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A escravatura não acabara. Assim pensava.

Em pé, com as mãos atrás na nuca, no meio daqueles cinco desconhecidos que me ap
ontavam armas ameaçadoras. O cara que estava a minha frente vestia calça branca
e camisa preta, alto, seus olhos eram miúdos e as sobrancelhas espessas unidas u
ma à outra, apesar de ser jovem era calvo. Os outros se posicionavam atrás de mi
m, sendo assim não conseguira vê-los, enxergava o homem que estava a minha frent
e, por causa da parca iluminação fornecida por algumas lâmpadas dispostas nos po
stes de algumas residências.
Faltavam uns cem metros para chegar a minha casa. Se tivesse obtido êxito em alc
ançá-la, estaria livre daquela situação? Perguntava-me.
Enquanto um dos homens, que me haviam parado, revistava minhas vestes em busca d
e algo que me comprometesse. Ou algum documento.Quem sabe?
Temia ao pensar o que poderia ocorrer na sequencia. Durante todo o ano de 1979 e
m que lecionara na escola comunitária de Vila Ferrovila, (Uma delgada e longilín
ea invasão, iniciada em 1975 após a grande geada de dezoito de julho. Esta geada
ocasionou a queima das grandes plantações de café no norte do estado, e teve co
mo consequência a migração de toda a força trabalhadora para grandes centros. Or
iginando grandes favelas em alguns centros de destinos migratórios).
Não conseguira registro em carteira, sabia que naquela conjuntura era perigoso a
ndar sem o documento assinado. O que fazer? Tinha mulher e dois filhos para cuid
ar. Estava desempregado a mais de seis meses, e carteira assinada não significar
ia uma condição sine qua nom para que eu aceitasse ou não ao emprego. Quando me
ofereceram um razoável salário para lecionar às crianças e idosos daquela comuni
dade, aceitei.
Por estar absorvido nesta preocupação, não entendi quando o homem que me revista
va dissera aos outros. Esta sem documentos, mais é ele mesmo!
Quis argumentar e dizer que era trabalhador, (eu dava aulas numa comunidade care
nte) e nunca me envolvera em coisas erradas ou atos ilícitos, eu tentava dizer-l
hes. Quando senti uma dor aguda nas costas, seguida de um estampido, uma dor que
queimava minhas carnes e rasgara meus pulmões. As imagens reais começaram a des
abar, enquanto em vão eu tentava bombear o ar que tanto precisava, minha visão s
e tornou turva, rodei sobre mim, incrédulo, cai sem forças, apenas balbuciei pal
avras ininteligíveis, não fiz nada.... Aos pulmões foi-me faltando ar, ouvi ao l
onge uma voz que gritava.
Este já era..., vamos embora, falou um dos algozes, eu tinha certeza, se referia
m a mim.
Ouvi mais dois ou três estampidos reverberando em um grave eco, mais dor, passos
rápidos, gritaria, cachorros latindo ao fundo e carros partindo em alta velocid
ade.
Estranhamente a dor foi dando lugar a um torpor, tive a estranha sensação de min
has roupas se encharcando por um liquido quente, era sangue. Uma leve brisa sopr
ou-me a fronte, as imagens reais foram desaparecendo.
Professor Martins de Oliveira, 28 anos, formado em filosofia pela Federal em 197
1. Lembrava-se da primeira vez que fora a Vila Ferrovila e se apresentara ao Dr.
Antonio, o dotô Antonio como era conhecido.
Não entendia muito bem porque mergulhara nesta lembrança no momento.
Ouvi sons longínquos, homens falando apressadamente. Tinha certeza que seria alg
o com relação ao meu estado. Passos apressados, correria, silencio, angustia, vo
ltei a sentir dor nos pulmões novamente, uma dor insuportável. Cada vez, mais, t
inha necessidade de ar no sangue. Estes segundos ocorridos mais pareciam uma ete
rnidade.
Vi na minha frente a imagem dos meus filhos, minha esposa, meus alunos, meus irm
ãos queridos.
Uma luz forte se formou na minha frente, vi meu corpo caído na rua de terra, uma
multidão ao meu redor, choro.... Emergi num enorme e denso oceano, onde não se
via linha de horizonte, e não havia coisa alguma onde pudesse me segurar...
