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Tm do em suas piginas. je a dedicagio de Cecilia Scurfield e Elizabeth Wal eda criptogral pela ajuda financeira, entre fotras, que recebi do St, John’ College, em Cambridge, do Common- ‘wealth Fond of New York e do Dresfdente da University of Californis ‘A maioria das fontes & menefopada nas notas bibliogrAficas, mas devo mencionaro grande estilo qe n0 info de minha pesquisa foi a leitura de Fiction and the pac, de Q. D. Leavis. Minhas foutras dividas sto extensas/ Mrs. A. D. M. de Navarro, Eric Twist © alho desde o inicio; sow LE University of California, Berkeley, Fevereiro de 1956 | wh TT, Zon townie de rérmirett. : sco Bidet Comparhin don Lilies, LRG, uBR 10 XN 1 O REALISMO E A FORMA ROMANCE ‘Ainda no hé respostas inteiramente satisfat6rias para muitas das perguntas genéricas que qualquer pesso interessada nos roman- cistas de infcios do século XVIII poderia formular. O romance & uma forma lteréria nova? Supondo que si se iniciou com Defoe, Richardson ¢ Fielding, em que o romance difere da prosa de fiogto do passado, da Grécia, por exemplo, ou da Idade Média, ou da Franca do século XVII? E hi algum motivo para essas diferencas terem aparecido em determinada época e em determinado local? Nunea 6 fil abordar questdes {20 amplas, muito menos res pondé-las, e neste caso elas sho particularmente diffceis, pois a rigor Defoe, Richardson e Fielding ndo constituem uma escola literria. Na verdade suas obras apresentam to poucos indicios de influéncia reci- pproca e slo de natureza to diversa que & primeira vista parecia que nossa curiosidade sobre o surgimento do romance dificilmente encon- {raria alguma satisfacdo além daquela oferecida pelos termos "ni ‘acidente™, a dupla face desse Jano do beco sem saida da historia lite: riria, Certamente nio podemos descarté-los; por outro lado no nos stode grande valia. Assim, o presente estudo toma outra diregl0: con- siderando que o surgimento dos tr primeiros romancistas ingleses na ‘mesma geracto provavelmente nto foi mero acidente e que seu gio s6 poderia ter criado a nova forma se as condigies da €poca fossem fav0- veis, este trabalho procura identificartais condigBes do ponto de vista iterdrioe social e descobrir como beneficiaram Defoe, Richardson ¢ Fielding. 7 Para tal exame precisamos inicialmente de uma boa definigio dys caracteristicas do romance — uma definigdo bastante estita p como em geral se supbe, € que u cexcluir tipos de narrativa anteriores e contudo bastante ampla para tbranger tudo que em geral se classifica como romance. Quanto a isso fo romancistas ndo nos ajudam muito. E verdade que Richardson € Fielding se consideravam eriadores de uma nova forma literéria viam fm sun obve uma ruptura com a fieglo antiga: porém nem eles nem seus eontemporancos nos forneceram 0 tipo de caracterizaga0 do novo fgenero do qual precisamos; na verdade sequer assinalaram a diversi: wide de sua ficgdo mudando-lhe o nome — 0 termo “romance” s6 st ‘consagrov no final doséculo XVII CGracas a sua perspectiva mais ampla os historiadores do romance ‘conseguiram contribuir muito mais para determinar as peculiaridades {da nova forma. Em resumo consideraram o “realism” a diferenga ¢s- Sencial entre a obra dos romancistas do inicio do séeulo XVIII ea ficg4o gnterior. Diante desse quadro — escritores distintos que tém em co- um “realism” — o estudioso sente a necessidade de maiores expli- abes sabre o proprio termo, quando menos porque usi-lo aleatoria- mente como uma caracteristica essencial do romance poderia sugerir {que todos os esritores e as formas literdrias anteriores perseguiam © irre. ‘As principais associagBescrlicas do termo “realismo™ sto com # escola dos realistas franceses. Como definicBo estética a palavra “réa lisme” foi usada pela primeira vex em 1835 para denotar a “vérité hu maine” de Rembrandt em oposicio a “idéalité poétique” da pintura ‘Reoeldssiea: mais tarde consagrou-o como termo especificamente lite- Thrio a fundagio, em 1856, do Réalisme, jornal editado por Duranty Infelizmente a uilidade do termo em grande parte se perdeu nas ‘azedas controvérsias sobre os temas “vulgares” e as “tendéncias imo- fais” de Flaubert e seus sucessores. Em conseqténcia a palavra “rea- fHemo'"pascou a ser usada basicamente como ant6nimo de “idealismo” ease sentido —- que na verdade reflete a posigdo dos inimigos dos fealistas ranceses — permeou boa parte dos estudos eriticos ¢ hist6ri os do romance. Comumente se considera a pré-historia do género ape- fas uma questdo de tracar a continuidade entre toda a ficgo anterior ‘que retratava a vida vulgar, a hist6ria da'matrona de Efeso € “realista” Forque mostra que o apetite sexual supera a tristeza de esposis © 0 fur Dliaw ow a picaresca sto “realistas” porque, ao apresentar o comport ‘mento humano, prvilegiam motivo econtmicos ov carnais. De acordo ‘com a mesma premissa, considera-se que o auge dessa tradicRo esté nos ngleses do século XVIII e nos franceses Furetidre, Scarron, ealismo” dos romances de Defoe, Kichardson ¢ Fielding € R Pre ereereron Flanders ser ladra, Pamela ser hipBcrta e Tom Jones ser fornicador. TEntretanto esse