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O MONOTEÍSMO É UM HUMANISMO

A humanidade vive uma virada crítica de sua história1. Os quadros


mentais e morais do mundo moderno não aderem mais à experiência concreta
dos homens, sem que os modelos do pensamento que herdamos da tradição
bastem para carregar o peso de nosso mundo, no termo de uma de suas
seqüências temporais mais revolucionárias. É preciso hoje enfrentar com força
a questão do homem, de sua identidade, de sua origem, de seu futuro. A crise
não se refere a um conflito das ideologias nem de uma decalagem própria de
uma época de transição. Ela coloca em jogo o humano no que ele tem de
essencial e pede para ser considerada a partir da longa história da
humanidade.
O homem perde seus limites o que desorganiza e desmembra a
identidade que eles abrigavam. Os robôs e os computadores reproduzem
capacidades humanas que se destacam cada vez mais da ação do indivíduo,
abrindo o caminho para uma exteriorização de seu ser que arrisca torná-lo
estrangeiro para si mesmo, como se os instrumentos de sua invenção podiam
despossuí-lo de seus poderes e, amanhã, de sua vontade. A função de
reprodução da espécie humana está a ponto de escapar à ação e à
consciência humanas. O homem poderia assim não mais reproduzir-se mas ser
produzido fora de si mesmo, na base de seu material biológico,
independentemente de seu desejo, de sua identidade aleatória (os genes que
ele recebe) ou de sua vontade ativa. O individuo não seria mais um
“acontecimento”.
O homem pode tornar-se dono de suas origens sem destruir sua
humanidade? A ambição prometéica de criar um “homem novo” que foi a alma
das ideologias políticas modernas, não arrisca desembocar numa nova
genética? Ora, ao sair das catástrofes do século XX, sabemos que um tal
projeto não era habitado por um sonho de libertação mas de vontade de poder.
Ninguém vê como controlar o poder dos cientistas, futuros mestres e donos do
planeta, perto dos quais os tiranos dos regimes totalitários parecerão pequenos
artesões. O poder que lhes confere seu saber poderá conduzi-los a profanar o

1
TRIGANO, Shmuel, Le monothéisme est un humanisme, Paris, Éditions Odile Jacob, 2000
Santo dos Santos da identidade humana, a secar a fonte absoluta da liberdade
que é seu atributo maior.
O segredo da origem é o penhor da liberdade do homem cuja
essência mesma é ser nascido. Mesmo o genitor não pode dominar a natureza
da vida da qual ele é ator. Apesar do nascimento que vivemos passivamente,
conservamos efetivamente graças a este segredo, a capacidade de nos
determinar, de querer, de nos opor eventualmente à condição na qual
nascemos sem tê-la escolhido. Será sempre assim num mundo no qual se
poderá programar e manipular a origem dos indivíduos? A gratuidade, à qual
remetem o desconhecido e o aleatório de nossa identidade, desaparece de um
mundo como esse. Receber um dom nos obriga em relação ao doador.