Isabela estava nervosa sem motivo aparente, um sexto sentido sinalizava uma trag
édia, terminara o jantar, as crianças estavam banhadas e passavam o tempo com al
guns brinquedos, aguardavam o pai para a refeição, ouviu um tiro, a criança que
levava ao ventre moveu-se nervosamente. Instintivamente levou a mão a barriga na
tentativa de acalmar a criaturinha que nasceria em quatro meses. Em seguida um
temor invadiu seus pensamentos, ouviu mais alguns estampidos, correu em direção
à porta, saiu.
Não sei quanto tempo voei naquele estado liquido, difícil calcular. Para mim dur
ou alguns minutos, mesmo assim foi desesperador, intercalava meu estado de agoni
a, ora submergindo, ora emergindo, ao fundo ouvia vozes de crianças e adultos, n
ão conseguia visualizar de onde vinham aquelas vozes confusas.
Meu corpo esfriara no meio daquele oceano, impressionado notei que as palavras q
ue ouvia atuavam como um farol a me direcionar. Olhei ao horizonte e avistei um
clarão. Movimentei-me na direção ao que até hoje chamo “o meu leste”, à medida q
ue me movimentava, meu corpo aquecia, ouvi a voz de um homem, voz esta que agora
me parecia coerente.
Ouvi um homem gritar. Mãe.. O pai abriu os olhos. A principio minha visão pareci
a encoberta por uma nevoa, (percebi no quarto a presença de dois rapazes), meu o
lhar foi clareando rapidamente, em segundos vi entrar duas mulheres no aposento,
a primeira era a minha Isabela. Pensei em sorrir, porem os músculos do meu rost
o não se moveram, tentei balbuciar alguma coisa, não consegui, parecia anestesia
do. Isabela se aproximou da cama onde eu estava deitado, dos meus braços saiam c
ateteres atados a umas bolsas de plástico transparente com algum líquido dentro.
Por um segundo percebi estar em um quarto de hospital. Porem, nada importava no
momento, as dores sentidas, a falta de ar que me acompanhava, o mergulho naquel
e oceano, daquele oceano ao quarto, Isabela ali, ao meu lado. Para mim isso é o
que importava.
Ela apressou os paços, acercou-se da cama onde eu estava deitado, os quatro me a
braçaram, tentei me mexer para corresponder, porem não conseguia, Isabela dizia
que os três que a acompanhavam eram meus filhos.
Neste instante, adentraram ao quarto dois homens e uma mulher. O mais novo dos d
ois dirigiu-se a minha mulher, e pediu para saírem, precisariam fazer alguns pro
cedimentos médicos urgentes. Isabela ainda contestou, implorou para ficar, mas m
ediante a insistência do homem retirou-se. Antes porem, aproximaram e me cobrira
m de beijos, prometendo voltar assim que fosse permitido. Ocasião onde contariam
o ocorrido durante todo este tempo. Emocionados saíram.
O homem mais velho do trio, sentou-se numa cadeira ao meu lado e começou a me ex
aminar. Pedi para minha esposa voltar e ficar comigo, o pedido foi gentilmente n
egado.
Perguntei o que fazia naquele quarto que em tudo lembrava um hospital, ele disse
que já conversaria comigo, antes porem precisava passar algumas orientações par
a a equipe que o acompanhava. Observou algo no que me parecia ser um relatório,
entregou à mulher que o acompanhava, pediu ao outro homem que preparasse o labor
atório, precisariam fazer uma ressonância computadorizada, os dois saíram.
O que seria ressonância computadorizada? Pensei. Ficamos a sós, ele olhou fixame
nte em meus olhos, perguntou como eu me sentia, falei que a falta de movimentos
me desesperava, eu não sentia meu corpo abaixo do pescoço, também o meu pensamen
to estava confuso, disse que precisava de explicações.
Notei que seu rosto tomou formas mais graves. Pausadamente falou... O senhor fic
ou vinte e três anos em coma. Ainda conversamos alguns minutos sobre o ocorrido,
o medico perguntou se eu me lembrava do que me acontecera naquela noite de 1979
, expliquei o que lembrava.
Neste momento a porta abriu dando passagem a quatro pessoas. Vinte e três anos.
Pensava eu. E porque eu não conseguia mover meu corpo? Passei o resto daquele di
a e parte da noite, fazendo exames, exames estes que nem ao menos ouvira falar u
m dia.
