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BIOTENAS, 2(2):81-92, 1989. 0 LUGAR DO BIOLOGICO NA PSICOLOGIA; 0 PONTO DE VISTA DA ETOLOGIA* ANA MARIA ALMEIDA CARVALHO Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo. Av. Prof. Mello Moraes, 1721. C.P. 66261 (05508) Sao Paulo, SP - Brasil. RESUMO Reflete-se, neste trabalho, sobre a possibilidade de contribuicao do enfoque etologico @ Psicologia, especialmente no sentido de se fornular um conceito de homem que recupere sua unidade bio-psico-social. Esta reflexao e desenvolvida a partir de dois argumentos: a questao da oposicio inato-adquirido, e de sua superacao @ partir dos avancos do conhecimento sobre o com- Portamento animal, & colocada de forna_a questionar a aparen te incompatibilidade entre as implicacées de um enfoque etol gico e o fato da plasticidade humana; em extensao a esse argu- mento, sustenta-se a impossidilidade de opor biologia e cultura como fatores determinantes da especificidade humana, e procura- se explicitar as implicacoes de um conceito do ser humano como especie biologicanente social. UNITERMOS: Etologia humana, Biologia e Psicologia. *Trabalho realizado durante vigéncia de bolsa do CNPq. 81 ALM. AL CARVALHO ABSTRACT The purpose of this paper is to reflect about a possible contribution of the ethological approach to Psychology. especially in what concerns to the formulation of a concept of man which preserves its bio-psycho-social unity. Such reflection is developed from two arguments: the challenge of the innate-acquired dichotomy due to the advances in the knowledge on animal behaviour is procented in order to question the apparent incompatibility between the implications of an ethological approech and the fact of numan plasticity. In extension to this argument, the impossibility of opposing biology and culture as deterninant fectors of the human specificity is sustained, and an attempt is mado to clarify the implications of a concept of man as a cultural biological species KEY WORDS: Human ethology, Biclogy and Psychology. Qual @ © lugar do bioldgico numa Psicologia orientada por un enfoque etoldgico? Esta pergunta pode ser respondida por duas afirmagces que 3 primeira vista podem parecer contradito- rias: nessa Psicologia, 0 dfolégico tem um lugar central; e is- 0 ado implica em reducionismo, inatismo, determinismo genéti- 0 ou qualquer outra forma de desconsideragio do papel da espe- riéncia e do ambiente - no caso especifico do homem, do papel da cultura. Se nao fosse assin, um enfoque etoldgico ac compor~ tamento humano seria, no minino, pouco Gtil, Nesta exposicdo pretende-se sugerir que, nao s@ estas opo- sigdes nao estdo implicadas numa perspectiva em que o bioldgi- co @ central, como que a Etologia tem contributdo - ou tem a pretensio de contribuir - pare um conceito de homem que recu- pera sua unidede bio-psico-social. Como aponta Morin (1979, p.22), "€ evidente que o homen nio @ constituTdo por quas fa- tias sobrepostas, uma bionatural ¢ outra psicosocial; & eviden- te que ele nao & atravessady por qualquer muratha da China se- Parando sua parte humana de sua parte animal". Wo entanto, es- sa evidincia foi deixada de lado pela concepeao insular do ho- mem cue doninou as ciéncias humanas (inclusive varias ireas da a2 BIOLOGIA E PSICOLOGIA Psicotogia) na prineira metade deste século - uma concepgao que rejeita qualquer ligacdo com “naturalismos", e pens2 0 — honem como destacado da natureza € oposto a ela. Embora, em nosso meio, este tioo de esfor¢o no sentico de uma integrago dos pontos de vista das varias ciéncias que tra~ tam do homem seja pouco usual, ou pelo menos pouco divulga¢o, ele nao € novo quando se considera um panorama mats geral do pensamento cientffico. Segundo Morin (1979), encontram-se