ficou parado, olhando o vazio.

114

Freddy pegou a carta apreensivo, com um mau pressentimento e


copeçou a

ler:

"Milorde,

É com com grande pesar que escrevo ao senhor para informá-lo de

que há vários dias fui chamado para confortar uma jovem que estava

morrendo de varíola. Nada mais podia ser feito para salvar a vida dela,
mas antes de morrer, ela me disse que era a viscondessa Ockley e
pediu-ne

que o informasse de seu falecimento.

Ela morreu logo depois de ter falado comigo e, como é costume nesses

casos, para evitar propagação da doença, o corpo dela foi queimado


logo

em seguida.

Só me resta expressar ao senhor minhas profundas condolências por


essa

triste perda.

Sem mais, subscrevo-me respeitosamente, um criado, às suas ordens,


John

Brown. O Pastor. "

Freddy leu e releu, e ficou perplexo olhando para a folha de papel em

suas mãos.

- Ela... ela está morta! - disse o visconde.

Houve um breve silêncio, depois Freddy falou, abruptamente:

- Não acredito nisso!

- Como assim... não acredita?

- É muita coincidência acontecer assim, justo nesse momento... não


está

vendo que é a solução de seu problema?

- Que problema? - perguntou o visconde, atónito.

Freddy ergueu-se e ficou de costas para a lareira, falando com

empolgação.

- Olhe só, veja se meu raciocínio faz sentido - disse ele ao amigo.
- Jemima ouve Niobe dizer que ama você e que sabe que você a ama,
que

vocês dois devem se casar. Jemima desaparece, mas sabe que o único
jeito

de você ficar livre dela para se casar de novo é a morte. Então, ela

morre... ou pelo menos quer nos fazer acreditar que morreu!

- Está querendo dizer que isso é mentira? - perguntou o visconde.

- Olhe bem isso - disse Freddy, entregando a carta a ele. - Não acha
que

há algo estranho aí?

115

O visconde pegou a folha de papel, releu-a com atenção e de repente


exclamou:

- Não traz nenhum endereço!

- Pois é, foi o que notei - disse Freddy - e a pessoa que escreveu além
de ter o nome e sobrenome mais comuns, pois existem centenas de
John Brown, ainda é apenas "O Pastor".

- E o que isso significa?

- Que seria muito mais difícil de se descobrir quem é, do que se dissesse


ser o pároco e indicasse de que paróquia.

- Agora estou entendendo onde quer chegar.

- E, além disso, varíola é uma doença muito conveniente para ter sido
escolhida como causa mortis, pois como está escrito aí mesmo, queima-
se o corpo da vítima para que não se propague a doença!

- Mas, por que. . . por que Jemima faria isso?

- Porque ela ama você! - retrucou Freddy, com veemência.

- Ela me ama? E como é que você sabe disso?

- Porque ela me disse.


- E por que ela foi dizer isso a você?

- Se quer mesmo saber a verdade, foi porque eu pedi a ela que fugisse
comigo!

O visconde ficou estupefato, olhando com perplexidade para o amigo.


Depois de alguns instantes em silêncio, ele falou pausadamente,
destacando palavra por palavra.

- Você pediu para Jemima. . . minha esposa. . . para fugir com você?
Pensei que você fosse meu amigo!

- Mas eu não estaria lhe roubando nada. . . você não gosta dela. Eu amo
Jemima, eu a amo desde o primeiro momento em que a vi! E para ser
sincero, Valient, eu fico agoniado de vê-la escravizada a você dessa
maneira, satisfazendo seus menores desejos, tentando a todo custo
fazêlo feliz. . . e você nem nota que ela existe!

- Se outro homem tivesse me dito isso que você acaba de me dizer, eu


o esmurraria!

- Ah, pelo amor de Deus, Valient, não se faça de dramático, agora. Não
adianta representar para mim. Eu sei que você não ligava a mínima para
Jemima antes dela sumir, e você sabe disso!