o grande magma
A identidade humana está abalada porque perdeu os limites: a
desestabilização dos quadros práticos da identidade individual nas sociedades
contemporâneas é o sinal precursor o mais seguro da massificação que é sua
conseqüência lógica: o grande magma que está para vir. O mundo unificado e
único, a “aldeia global” que se instala através os circuitos da informação e da
economia, parece prometer a unidade humana somente na destruição. As
necessidades dos mercados (e de seus senhores) destinam para o deserto
regiões inteiras, grupos humanos, profissões, de um modo inodoro, quase
surrealista, pulverizando suas identidades e o equilíbrio da sua relação com o
mundo. Uma sociedade é explorada para rebaixar mais o outro, mas é na outra
extremidade do mundo que ficam os responsáveis, aliás totalmente
inconscientes. A tirania fica tão longe de suas vitimas, tão abstrata que ela não
pode mais ser combatida. Ela se disfarça de realidade objetiva e de “lei do
mercado”. Nenhuma sociedade fica segura em relação à própria identidade
nem à sua capacidade de transmitir o que ela é.
Essa evolução não é somente imputável à globalização. Ela poderia
provir dos desenvolvimentos inerentes à ética democrática que opõe cada vez
mais a primazia do indivíduo e do desejo à legitimidade da identidade, seja ela
coletiva ou individual. As identidades sexuais clássicas têm cada vez menos
realidade para os teóricos progressistas do direito; a identidade nacional não
tem mais consistência em relação às reivindicações setoriais ou à abertura
cosmo política. O fato de pertencer a uma identidade nacional ou coletiva e de
desejar transmiti-la passa, não poucas vezes, a ser visto como o sinal de uma
regressão e do fascismo. A humanidade que, até agora, foi composta de
povos, e foi vivida através de povos, está doente e sem rumo.
A desordem que decorre dessa tormenta mergulha os povos num
caos, potencialmente gerador de guerra e de violência. Essa doença da
humanidade histórica, a dos povos, carrega em si a lembrança da Shoah, da
era dos genocídios, da erradicação completa de povos inteiros por Estados que
enlouqueceram mas dispunham de meios de destruição maciça e dos recursos
da razão moderna. Saímos de um século abominável: o rosto humano, a idéia
de humanidade foram objetos de um ataque talvez fatal. A humanidade foi
aviltada no lado das vítimas e mostrou sua bestialidade no lado dos carrascos.
Os sonhos grandiosos de universal, de cosmopolitismo, de internacionalismo
escondiam fábricas sombrias de morte porque não se pode separar os
fracassos da modernidade do seu espírito.
Enfim, é na identidade de cada um que a confusão se instalou. As
manipulações genéticas, o mapeamento dos genes humanos vão confundir as
leis da filiação, da moral da paternidade e da maternidade, quer dizer a cena
original onde se joga o drama da identidade dos indivíduos. Não é
simplesmente a “reprodução” da espécie que está em jogo: é a imagem mesma
do Humano, imagem dupla, nascida da reunião do homem e da mulher fazendo
surgir em seu seio um outro na pessoa da criança. Esse é um esquema
fundamental da humanidade, do humano que está nos homens. Não é uma
qualquer “natureza” biológica que está em jogo: é o espírito mesmo da
humanidade, articulando o princípio da alteridade (a humanidade é dupla face:
homem e mulher, tem sempre do outro nela) com o do mais, da abundância, do
futuro (uma criança que vem se enfiar no meio de um e do outro)! Vamos na
direção de uma grande indiferenciação e do recuo do altruísmo, mesmo se
essa evolução toma a máscara enganosa de um liberalismo progressista. A
errância das consciências, a ausência de normas e de consenso produzem
dois fenômenos contraditórios: o uso da violência para reafirmar uma moral e
lutar contra o sentimento de abandono – é o integrismo cuja finalidade é
restaurar a identidade na sua “integridade” frente ao que a ameaça – e o
exagero da moral – é o fenômeno do excesso de justiça, do juridismo que
invadiu o espaço publico, especialmente nas democracias, para tentar conter
os desvios. No integrismo, não existe mais alteridade: todos os diferentes
devem ser eliminados! No juridismo, não existe mais consideração do homem:
a norma destrói a existência e a vida, o homem é inteiramente julgado,
inteiramente exposto ao julgamento. É uma situação desumana que o reduz
para a condição de objeto, não deixando capacidade de arrependimento, de
fazer corpo com a própria humanidade. A moral e o direito tornaram-se armas
na luta pela dominação. Como confiar ainda no julgamento de um tribunal? Se
a desumanização programada do gênero humano continuar seu caminho, é o
risco de um poder total que aparece no horizonte, mais assustador ainda pelo
fato que ele reinará escondido atrás da desordem e da indiferenciação e por
meio deles.

