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TRIGANO, Shmuel, Le monothéisme est un humanisme, Paris, Éditions Odile Jacob, 2000
Santo dos Santos da identidade humana, a secar a fonte absoluta da liberdade
que é seu atributo maior.
O segredo da origem é o penhor da liberdade do homem cuja
essência mesma é ser nascido. Mesmo o genitor não pode dominar a natureza
da vida da qual ele é ator. Apesar do nascimento que vivemos passivamente,
conservamos efetivamente graças a este segredo, a capacidade de nos
determinar, de querer, de nos opor eventualmente à condição na qual
nascemos sem tê-la escolhido. Será sempre assim num mundo no qual se
poderá programar e manipular a origem dos indivíduos? A gratuidade, à qual
remetem o desconhecido e o aleatório de nossa identidade, desaparece de um
mundo como esse. Receber um dom nos obriga em relação ao doador.
o grande magma
A identidade humana está abalada porque perdeu os limites: a
desestabilização dos quadros práticos da identidade individual nas sociedades
contemporâneas é o sinal precursor o mais seguro da massificação que é sua
conseqüência lógica: o grande magma que está para vir. O mundo unificado e
único, a “aldeia global” que se instala através os circuitos da informação e da
economia, parece prometer a unidade humana somente na destruição. As
necessidades dos mercados (e de seus senhores) destinam para o deserto
regiões inteiras, grupos humanos, profissões, de um modo inodoro, quase
surrealista, pulverizando suas identidades e o equilíbrio da sua relação com o
mundo. Uma sociedade é explorada para rebaixar mais o outro, mas é na outra
extremidade do mundo que ficam os responsáveis, aliás totalmente
inconscientes. A tirania fica tão longe de suas vitimas, tão abstrata que ela não
pode mais ser combatida. Ela se disfarça de realidade objetiva e de “lei do
mercado”. Nenhuma sociedade fica segura em relação à própria identidade
nem à sua capacidade de transmitir o que ela é.
Essa evolução não é somente imputável à globalização. Ela poderia
provir dos desenvolvimentos inerentes à ética democrática que opõe cada vez
mais a primazia do indivíduo e do desejo à legitimidade da identidade, seja ela
coletiva ou individual. As identidades sexuais clássicas têm cada vez menos
realidade para os teóricos progressistas do direito; a identidade nacional não
tem mais consistência em relação às reivindicações setoriais ou à abertura
cosmo política. O fato de pertencer a uma identidade nacional ou coletiva e de
desejar transmiti-la passa, não poucas vezes, a ser visto como o sinal de uma
regressão e do fascismo. A humanidade que, até agora, foi composta de
povos, e foi vivida através de povos, está doente e sem rumo.
A desordem que decorre dessa tormenta mergulha os povos num
caos, potencialmente gerador de guerra e de violência. Essa doença da
humanidade histórica, a dos povos, carrega em si a lembrança da Shoah, da
era dos genocídios, da erradicação completa de povos inteiros por Estados que
enlouqueceram mas dispunham de meios de destruição maciça e dos recursos
da razão moderna. Saímos de um século abominável: o rosto humano, a idéia
de humanidade foram objetos de um ataque talvez fatal. A humanidade foi
aviltada no lado das vítimas e mostrou sua bestialidade no lado dos carrascos.
Os sonhos grandiosos de universal, de cosmopolitismo, de internacionalismo
escondiam fábricas sombrias de morte porque não se pode separar os
fracassos da modernidade do seu espírito.
Enfim, é na identidade de cada um que a confusão se instalou. As
manipulações genéticas, o mapeamento dos genes humanos vão confundir as
leis da filiação, da moral da paternidade e da maternidade, quer dizer a cena
original onde se joga o drama da identidade dos indivíduos. Não é
simplesmente a “reprodução” da espécie que está em jogo: é a imagem mesma
do Humano, imagem dupla, nascida da reunião do homem e da mulher fazendo
surgir em seu seio um outro na pessoa da criança. Esse é um esquema
fundamental da humanidade, do humano que está nos homens. Não é uma
qualquer “natureza” biológica que está em jogo: é o espírito mesmo da
humanidade, articulando o princípio da alteridade (a humanidade é dupla face:
homem e mulher, tem sempre do outro nela) com o do mais, da abundância, do
futuro (uma criança que vem se enfiar no meio de um e do outro)! Vamos na
direção de uma grande indiferenciação e do recuo do altruísmo, mesmo se
essa evolução toma a máscara enganosa de um liberalismo progressista. A
errância das consciências, a ausência de normas e de consenso produzem
dois fenômenos contraditórios: o uso da violência para reafirmar uma moral e
lutar contra o sentimento de abandono – é o integrismo cuja finalidade é
restaurar a identidade na sua “integridade” frente ao que a ameaça – e o
exagero da moral – é o fenômeno do excesso de justiça, do juridismo que
invadiu o espaço publico, especialmente nas democracias, para tentar conter
os desvios. No integrismo, não existe mais alteridade: todos os diferentes
devem ser eliminados! No juridismo, não existe mais consideração do homem:
a norma destrói a existência e a vida, o homem é inteiramente julgado,
inteiramente exposto ao julgamento. É uma situação desumana que o reduz
para a condição de objeto, não deixando capacidade de arrependimento, de
fazer corpo com a própria humanidade. A moral e o direito tornaram-se armas
na luta pela dominação. Como confiar ainda no julgamento de um tribunal? Se
a desumanização programada do gênero humano continuar seu caminho, é o
risco de um poder total que aparece no horizonte, mais assustador ainda pelo
fato que ele reinará escondido atrás da desordem e da indiferenciação e por
meio deles.