116

- Acho que isso é verdade. . . - disse o visconde, com certa relutância. -


Realmente, só quando ela foi embora é que eu percebi como Isso aqui
fica diferente sem ela! Essa casa ficou sem graça, silenciosa d°emais. ..
sinto falta do riso de Jemima! Vou lhe dizer uma coisa, Freddy. Se ela
está viva como você acha, eu vou ter de encontrá-la. Ela tem que
voltar! Eu devia ter imaginado que Niobe iria estragar minha

vida de um jeito ou de outro!

- Agora não adianta pôr a culpa em Niobe, o importante é encontrar


Jemima.

- Eu vou encontrá-la! - disse o visconde, decidido. - Eu sinto

que you encontrá-la. E agradeço a você, Freddy, por ter me lembrado


que ela é minha mulher!
- Acho bom lembrar mesmo, porque senão. . .

- Você que se atreva a falar mais. . . - começou o visconde a dizer, mas


nesse momento a porta se abriu.

- Aqui está Emily, milorde - anunciou Hawkins.

Jemima terminou a oração que as crianças repetiram em coro, junto


com ela, depois sentou-se para tocar o harmónio.

- Quem vai escolher o hino para hoje? - perguntou ela.

As crianças, cujas idades variavam entre três e nove anos, se


amontoaram em torno dela.

- Que tal AU Things Bright and Reautiful? - sugeriu uma das meninas
mais velhas.

- Boa ideia! - respondeu Jemima. - Essa todos vocês conhecem bem.

Ela tocou os primeiros acordes no harmónio e as crianças ficaram em


silêncio, preparando-se para cantar.

Foi o pároco quem sugeriu a Jemima, quando ela voltou à pequena


aldeia onde havia morado com seus pais, que ela deveria lecionar na
escola. Estavam mesmo precisando de professora, pois a outra, que era
uma ex-governanta, tinha morrido.

Quando decidiu ir para Lower Maidwell, Jemima sabia que lá era o único
lugar onde poderia encontrar alguém que a ajudasse.

117

Não era uma viagem muito longa, embora tivesse precisado tomar três

coches, e depois de ter dormido muito desconfortavelmente numa


hospedaria

de beira de estrada, ela chegou à aldeia na manhã seguinte e foi direto


à

paróquia.

O velho pároco, que tinha sido amigo de seus pais, estava lá. Quando
Jemima contou a ele como era infeliz na casa do tio e como ele a

maltratava, o pároco achou que ela fizera bem em ter ido embora.

- Só que, agora, preciso arranjar um lugar para morar - disse ela -, e

preciso ganhar algum dinheiro.

O pároco lembrou que a velha senhora que trabalhara para a mãe de

Jemima talvez pudesse lhe alugar um quarto e de repente teve a ideia


de

que ela poderia lecionar na escolinha.

- Você não vai ficar rica com isso, Jemima, a escolinha da paróquia é

pobre e não temos muito dinheiro para pagarmos bons salários a


professores,

mas enquanto você não arranja coisa melhor, já é uma ocupação!

- Eu lhe fico muito grata pela sua gentileza, reverendo - disse Jemima.

- E estou certa de que vou adorar dar aulas para as crianças!

- Espere só até conhecê-las! Talvez você mude de ideia, depois.

Disseram-me que são muito levadas e desobedientes!

Mas ela nem se importou com isso. Estava tão contente por ter
encontrado

um lugar para morar e um trabalho para fazer que por um breve

momento sentiu aliviar o sofrimento e a infelicidade que lhe oprimiam

o peito desde que abandonara o visconde.

Ela sentia tanta saudade dele! Não parava um só instante de pensar

nele e o dia todo imaginava o que estaria acontecendo lá no velho

mosteiro, àquela hora.

A ideia de fazer o visconde acreditar que ela havia morrido pareceulhe a


única solução para deixá-lo livre, sem ter de se matar de verdade,

Suicidar-se era muito difícil e embora estivesse sentindo-se muito

infeliz, seu instinto de conservação era mais forte. Além disso, sabia

que o suicídio era pecado.

Sentia sua vida sombria e sem sentido longe dele. Amava-o, agora,

mais do que nunca, mas estava decidida a viver das recordações que

tinha dele.

