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Disse-se € escreveu- do existencialismo”. aed ter pu a = obra inciculada Tradition de l'existentialisme, apaueas on “o existencialismo € a forma moderna de uma sine pn tafisica muito antiga”, apelando para a ajuda dos socréti- cos, dos megaricos, dos cirenaicos, ou ainda dos cinicos. sob pretexto de que todos eles se entregavam a uma ot. ca severa do pensamento conceptual, privilegiando contra este as nogoes de liberdade, de sensivel, de vivido ¢ de exiseén- cia. Se a palavra de ordem do que se chamou o existencia- lismo é que ndo hd sistema da existincia, © que nada pode precender substituir a experiéncia para dar conca desta dl- tima, achamo-nos em presenga de duas concepgbes filosd- ficas bem definidas: de um lado, de Plato a Kane, os filé- sofos que tencaram elaborar um sistema metafisico a par- tir das idéias de homem (de alma), de mundo e de Deus ¢, de outro lado, os adversirios desta construgie conceptual que tenderam a “elaborar do interior” seu préprio pensa- mento em beneficio da experiéncia vivida pelo homem no Os fildsofos de inspiragio exisencialista sempre s¢ opuseram a uma representagdo toralizante do mundo que economizasse a experiéncia com vistas a atingir 4 objetiy;, dade absoluta: “Parece, com efeito, nota Emmanye| Mou. niet, que os fildsofos se esforgaram, de acordo com 08 sf. bios, para esvaziar 0 mundo da presenga do homem Pee uma espécie de rentincia fundamental [...1, construiram ‘ fiegio de um mundo que nao é mundo perante ninguém, pura objecividade sem sujeito para Constaté-la. Nao satis. feitos de af esquecer o homem, sentiam-se ainda incomo. dados pela propria existéncia, como uma vaga e€ vergonho- sa sobrevivéncia, da presenga do homem. Dedicaram-se en. tio a desenvolver o mundo como um sistema de puras es- Séncias, ou seja, de puros possiveis, dos quais se tornava, no fim das contas, indiferente que existissem ou que nio exis- tissem”. Desde a filosofia platénica, mais preocupada com © vinculo que liga o mundo inteligivel ao mundo sensivel do que com o préprio homem (Platao nao fala senio do “ci- dadiio”, nio do homem independentemente da Cidade), podemos, No entanco, identificar uma primeira “reagao existencial” através da figura de Sécrates. ‘8A fonte socratica: uma filosofia do vivido Em sua obra dedica abundantemente Kierkeg um homem da a Sécrates, Jean Brun cita jaard: “Séerates foi antes de tudo » um homem éxistente, e no um professor espe- 1 actos [...] A historia objetiva integra em dialéticas 6 que foi antes de tudo uma subjetividade patética [ ae Bee jan aux existentialismes, Pa- 6. Jean Brun, Soorare, Pays S.Jean Be el sOne aie je2 1960, a OO ——— ' 7 lo “ mem real. ¢ nt Reuss j i foi um d * PHMeiros (iL ees. ncia do homem € 9 pre incipal da filosofia, 4 { 6 0 existencialisma apoia numa for galerij trais. “A histérie do pensamenty, balizada por ua série de despertares ex; Fencialisas, cue foram para o mento Outras tantas conversieg 4 e|, Mesmo, retor 108 4 Sua Missio original NAlOgo socradtico: ur Jespertar par cuidado de sj A extrema modéstia ou ironia dk um Sécrates simu lando uma ignorancia coral eraNCE seus interlocutores existencialista Como a verdac 1 exist€ncia reconhecic so. fistas catacteriza 0 que um reconheceria muito certamence leita filosofia, par aa qual la como tal esc apa necessari amente a todo saber objetivo O didlogo soc ratico constitui um despertar existencialis fa. O pensador por excelén, ‘a, que jamais prejulga o termo tem, segundo Kierke ‘gaard, ser eu questionamento, precidvel mérito {...