ten- tetivas tedricas para ancorar a ciéncia do homem numa base na- tural no pensamento do jovem Narx e de outros expoentes do pen- samento do século XIX, como Engels. Spencer e Freud; esse mo- vimento integrador teria ficado sem seguimento por nao ter en- contrado, nos conhecimentos entao disponiveis tanto na antro- pologia como na biologia, um terreno de desenvolvimento. Essa situacdo parece comegar a se reverter a partir da segunda metade de nosso século, especialmente a partir do final da dicada de 60, quando a Europa passa a ser paléo de diversos eventos que reunem pesquisadores de diferentes areas - bidlo- gos, etGlogos, psicdlogos, psiquiatras, antropélogos, historia- dores - em torno de temas que parecem capazes de gerar integra- go. Dois exemplos muito ricos dos frutos ¢esse tipo de esfor- go sio as publicagses resultantes dos simpésios "A discussion on ritualization of behaviour in animals and men" (Huxley ,1966) e “L'unité del'Homne - Invariants biologiques et universaux culturels" (Morin @ Piattelli-Palmarini, 1974, puolicaco no Brasil em 1978). Ora, embora o desenvolvimento da Etologia seja um — fator reconhecidamente importante nesse movimento de integracao, e embora, em nosso meio, a Etologia tenha sido inicialmente — in- troduzida no ambiente académico através de cursos de Psicolo- gia, 0 reconhecimento da contribuicdo potencial do enfoque eto- légico a essa disciplina - especialmente no sentido de uma ¥i- sido unificada do homem - parece ser ainda incipiente entre nds. E sobre essa contribuicao que se pretende reflotir aqui, a par- 83 ALM. A. CARVALHO tir das duas afirmagdes feitas inicialmente. Por que obioldgico ten um lugar central num enfoque eto- égico ao comportamento ou aos tendmenos psicoldgicos? Porque a caracteristica central do enfoque etolégico, aquela que 0 define, @ conceber 0 comportamento cono produto e ins trumento do processo de evolucao através da selecdo natural. 0 etdlogo parte dos pressupostos de que o conportamento e a organizacao psicoldgica de qualquer espécie, tal como seus Grgdos, sao re- sultados das pressdes de selecdo em seu ambiente natural, ou seja, em seu ambiente evolucionario; e de que a compreensao des- ses fendmenos @ ampliada e facilitada se eles sao considerados sob esse angulo. A psicologia de uma espécie @ aquela que foi, ou esta sendo, constitutda pela selecio natural em decorréncia de sua fungdo adaptativa, o que significa em decorrancia de sua contribuicdo para a sobrevivéncia da espécie. Diante de um evento conportamental qualquer, 0 etdlogo ja parte de uma con- vicc&o, que se transforma imediatamente em pergunt se esse comportamento ocorre, deve ter uma funcéo bioldgica - qual é ela? Uma outra maneira de dizer isso @ usada por Ades (1986 o que chana, em primeira instancia, a atencao do etdlogo, & a “relevancia ecoldgica" do comportamento. Dessa concepgdo a respeito da natureza do comportamento ou fendmeno psicolégico, que constitui a caracterfstica basica do enfoque etoldgico, € que decorrem as op¢des metodoldgicas pré- prias desse enfoque: assim, por exemplo, a descrigio "natura- Vistice", ou descrigéo do comportamento no ambiente natural, justifica-se porque nesse ambiente que @ possivel avaliar a relevancia ecolégica do comportamento, identificar sua funcao, encontrar pistes sobre os fatores que explicam sua ocorréncia, etc., antes de analisa-1o numa situacao mais especifica ou con- trolada; da mesma forma, a formulacao de varios niveis de ques- tées a respeito do comportamento - nao sO por que ele —ocorre neste momento (a questéo causal), mas também qual a sua fun- G30, como evoluiunahistOria da espécie ¢ na historia do indi- Viduo (questdes funcional, filogenética e ontogenatica), © ou- 84 BIOLOGIA E PSICOLOGIA tros procedimentos t¥picos do