Ficava lembrando as coisas que ele dissera, o jeito dele falar, de

118

olhar... e principalmente aquele momento mágico em que ele a rodara


no

ar, beijara-a nas faces e depois beijara-a nos lábios.

Sabia que aquele beijo não tinha significado nada para ele, mas jamais

esqueceria o conta to daqueles lábios tão amados.

Os dias foram passando e ela se mantinha tão ocupada que era menos

ifícil suportá-los. Antes de começar a lecionar, tivera de pôr em ordem

a escolinha da paróquia, que estava abandonada desde a morte da


outra

professora e havia sido transformada em depósito. Foi preciso limpar

tudo sozinha, pois não havia ninguém para ajudá-la.

Na verdade, Jemima poderia ter pedido ajuda a alguns pais de alunos,


mas

preferiu não fazer isso. Quanto mais árduo fosse o trabalho, menos
tempo

teria de pensar no visconde e de sofrer a saudade dele. Assim também

ficava bem cansada e quando se deitava dormia logo.


Quando o trabalho pesado acabou, suas noites passaram a ser um
tormento.

O amor pelo visconde tornava-se uma agonia física e mental. A


lembrança

dele era um punhal cravado em seu coração cuja dor era insuportável.

Ela sempre imaginou que o amor fosse uma coisa boa e bonita que dava
à

pessoa segurança e proteção. Mas um amor perdido era algo muito

diferente. Era uma tortura lenta e contínua que roía o peito por dentro.

Às vezes Jemima pensava que deveria ter fugido com Freddy, quando
ele lhe

propusera, assim daria motivo para o visconde divorciar-se dela para se

casar com Niobe. Mas logo em seguida se arrependia da ideia, pois


sabia

que isso seria contra seus princípios de sinceridade. Sabia que, se

tivesse agido assim, não estaria sendo honesta com seus sentimentos e

magoaria não apenas Freddy mas também o visconde.

Gostava muito de Freddy, mas não o amava e jamais poderia ser para
ele a

esposa que ele merecia. Amava o visconde com todas as suas forças e
nunca

deixaria de amá-lo.

Por isso, resolveu escrever a carta dizendo que morrera de varíola.


Achou

que seria uma boa solução e uma explicação razoável que impediria
Valient

de reclamar o corpo para enterrá-lo.

Precisou pagar um portador para que levasse a carta para Londres e a


colocasse no correio, e não tinha muito dinheiro para esbanjar.

119

Felizmente a sra. Barner não cobrava muito caro pelo quarto e pelas

refeições. Embora a comida não fosse como a que Jemima estava

acostu.mada a fazer, ela se dava por satisfeita, afinal não tinha mesmo
apetite

nenhum.

Não comia quase nada e estava emagrecendo a olhos vistos, ela própria
se

comparara às heroínas de novelas, definhando de amor.

Os únicos dois vestidos que trouxera já estavam largos em seu corpo.


pudera trazer dois, na pequena mala que tinha. Os outros todos deixara

para trás e jamais lhe ocorreria que ao vê-los dependurados no armário


de

seu quarto, o visconde achasse que isso era indício de que ela voltaria.

- Qual é a mulher que vai a algum lugar sem levar suas roupas? disse
ele

a Freddy. - Lembra-se daquela francezinha que conhecemos? A


quantidade de

malas que ela levava consigo?

- Ora, você não pode compará-la a Jemima! - protestou Freddy.

- Não, é claro que não. Mas Jemima é mulher... e estava tãofeliz com os

vestidos novos que compramos para ela!

- E ficava linda com eles! - disse Freddy, baixinho, de modo que o

visconde nem chegou a ouvir.

Jemima, por sua vez, não sentia falta das roupas bonitas que deixara lá.
Ela usara aqueles vestidos porque queria fazer boa figura ao lado do

marido, queria que ele se sentisse orgulhoso dela, mas sempre tivera a

sensação desagradável de que se ela se vestisse com trapos a reação


dele

seria a mesma.

O que a preocupava, no momento, era saber como faria quando os


vestidos

que trouxera se gastassem e ela precisasse de outras roupas. Não teria

dinheiro nem para comprar os panos e fazer ela mesma as roupas,


como

antes.