} de 0 ina- um pensador existente ¢ > nado um especulador que esquece o que € a existéncia”.* S6cra- tes afirmou efetivamente a primazia da existénc la sobre 0 onceito, nado s6 mediante 4 pratica do didlogo, mas tam- Emmanuel Mounier, op. « 8. Soren Kierkegaard, P jue aux Miettes philosoph de l’Orante it., p, 8-9, 0st-seviptum définitif et non sclentifi- uques, in Oeuvres completes, F 1966-1986, ¢ II, p. 189 Paris, ed 1S ee bém recomendando a seus discipulos experimentarem Seus ptdprios limites a fim de tomar consciéncia deles, FC filésofo existencialista, S6crates tinha Consciéncia de que 9 mal reside na ignorancia em que o homem se €ncontra do que ele € e do que ele sabe. “Conhece-te a ti mesmo”: resu- me-se freqiientemente o procedimento socrético a esta mg. xima, mas percebe-se a dimensio existencial, € até mesmo tragica, desta recomendacao? O “Conhece-re a ti mesmo”, muito mais do que um convite ao conhecimento desi éq marca de um cuidado de sj. Recentrando a filosofia sobre o essencial, a saber, oO ho- mem € sua existéncia, Sécrates é igualmente aquele que re- lembrou a seus contemporaneos que 0 6cio, o divertimep- to € as atividades quotidianas desviam 0 homem de Si mes- mo. “Como diz Sécrates na Apologia, relembra Pierre Ha- dot, ndo é precise cuidar do qe Se tem, mas do que se €’. Ao in- terrogar os homens, “ele os faz tomar consciéncia de sua ig- Norancia a respeito dos valores que dirigem sua vida. ei O cuidado de si nao tem sentido senao na Perspectiva do | cuidado dos outros: é Preciso cuidar de si, Para poder en- Sajar-se na vida politica” ° Sécrates é, nesse sentido, aquele que fez descer a filosofia de sua torre de marfim Para ope- rat uma verdadeira conversio na escala dos valores huma- nos. O “pdr de lado” o nao-essencial em beneficio do essen- cial — saber 0 que somos — é a expressio sintoméatica de uma consciéncia aguda do trdgico da existéncia, Esta filosofia do vivido, onde se sabe o que no se sabe e onde nao se sabe 0 que se sabe, confronta o homem ao absur- do: cada vez que 0 interlocutor de Sécrates se cré detentor de uma verdade, eis que descobre estar errado, e tudo deve reco- 9. Séren Kierkegaard, ibid. — do Principio! A que isso Se dey gico de uma existéncia onde 9 verd re ee fetamente conosco mais do que se - cratico faz experimen, ; ter ted. Unica ind. ‘ee nS) didloge So- j clo dog a Juase Sempre, a falsi- em frios enunciados dogmiticos, b ae de, to cara aos existen Cialistas de vez e no lugar de uma filosofi 'TO se com C1Xa dizer? ontem, emerge ja aqui, em Conceptual ¢ total; , , rn talizante, - tros termos, a intensidace do didlogo subse on pessoal de um saber Sistematizado, [5 nesse mtiteoie kegaard admira “a interioridade socratica sae ee existéncia [como] um equivalence d : ridade da fé é infinicamence pondendo ao distanciament: mas pelo absurdo!”.” a £6, salvo que a interio- Mais profunda enquanto corres- ) Causado, niio pela ignorancia, A ironia socratica Um outro revelador do trégico da existéncia que Sé- rates usa para a busca da verdade € a ironia. Nao simples- mente humoristica ou alegre, a ironia socrdtica oscila entre © cOmico € o tragico, e é o que lhe confere seu carater pa- tético. Para Kierkegaard, “a ironia aparece quando se rela- cionam incessantemente as particularidades do mundo fi- nito a exigéncia ética infinita ese deixa seulistin a — digao!”