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uma explosão na beira d’água.

Um lindo peixe dourado e abó-


bora, com escamas pontilhadas de negro, saltou bem na nossa
frente, fazendo um cardume de lambaris e piaus pularem es-
pavoridos para todos os lados, inclusive para a margem que
estava seca. Eu estava usando o equipamento de bait casting
que, naquela ocasião, fazia jus ao nome inglês (literalmente,
lançamento da isca). A isca era um pedaço de filé de piau.
Imediatamente, lancei minha isca onde o peixe tinha es-
tado alguns segundos antes e fui imediatamente recompensado
com um arranco brutal. O primeiro dourado de minha vida esta-
va fisgado. Após as corridas e saltos característicos da espécie,
o José embarcou o peixe. Eu estava fisgado e sabia que daque-
le dia em diante não descansaria enquanto não pegasse outro.
Os anos se passaram e tive a sorte de fazer pescarias
A saga d o d o u r a d o memoráveis de dourados nos rios Aquidauana, Piquiri, Ta-
quari e, a mais sensacional de todas, no Rio Apa, na fronteira

U
do Brasil com o Paraguai. Nesse rio, praticamente virgem na-
m dos peixes brasileiros de água doce que mais me quela época, onde vimos até onças em suas margens, ficamos
impressiona até hoje pela sua beleza e esportividade acampados no trecho onde ele se encontra com o Rio Perdido
é o dourado (Salminus maxillosus). Ele deveria ser o e onde começa, por mais de quinhentos metros, uma série
representante da nossa fauna ictiológica e sua imagem deveria de corredeiras, cachoeiras e poções. Pescávamos caminhando
figurar nas nossas cédulas de cem reais, no lugar da garoupa, pelas pedras e pelas pequenas praias que margeavam o rio
peixe sem nenhum charme e carisma e encontrado em qualquer naquele trecho. A nossa chegada ao local coincidiu com uma
oceano do mundo. Na Argentina, o dourado é venerado pelos piracema de dourados. Eles faziam a água fervilhar ao ataca-
pescadores que o chamam de “El tigre” e ele é protegido rem cardumes de piaus, piranhas e corimbatás que subiam
ferrenhamente pelas autoridades, que sabem reconhecer o seu as corredeiras desesperadamente, tentando fugir das suas
valor e beleza. Aqui, o Ibama permite que ele e o surubim mandíbulas poderosas. A concentração de peixes abaixo das
sejam arpoados no Rio São Francisco, logo abaixo da Represa cachoeiras aguardando vez e coragem para subir era inacredi-
de Três Marias, enquanto multa pescadores ribeirinhos de tável e só se via lombos de peixes de todos os tamanhos lado a
piau e mandi por não terem licença. lado. Não havia espaço vazio em toda a superfície d’água!
A primeira vez que tive contato com um dourado foi Eu usava o mesmo equipamento de pesca: uma car-
naquele dia longínquo de primavera de 1952, baixando o Rio retilha Penn 109 em uma vara leve de fibra de vidro South
Piquiri, no Pantanal de Mato Grosso, ao sabor da corrente, Bend e um jig de penas amarelas. Resumindo: pesquei, só no
numa canoa cavada em tronco de árvore. Eu e o José, garoto primeiro dia, mais de dez dourados – todos entre nove e onze
que tinham me designado como guia, descíamos o rio a uns quilos –, parando porque já não tinha mais forças. Cada arre-
cinco metros da margem quando fomos surpreendidos por messo que fazia era um peixe!