trabalho etoldgico decorrem do fato de que, para o etdlogo, o comportemento - ovo —fendmeno psicoldgico - @, essencialmente, um fendmeno biolégico, porque os conceitos biolégicos de funcao, adaptacao, evolucao esto embutidos na sua concepcio sobre a natureza desse fendmeno. Esta explicitacdo da primeira das duas afirmacdes iniciais provavelmente reforca a impressao deque ha uma contradicao in- trinseca entre elas. Quando se afirma que os fendmenos psico- Tégicos so frutos de evolucdo, aparentemente se esta afirman- do que sio fixos, imutaveis, geneticamente determinados, e que a psicologia se “reduz" ao nivel bioldgico - afirmacdes que, se costuman ser aceitas (alias, erroneamente) quando se trata de comportamento animal, sé evidentemente erradas e inaceité- veis no caso do ser humano. Essa aparente contradigdo se esvazia quando se considera que, diferentemente da concepcao leiga corrente, "biologic: n3o se confunde com "genético": o genético & um dos instrumen- tos ou componentes de que os sistemas biolégicos dispem para sua evolucio e adaptacao. Ao contrario do que essa —concepcao implicaria, 0 progresso da Etologia - e de outras ciéncias bio- légicas - tem contributdo significativamente para 0 questiona- mento de dicotomias classicas - como inato-adquirido, organis- mo-anbiente, natureza-cultura -, mesmo no caso do animal nao- humano. 0 enfoque etoldgico nao se caracteriza como um enfoque inatista, mas sim como um enfoque interacionista, no qual & central um conceito de ambiente especifico da espécie. Se, no caso dos animais, esse conceito esvazia as oposigées entre ina~ to e adquirido, entre organismo e ambiente, no caso do ser hu- mano ele esvazia também a oposicao biologia-cultura: o ambiente especifico da espécie humana, no sentido bioldgico, e com to- das as suas implicagées em termos de evolucao e adaptacao, en- volve a cultura, que nao se apresenta, portanto, separada ow independente, mas em relagao estreita e necessaria com a natu- 85 N. kK. CARVALHO reza ea biologia do homem.* A quebra da oposi¢ao inato-adquirido a partir dos estudos etoldgicos se di, a0 mesmo tempo, no plano ldgico e no plano empirico. No plano légico, & medida em que se reconhece a in- possibilidade de separar decisivamente os efeitos desses dois tipos de “fatores*: mesmo no mais cuidadoso experinento de pri- vacao, @ necessario um ambiente para que os gens se manifestem, e vice-versa (Hinde, 1974). No plano empirico, 3 medida em que se acumulam evidéncias que forcam o reconhecimento de predispo- sigdes ou pré-organizacéo inatas nos préprios processos de aprendizagem (Hinde e Stevenson-Hinde, 1973), da presenga de plasticidade em sistemas comportamentais aparentemente estereo- tipados (Bussab, 1982; Ades, 1988), ca diversidade de formas pelas quais gens e ambiente atuame interagem ne determinagao do comportamento (Hinde, 1974). Desses desenvolvimentos resul- tao reconhecimento de que inato e adquirido nao se opdem, © muito menos se excluem, sen@o como conceitos. Sperber (1978) formula esse reconhecimento de maneira ainda mais radical, su- gerindo que @ um erro “supor que a parte do inato e do adquiri- *Convem fazer alguma delimitacao sobre o uso da palavra Cultura neste texto, embora, evidentemente, uma definicao precisa ou uma discussao mais extensa sobre esse uso ultrapassem as pos- sibilidades deste trabalho, Numa delimitagao frouxa, designa- Se aqui, por cultura, o conjunto dos frutos da agao humana que, transmitidos ce geracdo em geracdo, constituem a identidade de um grupo humano {ou pré-humano) e, ao mesmo tempo, o meio em que se constitue a identidade de seus membros. 