emprego do termo realism” temfo grave deteito de esconder 0 que & provavelmente a caracterisica mais original do igénero romance. Se este fose realstas6 por vera vida pelo lado mais feio nto passaria de uma espécie de romantismo &s avessas; ma ver- dade, porém, certamente procura retratar todo tipo de experiéncia hu fmana.e ndo 56 as que se prestam a determinada perspectiva literdria Seu realismo nao esté na espécie de vida apresentada,e sim na mancira como a apresenta Exidentemente tal posigao se wssenictha muito & dos realistas frances, os quai diam que, se seus romances tendiam a diferencia se dos quadroslisonjiros da humanidade mostrados por muitos cbdi {05 Ecos, socais¢ lterdriosestabelecidos, era apenas porque const: fulam o produto de uma andlise da vida mais desapaixonada e cient fica do que se tentara antes, Noh cvidéncia de que ess ideal de obje vidade cientifica seja desejével e com certeza no se pode concre tixk-lo: no entanto € muito significativo que, no primeir esforg sist ‘mitico para definir os objetivos e métodos do novo género, os ralistas francesestivessem atentado para uma questo que o romance coloca de modo mais agudo que qualquer outa forma iterdria ~ w problema da correspondéncia entre a obra literiria e a realidade que ela imita Trata-se de um problema essencialmente epistemolbgico e, asim, pa~ rece provivel que a natureza do realismo do romance — no século XVIII ou mais tarde — pode se elucidar melhor com a ajuda de profi sionais yoltados para a andllse dos conceit, vu seja 05 fi6sofos. mn paradoxo que 36 surpreenderk o nesfito, 0 termo "re tismo” aplica-se em filosofia estritamente a uma visto da realidade ‘posta & do uso comum — a visio dos eseolisticos realistas da Idade Média segundo os quais as verdadeiras "realidades” slo os universas, classes ou abstragies, ¢ nfo os objetos particulates, coneretos, de pe ‘cepyo sensorial. A primeira vista ico parece imitl, pois no romance, smal que em qualquer outro género, as verdades gerais s6 existem post res; entretanto a prépria estranheza da posiglo do realismo escoléstico serve pelo menos para chamar a alengio para uma caracteristica do romance que € anloga a0 atual significado filos6fico do “realismo"’ © gEncro surgiu na era moderna, cuja orientaglo intelectual grral se 3 afastou decisivamente de sua heranga clissica e medieval rejeitando — ou pelo menos tentando rejitar — os universais.? Certamente 0 moderno realism parte do principio de que 0 indi- viduo pode descobrir a verdade através dos sentidos: tem suas origens ‘em Descartes e Locke ¢ foi formulado por Thomas Reid em meados do steulo XVIIL? Mas a idéia de que o mundo exterior € real e que 0s sentidos nos! ‘muito o realismo literirio; como praticamente todas as pessoas em to- das as 6pocas se viram forgadas, de um modo ou de outro, a tirar al- ‘guma conclusto sobre o mundo exterior a partir da prépria experién- a literatura em certa medida sempre esteve sujeita A mesma inge- ‘uidade epistemol6gica. Além disso os principios caracteristicos da epistemologia realista e as controvérsias a eles ligadas so em geral ‘demasiado especializados na natureza para ter grande relagdo com a literatura. A importincia do realismo filosbfico para o romance £ muito ‘menos especifica; trata-se da postura geral do pensamento realisa, dos ‘métodos de investigacio utilizados, do tipo de problema levantado, ‘A postuta geral do realismo filos6fico tem sido critica, antitradi- cional e inovadora; seu método tem consistido no estude dos particu- lares da experiéncia por parte do pesquisador individual, que, pelo ‘menos Idealmente, est livre do conjunto de supasigdes passadas ¢ con viogdes tradicionais; e tem dado particular importancia & semantica, ‘ao problema da natureza da correspondéncia entre palavras e reali- dade. Todas essas peculiaridades do realismo filosbfico tém analogias com 0s aspectos especificos do género romance — analogias que cha- ‘mam a atengao para tipo earacteristico de correspondéncia entre vida « literatura abtida na prosa de ficglo desde os romances de Deloe & Richardson, @ A grandeza de Descartes reside sobretudo no método, na firme nagem como um individuo particular nomeando-a da mesma forma ‘que os individuos particulares s4o nomeados na vida rea Logicamente o problema da identidade individual tem intima re- Jagao como status epistemologico dos nomes proprios; assim, nas pala vras de Hobbes, “os nomes préprios trazem A mente uma Gnica coisa; 6s universais lembram muitas @ todos". Os nomes proprios tém exa tamente a mesma funcao na vida social: soa expressio verbal da iden- tidade particular de cada individuo. Na literatura, contudo, foi 0 ro ‘mance que estabeleceu essa funcdo. [Nas formas literdrias anteriores evidentemente as personagens em geral tinham nome préprio, mas 0 tipo de nome utilizado mostrava {que o autor nfo estava tentando crif-las como entidades inteiramente individualizadas. Os preceitos da critica cléssica e renascentista con- cordavam com a prética literdria, peferindo nomes ou de figuras hist6> 1» ricas ou de tipos. De qualquer modo os nomes situavam as personagens no contexto de um amplo conjunto de expectativas