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NÚCLEOS INTEGRALISTAS DO ESTADO

DO RIO DE JANEIRO
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Monografia sobre Plínio Salgado


Gentilmente cedido ao N.I.E.R.J.

A Deus, que inunda-me de graças, apesar das

minhas tantas e impenitentes transgressões.

A minha família - e a minha mãe em especial -

pelo afeto e invariável amparo.

Aos professores do curso, doadores francos de

saber.

A todos aqueles que, como eu, passam as noites em

vigília, imersos em pesados volumes de temática político-

filosófica, como que a nutrir a convicção íntima de que a

chegada de uma nova aurora é mera questão de tempo.

1
“Nada nos separa. A nossa geografia, escreveu-a
o branco, com nomes indígenas, e consolidou-a
com o suor do negro. (...) O nosso apego à terra é
tão forte, no extremo Amazonas, onde o tapuia
contemplativo ouve o segredo cochichado das
Iaras e da Cobra-Grande, quanto no extremo
pampa, onde o gaúcho galopa a sua inquietude
no rastro luminoso dos boitatás das coxilhas. (...)
porque misteriosas forças, que vieram desde as
primeiras transfusões de sangue, trabalham, sem
o percebermos, pela unidade do espírito
brasileiro.”

Plínio Salgado

2
RESUMO

O presente trabalho objetiva sistematizar e dar visibilidade a subsídios

capazes de aperfeiçoar a interpretação dos estudiosos em relação ao pensamento

político-filosófico de Plínio Salgado, especialmente no que tange ao seu

anticomunismo.

Para tanto, detemo-nos com particular atenção às correntes de teóricos

brasileiros que compuseram, através do influxo de suas obras, a formação da

mentalidade do líder integralista, em maior ou menor grau. Analisando a

reverberação destas influências na estrutura geral dos posicionamentos de Salgado,

percorremos sua trajetória política a fim de situá-lo na especificidade do período

histórico em que executou seu proselitismo e desenvolveu seu corpo de doutrina.

Valendo-nos, ininterruptamente, de citações extraídas diretamente das obras do

próprio autor-alvo, procuramos mapear seus alicerces ideológicos, bem como os

elementos propulsores de seu anticomunismo, que, na parte final, é abordado mais

detidamente, sobretudo por meio do prisma da natureza singular em que foi

concebido: o combate ao “espírito burguês”, que, signo maior do liberalismo, é visto

3
justamente como motor primeiro do comunismo, ambos encerrando supostas

identidades de fundamentos e finalidades.

Provocar o emergir de dados sobre a cosmovisão geral de Salgado, e, na

medida do possível, clarificar o mecanismo da associação por ele empreendida entre

liberalismo e comunismo: tais foram os embriões interrogativos que deram gênese a

presente dissertação.

4
SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................. 3

SUMÁRIO ............................................................................................................ 5

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 7

1 FONTES FORMATADORAS DO PENSAMENTO DE SALGADO .................. 10


1.1 Um Brasil em Turbilhão ............................................................................ 10
1.2 Síntese Biográfica de Plínio Salgado ....................................................... 12
1.3 Fontes formatadoras do Pensamento de Salgado ................................... 14
1.3.1 Alguns Pensadores e Correntes Teóricas ............................................ 18
1.3.2 Alberto Torres (1865-1917) ................................................................... 19
1.3.3 Farias Brito (1861-1917) ....................................................................... 22
1.3.4 O Conservadorismo Católico ................................................................ 24
1.4 O Influxo Modernista ................................................................................ 34
1.4.1 Os Romances de Salgado .................................................................... 34
1.4.2 Concepções Nacionalistas Retiradas do Movimento Modernista ......... 42

2 O ADVENTO E O OSTRACISMO DA AIB; A FUNDAÇÃO DO PRP ............. 48


2.1 O Mimetismo Político Europeu ................................................................. 48
2.2 Salgado e a Revolução de 1930 ............................................................... 52
2.3 Nascimento e Consolidação da AIB ......................................................... 55

5
2.3.1 O Manifesto de Outubro ......................................................................... 56
2.3.2 A Expansão do Sigma ........................................................................... 62
2.3.3 As Relações com o Estado Novo .......................................................... 65
2.4 Exílio e Ressignificação ............................................................................ 72
2.5 O Integralismo nos Novos Tempos ........................................................... 74

3 A ENGENHARIA POLÍTICO-FILOSÓFICA DO ANTICOMUNISMO DE


SALGADO ........................................................................................................... 81
3.1 Materialismo .............................................................................................. 83
3.2 Epicuristas e Estóicos: o Problema dos Costumes .................................. 86
3.3 A Apatia do Estado Liberal ....................................................................... 88
3.4 A “Mística” do Marxismo ........................................................................... 90
3.5 Evolucionismo Político/Darwinista ............................................................ 92
3.6 Propriedade e Trabalho ............................................................................ 95
3.7 Cosmopolitismo: Rothschild e Trotski ....................................................... 97
3.8 Superando os “Preconceitos do Século XIX” ............................................ 98
3.9 Os Três Totalitarismos .............................................................................. 101

CONCLUSÃO ...................................................................................................... 105

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 108

6
INTRODUÇÃO

Ao longo destes oito semestres de estudos, que objetivaram, como alvo


central, a captação de saberes no campo da ciência política, detemo-nos, em
decorrência da própria estrutura curricular do curso, na leitura de uma vastíssima
gama de autores, pertencentes às mais variadas matrizes ideológicas, escolas e
métodos analíticos. Da ágora helênica aos clássicos e pós-modernos, dos
pragmáticos aos idealistas, dos anarquistas aos conservadores, dos interessados
pela decodificação da psicologia íntima dos povos aos decifradores dos mecanismos
funcionais das instituições e dos partidos políticos. Para tanto, buscamos socorro em
praticamente todo o conjunto das ciências sociais, na certeza de que a história, a
sociologia, a antropologia e a filosofia, entre outras, poderiam nos fornecer subsídios
valiosos para robustecer a riqueza ontológica da ciência política em si.

Contudo, diante da eminência da conclusão do curso, nos é exigida a


formulação de um trabalho em sentido estrito, capaz de sintetizar os conhecimentos
absorvidos em nossa trajetória de estudos de forma que seja possível fundi-los em
um tema específico, sem que haja, entretanto, prejuízo à qualidade do conteúdo.

Cientes destas condições que a priori se nos apresentam, resolvemos nos


valer da margem de liberdade intelectual que o ambiente acadêmico de outra parte
nos oferece para abordar um tema de interesse sobretudo brasileiro, cientes de que
uma tal opção por certo não despreza a problemática teórica que inquietou e

7
inquieta a ciência política em âmbito mundial. É com base nestas assertivas que
aqui dissertaremos sobre o pensamento anticomunista de Plínio Salgado.

Julgamos que o enfoque em tal assunto, se alicerçado em informações


confiáveis, será capaz de proporcionar questionamentos caros e instigantes à
análise política, sobretudo no que concerne à interpretação de algumas tendências
ideológicas paradoxais, que apesar de terem tido seu ponto de ebulição no passado,
permanecem nutridas de relevância considerável.

Assim, ao debruçarmo-nos na pesquisa sobre o pensamento de Plínio


Salgado, pretendemos resgatar momentos históricos que se mostraram cruciais para
o desenvolvimento sócio-político do Brasil, levando em conta a efervescência dos
conflitos políticos em um passado recente e seus ecos na formulação das correntes
intelectuais que aglutinavam a inteligência brasileira de então. Obviamente, adota-se
uma tal perspectiva sob constante preocupação de manter a ênfase na própria
estrutura da doutrina concebida por Salgado, observando os preceitos por ele
utilizados para combater o comunismo, bem como suas motivações para tanto, o
que, nos parece, teve gênese em precedentes de convicções pessoais que apenas
se vinculam ao espectro político, como é o caso do espiritualismo. Servimo-nos, a
fim de clarificar esses posicionamentos, das próprias obras de Salgado, além dos
trabalhos publicados por pesquisadores desta temática.

Com base nisso, pretendemos demonstrar que o anticomunismo “pliniano”


tinha como pressuposto inicial a idéia de que para se dar combate real e eficiente ao
marxismo era preciso opor-se com idêntica tenacidade ao que seria o principal fator
que permitiu seu advento: “o espírito burguês”, o que, definitivamente, configura uma
teoria anticomunista bastante singular.

Não obstante, para empreendermos uma abordagem satisfatória desta


particularidade, procuramos mapear, nos dois capítulos iniciais, quais teriam sido as
principais fontes formatadoras do ideário de Salgado, bem como o ambiente em que
esteve ele inserido durante sua maturação intelectual e, subseqüentemente, como
se deu a sua militância política de fato.

8
Dado que Plínio Salgado cooptou importante parcela das correntes de
pensamento nacionalista e ou conservador do Brasil (especialmente no período do
entre-guerras), supomos que o tema encerra relevância suficiente para merecer
atenção deste e de outros trabalhos. Se houve em nosso país um pensador que
formulou uma doutrina ímpar de anticomunismo, visualizando nesta uma ferramenta
importante de atuação política, e que com tais métodos conseguiu influir
pesadamente durante mais de trinta anos na vida política nacional, entendemos que
cumpre à ciência política brasileira estudá-lo.

É a esta empresa que o presente trabalho almeja oferecer sua contribuição.

9
1 FONTES FORMATADORAS DO PENSAMENTO DE SALGADO

1.1 Um Brasil em Turbilhão

Em última análise, fermentava-se desde a proclamação republicana de 1889


a formação de uma nova mentalidade no panorama político-cultural brasileiro, que
apenas aparentemente imerso em virtual imobilidade até o início da segunda década
do século XX, em verdade silenciosamente prenunciava o advento de uma série de
inovações.

Enquanto na arena política São Paulo e Minas Gerais alternavam-se no


controle do poder central de modo a garantir significativo distencionamento entre os
interesses oligárquicos, apaziguados que foram através da política do “café-com-
leite”, o palco intelectual mostrava-se incapaz de apresentar rupturas ou
reorganizações conceituais significativas, ao menos a ponto de influir decisivamente
nas demais esferas sociais.

Ao contrário do que já se verificava na Europa ocidental e em parte da


América do Norte, o Brasil, com uma economia eminentemente baseada na
agricultura, viu a formação dos grandes centros cosmopolitas ter gênese apenas a

10
partir do término da Primeira Grande Guerra, tendo sido adiado, portanto, o advento
de uma “sociedade de massas” em nosso país.

No entanto, o horizonte já permitia antever transformações no ambiente


nacional. Como indicativo da dramaticidade do processo de aceleração histórica que
então se operava no seio da sociedade brasileira, podemos assinalar que enquanto
em 1907 o país detinha um contingente de 149 mil trabalhadores industriais, em
1920 este universo atingiria a casa de 275 mil. Assim, os primeiros anos da década
de 1920 protagonizaram o despontar de um novo paradoxo na matriz econômica
nacional, o que posteriormente implicaria no penoso enfrentamento de
desdobramentos políticos incertos, senão imprevisíveis. Mesmo em plena vigência
da abundante e exitosa produção cafeeira, o antigo modelo enfático em relação à
exportação de bens primários cede lugar a um processo que visa simultaneamente
substituir as importações e consolidar o mercado interno:

“(...) à sombra da produção cafeeira ocorreu uma certa


monetarização das atividades econômicas, de modo a dar
nascença a um mercado interno de mercadorias de consumo e
de produção (ferramentas e implementos agrícolas),
inicialmente alimentado por importações dos países
avançados e, gradativamente, suprido pela produção local. (...)
Evidentemente não bastava haver uma demanda de
manufaturados para propiciar a implantação da indústria local.
Era preciso, antes de mais nada, existir força de trabalho e
capitais disponíveis para a acumulação, o que se verificava
(...).” (Mantega, 1984, p.80)

Toda essa mutação econômica e social teve como reflexo - ou pelo contrário,
como ferramenta impulsiva - a paulatina lapidação de uma estrutura cultural diversa,
que iria encontrar seu ápice na Semana de Arte Moderna de 1922 e no enorme
influxo de concepções elaboradas pelos intelectuais da “nova sociologia” nascente,
de inclinação francamente nacionalista.

No campo estritamente político, entretanto, os choques de inovação não


seriam menos importantes. A Campanha Civilista de Rui Barbosa (1909/1910), a
questão do serviço militar obrigatório trazida à luz por Olavo Bilac e a Liga de Defesa

11
Nacional (1916), a explosão do movimento tenentista e os acontecimentos do Forte
de Copacabana (1922-24), a fundação do Partido Comunista (1922) e o lendário
episódio que se convencionou classificar como “Coluna Prestes” (1924), são alguns
dos sintomas que preparam terreno para a grande ruptura empreendida por Vargas
e a revolução de 1930.

É em meio a este contexto que a figura de Plínio Salgado se desenvolve e


prepara as bases para emergir definitivamente.

1.2 Síntese Biográfica de Plínio Salgado

Filho de um farmacêutico e de uma professora, Plínio Salgado nasceu a 22 de


janeiro de 1895 na cidade de São Bento do Sapucaí, interior do Estado de São
Paulo. Muito cedo inicia sua ação política e aos 18 anos é um dos fundadores do
Partido Municipalista, primeiro do gênero no Brasil, fato que de certa forma
prenuncia seu zelo pela problemática dos municípios, tendência que viria a sustentar
por toda a vida.

Ainda em 1913, cria o Correio de São Bento, semanário que um ano depois
lhe credenciaria ao cargo de redator do Correio Paulistano, na capital do Estado.
Sendo esse informativo intimamente ligado ao então Governo Estadual, dominado
pelo Partido Republicano Paulista (PRP), Salgado passa a transitar entre a elite
política local e em 1927 é eleito Deputado Estadual, com apoio de Júlio Prestes.

Antes disso, porém, participa ativamente da Semana de Arte Moderna de


1922, envolvendo-se nos debates em torno da nova estética artístico-literária e do
nativismo indianista, além de desenvolver seu nacionalismo, que mais tarde iria
robustecer-se com o advento do Movimento Verde-Amarelista, fundado em parceria
com Menotti del Picchia, Motta Filho e Cassiano Ricardo.

12
Depois de escrever uma série de artigos publicados pelo Correio Paulistano,
através dos quais já se percebe fragmentos da embrionária ideologia integralista,
Salgado lança o romance O Estrangeiro (1926) e vê coroadas suas atividades
literárias com o ingresso na Academia Paulista de Letras três anos depois.

Assiste aos acontecimentos de 1930 em solo Europeu, como preceptor de um


jovem de família abastada. Contudo, já instituído o governo varguista, retorna ao
Brasil e dirige o jornal A Razão, para o qual escreve artigos doutrinários diariamente.
Em decorrência da eclosão da Revolução Constitucionalista em São Paulo, a sede
do jornal é incendiada, o que precipita a fundação da Sociedade de Estudos
Políticos (SEP), entidade pré-integralista que serviria como substituta de A Razão na
função de agente difusor da apologética de Salgado, bem como instrumento para
aglutinar seus seguidores, os mesmos que formariam o núcleo central do grupo que
em sete de outubro de 1932 proclama o Manifesto de Outubro. Nascia assim a Ação
Integralista Brasileira (AIB).

Salgado logo afirma-se como líder supremo (“Chefe Nacional”) do novo


movimento, embora a adesão de nomes como Miguel Reale, Gustavo Barroso e
Raymundo Padilha tenha forjado esferas de influência consideráveis sobre a
militância. Chega a ter chancelada sua candidatura à Presidência da República,
empresa que viria a ser revogada pelo decreto estadonovista de extinção dos
partidos políticos.

Dúbia se mostra sua relação com a nova ordem, e após uma colaboração
inicial que lhe valeu o convite de Vargas para assumir o Ministério da Educação,
acaba por repudiar o decreto de fechamento da AIB e é então preso na Fortaleza de
Santa Cruz, lá permanecendo até 21 de junho de 1939, sob acusação de ser o
mentor do famoso Putsch do ano anterior, geralmente atribuído aos integralistas.

Parte para o exílio em Portugal, onde desempenha atividades de


conferencista e solidifica, através da publicação de diversas obras religiosas, sua
condição de intelectual e líder católico militante. Durante esse período, envia ao
Brasil uma série de manifestos e orientações formais aos membros da extinta AIB,

13
explicitando, em um deles, sua aprovação à declaração de guerra do governo
brasileiro contra o Eixo nazi-nipo-fascista1.

Uma vez redemocratizado o sistema político, Salgado retorna à terra natal e é


eleito presidente do Partido de Representação Popular (PRP), organização esta que
passa a congregar parte significativa dos antigos camisas-verdes. Embora
germinada no exílio, operacionaliza-se nessa época sua ressignificação ideológica,
que teve no apoio a candidatura presidencial de Eduardo Gomes um marco divisor
peremptório, no sentido do abandono do anti-sistemismo característico da AIB.

Em 1955, disputa a presidência da República pelo PRP, obtendo 632. 848


votos, e um ano depois é eleito Deputado Federal pelo Estado do Paraná. Exerce
por mais duas vezes a legislatura federal (1960-64 e 1970-74)2, agora representando
São Paulo.

Salgado profere seu discurso de despedida na Câmara dos Deputados e


decide abandonar a vida pública, vindo a falecer em dezembro de 1975, aos 80 anos
de idade.

1.3 Fontes Formatadoras do Pensamento de Salgado

Sabe-se que muitas foram as correntes de pensamento que, em maior ou


menor grau, influenciaram o ideário de Salgado.

Pelo lado literário, somando-se, é claro, aos seus contemporâneos


modernistas, observa-se que os romances de Machado de Assis parecem ter
desempenhado importante papel em suas concepções. Na sua obra A Quarta

1
Sobre os posicionamentos de Salgado no exílio e sua relação extra-institucional com o Estado Novo e os
membros da AIB na clandestinidade, consultar O Integralismo perante a Nação, p.179-353, bem como o item
2.3.2 do presente trabalho, “As relações com o Estado Novo”.
2
Em virtude do bipartidarismo instituído pelo regime militar em 1964, Salgado exerce este último mandato
pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA)

14
Humanidade, Salgado dedica todo um capítulo ao autor de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, procurando sistematicamente relacionar a temática dos escritos de
Assis com o “espírito brasileiro” em suas diversas manifestações. Assis teria sido “o
gênio que traduziu o sentido de uma época na história do espírito nacional” (A
Quarta Humanidade, p.141), ou também “o grande espírito que a Providência
iluminou com a capacidade de devassar os meandros mais escuros dos destinos do
seu povo.” (idem, p.144)

Para Salgado, o “médium das raças” de alguma forma teria consubstanciado


os três vetores étnicos da formação da nacionalidade, pois em sua personalidade

“(...) o tom sardônico da raça tupi, a um tempo amargo e


superior, funde-se com o sarcasmo do africano; e o elemento
ariano, que entra no sangue do gênio da nossa terra,
disciplina-o com o senso lógico de uma velha cultura.” (A
Quarta Humanidade, p. 147)

Contrapondo-se aos críticos que enxergavam tonalidades pessimistas nos


livros de Assis, Salgado argumenta no sentido de que tal pessimismo encobriria, na
verdade, um protesto silencioso a fim de demonstrar inconformidade com o
panorama cultural brasileiro de sua geração. Assim, este sentimento ficaria
paradoxalmente metamorfoseado, tendo gênese um otimismo (“sentimento de fé”)
em Assis, no qual Salgado vislumbra um alento para a necessidade de se “acreditar
na Pátria brasileira.” (idem, p.150)

Também a história e a literatura épica lusitana compõem a temática de


Salgado. Como parte de seu apelo nacionalista, que via na herança deixada por
nossos descobridores um dos pilares da brasilidade, os autores e heróis de Portugal
têm destaque em seus escritos. A justificativa para tal posicionamento é a de que “o
estudo da história de Portugal, anterior a 1500, é fundamental para o conhecimento
da personalidade nacional brasileira”, pelo fato de que “tanto o Brasil como Portugal
são filhos legítimos” de uma mesma “lusitanidade” (Reconstrução do Homem, p.
168). Irmanados através de um laço cultural e sentimental que o Atlântico é
impotente para romper, ambos os povos teriam raízes em comum e um mesmo

15
“destino histórico” a cumprir. Considerando D. Filipa de Lencastre, esposa de D.
João I, como a grande matriarca fundadora da nacionalidade portuguesa, Salgado
exalta o cotidiano repleto de “romances de cavalaria e culto de Deus” (idem, p.173)
em que fora educado seu filho, o Infante D. Henrique, enxergando aí o embrião da
heroicidade e da poética que permitiu a Portugal tornar-se um grande Império
ultramarino, porque “aqueles homens, criadores de um espírito nacional, só
procuravam grandeza ou na ciência e nas letras, ou no heroísmo das batalhas, ou
no martírio por amor de Cristo.” (ibidem, p.178-179). Porém, mesmo dando
recorrente relevo a Camões, aos empreendimentos da Escola de Sagres e a outros
nomes e episódios importantes da história de Portugal, Salgado condiciona sua
admiração por este país, limitando-a a evocação de um sentimento que lá existiu
outrora (o Império teocrático e cristão). Vinculando novamente o Brasil à Nação de
Cabral, Salgado dirige-se aos lusos propondo o reerguimento desta antiga
concepção afirmando que “tivestes a responsabilidade de nos fazer como somos, e
nós, por conseguinte, temos o direito de exigir que sejais como fostes!” (Aliança do
Sim e do Não, p.98). Evidencia-se aqui, de um lado, o antimodernismo que
caracteriza uma das esferas da mentalidade de Salgado, e, de outro, seu forte apelo
cristão, que tem nos valores do catolicismo medieval uma fonte basilar.

As encíclicas papais e documentos oriundos do magistério da Igreja também


são uma constante nas referências de Salgado, sobretudo durante o período do pós-
guerra. O enfoque antimodernista de Pio IX, o anticomunismo de Pio XI, o moralismo
de Pio XII e principalmente a doutrina social de Leão XIII, deixaram marcas
importantes nas concepções de Plínio, como veremos mais adiante.

De outra parte, quando em visita à Europa em 1930, Salgado pôde observar


de perto os reclames incendiários dos arautos do nacionalismo autoritário europeu
que então insinuava-se na conquista do poder. Embora a associação incondicional
do integralismo com o fascismo nos pareça problemática, cabe mencionar que o
sistema italiano e a estrutura corporativista elaborada por Mosca e Paretto (que,
grosso modo, viria a ser implementada por Mussolini) mereceu sua especial
atenção, como se percebe através do artigo “Como eu vi a Itália”, de autoria de
Salgado, publicado na Revista Hierarquia, março/abril de 1932, citado por Trindade

16
(1974, p. 108). No entanto, sua adesão às demais correntes nacionalistas européias
de então mostra-se parcial, não obstante algumas citações elogiosas.

Contudo, as obras de Salgado denotam intensa preocupação com questões


filosóficas, o que repetidamente o leva a tratar de problematizações levantadas por
inúmeros filósofos, objetiva ou subjetivamente. Se sua crítica implacável ao
racionalismo enciclopedista tem como alvo autores como Rousseau e Locke, seu
sentimento antimodernista deixa-se revelar nas investidas contra o cientificismo
experimental de Descartes, o evolucionismo de Spencer e Haeckel, o determinismo
de Freud, o igualitarismo naturalista de Rousseau, o mundialismo de Kant e o
utilitarismo de Stuart Mill. Assim como seu anticomunismo rebela-se contra os
métodos de Marx e Sorel (propondo a substituição luta de classes e da violência
soreliana pela caridade cristã), seu embasamento espiritualista está em Farias Brito
e no socorro das encíclicas papais.

Dito isso, é o próprio Salgado quem nos fornece subsídios para traçar um
quadro da enorme gama de autores que norteavam as investigações de seu círculo
intelectual pré-integralista:

“De 1922 a 1926, eram tão absorventes as leituras que


fazíamos de Marinetti, Soffici, Govoni, Apollinaire, Cocteau,
Max Jacob, Cendars, como de 1926 a 1930, tendo nós
mudado de tema, foram as leituras de Marx, Sorel, Lenine,
Trotzki, Riazanov, Pleckanov, Fuerbach.” (Despertemos a
Nação, p.11)

Não obstante a referência a tantos teóricos estrangeiros de matriz mais ou


menos politizada, o que sinaliza a crescente ideologização de Salgado, parece-nos
evidente, pela análise de suas obras, que as idéias que decisivamente penetraram
em sua psique foram irradiadas a partir de autores brasileiros, detidos, cada um a
seu modo, na problemática nacional, o que não implica necessariamente no
desprezo aos questionamentos mais amplos e universais. Em que pese sua
atenção, neste período, às obras de divulgação marxista, como a passagem
supracitada demonstra, Salgado pondera que “não cheguei a ficar comunista,

17
porque as ‘novidades’ do materialismo histórico já me tinham fascinado aos
dezessete anos.” (idem, p.17)

1.3.1 Alguns Pensadores e Correntes Teóricas

Como veremos em seguida, a permanente preocupação com questões


relativas ao nacionalismo fez com que Salgado outorgasse prioridade aos
intelectuais brasileiros, o que é facilmente perceptível através de seus textos. A
citação hegemônica, constante e ininterrupta de nomes como Alberto Torres, Farias
Brito, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha e Jackson de Figueiredo, tanto no período
integralista quanto no pós-guerra, nos permitem concluir que foram esses os marcos
referenciais na formação da estrutura ideológica pessoal de Salgado:

“(...) estava eu muito influenciado por alguns patrícios, a


começar por Farias Britto, o filósofo cearense que me incutiu,
mediante análise que fez das filosofias do século XIX, o
sentimento espiritualista. Ao mesmo tempo, embrenhei-me na
leitura de Alberto Torres. Primeiro, na sua Organização
Nacional, em que criticava a Constituição de 1891, mostrando
seu desacerto pela falta de conexão com a verdadeira
realidade do nosso país, em seguida, no seu livro O Problema
Nacional Brasileiro, que me inspirou apaixonada orientação
nacionalista. Aberto Torres foi meu mestre de nacionalismo
brasileiro. Entrei, então, na leitura de Oliveira Vianna, o maior
sociólogo que o Brasil tem produzido. Os seus livros – O Ocaso
do Império, O Idealismo na Constituição e A Evolução do Povo
Brasileiro – calaram profundamente no meu espírito de jovem.”
(Salgado apud Dórea, 1982, p.304)

Aliás, o sopro teórico destes autores iria ressoar inclusive na formação do


imaginário do próprio movimento integralista como um todo. É conforme esta lógica
que Darnton interpreta algumas assertivas sustentadas por Miguel Reale, Chefe de
Doutrina da AIB:

18
“Não é negado pelos integralistas, que na elaboração de seu
programa político, tenha exercido alguma influência as idéias
do que Miguel Reale chama de “Primeiro Fascismo”, como
tentativas de superação do liberalismo e do comunismo. Mas,
segundo Reale, não foi menor o influxo dos grandes
intérpretes nacionais como Euclides da Cunha, Oliveira
Vianna, Farias Brito, Alberto Torres, e outros, que haviam
posto o problema da realidade brasileira.” (Darnton, 1990,
p.188)

Assim, procuraremos sinteticamente mapear algumas destas correntes


teóricas, analisando as respectivas reverberações ideológicas que tiveram no
pensamento de Salgado.