Em contato com enfermeiros e técnicos, atualizei um pouco os meus conhecimentos.
Alguns funcionários disseram que minha mulher e filhos haviam passado a noite n
a recepção do hospital, os mais antigos falaram que durante todo este tempo de i
nternamento, eles, (minha família) me visitavam todos os dias. Estas informações
me emocionavam. Fiquei sabendo que entrara naquele hospital, três dias após ter
levado os quatro tiros de pistola 45 nas costas, uma bala inclusive, se alojara
em minha coluna vertebral. E o fato de ter sobrevivido, aparecia como um verdad
eiro milagre para todos.
Minha permanência naquele hospital devia-se ao fato do diretor ser o Dr. Antonio
o mesmo Dr. Antonio que me recebera a anos na escola comunitária da Vila Ferrov
ila. Ele inclusive, pagava parte das minhas despesas no hospital com dinheiro do
próprio bolso. No momento ele se encontrava em viajem de férias, retornando apó
s duas semanas.
Haviam-me alojado em outro quarto, este era menor e tinha menos equipamentos, um
a enfermeira acabara de me administrar um medicamento, ouvi a porta se abrir, mi
nha amada e filhos entraram, me abraçaram e beijaram, foram infindáveis e caloro
sos beijos, perguntaram se eu estava bem e agradeciam a Deus por eu ter voltado
a consciência. Todos falaram que tinham feito visitas este tempo todo em que eu
estivera internado, e tinham certeza que um dia eu voltaria a vida. Foram muitos
olhares e abraços afetuosos, eu me sentia reconfortado, olhei para Vanderlei, m
eu filho mais velho, agora estava com 28 anos, o mais novo, Martins Filho estava
com 27 anos, a mais nova eu conhecera apenas no dia anterior e não sabia nada s
obre ela, completara vinte e três anos, a dois meses atrás. Isabela continuava l
inda, igual quando eu a conhecera. Segurou minhas mãos e sorria, e seu sorriso e
ra uma constelação iluminando tudo...
Isabela, desesperada, chegou ao portão e olhou um movimento de carros e pessoas
a uns cem metros de nossa casa, de imediato intuiu que acontecera algo comigo. C
orreu como nunca naquela direção, chegou onde eu estava quase ao mesmo tempo em
que alguns vizinhos. Vendo-me caído ao chão, ensanguentado e inconsciente, chego
u a pensar que eu havia morrido. Desesperada pediu para um vizinho que morava em
frente e o mesmo encostou seu carro no local, pediu para uma amiga cuidar dos d
ois filhos para não deixá-los sozinhos, com a ajuda de outras pessoas colocaram-
me no banco traseiro do veiculo, o carro saiu em grande velocidade para o hospit
al mais próximo.
O carro parou na entrada do pronto socorro, Isabela pulou rumo a algumas pessoas
com avental, imediatamente apareceu uma maca, levaram-me às pressas para dentro
, uma porta vai-e-vem abriu, a maca que me transportava passou conduzida por qua
tro pessoas, Isabela ao meu lado, o corredor era branco e infindável, as luzes d
as paredes passavam pelo grupo a toda velocidade.
Um segurança acercou-se dela e pediu para que parasse e deixasse o grupo seguir
em frente, mediante a relutância o segurança a segurou pelo pulso impedindo sua
ação, estavam me levando para o centro cirúrgico, sendo assim apenas a equipe po
deria entrar. Um dia após, Isabela estava na recepção do hospital em busca de no
ticias, (meu estado era estável, porem corria risco de morrer), me encontrava na
UTI.
Oito horas de cirurgia, muito sangue perdido, um pulmão perfurado, parada respir
atória, sobreviveu por “milagre” diziam-lhe.
Aguardava por mais informação sobre meu estado quando sentiu uma mão em seu ombr
o, olhou na direção e viu o rosto sério do Dr. Antonio, o mesmo do Centro Comuni
tário, ela o conhecia, (Antonio tornara-se um grande amigo da família). Quis cho
rar, ele pediu calma, acabara de vir da UTI, e soubera que o meu estado era está
vel, que respirava por aparelhos e as próximas horas seriam cruciais para minha
sobrevivência, que havia levado quatro tiros a queima roupa nas costas, e nestes
casos complicava bastante.