formadas basi mente a partir da literatura passada, e no do contexto da vida con temporinea. Mesmo na comédia, onde em geral as personagens nio ‘ram histérieas, mas sim inventadas, os nomes deviam ser “caracterts- ticos”, como nos diz Aristeles,"e tenderam a permanecer como tal ‘muite depois do surgimento do romance. ipos mais antigos de prosa de ficgHo também tendiam @ rnomes préprios caracteristicos, ou nto particulares e de algum modo irrealistas; nomes que, como os de Rabelais, Sidney ou Bunyan, deno- tavam qualidades particulares ou que, como os de Lyly, Aphra Behn ou mrs, Manley, tinham conotagOes estrangeiras, arcaicas ou literrias {que excluiam qualquer sugestio de vida real e contemporinea. Con- firma o cardter basicamente literrio e convencional desses nomes pr6- prios o fato de que em geral eram um sé — mr. Badman ou Eu- hues —: ao contrario das pessoas resis, as personagens de fieg40 no tinham nome e sobrenome. ‘Mas of primeiros romancistas romperam com a tradigao e bat ‘aram suas personagens de modo a sugerir que fossem encaradas como individuos particulares no contexto social contemporineo. Defoe usa os rnomes préprios de mado displicente e as vezes contradit6rio; porém ra- +amenteescolhe nomes convencionais ou extravagantes — uma possivel cexceeio, Roxana, & um pseudOnimo bem explicado —; ¢ a maioria de seus protagonistas, como Robinson Crusoe ou Moll Flanders, t@m no- -¢ alcunhas completos e realistas. Richardson prosseguiu nessa pri- ‘porém foi muito mais cuidadoso e deu nome e sobrenome a todas, as suas personagens principais, bem como A maioria das secundatias, ‘Também se defrontou com um problema menor, porém nto desprovido de importincia, na elaboracio de um romance: escolher nomes sutil ‘mente adequados e sugestvos, ainda que paresam banais e reaistas Assim as conotagSes rominticas de Pamela esbarram no sobrenome ‘comum de Andrews; Clarissa Harlowe e Robert Lovelace so batizados adequadamente; © na verdade quase todos os nomes proprios de Ri- chardson, de mrs. Sinclair a sir Charles Grandison, parecem auténticos ce condizentes com a personalidade de seus portadores. ‘Como assinalow um criico contemporaneo, Fielding batizou suas ppersonagens “nfo com grandilogdentes nomes Tantésticos, mas com homes que, embora as vezes tenham alguma relaglo com a persona ‘gem, possuem uma terminaglo mais moderna’. Heartfree, Allworthy f Square, certamente versies modernizadas do nome de um tipo, nto ‘Western au Tom Jones sugerem tic 0 ‘que 0 autor visava tanto ao tipo geral como ao individuo particular. Isso, contudo, no contradiz o presente argumento, pois com certeza ! ‘hd concordincia geral quant ao fato de que os nomes de Fielding e na verdade toda a construgao de suas personagens constituem uma rup- tea com 0 tratamento habitual dessas questdes no romance. Nao qui ‘como vimos no caso de Richardson, nfo haja lugar no romance pa rnomes préprios que de algum modo so adequados & personagein em ‘questo, porém essa adequago ndo deve interferir na fungio primor- dial do nome: mostrar que a personagem deve ser vista como uma pes 'Na verdade parece que Fielding compreendeu isso quando esere veu seu siltimo romance, Amelia: sva preferéncia neoclissica por no- ‘mes de tipos encontra expressto apenas em personagens menores como Justice Thrasher e Bondum, © meirinho; ¢ todas as personagens prin pais — of Booth, miss Matthews, 0 dr. Harrison, a enranel Tames, 0 ‘argento Atkinson, ocapitio Trent e mrs. Bennet, por exemplo — tém homes usuais na época. Na verdade hi alguma evidéncia de que, como certos romancistas modernos, Fielding recolheu esses nomes a0 acaso numa lista de contemporineos — todos os sobrenomes mencionados cima conctam de uma relaclo de assinantes da edicdo de 1724 da His- tory of his own time (Hist6ria de seu tempo), de Gilbert Burnet, edi- ‘¢l0 que, como se sabe, o autor de Tom Jones possuia."* De qualquer modo, & certo que Fielding fez consideriveis e eres- ‘centes concessdes a0 costume inaugurado por Defoe e Richardson de Ihatiraras personagens com nomes habituais em sua época. Alguns ro- ‘mancistas do final do século XVIII, como Smollette Sterne, nem sem- pre seguiram esse costume, que, no entanto, se fixou mais tarde como parte da tradieio do género; e, conforme Henry James assinalou com Felagdo ao fecundo clérigo mr. Quiverful, de Trollope,” 0 romancista sh pode romper com a tradigto destruindo a crenca do leitor na real dade literal da personagem. w Locke definiu a identidade pessoal como uma identidade de cons cigncia ao longo de umn periodo no tempo; 0 individuo estava em con- tato com sua identidade continua através da lembranga de seus pen rmentos e atos passados.