."' As “fungies” da ironia socrética ee - cer a emergéncia de dois temas chieipatialann 8 mers tre, a saber, o fracasso da comunticagdo das consciénct ca do espivito de seriedade. 10. Ibid. LI. Ibid., p. 188. Como Kierkegaard identifica to bem, a itonia ¢ que “dei a contradicio > SEM que © sujeir,, = forgosamente seu autor deliberado. A Contradicie 1. ja aqui de um didlogo que exprime a aspiragio a um, v1" de cuja busca nao pode chegar a cermo, € que se revelg ae a forma de perpécuas aporias, Nos desejamos ¢ eee mas no dispomos senio de meios finitos... Esta despro > ao entre o homem e¢ uma exigéncia ética que o ulrape : € causa do cariter paradoxal da verdade, tal come ely 7 vela aos homens. “Pensacor subjetivo” ou “pensador Hives ereto”, segundo Emmanuel Mounier, Séc rates pte : mesmo [...] no ser compreendido: suprime assim , tdvel mal-encendido. Assim, seu instrumento resets co de expresso nilo € o discurso, mas 0 parade, © : so expe, publica, objeviva. O paradoxo é a faisca que by ta na fricgo do eterno ¢ da linguagem”. f importane: blinhar. com Mounier, que nio é “a verdade eterna” 4 “emi si mesma paradoxo: mas ela sempre o é em sua rel COM UM cxEteNte Sderates, sem jamais © dizer expres samente, pie o dedo num incomunicive!: a revels feta da verdade aos homens, condenados a falar dela sem js mais poder pretender deté-la. E contudo, a verdade esti alojada em algum lugar we didlogo, mas niio a/ onde terlocutor the designa um lugar A influéncia de Sécrares sobre a corrente exister lista, ¢ notadamente sobre o pensamento de Kierkeg foi portant considerivel: preocupado em recon! losofia com o vivido ou a existéncia, Sdcrates tez 4 mem ( € nao do concerto) 0 sol da filosofia. “Na socritica, todo homem ¢ seu prépree centro ¢ 0 wurd 12. Emmanuel Mounier, op. cot. p15 tem outro CentYO sendy el de Bats Porque tem de si Mesmo ¢ um Cont : he 7 nh que Sécraves se Compreeng nto homem deverj a 4 se com bém, compreende com a mesm, teve para s que i Preender @ *SBundo ele, Y suas rel a humild ‘Sage Mes $0 a Coragem © 0 domin mo e de ser unicame para 0 mais tolo”,\s ACGes co. ade e 6 an Es. “=A fonte Cartesiana: uma filosofia da acao oO cuidado grego em relagio uma reestruturacio total d géncia de um Si mesmo un tico torna patente ao Si mmo na origem de a humanidade, €m que a emer- iversal através do didlogo socré- © que nao estay, ‘a senao latente, atinge sua radicalizagaio na filosofi ‘a Cartesiana, Pode-se a esse res- peito identificar em Descartes (1596-1650) um mesmo cuidado de converséio do esptrito que visa uma certa conscién- cia do universo recentrando o sujeito sobre ele mesmo. Esse trabalho reflexivo nao tem entao outro fim senio o de um agir mais bem adaptado a nossa vida intelectual e pritica, visto que a primeira condiciona a segunda. A um - mento estruturado deve corresponder uma pratic cessidades e a 0S pragméatica (mais adaptada a nossas necessidades e a noss' ; 5 “sobre iverso que s desejos), que se supe operar “sobre um universo q , trata de descobrir e de conquistar . Kierkegaard, Mvestes philosophiques, 10 Ocuevres 13. Séren Kierkegaard, 4 : : vistentialisme, ip oi Fc ; i Perspectives de i ee are 14, Roger Garaudy, Bec } pensée catholique, marxume Paris, PUF, pA? eel Assim como Sécrates s€ esforgava para cornar os ho- mens consciences do que eles devem saber para poder agir melhor e se comportar melhor no seio da Cidade, Descar- tes, embora de maneira completamente diferente, tenta exortar seus contemporaneos 4 ultrapassar uma irresolucao existencial que poderia, se nao lhe for posto um fim, reve- lar-se mortal. A