1.3.2 Alberto Torres (1865-1917)

As argumentações fundamentais da produção normativa de Alberto Torres


giram em torno da solicitação permanente de se conceber uma idéia de “consciência
nacional”, bem como da crítica severa à importação “artificial” de fórmulas políticas
estrangeiras para se sanar o “problema nacional brasileiro”, que tendo para ele
características singulares, não encontraria desfecho satisfatório sem basear-se em
um enfrentamento “objetivo” e “prático”:

“Nenhum outro povo tem tido até hoje, vida mais descuidada
do que o nosso. O espírito brasileiro é ainda um espírito
romântico e contemplativo, ingênuo e simples, em meio de
seus palácios, de suas avenidas, de suas bibliotecas e de
seus mostruários de elegâncias e vagos idealismos. Com uma
civilização de cidades ostentosas e de roupagens, de idéias
decoradas, de encadernação e de formas, não possuímos
nem economia, nem opinião, nem consciência dos nossos
interesses práticos, nem juízo próprio sobre as coisas mais
simples da vida social.” (Torres, 1978, p.14-15)

Portanto, as duas obras principais de Torres, O Problema Nacional Brasileiro


e A Organização Nacional (ambas vindo à tona em 1914), enfocam sobretudo esse

19
universo teórico, influenciando diretamente a faceta menos idealística (e mais
pragmática) do nacionalismo adotado por Salgado e o integralismo, pois “o corpo de
doutrina integralista, sendo fundamentalmente nacionalista, procura desenvolver
com categorias próprias o trabalho iniciado por Alberto Torres.” (Souza, 1999, p.20).

Ainda destacando o caráter nacional dos estudos de Torres, caráter este que
apresenta-se indissociável de um entendimento “realista” e “prático”, Salgado
assegura que o pensador fluminense, além de ter dado combate às “teorias raciais
européias”, ocupou-se das “pequenas (e tão grandes) realidades brasileiras até
então esquecidas pelos eruditos” e desponta como o “supervisionador dos
fenômenos sociais, o reajustador das instituições às realidades, o crítico das leis e o
esquematizador dos novos lineamentos políticos do país.” (O Ritmo da História,
p.258)

Também Oliveira Vianna corrobora para a tese do pioneirismo de Torres


quanto à abordagem essencialmente brasileira das questões políticas, uma vez que
o autor de A Organização Nacional “revelou uma visão mais compreensiva e mais
brasileira da nossa vida íntima de povo (...) nenhum, como ele, consolidou um tão
vasto corpo de conclusões positivas, práticas, experimentada sobre a verdadeira
orientação da nossa política e dos nossos governos.” (Vianna apud Trindade, 1974,
p. 29)

Além de classificar Torres como sendo o seu “mestre de nacionalismo


brasileiro”, Salgado estende o raio de abrangência de seus estudos, considerando-o
como responsável pela

“(...) antecipação do conceito integral de nacionalidade que


serve hoje de base ao nacionalismo alemão, ao italiano, ao
português. É a profecia sobre o drama pelo qual passa o
Estado Democrático, entre os dois perigos eminentes: o do
estatismo absoluto e o liberalismo pauperante, aniquilador.”
(Despertemos a Nação, p.155-156)

20
Intensificando ainda mais a analogia que desenvolve entre as idéias de Torres
e a doutrina integralista, Salgado sustenta que “não pomos dúvida em afirmar que o
grande pensador político se hoje vivesse seria integralista.” (Psicologia da
Revolução, p.80)

Cumpre-nos ainda acrescentar que se as convicções nacionalistas de Torres


e sua denúncia das “fantasias jurídicas” e das instituições republicanas
supostamente desconectadas da realidade tiveram eco importante na cosmovisão
de Salgado, suas críticas direcionadas ao federalismo implantado pela República e
sua defesa do corporativismo, reivindicações mais tarde exploradas pela plataforma
programática integralista, também devem ser consideradas.3

Por fim, cumpre fixar que estudiosos que a priori ligam o pensamento de
Salgado ao fascismo em geral, sendo o integralismo, nesse caso, mera reprodução
dos totalitarismos militaristas europeus, costumam ver contradições na assimilação
“pliniana” das receitas de Torres, uma vez que se o nacionalismo do primeiro
pretendia-se “puro”, ou seja, alheio às fórmulas estrangeiras, o movimento político
liderado por Salgado teria ido de encontro às inspirações genuinamente nacionais
justamente pelo fato de supostamente sujeitar-se ao ideário fascista, importando
fórmulas ao invés de buscá-las no próprio Brasil.

1.3.3 Farias Brito (1861-1917)

Se Alberto Torres foi o “mestre de nacionalismo” de Salgado, menor não foi a


penetração da filosofia de Raimundo de Farias Brito em seu pensamento. Autor de

3
Robustecendo essa ressalva, o trabalho de SANTOS, Cleiton Oliveira dos. Albeto Torres: o pensamento
integralista em gênese. Goiânia: UFG, Monografia de Especialização. Departamento de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal de Goiás, 2004, p.27, pondera que Torres “vai dar, também, o primeiro passo
rumo a uma elaboração teórica do corporativismo no Brasil, outro ponto que o integralismo iria desenvolver no
contexto dos anos de 1930”, acrescentando adiante que “um dos graves erros da República, apontado tanto por
Torres quanto pelo integralismo, foi o regime federativo: a transformação da unidade nacional herdada do
Império em várias ‘nações independentes’. Daí que uma das propostas do integralismo seja a abolição do ‘Estado
dentro do Estado’, e, como Torres, a volta das antigas ‘Províncias” (idem, p.29-30).

21
vastíssima obra, dentre as quais destacam-se Finalidade do Mundo (1895) A
Verdade como Regra das Ações (1905), A Base física do Espírito (1912) e O Mundo
Interior (1914), Brito desde logo ganha vulto no cenário intelectual brasileiro como
respeitado teórico e defensor do espiritualismo.

Suas objeções ao materialismo e ao marxismo (especialmente no que tange


ao “socialismo científico”), sustentam-se mais na contra-argumentação
semanticamente metafísica do que nas referências contidas no embate estritamente
político, desenvolvendo, assim, uma estrutura conceitual bastante robusta que lhe
projetou, como se disse, à posição de precursor da escola espiritualista no Brasil.4

Opositor intransigente do agnosticismo em todas as suas variantes, o que o


aproxima das críticas empreendidas pelo Pe. Leonel Franca5 às formulações
kantianas, Brito via no desprezo às questões teológicas o aspecto fundamental que
provocou a “crise moderna”:

“(...) perdida a primitiva consciência divina, o homem,


começando por transportar Deus para fora do mundo,
terminou por nega-lo. E em época alguma, cumpre notar,
chegou esta negação a adquirir tão vasto domínio, como na
época presente, em que não falta quem procure blasonar de
ciência, fazendo ostentação de impiedade. Mas negar Deus é
negar a razão do mundo. Por isso, desesperadoras, brutais,
haviam de ser as conseqüências resultar do ateísmo
moderno.” (Brito, 1957, p.15-16).

Apelando à ressurreição de uma concepção que poder-se-ia classificar de


idealista e sacral da vida, Brito opunha-se ao utilitarismo de Stuart Mill de modo
análogo à Salgado, que identificava na supremacia da “filosofia do êxito”, ou seja, no
pressuposto de que o interesse imediato está acima dos princípios morais, o

4
O termo “escola” foi aqui empregado com o intuito de registrar que o espiritualismo objetivamente encontrou
discípulos no Brasil, como é o caso de Jackson de Figueiredo, o Centro D. Vidal e sua gama de sócios, e, pela
via filosófica estricto sensu, Mário Ferreira dos Santos, além do próprio Plínio Salgado.
5
Leonel Franca teve importante papel na renovação espiritual católica que se desenvolveu no início do século
XX. Anticomunista, crítico veemente do livre-exame advindo do protestantismo e vinculado às correntes mais
conservadoras do catolicismo, Franca é autor de vasta obra filosófica e religiosa, dentre elas Psicologia da Fé, A
Igreja, a Reforma e a Civilização, A crise do Mundo Moderno e Liberdade e Determinismo.

22
elemento “degradante” que suprimiu do homem o ímpeto heróico e puro dos ideais,
já que “a luta por comida é luta de animais. Homens só lutam, ou pelo menos só
devem lutar por idéias.” (idem, p.44).

Analisando o processo de secularização que se abateu sobre o mundo,


responsável, sob esta ótica, pela “inversão de valores” que põe o homem em
derrocada, impulsionado pelo iluminismo, o atomismo, o livre-pensamento e a dúvida
metódica dos processos cartesianos, Brito termina por tecer ressalvas incisivas aos
resultados da Revolução Francesa, demonstrando a fragilidade da tríade jacobina se
chocada com a realidade:

“(...) caindo afinal definitivamente a monarquia absoluta, para


dar lugar à democracia moderna, tendo por lema fundamental
a célebre fórmula revolucionária: Igualdade, Liberdade,
Fraternidade. Mas a democracia, por seu lado, fascinou por
um momento os espíritos entusiastas, mas isto somente para
dar, logo em seguida, de si mesma, a mais triste cópia.”
(ibidem, p.17)

Além disso, Brito acusava o arcabouço político-cultural moderno de haver


tecido as teias de sua própria escravização, uma vez que as propostas libertárias de
1789 teriam redundado em uma forma travestida de absolutismo, porque “se a
democracia foi o resultado legítimo da Revolução, é uma verdade que ao
absolutismo do Papa e dos reis, sucedeu nas democracias o absolutismo dos
capitalistas e banqueiros, mil vezes mais detestável.” (Brito, 1957, p.18)

E seu anti-marxismo orienta-se precisamente nesta esfera de compreensão.


Também rechaçando a plutocracia do capitalismo internacional, Brito esforça-se em
sobrepor o idealismo espiritualista à luta de classes e ao materialismo histórico, pois

“O ponto de vista dos socialistas é: a questão social deve ser


resolvida politicamente, em nome do interesse. O meu ponto de
vista é: a questão social deve ser resolvida religiosamente, em
nome de uma idéia. Uma grande idéia, um grande princípio
moral – eis, pois, qual deve ser o ponto de partida para a
reforma das sociedades, reforma sobretudo nos caracteres,
reforma sobretudo moral.” (idem, p.49)

23
Aqui se anuncia, também, a presença de uma outra idéia de Brito incorporada
por Salgado: a “revolução interior”. Constantemente presente nas obras de
doutrinação integralista e também nos livros de Salgado com ênfase voltada ao
espiritual, a “revolução interior” funcionaria como um primeiro indicativo da
“conversão”, do exercício pleno da “profissão de fé” do militante que inicia sua
marcha em nome de novos ideais. Adotando a mesma lógica do antigo ditado
romano, Vis habere Imperium? Impera tibi! (Queres um império? Impera a ti!), o
aperfeiçoamento interior seria a primeira ação transformadora, já que para ascender
a uma condição superior “é preciso penetrar nos confins mais remotos da nossa
floresta interior” (Rei dos Reis, p.315) e “o nosso combate, por conseguinte, deve
principiar em nós mesmos. É a revolução interior, que aconselhei sempre desde
1932 e que aconselho hoje (...).” (Espírito da Burguesia, p.53)

Através da análise comparativa destes fragmentos da filosofia de Brito com as


obras de Salgado, percebe-se que, desconsiderada a “revolução interior”, foram ao
menos quatro os princípios que este absorveu daquele: o espiritualismo e a busca
teológica como signos de oposição ao racionalismo moderno (de onde nasce, em
parte, o anti-modernismo e o anti-materialismo de Salgado), o apriorismo idealista
como força motriz da postura a ser almejada pelo homem (anti-determinismo e anti-
utilitarismo), a crítica aos fundamentos históricos da democracia liberal e o combate
filosófico ao marxismo.

3.1.4 O Conservadorismo Católico

Se o século XIX assistiu ao predomínio do cientificismo na esfera intelectual,


o início do século XX iria reservar uma contrapartida espiritualista, manifestada, no
caso brasileiro, preliminarmente, como se viu, através da filosofia de Farias Brito.

24
Este ambiente de forte efervescência espiritual, romântica e idealista, permitiu
o aparecimento de toda uma geração de intelectuais ligados ao catolicismo
tradicional/conservador, que buscavam, por meio de publicações e diversas
atividades culturais, resgatar os valores clássicos da Igreja, ameaçados que estavam
pelo ceticismo generalizado e pela crescente secularização do mundo ocidental.

Como prelúdio desta movimentação, cabe frisar que ainda em 1888 o Pe.
Júlio Maria empreende vigorosa ofensiva contra o positivismo e o racionalismo em
geral, pressentindo seus efeitos sob a ordem política brasileira, uma vez que,
estando as academias militares impregnadas pelas receitas comtianas de Benjamim
Constant, sentimentos antiimperiais e anticlericais cedo ou tarde ganhariam vulto,
como de fato ocorreu em 1889 e 1890 (Proclamação da República e dissociação
Igreja-Estado).

A evidência de que o a ortodoxia de Maria influenciou a geração espiritualista


de trinta anos depois está nas palavras do próprio Jackson de Figueiredo, ícone do
conservadorismo ultramontano dos anos de 1920, para quem o Pe. Maria teria sido
“um dos primeiros e mais vivos raios dessa luz de esperança, em terra brasileira”,
pois o clérigo

“(...) ainda é, nos dias em que vamos vivendo, o exemplo


mais bello dessa invencível misericórdia divina para com os
povos em que foi possível alastrar-se o mal agnóstico, a
indivisível miséria de um negativismo organizado,
paradoxalmente sistemático.” (Figueiredo, 1924, p.149)

Ao lado de Figueiredo, pode-se inserir nomes como D. Sebastião Leme,


Tasso da Silveira, Pe. Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima, expoentes do
catolicismo no Brasil. O centro da temática destes pensadores direciona-se para o
repúdio ao materialismo e ao agnosticismo moderno, sendo apresentada, como
contraproposta, a formação de uma “Ação Católica” ampla, atuante e combativa,
capaz de influir politicamente.

Assim, para Tasso da Silveira,

25
“O renascimento e o humanismo negaram o homem espiritual,
que não pode deixar de ser criador, para afirmar
exclusivamente o homem natural, escravo da necessidade.
Desdobrada tal negação em suas últimas conseqüências, o
resultado foi esse movimento vertiginoso de devastação a que
se acha entregue o nosso velho mundo pecador. Porque o
homem, enchendo-se cada vez mais de orgulho, esvaziou-se
cada vez mais do sentido do seu destino transcendente.”
(Silveira, 1935, p.10-11)

E é similar o diagnóstico traçado por Leonel Franca:

“(...) em nenhuma outra época, talvez, exerceram os bens


materiais tamanha tirania sobre as vontades como em nossos
dias. O homem que conseguiu dominar a natureza com a
máquina acabou escravizando-se ao despotismo da própria
máquina triunfante. (...) nesta efervescência de ambições e
esperanças, nesta febre de atividades externas, empalidecem
os valores do espírito e escasseia o tempo para tudo o que
não é ganhar e gozar o ganho.” (Franca, 1952, p.80-81)

À parte das críticas às bandeiras impulsionadoras da ordem de valores pós-


iluministas que suplantou a teocracia católica medieval, percebe-se a evocação
sentimental a esse passado, pois se para Silveira “os tempos medievais foram
eminentemente religiosos, que eram arrastados pela nostalgia do céu, a qual
tornava os povos como que possuídos por uma loucura santa” (Silveira, 1935, p.11),
para Franca “em outras eras, as condições de vida social, mais informada pelo
espírito cristão, respeitavam melhor a hierarquia essencial dos valores humanos”
(Franca, 1952, p.80).

Já Alceu de Amoroso Lima, dono de vastíssima obra e nome de liderança na


militância laica brasileira até a morte, chegou a aderir, ao menos informalmente, ao
integralismo, abandonando-o somente em meados da década de 1940, quando
passou a adotar posturas menos ortodoxas, seja nos assuntos religiosos, seja nas
questões políticas. Antes disso, porém, Lima não encontrava incompatibilidades
entre o integralismo de Salgado e os ensinamentos da Igreja:

26
“O integralismo possui, no campo social, em grande parte os
mesmos adversários que a Igreja. E a luta contra inimigos
comuns é um laço que cria aproximações indestrutíveis. (...) se
há realmente vocação política, confesso que não vejo outro
partido que possa, como a Ação Integralista, satisfazer tão
completamente às exigências de uma consciência católica,
que se tenha libertado dos preconceitos liberais.” (Lima Apud
Salgado, 1955, p.158-159)

Contudo, é Jackson de Figueiredo (1891-1928) o nome mais controverso e


radical dessa geração preocupada com o estabelecimento de uma “Ação Católica”.
Com a fundação do Centro D. Vital (1922), este pensador passa a cooptar a elite
intelectual leiga, tendo como um de seus mais eminentes discípulos justamente
Amoroso Lima, que, referindo-se a Figueiredo, nos diz: “eu confesso que nenhum
homem, até hoje, me deu como ele o pressentimento misterioso do que é o homem.
E por isso mesmo, talvez, é que a mim, como a tantos outros, foi ele quem mostrou
o Caminho de Casa.” (Lima apud Carneiro, 1947, p.168-169)

O próprio nome de batismo do centro denota explícita referência a D. Vital de


Oliveira, bispo de Olinda em 1874. Neste mesmo ano, o Papa Pio IX, através da
Bula Syllabus, proíbe aos católicos o ingresso na maçonaria, condenando os
aspectos “heréticos” da entidade. D. Vital, em conjunto com D. Antônio Macedo da
Costa, bispo de Belém do Pará, imediatamente faz cumprir o teor da Bula e passa a
punir irmandades e fiéis suspeitos de ligações com a maçonaria, no que é, através
do lobby maçônico, repreendido pelo governo e condenado, ao lado do outro bispo,
a quatro anos de reclusão, pena que um ano depois seria comutada pelo então
ministro-chefe Duque de Caxias, do Partido Conservador. Tal acontecimento -
conhecido na historiografia como “Questão Religiosa” - promoveu díspare agitação
política no Império, datando destes dias os mais fortes atritos entre o magistério
eclesiástico e o poder secular brasileiro, ao menos até a ruptura unilateral
estabelecida pela República.

Salgado identifica o patrono do centro como personalidade irradiadora da


“reação católica brasileira contra a insidiosa manobra de infiltração maçônica nas
associações religiosas”, exaltando-o como “o grande capuchinho que tão

27
nobremente honrou a cadeira episcopal de Pernambuco.” (Aliança do Sim e do Não,
p. 27) Especificamente no que tange ao centro que homenageia o bispo, Salgado
observa-o com não menos simpatia, citando-o como responsável pelo renascimento
do “movimento de cultura católica (...) que mais tarde congregou nomes como os de
Jackson de Figueiredo, o impetuoso chefe leigo da Ação Católica.” (idem, p. 27)

Figueiredo bem representa a mentalidade “contra-revolucionária”,


antidemocrática e monarquista (o que, aliás, aproxima-o do integralismo lusitano),
denunciadora das filosofias anticristãs em orquestração com “forças secretas” que
estariam a conspirar nas trevas. Ironizando o bolchevismo, Figueiredo expressa seu
anticomunismo, ao mesmo tempo em que desaprova energicamente a modernidade:
“nós, católicos de verdade, somos uma ameaça muito mais séria ao mundo moderno
do que os mais convictos bolchevistas. O que vale a esse sarapatel de oiro e de
lama é que é mais fácil ser bolchevista do que católico de verdade.” (Figueiredo
Apud Carneiro, 1947, p. 181)

Contudo, se Tasso da Silveira e Amoroso Lima foram mais tarde entusiastas do


integralismo, à Figueiredo, falecido prematuramente (1928), não foi facultado
conviver com a AIB, fato que suscita interrogações acerca de quais teriam sido suas
atitudes políticas em face do movimento de Salgado, embora a existência de mais
elementos de identificação do que de antagonismo entre ambos incline o estudioso a
recair sobre a conclusão de associa-los. Não obstante tal questionamento, “Salgado
buscava apresentar-se como herdeiro legítimo da ortodoxia católica, fazendo
constantes referências a Jackson de Figueiredo e procurando incessantemente a
aprovação da hierarquia católica ao integralismo.” (Calil, 2001, p.42)

De fato, a busca de Salgado ao beneplácito eclesiástico diante das posturas


integralistas e das suas próprias parece ter surtido efeito, se considerarmos que o
tom moralista de suas obras, aliado a sua opção política conservadora, a um tempo
antiliberal e anticomunista, aproximou-o do clero, que à época, inexistindo tanto as
medidas de aggiornamento sancionadas pelo Concílio Vaticano II como a “Teologia
da Libertação”, tendia a posicionar-se preponderantemente mais à direita do quadro
político.

28
As declarações simpáticas ao integralismo proferidas por altos membros da
Igreja foram intensamente divulgadas por Salgado como prova cabal de que o
movimento seria acima de tudo cristão e nacionalista, simpático à Igreja e distante
do totalitarismo nazi-fascista, classificado, principalmente no pós-45, como
“agnóstico” e “neo-pagão”. Em O Integralismo Perante a Nação (p. 209-214), por
exemplo, são transcritos vinte depoimentos de bispos e arcebispos brasileiros
aprovando o integralismo. Soma-se a isso a presença de sete padres na “Câmara
dos Quatrocentos”, espécie de Câmara Baixa da AIB.

E a religiosidade assumiu proeminência inédita no discurso de Salgado a


partir de seu exílio em Portugal. Embora o apelo de índole cristã estivesse presente
anteriormente, como se verifica, inclusive, através das publicações anuais de “Cartas
de Natal” que mesclavam orações religiosas e argumentações mais voltadas à
situação política, seria no recesso do exílio que Salgado escreveria obras de
conteúdo majoritariamente teológico, ficando a política relegada a um segundo
plano. É o caso de A Imagem Daquela Noite, Vida de Jesus, Rei dos Reis, e A Tua
Cruz, Senhor, além de, em menor grau, Primeiro Cristo e Aliança do Sim e do Não.
Especialmente Vida de Jesus, apesar de extensíssimo, não traz qualquer referência
política explícita, o que não impede Salgado de rotulá-lo como “síntese” de seu
pensamento e “espelho de um sentimento que vive em mim e tudo explica em mim.”
(Vida de Jesus, 1945, p.7) Outro dado que corrobora para robustecer a legitimidade
de Salgado como representante da intelectualidade católica de sua época (com forte
penetração ao menos na parcela mais ortodoxa, que sem dúvida era então
dominante), diz respeito à sua participação como observador na Comissão dos
Direitos Humanos da ONU, a convite das “Conversações Católicas Internacionais”.
Como fruto desta empresa, vem a tona a obra Direitos e Deveres do Homem, em
que Plínio defende a Doutrina Social da Igreja e os textos bíblicos, considerando-os
parâmetros mais apropriados para formulações do gênero, ao mesmo tempo em que
censura diversos pareceres proferidos na Assembléia devido à ausência de
embasamentos espiritualistas em seus respectivos conteúdos. Neste livro, Salgado
opõe-se veementemente à aceitação da URSS como membro da ONU, alegando
mais motivos religiosos e morais (o ateísmo oficializado pelo regime soviético e a

29
prisão de padres e freiras pelo mesmo) do que discordâncias eminentemente
políticas, embora estas não estejam ausentes. Ainda nesse sentido, consta,
conforme Calil (2001, p. 230-231), que Salgado teria respaldado as ações
ultraconservadoras do Monsenhor Lefebre, o que o ligaria definitivamente às
correntes mais tradicionalistas e dogmáticas do catolicismo.

Contudo, é curioso o fato de que Salgado jamais tenha aderido formalmente à


Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada
em 1960 pelo advogado Plínio Corrêa de Oliveira, - que, segundo Trindade (1974, p.
127), inclusive teria sido membro do setor de assuntos religiosos da SEP - já que
esta entidade, sendo intransigente propagadora dos valores tradicionais do
catolicismo, além de radicalmente anticomunista no âmbito político, sustenta, ainda
que parcialmente, convicções idênticas às encontradas em seu pensamento.