O pároco havia lhe prometido arranjar outro trabalho, além de lecionar


na

igreja, e já se passara um mês sem que surgisse nada. Talvez fosse


melhor

falar com ele de novo e insistir no assunto.

Enquanto isso, passava as manhãs ocupada com as crianças e ela


gostava de

ensiná-las. Depois de algum esforço, no início, conseguira impor

120

a disciplina sem ser rígida. Conquistara as crianças com amor e energia.

Aagora eram todas bem-comportadas e a respeitavam muito. Só


lamentava

ter que aceitar o dinheiro que os pais pagavam para que ela lecionasse.

Era pouco, mas eram todos pobres e qualquer dinheiro representava um

sacrifício para eles. Contudo, ela também era pobre e precisava daquele

sustento.
Em alguns condados, eram ricos paroquianos que mantinham a escola
para os

pobres que podiam assim estudar de graça, mas Lower Maidffell era
uma

aldeia pequena e pobre e não havia nenhum rico parono na vizinhança.

O hino chegou ao fim e o "Amém" foi cantado com convicção por


aquelas

crianças.

Jemima ergueu-se e fechou a tampa do harmónio.

- Por hoje é só, crianças! Estejam aqui amanhã, às dez horas em ponto,
e

não se esqueçam o que aprenderam até agora.

- Sim, senhora. Até logo, professora!

Jemima tinha ensinado a elas com se comportar socialmente, como

cumprimentar com educação e várias atitudes de cortesia. E elas tinham

aprendido direitinho.

Em seguida, saíram apressadas e lá fora ela os ouvia gritar e rir

enquanto corriam pela alameda que ia até a rua.

Jemima foi até a mesa, reuniu os livros que estavam ali e levou-os para

um armário. Enquanto os colocava na prateleira, ouviu passos


aproximando-

se da porta da classe que dava para o jardim.

Pensou que fosse o jardineiro do pároco, que às vezes costumava


guardar

ali suas ferramentas de trabalho, para ficar mais fácil no dia seguinte.

- Eu já vou indo, sr. Jarvis - disse Jemima sem se virar. Fechou a porta

do armário, enquanto falava, e estranhou que o jardineiro não tivesse


respondido nada. Geralmente, ele era bastante tagarela.

Olhou por sobre o ombro e não pôde conter uma expressão de espanto.

Parado ali, na sala de aula, muito imponente e bem-arrumado, estava o

visconde.

Por um momento, Jemima ficou paralisada como se estivesse grudada


no chão

e não conseguiu falar. E era como se o mesmo tivesse acontecido

121

ao visconde, pois ele apenas ficou parado, contemplando-a. Depois

afinal, num murmúrio que ele mal pôde ouvir, Jemima perguntou:

- Como... como foi que me encontrou... Então o visconde aproximou-se

dela, dizendo:

- Eu é que pergunto como é que você foi inventar esse diabo dessa
fuga?

Como é que pôde me mandar aquela carta horrível, dizendo que estava

morta?

Ele estava tão bravo que Jemima tremeu, embora estivesse feliz de vê-
lo

ali.

Mal podia crer que era ele, real, em carne e osso, que estava diante de

seus olhos, que falava com ela... aquela voz adorada que ela jamais

pensara tornar a ouvir algum dia!

- Eu... eu... achei que era a melhor... solução - gaguejou ela.

- Para mim?

- Eu sabia que você ia querer ficar livre...


- Você ao menos poderia ter me perguntado antes o que eu queria.

- Não precisava perguntar... eu ouvi o que Niobe disse a você...

- Já que você ouviu isso, devia ter esperado um pouquinho mais para
ouvir

também a resposta que eu dei aos absurdos que sua prima me disse! -

Jemima arregalou os olhos e então o visconde perguntou:

- Mas o que é que você anda fazendo? Está tão magra!

- Eu... eu estou bem.

- Então, está melhor do que eu - retrucou o visconde. - Você tem ideia


do

mal que causou, desaparecendo desse jeito maluco? Freddy e eu quase

enlouquecemos de tanto pensar como encontrá-la!... falavamos tanto


em

você que suas orelhas deviam viver ardendo...