expressao de um desespero existencial Descartes, em suas principais obras que sao as Régles pour la direction de l'esprit (1628), 0 Discours de la méthode (1637) e, sobretudo, as Miditations métaphysiques (1641), procura um método susceptivel de tornar os homens ca- pazes de conquistar eles mesmos 0 verdadeiro, como S6- crates 0 entrevia mediante 0 exercicio nao menos metddi- co do questionamento discursivo. Ambos se preocupam em saber como agir. Somente Descartes, filésofo do sécu- lo XVII, sicua-se numa época em que a filosofia, distinta da teologia, favorece uma reconquista do poder pela ra- zao. A presenga reconfortante dos deuses gregos “entre os homens” da Antigiiidade foi substitufda por uma reapro- priagao da verdade pelo proprio sujeito mediante sua ra- zio: a “fé” socratica € implicita (4 qual Sécrates parece ter aderido, embora seus questionamentos tenham sido sufi- cientemente provocadores para dar pretexto @ sua conde- nagio por impiedade) cede lugar ao desespero existencial. Descartes nao tentaria provar a existéncia de Deus se 40 fosse assediado por uma vontade infinita limitada por u™ entendimento finito. Noutros termos, @ angtistia carte siana da verdade é j4 uma forma de desespero existencial. E por isso que se torna fundamental, para Descartes. as- propria espessura um trar, por baixo do de que preenche nosso n: surdo nio se refuta, itor comporta em sua NSENtir Sian em encon- rn ENON desespero infinito i m a plenitude do apelo. O ab. as pode recusar- : os Se. sensatamente. E absurdo que tudo soja aby - se recusa a absurdo” O apelo a tran: A scendéncia e eed consciéncia livre '@ € a emergéncia de uma . ‘Para 9 pensamento existencialista, 0 tragico da exis- téncia e o sofrimento humano impelem o homem a se transcender, seja elevando-se para Deus, como quer 0 exis- tencialismo cristio, seja respondendo a um apelo para su- perar seus préprios limites. Descartes parece preencher 0 yazio do nada recusando-o, ou seja, tomando a fé como guia, € o raciocinio como meio. Evocando uma frase biblica que Descartes escrevera num de seus cadernos (“o temor de Deus € 0 comego da sabedoria”'*), Genevieve Rodis-Lewis nota que se pode uma divida metédica a servigo de falca cruelmence. Hé entio esse sal- mas da obra de justificar a idéia de uma certeza que nos to do ser bumano, para Emmanuel Mounier, reromar um dos te 0 qual o sujeito coma consciéncia _ cit., p- 02+ 15. Emmanuel Mounier, OP ee aa 16. Genevieve Rodis-Lew! replier [Ele era simultanea~ 1 rompt A se si entrar} re aventurier €t P! ‘i cone i urel : le cardter avent : 26. a . Hittéraire, 0° 3 42, abril 19 96, P. lagazs , poent fois dun caracte- do poder da reflexdo. “ Duvido, e nao posso duvidar duvido. [...] Duvido, logo nao conhego bem, Por a fro com isso? Porque tenho este ideal de perfeigio’.: o nevieve Rodis-Lewis resume nestas poucas linhas , a gem do salto criador existencialista na filosofia eee na, Apesar do fato de sermos seres finitos, temos em ca enquanto criaturas de Deus, a idéia desse ser Supteme perfeito; somos entao impelidos a ir ao seu encontro iF a aproximar-nos dele o maximo possivel. O facto de va eu nao possa duvidar de que estou duvidando, pedra de tropego da prova da divida, € o sinal da presenca de Deus, que nao me pode enganar em tudo. A colocagdo a distdncia de todos os hdbitos de pensamenty (tema husserliano e heideggeriano por exceléncia) ¢ a prov, da divida, malograda pela solidez do fato de que penso, per- mitem a Descartes identificar um sujeito que