Você está na página 1de 3

DIREITO CONSTITUCIONAL

INGEBORG MAUS E O
JUDICIÁRIO COMO
SUPEREGO DA
SOCIEDADE
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

RESUMO

Traça breve reconstrução de algumas das críticas que a jurista alemã Ingeborg Maus faz a respeito da Corte Constitucional da Alemanha (e do Judiciário
como um todo), mostrando os perigos da adoção irrestrita da jurisprudência dos valores.
Discute ainda a crítica que a autora faz a Ronald Dworkin, procurando situar melhor o jurista americano e redirecionar a crítica a Robert Alexy, um dos
mais destacados defensores da jurisprudência dos valores e que tem exercido boa influência no Brasil pela adoção de institutos como o “princípio da
proporcionalidade”.
Em razão disso e das recentes alterações do Judiciário brasileiro, indaga acerca da aplicação no Brasil das críticas de Ingeborg Maus, as quais podem
ser resumidas na questão do papel do Judiciário, como órgão constitucional que decide casos a partir de razões de Direito ou de uma superentidade
que exerceria o papel de superego de uma sociedade órfã.

PALAVRAS-CHAVE
Direito; Sociologia; Dworkin; Ingeborg Maus; Poder Judiciário; Alemanha; Direito Constitucional; moral.