Outrossim, como parte de suas referências à condição de católico militante,


Salgado não poupa elogios a diversos Sumos Pontífices, da mesma forma como
reprova a sociedade por evadir-se de fazer o mesmo, permanecendo na impiedade:

“Pinta Leão XIII aos olhos do mundo o quadro das injustiças


sociais e mostra o caminho verdadeiro; mas os homens
preferem ouvir Marx e Engels, porque pregam o ódio, e Sorel
porque ensina o catecismo da violência. Levanta-se Pio X,
irradiante de bondade, e mostra os erros modernos largamente
disseminados; mas os homens ainda preferem ler as sedutoras
páginas de Emerson, Carlyle e Ruskin, porque falam da
exaltação da vida na Terra, e sobretudo Nietzsche porque
prega a crueldade e o esmagamento dos homens sob as botas
dos heróis. Aparece Bento XV, aos relâmpagos do mundo em
incêndio e chama a atenção dos espíritos desorientados para a
filosofia perene de Tomás de Aquino (...); mas os homens
preferem embriagar-se com a utopia dos catorze princípios de
Wilson (...). Sobre o rescaldo da Grande Guerra, projeta-se a
figura formidável de Pio XI, que escreve os mais luminosos
capítulos marcando a Verdade no meio dos ídolos modernos;
mas os homens preferem chafurdar na lama com que o
materialismo de Freud infeccionou os costumes, precipitando o
apodrecimento das almas(...).” (Aliança do Sim e do Não, p.65-
66)

30
De Pio IX, autor da encíclica antimodernista Quanta Cura (1864), que
condenou, entre outros fundamentos, o rompimento dos vínculos outrora cultivados
entre Igreja e Estado, a liberdade de filiação religiosa e o “funestíssimo erro do
comunismo e do socialismo”, Salgado diz ser um “Pontífice Mártir, profeta dos
nossos tempos”, Papa que teria sido o primeiro “de maneira tão dramática, a
enfrentar hipócritas inimigos disfarçados de nobres ideais e sedutoras promessas.”
(idem, p.23)

Da figura de Pio XII, conservador nato e último Papa de perfil aristocrático,


Salgado comenta ser um portador do “fogo da palavra dos propagadores do
evangelho do I século”, e “o anjo consolador que Deus enviava para enxugar as
lágrimas e limpar o sangue dos inocentes”, (Primeiro Cristo, p.249) e ainda sublinha
que “(...) não duvidarei em proclamá-lo, entre os vultos da história em nossos dias, o
mais alto, o mais nobre, o maior de todos.” (idem, p. 243)

Da mesma forma como a citação de Chefes da Igreja funcionava como


profissão pública de fé para Salgado, o que garantia seu posto de líder católico
metapolítico ao mesmo tempo em que incitava a religiosidade da militância
integralista/perrepista, determinados ensinamentos eclesiásticos foram incorporados
à sua ação política em si. Plínio elegeu, ao lado do corporativismo, a doutrina social
da Igreja (pormenorizada por Leão XIII na encíclica Rerum Novarum de 1891) como
ponto de partida da sua concepção de mediação dos conflitos sociais, que
contrariando a luta de classes marxista e a mercantilização do trabalho empreendida
pelo liberalismo, propunha harmonizar os embates no mundo do trabalho,
promovendo a “consciência cristã” e a espiritualização do labor, sem que fosse
necessário abolir as diferenciações econômicas naturais advindas da bipartição que
divide operários e patrões, pois “a justiça social do cristianismo não será executada
por decretos coercitivos, mas pela natural persuasão que decorre do amor, nas
consciências iluminadas pelo evangelho.” (Primeiro Cristo, p. 151) Também inserida
no bojo de fundamentação de sua proposta de formação de uma “democracia cristã”
(conceito criado no período perrepista), a idéia de conciliação opor-se-ia
inevitavelmente ao marxismo:

31
“O proletário, doutrinado pela própria sociedade, que de cristã
traz apenas o rótulo, torna-se um instrumento nas mãos de
secretos organizadores da batalha contra Cristo. (...) se vencer
a causa dos Sem-Deus, o operário será mais oprimido do que
nunca, pois nem terá o direito de reclamar; mas terá satisfeito
os íntimos sentimentos de ódio que lhe foram transmitidos pelo
materialismo (...). E não é o ódio a alavanca do socialismo
marxista? Sim, o ódio oposto ao amor, que é o mandamento
cristão.” (Aliança do Sim e do Não, p.63)

Na lógica de Salgado, cristianismo e doutrinas tendentes ao marxismo são


mutuamente excludentes, uma vez que seria “absurda” a hipotética existência de
“um cristianismo-comunista, coisa só comparável a um espiritualismo-materialista”.
(Primeiro Cristo, p.151), dado que haveria um contra-senso irremediável entre as
duas noções: “combater a idéia de Deus é a base do marxismo” e “sem ateísmo não
pode haver comunismo.” (idem, p.187-192) Salgado finaliza suas observações
procurando estabelecer o enraizamento de uma bipolaridade onde o meio termo
seria impossível: “O problema do mundo de hoje resume-se no dilema: com Deus ou
contra Deus! Todas as outras questões são secundárias.” (ibidem, p.196)

Através da leitura destas passagens, pode-se concluir que Salgado constrói


um arsenal vocabular nitidamente religioso, espiritualmente combativo. Há como que
uma transmigração de seus clamores, que passam do campo político à ênfase
religiosa. As críticas ao marxismo (antes tipificado simplesmente como socialismo ou
comunismo), assume nova dimensão, pois o mesmo é agora classificado como
“ateísmo militante” ou “determinismo materialista”, em uma atmosfera de
enfrentamento inter-religioso no qual o antídoto à doutrina de Marx não é mais a
reordenação política, mas a fé: “a grande heresia do século, a heresia do ateísmo
militante, só pode, portanto, ser combatida pela religião militante. Essa religião de
combatentes é exatamente aquela que constitui o objeto do ódio mais feroz do
marxismo: a religião de Cristo.” (Primeiro Cristo, p.203)

No entanto, um dos pontos que marcaram mais significativamente o


pensamento de Salgado insere-se no apelo lançado pelo Papa Pio IX, conclamando
todos os crentes, independentemente de filiação religiosa, para a formação de uma

32
“frente espiritual” homogênea e centralizada fim de fazer ruir o materialismo e o
ateísmo. Declarando-se entusiasta da idéia (o que, aliás, pode ter sido um dos
elementos que o afastou da TFP, já que esta é exclusivista em sua catolicidade e
problematiza a prática do ecumenismo), Salgado afirma que, estando ele próprio

“(...) na dupla condição de católico e de chefe de um partido


político que apela, não apenas para os católicos, mas para
todos os cristãos de todas as disciplinas, e até para os que,
pelo menos, crêem em Deus e nos destinos sobrenaturais do
homem, no sentido de formarmos uma frente única contra o
grande perigo deste século, que é o materialismo, sob todas
as suas formas.” (Espírito da Burguesia, p.67-68)

Torna-se interessante notar que Salgado preocupa-se em configurar o


integralismo e o PRP como movimentos políticos ecumênicos, sem imposições
confessionais irredutíveis, muito embora suas declarações pessoais tenham sido
baseadas, como vimos, na aceitação irrestrita dos preceitos católicos. A abertura de
tais espaços de movimentação religiosa no interior das agremiações políticas
chefiadas por Plínio, que no caso do integralismo teve início com a realização do
“Congresso de Vitória” (1934), quando católicos mais integristas, como os
patrionovistas, evadiram-se do movimento, permitiu inflar os quadros da AIB por
meio da adesão de protestantes e espíritas (conforme tabela apresentada por
Trindade (1974, p.153), os protestantes eram 36 e os espíritas 2 entre um universo
pesquisado de 125 dirigentes integralistas), o que reflete uma estratégia exitosa de
arregimentação de correligionários.

1.4 O Influxo Modernista

À primeira vista, o emprego da adjetivação de “modernista” a Salgado soa


como uma contradição em si. Como já foi observado anteriormente, seu repúdio aos
valores identitários da modernidade é manifesto, partindo da crítica ao materialismo

33
pela via idealista, passando por incompatibilidades filosóficas e religiosas, e
culminando em desacordo político/institucional com a nova ordem que veio a
assentar-se no ocidente, em última análise, a partir do iluminismo e da Revolução
Francesa.

Contudo, se considerarmos sua ativa participação no movimento literário


modernista e particularmente na Semana de Arte Moderna de 1922, veremos que a
terminologia, que a princípio pareceria incoerente, reveste-se de nova roupagem,
enquadrando-se perfeitamente às posturas de Salgado neste contexto específico.
Assim, imprescindível se torna compreender seu envolvimento com a
intelectualidade que impulsionou a “Revolução Literária”, se almejarmos de fato
abarcar as principais fontes formatadoras de seu pensamento.

Absolutamente politizada, a Semana de Arte de 1922 relegou a Salgado ao


menos duas heranças substanciais: seu apego à literatura e a opção nacionalista,
que consolidou-se a partir de então.

1.4.1 Os Romances de Salgado

No que tange ao mundo das letras, Plínio, que desde a juventude dedicou-se
ao ofício de escrever, chega a publicar três romances, desconsiderando-se, é claro,
suas obras políticas, que são em muito maior número. Em que pese essa
desproporção, seus livros ficcionais ganham méritos adicionais aos olhos do
pesquisador, reveladores que são, subjetiva ou objetivamente, implícita ou
explicitamente, de posicionamentos político/ideológicos do autor, sobretudo se
considerarmos, como Trindade (1974, p.63), que “não se pode compreender a
ideologia integralista sem penetrar no significado dos romances de Salgado”.

Embora separados por períodos relativamente longos, os romances O


Estrangeiro (1926), O Esperado (1931) e O Cavaleiro de Itararé (1933) possuem
certa continuidade e demonstram o processo de maturação ideológica do autor, bem

34
como sua ótica acerca dos acontecimentos sociais que vão se desenrolando no
Brasil, precisamente pelo fato de que os três livros, ainda que de modo peculiar,
procuram retratar grandes temas nacionais intimizando-os através de personagens e
ambientes simbólicos.

Sobre O Estrangeiro, é o Próprio Salgado quem sustenta que “o meu primeiro


manifesto integralista foi um romance” (Despertemos a Nação, p.09) e nos oferece
as coordenadas para a compreensão da temática que o compõe:

“O tema central daquele romance, tão discutido na época de


seu aparecimento, era o choque entre a concepção do ‘jus
sanguinis’ das correntes imigratórias e a do ‘jus soli’ em que se
exprimiam as forças da terra e da tradição histórica da nossa
pátria, absorvendo os seus filhos na comunhão nacional
brasileira.” (O Ritmo da História, p. 191)

Assim, no centro das idéias levantadas pelo romance está a preocupação


com o processo de construção da identidade brasileira, em um país que à época
ainda não havia assimilado inteiramente as culturas estrangeiras que para cá
aportavam desde o Império, o que de certo modo retardou a síntese geradora da
consciência e da cultura nacional. Ficam evidentes aqui os ecos do antropofagismo
modernista e a vontade de ruptura com a esfera de influência cultural européia, uma
vez que a característica que daria singularidade ao Brasil residiria em nossa
capacidade de incorporação cultural que paradoxalmente produz unidade através do
convívio e absorção dos valores disseminados pela diversidade.

Um dos personagens principais de O Estrangeiro é o professor Juvêncio,


nacionalista convicto que procura por todas as formas integrar os estrangeiros à
comunidade brasileira, dedicando-se ao ensino da língua e do Hino Nacional aos
filhos de imigrantes, precisamente do mesmo modo como anos depois vieram a
fazer os integralistas nas zonas de colonização italiana e alemã no sul do país.

Novamente é Salgado quem indiretamente traça este paralelo, englobando


outros personagens do mesmo romance:

35
“Doloroso é o drama de Juvêncio, pois contra ele, contra sua
atividade, reagem mais fortemente do que a ação dos próprios
estrangeiros o ‘charlatanismo da política operante’ configurado
na personalidade do major Feliciano, que é um oportunista,
hoje perfeitamente adaptável a qualquer dos partidos em que
apodrece o povo brasileiro; e o ‘alheiamento dos intelectuais’,
fazendo arte pela arte, em suas torres de marfim, como o
personagem Eugênio; e a desorientação ideológica, desse
confusionismo nitidamente estrangeiro e, por isso, fixado, no
livro, na figura de um russo, Ivan, o tipo acabado e
fotograficamente idêntico aos portadores de teorias que
infestam as colunas dos jornais, das revistas e as tribunas das
conferências em que se expedem as idéias da moda.” (Ritmo
da História, p.192)

Além da alusão, que no nosso entender, procura relacionar Juvêncio e a Ação


Integralista nas atividades de nacionalização em áreas de imigração e a suposta
“reação” de uma politicagem oportunista e interesseira (pecha estendida, por esta
ótica, a todos os partidos políticos), nota-se o reflexo da crítica modernista aos
autores parnasianos (acusados de conscientemente apartarem-se das realidades do
mundo – “alheiamento intelectual” – e de promoverem uma arte comprometida em
demasia com as regras estilísticas – “arte pela arte”). Porém, o fato de o porta-voz
de “confusionismos estrangeiros” e “teorias” modistas amplamente divulgadas estar
encarnado em um personagem de origem russa não nos parece clarificar outra coisa
senão o incipiente anticomunismo de Salgado, já que a Rússia de 1926 encontrava-
se sob jugo bolchevista e os reclames da Internacional incitando à expansão do
socialismo já podiam ser ouvidos, inclusive no Brasil, com a fundação do Partido
Comunista quatro anos antes. Neste raciocínio, O Estrangeiro teria sido “o primeiro
aviso sobre o perigo (hoje aos olhos de todos), do ‘dilúvio russo’ cujas últimas ondas
virão morrer aqui neste hemisfério ocidental.” (Ritmo da História, p.195) e
corporificou “o momento da transição. A sua forma exprime a influência da revolução
literária, mas no seu fundo, delineia-se a revolução política.” (Despertemos a Nação,
p.11)

Mas, se em seu primeiro romance Salgado expõe as aflições de uma nação


em formação, imersa em múltiplos entrechoques culturais, seu segundo livro, de

36
cinco anos depois, denuncia a situação política brasileira em sua sistemática
operacional. Sob um enredo repleto de ironias que subsidiam críticas virulentas aos
conchavos políticos, Salgado condena o messianismo incubado na psique brasileira,
ao contrário do que o título de O Esperado poderia fazer supor: “aquele livro
antimessiânico tem sido julgado... pelo título!” (idem, p. 18)

Em claro reflexo de seu nacionalismo, as páginas do romance contam a


história de uma articulação política levada a cabo por congressistas visando outorgar
o monopólio das vendas do café brasileiro a um grande conglomerado comercial
inglês. Neste universo, os interesses nacionais nem sempre são priorizados e os
lucros pessoais de políticos corruptos àqueles sobrepõem-se em uma prática
adesista e subserviente aos ditames das “velhas nações absorventes” (O Esperado,
p.107). Tal mentalidade, colonizada, impregnada de estrangeirismos e atenta,
apenas, às negociatas políticas interesseiras e desideologizadas, bem reproduz,
para Salgado, o retrato perfeito da logística operacional da República Velha,
conforme se depreende das passagens em que é citado o personagem do senador
Avelino dos Prazeres.

Além disso, como comprovação de que seus romances buscavam


acompanhar a dinâmica evolutiva da sociedade brasileira, da presença de
personagens tipicamente cosmopolitas em O Esperado subentende-se que as
massas urbanas se fazem presentes, como produto de uma novidade social que
ganha peso na balança política e econômica do país.

Entretanto, é o messianismo o motor principal do romance. Enquanto os


personagens do “Clube do Talvez” misticamente aguardam a vinda de um homem
ungido, o eleito capaz de fazer com que o projeto do monopólio do café encontre um
desfecho satisfatório, a política rasteira dos pragmatismos aperfeiçoa seus métodos
e triunfa facilmente. Para Salgado, este imobilismo pernicioso, que contemplaria toda
a sociedade, seria uma das causas do subdesenvolvimento brasileiro. Assim, ainda
que seja “indiscutível que Salgado critica a predisposição ao messianismo do povo
brasileiro, inclinado a esperar passivamente a vinda de um salvador”, também é

37
verdade que “o nacionalismo realista de Plínio leva-o a aceitar este fenômeno como
um dado da realidade psico-sociológica do povo.” (Trindade, 1974, p.70-71)

Concordando inteiramente com Trindade, adicionamos que diversas obras


posteriores de Salgado retomam o tema, não raro demonstrando, em contrapartida,
um nítido entusiasmo pelo sebastianismo português, talvez em decorrência
justamente de seu patriotismo, que aceitando o messianismo como intrínseco à
nossa gente, passa a procurar encará-lo de modo menos depreciativo.

O messianismo lusitano, como se sabe, permeou significativamente no


imaginário popular da nação de Camões e sustenta-se na crença do retorno de D.
Sebastião, rei tardiamente cruzado que desapareceu em batalha com forças
maometanas no século XVI. Para Salgado, “quem não for capaz de nobres sonhos
não compreenderá jamais D. Sebastião...” (Aliança do Sim e do Não, p.97), pois o
soberano “é o herói que vai agir, que desaparecerá como mártir ressurgirá como
sonho, permanecerá como símbolo, viverá como o maior dos mistérios na história
lusíada.” (Rei dos Reis, p.278) Exaltando o idealismo de El Rei, vinculando-o à
defesa da cristandade, à “Dilatação da fé e do Império”, como era o lema da coroa
desde o Infante D. Henrique, “D. Sebastião reuniu a fina flor da juventude da pátria e
com ela entrou em batalha perguntando, como perguntam diante da morte todos
aqueles que crêem profundamente na sobrevivência da alma: ‘de que cor é o
medo’?” (idem, p.281-282). O símbolo do messianismo português teria deixado
marcas irremovíveis naquela nação, tendo sido seus efeitos romantizados por
Salgado, pois “D. Sebastião, com o andar dos séculos, tornou-se o Esperado, o
Desejado, para finalmente significar a inquietude, os anseios de um povo, no sentido
da procura ideal, de transcendência de ordem ética, política, religiosa”. (ibidem,
p.285).

Conforme se pode depreender de análises anteriores aqui citadas, a história e


a literatura de Portugal são, na ótica de Salgado, partes importantíssimas de uma
herança que não pode ser ignorada por aqueles que objetivam interpretar o Brasil. O
ineditismo de sua análise do sebastianismo (a qual não nos deteremos mais
criteriosamente devido ao risco de destoarmos do nosso foco) reside no pressuposto

38
de que fragmentos deste sentimento transportaram-se para os trópicos6, já que “o
sonho atravessou os mares e o tempo” (Rei dos Reis, p.284), vindo ressoar
decisivamente no episódio da Guerra de Canudos, revolta liderada pelo beato
Antônio Conselheiro no sertão nordestino em 1896: “o sebastianismo constitui o seu
verdadeiro espírito animador”. (Rei dos Reis, p.284).

O Esperado, portanto, parte de uma realidade social para envolver-se no


subjetivismo psicológico do messianismo brasileiro. Outra é a ênfase de O Cavaleiro
de Itararé, romance em que Salgado detém-se prioritariamente nas questões
políticas. Mais uma vez seus escritos têm como norte a sucessão dos
acontecimentos no Brasil e a transição intelectual pessoal do autor.

Já no prefácio da obra, Salgado explicita a síntese de sua trilogia, reforçando


o que assinalamos acima: “O Estrangeiro foi um aviso. O Esperado foi um
prognóstico. O Cavaleiro de Itararé deverá ser: ou uma glorificação, ou um anátema
à nacionalidade.” (O Cavaleiro de Itararé, p.06) Neste romance, o que prevalece é a
agitação política e cultural do Brasil entre os anos de 1920 e 1930. Surgido logo
após a fundação da AIB, o livro chega a tratar, inclusive, da Revolução
Constitucionalista de São Paulo, ocorrida em 1932.

Opondo-se ao inatismo e reconhecendo a influência do meio na composição


da personalidade, a história narra a trajetória de Urbano e Teodorico, que
acidentalmente trocados na maternidade, passam a ser educados por famílias de
condições econômicas opostas àquelas que encontrariam em caso de
permanecerem no berço de origem. Enquanto a criança pobre é educada na Europa
e transforma-se em um burguês típico, descrito por Salgado como moralmente
decadente e detido, apenas, aos prazeres do sensualismo e do gozo materialista, a

6
Empregamos o termo “ineditismo” a fim de referirmo-nos à relação feita por Salgado entre o sebastianismo e o
messianismo brasileiro considerando apenas a amplitude do presente trabalho. Não se poderia, sob pena de
atentar contra a justiça, desprezar a clarividência de Euclides da Cunha, que em Os Sertões. São Paulo: Martin
Claret, 2002, p.163, transcreve supostos sermões de Conselheiro aos jagunços: “(...) das ondas do mar sairá D.
Sebastião com todo seu exército. Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exército e o restituiu
em guerra. E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ela foi até os copos e ele disse: Adeus mundo! Até
mil e tantos a dois mil não chegarás! Neste dia quando sair com o seu exército tira a todos no fim da espada deste
papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue há de ir até a junta grossa”.

39
outra criança, Urbano, é enviada pelos pais ao Exército como única maneira de
garantir sua educação. No desfecho final do romance, ocorre um episódio que
procura simbolizar a nociva luta entre irmãos que estaria desenvolvendo-se no seio
da sociedade brasileira: Pedrinho, irmão genético de Teodorico, mas criado na
humildade da família a que Urbano foi enviado, enfrenta-se com o primeiro
(ignorando o parentesco que os unia) e Urbano, procurando agir como pacificador,
termina mortalmente ferido.

Salgado formula tal dramaticidade a fim de rogar pela “unidade nacional”, e


além desta mensagem de aversão às revoluções e micro-revoluções que então se
disseminavam pelo Brasil (no que, sem dúvida, a Revolução Constitucionalista de
São Paulo foi alvo privilegiado), a crítica ao comunismo novamente se faz presente,
repetindo o que ocorrera sete anos antes em O Esperado. A retratação do
comunismo novamente é construída com base em traços negativos. Pedrinho, moço
honesto e bom, que na infância viveu como seminarista, apaixona-se por Elisa,
fazendo-a sua noiva, mas Teodorico, dado aos costumes burgueses de aliciar
amantes, deseja-a como concubina, contra a vontade da moça. Devido à
intervenção de uma terceira personagem (também representante da supostas
imoralidades da alta sociedade), Pedrinho é preso injustamente, o que o torna
amargo e invadido por remorsos e projetos vingativos. Desesperado, ele então
politiza seu ódio, transferindo-o da pessoa de Teodorico para a burguesia como um
todo:

“Chegou à porta da ‘Associação dos Trabalhadores”. Devia


entrar para aquela sociedade, sabidamente comunista. Que
tinha mais a perder? A vida? Devia dá-la para a grande vindita.
Pois aquele que roubava a noiva não era um burguês, um
capitalista, um potentado? Não era um dos que exploram as
massas trabalhadoras, que as oprimem, em nome de uma
falsa liberdade? (...) Pedrinho vibrava de prazer, raiva e
esperança. Precisava desabafar-se de qualquer forma.” (O
Cavaleiro de Itararé, 1933, p.106)

Logo, a mentalidade burguesa é diretamente responsabilizada pela queda de


Pedrinho ao marxismo. Salgado procura, por esta via, dar ao comunismo um triplo

40
combate: associa-o às doutrinas de ódio destrutivo que ultrajam o sentimento
cristão, destruindo a pureza através da vingança e da criação de bodes expiatórios,
acusa-o de promover uma espécie de totalitarismo individual (já que Pedrinho, uma
vez comunista, politiza todas as ações do cotidiano e gradualmente vê atrofiarem-se
em seu íntimo os sentimentos relacionados à vida rotineira) e insinua que as
agremiações marxistas servem-se do desespero de indivíduos injustiçados pelas
arbitrariedades burguesas para transformá-los em massa de manobra assombrada
por valores corrosivos. Soma-se a isso o fato de que Urbano, o tenente idealista que
não encontra sentido claro nas agitações militares de sua época, rompe com Luís
Carlos Prestes tão logo este acata o marxismo:

“(...) Urbano não encontrava nos movimentos de rebeldia o


sentido exato de uma coordenação de inquietudes e de
angústias (...). Não era apenas a luta de classe que aqui se
processava, mas outras lutas (...) de um espírito nacional
profundo contra as exterioridades absorventes de uma cultura
que não teve suas raízes na América do Sul. Os adversários,
porém, eram irmãos.” (O Cavaleiro de Itararé, 1933, p.159-
160)

Povoam também as páginas de O Cavaleiro de Itararé personagens como


Pedro Maranduba, nacionalista, ardente de fé nos destinos do Brasil e amante da
filosofia. Maranduba funda a “Ação Fósforos de Segurança”, entidade que para ele
teria como missão “acordar nos seus semelhantes o que ele denominava ‘a voz da
certeza’, que era um senso uniforme de vida. Revelar essa voz em cada indivíduo; e
revelar a grande voz da nacionalidade”, (O Cavaleiro de Itararé, p. 135) porque o
anti-materialista Maranduba, defensor da ordem e da disciplina, pregava uma
existência voltada à “vida heróica”, bem como o reerguimento do Brasil como única
nação dotada de qualidades suficientes para plasmar uma “consciência perfeita da
vida.” (idem, p.136) Aliás, não é à toa que Trindade (1974, p.75) vislumbra neste
personagem “uma espécie de caricatura auto-biográfica de Salgado, com intuições
sobre sua ação política ulterior.”

41
1.4.2 Concepções Nacionalistas Retiradas do Movimento Modernista

O cenário intelectual brasileiro no início do século XX encontrava-se


profundamente influenciado pelos postulados de pensadores da escola francesa,
como Anotole France, Le Play e Edmond Demolins, tendo proeminência, contudo, o
racismo evolucionista de Gustave Le Bon, Vacher Lapougue e Gobineau. Os odes à
arquitetura craniana céltica braquicéfala ou aos tipos dólico-louros, características
inerentes aos povos da Europa ocidental e às populações anglo-saxãs, eram então
propagados como explicação definitiva para a “superioridade” destas etnias,
enquanto povos mestiços, racialmente híbridos, como o brasileiro, estariam
relegados à condição de eterna vassalagem. Tamanho ultraje às nossas origens, no
entanto, não foi suficiente para afastar a influência destas teorias na intelectualidade
pré-modernista brasileira. Referindo-se a esta gama de pensadores, Angélica
Madeira afirma que foram eles:

“Uma geração que internalizou, de forma bastante


subserviente, um ethos de subalternidade, que adotou idéias
que não convinham ao momento, tentando desvencilhar-se de
um legado que parecia colar-se à história, a colonização.
Estes impasses de fins do século 19 e início do 20 tornam
mais nítida a ruptura provocada pelos intelectuais modernistas,
responsáveis pela reversão dos valores atribuídos à
mestiçagem e à tropicalidade.” (Madeira, “Fraturas do Brasil: o
pensamento e a poética de Euclides da Cunha”, in Gunter Axt
e Fernando Schüller (Orgs.), Intérpretes do Brasil, 2004,
p.113)

Porém, a exemplo do seu mestre Alberto Torres, e dos modernistas como um


todo, Salgado destoa desta corrente inclinada à passiva assimilação de preciosismos
derrotistas ao reconhecer na especificidade mestiça do povo brasileiro um elemento
positivo, que apenas precisaria contar com uma situação política favorável para
aperfeiçoar-se. Em artigo de 1926, ele escrevia: “não vejo em que nos sejam
superiores os outros povos, sob qualquer aspecto.” (Despertemos a Nação, p.35)

42
A Semana de Arte Moderna de 1922, impulsionada pelo futurismo de
Marinetti, serviu como divulgadora destes ideais:

“A revolução literária e artística de 1922-1923 teve o mérito de


acender um flamejante espírito de rebeldia, com o qual
iniciávamos a derrubada dos velhos cultores da forma,
quebrando o ritmo dos processos de estilo, e nos
encorajávamos no sentido de quebrar também o ritmo político
do país.” (idem, p.11)

Realmente, os efeitos irradiados por aquele evento iriam extrapolar a esfera


artístico-literária, atingindo decisivamente o campo político do Brasil de então. Ainda
que o objeto primário dos organizadores da exposição do Teatro Municipal de São
Paulo fosse implodir o convencionalismo semântico parnasiano e o academicismo
das normas plásticas nas composições, o status quo artístico, enfim, sua
preocupação com o despertar de uma arte nacional conectada com a realidade
brasileira, independente, portanto, das influências européias, iria contribuir para a
formatação de um ambiente fortemente politizado, onde o nacionalismo
desempenhou papel fundamental. Ao lado do deboche aos “bacharéis das letras” e
“catadores de vírgulas”, encontra-se uma tendência telúrica de se procurar o
substrato primeiro da cultura brasileira, libertando-a de influências “alienígenas”:

“Não se processou, contudo, uma volta ao ufanismo


romântico. O novo nacionalismo tinha uma perspectiva crítica,
um tom anárquico e desabusado (...). O caminho foi a vertente
primitivista. No folclore, nos aspectos míticos e lendários da
cultura popular, quis-se descobrir a essência do Brasil. Algo
como uma volta às origens primeiras. Daí o indianismo
reformulado de certos autores da época. Desejava-se chegar
às raízes. Sonhava-se com a delimitação de uma cultura
brasileira, de uma alma nacional.” (Gonzaga, 1994, p.173)

Este nacionalismo específico teve em Salgado um entusiasta. Seguindo uma


tendência já prenunciada em Euclides da Cunha, que mais tarde seria aprofundada
com maestria por Gilberto Freyre, Salgado parte da idéia de que haveria uma divisão
psicológica entre “dois Brasis” distintos, mutuamente desconhecidos: as grandes
concentrações litorâneas e cosmopolitas de um lado e o imenso sertão arcaico e

43
tradicional de outro. O primeiro Brasil representaria o tecnicismo, a massificação, o
mundialismo; a modernidade, em suma. Os pilares da nacionalidade, seus aspectos
diferenciais e positivos, no entanto, residiriam nos confins do Brasil sertanejo, onde a
tradição, a religiosidade e o modo de vida provinciano ainda ditam as regras.
Anexando-se a esse Brasil a consciência de uma herança indígena vivíssima, que
qualificaria nosso povo à categoria de uma singularidade altamente promissora, têm-
se as bases fundamentais do nacionalismo de Salgado.