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Alguns anos depois, quando descobri a pesca com conhecida por Orán. Iríamos pescar no Rio Bermejo, na parte
mosca, sabia que teria de pegar um dourado num streamer, acima da ponte internacional que liga a Argentina à Bolívia.
num rio com as características daquele trecho do Rio Apa, Nesse trecho, o rio é sinuoso, estreito e não navegável. Mas, era
da Cachoeira das Palmeiras e do Sabão, no Taquari, e das bom para pescar se caminhássemos e se lançássemos das mar-
corredeiras do Salto e da Anta, no Rio Miranda. Para mim, estar gens pedregosas em suas várias corredeiras, poções e pisci-
dentro d’água pela cintura ou em pé numa pedra, numa daquelas nas. Uns vinte metros acima do leito do rio, do lado argentino,
corredeiras, lançando um Deceiver, uma Blonde ou uma Hi-Tie corre um caminho de terra. Por ali, íamos de carro procurar
nas águas turbulentas, após longos backcasts, sem empecilhos os melhores lugares para pescar e descíamos, muitas vezes au-
atrás para atrapalharem meus arremessos, era, a meu ver, xiliados por cordas, ribanceira abaixo até chegarmos à água.
equivalente às melhores pescarias de salmão do Atlântico, Nessa época do ano, o Bermejo tem águas relativamen-
com a vantagem de serem muito mais produtivas. Sentir o te claras e lembra muito um rio de trutas do sul da Argenti-
puxão violento do peixe e vê-lo saltar na água espumante e na, não fosse o calor sufocante da região nos meses de verão,
revolta e cair com estrondo, levando linha e backing, auxiliado quando os termômetros, segundo os locais, chegavam a mar-
pela correnteza eram sensações pelas quais que eu ansiava. car cinquenta graus centígrados!
Infelizmente, isso não era mais possível no Brasil. A ignorân- Nossos primeiros dias de pesca nesse rio se mostraram
cia e ambição das pessoas, aliadas à inoperância e descaso pouco produtivos, apesar de termos alguma ação e pegarmos
das autoridades governamentais, haviam contribuído para a alguns pequenos dourados, entre dois e cinco quilos. Muitas
degradação e, em alguns casos, destruição desses pesqueiros vezes, os peixes atacavam as iscas sem nenhum entusiasmo e
famosos e, juntamente com eles, do dourado. Além disso, a não conseguíamos fisgá-los. Para culminar, estavam descen-
idade fez o grupo de pescadores de Mato Grosso, do qual eu do o rio, em grande quantidade, algas verdes, lembrando fios
participava, se dissolver, e eu passei a sonhar de olhos abertos de cabelo, que se embaraçavam em nossos anzóis, obrigando-
com a repetição daqueles momentos. Aliás, sonho até hoje. nos a limpá-los a cada arremesso, e desencorajavam qualquer
Estava em Junin de los Andes, na Argentina, para a dourado a morder nossas moscas. Soubemos depois que, nessa
minha pesca anual de trutas naquele país, quando conheci época do ano, elas se desprendem do fundo d’água e que devía-
o Robin Blackhurst e o Luiz de Karolyi. Apesar do Robin vir mos ter vindo um mês mais tarde! A velha história se repetia.
da Inglaterra, o Luiz, da Hungria e eu, do Brasil, em pouco No desespero, o Gomariz sugeriu passarmos para
tempo de conversa descobrimos que tínhamos uma paixão o lado boliviano para pescarmos no Rio Grande de Tarija,
em comum: a pesca de dourados com mosca! Por acaso, afluente do Bermejo, alguns quilômetros abaixo de onde nos
descobrimos que o guia do Luiz, o argentino Ginés Gomariz, encontrávamos. Não tínhamos nada a perder e aceitamos
era também conhecedor desse tipo de pesca e já os tinha prontamente, apesar de ele conhecer pouco aquele rio. Após
pescado na mosca, no norte da Argentina. Eu já o conhecia de cruzarmos a ponte internacional, passamos a cidadezinha de
outras temporadas e sabia que ele era um bom guia, entendia Bermejo, e deixamos para trás, rapidamente, um destacamento
do seu ramo e era uma pessoa bastante afável. do exército onde um grande cartaz dizia: “No pare! La centinela
Ficou escolhido o mês de setembro de 1978 para irmos hará fuego!”