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TRIGANO, Shmuel, Le monothéisme est un humanisme, Paris, Éditions Odile Jacob, 2000,
capítulo primeiro.
um sentimento de inferioridade, esse teria projetado num ser imaginário todas
as qualidades que ele não ousava reconhecer em si, ao ponto que ele ficou
delas despossuído ao ponto de tornar-se escravo desse ser fantástico. A
unidade, quando ela não alimenta uma mística suicidaria e mortífera (a nação
“uma” face a seus inimigos, por exemplo) tornou-se também para muitos –
ainda mais hoje – um fator de angústia. Integrismo, imperialismo e totalitarismo
são seus atributos os mais comuns. A unidade foi apreendida como um
princípio de exclusão e de apropriação. Tem somente para um e não para os
outros! O Uno abre um abismo no ser, e sua experiência para o homem, que
está no mundo natural tão misturado, é sinônimo de retração e de ascese,
experiência abrupta que dá para a unidade um caráter paradoxalmente maciço
e monolítico. A proximidade com o Uno obriga igualmente a consciência que o
contempla e o enfrenta a uma retomada de suas forças porque essa
experiência aparenta-se à do face a face: os interlocutores só podem
confessar-se em todo o seu ser, um face ao outro. Ora, no monoteísmo, o
interlocutor divino é Uno e radicalmente separado de um mundo variável e que
muda. Essa unidade divina chama um parceiro único, “eleito”, o que faz
parecer que todos os outros, seus semelhantes, parecem ser rejeitados. A idéia
de unidade, aplicada ao mundo como ele é, induz uma separação, uma ruptura
e, portanto, naturalmente uma limitação. O uno abre um abismo no mundo
relativista e multifacetado da experiência... Existe um processo de
desertificação na experiência do Uno!
Como falar em outros termos do monoteísmo? É o desafio que
precisa ser enfrentado para abrir uma brecha no muro das idéias recebidas e
jogar uma luz nova sobre a angústia do magma e da ausência de limitação que
toma conta da humanidade hoje. É bem a necessidade consciente de limite
que se manifesta enquanto nada parece fundá-la, pensá-la nem autorizá-la na
consciência contemporânea. Talvez seja também a volta inconsciente e brutal
do limite inerente à nossa condição de homem que caminha na angústia
presente. O que revela em nós o sentimento de abismo que a unidade desperta
em nós?
Não é só a unidade que desperta em nós tal sentimento. O tempo
que passa, a doença e a morte, dão o sentimento que o mundo está vacilando,
que ele escapa de nos e que dançamos perto de um vazio que se assemelha
ao nada. Não é esse o sentimento que nos dever revelar o monoteísmo,
mesmo se a freqüentação do Uno nos revela em compensação a relatividade e
a fragilidade da existência. Se Ele as revela, Ele não encoraja a aceitação
desse estado de fato nem nossa submissão. É o que distingue o monoteísmo
do budismo que chama a renunciar a esse mundo, na contemplação de um
santo nada onde a consciência individual é chamada a dissolver-se e o homem
a aniquilar-se para aceder à beatitude. Nesse aspecto, o monoteísmo é o exato
contrário do budismo cujo sucesso em Ocidente hoje expressa mais a
demissão das consciências e do sentimento de responsabilidade! É mais fácil
renunciar ao mundo perdendo-se no nada do que confrontar-se à prova do
limite, aceitando seu desafio. O que tem o budismo a dizer para responder ao
anonimato e à perda de identidade que ameaçam o homem contemporâneo?
No seu olhar, mais as identidades desaparecem, mais nos aproximamos da
diluição do eu no nada e na ausência de perturbações que caracterizam o ideal
espiritual... O deserto aqui não abre para a riqueza do jardim como na
promessa do monoteísmo. Só o monoteísmo se preocupa com o apagar do
nome do homem.
Na sua perspectiva, o abismo que o Uno abre na consciência
desamarra a profundidade de um horizonte onde pode se manifestar o próximo
porque ele leva a consciência a separar-se dela mesma para dar lugar aos
outros perto de si. O abismo do Uno ajuda a entender que existe o outro no
mundo e isso nos engaja a fazer o luto do nosso desejo de transparência que
nos leva a crer que tudo é como nos pensamos. O Uno nos chama do outro
lado do abismo e nos diz: “saiba diante de quem você está!” porque você
sempre está diante de um outro. Esse outro, é o Deus único, por excelência,
mas o lugar de Deus é também o do próximo, de todos os outros. Essa máxima
– talvez a máxima absoluta do monoteísmo – está em profunda contradição
com a máxima grega “conheça a si mesmo”. Não basta conhecer a si mesmo
para conhecer o outro e encontrá-lo.