Jemima cruzou as mãos.

- Quer dizer que... você se importou com meu desaparecimento?

- perguntou ela, com voz tímida.

- Se me importei? - a voz do visconde se elevou. - É claro que me

importei! Se eu fosse um grosseiro como seu tio, devia lhe dar uma
surra

agora, por ter fugido assim, e ter me mandado uma carta mentirosa! Eu

estava a ponto de contratar um detetive para encontrá-la!

- Ah, Valient, você não fez isso, não é? - horrorizou-se ela. Eu sei que

eles cobram muito caro!

122
- O dinheiro não me importava, desde que pudesse encontrá-la!

Os olhos dele encontraram os dela e o jeito como a olhou fez o coração


de

Jemima bater mais rápido.

- Sinto muito - disse ela, para não demonstrar o que estava sentindo -,

peço que me desculpe se causei transtorno. Eu estava só tentando...


fazê-

lo feliz.

- Pois você só conseguiu me deixar aflito, frustrado e terrivelmente

infeliz.

- Não foi minha intenção... eu queria... eu pensei que você quisesse

casar com Niobe e achei que essa era a única maneira de você poder se

casar com ela.

- Como já disse, se você tivesse escutado só mais um pouquinho, teria


me

ouvido dizer a Niobe tudo o que penso dela, e ainda ter acrescentado
que

não desejava encontrá-la nunca mais!

Jemima respirou fundo.

- Você disse mesmo isso tudo a Niobe?

- Isso e muito mais! Posso lhe garantir uma coisa... nenhum de nós
nunca

mais vai ser importunado por sua prima ou o seu tio.

- Mas... eu tinha certeza de que você a amava!

- Eu pensei que a amasse - admitiu ele, com sinceridade -, mas eu


estava

enganado e muito! - O olhar de Jemima se iluminou. Antes de eu dizer


qualquer outra coisa, quero que você me diga por que você estava tão

preocupada com minha felicidade. Eu posso não ter sido um bom


marido,

Jemima, mas eu lhe dei um lar que você dizia gostar e eu não posso
crer

que você prefira ficar aqui em vez de estar lá.

- É claro que não! Você sabe que eu... eu adoro o velho Mosteiro e
gostei

muito de ter morado lá.

Houve uma breve pausa.

- E... era só a casa que você amava? - perguntou o visconde. Jemima

apenas respirou fundo e baixou as pálpebras, corando.

- Quero que você responda, Jemima, e é muito importante que seja


sincera.

Ela ficou trémula e, sem conseguir falar, virou-se de costas. Ele a

segurou pelos ombros, de leve, obrigando-a a virar-se de frente.

- Responda, Jemima, por favor! Era só a casa que você amava? 123

Ela ergueu os olhos devagar e encontrou o olhar dele. Seu coração

palpitava. Ele a puxou para mais perto de si: - Diga-me, por favor.

Jemima. Quero ouvir você dizer...

- Eu... eu amo você - disse ela baixinho.

- Era isso que eu queria ouvir, porque, meu amor, eu também amo
você.

Ele disse isso e envolveu-a nos braços, depois beijou-a na boca.

Jemima sentiu-se no céu, arrebatada por um êxtase tal que era


impossível

descrever com palavras. Finalmente, pôde dar vazão ao que sentia por
Valient há tanto tempo, e naquele beijo entregou a ele seu corpo, sua

alma e seu coração.

Os dois perderam a noção do tempo entregues aos beijos, abraços e

carícias. Era como se estivessem vivendo num mundo à parte, num


paraíso.

- Meu amor, minha adorada... - disse o visconde, com voz embargada,


entre

um beijo e outro. - Como poderia perdê-la?

- Você me ama mesmo? Nem posso acreditar... jamais pensei que você

pudesse me amar...

- Eu amo você como nunca pensei que fosse possível amar alguém Só
que eu

não tinha percebido... só me dei conta desse amor quandc Freddy me


contou

que tinha pedido para você fugir com ele.