para a Província de Salta, ao norte da Argentina. Ficaríamos Apesar de já soltar todos os peixes que pegava,
baseados na cidadezinha de San Ramón de la Nueva Orán, mais queria trazer para casa um dourado grande que pretendia

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embalsamar para pendurar acima da lareira de uma casa de e colarinho vermelho com tiras pérola de flashabou. Cuida-
campo que um dia eu iria construir. Queria sentar-me em dosamente, atei-o com uma alça Duncan para dar-lhe melhor
frente dela nas noites de inverno e ficar olhando o peixe na movimento dentro d´água. O lance era relativamente curto.
parede. O Rio Tarija, como é mais conhecido, era minha última Estiquei no ar a grossa linha flutuante amarela e ela depositou
esperança, pois só tínhamos mais um dia de pesca. Eu nem o streamer no caminho e além da pedra mais próxima. A mos-
imaginava onde estava me metendo. ca deslizou sedutoramente junto à pedra, alguns centímetros
Após alguns quilômetros numa péssima estrada de abaixo da superfície, até ser interceptada por uma mancha
terra toda esburacada, divisamos um trecho do rio no fim de amarela que se materializou debaixo dela. A vara quase foi
um caminho lateral, por onde nos embrenhamos. arrancada da minha mão ao ser puxada violentamente para
O Tarija era correntoso, tinha naquele trecho uns vinte baixo. Imediatamente, a linha subiu e pude ver, pela primeira
metros de largura, e suas águas eram tão cristalinas quanto vez, no ar, meu dourado sacudindo-se com a mosca no canto
as de qualquer riacho de trutas. Era a primeira vez que eu via da boca. O Abel, fotógrafo da revista Aire & Sol, levado exclu-
um rio tropical grande, com águas tão claras. A temperatura sivamente pelo Gomariz para fotografar nossa aventura, não
da água era morna e devia estar em torno dos vinte e seis perdeu a oportunidade e batia fotos, uma atrás da outra. Elas
graus centígrados. O rio não tinha curvas numa extensão iriam ilustrar um artigo que nosso guia iria escrever para a
de quase um quilômetro. Do nosso lado, suas margens eram revista. Contorcendo-se no ar para se livrar do anzol, o peixe
altas e cobertas de mato e árvores até a beirada d’água. Do oferecia uma luta sensacional, pontilhada por corridas ajuda-
lado oposto, uma imensa praia de pedras o acompanhava em das pela correnteza do rio. Pouco a pouco, fui recuando e co-
toda a sua extensão. Só poderíamos pescar do lado oposto. Ao loquei meu peixe na praia de cascalho. Apesar de não ser tão
tentarmos cruzá-lo tivemos a agradável surpresa de ver que grande quanto pensava, — pesou seis quilos — era um troféu
poderíamos atravessá-lo com água pelo peito. que ficaria lindo na parede da minha futura casa.
Três pedras grandes jaziam no meio da correnteza e Enrolado cuidadosamente em pano úmido e num plás-
a água redemoinhando em torno delas arrepiava a superfície tico para não secar a pele e perder escamas, o peixe foi levado
e cavava buracos mais profundos ao seu redor, ideais para os para Orán na mala do carro, onde procuramos um marceneiro
dourados ficarem espreitando suas presas. para fazer uma caixa de madeira para transportá-lo para o
Com um calor de quase quarenta graus centígrados e Brasil. Algumas horas mais tarde, apanhamos um caixote de
hordas de piuns, mosquitos microscópicos negros, disputan- 1,00m por 0,40m que pretendíamos encher de gelo seco para
do nosso sangue, éramos obrigados a usar camisas de tecido conservá-lo. O primeiro problema logo surgiu: não havia gelo
grosso de mangas compridas e nos banharmos em repelente. seco em toda a cidade de Orán! Tivemos, então, de apelar para
Os mosquitinhos, aos milhares, entravam em nossos olhos e o gelo comum que foi colocado em dezenas de sacos plásticos
narizes e nos mordiam com ferocidade, provocando uma co- bem fechados, distribuídos em torno do peixe, que jazia en-
ceira alucinante, forçando-nos a entrar n’água na tentativa de volto num pano úmido, num berço de serragem de madeira
evitá-los, como fazem os alces no Canadá. vermelha, a única que havia na serraria. Suando em bicas no
Apesar disso, o lugar era ideal para pescarmos. Aquelas quarto do hotel, pregamos cuidadosamente a tampa do caixote.