volta para babel


A filosofia dos direitos humanos tem, hoje, a capacidade de propor
elementos normativos para a identidade combalida dos indivíduos e das
coletividades contemporâneos? Ela não consegue ver mais longe do que o
indivíduo abstrato e atomizado, intercambiável, e permanece insensível à sua
singularidade, ao que faz a carne de sua existência. Podem as ciências,
incluindo as ciências humanas, ver no homem uma realidade além das funções
e dos papeis que estruturam sua existência? O que está em jogo, hoje, é o
futuro da pessoa humana,da subjetividade, da consciência, da singularidade de
cada homem. Uma massificação nunca antes vista poderia modificar o rosto da
humanidade porque a indiferenciação progride: sua atual dissolução em
elementos (elementos genéticos, para a fabricação de seres humanos,
transformação dos homens em peças no xadrez do mercado) é um sinal
evidente. Mais ele se decompõe em partículas, em peças da máquina social,
mais a massificação progride, a diluição da pessoa na massa compacta, na
falsa unidade da totalidade, mais se apaga a realidade, mais o mundo torna-se
abstrato. Os traços do rosto humano estão se apagando!
Essa sombria perspectiva de um futuro próximo não é o fruto de uma
história-ficção catastrófica: é uma hipótese plausível, deduzida das evoluções
em curso. Ela parte, é verdade, de um princípio pessimista: não se pode confiar
cegamente nos homens. A aparição de novos poderes humanos pode nos
conduzir de volta para a selva! Mas esse pessimismo é realista: deve ser o
prelúdio para a ação e a reflexão. Deve despertar em nós menos o sentimento
do fim e do apocalipse e mais a obrigação do gênesis e do novo começo. A
virada que vive a humanidade hoje lembra de fato a situação descrita pela
narrativa da Torre de Babel no Livro do Gênesis. No sair do dilúvio que viu o
desaparecimento em massa da humanidade, os que escaparam caem de novo
construindo a Torre de Babel. Além da metáfora lendária, qual ensino é
transmitido pelo narrador bíblico? O dilúvio tinha submergido uma humanidade
que não tinha sabido salvaguardar sua distinção com o mundo e nas suas
próprias fileiras. É essa humanidade que tinha se massificado na confusão dos
gêneros e dos sexos que o dilúvio engole e é o que sobra dela que se unifica
no projeto totalitário babeliano que o Deus Uno virá separar de novo. Esses
dois fracassos sucessivos da humanidade apresentam a mesma característica:
a massificação magmática. A geração do dilúvio assim como a de Babel
aniquila as pessoas, o rosto individual, o principio mesmo da separação dos
seres que os faz o que eles são, distintos da natureza, do divino, dos seus
semelhantes. As duas gerações anulam a própria possibilidade da alteridade e
da linguagem, e é toda a humanidade junta que conhece o mesmo destino e
corre o mesmo perigo: todos os povos, todos os homens do planeta ao mesmo
tempo. São situações excepcionais: é muito raro o fato de que o destino
humano esteja em jogo tão globalmente, além dos espaços geográficos, das
situações políticas e da diferença de civilizações.
Vivemos, sem dúvida hoje, uma época desse tipo, situação
absolutamente excepcional, não somente em relação ao fim dos blocos e à
unificação do sistema internacional ou do mercado econômico – por que não à
massificação do humano – mas também no nível dos perigos em potencial. A
humanidade está hoje na Torre de Babel do seu poder, confrontada à
eventualidade global de um dilúvio de um novo tipo. E, assim como Babel,
manifesta-se nela a unidade ilusória que decorre da vontade de poder e do
agenciamento funcional e impessoal dos indivíduos. Porque a fraternidade de
Babel é mentirosa. Nenhum homem é reconhecido pelo que ele é, mas pela
sua utilidade na construção da Torre. Nesse mundo aparentemente unido, o
outro não existe. A Babel, como antes do dilúvio, os homens quiseram suprimir
o princípio de separação, a diferenciação que é o penhor da presença possível
do outro de do nascimento futuro. A separação da humanidade em línguas e,
portanto, em povos após a destruição da Torre vai restabelecer o projeto da
criação fundado sobre a multiplicidade e a diferenciação. A multiplicidade das
línguas e dos povos deve assim ser entendida, contrariamente ao senso
comum, como uma benção muito mais do que uma maldição.
Hoje, a globalização apresenta a possibilidade de uma unificação da
humanidade, do fim das fronteiras separando os povos, da similitude dos seus
modos de vida, uma “fraternidade” do tipo babeliano da qual se sabe que ela
esconde a destruição e a vontade de potencia por trás de sua máscara
enganadora. Essa fraternidade não pode fazer acontecer a esperança de paz
mas ela poderia levar mais seguramente a violência. Os que se distinguirão
serão os Abraãos de amanhã. É diante dessas experiências de massificação
ou de desvio da unidade humana que se elevou um dia o monoteísmo. Abraão
levantou para deixar Babel. Deixando-a, na sua solidão ele trilhou o futuro,
como Noé antes dele. O monoteísmo foi a arca de Noé da humanidade
perdida.
A massificação do destino humano no contraponto da escolha
abraamica da separação, da diferença, do limite nos mostra o quanto o
monoteísmo reencontra hoje sua atualidade, a atualidade do seu nascimento.
O monoteísmo é um humanismo: é o que precisamos redescobrir. Ele constrói
para a condição humana um lugar hospitaleiro e libertador no mundo da
natureza: a humanidade do Deus único.