0 fato de se propor a superacao da oposicao biologia-cultura nao implica em ignorar o carater emergente do fenodmeno cultura, que, _ a0 longo da evolucao humana, adquire propriedades nao-redutiveis as de sua condicdo basica de fenomeno biologico. — Emergencia nao significa ronpimento ou separacso: 9 fenomeno Vida emerge da materia; nao se explica apenas atraves das leis que regem a materia inerte, porque adquiriu propriedades nao-redutiveis a elas; mas o ser vivo continua a ser matéria, e a ser regula- do por'suas fers basicas. Da mesma forna, embora a cultura tenha vindo a constituir, ao longo da historia veut huma- na, um dominio cuja compreensao nao se esgota nos principios da Biologia ou da Psicologia, nao perde por isso sua condi gao original e basica de fenomeno bioldogico. 86 BIOLOGIA E PSICOLOGIA do varian necessariemente em razdo inversa. Se assim fosse, 0 homem, no qual a parte do adquirido @ muitYssimo maior do que a de qualquer outra espécie animal, sd possuiria correlativa- mente ume parte de inato insignificante. Todavia, como a aqui- sigdo - fique bem claro: a aquisicado sistematica e adaptada - supde na verdade mecanismos inatos suplementares, & muito mais razoavel supor que o inato € o adquirido variam proporcional- mente, de modo que o cabedal extraordindrio do adquirido humano nao supde uma indigéncia, e sim, pelo contrario, um cabedal com paravel de natureza hunana” (p.22). Por outro lado, esses desenvolvimentos evidenciam que caminho da superacao dessas oposicdes no & reducionista, mas envolve, ao contrario, 0 reconhecimento de complexidade antes insuspeitadas em fendmenos aparentemente simples. Ndo se trata de uma "redugdo" do honem ao animal, mas de uma revolugéo no conceito de animal: "A Etologia", diz Morin (1979, p.31), “mo- difica a idéia de animal. At® entéo, 0 comportamento animal pa- recia comandado ora por reaches autonaticas ou reflexos, ora por impulsos automaticos ou "instintos", ao mesmo tempo cegos e extralicidos,.. As descobertas etoldgicas indicam-nos que ° comportamento animal 6, ao mesmo tempo, organizado e —organi- zador...". Nessa mesma direcao contribuem as revelagdes da prinatologia e da "sociologia" animal, desvendando as comple- xidades da organizacao social e da comunicacao na natureza, e as revelacdes da ecologia, que modifican a propria idéia de na- tureza, concebendo-a como um sistema dindmico e organizado de relecées, € nao como o palco inerte de uma luta desordenada em que reina apenas a lei do mais forte (Morin, 1979). Para con- Preender porque a superacio das rupturas entre homem e animal, entre natural e social, entre matéria e vida, no envolve re- ducionismo, @ preciso reconhecer que a idéia de complexidade, organizacao, transformacdo, emergéncia, sao necessarias j@ para @ andlise de fendnenos considerados pertinentes as ciéncias maturais, antes mesmo dos das ciéncias humanas. 87 ALM, A. CARVALHO Quais as implicagdes de uma superagio nao-reducionista das oposigdes inato-adquirido, organismo-ambiente, no sentido de se repensar também a oposicdo natureza (ou diologia) - cultura, en busca de um conceito unificado de ser humano? Aceita-se facil- mente que o homem @ também - ou em parte - “bioldgico": nosso corpo, nossa fisiologia, nosso cérebro, sao, reconhecidamente, frutos de um processo de evolucao natural, tanto quanto os de qualquer animal. Essa separagio de uma "parte" bioldgica do ser humano obriga a imaginar que a evolucio Diolégica produziy um ser fisicamente pronto para produzir cultura, e que a partir desse momento rompe com a natureza e passa a evoluir indepen- dentemente dela. Ora, essa suposicio 8 incompativel com o me- canismo de selecao natural. A selecao natural sd pode “noldar” un Srgdo através das conseqWéncias adaptativas de seu funcio- namento: como poderia o cérebro hunano, que evidentemente 36 @ funcional no seio de uma cultura, ter sido criado "na nature- za", se se concebe a