pedras eram um alvo perfeito para lançarmos nossas moscas. O avião para Buenos Aires sairia no dia seguinte às
Tirei do meu estojo de moscas um Deceiver de penas amarelas nove horas da manhã. No aeroporto de Orán, despachamos

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nossa bagagem e vimos pelo portão ela ser levada numa carreta de água vermelha olhando-o com curiosidade e desconfiança.
puxada por um trator, para perto do avião. Lá, a carreta foi Não sei por que, veio-me à cabeça a imagem de pessoas em
descarregada e o trator voltou para buscar outras bagagens. torno de um ataúde pronto a ser baixado à sepultura.
Ao olhar para fora, uma hora depois, vi com horror, “O que é isso? Que sangue é este? O que tem aqui den-
que minha bagagem e o caixote continuavam no mesmo lugar tro? Não podemos levar esta bagagem. O sangue em contato
sob um calor de quarenta graus centígrados! O avião estava com o metal do avião vai enferrujá-lo”, explicou-me o funcio-
atrasado! Será que ainda havia gelo no caixote? O peixe nário que devia ser o chefe do grupo.
aguentaria até chegar ao Brasil? Meu trabalho não serviria Recorrendo mais uma vez ao meu melhor portunhol
para nada? Todos esses pensamentos se revolviam em minha tentei explicar que aquele líquido não era sangue. Era uma
cabeça num torvelinho. mistura de serragem de madeira vermelha e água que havia
O voo Orán/Buenos Aires ocorreu sem incidentes. Ago- vazado da caixa onde estava um peixe que eu estava levando
ra, era tomar um táxi e irmos para o Ezeiza, o aeroporto inter- para o Brasil para embalsamá-lo. O peixe estava inteiro e não
nacional de Buenos Aires de onde partiria o voo para o Brasil. podia sangrar. Era apenas gelo derretido colorido. Eu o havia
Ao abrir a mala do carro para tirar a bagagem, o taxista teve pescado em Orán.
uma surpresa desagradável: seu carro estava todo molhado! “Que peixe? Um dourado? Na mosca?”, perguntou,
Ele ficou louco de raiva e não demorou a externar seus sen- curioso, o funcionário. E completou após minha resposta:
timentos com seu característico sotaque portenho. Se eu não “Brigou muito? Eu também sou mosqueiro e pesco, sempre que
estivesse com os nervos à flor da pele até acharia a cena en- posso, trutas no sul da Argentina”.
graçada. Depois de muita discussão, dei-lhe uma boa gorjeta e Como num passe de mágica, a portas se abriram
isso diminuiu a sua ira. Etapa número dois, vencida. para mim. O nosso esporte comum havia solucionado meu
No balcão da companhia aérea tudo correu bem e des- problema. Saímos dali como bons e velhos amigos, trocando
pachei minha bagagem e a caixa do peixe sem maiores proble- histórias de pescarias passadas, enquanto o funcionário
mas. Fui para o salão de embarque e respirei, aliviado. Ago- recomendava para seus comandados: “Pessoal, coloquem a
ra só teria problemas no Rio. Se desse azar. Pelo menos não caixa num saco plástico reforçado e guardem-na no avião.
iria mais precisar dar explicações complicadas em portunhol. Rápido. Estamos atrasados”. Respirei, aliviado. A terceira
Tinha até enriquecido meu vocabulário com um novo termo: etapa estava solucionada.