Uma vez frisadas as ressonâncias do modernismo no pensamento político de


Salgado, sobretudo no que concerne à sua leitura nacionalista, torna-se importante
mapearmos esta faceta de sua ideologia. Como já pudemos destacar anteriormente,
Plínio participara, juntamente com Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Motta
Filho, do movimento “Verde-amarelista”, bem como, ao lado de Raul Bopp, do
“Movimento da Anta”, ambos nacionalistas, embora tendo como ponto de partida a
veia literária do modernismo. Avaliando tais iniciativas, Salgado conclui que seu
distanciamento em relação à seus companheiros de outrora deu-se em decorrência
de uma alegada carência de profundidade acerca da temática nacionalista, já que
haveria uma limitação no horizonte intelectual do movimento que “estacionava num
nacionalismo demasiadamente ‘exterior’ e pictório”, havendo a necessidade de se
conceber um “nacionalismo ‘interior’ e intuitivo.” (Despertemos a Nação, p.14).

Esta intuitividade telúrica e sentimental, que teria como objetivo maior o


resgate das origens mais remotas da brasilidade, foi perseguida por Salgado através
do indianismo, pois é o próprio Plínio quem nos assegura que “em conseqüência do
estudo do índio, o mistério da unidade nacional absorveu-me.” (idem, p.16). Para
Salgado, haveria no Brasil uma surpreendente unidade étnica, que teria sido o
fundamento que permitiu a existência e consolidação de uma unidade territorial e
política do país. Tal uniformidade racial teria origem na influência do sangue
indígena, que penetrando de modo generalizado na imensa maioria da população
brasileira por meio do sucessivo caldeamento, produziu, com o correr dos tempos,
uma série de peculiaridades, que vão desde o idioma e o folclore até a constituição
íntima da mentalidade popular. O índio seria como que a síntese da nacionalidade,

44
seu núcleo primordial e invisível, o ponto para onde confluem todas as forças do
povo:

“Essa raça aí está na teogonia brasileira, de uma unidade


absoluta nos seus mitos centrais – o Curupira, o Saci, o
Caapora, O boitatá, a Iara; aí vive nos nomes sintéticos de
nossas cidades e dos nossos rios (...); aí está no gênio da
nossa língua, com expressões ainda mal saídas da própria
terra, molhadas na impressão inicial; aí vibra nas danças
originais brasileiras, em que o cateretê se infiltrou modificando
até os saracoteios africanos. Mas principalmente essa raça
vive em nosso gênio, a um tempo dócil e meigo, intemerato e
agressivo, acolhedor do estrangeiro, mas rebelado aos seus
menores gestos de domínio. Essa raça que se dizia
descendente da anta, o maior mamífero da América, contribuiu
enormemente na formação da nacionalidade e parece mesmo
predominar sobre todas as outras. De sorte que todas as raças
estrangeiras que para aqui vierem terão no tupi uma espécie
de denominador comum...” (Despertemos a Nação, p.40)

Logo, o nacionalismo professado por Salgado considera o fator indígena


como grande matriz do Brasil, cumprindo aos nacionalistas, sob esta ótica, exaltá-lo.
O influxo de povos europeus, asiáticos e africanos ao país não teria impedido o
assentamento definitivo da singularidade nele consubstanciada. Retornando à sua
ojeriza aos grandes centros urbanos, Salgado propõe “a eclosão do brasileiro em
toda a sua força bárbara”, o que só será concretizado “quando as cidades
cosmopolitas forem invadidas pelo Espírito Nacional.” (idem, p.51-52)

Completa este quadro a crítica tenaz empreendida por Plínio em face do olhar
estrangeiro para com o Brasil, cujas atitudes históricas teriam se caracterizado por
um “desdém profundo”, pois “o desprezo que temos sofrido corresponde a um
escorraçamento sistemático. Terra de negros, de mestiços, de caboclos, a Europa
nunca nos levou a sério.” (A Quarta Humanidade, p.157)

Mais do que isso, Salgado culpa a própria subserviência dos intelectuais


brasileiros por supostamente terem acatado passivamente um senso de inferioridade
nitidamente imposto por “nossos inimigos”. Ironizando tais condutas, ele afirma que
“nós, brasileiros, preocupados com as conclusões dos europeus, assentamos que o

45
maior vexame a que nos poderão expor é dizerem que não somos uma raça
absolutamente ariana” e finaliza conclamando: “Basta de tanto aviltamento!
Orgulhemo-nos de nossa origem!” (Despertemos a Nação, p.41-42)

Entretanto, seu protesto paradoxalmente adquire um enfoque otimista em face


dessa visão depreciativa que nos era dirigida a partir da Europa. Isso porque seu
raciocínio pressupõe que, como conseqüência do “desprezo” europeu, sendo
consensual o princípio de que o ethos genuinamente brasileiro estaria encarnado
nos caracteres interioranos, o Brasil teria plasmado-se de forma soberana:

“Nada foi mais útil à América do Sul do que o fato de a Europa


ter nos feito o imenso favor de nos desprezar. Pudemos assim
compor uma fisionomia própria, bem distinta. (...) O Isolamento
da América do Sul foi completo, apesar dessa gente
cosmopolita. Não tomaram conhecimento de nossa existência.
Por isso, nós, os caboclos do Brasil, pudemos desenvolver-
nos a vontade.” (A Quarta Humanidade, p.158-159)

A realidade do indígena, bem como do caboclo que habita dos nossos


sertões, teria permitido a conservação de uma pureza primordial de alma, alheia ao
“confusionismo” cosmopolita. Na ótica de Salgado, se consolidada a prevalência
deste modus vivendi específico em todo o território nacional, nos seria dado
vislumbrar o triunfo do Brasil perante a humanidade, uma vez que sobre as velhas
nações poderosas estaria “caindo angustiosamente uma noite” e “do Brasil, sairá o
Dia Novo.” (Despertemos a Nação, p.36)

Àqueles que, absorvidos pelos valores da modernidade litorânea cosmopolita,


desprezam as vozes do Brasil arcaico e tradicional, Salgado adjetiva como
“almofadinhas literários”, “títeres”, “lacaios”, “decrépitos”, “casca engelhada, que está
caindo de podre.” (A Quarta Humanidade, p.159). Estes não compreenderiam o
aparecimento de uma nova força que levantar-se-ia a partir do espírito das florestas
brasileiras para impor-se ao mundo:

“O espírito do sertão está invadindo as cidades. A Alma da


Terra encarnou-se numa geração imprevista para aqueles que

46
cresceram comendo geléias de morango em jejum para serem
agradáveis às governantes inglesas. (...) A América do Sul vai
erguer-se pelo milagre do Brasil. O Brasil caboclo, o Brasil
forte, o Brasil do sertão, o Brasil bárbaro e honesto, num
ímpeto selvagem, está se levantando com as novas gerações.
É o despertar de uma nação. É um destino que se cumpre. É a
resposta da Atlântida. Não mais a misteriosa terra que emergia
no passado, mas a gloriosa terra que está emergindo no
presente, para dominar o futuro, com a força de uma nova
civilização.” (idem, p.160-161).

Além da implícita relação entre a “geração imprevista” que insurge-se contra a


velha ordem para fazer triunfar o Brasil verdadeiro e o próprio movimento
integralista, esta passagem revela a instrumentalização de uma linguagem de cores
místicas aplicada ao nacionalismo, uma vez que a exaltação do Brasil ultrapassa o
mero patriotismo sentimental ou o nacionalismo político e transforma-se em profecia
ao vincular nosso país ao renascimento do lendário Continente Perdido que povoou
a imaginação dos antigos, como Platão e seus contemporâneos.

Assim, conclui-se que o nacionalismo adquire importância salutar na


elaboração do pensamento de Salgado, motivo pelo qual suas obras enfocaram-no
repetidamente. Embora esta temática tenha resistido à extinção da AIB, pois o
nacionalismo avultou-se como uma das grandes plataformas ideológicas do PRP,
parece-nos que foi no período do entre-guerras que seu apelo teve mais força.
Refletindo parcialmente certas proposições modernistas, Salgado dotou sua
concepção nacionalista de ingredientes profundamente simbólicos, procurando nos
primórdios da nacionalidade brasileira fundamentos ideológicos capazes de legitimá-
lo.

47
2 O ADVENTO E O OSTRACISMO DA AIB, A FUNDAÇÃO DO
PRP

Uma vez mapeadas as matrizes teóricas basilares do pensamento de


Salgado, nos parece sobremaneira importante dissertar, mesmo que brevemente,
sobre as características do ambiente político em que seu ativismo estabeleceu-se e
foi mais pujante, antes de penetrarmos no cerne deste trabalho, que é compreender
a estrutura do seu pensamento anticomunista. Considerando que a AIB
objetivamente corresponde ao ápice da materialização de seu ideário, é salutar que
analisemos a conjuntura histórica que assistiu a seu advento, seja na esfera
nacional, mais imediata, seja no plano internacional, haja vista a particularidade
ideológica do período, sobretudo na Europa.

2.1 O Mimetismo Político Europeu

Em 1918 finda estava a Primeira Grande Guerra. Contudo, a exaustão do


enfrentamento bélico não foi acompanhada por um apaziguamento político
correspondente. Invertendo o raciocínio de Clausewitz, pode-se afirmar que na
atmosfera específica da Europa dos anos 1920/30 a política funcionou como agente
prorrogador da guerra, e não vice-versa.

48
Ainda que o imperialismo expansionista das grandes nações do Velho Mundo
tenha formalmente amargado a humilhação da derrota, a dureza da realidade
revelaria o surgimento de uma série de novos protagonistas políticos, que
conjugados, levariam o continente a um novo recrudescimento ideológico que
amainar-se-ia somente a partir de 1945. Sob uma visão parentética em relação aos
acontecimentos históricos, não raras são as vozes empenhadas em sustentar que os
dois grandes conflitos em realidade teriam aglutinado-se um único evento, que teve
gênese com o assassinato do Arqueduque Ferdinando D’Áustria e foi finalizado
apenas no instante em que o Exército Vermelho ocupa Berlim e hasteia o pavilhão
bolchevista no cume do Reichstag. O entre-guerras representaria, assim, mero lapso
temporal, uma trégua regimental destinada à realimentação das nações
combatentes.

De fato, percebe-se que um dos agentes centrais da guerra, a Alemanha,


novamente lideraria o empunhar de armas em 1939. Para este país, as implicações
da primeira derrota não limitam-se à queda do Kaiser e de seu Reich, já que iriam
desencadear a criação de um aparato republicano que se mostrou incapaz de conter
as investidas anti-sistêmicas do nacional-socialismo, dos Freikorps e dos demais
radicalismos ideológicos. O governo social-democrata de Weimar, sufocado pelas
exigências degradantes do Tratado de Versalhes, foi mero espectador da
polarização política patrocinada pelos extremismos de direita e esquerda, e a
ascensão de Hitler ao poder, desde o fracassado golpe na cervejaria de Munique até
sua nomeação como chanceler dez anos depois, obedeceu a uma lógica implacável,
tão prevista quanto inevitável. Embora tendo no racismo e no misticismo nórdico
alguns de seus elementos diferenciadores, os moldes do totalitarismo alemão
operado pelo NSDAP encaixam-se em uma dinâmica perfeitamente delineada: é que
uma nova cosmovisão, caracterizada pelas influências autoritárias e antiliberais,
propagava-se pelo mundo.

Mesmo que o fascismo tenha se configurado em torno de uma vastíssima


gama de aspectos axiológicos e psicológicos que ultrapassou o terreno meramente
político (é em razão desta percepção que aqui empregamos o termo “cosmovisão”),

49
a complexidade dele emanada é passível de ser decodificada, no que muito bem
trabalhou Saccomani, no Dicionário de Política organizado por Bobbio:

“Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de


dominação que é caracterizado: pela monopolização da
representação política por parte de um partido único de
massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia
fundada no culto ao chefe, na exaltação da coletividade
nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e
no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao
socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de tipo
corporativo; (...) pela mobilização das massas pelo seu
enquadramento em organizações tendentes a uma
socialização política planificada, funcional ao regime, (...) por
um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia
que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela
tentativa e integrar as estruturas de controle do partido ou do
Estado de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das
relações econômicas, sociais, políticas e culturais.” (Bobbio,
Norberto (Coord.). Dicionário de Política. 4.ed. Brasília: UNB,
1983, p.466)

E não foi apenas na Alemanha que o fenômeno se instalara. Muito antes, no


mesmo ano da Semana de Arte Moderna brasileira, 1922, os camisas-negras de
Mussolini marcham sobre Roma. Explorando a mentalidade coletiva corrente na
Itália de que o país sofrera um ultraje após Versalhes, uma vez que a nação itálica,
membro das expedições guerreiras da Tríplice Aliança, viu-se desfavorecida pelos
despojos e reparações de guerra, os fascios chegam ao poder com amplo apoio
popular, justamente como ocorreria na década seguinte em solo alemão. Fora a
primeira, mas não a última vez em que os mal-entendidos respingados das
trincheiras já vazias serviram de motivação para novas rupturas. Preludiando o
Führer, o Ducce obtém do Rei Vitório Emanuel III o reconhecimento de autoridade,
assim como Hitler conseguiria do Marechal Hindenburg a nomenclatura de
chanceler, depois do sufrágio que dera maioria parlamentar ao nacional-socialismo.
Igualando-se ainda no uso do poder carismático e das simbologias militaristas,
ambos os líderes chegaram ao Executivo após terem sido combatentes de baixa
patente em 1914-18. O Estado nacional-corporativo é então instaurado na Itália e

50
Mussolini evoca para si a responsabilidade de conter o comunismo sem atritar com a
estrutura monárquica vigente.

Da mesma forma, na Espanha, a guerra civil que opôs falangistas e


republicanos culminou na vitória daqueles. Sob a égide do “generalíssimo” Francisco
Franco, o país mergulha em uma nuance conservadora e monárquica do fascismo,
onde os ressentimentos da anterior perseguição esquerdista à Igreja recebem como
expiação a exaltação do catolicismo pelo Estado franquista. Em Portugal, a
ascensão do fascismo de Salazar representou radical transformação socio-política,
não sendo exagero classificá-la de tão emblemática como o foram os
empreendimentos pombalinos e a Revolução do Porto. Guardadas as proporções, o
Estado salazarista, dotado de toda uma estrutura de controle de informações e de
divulgação de propaganda nacionalista, assemelha-se, na estética e na lógica
burocrática, ao Estado Novo de Vargas. Na Bélgica, embora Léon Degrelle jamais
tenha obtido as rédeas do Estado, o rexismo antiparlamentar/corporativista por ele
capitaneado angariou intensa adesão à mobilização pró-fascista, sobretudo após o
sucesso nas eleições de 1936.

Poderíamos citar ainda o exemplo da “Guarda de Ferro” de Corneliu Zelea


Codreanu na Romênia, das atividades de Charles Maurras na França e do
movimento fascista belga, o que seria um trabalho quase monótono de repetição
que denotaria, de forma sintomática, o quanto tais idéias tiveram repercussão na
Europa de então. Tal quadro nos evidencia a configuração de um locus
absolutamente propenso às atitudes antiliberais de contestação ao sistema
democrático bem como ao apreço por soluções autoritárias, no que, aliás, pode-se
incluir os acontecimentos de 1917 na Rússia outrora czarista.

Embora julguemos por bem manter prudência em relação à associação sem


reservas entre o integralismo e os diferentes fascismos acima referidos, é inevitável
a constatação de que tal conjuntura, devido à natureza anômala que a caracterizou,
de fato favoreceu subjetivamente o surgimento e a relativa popularidade do
movimento do Sigma no Brasil. Entretanto, se é verdade que uma série de
especificidades não desprezíveis distanciam o integralismo dos fascismos europeus,

51
as similaridades transparecem, grosso modo, em inúmeros outros pontos. Assim,
paralelamente à situação que desenrolava-se na Europa, o Brasil vislumbrava a
erosão da República Velha e a construção de uma nova situação política que teve
na Revolução de 1930 um divisor de águas.

2.2 Salgado e a Revolução de 1930

Em última análise, pode-se afirmar, dando margem à flexibilidade, que parte


das reivindicações tenentistas de quebra do ciclo oligárquico e modernização política
foram finalmente ouvidas naquele outubro de 1930. Ainda que o estopim da
insurreição tenha sido o assassinato de João Pessoa em Recife, seus impulsos
primordiais podem ser encontrados na nova sociedade brasileira que fermentava-se
desde a década anterior, no que contribuíram os tenentes.

Enquanto os jovens oficiais encarnavam o desejo de transformação ainda


disforme que se concebia no seio do estamento militar, sob tardio impacto dos
debates entre os “cadetes-filósofos” nos intervalos das lições de Benjamin Constant,
as classes médias urbanas, infladas em número e capacidade de barganha, exigiam
a adoção de uma realpolitik descolada da mentalidade oligárquica que o
industrialismo nascente almejava sepultar. E não apenas o industrialismo. Como
prova de que a intelectualidade e os atores políticos e militares não mais tolerariam
os desmandos da Primeira República, ansiando por derrubá-la, três semanas após a
deflagração da revolução, somente São Paulo e Minas Gerais permaneciam fora do
controle dos revoltosos. Logo Getúlio Vargas iria chefiar o Catete, promovendo uma
releitura institucional do Estado brasileiro na qual a centralização política e a
modernização econômica desempenhariam papel propedêutico.

Conforme o frisado anteriormente, Plínio Salgado observou o princípio deste


intrincado panorama político em território do Velho Continente. No entanto, sua
postura crítica em relação aos revolucionários brasileiros não demorou a explicitar-
se:

52
“Uma revolução liberal, chefiada por velhos políticos, rebentou
no dia exato em que entrei em águas brasileiras. Saltando em
terra, tratei logo de combatê-la. Era a revolução que defendia
um fantasma: a liberal-democracia, concretizada na
constituição de 1891.” (Despertemos a Nação, p.20-21)

Além da aversão ao liberalismo como doutrina e como modo organizacional


do Estado, as ressalvas de Salgado àquela revolução deram-se em diversos outros
níveis. À parte de suas convicções dirigirem-se em sentido diametralmente contrário
aos paradigmas então assentados, sua condição de líder de um movimento que
mais tarde nutriria pretensões de governo o fizeram elaborar posicionamentos
diferenciadores, até para que o integralismo conquistasse lugar definitivo entre as
alternativas viáveis de renovação (daí a alusão aos “velhos políticos” e a escudeiros
de “um fantasma”, o liberalismo político).

Julgando 1930 como o “ano fatídico em que principia a agravação crescente


das nossas enfermidades políticas”, (O Ritmo da História, p. 270) Salgado atribuía à
vitória da Aliança Liberal o ônus da incompetência ao permitir a manutenção de
turbulentos regionalismos já hipertrofiados durante o período oligárquico. Traçando
um paralelo entre tais regionalismos e a avalanche separatista que abalou a
estabilidade do Primeiro Império e da Regência, Plínio receitava a restauração do
equilíbrio federativo, sem o qual haveria uma “desastrosa desintegração de nossa
pátria.” (Idem, p.271) O antídoto à fragmentação conteria em sua fórmula uma
mescla entre centralização nacionalizadora e autonomia política local, especialmente
no que tange aos municípios.

Realçando as práticas do que considera um “Governo discricionário”, o chefe


integralista questiona a legitimidade da nomeação arbitrária de interventores locais,
acentuando que tal autoritarismo, além de nocivo à moralidade e à reputação do
Executivo Nacional, seria ineficaz na medida que “a partir de 1930 proliferaram, ante
a perplexidade do povo brasileiro (cujos instrumentos políticos, o município e o
Estado, eram suprimidos pela violência), os clubes ideológicos.” (O Ritmo da
História, p.272) O raciocínio de Salgado induz à constatação de que o governo

53
varguista teria se valido da força para sufocar adversários políticos regionais sem
que tais ferramentas tivessem tido êxito na contenção dos movimentos de índole
separatista ou na promoção da unicidade nacional, tida por imprescindível.

O integralismo de Salgado visualizou como “ameaça” já presente a


“reorganização das oligarquias estaduais, com a volta da luta entre os grandes
Estados desejosos de conquistar a hegemonia federal.” (O Que é Integralismo, p.67)
Neste raciocínio, os objetivos nucleares da Revolução de 30 teriam sido maculados
enormemente, em um supra-sumo da contradição, uma vez que o quadro político
estaria denunciando precisamente o crescimento das forças reversionistas
combatidas por Vargas e seus correligionários de levante.

No entanto, a oposição de Salgado à Aliança Liberal não se restringiria ao


problema da unificação política e do apaziguamento das elites locais. Mais cortante
seria sua censura ao que considerava “regresso ao regime agnóstico, materialista, à
República sem outra finalidade senão a do progresso material” (idem, p.69) e ao
renascimento de uma “ditadura arbitrária e sem base filosófica, jurídica ou
econômica.” (Ibidem, p.71) Novamente o idealismo de Salgado ganha fôlego,
servindo como subsídio para tecer problematizações acerca de assuntos políticos,
reprisando o ocorrido em seu romance O Cavaleiro de Itararé, em que o
personagem Urbano ressentia-se da ausência de clareza e de uniformidade
ideológica nos movimentos tenentistas. Plínio contrastava o alegado vazio ideológico
da Revolução de 30 com as propostas integralistas de nacionalismo, Estado
Corporativo e pedagogia espiritualista, frisando a situação caótica do Governo
Provisório pré-constitucional:

“A ditadura não pudera definir-se ideologicamente perante a


Nação. Na ausência de uma atitude doutrinária, os grupos e
facções passaram a agir livremente. A indisciplina foi a regra
em todas as manifestações da vida nacional. Quanto às
Províncias, destruídos os velhos partidos, os interventores
rodeavam-se de burocratas, transformados em pequenos
tiranos; eram eles os órgãos informadores dos governos
estaduais (...). Os próceres revolucionários davam-se ao
prazer de fazerem-se entrevistar pelos jornais, verificando-se
verdadeira inundação de idéias as mais contraditórias. (...) No

54
meio dos ‘despistamentos’, das traições, das hipocrisias e das
conspiratas dos homens públicos, a Pátria parecia
adormecida.” (Despertemos a Nação, p.79)

Assim, o integralismo procurou erigir a imagem de única força política capaz


de barrar a presumida anarquia do momento, angariando para si os atributos
positivos do nacionalismo, da defesa da ordem e principalmente da singular
presença e abrangência nacional, o que o diferiria dos acordos espúrios da
politicagem: “afora essa política genuinamente estadualista, baseada na força
eleitoral dos Governadores, só se apresentou na liça, com caráter e âmbito
nacionais, o Integralismo brasileiro.” (O Ritmo da História, p.276) Se a Revolução de
30 representou, na ótica de Salgado, “a projeção medíocre de um simples
movimento armado”, justamente devido ao fato de que “esse movimento não trouxe
consigo uma ordem de idéias inspiradoras” (Palavra Nova dos Tempos Novos,
p.219), o integralismo estaria habilitado para preencher o vácuo e reconduzir o país
à ordem a ao cultivo de valores superiores de ética pública e privada.

2.3 Nascimento e Consolidação da AIB

Conforme firmado em outra passagem, a formação da Sociedade de Estudos


Políticos (SEP) constitui a migração do pólo de irradiação da apologética de
Salgado, que desenvolvia sua doutrinação política pretérita através da composição
de artigos diários no jornal A Razão. Datando de 12 de março de 1932, a SEP opera
como entidade pré-integralista, de cunho sofocrático, promovendo debates
intelectuais e políticos que em princípio não nutririam outros objetivos senão uma
maior uniformização ideológica de seus membros com vistas ao direcionamento
conjunto para a criação de um movimento político futuro. Tal parece ser a motivação
de Salgado no discurso de fundação, quando dirige-se à assembléia nestes termos:
“Neste momento, congrego-vos para estudarmos os problemas nacionais e
traçarmos em conseqüência destes estudos os rumos definitivos de uma política
salvadora.” (O Integralismo na Vida Brasileira, p.144).

55
De fato, o prestígio intelectual de Salgado, agora unido à sua emergência
como chefe político, permitiu-lhe concluir com sucesso esta empresa, a julgarmos
pela presença de grande quantidade de lideranças que futuramente comporiam os
quadros integralistas então entrincheirados nas fileiras da SEP. Conforme Trindade
(1974, p.126), além destes, estavam no contingente das comissões internas da
sociedade, entre outros nomes influentes, Cândido Motta Filho, Cassiano Ricardo,
Santiago Dantas, Silveira Bueno, Sebastião Pagano (monarquista oriundo do
patrionovismo), Plínio Corrêa de Oliveira (futuro mentor da TFP), Alfredo Buzaid e
Ângelo Simões Arruda.