Conversávamos sobre a gravidade da situação, quando entraram na recepção dois ho
mens, usavam óculos escuros, um era calvo e o outro tinha cabelos compridos, aba
ixo dos casacos percebia-se armas de fogo.
No balcão perguntaram se um homem ferido por alguns tiros havia entrado no hospi
tal no dia anterior.
O Dr. Antonio puxou-me para fora e balbuciou. Temos que tirar Martins deste hosp
ital imediatamente. Desconfio que ele tenha sido vitima da repressão, ou do esqu
adrão da morte. Isabela ficou sem entender por alguns segundos.
Esquadrão da morte? Repressão?
Verei o que posso fazer, disse Antonio, venha comigo. Em passos largos foram à s
ala do diretor. Após um breve relato e frente à gravidade da situação, teriam qu
e agir silenciosos e imediatamente.
Uma ambulância com equipamentos seguiu para os fundos do hospital, os três empur
ravam a maca rapidamente, com cuidado colocaram-me na ambulância, Isabela e Antô
nio entraram, a viatura acelerou forte com a sirene desligada. O destino era o h
ospital que Antônio trabalhava e situava-se em outra cidade, a uma hora de viaje
m.
A entrada no hospital dera-se no anonimato, como vice-diretor do hospital Antôni
o era provido de algumas regalias, os registros seriam feitos apenas algum tempo
mais tarde, e seriam estes registros que seriam contados para historia.
Isabela e meus filhos tiveram que mudar de cidade, os motivos eram óbvios segura
nça e a proximidade do meu local de internação, facilitaria assim as longas visi
tas que aconteceriam no futuro.
Familiares e algumas pessoas ajudaram no que poderíamos chamar esta “operação”.
Isabela conseguiu um emprego, as crianças conseguiram uma escola em período inte
gral.
Nascera uma menina linda, forte e com os olhos do pai, (diziam). Sendo estas sem
anas pós-parto, as únicas em que ficaram sem visitar-me. Era um depoimento emoci
onante aquele, mostrava o que o amor de uma mulher era capaz.
Ao falar de minha filha, (nascida em meio a toda esta tragédia), pedi para ela p
egar em minhas mãos e perguntei seu nome, ela emocionada respondeu.

Nos anos noventa, a Anistia Internacional se interessou por meu caso, sendo minh
a situação denunciada a alguns organismos internacionais, este interesse resulto
u em um pouco mais de tranquilidade para nós todos, as visitas de meus familiare
s ocorriam ininterruptamente. Vinham, ficavam algum tempo ao meu lado, acariciav
am meus cabelos, conversavam mesmo sem obter respostas, constantemente dormiam e
m um sofá disposto no quarto.
O Dr. Antônio seria promovido a diretor do hospital, passava em meu quarto todos
os dias em que trabalhava, me examinava, tentava outros tratamentos, eu sobrevi
via. Os filhos cresciam, iam se formando, o mais velho em filosofia, o mais novo
em medicina.
Esperança concluía primeiro e segundo grau, (hoje fundamental e médio), prestara
vestibular.
Quando entrou para faculdade, foi a mim que ela primeiro noticiou, mesmo eu não
respondendo a este estimulo, ela acreditava que eu ouvia a tudo o que dizia.
Até que no melhor de todos os dias, estou aqui. Em um ano passei por duas cirurg
ias, e muita fisioterapia. Coloquei uma prótese de disco na coluna, sofri, lutei
, estou melhorando dia a dia, felizmente já ensaio alguns passos, trôpegos mais
são os meus passos, penso que em breve estarei lecionando novamente.

Há uns dez meses atrás, estava em recuperação após colocar a prótese, quando Van
derlei, meu filho mais velho entrou ao quarto com sua filhinha, me abraçou, traz
ia um jornal do dia para que eu lesse, conversamos bastante, minha netinha brinc
ou, riu.
Após sua saída comecei a ler o diário. Ao passar pelas folhas deste caderno algo
me chamou a atenção, uma noticia sobre um político recém eleito e muito aplaudi
do pela mídia atualmente. Ao olhar a foto que fazia contraponto com a notícia, a
lgo muito me preocupou. Reconheci o homem que aparecia na foto. Era ele, isto eu
tinha certeza, era o mesmo homem calvo, que ficara a minha frente naquele fatíd
ico dia.
Um dos meus verdugos.
VillorBlue
http://radio-o-proletario.in

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