natureza como oposta, independente ou an- terior a cultura? "...0 grande cérebro teria sido uma desvan- tagem para um ser que nio dispusesse dessa conplexidade (sdcio- cultural). Conforme o disseram Hockett € Asher, no que se refe- re a nossos antepessados, 'o valor de sobrevivencia dos gran- des cérebros @ evidente se @ somente se eles ja alcancaram a essdncia da linguagem e da cultura’ (Hockett e Asher, 1964). Nosso neocortex, que aumentou em interacéo com a cultura, ‘é incapaz de dirigir nosso comportamento ou de organizar nossa experiéncia sem a orientacao fornecida por um sistema de simbo- Jos significantes' (Geertz, 1966). Privado de cultura, ° sapiens seria um débil mental, incapez de sobreviver a ndo ser como un primata do mais baixo nivel; nen mesmo poderia recons- truir uma sociedade de complexidade igual 3 dos babuinos e dos chinpanzés. E perfeitamente evidente que o grande cérebro do sapiens sd podia surgir, ser bem sucedido, triunfar, depois da fornagio de uma cultura ja complexa, e & surpreendente que se tenha podido, durante tanto tempo, acreditar exatamente no con- trario" (Morin, 1979, p.62). 88 BIOLOGIA E PSICOLOGIA 0 processo de hominizacao se torna, portanto, incompreen- sTvel se desvincularmos evolucdo bioldgica e evolugdo cul tu- ral; para compreender esse processo, & preciso reconhecer que a cultura esta presente desde os primérdios de nossa evolugao na diregao da especie que somos hoje. A evolugdo cultural @ um fator de nossa evolugo biolégica* bro que a produz. De resto, reconhecimento desse fato, ao qual a légica j& nos obriga. @ referendado pelas concepcdes e des cobertas mais recentes sobre a evolucdo humana: "... @ altamen- te provavel que nio sd os instrumentos, mas também a caca, a linguagem e a cultura, tenham aparecido no decorrer da homini- zagaio, antes da espécie propriamente humana de sapiens ter nas- a cultura produziu 0 cére- cido" (Morin, 1973, p.54): a cultura criouo ser que a cr fa. "E a7 que podemosver, agora, um animal humano, uma soctedade natural, ume elaboragdo cultural ligada a uma evolugao biolé- gica. E aT que os conceftos de vida, de animal, de homem, de cultura perdem sua suficiéncia e sua rigidez" (Morin, 1979, 9.55). Eat, também, que podemos dizer que o homem & uma espécie biologicamente cultural. Nas esta afirmacdo nao implica apenas, comomuitas vezes @ interpretada, em aptiddes genéricas para o ajustamento a uma variabilidade ambiental arbitraria, ou numa adaptadilidade e plasticidade ilimitadas. Implica, sim, em re- conhecer que nossa organizacao bioldgics, fruto de um processo de evolugdo do qual a cultura @ parte inseparavel, define, de modos muito especificos, a nossa psicologia: uma psicologia que envolve, por exemplo, uma organizagio cerebral propria para a aquisigaéo de linguagem verbal, que sera especificada, concre- tizada, através de experiéncias para as quais também somos biologicamente organizados; que envolve uma organizagio para relacdes sdcio-afetivas de certos tipos, cujos alvos e conted- dos so especificados pelas experiancias especificamente huma- *Note-se que, embora se possa falar em manifestacées proto-cul- turais em outros primatas, @ apenas no caso da evolucao humana queomodo de vida cultural se torna um fator seletivo crucial. 