Contudo, a eclosão da Revolução Constitucionalista de São Paulo imprimiria


nova dinâmica aos acontecimentos, haja vista que o departamento cultural da SEP,
batizado justamente de “Ação Integralista Brasileira”, viria a ocupar o papel de
primazia:

“A obra selecionadora da SEP deveria durar por um ano. A


destruição do jornal em que eu ia formando adeptos, precipitou
a transformação do instituto cultural, que foi absorvido por uma
das suas seções, aquela a qual, de propósito, dei sempre
menor importância. Essa seção chamava-se “Ação Integralista
Brasileira”. Era o fruto que irrompia da flor.” (Despertemos a
Nação. p.23-24)

2.3.1 O Manifesto de Outubro

A partir daí, a atuação de Salgado consome-se inteiramente objetivando a


materialização do projeto político integralista. Valendo-se da tendência centrífuga
que dominava a política brasileira de então, Plínio volta-se às tratativas com diversas
correntes a fim de angariar apoio. Negocia, sem grande sucesso, com os
patrionovistas (que punham a inclusão da questão monárquica nos programas do
movimento como condição de adesão), com a Legião Cearense do Trabalho, cujo
líder, Severino Sombra posteriormente disputa com Salgado a chefia da AIB, e com

56
Olbiano de Melo, teórico corporativista que pretendia-se líder de um embrionário
“Partido Nacional Sindicalista”.

Contudo, aquele que seria o documento-síntese do integralismo já havia sido


redigido, embora as circunstâncias tenham freado sua publicação:

“Escrevi o manifesto integralista em fins de maio de 1932. Em


junho, tirei dele várias cópias a máquina. Cada membro da
Sociedade de Estudos Políticos levou um exemplar, para
examinar e assumir compromisso de assiná-lo. Os
companheiros Mota Filho e José Almeida Camargo retiveram o
documento aconselhando-me a publicá-lo mais tarde, por
acharem inoportuno aquele instante em que se conspirava
abertamente para a revolução liberal-democrática nos arraiais
dos velhos partidos. Quando resolvi mandar o original para a
tipografia, rebentou mais uma fatalidade sobre a “nossa”
revolução. Como em 1930, precisei esperar que terminasse a
revolução paulista de 1932.” (Despertemos a Nação, p.24)

Dá-se a fundação da AIB, finalmente, a 7 de outubro de 1932, com a


publicação e leitura formal do manifesto. Consubstanciando as bases apriorísticas
da doutrina integralista, o documento abarca ao todo dez tópicos7, que bem
expressam a estrutura ideológica que moveria a AIB, além de pôr em evidência a
absoluta hegemonia de Salgado em sua elaboração. Destinado “à Nação brasileira,
ao operariado do país e aos sindicatos de classes, aos homens de cultura e
pensamento, à mocidade das escolas e das trincheiras e às classes armadas”
(Manifesto de Outubro, In: O integralismo perante a Nação, p.93), o manifesto tem
por frase inaugural aquela que seria uma das máximas dos camisas-verdes: “Deus
dirige os destinos dos povos”.

Torna-se interessante perceber que a preocupação espiritualista reveste-se


de prioridade, uma vez que ainda no primeiro tópico, “Concepção do Universo e do
Homem”, Salgado refere-se a “uma superioridade que existe acima dos homens: a

7
Conforme sua ordem no conjunto do texto, são eles: Concepção do Universo e do Homem, Como entendemos a
Nação Brasileira, O Princípio de autoridade, Nosso Nacionalismo, Nós, os partidos e o governo, O que
pensamos das conspirações e da politicagem de grupos e facções, A questão social como a considera a Ação
Integralista Brasileira, A família e a nação, O município: centro das famílias, célula da nação e O Estado
Integralista.

57
sua comum e sobrenatural finalidade”, afirmando ser tal prerrogativa “um
pensamento profundamente brasileiro, que vem das raízes cristãs de nossa
nacionalidade.” (idem, p.96)

Assim, no que parece uma sucessão temática hierarquizada, o documento, já


detendo-se ao terreno político, segue clamando pelo zelo à problemática da unidade
nacional, protestando contra a existência de “Estados dentro do Estado” e de
“partidos políticos fracionando a Nação”, chaga que somente encontraria cura na
adoção do corporativismo: “A Nação precisa organizar-se em classes profissionais.
Cada brasileiro se inscreverá na sua classe. Essas classes elegem, cada uma de
per si, seus representantes nas Câmaras Municipais, nos Congressos Provinciais e
nos Congressos Gerais.” (ibidem, p. 96) Procurando justificar a legitimidade do
Estado corporativo, Salgado o escala como único mecanismo passível de resgatar o
“princípio da autoridade” e combater a anomia social: “Precisamos de hierarquia, de
disciplina, sem o que só haverá desordem. Um governo que saia da livre vontade de
todas as classes é representativo da Pátria: como tal deve ser auxiliado, respeitado,
estimado e prestigiado.” (Manifesto de Outubro, In: O integralismo perante a Nação,
p.97)

Já no item quarto, “Nosso nacionalismo”, Salgado novamente clarifica a


natureza do nacionalismo de que se fez arauto. Lamentando o desprezo urbano aos
sentimentos tradicionais e telúricos que permeiam a psicologia das populações dos
sertões, de onde ecoariam os únicos espontâneos e genuínos exemplos de
brasilidade, Salgado declara beligerância contra os valores das metrópoles
mundialistas: “O cosmopolitismo, isto é, a influência estrangeira, é um mal de morte
para o nosso nacionalismo. Combatê-lo é o nosso dever”; (ibidem, p.98) e temendo
a maculação da identidade brasileira declara: “Somos contra a influência perniciosa
dessa pseudo-civilização eu nos quer estandartizar.” (idem, p. 99)

Plínio atribui àqueles que deixaram-se envolver pelos costumes cosmopolitas


uma espécie de “macaqueação” de valores alienígenas (para empregarmos a
semântica de Oswald de Andrade), na medida que em que “vivem a engrandecer
tudo o que é de fora, desprezando as iniciativas nacionais”, acusando-os de que

58
“envergonham-se também do caboclo e do negro da nossa terra” e da
responsabilidade pela disseminação de “preconceitos étnicos originários de países
que nos querem dominar.” (ibidem, p.98-99)

Embora implícitas condenações à luta de classes sejam perceptíveis


anteriormente, é também neste trecho do documento que o anticomunismo vem à
tona pela primeira vez, sendo representado, através de uma terminologia
propositalmente dualista, como uma ameaça à soberania brasileira: “E somos contra
a influência do comunismo, que representa o capitalismo soviético, o imperialismo
russo, que pretende reduzir-nos a uma capitania.” (Manifesto de Outubro, In: O
integralismo perante a Nação, p.99)

Entretanto, a inconformidade com o sistema parlamentar, a busca pela


ruptura traumática do sistema político e sua substituição por uma nova conformação
institucional, o anti-sistemismo integralista, enfim, transparece no tópico “Nós, os
partidos e o governo”:

“(...) o nosso ideal não nos permite entrar em combinação com


partidos regionais, pois não reconhecemos esses partidos;
reconhecemos a Nação. (...) Ou os que estão no poder
realizam o nosso pensamento político, ou nós, da Ação
Integralista Brasileira, nos declararemos proscritos,
espontaneamente, da falsa vida política da Nação, até o dia
em que formos um número tão grande, que restauraremos o
nosso direito de cidadania, e pela força desse número
conquistaremos o poder da República.” (ibidem, p.100-101)

A perspectiva de conquista do poder, entretanto, concretizar-se-ia à margem


das “conspiratas”, “tramas” e “conchavos políticos”, norteando-se por uma retidão
doutrinária e ética, baseada na “franqueza” e em uma moralizadora “luta no campo
das idéias”. O integralismo seria a antítese dos demais grupamentos políticos, pois
estes, desideologizados e afeitos ao fisiologismo, tornariam medíocre a política,
comprometendo, em conseqüência, os objetivos mais altos do país:

“Políticos e governos tratam de interesses imediatos, por isso


é que conspiram. (...) As confabulações dos políticos estão

59
desfibrando o caráter do povo brasileiro. Civis e militares giram
em torno de pessoas, por falta de nitidez de programas. Todos
os seus programas são os mesmos e esses homens estão
separados por motivos de interesses pessoais e de grupos.
Por isso, uns tramam contra os outros. E enquanto isso, o
comunismo trama contra todos.” (Manifesto de Outubro, In: O
Integralismo perante a Nação, p.102)

Logo, segundo Salgado, o comunismo seria a única força política unificada e


disciplinada, estrategicamente preparada para obter para si o controle do Estado,
estando seus contendores, a exceção do integralismo, mergulhados em disputas
intestinas estéreis e imediatistas, por isso mesmo fadados à derrota.

Em que pese determinadas especificidades e proporções, a percepção por


parte de Salgado de que o quadro político brasileiro estaria caótico, o que poria em
risco a integridade nacional, provocando uma leniência irresponsável em relação às
ações de subversão comunista, encontra um paralelo no ambiente que anos depois
Vargas exploraria com vistas à implantação do Estado Novo. Como se sabe, o
alarde em torno do “Plano Cohen”, os reflexos da intentona de 1935 e a polarização
política que ameaçava a autoridade central constituíram o substrato do preâmbulo
da constituição de 1937, célebre pela extensão e diversidade de argumentos auto-
justificativos.

Mas Salgado, por sua vez, oferece como proposta de saneamento das
mazelas do Brasil a instituição do “Estado Integral”. Embora não haja dúvidas de que
o projeto estatal integralista guarde feições autoritárias, seus previstos mecanismos
interventores diferiam do simples totalitarismo acachapante. Assim, o integralismo
consideraria o Estado

“(...) como uma força mantenedora do equilíbrio, da harmonia,


dentro das quais gravitarão superintendentes e sem choques,
os grupos naturais e a personalidade humana. A autoridade do
Estado, para nós, integralistas, não é ‘Superior’ nem ‘Inferior’
aos outros ‘valores’ sociais e nacionais (‘Família’, Corporação’
e ‘Município’; ‘Cultura’, ‘Economia’ e ‘Religião’). Trata-se de
um valor diferente, de um elemento de natureza diversa que
entra na composição das harmonias sociais e humanas.

60
Mantendo íntegras cada uma dessas expressões humanas, o
Estado Integral também a si próprio se mantém íntegro (...). O
Estado Totalitário seria o Estado Arbitrário. O Estado Integral é
o Estado de Direito, o Estado Mediador, o Estado Ético,
conforme um princípio espiritualista e cristão.” (Madrugada do
Espírito, p.447)

Na ótica da AIB, ao Estado não caberia tolher a iniciativa privada,


apoderando-se da economia à moda leviatânica. A solução residiria, dada a
presumida anomia que estaria manchando a vida brasileira, na adoção de “novos
processos reguladores da produção e do comércio, de modo que o governo possa
evitar os desequilíbrios nocivos à estabilidade social”, (Manifesto de Outubro, In: O
Integralismo perante a Nação, p. 103) o que seria a antítese da concepção nacional-
socialista, onde o culto de “um homem diferente dos outros, um semideus, a
encarnação de Odim” teria erigido o “Estado Totalitário no seu máximo exagero, ao
estilo de César: Chefe Militar, Chefe Civil e Pontífice.” (Madrugada do Espírito,
p.431-432)

Salgado considera “fundamental” o pleno exercício do direito de propriedade,


que inerentemente conteria um “caráter natural e pessoal” e assegura ao operário a
vigência da meritocracia, garantindo-lhe o almejo dos lucros pessoais “conforme seu
esforço e capacidade” (Manifesto de Outubro, In: O integralismo perante a Nação,
p.105). Distanciando-se ainda mais do totalitarismo, Salgado condena o comunismo,
que “destrói a iniciativa de cada um, mata o estímulo”, pois sob a égide do Estado
Integral “as classes organizadas garantirão os seus membros, em contratos
coletivos”, contrapondo-se à “indiferença criminosa dos governos liberais.” (idem,
p.104-105)

Organicista, o manifesto considera o Estado como “uma grande família, um


conjunto de famílias”, uma vez que a supressão da família representaria uma
animalização do homem e catastrófica seria a imposição totalitária de sua atuação
como mera “peça funcionando no Estado”, o que transformaria o indivíduo em um
“autômato, infeliz, rebaixado na sua condição superior.” (Manifesto de Outubro, In: O
Integralismo perante a Nação, p.106-107)

61
Também a temática municipalista está presente, sendo garantida a autonomia
municipal desde que esta não atente contra a perfectibilidade do corpo da União:

“Os municípios devem ser autônomos em tudo o que respeita


a seus interesses peculiares, porque o município é uma
reunião de moradores que aspiram ao bem-estar e ao
progresso locais. (...) Sede das famílias e das classes, será
administrado com honestidade, será autônomo e estará
diretamente ligado aos desígnios nacionais.” (Manifesto de
Outubro, In: O Integralismo perante a Nação, p.108-109)

Assim, consideramos ter exposto as linhas gerais do Manifesto de Outubro,


documento-chave para a compreensão da doutrina integralista e da segunda fase
intelectual de Salgado (a primeira foi caracterizada pelo influxo modernista e a
terceira pela releitura ideológica do pós-guerra). Através da análise do seu conteúdo,
observa-se alguma reincidência propositiva, acompanhada de convicções brotadas
após a eclosão da Revolução de 30. Consideradas em sua totalidade, pode-se
afirmar que as diretrizes do manifesto englobam boa parte do arcabouço
programático da AIB, sobretudo no que concerne à tríade que se tornou lema do
movimento: “Deus, Pátria e Família”. É da sua expansão que trataremos a seguir.

2.3.2 A Expansão do Sigma

No período que vai de 1932 a 1937, teve seu ápice o integralismo. Favorecido
pelas particularidades de uma conjuntura nacional e internacional convidativas,
Salgado pôde então consolidar e expandir seu movimento, dedicando-se,
simultaneamente, à dissertação e publicação de grande quantidade de livros
propagandísticos e político-filosóficos. Além do romance O Cavaleiro de Itararé
(1933), datam destes tempos O que é o Integralismo, A Voz do Oeste, O Sofrimento
Universal, Psicologia da Revolução (todos de 1934), A Quarta Humanidade,
Despertemos a Nação e Doutrina do Sigma (1935), Palavra Nova dos Tempos

62
Novos (1936), e, em 1937, Páginas de Combate, Geografia Sentimental e Nosso
Brasil.

O conteúdo de tais obras nos remete a um melhor discernimento acerca do


sentido e do direcionamento do esforço de Salgado, que neste período teve por
finalidade recrutar a massa de seus adeptos e torná-la ideologicamente pujante,
objetivos esses sem dúvida satisfeitos, uma vez que a AIB logo desponta como um
dos mais importantes centros de atração política dos anos de 1930, conseguindo
intensa penetração nos mais variados setores da sociedade brasileira, sobretudo na
classe média e nos meios intelectuais.

Salgado definitivamente assume a liderança inconteste do movimento, tendo


total infalibilidade no tocante à formulação das diretrizes oficiais da doutrina
integralista, o que se verifica através dos amplos poderes que lhe são concedidos
pelos Estatutos da AIB. Uma vez definido o papel do líder, o movimento inicia sua
fase ofensiva, que para Trindade (1974, p.170) possui dois marcos referenciais:

“Após um período transitório entre fins de 1932 e 1934, no


qual Salgado amplia sua liderança sobre o movimento e as
direções dos primeiros grupos integralistas locais e regionais
são confiadas a triunviratos, implanta-se a organização da AIB.
A primeira estrutura se estabelece no I Congresso Integralista
de Vitória (Espírito Santo) em fevereiro de 1934 e, mais tarde,
se aperfeiçoa com resoluções do Chefe Nacional após o
Congresso Integralista de Petrópolis (Rio de Janeiro) em
março de 1936. A natureza burocrática-totalitária da
organização configura-se entre 1932 e 1936, ao passo que
seu caráter pré-estatal se consolida com as modificações
introduzidas após 1936.”

Desta forma, estando operante a arquitetura interna da AIB, inicia-se o


ativismo político propriamente dito, o que levaria o movimento, como uma de suas
alternativas de poder, a registrar Salgado como candidato às eleições presidenciais
previstas pela Constituição Federal de 1934 (iniciativa frustrada pelo
estadonovismo). Também as grandes manifestações públicas eram comuns no
corpo de estratégias integralistas, quando numerosos desfiles, contando com

63
marchas de milicianos fardados e estandartes, eram realizados em datas
comemorativas ou durante congressos e protestos de intimidação. Ainda
visualizando a canalização do sentimento de transformação existente na sociedade,
o integralismo adota como símbolo principal a letra grega Sigma (Σ), em alusão a
sua significação de soma integral nas operações matemáticas, o que representaria a
união de forças entre os brasileiros e o repúdio às dissidências fragmentárias
regionais e de cunho ideológico8. O Sigma está presente nas insígnias e bandeiras
integralistas, além de ilustrar o braçal do militante, cujo uniforme é composto de
camisa verde, gravata preta e calças cáqui ou branca. Já a saudação consiste no
erguimento vertical do braço direito, com a palma da mão voltada aos céus, seguido
da pronúncia do vocábulo “Anauê!” (Somos Irmãos!), que sob corruptela do idioma
tupi-guarani, era festivamente usado pelos índios como cumprimento.

A importância dada à simbologia fez com que o departamento de doutrina do


movimento publicasse o Livro dos Protocolos e Rituais da AIB e o Regulamento de
Conduta do Camisa-verde, que em suas cláusulas disciplinam detalhadamente as
exteriorizações típicas do movimento e impõem normas morais a serem respeitadas
pelos militantes, englobando toda a sociabilidade cotidiana (daí o termo de Trindade:
“natureza burocrática-totalitária do movimento”).

Em 1947, discursando aos perrepistas no Teatro Municipal de Niterói/RJ,


Salgado avalia este pormenor da já extinta AIB, justificando-o como ferramenta
imprescindível, à época, para dar combate, em pé de igualdade, à onda totalitária:

“Nestas circunstâncias era necessário um movimento que,


adotando os princípios espiritualistas e cristãos, em tudo o que
diz respeito à construção social e política, adotasse métodos
capazes de conjurar os três perigos externos e os vários
perigos internos. Esse movimento verificava que tanto o
totalitarismo de esquerda, ou vermelho, como o da direita, ou
racismo, usavam certas exterioridades e indumentária com
que aliciavam as massas civis (...). Nesse instante,
resolvemos, como remédio imediato, adotar idênticas
exterioridades, impedindo, desta forma, que descendentes

8
O Sigma teria sido também a fórmula identitária encontrada pelos primeiros cristãos da Grécia convertida, além
de ser o nome de batismo da estrela polar do hemisfério sul.

64
mais diretos dos chamados arianos vestissem a camisa típica
do regime de seu país, ou que os vermelhos, aproveitando-se
da ideologia disseminada, pretendessem organizar suas
tropas de choque no Brasil (...).” (Discurso de Niterói. In:
Discursos, p.359)

Em que pese as eventuais ressalvas que se possa opor à argumentação


acima mencionada, o fato é que a AIB abalou significativamente o sistema político
brasileiro dos anos de 1930, tornando-se uma organização política de massas que
teria contado com cerca de 500 mil membros, embora este número seja controverso,
não havendo consenso na historiografia (em 1935, Salgado estimava em 400 mil o
número de seus adeptos. (Despertemos a Nação, p. 25) e em 1938 refere-se a “mais
de um milhão” (O Integralismo Perante a Nação, p. 219)).

2.3.3 As Relações com o Estado Novo

Contudo, o potencial de crescimento da AIB foi subitamente barrado com a


imposição do Estado Novo em 10 de novembro de 1937. Decretando ilegal o
pluripartidarismo, o novo ordenamento constitucional concebido por Francisco
Campos impediu a ação de quaisquer forças oposicionistas sob o manto da “ameaça
comunista” que, irrompendo na intentona de 1935, estaria sendo reorganizada no
recém-descoberto “Plano Cohen”.

Como se sabe, Getúlio Vargas desempenhou com maestria a arte de


conquistar e manter o poder nas diferentes fases de sua trajetória política,
afirmando-se como autoridade ao mesmo tempo em que promovia articulações com
aliados e oponentes de modo a garantir que a alternância de freios e contrapesos
culminasse em estabilização. Não foi outra a sua estratégia durante a Segunda
Guerra Mundial, uma vez que o jogo duplo da diplomacia de Osvaldo Aranha ora
inclinava-se ao Eixo, ora solidarizava-se com os reclames dos Aliados, tendo optado,
por fim, a aliançar com o segundo bloco, o que, apesar da manutenção de uma

65
ordem política interna autoritária e ideologicamente pró-fascista, garantiu ao Brasil
imensas vantagens econômicas.

E o envolvimento do camaleão político com a AIB de Plínio Salgado


igualmente obedeceu a esta lógica. A partir de 1935, Vargas pouco a pouco
entroniza o anticomunismo como política governamental, além de ampliar a
presença do discurso nacionalista e combater as facções estaduais, posturas
simpáticas ao integralismo. Em discurso de 14 de junho de 1937, o então Presidente
reitera sua predisposição de entendimento e afinidades com o integralismo:
“Supunha eu, talvez por não conhecer, que o integralismo fosse um movimento de
moços inexperientes. Vejo, porém, com agradável surpresa, aqui, neste instante,
homens eminentes de meu país filiados a esse movimento, que, eu devo declarar,
me impressiona satisfatoriamente.” (Discurso do Dr. Getúlio Vargas. In: O
Integralismo Perante a Nação, p.205)

Todavia, os procedimentos reais de Vargas assumiam feições diametralmente


opostas, que visavam, ainda no mesmo ano em que o discurso supracitado foi
proferido, calar definitivamente a voz dos integralistas. Sentindo-se fortalecidos pelos
rumos que o governo tomava na superfície, 50 mil camisas-verdes marcham diante
de Getúlio e do general Newton Cavalcanti, integralista e Comandante da Vila Militar
do Rio de Janeiro. A demonstração de força, porém, parece ter gerado efeito
contrário, já que o Estado Novo nasceria em nove dias, decretando “estado de
guerra” em todo território brasileiro.

Os posicionamentos de Salgado em face da nova realidade encontram-se


minuciosamente descritos em carta de sua autoria remetida ao Presidente da
República. Datando de 28 de janeiro de 1938, o documento relata detalhadamente o
desenrolar dos acontecimentos, desde o as vésperas do golpe até a extinção da
AIB. Logo no início da carta, Salgado reconhece a influência das atividades
integralistas como um dos motores do Estado Novo, referindo-se, talvez, entre
outras coisas, ao já citado “Plano Cohen”, que, atribuído ao Komitern como ordem
de sublevação das forças de esquerda, teria sido forjado pelo então capitão do
Exército e membro da AIB Olímpio Mourão Filho, pois os integralistas “criaram, pela

66
sua doutrinação e propaganda, o clima sem o qual não se tornaria possível a
transformação constitucional de 10 de novembro.” (Carta de Plínio Salgado ao
Presidente da República, In: O Integralismo Perante a Nação, p.219) Não obstante,
afastando acusações de subserviência, Salgado procura dissociar a pretérita
convicção integralista no que diz respeito à ordem, à disciplina, ao apreço pela
centralização política e à aversão às conspirações golpistas da simples adesão ao
Presidente: “Julgavam que se tratava de mero apoio pessoal, quando nos
guiávamos por orientação puramente doutrinária. Pregávamos o princípio do Poder
Central, e não o prestígio individual de V. Exa.” (idem, p.222)

Sempre dirigindo-se a Vargas, Salgado protesta com veemência diante da


proibição das simbologias da AIB, aspecto que considerava inseparável do
movimento como um todo. O integralismo seria ainda, em última análise, apolítico e
dispor-se-ia a colaborar com a nova ordem, desde que preservadas as
“exterioridades”:

“O único meio de os integralistas conservarem a sua dignidade


e não destruírem a dignidade da Pátria, prestando, o mesmo
tempo, serviços ao governo de V. Exa., seria darem todo apoio
até o máximo sacrifício aos propósitos patrióticos que
partissem de V. Exa nos supremos interesses do Brasil, mas
conservarem-se como núcleo central da mística
desinteressada, do ascetismo político, desarmados
materialmente, mas armados em espírito, para atender os
apelos de V. Exa nas horas mais difíceis para a nacionalidade,
isto tudo, porém, com a conservação das exterioridades
intimamente ligadas a um pensamento que já se tornou
sentimento, sob cinco anos de martírios e lutas. (...) que não
são negados até aos clubes de futebol: as exterioridades que
exprimem a objetivação concreta de uma comunhão de
homens.” (ibidem p.227)

Faz-se mister também assinalar que a alusão de Salgado à “mística”


integralista parece dizer respeito a algumas das então recentes práticas
estadonovistas, como a queima das bandeiras estaduais e a busca pela criação de
um sentimento de identidade nacional, expressos pela exaltação nacionalista do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), ou através da instituição do “Dia da

67
Raça” e dos esforços sistemáticos pela popularização das composições de Villa-
Lobos. Nesse sentido, a “mística” integralista (o termo aparece quatro vezes na
carta) possuiria maior profundidade, sendo mais apta a atingir os objetivos que o
Estado Novo de modo infértil então perseguia.

Na continuação do documento, Salgado reconstitui suas negociações com o


governo, que na iminência do golpe, em setembro de 1937, solicitou-lhe, na pessoa
do então Ministro da Justiça, Francisco Campos, a análise da ainda inédita Carta
Magna. Nota-se, assim, que Vargas, reconhecendo o peso político da AIB, bem
como seu relevo em grande parte da opinião pública, percebe que o sucesso pleno
de sua cartada dependeria das bênçãos do chefe integralista, motivo pelo qual
requereu-lhe o parecer sobre o projeto constitucional e tentou cooptá-lo ao novo
governo, convidando-o para assumir o Ministério da Educação.

Rememorando tais fatos ao Presidente, Salgado expõe suas impressões


sobre a “Polaca”, que inicialmente eram positivas: “em princípio, não poderia ser
contrário ao Estado Corporativo, à supressão de estéreis lutas partidárias, e à
substituição de todos os políticos (sem exceção dos Governadores, como me era
prometido) por valores novos” (Carta de Plínio Salgado ao Presidente da República,
In: O Integralismo Perante a Nação, p. 230), mas pondera que “não achava
necessária a outorga de uma nova constituição, porém julgava suficientes algumas
reformas na carta de 1934, substituindo o sufrágio pelo voto corporativo e dando
maior amplitude ao Estado no concernente aos poderes de interferência no ritmo
econômico-financeiro do país”, acrescentando ainda que diante da irreversibilidade
dos fatos, “o integralismo não criaria dificuldades, mesmo porque não tinha
elementos para se opor, e nesse caso, confiaria no patriotismo do Presidente da
República, cujos propósitos nacionalistas não punha em dúvida.” (idem, p.231).