- Freddy. contou isso para você?

- Contou e eu tive vontade de matá-lo! Mas foi só então que descobri


que

eu nunca deixaria outro homem roubar você de mim, mesmo que você

quisesse.

- Eu jamais iria querer... - murmurou Jemima. - Eu amo você... sempre

amei, desde o primeiro instante em que o vi!

- Gostaria de poder dizer o mesmo, mas eu fui tão tolo que fiquei

imaginando que amava sua prima.

- Mas... ela é tão linda!

- Não chega nem a seus pés! Você é tão adorável! E sabe o que eu mais
gosto em você, que me deu mais saudade nesse tempo em que você
esteve

ausente?

- Não... o que foi?

124

- O seu riso, meu amor. Eu acostumei tanto com o som adorável de seu

riso, que quando você se foi tudo ficou de repente triste e silencioso e

eu me senti solitário como nunca! Você alegrava a casa e a minha


vida...

eu aprendi a rir com você...

Jemima abraçou-o e encostou a cabeça no peito dele.

- Por favor... perdoe-me e deixe-me voltar para casa.

- Eu não vou deixar, eu vou levar você para casa. Estava decidido a

levá-la nem que fosse arrastada por uma corda, se você se recusasse a!

Jemima riu e o som cristalino e gracioso de seu riso alegrou a sala.

- Que maravilha, Valient! Só você mesmo para dizer uma coisa dessas!

- Eu falei sério. E vou avisar uma coisa: quero que fique bem claro,

Jemima... se eu pegar você flertando com Freddy eu o expulso

de casa! Você é minha mulher e não vou deixar que você esqueça disso!

Como se eu pudesse me esquecer! Eu amo você, Valient. E agora

que estou a seu lado de novo, minha vida voltou a brilhar. Estou muito

feliz!

- Eu também. Mas, agora, pelo amor de Deus, vamos embora para casa,

depressa. O balneário está um sucesso, cada vez mais cheio de gente e


não
há garrafas que cheguem. Temos dezenas de convites para jantar que
nossos

vizinhos no Condado não param de mandar! Estou ficando maluco para


dar

conta de tudo sozinho!

- Agora não vai mais ser preciso. Ah, meu querido Valient... Será que
não

estou sonhando? É mesmo verdade que vou voltar para casa com você?

- Felizmente, é verdade! E chega de perdermos tempo aqui, falando...

vamos voltar de uma vez! Pegue seu chapéu e vamos embora.

- Preciso ir até meu quarto pegar minhas coisas - riu ela -, e despedir-

me da sra. Barner!

- Então, vamos, depressa!

- Mas como foi afinal que me encontrou? Você não disse!

- Foi Emily quem adivinhou onde você deveria estar.

- Emily!

- Ela foi até o Mosteiro para falar com você porque não está gostando de

trabalhar para os Roseburg e quer trabalhar para você de novo.

125

Eu prometi o emprego a ela se encontrasse você aqui onde ela achou


que

você estaria.

- Eu adoraria que Emíly trabalhasse para mim... mas será que


póderemos

pagar?

- Se você visse a quantidade de dinheiro que estamos recebendo com o


balneário! Logo vamos poder contratar um cozinheiro e um mordomo
também.

É verdade que eu me desinteressei um pouco pela fonte, porque estava

preocupado com você...

- Meu Deus! Eu preciso voltar imediatamente, então! - Jemima fez uma

pausa. - Quer dizer que Emily se lembrou das histórias que eu contava

para ela, sobre a casa de meus pais e da cidade onde vivíamos?

- Lembrou-se direitinho, até do nome da cidade! Graças a Deus! E é


claro

que vou empregá-la em casa. - Jemima sorriu para ele, E tem outra
pessoa

que eu vou levar para casa e que vai ter que ficar lá para o resto da

vida...

Jemima riu feliz.

- Eu não tenho a menor intenção de abandoná-lo de novo, Valient... Ah,

meu amor, se você soubesse como estava infeliz longe de você,


sentindo-me

tão sozinha e triste...