™ Hume retomou essa localizagio da fonte da identidade pessoal no repertério das lembrancas: "Se nlo tivéssemos meméria, nunca feriamos noglo de causalidade nem, consequente- a mente, daquela cadeia de eausas ¢ efeitos que constitu nosso self ou pessoa". Essa posiclo € tipica do romance; muitos romancistas, de Sterne a Proust, exploraram a personalidade conforme & definida na interpenetraglo de sua percepeio passada e presente. (O tempo é uma categoria essencial em outra abordagem similar porém mais superficial do problema da definiglo da individualidade de ‘qualquer objeto. O “principio de individuagao”™ 4da existéncia num local particular do espago e tempo: pois, como es- creveu, “as idéias e tornam geraisseparando-se delas as circunstinci de tempo e lugar”, portanto se tornam particulares s6 quando essas duas cireunstAncias so especificadas. Da mesma forma as personagens ddo romance s6 podem ser individualizadas se estio situadas num con- texto com tempo e local particularizados. Na Grécia e em Roma # filosofia e « literatura receberam pro- funda influéneia da concepcto platGnica segundo a qual as Formas ou ldgias eram as realidades definitivas por tris dos objetos concretos do ‘mundo temporal. Essas formas eram concebidas como atemporais € imutéveis™ e, assim, refletiam a premissa bisica de sua civilizaglo em ‘geral: nfo acontecew nem podia acontecer nada cujo significado funda- ‘mental ndo fosse independente do luxo do tempo. Tal premisea é dia- ‘metralmente oposta 4 concepclo que se imps a partir do Renasci- mento segundo a qual o tempo & nlo s6 uma dimensto crucial do ‘mundo fisico como ainda a forga que molda a histéria individual e cole- tiva do homem. Em nada 0 romance 6 tho caracteristco de nossa cultura como na {forma pela qual reflete essa orientagfo tipica do pensamento moderno. E. M. Forster considera o retrato da “vida através do tempo” como a fungio distintiva que o romance acrescentou & preocupagio mais an ‘ign da literatura pelo retrato da “vida através dos valores”; Spengler atribui osurgimento do romance & necessidade que o homem moderno “ultrachistérico” sente de uma forma literdria capaz de abordar “a to- lulidade da vida"; mais recentemente Northrop Frye v8 a “allanga centre tempo e homem ocidental” como a earacterstica definidora do romance comparado com outros gneros.™* Jk examinamos um aspecto da importincia que o romance atri- uid dimensio tempo:sua ruptura com a tradicio literfria anterior de ‘usar histrias atemporais para refletir verdades morais imutaveis. O cenredo do romance também se distingue da maior parte da ficglo an- | terior por utilizar a experiéncia passada como a causa da ago presente: ‘uma relagdo causal atuando através do tempo substitui a confianga que ‘as uarrativas mais antigas depositavani nos disfarces e coincideéncias, © 2 por Locke era 0 isso tende a dar ao romance uma estrutura muito mais coesa. Ainda ‘mais importante, talvez, 60 efeto sobre a caracterizacao da insisténcia ddo romance no processo temporal. O exemplo mais evigente e extremo €0 romance de fluxo de consciéncia, que se prope apresentar uma citagdo direta do que ocorre na mente do individuo sob o impacto do fluxo temporal; em geral, porém, mais que qualquer outro género lite- ririo, o romance se interessou pelo desenvolvimento de suas persona- {gens no curso do tempo. Por fim, a descrigto detalhada que o romance , faz das preocupagées da vida cotidiana também depende de seu poder sobre a dimensto tempo: T. H. Green mostrou que grande parte da vida do homem tendia a ser quase inacessivel & representagao literaria devido a sua lent ‘8 fidelidade do romance & experiencia coti- diana depende diretamente de seu emprego de uma escala temporal ‘muito mais minuciosa do que aquelautilizada pela narrativa anterior. certamente difere muito do que tem no romance. A restrigdo da ago da tragédia a 24 horas, por exemplo, a decantada unidade de tempo, na verdade equivale a uma negacio da importancia da dimensio tem- poral na vida humana; pois, de acordo com a concepglo da realidade pelo mundo clissico — subsistindo em universais atemporais —, im- plica que a verdade da existéncia pode sc sevclas inicinamente no es ppago de um dia como no espago de uma vida toda. As decantadas per- sonificagBes do tempo como o carro alado ou o sombrio cefeiro revelam ‘uma concepgto essencialmente similar. Concentram a atenclo no no fluro temporal, mas na morte, que ¢ atemporal; cabe-thes a fungao de ‘minar nossa percepga0 da vida couidiana a fim de que nos preparemws para encarar a eternidade. Na verdade essas personificagaes se asseme- Tham 4 doutrina da unidade do tempo por serem fundamentalmente ‘historias e, portanto, tipicas da menor importincia atribuida a di- ‘mensio temporal na maioria das obras literdrias anteriores ao ro- ‘A nogto de passado histérico em Shakespeare, por exemplo, & muito diferente da concepgto moderna. Tréia ¢ Roma, os Plantagencta €05 Tudor, nada est suficientemente longe para diferir muito do pre- ‘sente ou entre si, Nesse aspecto Shakespeare reflete a concepcto de sua {¢poca: morrers tril anus autes de o termo “anacronismo” ser usndo nna Inglaterra pela primeira vez™e ainda estava muito preso & concep- ‘glo medieval da Histéria, segundo a qual, nto importa o perfodo, a ‘oda do tempo revolve os mesmos exenipla eternamente aplichveis. Essa concepgdo a-hist6rica estéligada a uma surpreendente falta e interesse pelo detalhamento do tempo minuto a minute e din 9 di 2B — falta de interesse que levou o esquema temporal de tantas pegas de Shakespeare e de muitos de seus predecessores, a partir de Esquilo, ‘ aturdir editores e eriticus. Na fiogo mais antiga a ait «lo a0 tempo € bastante parecida; a seqdéncia de acont se num continuum de tempo e espago muito abstrato e atribui bem pouca importincia ao tempo como um fator dos relacionamentos hu: ‘manos. Coleridge apontou a ““maravilhosa independéncia e a verda- deira auséncia imaginativa de todo esparo ou tempo particular em The {faerie queene (A rainha das fadas)”; ¢ a dimensto temporal das ale ‘gorias de Bunyan ou das narrativas picas também & vaga e no parti- cularizada, Logo, porém, a moderna noglo de tempo comecou a permear ‘muitas freas de pensamento. O final do século XVII assstiu a0 surgi- ‘mento de um estudo da Historia mais objetivo e, por conseguinte, de ‘uma compreensio mais profunda da diferenca entre passado e pre- sente.”