Vislumbrando a realização de boa parte da plataforma integralista no novo


arcabouço jurídico que se outorgava ao Brasil, a primeira expectativa de Salgado o
faz conceber os novos regramentos “como uma etapa inicial até atingir-se a
democracia orgânica, como a tínhamos sonhado, a qual em nada se parece com os
regimes do tipo fascista ou nazista.” (ibidem, p.233) Todavia, sua adesão é

68
condicionada à manutenção da estrutura do movimento integralista, questão que
recebe um inicial parecer favorável do Ministro da Justiça:

“Perguntei qual seria, na nova ordem, a situação da Ação


Integralista Brasileira, ao que o dr. Francisco Campos me
respondeu que ela seria a base do Estado Novo,
acrescentando que, naturalmente, o Integralismo teria ampliar
seus quadros para receber todos os brasileiros que quisessem
cooperar no sentido de criar uma grande corrente de apoio aos
objetivos do Chefe da Nação.” (Carta de Plínio Salgado ao
Presidente da República, In:O Integralismo Perante a Nação,
p.231-232)

Sempre visando dar sobrevida para a AIB, Salgado encontra-se com o Chefe
de Polícia, Felinto Müller, com o Ministro da Guerra, general Dutra e com o
comandante da Vila Militar do Rio de Janeiro, general Newton Cavalcanti9, que lhe
teriam garantido, assim como pessoalmente lhe declarara Vargas, a íntegra
conservação do integralismo no novo regime.

Mas a tranqüilidade de Salgado duraria pouco tempo. Conforme o relato da


carta que aqui utilizamo-nos, o golpe o dia 10 de novembro foi levado a cabo à
revelia do conhecimento de Plínio e as hostilidades do Executivo para com o
integralismo prontamente começam a vir à luz:

“O dr. Francisco Campos disse-me logo no início da conversa


que a colaboração pessoal minha no governo de V. Exa
dependia preliminarmente, do fechamento do Integralismo,
pois no Estado Novo, só haveria o partido do governo.
Respondi-lhe que já havia fechado o partido político, porém
que, com o combinado, ficava aberta a sociedade civil ‘Ação
Integralista Brasileira’, de fins culturais e educacionais. (...) Eu
disse então ao Ministro Campos que se o fechamento da
‘Ação Integralista Brasileira’ também como sociedade civil, e
não só como partido, era inevitável, então que partisse do
próprio governo, pois essa deliberação jamais partiria de mim
porque a minha dignidade não o permitia.” (idem, p.246-247)

9
Integralista, este general pede demissão de seu cargo tão logo o governo retrocede e decreta a extinção da AIB.

69
Sentindo-se apunhalado pela astúcia de Vargas, que lhe atraiu ao governo
como forma de desmobilizar possíveis reações violentas do integralismo ao golpe,
Salgado tenta fundir a AIB no que seria a “Associação Brasileira de Cultura”, que
caracterizar-se-ia pela natureza apolítica, voltada às atividades cívico-culturais e
esportivas. Diante das respostas evasivas do governo, a iniciativa é frustrada e
Salgado recusa o convite para o Ministério da Educação sem antes bradar contra as
“perseguições tremendas” que estariam sendo impostas ao integralismo, advertindo,
ao mesmo tempo, sobre o que diz respeito aos “esforços pacificadores” que
procurava então exercer sobre seus subordinados:

“(...) tem sido minha ação, desde o fechamento do Integralismo,


a acalmar exaltados, a descobrir grupos que comentam ou se
desesperam, reduzindo-os a disciplina a fim de evitar que
façam loucuras. O Integralismo, rebentadas as comportas da
hierarquia, através da qual se chegava, de chefe em chefe, à
minha palavra, é hoje uma ebulição que se pode tornar
incontrolável.” (ibidem, p.255)

Realmente, a sucessão dos episódios revelaria que tal acirramento de ânimos


generalizar-se-ia, havendo um recrudescimento paulatino até a explosão ocorrida a
11 de maio de 1938, no evento que ficou conhecido como “Putsch de 38”. No
entanto, ao contrário da versão ordinariamente incorporada ao senso comum, o
levante, ainda que contando com numerosos camisas-verdes, operou-se a partir de
uma articulação mais ampla, desenvolvida entre estes e membros da oposição
liberal, tais como Otávio Mangabeira, Belmiro Valverde, Severo Fournier, Euclydes
Figueiredo e os generais João Guedes da Fontoura e Castro Júnior.

Conforme Miguel Reale10, o objetivo nuclear dos insurretos teria sido


restabelecer a legalidade da Constituição Federal de 1934, confiando o governo a
uma Junta Militar Provisória liderada pelo general Castro Júnior a fim de garantir a
realização de novas eleições, sob o pluripartidarismo. A hegemonia decisória do
movimento, portanto, estava longe de pertencer ao integralismo, cabendo aos
liberais descontentes com o Estado Novo a direção militar do levante, bem como o
protagonismo em um eventual novo governo.

10
A entrevista de Miguel Reale. In: O Integralismo Perante a Nação, p.261.

70
O plano dos contra-golpistas consistia na tomada o Palácio da Guanabara,
além da prisão de Góis Monteiro e Eurico Dutra. Embora o tiroteio no entorno do
Palácio tenha estendido-se noite adentro, apenas o Ministério da Marinha fica sob
tutela dos rebeldes e ao amanhecer as forças leais a Getúlio abafam completamente
o levante.

Em face destes acontecimentos, Salgado procurou eximir-se de qualquer


responsabilidade, sendo recorrente, nos materiais de doutrina integralista, a tentativa
de deslegitimar o Putsch, atribuindo-o à indisciplina de elementos exaltados e sem
ressonância interna, “porque à frente do movimento se achavam numerosos
próceres liberais que nunca haviam tido qualquer ligação com a AIB”, e “o Chefe
Supremo dos integralistas, aquele que podia responder por todos os atos do seu
partido, não participou e não aprovou a rebelião.” (A Verdade Histórica, Idade Nova,
18.05.1946, apud Calil, 2001, p.114). Idêntica é a afirmação de Hélio Silva (1964,
p.148): “O movimento de 1938 não foi planejado, nem dirigido nem realizado pelos
integralistas.”

Em que pese a escassez de dados no que tange ao grau exato da


participação de Salgado no malfadado episódio, suas declarações a partir de então
acenam no sentido de frisar que tais iniciativas não encontrariam precedentes em
sua práxis política pessoal e no próprio corpo do ideário da AIB. Em documento
datado de 15 de maio de 1938 (apenas cinco dias após a tentativa de contra-golpe),
Plínio dirige-se aos integralistas em tom conciliador, “recomendando-lhes, na hora
presente, que se abstenham de quaisquer agitações subversivas e de
manifestações de caráter político, perturbadoras da ordem pública”, apelando ainda
à abnegação de seus seguidores para o concurso maior da comunhão nacional:

“O panorama sombrio do mundo exige que todos os brasileiros


se unam no terreno comum do amor à Pátria. (...) se neste
momento, promovermos agitações, correremos o risco de
sermos acusados, no futuro, como responsáveis pela desunião
dos brasileiros, ou como empecilhos àqueles que, acima de
tudo, queiram firmar na unidade espiritual da Pátria a
sustentação do nosso prestígio externo e da soberania

71
nacional.” (Manifesto de Maio, In: O Integralismo Perante a
Nação, p. 268-269)

Não obstante sua tentativa de distanciar-se da empresa golpista e a


proposição de acatamento à autoridade vigente, Salgado é enquadrado por Vargas
como mentor do levante, recebendo ordem de prisão em nome da Delegacia de
Ordem Política em 29 de maio de 1938, sendo então enviado para a Fortaleza de
Santa Cruz, onde permaneceria até a partida para o exílio em Portugal, país em que
aportou, a bordo do navio “General Artigas”, a 06 de julho de 1939.

2.4 Exílio e Ressignificação

Conforme assinalamos anteriormente, o período de exílio em Portugal


caracteriza-se por um considerável reordenamento ideológico no pensamento de
Salgado, sendo a ampliação da sintonia com o catolicismo
tradicionalista/conservador seu elemento de maior relevância. Ainda que as
questões políticas não tenham sido de todo esquecidas, averigua-se um crescente
envolvimento de Salgado com a religiosidade, fato que se deve, em parte, à sua
condição de líder político que, uma vez sob o abrigo de terras estrangeiras, correria
o risco de, no caso da publicização de declarações mais incisivas, agravar a
situação de seus subordinados que estavam então na clandestinidade no Brasil.

Seria na nação lusa que Salgado traçaria os primeiros esboços do abandono


do anti-sistemismo revolucionário da AIB, passando a conformar-se ao sistema do
jogo eleitoral democrático. Ainda em 5 de setembro de 1939, Plínio redige sua
primeira diretiva aos integralistas a partir do estrangeiro, conclamando-os a
posicionar-se invariavelmente ao lado do governo brasileiro na guerra que havia
começado quatro dias antes com a invasão da Polônia:

“Agora, mais do que nunca, em face momento mundial,


reafirmo a diretiva anterior. Qualquer surto revolucionário de

72
caráter integralista será explorado pelos comunistas com suas
calúnias. A única atitude a ser tomada pelos integralistas é a
abstenção de iniciativas revolucionárias diante das dificuldades
internacionais que o Brasil atravessa. Convém tornar clara
nossa atitude diante do conflito mundial: estamos com o Brasil
seja qual for seu destino.” (Diretiva do Chefe Nacional do
Integralismo Plínio Salgado aos integralistas em 05 de
setembro de 1939. In: O Integralismo perante a Nação, p.284)

No entanto, a tentativa de conciliação com Vargas atinge seu clímax com o


manifesto de 15 de novembro de 1943, onde Salgado reafirma sua confiança na
política externa do governo, ao mesmo tempo em que destaca os fundamentos
brasileiros da doutrina integralista, apartando-a do nazi-fascismo. Tal documento
vem à luz sobretudo como reação ao juízo então corrente na opinião pública
brasileira, que, a partir da declaração de guerra ao Eixo, mobilizou-se contra o
hitlerismo, constantemente associando-o ao integralismo. Protestando contra “certa
calúnia que está sendo espalhada a meu respeito”, Salgado afirma:

“A doutrina que sustentei, fundando e propagando o


movimento que denominei Integralismo, é a mesma que
continua orientando o meu espírito e cujos princípios são
contrários: (...) ao Estado de caráter totalitário, seja nazista,
seja comunista ou qualquer outro; à teoria do predomínio
de uma raça ou de uma nação sobre outras (...). A minha
filosofia política nunca dependeu de ideologias estrangeiras
nem se subordinou a qualquer partido do mundo. Se
alguma cousa de universalista há nessa doutrina, é aquilo
que deriva do ensino da Igreja, transmitido da cadeira de
São Pedro, pois é como homem, não apenas como
brasileiro, que vejo, no Redentor Divino, a Luz, o Caminho
e a Vida.” (Manifesto de 15 de novembro de 1943. In: O
Integralismo Perante a Nação, p.329-330)

Assim, uma vez torpedeados os navios mercantes brasileiros, Salgado elege


o nacional-socialismo como inimigo privilegiado: “Essa vitória livrará o Brasil do mais
imediato dos perigos, que é o racismo expansionista.” (idem, p.331)

Além da condenação dos totalitarismos, faz-se mister sublinhar a linguagem


cristã, que passa a ter penetração em todos os escritos de Salgado. Conforme já

73
tivemos oportunidade de explorar anteriormente (motivo pelo qual não mais nos
determos neste tópico), em dezembro deste mesmo ano seria publicado A Vida de
Jesus, obra que categoricamente reverte o ângulo propositivo da argumentação de
Plínio. Ainda em 1943 Salgado profere a conferência O Conceito Cristão de
Democracia (compilada em livro três anos depois), onde são demarcadas as novas
bases de seu conceito de Estado, que abolindo inteiramente a proposta corporativa,
mostra-se agora mais tolerante com o sufrágio e os partidos políticos. Rechaçando
críticas de que tal redirecionamento guardaria um oportunismo insincero, ele afirma
que

“(...) as idéias cristãs, absolutamente em desacordo com o


totalitarismo, tantas vezes expendidas na “Vida de Jesus”, não
foram improvisadas depois das derrotas de um dos
totalitarismos (o nazi-nipo-fascismo) e nem mesmo quando o
Brasil entrou em guerra. Aquele livro, documento humano da
mais profunda sinceridade, principiou a ser escrito nos últimos
dias de 1938 e foi terminado em agosto de 1940, sendo o
prefácio redigido na Páscoa de 1942, quando o totalitarismo de
direita dominava militarmente a Europa e ameaçava o mundo.”
(O Integralismo perante a Nação, p.337)

2.5 O Integralismo nos Novos Tempos

Juntamente com os milhares de soldados que tombaram na segunda grande


conflagração que enlutou a Europa, caíram os fascismos. O Brasil, que enviara à
Itália uma Força Expedicionária para somar-se ao esforço de guerra dos Aliados,
enfrentava o paradoxo de combater pelo campo democrático e conviver com um
regime ditatorial em seu próprio seio. O sentimento antifascista de uma opinião
pública extremamente suscetível ao passionalismo, entretanto, sinalizava que o
aparato autoritário varguista estava em xeque e dificilmente encontraria forças para
manter-se.

74
De fato, em maio de 1945 o governo formula a “Lei Agamenon”, que mesmo
contando com dispositivos que beneficiavam a máquina eleitoral estadonovista,
reinstitui o pluripartidarismo através da criação do Partido Social Democrático (PSD)
e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no que Duverger classificaria de partidos
de origem parlamentar. Vargas empreende reformas constitucionais que prevêem a
anistia aos presos políticos e, por meio do novo código eleitoral, a realização de
eleições diretas, tendo sido apontado o nome do General Eurico Gaspar Dutra como
candidato oficial do governo. Ainda que certas tentativas de reação tenham sido
esboçadas nos primeiros anos de 1940 (correntes liberais haviam reclamado a
redemocratização do país em 1943, com a divulgação do “Manifesto dos Mineiros”),
a capitulação de Hiroito no Pacífico rejuvenesceu o fôlego das oposições e Vargas é
deposto a 29 de outubro de 1945, em decorrência da insatisfação generalizada que
ressoava também nas Forças Armadas.

É em meio a este contexto francamente adverso que Salgado, de volta ao


Brasil, assume a presidência do Partido de Representação Popular (PRP),
agremiação que chefiaria até a nova ruptura ocorrida em 1964, quando iniciou-se o
ciclo militar. Embora tenha conseguido conservar na plenitude a influência política
que exercia sobre seus seguidores durante o exílio, seu novo empreendimento
político, ao contrário do que se verificava em 1932, quando da fundação da AIB,
encontrava anteparos de toda ordem em um país recém-redemocratizado e em um
mundo comovido por quase seis anos de guerra. A campanha antiintegralista
encontrava ruidoso eco na imprensa e nas manifestações públicas insufladas pela
esquerda, que desforrava-se dos anos de ostracismo impostos pelo Estado Novo.
Reproduzindo parte da propaganda do DIP, o integralismo era acusado de funcionar
como “Quinta Coluna” na promoção da espionagem pró-eixo, motivo pelo qual
chegou a ser solicitada a reprovação do registro partidário do PRP. De outra parte, o
veto da legislação no que tange aos uniformes partidários suprime a possibilidade de
um reerguimento da simbologia tão cara aos integralistas, o que compromete a
continuidade da “mística” do movimento.

Não obstante, evidenciando a reestruturação dos quadros da antiga AIB, é


publicada em maio de 1945, com a assinatura de importantes lideranças, uma “Carta

75
Aberta à Nação Brasileira”, e três meses depois emerge a Cruzada Brasileira de
Civismo (CBC), entidade anticomunista comandada por integralistas que procura
cooptar adeptos nos setores mais conservadores da sociedade, alertando-os sobre
o perigo da expansão do imperialismo soviético na América Latina. Tais
acontecimentos parecem pretender preparar a opinião pública à aceitação o
proselitismo de Salgado, que em setembro divulga seu “Manifesto Diretiva aos
Integralistas Brasileiros”, onde repudia as acusações de simpatia ao fascismo e
prenuncia seu desejo de nova empreitada política.

Contudo, a adesão de antigos líderes camisas-verdes mostra-se parcial e


nomes como Miguel Reale e Gustavo Barroso recusam engajamento, o que não é
suficiente para Salgado evadir-se de seu intento, e a 27 de outubro de 1946 passa a
presidir o PRP. Plínio rapidamente percebe que a condição sine qua non para o
sucesso do novo partido reside no abandono dos pressupostos anti-sistêmicos e na
imperiosidade da aceitação do processo eleitoral democrático. Ainda que o
nacionalismo e o anticomunismo permaneçam sendo motivos de mobilização
política, Salgado passa a eleger o totalitarismo, à esquerda e à direita, como alvos
privilegiados de sua crítica, ao mesmo tempo em que a apologia da espiritualidade
cristã assume destaque absoluto.

Procurando justificar seus novos procedimentos, conciliando-os com os


anteriores, Salgado afirma:

“A nova situação mundial e nacional determinou que se


organizasse no Brasil, para salvação da Pátria, um partido
que, pondo o seu fundamento nos princípios espiritualistas e
cristãos, democráticos e nacionalistas inspiradores daquele
movimento ao qual pertencêramos, fosse ao mesmo tempo de
maior plasticidade na propaganda eleitoral e pudesse
apresentar-se sem exterioridades que poderiam estabelecer
confusões e favorecer as tolas interpretações doutrinárias dos
ignorantes que julgam os homens pelas roupas. Nestas
circunstâncias formou-se o Partido de Representação Popular.
(...) O Partido de Representação Popular é coisa nova, como
política; a sua doutrina é a perene doutrina cristã e
democrática pregada pelo integralismo (...).” (Discurso de
Niterói. In: O integralismo Perante a Nação, p.363-364)

76
Ao proferir o discurso de posse no novo partido, Salgado sublinha que sua
opção norteou-se “principalmente pelo fato de ser por ele (o PRP) considerado o
Homem segundo sua naturalidade e sua sobrenaturalidade” e porque “somos um
partido espiritualista e que se informa nas fontes do Evangelho.” (Discursos, p.299-
300) No entender do líder perrepista, os fundamentos espiritualistas do partido o
levariam indubitavelmente à negação do totalitarismo, uma vez que haveria um
relação intrínseca entre este e o materialismo:

“(...) afirmamos conceber o Universo, não unilateralmente como


os materialistas, porém de maneira completa, no seu conjunto
material e espiritual. (...) proclamamos o livre-arbítrio do
homem até ao ponto em que não colida com as leis da
natureza e com a vontade soberana de Deus. Não há nada de
tão contrário ao totalitarismo de Estado do que a concepção
totalitarista do Universo: porque nesta as leis do Espírito fixam
limites às leis da matéria e estabelecendo os fundamentos da
liberdade humana, preservam-na da arbitrária interferência do
Estado quando este pretende ultrapassar suas legítimas
fronteiras.” (Discurso de Niterói. In: O Integralismo perante a
Nação, p.365)

A conformação com a democracia também é explícita:

“Vede que no atual momento histórico não somos nós do


Partido de Representação Popular que estamos negando a
democracia. São aqueles mesmos que, tendo-se proclamado
pioneiros da democracia, na prática procuram realizar partidos
únicos dentro das unidades federais. (...) É um contra-senso
pôr na boca de um desses democratas que alardeiam seu
libertarismo, frases como estas: - o integralismo antigo
representa um perigo atual. (...) O populismo do Partido de
Representação Popular representa um perigo. Perigo por que?
Então as idéias não podem ser debatidas? Têm medo esses
democratas de que as idéias sejam debatidas? Queremos
discutir e lutar no campo das idéias, que esse é o campo
democrático, verdadeiramente democrático (...).” (Discurso no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro. In: O Integralismo Perante
a Nação, p.302-303)

77
Assim, pondo em prática a nova disposição, o PRP passa a compor alianças
partidárias, apoiando, por exemplo, Eduardo Gomes nas eleições presidenciais de
1950, o que clarifica que fora superada definitivamente a idéia de “pureza” e de
exclusivismo do integralismo. Nas eleições de 1947 o partido elege 18 deputados
estaduais e 155 vereadores, e embora ocupe um espaço marginal no sistema
político, o PRP, graças a tais coalizões, formadas sobretudo com o PSD, projeta-se
na estrutura do Estado, ocupando prefeituras e secretarias. Em 1955, Salgado
disputa com Juscelino Kubitscheck, Ademar de Barros e Juarez Távora a
presidência da República e um ano depois é eleito deputado federal pelo Paraná. O
ponto culminante da abertura ideológica do PRP, no entanto, se dá em 1958,
quando o partido apóia o PTB de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, fato que
provoca considerável deserção de membros oriundos do integralismo neste
Estado11.

Contudo, a inclinação do partido à institucionalidade não lhe proporciona


ascensão no cenário político e a influência das idéias de Salgado na opinião pública
deste período não pode ser comparada àquela que exerceu durante a fase
integralista. O PRP ocupa, no máximo, a quarta colocação na preferência do
eleitorado, sendo superado, ao menos, por PSD, UDN e PTB.

A própria doutrina anticomunista de Salgado é revista e o combate


intransigente que outrora era dirigido à Aliança Nacional Libertadora pela Milícia
Integralista é substituído por uma oposição primordialmente teórica, de acordo com o
ordenamento democrático:

“Doutrinariamente, ideologicamente, combatemos o


comunismo, não por ser um partido adverso ao nosso, mas
porque é uma doutrina filosófica baseada no socialismo de
Marx, e o socialismo de Marx é baseado no materialismo
histórico, e nós somos espiritualistas. (...) Não combatemos os
comunistas. São brasileiros, muitos deles revoltados por
injustiças reais, muitos desejando uma melhor situação para as
classes desfavorecidas, muitos deles com maior teor de
dignidade do que o burguês, que tem uma vida má, vida de
prazeres, e que quer combater o comunismo, apenas, porque

11
Sobre este particular, consultar Calil (2001, p.349-350).

78
quer defender a sua propriedade, da qual ele usa e abusa em
detrimento dos princípios cristãos que devem reger o uso da
propriedade. Eu, portanto, (...) recomendo que tratem
carinhosamente o comunista, combatendo vigorosamente o
comunismo, combatendo essa doutrina materialista, pela nossa
convicção espiritualista. Amemos o próximo, seja ele quem for,
e procuremos, pela ação pessoal conquistar, um a um, todos
os brasileiros.” (idem, p.303-304)

Salgado, porém, através de sua atividade intelectual, segue na crítica sem


tréguas ao comunismo, e se sua aversão à liberal-democracia torna-se, na prática,
menos contundente, o totalitarismo “neo-pagão” dos fascismos é fulminado com
maior intensidade. Em seu livro Mensagem às Pedras do Deserto (1947), Plínio
lança a idéia de uma “Quarta e Perfeita Posição”, que seria uma espécie de soma
das “verdades” contidas nas três vias políticas anteriores (comunismo, capitalismo e
fascismo), suprimidos os seus “erros”. Opondo-se ao materialismo do marxismo e do
capitalismo e ao Estado totalitário do fascismo, a “Quarta Posição” apropriar-se-ia da
ânsia da justiça social do primeiro, da liberdade pugnada pelo segundo e do
nacionalismo defendido pelo terceiro, anexando-se, ainda, a ética cristã:

“A nossa obra, no ocidente, deve ser a de verdadeira


catequese cristã no mundo capitalista e no mundo
nacionalista. Expungir-lhes os erros, fundi-los numa só
expressão de defesa dos valores morais oriundos de Cristo e
que ainda sobrevivem apesar do paganismo em que nos
temos afundado. Precisamos de missionários para esta obra
pela construção da Unidade Cristã do Ocidente. União Cristã
contra o materialismo (...). É a Quarta Posição, em que
deverão juntar-se os fragmentos de verdade das três
primeiras, nesta hora grave do mundo.” (Mensagem às Pedras
do Deserto, p.240)

É com base nestes pressupostos que Salgado, em substituição ao “Estado


Integral” e corporativo, concebe o funcionamento de uma “democracia cristã”, outro
ponto bastante explorado pelo PRP.

Além disso, nota-se aqui a gestação da problemática principal que move as


investigações do presente trabalho, ou seja, o apontamento feito por Plínio de que

79
comunismo e capitalismo, embora aparentemente antagônicos e irreconciliáveis,
almejariam, em verdade, uma mesma finalidade. São os “irmãos siameses” que
abordaremos no próximo e último capítulo.

80
3 A ENGENHARIA POLÍTICO-FILOSÓFICA DO
ANTICOMUNISMO DE SALGADO

“(...) e chegaremos a conclusão de que não é possível


combater o Capitalismo sem combater o Comunismo, do
mesmo modo que não é possível combater o Comunismo sem
combater o Capitalismo. Pois tanto um como outro não
passam de uma só cabeça, com duas caras, cabeça ligada ao
mesmo corpo, que é o materialismo, a subordinação do
Espírito Humano à brutalidade das forças cegas da Natureza,
ou melhor, de uma das faces da Natureza, isto é, a material.”

(Madrugada do Espírito, p.399)

Pretendemos aqui demonstrar que o anticomunismo concebido por Salgado


fundamenta-se em um pressuposto inicial que, se acaso desconsiderado fosse,
comprometeria irremediavelmente a compreensão desta faceta de seu pensamento:
trata-se da idéia de que para efetivar-se uma oposição contundente ao marxismo,
seria necessário empreender uma luta contra o “espírito burguês”, que constituiria,
por sua vez, o principal fator subjetivo que permitiu o advento do comunismo. Assim,
de acordo com o raciocínio de Salgado, a doutrina de Marx teria encontrado campo
fértil para sua expansão devido, paradoxalmente, ao impulso oculto, mas primordial
e indispensável, do seu aparente inimigo maior, a cosmovisão liberal-burguesa.

81
Uma vez que tal afirmativa remete o estudioso, assim nos parece, à
visualização de uma teoria anticomunista bastante singular, cremos que ao
sistematizar a logística destas aparentes contradições estaremos fornecendo
elementos interessantes para o debate inerente à filosofia-política, que consiste em
relacionar as afirmações das diferentes conceituações, justamente para confrontá-
las em busca da tentativa de solucionar aporias e superar o senso-comum.