pensa, ou uma consciéncia. Todos os filésofos que sucederio a Descartes (¢ notadamente Husserl, Sartre, e Merleau-Ponty) terdo que tomar partido sobre 0 estatuto que entendem conceder ao cogito em sua filosofia. Trata-se, como em Socrates, de um cuidado do Si mesmo, enquanto consciéncia de si do pensa- mento (e nao mais de um homem particular). A ressonancia, existencialista antes da hora, do cogito reside na relacio com a liberdade do sujeito que ele implica. A vontade cartesiana pela qual recuso 0 absurdo instaurando a certeza inabalivel da presenga de um “penso”, € pela qual deduzo a existéncia de Deus unicamente da idéia de perfeiro que cenho dele-€ da qual nao posso, eu, ser finito, ser o autor ~, € poder de ne- gacéo. Descartes descobre a certeza € 0 verdadeiro provando 17. Genevieve Rodis-Lewis, op. cit., p. 24 o absurdo de seu CONEKATIO, OU sei edad tal com« “I, pela nepativa oO i ae i . 0g) “ rd. Sartre, em Situations | subli on alismo ¢ Cngito 6 F > Sublinhars 4 nae preendeu perfeitamente que o ard que Datei de. a conceit : ne preendia a exigéncia d : fake ato livre era uma © uma autonomia a Ir 3 Producao absolutament ta, que tum const + : e BOF | p eguinte, liberdade ¢ Criagdo na nova [...}¢ um”." Se a liberdade cartesia 40 constitus 1am send Na re énci : esta uma €ss€ncia, ou seja ue sé Deus x esta permanece negativa; o h permite € mantém, lomem nao é ai ro autor € responsdvel. Des inda seu verdadei- cartes permitiu i ao men sucessores pensar esta liberdade radical 0S a seus com- que, Niilismo ou pragmatismo? A concep¢ao cartesiana da liberdade como poder ab- soluto de comegar, de decidir a falsidade e a veracidade das coisas, frente a um Deus bom que nao engana, expressa as- sim, como far notar Sartre, “a realidade humana”: “O ho- mem se apresenta [...} como um ser que faz desabrochar 0 Nada no mundo {...}. Esta possibilidade para a realidade humana de secretar um nada que a isola, Descartes, apos os est6icos, deu-lhe um nome: éa liberdade”.® Alguns vi- ram mesmo um antegosto do niilismo na famosa formula pela qual Descartes profetiza que @ gael oe s hores e possuidores da natureza”.”” O auto! como sen! tre, Situations I, Paris, Gallimard, 18. Jean-Paul Sart 1947, p- 334. a 1s fe Pua Sartre, LBtre et a ee a: ek 6. parte, Paris, Gat- L mé os 20. Descartes, Discours la nier-Flammarion, P- 8 Néaut (1943), Paris, wes ria 0 promotor de um desenvolvimen ; todo Se inci nee Pavacnica, a6-mes™mo © principal respon, weed ia dessacralizagao do planeta. paneer Garaudy, por savel pe ae f6rmula como 0 desejo de Descar. interpre! u. — an qual o homem pode doravante des, tes”, em virtud ‘i ixar atra ' soe todo trago de vida sobre a terra € deixar atras de sj Fnfamnoide vim asteormorto, ou criar ai uma morada edépj. ca para todos os homens [...]. A possibilidade, para 0 ho. mem, de possuit plenamente a natureza, 0 faz experimen. tar que ele nao se pode limitar a essa posse, que sua ambi. ¢ao nao poderia limitar-se ao dominio de um universo que Ihe é permitido destruir ou ultrapassar”.’' Quer se cons. dere Descartes como 0 fundador do niilismo, ou como simples testemunha de uma época em que o nada se reve- la, pode ser que se tenha negligenciado a restrigao que Descartes exprimia em sua férmula: “como senhores e€ pos- suidores da Natureza”. Mesmo que se considere que os modernos negligenciaram o fato de que “o espirito carte- siano da técnica” estd a servigo de uma filosofia que se queria pragmatica, notadamente com 0 concurso da medi- cina, nao