* Newton e Locke apresentaram uma nova andlise do processo ‘emporal;® este se tornou um sentido de duraglo mais lento e meci- nico, determinado com precisio suficiente para medir a queda dos ob- Jetos ou a sucesso dos pensamentos. . Esses novos enfogues refletem-se nos romances de Defoe. Sua ficgao ¢ 8 primeira que nos apresenta um quadro da vida Individual ‘numa perspectiva mais ampla como um processo histérico e numa visio mais estreita que mostra o processo desenrolando-se contra o pano de fundo dos pensamentos e ages mais efémeras. E verdade que as esca- las de tempo de seus romances As vezes so contraditérias em si mes- ‘mas ¢ em relaglo a sua suposta ambientacio historiea, mas o simples {ato de existirem tais objegdes certamente consttui um tributo a ma- neira como leitor sente arraigamento das personagens na dimensto temporal. Evidentemente nto pensarfamos em Jevantar as mesmas ob- jJesBes quanto a Arcadia de Sidney ou The pilgrim's progress (A jor- ‘nada do peregrino); &reslidade temporal nao se evidencia 0 suftetente para permitir qualquer tipo de discrepfincias. Em Defoe essa realidade se evidencia, Em seus melhores momentos ele nos convence inteira- ra se desenrola em determinado lugar e em ta lembrarmo-nos de seus romances pensamos Dasicamente naqucles momentos intensos da vida das personagcns, encadeados de maneira a compor uma perspectiva biogrifica convin- cente. Percebemos um sentido de identidade pessoal que subsiste at ‘és da duragto eno entanto se altera em funclo da experiéncia Essa percepeio € mais intensa em Richardson, que teve 0 cui- dado de stuar os fates de sua narrativa num esquema temporal de wma m riqueza de detalhes sem precedentes: 0 sobrescrito de cada carta nos informa o dia da semana e muitas vezes a hora do dia; e isso compe ‘uma estrutura objetiva para o detalhe temporal ainda buaior das pro- prias ecartas — sabemos, por exemplo, que Clarissa faleceu numa ‘uinta-feira, 7 de setembro, as dezoito horas € quarenta minutos. O cemprego da forma epistolar também leva oleitor a sentir que realmente participa da ago, com uma intensidade até entao inédita, Richardson sabia, conforme escreveu no "Preféicio" de Clarissa, que as “situagdes critica (...) com o que se pode chamar de descrigdes e reflexdesinstan- tineas” prendem melhor a atencio; e em muitas cenas 0 ritmo da nar- rativa diminui, gragas a descrigdes minuciosas, aproximando-se bas: tante daquele da experiéncia real. Nessas cenas Richardson conquistou para o romance 0 que a técnica do “close-up” de D. W. Griffith fez para o cinema: acrescentou uma nova dimensto A representacio da realidade, . Fielding tratou o problema do tempo em seus romances a partir dde uma posicio mais exterior ¢ tradicional. Em Shamela zomba do tempo presente utilizado por Richardson: Mrs, Jervis eu estamos na cama, a porta nto est traneada; se meu rho chegar(...)escuto-o chegar & porta. Vés que escrevo no presente, ‘como dizo pasior Willams. Bem, ele esta na cuma, entre nos.” Em Tom Jones ele indicou sua intenglo de ser muito mais seletivo que Richardson a0 trabalhar a dimensio tempo: Pretendemos (..) perseguir © método daqueleseseritores que declaram revelar as revolugbes dos plses, € nao imitaro hstriador Wife prox Tixo que, para preserva & regularidade de sua seqQécia, julgn-se na ‘obrigacto de encher tanto papel com o delathe de meses e anos em que rads digno de nota ocoreu quanto 0 que se wtlea para épocasnotivels fem que as maiores cena e desenvolaram no palco da vida humana.” Paralelamente, contudo, Tom Jones introduziu uma inovagao Interes- sante no tratamento do tempo em obras de fiegto. Fielding parece ter Uusado um almanaque, esse simbolo da difusao de uma nogio objetiva do tempo pela imprensa escrita; salvo ligeiras excegdes, praticamente todos os fatos de seu romance possuem uma coeréncia eronolégica no SGem ielaySo wns aos outros eA época cm que ocorreu cada eathgio da viagem das varias personagens de West Country a Londres, mas tam: bém em relagdo a consideragdes externas como as fases adequadas da Lua ea programagio da revola jacobita de 1745, ano em que presui velmente transcorre a agdo.”” 2s © [No presente contexto, como em muitos outros, o espago & neces- sariamente 0 correlativo do tempo. O caso individual e particular logi- ccamente é definido com relacio a duas coordenadas: espaco e tempo. ‘Como Coleridge assinalou, psicologicamente nossa idéia