Formular hipóteses capazes de decodificar as formas estruturais da


mentalidade anticomunista de Salgado, dedicando especial atenção à importância
que a aversão ao burguesismo ocupa em sua dinâmica: tal será nosso norte. Para
tanto, cumpre-nos interpretar os meios através dos quais Salgado encontrou
subsídios capazes de lhe fornecer parâmetros para associar as duas doutrinas
políticas.

Primeiramente, é importante ponderar que Plínio, ao longo de suas obras, não


chega a estabelecer uma precisão terminológica no que concerne aos dois
sistemas/ideologias que combatia. Desta forma, os termos “comunismo”, “marxismo”
e “socialismo”, bem como “liberalismo”, “capitalismo” e “espírito burguês”, são
constantemente empregados de maneira generalista, pretendendo significar, em
última análise, um mesmo sistema dentro de seus respectivos espectros filosóficos,
políticos, econômicos e culturais. Segundo Salgado,

“É preciso ter-se em vista, antes de tudo, que socialismo e


comunismo significam a mesma coisa. Pois Marx era
socialista. A linha pura do socialismo é, na verdade, o
marxismo. É a evolução natural da sociedade capitalista, para
as suas últimas conseqüências. As duas correntes que se
originam de Marx são uma e a mesma coisa.” (O Ritmo da
História, p.218)

Em que pese esta semântica flexível, Salgado não deixa de reconhecer, em


outras passagens, as particularidades do socialismo utópico diante da ruptura
“científica” de Marx e Engels, e embora classifique a axiologia liberal-democrática
como pró-marxista, trata de considerar, ainda que timidamente, o capitalismo como
um arcabouço eminentemente econômico que ampara a ideologia burguesa.

82
Contudo, em suas obras, tais especificidades não vêm à tona senão de maneira
marginal, uma vez que o autor utiliza-se de diferentes nomenclaturas para remeter o
leitor tanto aos aspectos ideológicos, políticos e econômicos do marxismo, como aos
valores intrínsecos do liberalismo, sempre em sentido amplo e com alta margem à
plasticidade. Não obstante, tais referências procuram permanentemente estabelecer
uma associação entre estas duas ordens políticas, geralmente tidas por dicotômicas.
O termo “burguesia”, por exemplo, é concebido não como a designação de uma elite
econômica, mas como uma condição psicológica supra-classista, pois o “espírito
burguês”, como postura, “não é inerente , de modo exclusivo, à classe dominante em
nossos dias” e “vive em todas as classes.” (Espírito da Burguesia, p.7)

Outra nuance que deve ser frisada diz respeito à estabilidade deste
pensamento na teoria de Salgado. Ainda que o correr do tempo histórico tenha
provocado significativas revisões em alguns de seus posicionamentos políticos, a
idéia da existência de mútuas identidades complacentes entre comunismo e
capitalismo, pelo contrário, permanece constante, estando presente tanto no período
integralista quanto na fase perrepista, pois se é verdade que neste último período a
crítica à liberal-democracia amainou-se, a teia de ligação entre os valores do
liberalismo e os objetivos marxistas segue sendo tecida, o que é comprovado pela
publicação dos livros O Conceito Cristão de Democracia (1946), Espírito da
Burguesia (1951) e Reconstrução do Homem (1957), ricos em citações desse tipo.
Também Trindade (1974, p. 163) percebeu a natureza do anticomunismo de
Salgado, ao menos no período que abarca o integralismo, já que assinala que “para
os integralistas, a oposição ao socialismo é indissociável da oposição ao liberalismo,
encarnado nas instituições republicanas.”

3.1 Materialismo

Feitas essas ressalvas, cumpre-nos analisar o primeiro aspecto de que


Salgado valeu-se a fim de sustentar uma associação entre os “irmãos siameses”: o
materialismo. Na ótica de Plínio, liberalismo e socialismo estariam impregnados

83
pelos signos utilitários e racionalistas advindos da ascensão da burguesia durante o
ocaso do feudalismo medieval, e a contraposição ao materialismo daí gerado
residiria, necessariamente, no espiritualismo:

“É preciso dizer-se que não foi Marx quem concebeu o mundo


dividido em dois campos de interesses materiais antagônicos;
foram os chamados liberalistas. Quebrada a concepção
espiritualista da sociedade, estabeleceu-se a luta entre os
agrupamentos políticos, assim como a luta entre os
agrupamentos econômicos, aqueles regidos pela múltiplas
ideologias contraditórias e estes pela lei da oferta e da
procura.” (Primeiro Cristo, p.197)

O período histórico em que esta mudança de paradigma se assentou é


bastante evidente para Salgado:

“No fim do reinado de D. Maria I surgiu a economia política de


Adam Smith baseada nas leis naturais de oferta e procura,
portanto aparentemente humanitária, mas no fundo
favorecendo as nações detentoras dos melhores meios de
produção industrial. O fato é eloqüentíssimo, pois marca a
translação do sentido espiritualista da economia baseada no
livre-arbítrio dos dirigentes responsáveis perante Deus pelo
bem-estar do povo, para o sentido materialista baseado no
determinismo dos fenômenos da produção e do consumo, sem
nenhuma consideração pelas conseqüências do desequilíbrio
social e internacional.” (Mensagem ao Mundo Lusíada, p.367)

Assim, superadas as concepções tradicionais (sob instigação da esfera


intelectual), a antiga sociedade hierarquizada e harmônica no sentido teocentrista
cederia espaço ao ideário ainda inédito de Marx, que seria, antes de um oponente
propositor de uma nova lógica interpretativa, um “continuador” dos métodos
econômicos liberais, que “lançados pelos fisiocratas e desenvolvidos pelos clássicos
da escola liberalista”, teriam aniquilado as noções religiosas da vida em nome de
uma “livre concorrência despida de todos os deveres morais oriundos do temor de
Deus”, pois o Manifesto de 1848 encerraria uma impotente “linha revolucionária que
derivava das próprias filosofias burguesas.” (Aliança do Sim e do Não, p. 27-28)
Neste raciocínio, limitadas seriam as inovações do autor de O Capital, que “observou

84
as realidades de seu tempo, deduziu realidades do futuro. Aceitou a doutrina do
materialismo burguês, deu-lhe seguimento, antevisionou seus resultados.” (idem,
p.75)

Logo, à Salgado pareciam incoerentes as reivindicações revolucionárias dos


partidos marxistas, uma vez que o próprio Marx negaria seu caráter transformador
ao dar prosseguimento ao materialismo, uma cosmovisão burguesa que seria
incapaz de responder às apreensões dos “Tempos Novos” e do “Homem Integral”,
que caracterizar-se-ia, por sua vez, pela íntima conexão entre o espiritual e o
material, sob a égide da moralidade cristã. Portanto, para Salgado a única
expressão genuinamente revolucionária estaria contida nas propostas espiritualistas,
que fulminando o materialismo, efetivamente provocariam uma ruptura profunda,
reversionista, mas revolucionária. Diante de uma situação de Guerra Fria que então
polarizava inteiramente as relações internacionais, em 1957 Salgado previa que
“difícil, portanto, será para as democracias capitalistas sustentarem-se no curso da
atual transformação do mundo”, já que nesta luta fraticida “o materialismo será
destruído pelo próprio materialismo e essa civilização de que tanto nos orgulhamos –
se não se embasar em alicerces espiritualistas e cristãos – não encontrará nenhum
meio de manter-se.” (Reconstrução do Homem, p.22)

Além disso, objetivando deslegitimar a propaganda de seus inimigos, Salgado


considera que a adesão popular à agitação marxista dar-se-ia mais devido a um
inconsciente impulso de reação e de contrariedade da opinião pública em face do
materialismo do que em decorrência do poder de sedução das idéias pugnadas pela
vanguarda dos partidos de esquerda:

“O pensamento que inspira o comunismo é o materialismo


e Marx é continuador dos filósofos e economistas
burgueses. Entretanto, agindo em nome das últimas
conseqüências do materialismo burguês, as massas, no
íntimo, assumem uma atitude de rebelião contra a
grosseria de uma civilização em que o ‘econômico’ tomou o
lugar do ‘moral’. Servem-se pois, os comunistas
‘politizados’ de um sentimento popular contrário à tese
materialista do marxismo, para fazer triunfar o oposto do
que as massas desejam...” (Psicologia da Revolução, p.91)

85
Assim, Salgado abstinha-se de tributar às massas a responsabilidade pelo
sucesso relativo do comunismo, preferindo pesar esta culpa sobre o materialismo
que promoveu a “ausência de Cristo nas almas” e que “não proveio das classes
trabalhadoras; a sua origem é burguesa.” Desta forma, labutar contra o materialismo
seria o procedimento mais eficaz para opor-se às duas correntes políticas, pois ”só
há, por conseguinte, um meio de combater o comunismo: é combater o espírito
burguês”. (Espírito da Burguesia, p.11-12)

3.2 Epicuristas e Estóicos: o Problema dos Costumes

No entanto, o raciocínio de Salgado induz à constatação de que a hegemonia


da percepção materialista no interior da psique moderna apenas foi obtida por meio
de uma gradual transformação moral, refletida nos costumes e nascida a partir da
apostasia dos ensinamentos cristãos. Denunciando o “espírito de transação”,
burguês por excelência, agnóstico, indiferente, excessivamente flexível,
descompromissado e permanentemente disposto a realizar “concessões
indecorosas”, Salgado firma o entendimento de que este transacionismo, uma vez
adotado pelas classes situadas no topo da pirâmide social, ressoou também nas
massas sem ilustração. Estando, pois, toda a sociedade, através da sugestão
primeira da burguesia, desligada dos princípios morais outrora fornecidos pelo
cristianismo, o comunismo veria facilitada sua ação. Neste contexto, o
anticomunismo aparentemente professado pela burguesia não passaria de mera
falácia sem embasamento prático:

“É muito comum hoje em dia ouvir-se o burguês dizer: ‘Qual


nada! O que o governo devia fazer era acabar a ferro e fogo
esses comunistas!’ Olha-se para o burguês. Está bem vestido,
com o charuto na boca. Acaba de sair do clube onde levou
duas horas a almoçar numa roda elegante. Daqui a pouco, vai
ter um encontro com uma mulher que não é a sua. Esta manhã
esteve na praia, seminu, dando pasto aos olhos nas
arredondadas formas das frinéias familiares que, por sua vez,

86
não perdem a missa, mas acham natural o nudismo. O burguês
tem uma renda farta. Vive à tripa forra. (...) e tem muita raiva
aos comunistas. ‘Oh!’ – exclama horrorizado – ‘o governo devia
fuzilar essa caterva!’ O nosso homem veta profundo desprezo
pelos humildes. (...) Não: o comunismo não se combate assim;
o burguês está enganado. O comunismo é apenas um sintoma
das conseqüências desse materialismo grosseiro de que o
burguês é a fonte principal.” (Madrugada do Espírito, p.423)

Assim, se o comunismo representa a antítese franca e absoluta da


consciência outrora advinda da moral cristã, o ambiente de “deleite” em que estaria
inserida a burguesia se caracterizaria pela defesa velada, não declarada dos
mesmos intentos do marxismo: “Se o comunista prega o amor livre, o burguês, de há
muito vive em poligamia. Se o comunismo prega a destruição das religiões, o
burguês, de há muito, caçoa de tudo o que é religião”, (Madrugada do Espírito,
p.426) porque “no que concerne à moral, o marxismo não fez mais do que adotar
como regra, às claras, aquilo mesmo que a sociedade burguesa pratica às
escondidas.” (Aliança do Sim e do Não, p.80)

De fato, é no terreno moral que a crítica de Salgado mostra-se mais incisiva,


talvez devido aos ecos do conservadorismo católico em sua estrutura intelectual. A
adoção de costumes “que fariam corar macacos”, seria a base do “mamonismo”
capitalista, que através de uma perniciosa “Aliança do Sim e do Não”, e subsidiado
pela ausência de princípios encerrada no “espírito de transação”, passa a conformar
a vida social sob a tutela de um espiritualismo formalista e insincero, que encobriria
um materialismo generalizado e soberano. Como fruto dessa união entre o culto do
gozo epicurista e o indiferentismo abstencionista dos estóicos, nasce o burguesismo,
que assiste como cúmplice a expansão comunista:

“Quem aprecia a nossa civilização burguesa, verifica que ela


nos fornece um panorama de materialismo grosseiro, em que o
prazer se torna a única finalidade. A escandalosa ostentação
dos ricos, o luxo das classes abastadas, o esbanjamento dos
milionários, o rumor das roletas e das taças de champanha
tilintantes, o esplendor pagão que caracteriza todas as
manifestações sociais, mostram-nos que, apesar de uma
protocolar exterioridade cristã, o que predomina, no fundo das
famílias, é o epicurismo, a filosofia do prazer que Epicuro

87
ensinou a tantos séculos na Grécia naturalista. A esse
desbragamento, os governos assistem de braços cruzados,
porque os governos adotam a filosofia da indiferença, a
doutrina pregada pelo velho Zenon, que tanto sucesso fez na
época da decadência de Roma. (...) Hoje, os governos
conservam-se na mesma atitude do senado romano no
crepúsculo do Império. Incapazes de agir, armam-se dessa
indiferença de cadáveres diante da tremenda luta social. E
essa luta está aberta em todos os países.”12 (Madrugada do
Espírito, p. 419-420)

3.3 A Apatia do Estado Liberal

O ordenamento liberal-democrático, por sua própria natureza, invariavelmente


aplaina o caminho para a livre passagem do comunismo. Amparando-se nesta
perspectiva, Salgado argumenta que o sistema sufragista, em decorrência do cultivo
de um excesso de liberdades e devido à instauração de um abstencionismo no que
tange à sua função de pedagogo e nutricionista axiológico das massas, funcionaria
sob permanente tensão auto-destrutiva, uma vez que o marxismo, ainda que
despreze os regramentos constitucionais das democracias, deles lança mão a fim de
impunemente promover a subversão a seu favor, seja pelo revolucionarismo político,
seja através da paulatina e silenciosa lapidação da hegemonia cultural, “ocupando
trincheiras”, como propôs Gramsci.

Afirmando tacitamente que “A democracia clássica do tipo de Rousseau não é


um instrumento idôneo de defesa do gênero humano contra a calamidade
comunista”, (Primeiro Cristo, p.201) Salgado reitera idêntico posicionamento quando
cita a democracia liberal como ponto de convergência entre os dois pólos políticos
que aqui tratamos:

12
O epicurismo, porém, é também relacionado ao marxsimo: “(...) o estoicismo liberal e o epicurismo marxista.
O primeiro torna o espírito indefeso contra as arremetidas do segundo, por consentir ação plena às dissimuladas
forças destrutivas da própria liberdade. O segundo, faz do prazer, circunscrito à vida terrena, o único objeto da
vida humana, sacrificando ao mito de uma igualdade oposta à igualdade evangélica, os direitos legítimos da
personalidade no que ela tem de essencial e eterno”. (Aliança do Sim e do Não, p.27)

88
“O liberalismo democrático é hoje defendido apenas pela
grande burguesia e pelas extremas esquerdas do proletariado
internacional. E isso se explica. Sendo o regime que não opõe
a mínima restrição à prepotência do capitalismo, é o preferido
por este, que, através das burlas liberalistas, exerce a sua
influência perniciosa no governo dos povos, em detrimento das
nacionalidades, tão certo é que o capitalismo não tem Pátria.
Por outro lado, evitando a interferência do Estado na vida
econômica das nações, e oferecendo ampla liberdade à luta
de classes, facilita o desenvolvimento marxista do fenômeno
econômico e social, preparando as etapas preliminares da
ditadura comunista.” (O que é Integralismo, p.41-42)

Se o “Estado Integral”, modelado pelo corporativismo, é apresentado, durante


a vigência da AIB, como alternativa para a construção de uma “nova autoridade”,
que por sua vez faria vir à tona “o Estado que salve o homem da ditadura cruel do
materialismo finalista e da ditadura sem finalidade da plutocracia democrática e das
oligarquias políticas e financeiras”, (A Quarta Humanidade, p.64) idêntica ênfase faz-
se presente vinte e quatro anos depois, quando Salgado, líder do PRP, assim
profere discurso na Câmara dos Deputados na Sessão do dia 12 de junho de 1959:

“Enquanto o governo soviético exerce sua política econômica


baseada nos princípios do materialismo dialético, do socialismo
dito científico, e com um objetivo prefixado, executa todos os
seus movimentos a fim de atingir a meta desejada, que
fazemos nós, no Ocidente? (...) O Ocidente não combate em
nome de nada. Será, por caso, para manter um capitalismo
cruel, açambarcador, opressivo? (...) Que força moral temos
nós para lutar? Em nome de que? Por que nos unimos? Para
defender que princípios? Que estamos fazendo no Ocidente?
Que fazem os Estados Unidos como capitão e comandante
dessa política ocidental? Nada temos realizado no sentido
verdadeiramente defensivo de uma civilização supostamente
cristã e supostamente espiritualista. Nessas condições entendo
que, desde 1945, outra coisa não se tem feito senão criar
ambiente para maior expansão da Rússia soviética.” (Salgado
apud Dórea, 1988, p.424-425)

A ânsia idealista e a construção de paralelos históricos a fim de anunciar a


agonia ocidental ficam ainda mais clarificadas na seguinte passagem:

89
“Esse é o panorama da vida moderna, dessa civilização que,
tendo perdido a força moral para enfrentar os novos Hunos,
que apontam no oriente da Europa (dispostos a substituir, por
outra mentira, a impudente falsidade de uma estrutura social
iníqua) apela hoje para o pretexto, com que se apresenta,
dizendo defender a civilização cristã. (...) os remédios
prescritos pelo Novo Mundo não são, nem podem ser eficazes,
uma vez que não passam de medicação meramente
sintomática. Como combater o comunismo, ou outros erros se
não lhe vamos às causas? De que valem planos econômicos,
ou pactos internacionais, medidas legais internas ou vigilância
contra a ação imediata da desordem, se o mal do mundo não
está no comunismo, nem na anarquia social, mas na mais
terrível das ausências, que é a ausência do Homem sobre a
Terra? O Homem desapareceu. (...) O Rei da Criação foi
destronado, perdeu cetro e corôa na aventura materialista (...).”
(Reconstrução do Homem, p. 14-15)

3.4 A “Mística” do Marxismo

Portanto, para Salgado, o fato de tal quadro delinear-se de forma tão


acentuadamente desfavorável ao liberalismo, já que a consumação de seu último
suspiro seria mera questão de tempo, dá-se como reflexo de uma alegada ausência
de ideologias mobilizadoras na mentalidade ocidental. Desencantado, como na ótica
de Weber, sufocado por um niilismo racionalista que teria tido amplificação na lógica
democrática, o ocidente liberal seria incapaz de bater-se em igualdade de forças
com o comunismo. Entretanto, o socialismo real, no raciocínio de Salgado,
surpreendentemente estaria criando uma espécie de misticismo idealista, na medida
em que passa a formular um sentido afirmativo, propositivo, que seria superior a
“quem dá de ombros”, ou seja, ao epicurismo agnóstico do liberalismo, pois

“O Estado Marxista, partindo do materialismo histórico, em


oposição ao espiritualismo, sistematiza de tal forma e tão
corajosamente a negação que esta se torna afirmativa.
Considerar é afirmar. O comunismo nega o espírito. Por
conseguinte, considera; portanto afirma. (...) Na Rússia, o
marxismo pôde acelerar espantosamente a marcha para o
misticismo materialista (...) A febre mística da Rússia, com suas

90
superstições, seu espírito de martírio, sua ânsia de infinito, tudo
isso não podia caber dentro de uma vulgar república
democrática, onde os governos e os estadistas se
desinteressam pelas causas primárias e finais.” (Madrugada do
Espírito, p.354-355)

Logo, entendendo o marxismo como um inconformismo idealista diante de


uma cultura materialista, Salgado considera que Marx, tendo extremado o
materialismo à última tensão, acaba por promover um sentimento profundamente
idealístico, que iria dotar-se de nuances místicas com a idolatria à figura de Lênin
sendo instigada e oficializada pelo regime soviético, precisamente aquele que
pretendia-se cabeça-de-ponte para construir a materialização da utopia comunista:

“A estátua de Lenine é a adoração das massas em torno do


grande ídolo que, longe de ter uma significação negativista,
exprime, através da sublimação política, a cristalização do
fenômeno religioso sob a compreensão do dogmatismo
científico. O fenômeno russo já não pode ser tomado, em
hipótese alguma, como uma expressão da negação do espírito,
de aspirações transcendentes. A luta que se abriu no país do
sovietes contra todas as religiões foi um movimento ao qual
podemos denominar sem receio de erro: o grande movimento
religioso da Rússia.” (idem, p.352-353)

Apontando mais uma pretensa contradição do socialismo, Salgado adverte


que a outorga de uma infalibilidade divinizada para Lênin (como, aliás, ocorreria
posteriormente em relação a Stálin), geraria indissolúvel conflito lógico frente ao
próprio anti-individualismo da teoria marxista, pois, se o Pravda, de acordo com a
atmosfera de totemização ao chefe revolucionário, sugere que “‘Lenine está sempre
certo’”, haveria uma submissão da massa coletiva ao sujeito particular: “O
Coletivismo ajoelha-se diante do indivíduo.” (ibidem, p. 356)

Servindo-se de uma linguagem propositadamente paradoxal, Salgado choca


as duas cosmovisões e suas conseqüências em face de uma situação pragmática:

“(...) a civilização espiritualista não acredita no valor do


Espírito; e a civilização materialista não acredita na eficácia

91
exclusiva dos elementos materiais. É a maior das contradições
do mundo moderno. Outra prova de que os que defendem a
civilização dita cristã, ou tida por espiritualista, não agem
senão materialistamente, está no fato de não existir uma
capacidade mística de sofrimento, de sacrifício, entre aqueles
que dizem ser adversários do comunismo, ao passo que é
evidentíssimo esse poder de idealismo, de sonho, de
dedicação completa aos seus objetivos, nos agentes do
comunismo internacional.” (Espírito da Burguesia, p.202)

Surgiriam, assim, “o espiritualismo materialista e o materialismo espiritualista”,


que envolvendo o mundo como “duas tenazes”, hiperdimensionariam “a loucura dos
homens nas suas contradições à face de Deus.” (idem, p.207)

3.5 Evolucionismo Político/Darwinista

De acordo com a pretensa existência de um concluio íntimo e abrangente


entre o liberalismo e o socialismo, Salgado entende que ambos, de um lado,
direcionam suas políticas para um ritmo sucessório pré-determinado e, de outro,
respondem aos pressupostos fundamentais do darwinismo social em si.