É a esse caminho que nos convida a idéia da unidade de Deus. Na
sua luz, tomamos consciência que uma presença reside em permanência no
mundo, diante da qual, e apesar de sua invisibilidade, somos convidados a
estar sempre, uma presença que requer de nos um comportamento digno e
honorável, o que é imposto por qualquer relação ao outro.
A separação criadora
No abismo da unidade prova-se a experiência da alteridade, do
encontro com o outro homem. É na base desse princípio do Uno que podemos
de fato conceber que existe uma diferença no mundo e que ela pode ser
conhecida e respeitada! “Vai para ti!” escuta Abraão, “para ti”, quer dizer para o
nascimento de tua própria subjetividade, a realização de tua própria
singularidade, essa realização que reativa no mundo anônimo a lembrança do
Uno e a separação de si mesmo e dos outros que traz a condição de ser outro.
“Separa-te do magma babeliano para começar teu caminho em direção ao
Uno!”3
O altruísmo é um dos eixos da idéia monoteísta. O Deus Uno é
quem – porque é Uno desde sempre e, portanto, separado – abre ao seu lado
um espaço e acrescenta a ele um ser suplementar que ele reconhece frente a
ele: o homem. O fato que ele seja definido como o Criador vai efetivamente
junto com sua Unidade porque o Criador define-se justamente na sua
separação com a criatura, posta como pertencendo a um gênero diferente dele.
Esse abismo insondável que separa o Criador da criatura é a condição de
possibilidade da existência de um outro ser no mundo, existência que no modo
de ser do homem, levado a reconhecer nele a mesma alteridade dos outros
homens.
Essa separação em relação ao mundo, a si mesmo, aos outros,
requerida pela unidade é penosa; é movida, porém, pelo amor e é a condição
do amor, quer dizer do surgimento de um outro ser ao próprio lado. O
relacionamento amoroso verdadeiro é o contrário da fusão e da identificação.
Se o Deus criador separa-se do mundo e da criatura que ele cria por esse
gesto, é para permitir que ela seja gerada e reconhecida e tornar possível o
relacionamento com ela. Uma tal separação não tem por objetivo o abandono,
o que a privaria de sentido. Pelo corte do cordão umbilical a mãe se separa do
filho para que ele viva, não para que ele morra! Em Babel, os homens tinham
medo de se separar!
3
Essa tradução “Vá para ti” de Gn 12,1 lembra a tradução de Chouraqui “Vá por ti” em
CHOURAQUI, André, A Bíblia, No princípio (Gênesis), Rio de Janeiro, Imago, 1995, p.129. A
interpretação está próxima. Outra interpretação que vai nessa direção é de Marie Balmary em
BALMARY, Marie, Le sacrifice interdit, Freud et la Bible, Paris, Grasset, 1986
Uma belíssima expressão bíblica designa essa separação motivada
pelo amor. Ela define Deus como “misericordioso”, apresentando ele “como um
pai que se faz matriz para seus filhos” (Sl 103, 13)4. A experiência é
profundamente original em relação aos gregos para os quais o corpo (soma) é
“túmulo” (sema) da alma e mais vale para o homem não ter nascido. O homem
se vê propor como único projeto aceitar o lugar que lhe é designado no cosmos
– é o propósito da sabedoria – e de fazer de tudo para ausentar-se do mundo,
fugir a carne e a geração. O monoteísmo está inteiramente concentrado na
meditação sobre o nascimento da criança. A expressão dos salmos conjuga
assim na mesma qualidade moral (atribuída a Deus) a virtude do “pai” e a da
“mãe” (a matriz), chamando mesmo o “pai” a adotar a responsabilidade própria
da mãe. Não se podia melhor descrever o fenômeno maior da experiência
humana, o pelo qual um ser (a mãe) torna-se dois seres (a criança) ou – pelo
ponto de vista do pai – dois seres (o pai e a mãe) tornam-se um ser (a criança).
A misericórdia, outro nome desse amor que se separa do ser amado para
reconhecê-lo amando-o, é o princípio mesmo da criação e a virtude que
preside ao reconhecimento e ao amor do outro. É num mundo em que cada um
será reconhecido na sua singularidade excepcional que a fraternidade poderá
aparecer.
4
Transcrição em português da tradução proposta por Trigano, ibid. p. 29. Ele justifica a
tradução pelo fato de que, no hebraico, a misericórdia é matricial (rahamim, de rehem): é a
qualidade própria do útero que carrega a criança.
5
TRIGANO, ibid. capítulo II
da vida animal: existe uma vontade, a vontade criadora, a pessoa do Criador –
e é importante que ele seja único de modo que cada homem é, desde o
começo, interpelado por uma pessoa, apanhado por uma chamada que o
precede e o desperta a um nome próprio e a uma consciência. O homem
apenas nascido está colocado em posição de sujeito único, de pessoa original
face à pessoa do Deus único.