aserrin, que significa serragem e que foi amplamente usado por Já era noite quando chegamos ao aeroporto do Galeão,
mim pela primeira vez enquanto discutia com o chofer de táxi hoje Tom Jobim. Nosso voo havia coincidido com a chegada
a origem daquela água que molhou toda a mala do seu carro. de vários outros e o saguão onde se espera a bagagem estava
Aguardava a chamada de embarque quando os alto- congestionado. Enquanto aguardava meu equipamento, vi,
falantes chamaram: “Senhor Paulo Silva, favor dirigir-se ao apavorado, várias malas de outros passageiros chegando
balcão da Varig”. O coração disparou. O que seria agora? molhadas de água vermelha! O dourado finalmente havia
“Senhor Silva, por favor, acompanhe-me”, disse o fun- chegado ao Brasil!
cionário argentino levando-me para o lado de dentro do balcão “Por favor, abra a caixa”, disse o inspetor da Alfândega
e indo para a parte atrás do edifício. Lá, um grupo de funcio- secamente.
nários vestindo macacões rodeava o meu caixote numa poça

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As coisas estavam ficando feias a cada minuto e eu já Dessa vez eu tinha escapado por pouco. Sem perder
estava começando a achar que ia perder meu peixe naquele tempo, antes que ele mudasse de ideia, coloquei minha bagagem
momento. no carrinho e pedi a um táxi para levar-me ao Iate Clube.
“Não posso. O senhor tem um martelo para me em- Eu era sócio do Iate Clube naquela ocasião e, tendo
prestar? A tampa está pregada”, respondi delicadamente. em vista o adiantado da hora, achei melhor levar meu caixote
Com mau humor estampado na cara, a autoridade para o frigorífico do clube, onde pretendia deixá-lo até o dia
reclamou: “Eu preciso ver o que há aí dentro. O que é?” seguinte. Além disso, o peixe inteiro não caberia dentro da
“É um peixe”. minha geladeira.
“Está assado?” Lá, surgiu mais um problema. A peixaria do clube já
“Não. Está inteiro e fresco. Vou embalsamá-lo”. estava fechada e o vigia que me atendeu foi irredutível. Não
Naquele momento já tinha sérias dúvidas quanto ao estado de poderia abrir o frigorífico. Eu tinha nadado tanto e ia morrer
frescor dele, mas não era hora para se falar sobre isso. na praia. Apesar de nunca ter feito o que ia fazer, enchi o peito
“Fresco? Esse peixe não pode entrar no Brasil. Vou de ar e falei grosso: “Então vou ter que falar com o Pimentel
chamar o pessoal do Departamento Sanitário do Ministério da Duarte. Ele é meu amigo e vai resolver isso para mim”.
Agricultura”. O Pimentel Duarte era, na ocasião, o comodoro do clu-
Pronto. A saga do meu dourado tinha termina- be. Eu o conhecia apenas de vista e nunca tinha falado com
do ingloriamente no salão da Alfândega, após tantas vi- ele. Minha tática funcionou.
cissitudes. Já estava conformado, considerando o doura- “Seu doutor, vou abrir uma exceção para o senhor.
do como perdido, quando um senhor baixinho, de terno Pode entrar com o caixote”.
e gravata, com pose de grande autoridade, se aproximou Aleluia! Tinha conseguido. Uma gorjeta caprichada fez
e perguntou rispidamente ao inspetor que me atendia: um sorriso aparecer na cara do vigia do clube e eu tinha final-
“Foi você que desembaraçou a bagagem do deputado mente alcançado o meu objetivo. O dourado conseguira chegar
Fulano?” em casa!