deixa de haver aqui uma via aberta ao niilismo, quer Descartes tenha tido consciéncia de tal ou nao. Este pensamento da filosofia como filosofia da agio no seio de uma existéncia tragica, onde um método de re- flexao e de acio permite ao homem tirar partido de suas fraquezas, marca o despertar da consciéncia existencialis ta. Com a condi¢ao, no entanto, de interpretar 4 preocu- pagao cartesiana com a técnica num sentido mais conto me ao século XVII, e de ver af unicamente 4 vontade de 21, Roger Garaudy, op. cit., p. 4. hea que aprofundam demais as ci€ncias © mal ie wa com © todo do homem, com sua vida e . morte é o didlogo Socratico tinha o Cuidado de ci viar os homens do cuidado de “ Seu “ter” em proveito da aten¢ao a conceder a seu préprio “ser”, ¢ se, séculos mais tarde, Descartes tentou focalizar a filosofia sobre o poder de reflexao inerente ao homem, Pascal, herdeiro do autor das Meditagies Metafisicas, esforca-se por condwzir « homem @ uma meditagao sobre sua propria condigado wo universe, sobre @ existéncia ¢ sobre a morte. Hostil, como Descartes, me- tafisica abstrusa que se mete mais em especulacies espe- ciosas do que na vida pritica dos homens, Pascal expri- me sua consciéncia aguda da contingéncia do ser bamano nestes termos: “Quando considero a pequena duragio de minha vida absorvida na erernidade precedente € —_ te, 0 pequeno espaco que preencho € ete a : precipirado na infinita imensidio dos espas oa + onoram, assusto-me € espanto-Me ro e que me ignoram, hr nenhuma rao pata aqui wis- aqui € nao Id, pois n20 Nt de envio. Quem me ps a S apaaeee quem este lugar ¢ este ona aqui? Por ordem € dl po foram destinados @ mim?”.” snege ey N ‘co jouniet, ob. - 2) Pp Sellier, 1976, P & n° 102, wom — 22. Emmanuel M 23. Pascal, Pemse'. A inquietasao pascaliana Ha uma fonte pascaliana do existencialismo; esta top, sua origem na inquietagao fundamental QUE PErCorte 0 pep samenco de Pascal, que nao Peer eran cOise SENEO exprimis a dualidade irredutfvel do homem: ser finito que aspira , e infinico que é Deus — ser silencioso ainda que presen te, impassivel e escondido quando desesperamos dele ¢ ¢, nossa propria fraqueza..- A inquietagao pascaliana poder, ser resumida por estes dois termos que Mounier empre, ; “miséria do homem sem Deus e transcendéncia diving A miséria do homem, do ponto de vista cristao adotado por Pascal, refere-se 4 dependéncia deste para com um criador que se mantém escondido e permanece silencioso & razio Os homens ficam entao divididos entre a perda de sua ori- j4 que nao sao seu proprio autor -, ¢ a busca desen- nte e inconsciente) de seu lugar por assim Nao estamos, noutros termos, a altura de sta fraqueza humana € causa de um pa- a, ess! gem — freada (conscie dizer original. nossas aspiragoes. E vor, no sentido forte do termo. Mais do que uma angisti eo horror suscitado pelo nada 0 pavor pascaliano oscila entr e a vertigem engendra ea atracio misturada a repulsa qu Antes dos existencialistas, Pascal se debr timento da contingéncia original: a sufoca mento do vazio”. Se “a angtistia aparece como t um mal acidental, a 7" sao, ameaca € prote etira, no enta imobilizado 9° ucou sobre “0 sen- ao e€ 0 sent ima agtes- sao simples, um mal, e tigem € Sk multaneamente sedugao e repul a0 « Mas 0 absurdo da existéncia nao nos f faculdade de raciocinar a seu respeito: nto, des 24, Emmanuel Mounier, op. cit. p- 2>- 25. Op..cit., p. 44. Proporgao entre ¢ fi mutilado em seu esforco pat, ,0 home, numa imensidao infinita q u Nito e Sing “NOntta.se le © ignora, ue ube A impoteénci Potencia da TaZdo: 9 hom eM fre; NE 4 aposta Vazda0 frente @ existéncia que sera retomado por f como Kierkeg 5 Filésofos > tema Nietzsche. aard oy Impotence Para resolver os (por ae estou no mundo ao inyés de inexistente? em tal €poca ao invés de antes ou depois?), a ee forja para si mesma valores que toma por verdades, iludinds- se sobre os poderes do espirito que ela sobrestima: “Nao ha entre nés nem verdade nem justica, comenta Mounier; © habito e a forca ocupam seu lugar, e constroem em se. guida justificagdes para si mesmos”. Com efeito, diz Pascal em seus Pensamentos, “no somos senio mentira, duplicidade, contrariedade, e escondemos ¢ disfargamos a nds mesmos”.*” Denunciando a tendéncia que os homens tém de idolatrar a verdade como se esta tltima meee entidade independente de nosso espirito, en ey a nao a nulidade da razdo, mas sua incapacidade par verdad ot e as, Ti si rdades quando ela nao faz senao ad lerir a elas. Trata-se ao ¢ ende- jue nao compree iti reender que 04 ; ae tsurto abandone toda - ao é absurdo por isso, desde que se @ a mos ni deter a verdade. Nes listas alguns secu Paradoxos existenciais Por que se sentido, como cl Oe recs * a verda- Jos mais tarde, rao os existencia _ cit, p- 37° f as, of al op. cit. 9 539, P. 27 de jamais reside num _conceito, € sim na prépria vida “Temos uma impoténcia para provar, invencivel a todo o dogmatismo. Temos uma idéia da verdade, invenciye| , todo o pirronismo”.* Assim, a convicgao de que a verda de, objeto de nossa busca ¢ escapando tanto a certez, quanto a diivida, existe nos impele a recusar que haja «, absurdo. O homem, dividido entre a idéia de que in compreensivel nao € 0 absurdo e a idéia de que nada ¢ completamente verdadeiro, deve entao efetuar uma esceo Tha, ou seja, adotar um partido. De tudo isso, nao hé nenhuma conseqiiéncia relativis. ta (onde finalmente tudo se equivaleria € seria 0 equivalen- te de seu contrério) a tirar. Como sublinha Emmanuel Mar- tineau a propésito de Pascal (cujo Discours sur la religion re- construiu), “nés somos desproporgao, e nao incapacidade Em face desta desproporgao que temos que afrontar € nao somente aguentar, o homem pascaliano mostra-se sob a luz de um ser de risco. Jamais seguro de nada, a nao ser que é uma criatura de Deus agora caida, 0 homem deve, no entan- to, viver com uma dualidade que se lhe tornou inerente Nem o dogmatismo, que enuncia dogmas ou verdades eter- nas, nem o pirfronismo, que duvida de tudo, conseguem apreender uma tinica verdade. Assim, 0 homem € um ser com discernimento, destinado a viver sua vida como uma aposta: cret ou nao crer em Deus. Num caso como no outro, trata-se de um nao-saber (pois nunca terermos a demonstra- cao da existéncia de Deus, nem a da sua inexisténcia) que s¢ tomar por uma fé. O existencialismo retomaré este tema 28. Pascal, op. cit., p- 36. 29. Emmanule Martineau, “Ce que Pascal doit 4 Descat tes”, in Magazine littéraire, n° 342, abril 1996, p. 48 ners OG col que w de certces a veokate plc boha donee cette © trigwo Ae easton ss prade oom pa i Hf gums © qual s W, homge de carer o de- Conberes ren clare, Sweles 0k s Memaroet, et a Oe ad dee, cae eles shisrs wren grmem ‘ Pascal, en pees dhe Sicranes ¢ dhe Descarees, poser = — caspeetdes da Conic: qqar ton faye See peeceqeecte com eee content at -@ advento do A fonte nietzsc hiana: O aan A IC deus i Jo de Pascal, embora seu sspirico proxime ¢ o a a anunciar “a morte de Deus’ onde i S| em Deus, Nietz | era