10 R. CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005


P
ara Ingeborg Maus 1, o Judiciá- do Judiciário na Alemanha, desde o ta (com seu conceito de “Integrida-
rio na Alemanha, principalmen- século XIX, mostra que, inicialmente, de”) acaba por não diferenciar Direito
te na figura da Corte Constitu- este assimilou os princípios liberais e moral 9.
cional, desde o período liberal, au- de vinculação às leis gerais e abstra- No entanto, a despeito da bri-
menta progressivamente suas fun- tas, além da limitação à interpretação lhante análise crítico-reconstrutiva do
ções, num movimento em que procu- da lei pelo juiz (juiz bouche de la loi). Judiciário em seu país, a crítica de
ra substituir funcionalmente a figura No entanto, após esse primeiro perío- Maus a Dworkin não procede. Talvez
de “pai” que a Monarquia até então do, o Judiciário alemão vai progres- influenciada pela leitura alexyana que
ali desempenhara. sivamente perdendo aquela vinculação o jurista americano possui na Alema-
Essa figura do “pai” (a que se estrita à lei à medida que cresce uma nha 10, a autora acaba por compreen-
refere a autora) representa, no caso, autocompreensão peculiar quanto a der de forma equivocada sua propos-
o papel do “superego coletivo” de seu papel na aplicação do Direito. ta. Desde as perspectivas de Günther11
uma “sociedade órfã”, carente de tu- A ascensão do nazismo cobrou e Habermas12, as críticas de Maus se-
tela. A tradição psicanalítica conce- na Alemanha uma desvinculação do riam muito melhor aplicáveis a Alexy –
be esse fato como a reincorporação juiz à lei (e à Constituição de Weimar), e dificilmente a Dworkin. Segundo aque-
da figura paterna num clã canibal que fazendo com que pretensos direitos les, Dworkin concebe muito claramen-
havia eliminado o patriarca castrador naturais suprapositivos se sobrepu- te a diferença não só entre Direito e
(que ditava e assim representava a sessem e subordinassem à leitura moral, mas também destes para com
lei). Quando aquele que gerava dos direitos fundamentais. Como nos argumentos éticos e pragmáticos, por
assimetria é eliminado, o clã resta lembra Ernesto Garzón Valdés, o pe- exemplo.
abandonado à condição de um gru- ríodo nazista, ao contrário do que Dworkin13 demonstra que argu-
po de “iguais” e “livres”; contudo, o crêem alguns, é marcado mais por um mentos morais, éticos e pragmáticos
grupo não consegue suportar tal si- “jusnaturalismo racista” do que pelo desempenham um papel importante
tuação e reintroduz, por isso, a apego positivista à lei6. Após a 2ª no processo legislativo, mas, após
assimetria: coloca-se alguém para no- Guerra, a despeito da derrota do na- sua incorporação ao Direito, sua rei-
vamente ditar as leis e, pois, ser o novo zismo, os setores mais conservado- vindicação jurisdicional apenas se
“pai” 2. res do Judiciário e de Escolas de Direi- pode dar por meio de argumentos de
Não nos esqueçamos de que to alemãs (que haviam atuado significa- princípio (jurídicos) e não (mais) por
o processo de dessacralização da tivamente pró-nazismo) tiveram um pa- argumentos de política 14.
sociedade deixou no seio desta um pel importante na reconstrução insti- Os princípios, argumenta
vazio axiológico que, até certo mo- tucional do País, inclusive com a cria- Habermas15, como normas jurídicas
mento, foi ocupado, na Alemanha, ção de uma “Corte Constitucional”7. que são, movem-se por uma lógica
pela figura do monarca. Com o fim A partir daí, a independência discursiva diferente dos valores. Prin-
da Monarquia, abre-se mais uma vez do Judiciário passou a significar, cípios são comandos deontológicos
o problema acerca de quem poderia muito mais do que independência fun- (obrigações binariamente codificadas
representar o “censor moral” da socie- cional frente aos demais poderes, de expectativas de comportamento);
dade. Contingencialmente, naquela uma desvinculação à autoridade das já valores possuem um código gra-
nação, a partir do momento em que a leis e da Constituição. dual acerca de preferências que com-
Corte Constitucional assumiu esse A emergência de um Direito petem entre si numa ordem transitiva
papel, acabou por retirar do Parlamen- suprapositivo fez com que a Corte e referente a uma forma de vida (que
to (e mais ainda, da esfera pública) a Constitucional, além de aumentar, por se pressupõe homogênea).
função de arena pública de debate. conta própria, suas funções, se con- O “problema” é que Alexy,
A eliminação de discussões e proce- siderasse competente para julgar até apesar de reconhecer a natureza di-
dimentos no processo de construção a própria Constituição, dando-lhe a versa entre aqueles, parece não levá-
política do consenso (...) é alcançada interpretação que lhe parecesse me- la a sério e justifica a solução de
por meio da centralização da "cons- lhor. Tudo porque a referência a um “conflitos” entre princípios a partir do
ciência" social na Justiça. (...) Quan- Direito suprapositivo pressupõe que mesmo método de solução de confli-
do a Justiça ascende ela própria à se perceba a Constituição como uma tos entre valores. Assim, os direitos
condição de mais alta instância mo- ordem concreta de valores que à Cor- fundamentais, como princípios, são
ral da sociedade, passa a escapar de te Constitucional cabe densificar: mandados de otimização que devem
qualquer mecanismo de controle so- quando a Corte procede ao controle ser realizados na medida do possí-
cial 3. de constitucionalidade, exerce sua vel, dados os custos e benefícios
Tal constatação também preo- competência de julgar axiologicamente envolvidos. Os princípios possuiriam
cupa P. Häberle 4: La cuestión que va as opções do legislador, avaliando, forma jurídica, mas seriam regidos por
siendo ahora de plantearnos es, si la pois, o conteúdo valorativo das leis e, conteúdos morais. Dessarte, Alexy
mirada hacia Karlsruhe (...) no com- até, se estas foram elaboradas dentro coloca a argumentação jurídica como
porta altos costes. Esforzándose al da margem de discricionariedade que um caso especial da argumentação
máximo por la invulnerabilidad cons- a Corte julga que o legislador possui moral16.
titucional de las propias decisiones, em cada caso8. Dessa forma, a referida subor-
el Legislador acaba arriesgando más Segundo Maus, o Judiciário dinação do Direito à moral, presente
bien poco y descuidando la propia alemão inserir-se-ia numa doutrina na crítica de Ingeborg Maus, parece-
misión política de configuración. ¿No muito difundida na Alemanha (a juris- nos ser melhor aplicável a Alexy e à
trae ello como "consecuencia" cierto prudência dos valores), mas abran- sua intransigente defesa da Corte
descuido de la cultura democrática de geria outras leituras que confundiriam Constitucional alemã, colocando-a, de
debate (Streitkultur) a dirimir en la are- o Direito e a moral, subordinando fato, como censor moral da (órfã) so-
na política? 5 aquele a esta. Nesse ponto ela colo- ciedade alemã. Dworkin, ao contrá-
Maus, ao reconstruir a história ca Dworkin, por acreditar que o juris- rio, ao defender a construção do Di-

R. CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005 11


reito como romance em cadeia, em Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 67). torno de questões de “política”. No entanto,
que cada caso comparece como caso 6 Segundo Garzón Valdés, a ascenção do ao ser levantada em juízo, o é como uma
único que a comunidade de princípios nazismo significou na Alemanha antes a questão de princípio, isto é, de direitos, não
proposta de um Jusnaturalismo Racial do de “políticas”. CATONI DE OLIVEIRA,
(jurídicos) tem diante de si, procura que o apego a um positivismo de viés Marcelo de Andrade. Direito Constitucional.
diferenciar uma argumentação propri- kelseniano (ao contrário do que inva- Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.
amente jurídica de uma argumenta- riavelmente se diz). Repudiando o apego à 88-89.
ção baseada em política ou em mo- lei, juristas da época defendiam a sub- 15 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro,
ral. missão do Direito positivo a uma ordem op. cit., p. 355 e ss.
Deve-se refletir em que medi- concreta de valores. (GARZÓN VALDÉS, 16 Para mais detalhes sobre a “teoria do caso
da as críticas de Ingeborg Maus à Ernesto (compilador). Introducción. In: especial” em Alexy, ver CATTONI DE
Derecho y Filosofía. Barcelona: Alfa, 1985, OLIVEIRA. Direito Processual Consti-
Corte Constitucional alemã acima ex- p. 5-41). tucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
postas podem ser aplicadas ao Su- 7 MAUS, op. cit., p. 196-198. 2001. p. 96 e ss. GARCÍA FIGUEROA,
premo Tribunal Federal, notadamente 8 ALEXI, Robert. Direitos fundamentais no Alfonso. La tesis del caso especial y el
a partir do momento em que, por Estado constitucional democrático: para a positivismo jurídico. Revista Doxa, Alicante,
exemplo, este se considera uma Cor- relação entre direitos do homem, direitos n. 22, p. 209-210, 1999; e o próprio Alexi
te Constitucional nos moldes euro- fundamentais, democracia e jurisdição em Teoría de la argumentación jurídica: la
peus (ou ao menos num processo constitucional. Revista de Direito Admi- teoría del discurso racional como teoría de
nistrativo, Rio de Janeiro, n. 217, p. 64, jul./ la fundamentación jurídica. Madrid: Centro
nesse sentido)17. Se entendemos que set. 1999. Para o autor, se há nos Estados de Estudios Constitucionales, 1989. p. 38
a solução para nossa (?) “Crise do modernos uma luta pelos direitos funda- e ss. A Teoria do Discurso Prático Geral
Judiciário” se dará com a concentra- mentais, o árbitro dessa luta não é o povo, das Normas, que soluciona conflitos entre
ção de competências nas mãos dos mas o Tribunal Constitucional. Enquanto o normas morais poderá, em Alexy, ser usada
tribunais superiores — basta vermos Parlamento representaria o povo poli- para a argumentação jurídica, já que é um
a Emenda Constitucional de Reforma ticamente, o tribunal constitucional (o caso especial daquela, diferenciando-se
representa) argumentativamente (idem, p. tão-só em termos lógico-extensivos
do Judiciário —, é bom pensarmos
66). Um melhor desenvolvimento dessa (CATTONI DE OLIVEIRA. Direito Proces-
sobre a possível aplicação das críti- proeminência do Tribunal Constitucional sual..., op. cit., p. 156).
cas de Ingeborg Maus ao nosso Ju- encontra-se no posfácio do seu a theory 17 Ver, por exemplo, os votos dos Ministros
diciário e à aplicação irrestrita do prin- of constitutional rights. Oxford/New York: Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence por
cípio da proporcionalidade como pa- Oxford University Press, 2002. p. 388-425. ocasião do julgamento da ADC n. 4.
nacéia de resolução de nossos con- Sobre um “direito suprapositivo” a deter-
flitos entre direitos fundamentais — minar até a Constituição, ver também: Artigo recebido em 16/2/2005.
BACHOF, Otto. Normas constitucionais
principalmente porque isso implica
inconstitucionais? Coimbra: Almedina,
referência a uma ordem suprapositiva 1994. p. 3; MÜLLER, Friedrich. O signi- ABSTRACT
de valores, confundindo direitos, nor- ficado teórico de "constitucionalidade/in-
mas morais, políticas, argumentos de constitucionalidade" e as dimensões