No que concerne ao campo dos acontecimentos políticos, “o comunismo se


apresenta como a conseqüência lógica da evolução econômico-social de uma
sociedade execrável, sem piedade, sem coração e sem Deus.” (Salgado apud
Dórea, 1988, p.147) Assim, “as desgraças do coletivismo absorvente e totalitário são
conseqüências do individualismo exagerado do mundo capitalista”, que minando as
resistências morais e os ordenamentos éticos da sociedade outrora espiritualista,
“prepara o advento do coletivismo marxista.” (idem, p. 93) O modo de vida adotado
pelas populações sob controle do socialismo apresentar-nos-iam, “por antecipações,
o panorama das conseqüências fatais a que deverá chegar o epicurismo burguês.”
(Espírito da Burguesia, p.14-15)

92
Tal conformação, entretanto, teria tido seu sopro inicial “desde a Enciclopédia
e, principalmente, depois da Revolução Francesa”, uma vez que seria a partir de
então que a burguesia inicia o processo de criação de “ficções” elevadas ao grau de
“tabus” (“sufrágio universal”, “civismo”, “liberdade”, “livre-pensamento”), da mesma
forma que, para Salgado, o fez o marxismo com os termos “‘luta de classe’, ‘pressão
das massas’, ‘socialização dos meios de produção’, e outras.” (A Quarta
Humanidade, p. 98) Segundo Salgado, “há um profundo espírito de identidade entre
a Revolução Francesa e a Revolução Russa, e por mais contrastantes que pareçam,
as Declarações dos Direitos do Homem em 1789 identificam-se com as Declarações
do Congresso dos Soviets em 1918.” (Direitos e Deveres do Homem, p. 202)

De fato, ao novamente relacionar a democracia com os intentos finais do


liberalismo e do marxismo, Salgado promove uma analogia entre a expansão
daquele e o evolucionismo soreliano, em nítida alusão aos preceitos da II
Internacional Socialista:

“Dessa identidade de idéias, de sentimentos e de fins


desnacionalizantes, origina-se a mesma aspiração política das
duas correntes (capitalismo e comunismo). Essa aspiração é a
liberal-democracia. Só esse regime convém aos representantes
dos ‘trusts’, monopólios, sindicatos, bancos e companhias; aos
interesses internacionais do capitalismo; aos interesses
pessoais da avareza e da ambição sórdida. Porque esse é o
regime das máximas liberdades, para todas as negociatas,
para todas as opressões contra o proletariado, para o
predomínio dos plutocratas (...). E também só esse regime
convém aos adeptos do marxismo, porque esse regime,
abandonando as forças da produção ao seu próprio destino,
não permitindo praticamente ao operário que ele se represente
nas assembléias – pois pelo sufrágio universal só se elegem os
ricos, os medalhões ou os demagogos anarquistas (...). O
liberalismo entra, por conseguinte, no plano darwinista de
Sorel, quando preconiza, no seu livro Reflexões Sobre a
Violência, a franca expansão da burguesia.” (Salgado apud
Dórea, 1988, p.64,)

Salgado observa em Sorel a idéia de que o aumento da concentração de


poder econômico em uma parcela privilegiada da burguesia fatalmente provocaria

93
uma proletarização gradual das classes médias, situação que geraria uma
insurreição violenta da massa proletária segundo os desígnios do marxismo:

“(...) a marcha inexorável do Capital, que desconhece toda e


qualquer autoridade e exerce o seu predomínio e o seu
fascínio arrebatador sobre o panorama da nossa civilização, é
do deslocamento das riquezas de pluriproprietários para o
menor número de detentores, como será um dia, do menor
número de detentores para o detentor único, isto é, o Estado
Capitalista. A linha geral do desenvolvimento do Capital
traçada por Marx está hoje se tornando bem nítida. (...) o
perigo comunista no mundo contemporâneo não se acha nas
massas proletárias, mas na própria política da burguesia
capitalista.” (idem, p.67)

Opondo a tese da ruptura violenta de Sorel à harmonia funcionalista da


Doutrina Social da Igreja, Salgado também identifica nos pressupostos darwinistas
alguns dos pilares formadores do liberalismo e do marxismo. Ao criticar a teoria do
transformismo de Darwin, que preconiza a sobrevivência do organismo mais forte e
adaptado, Plínio entende que “a civilização capitalista foi construída segundo essa
‘moralidade’, que penetrou até no seio das famílias e inverteu todos os valores na
sociedade.” (Psicologia da Revolução, p.89) Vítima do materialismo e da busca do
lucro desenfreado (“mamonismo’), o mundo capitalista teria apartado-se dos
sentimentos de caridade cristã, penetrando na ética que, transposta do darwinismo
científico para o terreno social, inaugura a mentalidade individualista da competição
desigual e desapiedada em busca de ascensão e status. Mas se capitalismo baseia-
se na luta como sistema de ordenamento social, não seria outra a lógica adotada
pelo marxismo:

“Era lógico, portanto, que Karl Marx, o fundador do comunismo,


sendo um burguês e filho do século XIX, imprimisse à
sistematização da sua obra o mesmíssimo timbre da filosofia
burguesa, que é a filosofia da luta estúpida e cega do
materialismo justificador dos triunfos dos fortes sobre os fracos.
(...) Basta, aliás, ler as reflexões de Sorel para se ter presente,
no espírito do sindicalismo revolucionário em que também se
baseou Lenine, a identidade do pensamento darwiniano, do
pensamento burguês dominante em todas as teorias da
Evolução.” (Madrugada do Espírito, p. 403)

94
Assim, subsidiados pelo experimentalismo evolucionista de Spencer e
Haeckel, além do struggle for life darwinista, liberalismo e marxismo ignorariam as
potências do espírito humano ao limitar sua existência à luta, classista no caso
marxista e individualista no caso liberal. Este conflito estaria de tal modo
disseminado que “o combate não é apenas entre o Capital e o Trabalho”, tidos por
irreconciliáveis, mas “entre o trabalho e o mesmo trabalho, que fica entregue às leis
da concorrência.” (A Quarta Humanidade, p.77)

Desta forma, os ecos do darwinismo sobre o arcabouço teórico e sobre a


práxis dos dois sistemas políticos, são, na ótica de Salgado, bastante elásticos,
abrangendo desde uma evolução política que teria na crescente acumulação
desigual do capital um impulso para a proletarização das massas e o subseqüente
advento do socialismo, até a adoção de princípios filosóficos similares, como é o
caso da idéia de luta como motor da transformação social:

“A filosofia materialista que inspira o comunismo marxista é a


mesma adotada pelo capitalismo para justificar a opressão do
proletariado. O sociologia mecânica de Spencer, assim como a
sociologia positiva de Comte baseiam-se na evolução natural.
Tudo foi negado ao espírito, tudo se subordina ao
determinismo das forças naturais. O ‘struggle for life’ de Darwin
é a mesma lei inspiradora da economia liberal; o domínio do
mais forte foi o princípio moral. Esse critério é anti-
revolucionário. Entretanto Marx se subordina a ele. Em filosofia,
segue a linha nítida dos materialistas burgueses. Em economia,
declara-se continuador de Adam Smith. Para sermos
anticapitalistas, precisamos ser anticomunistas.” (A Quarta
Humanidade, p.106)

3.6 Propriedade e Trabalho

Imbricada à idéia da associação evolucionista está a concepção capitalista e


socialista no que tange à propriedade e ao trabalho, conforme Salgado a

95
compreende. Quanto ao capitalismo, a lógica de acumulação irrefletida a que teria
subordinado-se, o levaria, no intuito de fortalecer ainda mais os detentores do
poderio econômico plutocrático, a oprimir economicamente as massas empobrecidas
através de impostos crescentes que, em última análise, ameaçariam o mesmo direito
de propriedade que é amplamente questionado pelo marxismo, “pois o capitalismo
atenta contra o princípio da propriedade, absorvendo dia a dia as posses dos
pequenos, prosseguindo na sua obra marxista de proletarização das classes
médias.“ (idem, p.110)

No entanto, Salgado vislumbra que uma tal prática por parte do aparato
capitalista encontraria paralelo na planificação do socialismo, cujo Estado, ao
apoderar-se inteiramente da propriedade e dos meios de produção, estaria
simplesmente assumindo a posição dos antigos detentores individuais capitalistas:

“O trabalho humano foi considerado uma mercadoria sujeita à


lei da oferta e da procura, perdendo toda a nobre significação
e espiritualidade que lhe imprimia o cristianismo. (...) Foi
dentro de tal situação que o Manifesto Comunista de 1848
lançou o brado: ‘Operários de todo o mundo, uni-vos!’ Esta a
luta impropriamente denominada ‘do capital e do trabalho’,
porque na verdade o marxismo não pretende suprimir o capital
como soma de trabalho acumulado, mas apenas como
privilégio de indivíduos ou de grupos, passando, entretanto, o
capital para as mãos do Estado, que se torna o único patrão e
que exerce a função dos antigos capitalistas substabelecendo
os seus poderes a favor de uma burocracia, o que vem, em
última análise, recompor a situação anterior do predomínio de
uma classe.” (Primeiro Cristo, p.198-199)

Haveria, portanto, na instrumentalização socialista, a permanência de uma


classe hegemônica de poder político e econômico, diferenciando-se da nuance
capitalista apenas ao outorgar tal supremacia à burocracia estatal oriunda do Partido
Comunista, enquanto este a entrega a indivíduos e corporações privadas. Assim,
Salgado opõe-se à mercantilização do trabalho empreendida pelo sistema produtivo
do capitalismo, “a qual faz do labor humano simples mercadoria sujeita à lei da
oferta e da procura”, bem como aos mecanicismos utilitários da lógica marxista, que
“tomam o trabalho como um complemento das matérias primas na formação de

96
utilidades” acusando-os de suprimir a idéia sacra, espiritual do labor e de seus
frutos, uma vez que “nenhuma das duas vê no trabalhador uma criatura de Deus,
com necessidades tanto materiais quanto espirituais.” (Salgado apud Calil, 2001,
p.335)

3.7 Cosmopolitismo: Rothschild e Trotski

Conforme o já analisado em trechos antecedentes, Salgado declarava-se


escudeiro inquebrantável do nacionalismo, visionando no cultivo das tradições e no
apreço pela cosmovisão sertaneja, que, alheia aos grandes centros urbanos,
encanaria a mais remota e autêntica essência do Brasil. Aliando-se tal premissa ao
seu antimodernismo, nota-se no pensamento de Salgado uma profunda aversão ao
cosmopolitismo e suas conseqüências. No entanto, o fato até aqui desprezado
refere-se à identidade de finalidades que Plínio, também neste pormenor, vislumbra
entre as propostas marxistas e liberais. Valendo-se de uma didática dualista à
Maniqueu, Salgado assinala que enquanto o capitalismo atenta contra a unidade
nacional através da apologia e propaganda pró-separatista, o comunismo
desorganiza a estrutura econômica das nações sob forma de greves e articula a
popularização do ideário que enxerga as Pátrias como meras ficções burguesas,
ambos concordando, porém, com o internacionalismo, ainda que particularizado:

“Estamos hoje entre dois fogos: Londres-Nova York e Moscou.


A campanha comunista, fingindo-se anticapitalista, tem por fim
desorganizar as forças de produção nacional, de modo a nos
submeter, cada vez mais, ao imperialismo financeiro dos
magnatas do ouro. Estamos ameaçados pelas duas bestas
apocalípticas: Rothschild e Trotski. Ambas trabalhando
surdamente pela nossa desagregação, pela nossa maior
confusão (...). O capitalismo internacional fomenta
secretamente as tendências separatistas, para enfraquecer a
Nação. O comunismo russo incute no espírito das massas que
a Pátria não passa de um convencionalismo. Perdemos, assim,
dia a dia, a nossa resistência nacional.” (Salgado apud Dórea,
1988, p.65).

97
A lógica de ambos os sistemas, portanto, seria a mesma: combatendo as

tradições nacionais, a meta seria internacionalizar os grupamentos humanos, seja

pela mundialização econômica, seja pela uniformização ideológica em escala global.

3.8 Superando os “Preconceitos do Século XIX”

Incorporada a sua busca de apresentar-se como portador de postulados


novos, promotores da “revolução interior” que faria emergir o “Homem Integral”, bem
como de idéias desprovidas dos influxos advindos das atmosferas permeadas pelo
cientificismo racionalista, Salgado identifica o século XIX como o marco que
secularizou definitivamente a sociedade, mecanizou o homem e desencadeou os
“preconceitos” político/filosóficos que deram gênese à última fase da mentalidade
moderna (primordialmente erigida após a Revolução Francesa) . Vivamente
impactado pelas recentes descobertas científicas, que então avolumavam-se como
que a prenunciar a aceleração do tempo histórico que posteriormente assistiríamos
já no ocaso do segundo milênio, o século XIX seria a grande “Babel”, o “Panteão dos
novos deuses” que viria impedir o relligiare entre os homens e Deus:

“As correntes filosóficas em moda tiravam partido dos


progressos técnicos para negar a existência de Deus e da
imortalidade da nossa alma, e muitas vezes – o que é ainda
pior – aconselhavam a abstenção completa das cogitações
acerca das origens e finalidades do universo e do Homem.
Nascia o agnosticismo, a mais orgulhosa das formas de negar
(...). Começava o período histórico, ainda não terminado, que
se distingue principalmente pelo fanatismo das palavras ocas e
pela idolatria das frases de sentido abstrato com que se
pretende substituir a disciplina religiosa.” (Aliança do Sim e do
Não, p.27-28)

Os tempos oitocentistas, onde o homem teria tornado-se um “boneco de


carne”, uma época que “tem gosto de cocaína e parece a marcha fúnebre do

98
prazer”, onde lar foi substituído pela “máquina de morar” e criou-se um sentimento
de “pavor do infinito”, parece possuir, segundo a ótica de Salgado, um intuito
anticristão bastante evidente: “Todo o século XIX foi um movimento nesse sentido:
arrancar do homem a tristeza do cristianismo” (Madrugada do Espírito, p.362), já que
o Ser Humano “hoje volta-se para uma forma imprevista de teocracia. Quer ser
governado pelos Sumos Sacerdotes do Ateísmo.” (idem, p. 348) Parafraseando
Kant, para quem a Humanidade despertara do sonho dogmático da Idade Média,
Salgado considera que em verdade a civilização “adormeceu no sonambulismo
agitado das suposições transitórias”, pois “as últimas décadas do século XIX foram
governadas pelas hipóteses.” (ibidem, p.385)

Conforme essa perspectiva, liberalismo e comunismo seriam filhos do século


XIX, genuínos propagadores da sua estrutura valorativa que está consubstanciada
no “espírito da máquina”:

“O ‘espírito da máquina’ é esse sentido de materialismo e de


mecanização da sociedade que dia a dia se acentua pela
trituração da pessoa humana e dos grupos naturais nas
engrenagens do industrialismo, do super-capitalismo, do
estatismo absorvente, que são os precursores técnicos do
comunismo bolchevista, do qual o liberalismo representa o
papel de veículo.” (Aliança do Sim e do Não, p.31)

Entretanto, a idéia de uma revolução depositária de “valores novos”, antitética


ao século XIX e sua mentalidade, bem como a formulação de uma “Quarta Posição”
que superaria a convergência de finalidades pretensamente oculta no interior do
comunismo e do capitalismo transparece de modo ainda mais sintomático na
passagem de um livro cujo título, Palavra Nova dos Tempos Novos, por si só, não
deixa de ser bastante sugestivo:

“Não nos colocamos no ponto de vista nem da burguesia, nem


do proletariado. Não estamos nem com os nacionalistas cegos,
sentimentais e ditirâmbicos, nem com os internacionalistas
utópicos que pretendem unir os indivíduos por cima das
Pátrias, proclamando a união dos trabalhadores do todo o
mundo, como o fizeram os profetas falidos da II e da III

99
Internacional. Não rompemos ofensiva contra a burguesia, mas
contra o espírito do século da qual ela é um produto concreto;
não contrariamos as justas aspirações do proletariado, mas
queremos arrancar o proletariado da concepção unilateral da
vida em que o lançaram, para explorá-lo, sem resolver a sua
situação, que é apenas uma conseqüência da própria
mentalidade do século XIX. Negamos a lição de Marx (...) Para
nós, que viemos depois de Einstein, que viemos depois de
declarada a falência evolucionista em que se estribou a política
da burguesia (...) só existe uma revolução: a revolução do
século XX contra os preconceitos do século XIX.” (Palavra
Nova dos Tempos Novos, p.252-253)

Ainda detendo-nos no que diz respeito à “Revolução Integral” e aos conceitos


irradiados pelo século que assistiu a independência do Brasil, Salgado protesta
contra a limitação dos horizontes e da capacidade transformadora do homem que
estaria sendo advogada por liberalismo e marxismo. Este unilateralismo seria inferior
à visão “Integral’, “Palavra Nova” que afirmando a ação inovadora dos sujeitos,
opunha-se ao determinismo sob todas as suas formas: “A filosofia e a política
burguesas, de fundo estóico, afinavam-se no sentido de negar a possibilidade da
interferência do homem na modificação da marcha social. Tudo devia subordinar-se
ao ritmo normal do determinismo, não sendo, de forma alguma, possível a ação
transformadora da idéia.” (A Quarta Humanidade, p.99) Salgado, pelo contrário,
prefere tomar o homem

“(...) na sua realidade material, intelectual e moral, e por isso,


repudiamos tanto a utopia liberalista como a utopia socialista.
A liberal-democracia pretende criar o monstro, sem estômago.
O socialismo marxista pretende criar o monstro que só possui
estômago e o sexo. Em contraposição ao místico liberal e ao
molusco marxista, nos afirmamos o Homem-integral.” (O que é
Integralismo, p.36)

E a lapidação deste “Homem Integral” dar-se-ia sob um prisma diferencial,


capaz de encerrar princípios diversos do individualismo liberal, “epicurista”,
“conformista”, “medíocre”, e do coletivismo marxista, que “quer a destruição do
indivíduo que será assimilado, para sempre, no monstro Coletividade.” (Madrugada
do Espírito, p.365-396) Não obstante, Salgado anuncia a composição de uma

100
“Quarta Posição” quando repudia também o modo interpretativo de Nietzsche, que
uma vez tendo dado animação ao seu “Super-Homem”, orgulhoso, altivo e forte, teve
apropriado seu pensamento pelo nacional-socialismo, que por sua vez pretendeu
materializar o protótipo dos heróis de Zaratustra em uma hiperbórea Nação ariana
superior. Assim, o “Homem Integral” não é o “agnóstico” e “indiferente” nascido do
liberalismo, nem o “molusco marxista”, ou tampouco “a atitude anticristã de desprezo
aos humildes, de glorificação dos homens superiores”, como pensou o filósofo
alemão autor de O Anticristo: “O marxismo quer os anões de Niebelungen; Nietzsche
conclama os gigantes da montanha. Nós, cristãos, não queremos nem o anão, nem
o gigante, mas, apenas, o Homem. O Homem Integral.” (Madrugada do Espírito,
p.397)

Segundo Plínio, “é aqui que se encontram Nietzsche e Marx. Partiram de


extremidades opostas, mas atingiram o mesmo ápice. Ambos filhos do
individualismo de Rousseau e do materialismo científico”, pois uma concepção
dependeria da outra, e “para existir o Super-homem de Nietszche, é necessário que
exista a massa coletiva de Marx. E para que exista o coletivismo marxista é forçoso
existirem Super-homens dirigentes.” (Aliança do Sim e do Não, p.41-42)

Na ótica de Salgado, tais concepções, retiradas do terreno teórico e


implantadas na logística organizacional do Estado, provocariam distorções típicas de
um lapso histórico que precisaria ser ultrapassado: “A idolatria da Massa, na Rússia,
como a idolatria do Homem, na Alemanha ou na Itália, como a idolatria do voto, nas
liberais-democracias, são todos resíduos de um século morto.” (Páginas de Ontem,
p. 257)

3.9 Os Três Totalitarismos

Contudo, durante a fase que assistiu a ressignificação ideológica de Salgado,


percebe-se que o anti-sistemismo enfático da AIB cede lugar a uma postura de
conformação com o sistema democrático. Embora Calil (2001, p.136-137) sustente

101
que no correr do funcionamento do PRP “a associação entre comunismo e nazismo
substituía a associação anteriormente estabelecida, entre liberalismo e comunismo”,
nota-se, em verdade, que se a crítica à organização liberal-democrática de fato tem
menor incidência (ainda que não tenha sido de todo anulada), a antiga associação
entre comunismo e liberalismo permanece inteiramente na pauta de Salgado. Se a
aversão ao totalitarismo nazi-fascista poderia ter-se formatado a partir de uma
imposição das circunstâncias políticas hostis do pós-guerra, diríamos que o que
realmente ocorreu foi uma incorporação do elemento fascista à ligação
comunismo/liberalismo, que anteriormente operacionalizava-se de maneira dual e
passa a ser tridimensional a partir de então. Corrobora para a solidificação desta
afirmativa o fato de que os livros Espírito da Burguesia e Mensagem às Pedras do
Deserto, ambos vindo à tona depois de 1945, contém numerosas combinações entre
socialismo e liberalismo, sem a adição do fascismo.

Quando acrescentado este último, no entanto, Salgado condena os três tipos


de totalitarismos, realçando suas práticas unilaterais e monistas:

“O totalitarismo nazista colocou em primeiro ligar a Raça (que


ele confundia com Nação e Estado); o totalitarismo socialista
(I, II e III Internacionais) coloca em primeiro lugar a
Coletividade; o totalitarismo capitalista (que atua à revelia dos
Estados ou influindo sobre eles) coloca em primeiro lugar o
negócio; mas há uma quarta espécie de totalitarismo, o
individualista-liberal, ou liberal-democrático, ou simplesmente
o liberalismo, que coloca em primeiro lugar a Liberdade, isenta
de todos os deveres e por isso atentatória das legítimas
liberdades do Ser Humano. Mito dos tempos modernos, essa
liberdade exclui toda consideração do Homem, o qual não é
por ela tomado segundo sua realidade, a sua natureza e os
seus fins.” (Direitos e Deveres do Homem, p.252)

Ainda que se perceba a referência a uma “quarta espécie de totalitarismo, o


individualista-liberal”, preferimos entender que tal distinção foi adotada com base em
uma separação entre o sistema econômico capitalista e o liberalismo político,
raciocínio que é uma exceção no pensamento de Salgado, na medida que ambos os
conceitos aparecem ordinariamente interligados.

102
Porém, uma vez que “fascismo é sinônimo de comunismo. Ou mais
propriamente, o comunismo é o fascismo russo” (Salgado apud Calil, 2001, p.301), o
nazi-fascismo é agora também acusado de aderir ao materialismo, possuindo bases
filosóficas similares àquelas defendidas por seus contendores, que ao proporem,
todos eles, um embasamento estatal que desconsideraria o espiritualismo, estariam,
por conseguinte, vislumbrando a personalidade humana sob uma ótica parcial,
unilateral, fragmentada, não integral:

“O nazismo, por exemplo, foi considerado por muitos um


movimento das ‘direitas’ mas sua base filosófica era a mesma
do comunismo, pois partia de uma concepção meramente
biológica do homem e de nítido conceito materialista da crítica
histórica e os seus fins identificavam-se com os do comunismo,
pela ereção de um Estado Totalitário destruidor da
personalidade humana. As chamadas democracias poderiam
ser tomadas como expressões das ‘direitas’ colocando-se num
campo antagônico ao totalitarismo soviético, mas essas
democracias, além de serem agnósticas, isto é, não
considerarem os problemas do Espírito, fundam-se no mesmo
princípio doutrinário da transformação social segundo o
ilimitado processo dialético de Hegel adotado pelo marxismo,
porque subordinam os tipos de Estado e de governo as formas
sociais e as normas jurídicas, não ao critério de uma imutável
concepção do mundo e das leis imprescindíveis da moralidade
impostas por Deus, mas ao critério aritmético das maiores
somas de votos, o que leva as ditas democracias a negarem-se
a si mesmas nas conseqüências dos atos eleitorais. Temos,
assim, uma nova forma de totalitarismo, o totalitarismo das
democracias agnósticas, totalitarismo despótico das massas,
cujo peso quantitativo, (...) atenta contra todo princípio moral,
nada impedindo que pela força das massas majoritárias sejam
os fundamentos da religião e os próprios princípios da
liberdade postergados e suprimidos. Fica assim também
provado que a democracia clássica não é um instrumento
idôneo de defesa do gênero humano contra a calamidade
comunista.” (Primeiro Cristo, p.200-201)

De fato, todas as alternativas políticas que insinuam-se diante dos povos,


representam, para Salgado, formas imperfeitas, forças perniciosas organizadas pelo
demônio, “o velho Lusbel”:

103
“Hoje, o velho Lusbel organizou várias hostes: uma se chama
‘a mão estendida’, forma execrável de certo liberalismo dito
cristão; outra se chama ‘neo-fascismo’, ou seja, o
ressurgimento de uma concepção absorvente do Estado; outra
se chama ‘socialismo’, com predominância do econômico
sobre o espiritual; outra se chama ‘esquerdismo’, com
proclamações de que o mundo marcha para a esquerda; outra
se chama ‘capitalismo’, com aparências imediatas de
anticomunismo, porém com a mesma mentalidade
mecanizadora dos adeptos da teoria marxista.” (Espírito da
Burguesia, p.221)

A “luta contra uma civilização”, máxima amplamente utilizada no período


integralista, reassume sua atualidade, agora sob forma do apelo pela necessidade
de plasmar-se um “Homem Novo dos Tempos Novos”, que sob a regência do
espiritualismo cristão, é tido como único ente idealístico redentor capaz de opor-se
ao materialismo e seus arautos, o socialismo, o liberalismo e o nazi-fascismo:

“(...) essa civilização guarda, inconfessado e tenebroso, o


princípio catastrófico de um totalitarismo, o qual, à maneira dos
icebergs, emerge, aqui ou ali, as suas pontas reveladoras, sob
as formas do nazismo, do capitalismo ou do liberalismo. (...)
Lançar no mundo o Homem Novo dos Tempos Novos. Retornar
ao equilíbrio, depois da fantasia delirante do Super-Homem
nietzscheano e das visões degradantes dos sub-homens
marxistas; depois do ser amorfo, de alma congelada, do
agnosticismo liberal, e do monstruoso Frankstein centaurizado
à justaposição das máquinas a que adere como peça
adequada ao ritmo das propulsões elétricas ou mecânicas.
Reconduzir o Homem àquele esplendor das harmonias divinas
(...)”. (Reconstrução do Homem, p.17)

104
CONCLUSÃO

Uma vez constatada a elevada influência política exercida por Salgado ao


longo de sua trajetória pública, aí visualizando um locus apropriado para nossos
estudos, procuramos inicialmente colher subsídios que pudessem clarificar a origem
e o substrato primeiro de sua mentalidade. Percebemos, então, que se o
nacionalismo sentimental do chefe integralista bebeu nas fontes do indianismo
advindo dos modernistas de 1922 e da visão telúrica e romantizada do homem
sertanejo/interiorano e sua atmosfera simbólica, a dimensão pragmática deste
nacionalismo, agora mais voltado à reforma das instituições, encontrou alicerces nos
apontamentos de Alberto Torres e Oliveira Vianna. Da mesma forma, concluímos
que o espiritualismo de Salgado, questão que lhe foi permanentemente caríssima,
teve gênese a partir das reflexões filosóficas de Farias Brito, remetendo desta
filosofia, metamorfoseada e somada a outros elementos, as bases para a opção
católica e antimoderna de Plínio.

Cumprida a fase primeira de nossa abordagem, estando já mapeadas as


fontes teóricas da cosmovisão de Salgado e a conjuntura de profundas
transformações culturais, políticas e econômicas em que esteve ele inserido,
canalizamos nossa ótica para a análise da afirmação e desenvolvimento dos dois
movimentos políticos que liderou: a Ação Integralista Brasileira e o Partido de
Representação Popular. Símbolo máximo do ápice de Salgado como formador de

105
opinião, o integralismo imprimiu as marcas que Plínio deixaria na história, enquanto
o segundo movimento significou a releitura de seus preceitos ideológicos, que
tiveram na conformação ao sistema eleitoral democrático e no abandono, portanto,
do anti-sistemismo, sua faceta mais dramática. Percebe-se nesse pormenor as
sutilezas da relação dialética entre o homem e o correr da história, entre o idealismo
do onírico dever ser e os ditames por vezes frustrantes da ordem cotidiana.

Contudo, se os esforços de construção deste trabalho até então direcionaram-


se à decodificação da formação intelectual e da caminhada política de Salgado,
outro não foi nosso intuito senão o de amparar a idéia central da dissertação,
desenvolvida no capítulo terminal, ou seja, buscar compreender a lógica funcional do
anticomunismo concebido pelo líder integralista. Como se sabe, a aversão aos
projetos oriundos do marxismo ocupou, ao lado do espiritualismo e do nacionalismo,
o lugar de primazia na apologética de Salgado, tanto na fase integralista quanto no
período que abrange a ressignificação ideológica de após-guerra.

Como se não bastasse tal justificativa para despertar o interesse pelo tema
aqui versado, nos parece que a fórmula anticomunista plasmada por Salgado
assume feições de extrema singularidade na medida que sua mecânica associa o
“espírito burguês” fermentado pela logística capitalista e liberal-democrática ao
imaginário marxista, que capilarizado para a ação política, ressoa no socialismo e na
sua sucessão pelo comunismo. Particularmente instigante pareceu-nos esta ligação
quando notamos que, além de constar ordinariamente nas obras e no discurso de
Salgado, a ela foram incorporados os mais variados elementos, partindo do
materialismo e das debilidades defensivas do Estado Liberal, até o evolucionismo
(científico e político), o cosmopolitismo, o idealismo, o problema da moralidade dos
costumes, a tensão entre propriedade, capital e trabalho, culminando a associação
na presunção de uma identidade de fundamentos e finalidades que, finalmente, une
o totalitarismo nazi-fascista ao liberalismo e ao comunismo como depositários dos
mesmos erros.

Promover o debate acadêmico em torno desta temática é nosso supremo


propósito, tarefa para a qual, supomos, conseguimos contribuir, ainda que

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modestamente. Cremos firmemente que trata-se esta iniciativa de um dever e de
uma gratificação, simultaneamente.

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