89 A, M.A. CARVALHO nas; a psicologia de uma espacie cuja adaptacao envolve 0 per- tencer a um meio sdcio-cultural, em decorréncia das caracteris- ticas préprias de seu processo de evolucao, do qual esse meio % simultaneamente produto e instrumento (Carvalho, 1988 e no prelo). £ aqui, diz Morin (1979, p.92) "resolve-se um dos parado- xos que opunha de modo estéril o papel do inato e do adquiri- do no honem... Ja n8o podemos mais escapar 3 idéia de uma con- plementariedade original entre... aptiddes naturais (as compe- téncias organizacionais inatas) ea existéncia da cultura... Partindo de certa etapa, a complexidade do cérebro e a comple- xidade sicio-culturel sé podem encaixar-se uma na outra... As- sim, desmorona-se 0 antigo paradigma que opunha natureza e cultura" A concepgéo linear que separa biologia e cultura pres- supde dois planos de determinagao, e conduz a pensar o ser bio- VSgico do homem nao como produtor de cultura, mas como matéria prima que a cultura moldara; a atividade humana como determinada apenas pela arbitrariedade cultural; a crianga como um ser bio- légico que se tornara humano medida em que for culturalizado. Em contrapartida, uma concepgao que nao apenas ndo vé necessi- dade de ruptura entre natureza e cultura, mas nio vé poss ibi- Vidade dessa ruptura, pensa o ser bioldgico do homem como pro- dutor e produta de cultura, e levaré a perguntar sobre os espe- cificidades envolvidas nessa mitua produgao; pensa a atividade humana como fruto de interacdo entre a biologia humana e 0 am- biente que esta especifica como humano - e, nisso, nao faz nada diferente, conceitualmente, do que quando pensa na atividade de qualquer outro aninfal; pensa a crianca como um ser que, nao por acaso, mas em decorréncia da historia humana de evolucao, acaba de ser gestado ji dentro de um mundo sécio-cultural; que @ bio- logicamente dotado, nao de uma espécie de animalidade, mas de humanidade, ou seja, de uma organizacao que Ihe permite e a forga a interagir com um ambiente humano - o Unico que pode conduzir seu desenvolvimento, que néo € qualquer desenvolvimen- go BIOLOGIA E PSICOLOGIA to, mas aquele que nossa historia evolutiva exigiv e possibi- litou, e que tem caracterTsticas especificamente (isto 6, da espécie, um conceito bioldgico) hunanas (Carvalho, 1988). A concepgao etolégica de ser humano &, portanto, a de um ser biologicamente social e cultural, cuja psicologia esta or- ganizada para uma vida sdcio-cultural - a Gnica modalidade de vida social que pode constituir um ser humano; uma vida social propria da espécie, para a qual a evolucio criou _preparagées bio-psicoldgicas especificas - que cabe aos psicolégos — conhe- cer, tanto para compreender seu objeto de estudo, como para, eventualmente, contribuir para a promogéo das condicées de ex- periéncia e de vida compativeis com elas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Ades, C. (1986). Uma perspectiva psicoetoldgica para o estudo do comportamento animal. Boletim de Psicologia, 36:20-30. > < 7 Ades, C. (1988). Memoria e aprendizagem em aranhas. Biotemas, 1(1) 22-27, Bussab, V.S.R. (1982). Organizagao da limpeza corporal em mos- cas: Plasticidade no desenvolvimento. Tese de Doutorado nio publicada, IPUSP. Carvalho, A.M.A. (1988). Etologia das relacées mae-crianca no ser humano. ANAIS 00 VI ENCONTRO_ANUAL DE ETOLOGIA. Impren- sa Universitaria da UFSC, Floriandpolis, pp.39-45. Carvalho, A.M.A. (no prelo). Etologia e comportamento social. ANATS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PSICOLOGIA SOCIAL, 1988. Hinde, R.A. (1974). BIOLOGICAL BASES OF HUMAN SOCIAL BEHAVIOUR. McGraw Hill, N.Y. Hinde, R.A.andStevenson-Hinde, J. (1973). CONSTRAINTS ON LEARNING: LIMITATIONS AND PREDISPOSITIONS. Academic Press Londres. a AL Me Ae CARVALHO J. (1966) (ed). A discussion on ritualization of four in anim Is and men. Phil. Trams. Roy. Soc. Brit., 1249-524. Morin, E. (1979). 0 ENIGMA DO HOMEM: PARA UMA NOVA ANTROPOLO- GIA. Zahar, S.P. Morin, E-andpiattelli=Palmarini , M. (1978). A UNIDADE DO HO~ MEM’- INVARIANTES BIOLOGICOS — UNIVERSAIS CULTURAIS. Cultrix/ Edusp, S.P. Sperber, D. (1978) ra certos a priori antropel igi cos, In: E. Worn sh p int (eds.) A UNIDADE DO HOMEM = Edusp, S.P.5 : 92

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