de tempo ests "sempre misturada com a idéia de espago”¥ Na verdade para muitos propésites as duas dimensdes slo insepardvels, como sugere o fato de as palavras “presente” e “minuto" poderem referirse a qualquer rmensto; e a introspecglo mostra que nfo conseguimos facilmente sualizar um momento particular da existéncia sem situé-lo ambém em seu contexto espacial. ‘Na tragédia, na comédia e na narrativa o lugar era tradicional mente quase tio genérico ¢ vago quanto o tempo. Como nos informa Johnson, Shakespeare “nfo considera a diferenga de tempo ou local”; ‘ea Arcadia de Sidney & tBo solta no e=paco quanto o8 Limbes bofmios do palco elisabetano. E verdade que na picaresea, bem como em Bu- ryan, hi muitas deseriges fisicas, vividas e particularizadas; sto, con- tudo, incidentais e fragmentirias. Defoe parece ser 0 primeiro dos es critores ingleses que visualizou 0 conjunto da narrativa como se esta se ‘desenrolasse num ambiente fico eel. Seu cuidado com a descrigto do ambiente ainda é intermitente, mas os detalhes vividos conquanto oca- sionais suplementam a continua implicagio de sua narrativa e nos levam a relacionar muito mais completamente Robinson Crusoe e Moll Flanders a seus respectivos meios do que fazfamos com as personagens, de flogto anteriores, Essa firmeza da ambientayao destaca-se pa rente na maneira como Defoe trata os objetos méveis do mundo fi- ‘em Moll Flanders h& muito linho e ouro, enquanto a itha de Ro- son Crusoe est cheia de roupase ferramentas. ‘Novamente no centro do desenvolvimento da téenica da narrativa tealita, Richardson levou o processo ainda mais longe. Em seus ro- ‘mances faz poueas descrig®es do cenfrio natural, porém dispensa con- siderivel atengio aos interiores. As residéncias de Pamela em Lincoln- shire e Bedfordshire sfo prisbes bastante reais; Grandison Hall & des- rosos detalhes; ¢ algumas descrigdes de Clarissa ante- \de de Balzac em construir 0 cendrio do romance de ‘modo a conferir-Ihe forga dramética — a mansio Harlowe torna-se um ambiente fisico e moral terrivelmente real. [Nesse aspecto também Fielding se fasta um povco da particula- ridade de Richardson. No nos apresenta interiores completos, ¢ suas roqUentes daccrighes de paicagenc o bastante convencionsis. No en- 26 {anto Tom Jones contém a primeira mansto géica da hist6ria do ro- ‘mance; Fielding é tio cuidadoso com a topografia gla aglo quanto ‘com a eronologia;cita o nome de muitos lugares percotrides por Tom Jones em sua viagem a Londres e fornece varios indicios da localizagao decoutros Em geral, portanto, embora no haja no romance do século XVIII nada que se iguale aos eapituls iniciais de Le rouge et le noir (O vermelho e o negro) ou Le pére Goriot (O pai Goriot) — 0s quis indi- cam de imediato a importincia que Stendhal ¢ Balzac conferem 20 ‘meio ambiente em seu retrato total da vida —, sem divida a busca da verossimilhanga levou Defoe, Richardson e Fielding a iniciar aquele poder de “colocar o homem inteiramente em seu cenitio fisico”, 0 que para Allen Tate constitui a earacteristica distintiva do género roman. ‘ce># ea considerivel extensto de seu sucesso nio constitui o menor dos fatores que os distinguem dos ficcionistas anteriores e explicam sua importancia na tradigio da nova forma, “ Parece que todas as caracteristicasttenicas do romance descritas acima contribuem para a consecuglo de um objetivo que o romancista ‘compartilha com o filésofo: a elaboragio do que pretende ser um relato auténtico das verdadeiras experiéncias individuals. Tal objetivo envol- via muitas outras rupturas com as tradigBes da ficglo, além das j& men: clonadas, A mais importante talver — a adaptacio do estilo da prosa a fim de dar uma impressto de absoluta autenticidade — também se zelaciona intimamente com uma das énfases metodolgicas distintivas, do realism filosifico. ‘Assim como foi oceticismo nominalista com relagio a linguagem {que comecou a minar a atitude dos realistas excoldstives diante dos tuniversuis, assim também 0 moderno realismo logo se defrontou com problema temntico. Nem todas as palavras representam objetos reas, ‘ou nio os representam da mesma forma, e portanto a filosofia se vi diante do problema de definir sua ldgica. Os capitulosfinais do terceiro IWvro do Essay concerning human understanding (Euseio sobre o enten- dimento humana), de Locke, constituem provavelmente a evidénci ‘mais importante dessa corrente no século XVII. Muitos dos coment&- rios sobre o uso adequado das palavras excluiriam boa parte da litera ‘ura, pois, como Locke constata com tristeza, “a eloqhéncia, tal qual 0 exo frégil”, implica um prazeroco engano." Por outro lado é interes: 7 sante notar que alguns dos “abusos de linguagem” especificados por Locke — como a linguagem figurativa, por exemplo — constituiram ‘uma caracteristica da narrativa de fieglo, porém sto muito mais raros ra prosa de Defoe ¢ Richardson do que em qualquer fiecionista an- terior. 