custo/benefício etc. temporais da declaração de incons- The author outlines a brief
titucionalidade de leis no Direito alemão. reconstruction of some of the criticisms from
Palestra realizada na Procuradoria Geral do German jurist Ingeborg Maus of the
REFERÊNCIAS Rio de Janeiro, em 19/9/2002. Disponível Constitutional Court of Germany (and the
em: <http://www.rio.rj.gov.br/pgm>. Judiciary Power as a whole), pointing out the
1 MAUS, Ingeborg. Judiciário como supe- Acesso em: 20 jul. 2003; MENDES, hazards of unrestricted adoption of the
rego da sociedade: o papel da atividade Gilmar F. Direitos fundamentais e controle jurisprudence of values.
jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Novos de constitucionalidade: estudos de Direito He also discusses the authoress’
Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p. 185, Constitucional. São Paulo: Celso Bastos criticism of Ronald Dworkin, trying to understand
nov. 2000. Editor, 1998. p. 463. the American jurist better and redirect criticism
2 BARUS-MICHEL, Jacqueline. A demo- 9 MAUS, op. cit., p. 186-187. to Robert Alexy, one of the most remarkable
cracia ou a sociedade sem pai. In: 10 ALEXI, Robert. Derecho y razón práctica. defender of the jurisprudence of values, who
ARAÚJO, José Newton; SOUKI, Léa México: Distribuciones Fontamara, 1993. has had good influence in Brazil by the adoption
Guimarães; FARIA, Carlos A. Pimenta de. p. 14 e ss. of institutes as the “principle of proportionality”.
Figura paterna e ordem social: tutela, 11 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumen- Given such facts and the recent
autoridade e legitimidade nas sociedades tação no Direito e na moral: justificação e changes of Brazilian Judiciary, he enquires
contemporâneas. Belo Horizonte: Au- aplicação. São Paulo: Landy, 2004. about the application of Ingeborg Maus’
têntica;PUC Minas, 2001. p. 35. A autora 12 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: criticisms in Brazil, which come down to the
mostra que, para Freud, e depois para sobre el Derecho y el Estado democrático matter of the Judiciary role, as a constitutional
Lacan, o pai é a figura da Lei. Figura quer de Derecho en términos de teoría del organ that decides cases based on legal
dizer aqui que ele é, enquanto senhor da discurso. Madrid: Trotta, 1998. p. 328 e ss. reasons or on a super-entity performing the
mulher e ameaça de castração para os _______. A inclusão do outro. São Paulo: superego role of an orphan society.
filhos, a origem, o fundamento e a Loyola, 2002. p. 357 e ss.
realização daquilo que constitui a lei. Ver 13 DWORKIN, Ronald. Uma questão de KEYWORDS – Law; Sociology;
ainda SOUKI, Lea Guimarães. A meta- princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Dworkin; Ingeborg Maus; Judiciary Power;
morfose do rei: tradição e mudança em p. 101 e ss. Germany; Constitutional Law; moral.
processos de democratização. In: 14 Valendo-nos das premissas de Dworkin,
ARAÚJO; SOUKI; FARIA, op. cit., p. 143- podemos afirmar que Alexy, a despeito de
170. pretender diferenciar as regras e os
3 MAUS, op. cit., p. 186-187. princípios, acaba confundindo estes com
4 HÄBERLE, Peter. Jurisprudencia consti- as “diretrizes políticas”, isto é, Alexy não
tucional. In: LOPEZ PINA, Antonio. La diferencia estas normas (que prescrevem
garantía constitucional de los derechos que direitos os cidadãos possuem num Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia
fundamentales: Alemania, España, Francia determinado sistema constitucional) e as é Mestre e doutorando em Direito
e Italia. Madrid: Civitas, 1991. p. 340. “políticas” públicas (que tratam de como Constitucional na UFMG e Professor
5 Ver ainda Klaus Schalaich (apud SAMPAIO, promover melhor o bem-estar geral). de Direito Processual Civil da
José Adércio Leite. A cons-tituição Segundo ainda Dworkin (op. cit., p. 107 e Faculdade de Direito Estácio de Sá em
reinventada pela jurisdição consti-tucional. ss.), o processo legislativo se move em Belo Horizonte - MG.

12 R. CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, jul./set. 2005

Você também pode gostar