O MUNDO DO DEUS ÚNICO


Segundo Shmuel Trigano, o monoteísmo é um humanismo, segundo
o título mesmo do seu livro: é o que precisamos redescobrir. Ele constrói para a
condição humana um lugar hospitaleiro e libertador no mundo da natureza: a
humanidade do Deus único2. É preciso clarificar a idéia do monoteísmo:
segundo os preconceitos comuns da nossa época, ele foi considerado como
um anti-humanismo como se o homem fosse esmagado e humilhado por uma
Divindade ainda mais autoritária e imperial pelo fato de ser única. Assim, a
crença em Deus representa o foco mesmo da alienação do homem. Movido por

2
TRIGANO, Shmuel, Le monothéisme est un humanisme, Paris, Éditions Odile Jacob, 2000,
capítulo primeiro.
um sentimento de inferioridade, esse teria projetado num ser imaginário todas
as qualidades que ele não ousava reconhecer em si, ao ponto que ele ficou
delas despossuído ao ponto de tornar-se escravo desse ser fantástico. A
unidade, quando ela não alimenta uma mística suicidaria e mortífera (a nação
“uma” face a seus inimigos, por exemplo) tornou-se também para muitos –
ainda mais hoje – um fator de angústia. Integrismo, imperialismo e totalitarismo
são seus atributos os mais comuns. A unidade foi apreendida como um
princípio de exclusão e de apropriação. Tem somente para um e não para os
outros! O Uno abre um abismo no ser, e sua experiência para o homem, que
está no mundo natural tão misturado, é sinônimo de retração e de ascese,
experiência abrupta que dá para a unidade um caráter paradoxalmente maciço
e monolítico. A proximidade com o Uno obriga igualmente a consciência que o
contempla e o enfrenta a uma retomada de suas forças porque essa
experiência aparenta-se à do face a face: os interlocutores só podem
confessar-se em todo o seu ser, um face ao outro. Ora, no monoteísmo, o
interlocutor divino é Uno e radicalmente separado de um mundo variável e que
muda. Essa unidade divina chama um parceiro único, “eleito”, o que faz
parecer que todos os outros, seus semelhantes, parecem ser rejeitados. A idéia
de unidade, aplicada ao mundo como ele é, induz uma separação, uma ruptura
e, portanto, naturalmente uma limitação. O uno abre um abismo no mundo
relativista e multifacetado da experiência... Existe um processo de
desertificação na experiência do Uno!
Como falar em outros termos do monoteísmo? É o desafio que
precisa ser enfrentado para abrir uma brecha no muro das idéias recebidas e
jogar uma luz nova sobre a angústia do magma e da ausência de limitação que
toma conta da humanidade hoje. É bem a necessidade consciente de limite
que se manifesta enquanto nada parece fundá-la, pensá-la nem autorizá-la na
consciência contemporânea. Talvez seja também a volta inconsciente e brutal
do limite inerente à nossa condição de homem que caminha na angústia
presente. O que revela em nós o sentimento de abismo que a unidade desperta
em nós?
Não é só a unidade que desperta em nós tal sentimento. O tempo
que passa, a doença e a morte, dão o sentimento que o mundo está vacilando,
que ele escapa de nos e que dançamos perto de um vazio que se assemelha
ao nada. Não é esse o sentimento que nos dever revelar o monoteísmo,
mesmo se a freqüentação do Uno nos revela em compensação a relatividade e
a fragilidade da existência. Se Ele as revela, Ele não encoraja a aceitação
desse estado de fato nem nossa submissão. É o que distingue o monoteísmo
do budismo que chama a renunciar a esse mundo, na contemplação de um
santo nada onde a consciência individual é chamada a dissolver-se e o homem
a aniquilar-se para aceder à beatitude. Nesse aspecto, o monoteísmo é o exato
contrário do budismo cujo sucesso em Ocidente hoje expressa mais a