Ao receber a confirmação, continuou: “Você não Como eu esperava, meu peixe estava mais para lá do
sabia que tínhamos ordens superiores para que a baga- que para cá. Para começar a dissecá-lo contei com a ajuda de
gem dele não fosse revistada? Você quer me derrubar?” minha mulher. Empapamos um lenço com seu perfume fran-
E continuou nesse tom, enquanto algumas pessoas já cês e amarramos no nariz para tentar suavizar as ondas de
paravam ao seu redor para ouvirem a reprimenda que ele dava cheiro de peixe semi-podre que nos causava náuseas.
em altos brados no seu funcionário. Envergonhado e cabisbai- Para quem não sabe, o processo de embalsamamen-
xo e, ao mesmo tempo, íntimamente furioso com a vergonha to de animais, principalmente de peixes, é um processo lento
que estava passando, ele, lembrando-se que ainda não tinha e meticuloso. Pode levar meses. O peixe deve ser cuidadosa-
me despachado virou-se para mim e disse: mente despido de sua pele com bisturis e outras ferramentas,
“Pode ir. Pode ir embora. Leva essa porcaria logo juntamente com a cabeça e barbatanas, não deixando nenhu-
daqui...”. ma partícula de carne que possa posteriormente se deterio-
rar. Especial cuidado deve ser tomado para evitar a perda de
escamas. Essa pele, mantida sempre molhada em uma solução

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de bórax e água para evitar o seu apodrecimento, é posterior-
mente vestida num corpo oco de papel machê, utilizando-se
uma forma de gesso, em duas partes, do peixe inteiro. Após
várias semanas secando, o peixe tem suas cores restauradas
com tintas apropriadas que restituem sua coloração original.
Hoje, esse sistema é pouco usado, fazendo-se réplicas de fibra
de vidro tão reais ou mais do que o peixe de verdade e muito
mais duradouras. Além disso, muito mais ecológicas, porque
após ter suas medidas e peso tomados, o peixe é solto.
Como eu ainda trabalhava no Banco, só podia ocupar-
me do peixe à noite. Ele agora estava reduzido a um tapete
com uma cabeça e cauda em cada extremidade. O processo de
embalsamento levou pelo menos uns cinco meses. Finalmente
passei a camada final de verniz incolor para dar-lhe uma
aparência de molhado e minha obra prima estava completa.
Dos três embalsamentos que eu já tinha feito, esse foi
O fantasma cinzento dos baixios
o maior e melhor. O primeiro, um pampo, tinha ficado com

O
a cara chupada de uma pessoa tentando sugar um líquido
através de um canudinho semi-entupido porque havia me s cientistas o conhecem como Albula vulpes, mas
esquecido de preencher suas bochechas com papel machê e isso não interessa para o pescador que o busca nas
elas tinham se retraído quando a pele secou. O segundo, um águas rasas e mornas dos oceanos Atlântico, Pacífico
robalete, ficou melhor, mas era muito pequeno. e Índico. O que o compele a ir atrás desse peixe é o desafio
Meu dourado decorou minha casa em cima da lareira e a dificuldade de espreitá-lo, localizá-lo, fisgá-lo e pescá-lo.
durante uns dez anos, tempo que levei para descobrir que Com sua aguçada visão, audição, camuflagem e velocidade
você tem dois prazeres quando adquire uma casa de campo: impressionantes, ele pode ser considerado, sem favor nenhum,
o primeiro, quando a compra e o segundo, quando a vende. o peixe mais esportivo de todos os encontrados no mar quando
Sem saber o que fazer com ele, doei-o ao Museu Nacional, na pescado com equipamento leve de mosca – equipamento
Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Creio que ele deve que parece ter sido inventado para ele. Estou falando do
adornar uma de suas paredes até hoje. Às vezes, penso em ir ubarana-rato, internacionalmente conhecido como bonefish.
ao museu dar-lhe um “alô”. Não obstante os maiores exemplares de ubaranas-rato
habitarem as águas da Flórida e Bahamas, onde são pescados
de barcos de pequeno calado, eu preferia muito mais pescá-los
em local onde poderia caminhar dentro d’água, sem ver outros
pescadores, e onde tivesse uma oportunidade razoável de fisgar
meu primeiro ubarana-rato de dez libras ou quatro quilos,
quinhentos e trinta gramas, a marca mágica que todo pescador

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