- Ficou sofrendo à toa, por culpa sua mesmo - disse ele, repreendendo-a

com ternura. Depois abraçou-a de novo. - Eu amo você! Quero repetir


isso

milhões de vezes... cada minuto, cada segundo até você ter certeza.
Você

é minha, Jemima, e eu não posso viver sem você!

- Ah, como eu queria ouvir isso de você! Pensei que jamais fosse ouvir...

eu não podia lhe dar nada do que você queria.

- Eu tenho tudo o que quero, agora - disse ele, apertando-a de leve


contra o peito. - Você pode achar difícil de acreditar, Jemima, mas

quando estava vindo para cá, eu vinha pensando que foi bem divertida a

vida de pobre a seu lado. Talvez melhor do que se eu fosse rico!

- Está falando sério?

- Estou, sim. Nunca me senti tão bem em minha vida. Foi tão divertido e

interessante tornar minha velha casa habitável de novo, arrumar a


fonte,

abrir o balneário... e até mesmo carregar todo aquele maldito cascalho!


-

Ele riu e estreitou ainda mais o abraço. - Agora, só me falta o seu amor

para minha felicidade ser completa...

126

- Você sabe que eu o amo... e muito - murmurou ela, com os lábios bem

perto dos dele.

- Foi tudo uma aventura maravilhosa e excitante, tal como você havia
dito

que seria. E tudo o que fizermos, ainda, no futuro, será também

maravilhoso porque estaremos fazendo juntos.

Só então ele a beijou de novo, um beijo ardente, exigente e possessivo.

Era a primeira vez que a beijava daquele modo e Jemima sentiu uma
outra

emoção despertando dentro dela, fazendo com que o beijasse da


mesma

maneira. Instintivamente, ela sabia que essa era a outra face do amor,

igualmente bela e divina.

- Pelo amor de Deus, Jemima... - disse ele ofegante -, vamos embora


logo... eu quero fazer amor com você... eu quero você. estou maluco! Já

perdemos tempo demais! - Ele soltou o abraço e pegou-a pela mão


puxando-a

para a porta. - Vamos! Depressa!

Ele a fez correr pela alameda em direção à carruagem que estava


parada

ali em frente.

- Mas, Valient, eu preciso avisar a senhora...

- Não vai avisar ninguém. Vamos direto para casa!

Quando chegaram à carruagem, ele a ergueu nos braços e colocou-a


para

dentro. Depois deu uma moeda para um garoto que ficara segurando os

cavalos, subiu depressa na boleia e pegou as rédeas, instigando os

animais com o chicote.

Os cavalos saíram em disparada, fazendo a carruagem erguer uma


nuvem de

pó. Ela não pôde deixar de rir daquele jeito maluco dele, levando-a

embora assim sem deixar que ela se despedisse nem mesmo do pároco.
Era

como se a tivesse raptado. Mas ela estava feliz e pelo sorriso dele sabia

que ele também estava. Afinal, os dois se amavam e estavam juntos,


indo

para a casa onde poderiam dar vazão a todos os sentimentos e


demonstrar o

quanto se amavam.

FIM

127
QUEM É BARBARA CARTLAND?

As histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de cem


milhões

de livros em todo o mundo. Numa época em que, segundo a própria


Barbara,

a literatura dá muita importância aos aspectos mais superficiais do sexo,

o público se deixou conquistar por suas heroínas puras e seus heróis

cheios de nobres ideais. E ficou fascinado pela maneira como constrói

suas tramas, em cenários que vão do esplendor do palácio da rainha

Vitória às misteriosas vastidões das florestas tropicais ou das


montanhas

do Himalaia.

A precisão das reconstituições de época é outro dos atrativos dessa

autora inglesa que, além de já ter escrito mais de trezentos livros, é

também historiadora, teatróloga, conferencista e oradora política. Mas

Barbara Cartland se interessa tanto pelos valores do passado quanto


pelos

problemas do seu tempo. Por isso, recebeu o título de Dama da Ordem


de

São João de Jerusalém, por sua luta em defesa de melhores condições


de

trabalho para as enfermeiras da Inglaterra, e é presidenta da Associação

Nacional Britânica para a Saúde.

Fim

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