demissão das consciências e do sentimento de responsabilidade! É mais fácil
renunciar ao mundo perdendo-se no nada do que confrontar-se à prova do
limite, aceitando seu desafio. O que tem o budismo a dizer para responder ao
anonimato e à perda de identidade que ameaçam o homem contemporâneo?
No seu olhar, mais as identidades desaparecem, mais nos aproximamos da
diluição do eu no nada e na ausência de perturbações que caracterizam o ideal
espiritual... O deserto aqui não abre para a riqueza do jardim como na
promessa do monoteísmo. Só o monoteísmo se preocupa com o apagar do
nome do homem.
Na sua perspectiva, o abismo que o Uno abre na consciência
desamarra a profundidade de um horizonte onde pode se manifestar o próximo
porque ele leva a consciência a separar-se dela mesma para dar lugar aos
outros perto de si. O abismo do Uno ajuda a entender que existe o outro no
mundo e isso nos engaja a fazer o luto do nosso desejo de transparência que
nos leva a crer que tudo é como nos pensamos. O Uno nos chama do outro
lado do abismo e nos diz: “saiba diante de quem você está!” porque você
sempre está diante de um outro. Esse outro, é o Deus único, por excelência,
mas o lugar de Deus é também o do próximo, de todos os outros. Essa máxima
– talvez a máxima absoluta do monoteísmo – está em profunda contradição
com a máxima grega “conheça a si mesmo”. Não basta conhecer a si mesmo
para conhecer o outro e encontrá-lo.
É a esse caminho que nos convida a idéia da unidade de Deus. Na
sua luz, tomamos consciência que uma presença reside em permanência no
mundo, diante da qual, e apesar de sua invisibilidade, somos convidados a
estar sempre, uma presença que requer de nos um comportamento digno e
honorável, o que é imposto por qualquer relação ao outro.
A separação criadora
No abismo da unidade prova-se a experiência da alteridade, do
encontro com o outro homem. É na base desse princípio do Uno que podemos
de fato conceber que existe uma diferença no mundo e que ela pode ser
conhecida e respeitada! “Vai para ti!” escuta Abraão, “para ti”, quer dizer para o
nascimento de tua própria subjetividade, a realização de tua própria
singularidade, essa realização que reativa no mundo anônimo a lembrança do
Uno e a separação de si mesmo e dos outros que traz a condição de ser outro.
“Separa-te do magma babeliano para começar teu caminho em direção ao
Uno!”3
O altruísmo é um dos eixos da idéia monoteísta. O Deus Uno é
quem – porque é Uno desde sempre e, portanto, separado – abre ao seu lado
um espaço e acrescenta a ele um ser suplementar que ele reconhece frente a
ele: o homem. O fato que ele seja definido como o Criador vai efetivamente
junto com sua Unidade porque o Criador define-se justamente na sua
separação com a criatura, posta como pertencendo a um gênero diferente dele.
Esse abismo insondável que separa o Criador da criatura é a condição de
possibilidade da existência de um outro ser no mundo, existência que no modo
de ser do homem, levado a reconhecer nele a mesma alteridade dos outros
homens.
Essa separação em relação ao mundo, a si mesmo, aos outros,
requerida pela unidade é penosa; é movida, porém, pelo amor e é a condição
do amor, quer dizer do surgimento de um outro ser ao próprio lado. O
relacionamento amoroso verdadeiro é o contrário da fusão e da identificação.
Se o Deus criador separa-se do mundo e da criatura que ele cria por esse
gesto, é para permitir que ela seja gerada e reconhecida e tornar possível o
relacionamento com ela. Uma tal separação não tem por objetivo o abandono,
o que a privaria de sentido. Pelo corte do cordão umbilical a mãe se separa do
filho para que ele viva, não para que ele morra! Em Babel, os homens tinham
medo de se separar!