'A tradigdo estlistica da ficgo mais antiga nao se preocupava tanto com a correspondéncia entre palavras e coisas quanto com as belezas extrinsecas que o uso da ret6rica podia conferir & descrigdo acto. A Acthiopica de Heliodoro estabeleceu a tradiglo da ornamen- taco lingdistica na narrativa grega e a tradiclo prosseguiu no eufuls- ‘mo de John Lyly e Sidney e nos conceitos elaborados, ou “phébui ‘de La Callrenéde ¢ Madeleine de Scudéry. Assim, mesmo que 0s novos. ficcionistas tivessem rejeitado a velha tradicao de misturar poesia prosa — tradicao seguida até em narrativas totalmente dedicadas a re- tratar uma vida desprezivel, como 0 Satyricon, de Petrbnio —, ainda restaria a forte expectativa lterdria de que usariam a linguagem como uma fonte de interesse em si mesma e ndo como um simples veiculo referencial. De qualquer modo evidentemente a tradiglo critica clssica em eral no va utlidade na descr realista despojada que tal emprego da linguagem implicaria. Quando 0 nono Tatler® (1709) apresentou a "Description of the morning” (Descrigio da manha) de Swift como uma obra em que o autor “segue um caminho inteiramente novo e des- reve as coisas tal qual ocorreram", 0 tom era irdnico. A suposicao implicita deescritores e erticos cultos era a de que a habilidade de um autor se revelava no na fidelidade com que fazia suas palavras corres- Ponderem aos respectivos objetos, mas na sensiblidade literéria com {que seu estilo refletia 0 decoro lingtistco adequado a0 assunto. Assim, natural que devamos nos voltar para escritores externos aos circulos| intelectuais para buscar nossos exemplos mais antigos da narrativa de ficeHo elaborada numa prosa praticamenterestrita a um emprego des- critivo e denotativo da linguagem. Também & natural que muitos escri- tores cultos tenham atacado Defoe ¢ Richardson por sua forma canhes- tracem geral descuidada, Por certo suas intengdes basicamente realistas demandavam algo ‘muito diferente dos padrées estabelecidos da prosa literiria. E verdade gue © movimento em direglo a uma prosa clara ¢ flcil no Final do século XVII contribuiu muito para a criago de um modo de expresso (0) The Tatler: periic ero, ited «pubiado a agate ate 1709 ¢ 171, por Richard Stee com weaaborsto de eseph Addison. (N.T) 28 bbem mais adequado ao romance realista do que aquele que existia snles; enquanto a concepeo lockeana da linguagemjcomecava a re- Netirse na teoria literéria — John Dennis, por exemplb, baniu as ima- ‘gens em determinadas circunstancias por julgé-las nao realistas: "Ne- ‘nhum tipo de imagem pode expressar a dor. Se um homem se lamenta por similes, eu rio ou durmo'.* Nao obstante a norma da prosa no periodo augustano* continuava sendo literéria demais para ser a voz natural de Moll Flanders ou Pamela Andrews: e embora a prosa de ‘Addison, por exemplo, ou de Swift seja bastante simples e direta, sua fordenada economia tende a sugerir mais um resumo sucinto que um relato completo. Assim, quando Defoe © ichardson rompem com os cnones do fidis ao que descreviam. Em Defoe essa fidelidade € sobretudo fisica, fem Kichardson ébasicamente emocional, masem ambos sentimos que 0 ppropésito primordial consste em fazer as palavras trazerem-nos seu ob: jetoem toda a sua particularidade concreta, mesmo que isso Ihes custe repetigdes, parénteses, verbosidade. Evidentemente Fielding no rom- peu com as tradigdes do estilo da prosa augustana ou com a abordagem da ¢poca. Mas pode-se dizer que isso dep6e contra a autentiidade de ‘suas narrativas. Ao ler Tom Jones no imaginamos que estamos esprei- tando uma nova exploracio da realidade; a prosa imediatamente nos informa que as operagbes exploratérias terminaram hi muito tempo, que podemos nos poupar o trabalho, e nos fornece um relato selec nado e claro das descobertas. ‘Aqui hi uma curiosa antinomia. Por um lado Defoe e Richard son inflexivelmente aplicam a posicdo realista 3 estrutura da linguagem ‘eda prosa, desprezando outros valores literrios. Por outro lado as vir- tudes esilisticas de Fielding tendem a interferir em sua téenica de romancista, porque uma evidente selego de visio destr6i nossa con- fianga na realidade do relato ou pelo menos desvia nossa atenglo do contesdo da narrativa para a habilidade do narrador. Parece haver ‘uma contradicdo inerente entre os valores literdrios antigos e permi nentes ea técnica narrativa caracteristica do romance. ‘Sugere isso um paralelo com a flegao francesa. Na Franga a po- sigdo critica eldssica, com sua énfase na elegincia e na concisto, per- rmaneceu incontestada até o advento do Romantismo. Em parte por isso, talvez, a ficglo francesa desde La princesse de Cléves (A princesa de Cldves) até Les liaisons dangereuses (As ligagBes perigosas) perma- nnece & margem da principal tradiglo do romance. Apesar de toda a sua acuidade psicolbgica e de sua habilidade lterdria, ¢ clegante demais ser auténtica. Nesse aspecto madame de La Fayette e Choderlos de Lacos so os opostos de Defoe e Richardson cjeproliidade tende consiituir uma garantia da autenticidade de seu.relato, cuja prosa visa exclusivamente ao que Locke definiu como o objetivo proprio da Tinguagem, “transmitir o conhecimento das coisas", e cujos romances ‘como um iodo pretendem nto ser mais que uma transeriglo da vida real —nas palavras de Flaubert, “le réeléert™. Parece, portanto, que a funglo da linguagem € muito mais refe- ‘encial no romance que em