3
Essa tradução “Vá para ti” de Gn 12,1 lembra a tradução de Chouraqui “Vá por ti” em
CHOURAQUI, André, A Bíblia, No princípio (Gênesis), Rio de Janeiro, Imago, 1995, p.129. A
interpretação está próxima. Outra interpretação que vai nessa direção é de Marie Balmary em
BALMARY, Marie, Le sacrifice interdit, Freud et la Bible, Paris, Grasset, 1986
Uma belíssima expressão bíblica designa essa separação motivada
pelo amor. Ela define Deus como “misericordioso”, apresentando ele “como um
pai que se faz matriz para seus filhos” (Sl 103, 13)4. A experiência é
profundamente original em relação aos gregos para os quais o corpo (soma) é
“túmulo” (sema) da alma e mais vale para o homem não ter nascido. O homem
se vê propor como único projeto aceitar o lugar que lhe é designado no cosmos
– é o propósito da sabedoria – e de fazer de tudo para ausentar-se do mundo,
fugir a carne e a geração. O monoteísmo está inteiramente concentrado na
meditação sobre o nascimento da criança. A expressão dos salmos conjuga
assim na mesma qualidade moral (atribuída a Deus) a virtude do “pai” e a da
“mãe” (a matriz), chamando mesmo o “pai” a adotar a responsabilidade própria
da mãe. Não se podia melhor descrever o fenômeno maior da experiência
humana, o pelo qual um ser (a mãe) torna-se dois seres (a criança) ou – pelo
ponto de vista do pai – dois seres (o pai e a mãe) tornam-se um ser (a criança).
A misericórdia, outro nome desse amor que se separa do ser amado para
reconhecê-lo amando-o, é o princípio mesmo da criação e a virtude que
preside ao reconhecimento e ao amor do outro. É num mundo em que cada um
será reconhecido na sua singularidade excepcional que a fraternidade poderá
aparecer.

UM MUNDO PARA O HOMEM


Na perspectiva da Criação, o homem está colocado em posição de
recebedor e não de fundador ou de proprietário5. Criando o mundo separando-
se dele, o Criador unificou-se instalando o princípio de toda diferença. Ele
funda o lugar do homem, enquanto homem, num mundo do qual Deus retirou-
se totalmente para preparar o lugar dele. O homem desde seu nascimento é,
portanto, colocado como parceiro de Deus na obra de sua criação e na sua
própria criação. Não existe natureza humana à qual ele pertenceria
biologicamente porque sua criação está inacabada. Não existe uma essência
humana da qual cada indivíduo seria um pálido reflexo. Por trás do ser
humano, não tem o magma compacto da vida biológica nem o ciclo impessoal

4
Transcrição em português da tradução proposta por Trigano, ibid. p. 29. Ele justifica a
tradução pelo fato de que, no hebraico, a misericórdia é matricial (rahamim, de rehem): é a
qualidade própria do útero que carrega a criança.
5
TRIGANO, ibid. capítulo II
da vida animal: existe uma vontade, a vontade criadora, a pessoa do Criador –
e é importante que ele seja único de modo que cada homem é, desde o
começo, interpelado por uma pessoa, apanhado por uma chamada que o
precede e o desperta a um nome próprio e a uma consciência. O homem
apenas nascido está colocado em posição de sujeito único, de pessoa original
face à pessoa do Deus único.

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