outras formas literdrias; que 0 gGnero fun- ciona gracas mais & apresentacto exaustiva que a concentragio ele- ‘ante, Esse fato sem divida explicaria por que o romance ¢ 0 mais tra- uzivel de todos 0s géneros; por que muitos romancistas incontestavel- mente grandes, de Richardson e Balzac a Hardy ¢ Dostoiéeski, muitas veves escrevem sem elegncia e algumas vezes até com declarada vulga ridade; e por que © romance tem menos necessidade de comentério histonco e literario que outros géneros — sua convengeo formal obr 2-08 fornecer suas préprias notas de pé de pig ” ‘Até aqui tratamos das principais analogias entre o realismo na filosofia ena literatura, N20 as consideramos perfeitas: a filosofia & ‘uma coisa ea literatura € outra, Tampouco as analogias dependem da hipotese de a tradicio realista na filosofia ter suscitado 0 realismo no romance. Provavelmente houve certa influtncia, sobretudo através de Locke, cujo pensamento permeia o século XVIII. Entretanto, se existe uuma relacio causal de alguma importincia, provavelmente & bem me- nos direta: tanto as inovagbes filosbficas quanto as literfrias devem ser encaradas como manifestagoes paralelas de uma mudanca mais ampla — aquela vasta transformagio da civlizaglo ocidental desde o Rena: cimento que substituiu a visto unifieada de mundo da Idade Média por foutra muito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto fem evolugio, mas sem planejamento, de individuos particulares vi ‘vende cxperiéacias particulares em épocas ¢ lugares particulares, 30 _lismo filos6fico em sua tent ‘Aqui, no entanto, estamos interessados numa concep¢o muito ‘mais limitada, na extensto em que a analogia com o realismo filos6- fico ajuda a isolar e definir 0 estilo narrativo especifign do romance, “Tem-se dito que este 6 a soma das téenicas literrias através das quais 0 romance imita a vida seguindo 0s procedimentos adotados pelo re va de investigare relatar a verdade. Tais pprocedimentos absolutamente ndo se restringem & filsofia; na verdade tendem a ser adotados sempre que se investiga a relagdo entre qualquer descriio de um fatoe a realidade. Assim, pode-se dizer que 0 romance 4 realidade adotando procedimentos de outro grupo de especia Iistas em epistemologia, o ji de um tribunal. As expectativas deste, como as do leitor de um romance, coincidem sob muitos aspectos: ambos querem conhecer “todos os particulares” de determinado caso = a época e 0 local da ocorréncia; ambos exigem informag@es sobre a identidade das partes envolvidas endo aceitardo provas relativas a gente chamada sis Toby Belch os wr, Baduvatt — menos ainda referentes @ ‘uma Chloe sem sobrenome e “Ho comum quanto 0 ar"; e também es peram que as testemunhas contem a hist6ria “com suas préprias pala- vras". Na verdade o jiri adota a “visio circunstancial da vida, que, segundo T. H. Green,® &. caracteristica do romance. ‘© metodo narrativo pelo qual o romance incorpora essa visto circunstancial da vida pode ser chamado seu realismo formal; formal Porque aqui o termo “‘realismo" nao se refere a nenhuma doutrina ou propésitoliterdrio especifico, mas apenas a um conjunto de procedi ‘mentos narrativos que se encontram t2o comumente no romance e {80 aramente em outros géneros literarios que podem ser considerados tipicos dessa forma. Na verdade o realismo formal &a expresso narra tiva de uma premissa que Defoe e Richardson accitaram ao pé da letra, mas que estd implicita no género romance de modo geral: a premiss, ‘ou convenclo bisica, de que o romance consttui um relato completo € sutGntico da experigncia huimana e, portanto, tem a obrigagao de for necer ao leitor detalhes da historia como a individualidade dos agentes envolvides, os particulares das épocase locais de suas ages — detalhes ue so apresemtados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literfrias, Como as regras da cvidéncia, o realisme formal obviamente io passa de uma convenglo; ¢ nlo hf razio para que o relato da vida hi- ‘mana apresentado através dele seja mais verdadeiro que aqueles apre- sentados através das conveng¥es muito diferentes de outros géneros literérios. Na realidade a impressto de total autenticidade do romance ure dade ou dotada de permanente valor literério sem dvida & em parte ‘esponsivel pela aversio generalizada que hoje em dia se vota ao rea, lismo e suas obras. Tal aversio, entretanto, tantbém pode suscitar umes confuste erties, levando-nos ao ero oposio; nlo devemos deitar que nossa percepcio de certas falhas nos objetives da escola realista dim rua @ considerivel extensio em que o romance em geral —~ tanto de = emprega os meios literdrios aqui denominados realismo formal. Tampouco devemos esquecer que, embora seja ape, ‘nas uma convengto, o realism formal, coma todas as conveneées tne, ‘vias, em suas vantagens especiicas. Hé diferengas importantes no ‘grau em que as diferentes formas liteririasimitam a realidade; ¢o ren, {ismo formal do romance permite uma imitagdo mais imediata da expe. ‘iéncia individual situada num conterto temporal e especial do que futens formas literérias. Por cuuseguinte as convengdes do romance )

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