levado a fazer a aposta da ne oe * | ie {4-1900) opta por uma filosofia, piss. na as ofensiva: se a filosofia nao pode deix es oe mas of 2 $ oe . Mia a nhecimenco, este ultimo deve servir a a¢ =a al jos valores morais que OS homens teriam erigido: ain NG de negar esses valores servin verdade, Nietzsche pretende neg om 2 se deles como de suportes do verdadeiro valor: homem. Poderia ter-se j4 aplicado a Pascal, e pode-se de cedimenco o leve observagio de Mounier: “ao ideal racionalista da o jeti dade, da imparcialidade, os filésofos existenciais uma concepg¢ao militante da inteligéncia. Nietzsche e cristo estio aqui de acordo. A inteligéncia ndo é nella A inteligéncia a servico da acaéo Afirmar que a inteligéncia nao é neutra é de alg forma afrontar a angustia de existir; nao hé com efeito i géncia ativa (que tem escolhas a efetuar) senao numa ¢40 conflictual, ou até mesmo tragica. Logo, é preciso nhecer a inteligéncia a fungao de um engajamento deve manifestar-se numa acao. A inteli ia substitui os valores Morais, e aa Fitual a idéias, tido sendo em Gao substitui a Equivale a dizer que a vida nao NOSSOS atos, € ndo em si ‘mesma, lis 32. Emmanuel Mounier, Op. cit., p. 30, se sobredecerminadda de antemio por uma entidade, », depois do século das Luzes, criaturas de mos suas vonrades, Mas & 668 CONOSCO & ao esponsabilizaclos. A angistia nietzschiana Je existit afirma de certo modo que “o homem nao ésen’o |. x unto de seus acos”; que “4 vida ndo ten sentido a prio | a = a cada wn, vivendd, dar-lhe un sentido’ Coro © larna~ va Nees he em Aurora, “antes de tudo, € em ptimeiro lu 1, as obras! Ou seja, 0 exercicio € ainda o exercicio! A fé le faz parte vird por acréscimo, esteja certo”. A fé, Je todo cardter cristo, € uma fé no homem, Uma quer livre de todo deus, que nos exorta a Nos tor~ somos. A angdstia de existir nao €, entao, se~ nao aquilo que nos impele a agir € a nos livrarmos dos va~ lores morais, que sao igualmente obstaculos a nossa plena realizagao. O cuidado de si deve primar sobre tudo o que nos preocupa habitualmente, estives Nio somos mas que realize Deus mesmo. tempo, n ri ga que de despida « fé que se narmos 0 que A morte de Deus e 0 poder de afirmagaéo do homem A angtstia faz surgir a presenga de um incomunicdvel, ou antes, de um insuportével que nos faz refugiar-nos no divertimento (j4 severamente criticado por Pascal). O que a critica dos valores morais erigidos pelos ho- mens faz aparecer € sua vacuidade e, através da vacuidade dos valores morais, a auséncia de todo deus. “Em Nietzs- che, constata Pierre Hadot, reencontrar-se-4 [...] a idéia dos fildsofos antigos, segundo a qual os cuidados sufocam 33. Emmanuel Mounier, op. cit., p 122. 34. Friedrich Nietzsche, An i i Gallimard, 1970, livro ié § 2 a a © cuidado de si mesmo, Lé-se por exemplo na TT das Coy, sideragoes intempestivas “Niio so todas as instituigdes huma. nas destinadas a impedir os homens de sentir sua vida por causa da dispersdo constante de seus pensecientcs? A pres. sa é geral, porque todos querem escapat a st mesmos, OE cuidados da vida protegem os homens do cuidado de sj mesmos, ou seja, no fundo, para Nietzsche, da angtistia de existir”’ Mas, mais fundamentalmente, 6 que os homens evitam realmente aqui niio é tanto a si MesmMos quanto sua propria morte, Contrariamente a Pascal, para quem o si- léncio de Deus € a propria prova de sua existéncia — sem 0 que a fé no ceria mais nenhuma consisténcia nem mérito —, Nietzsche interpreta 0 siléncio € a invisibilidade de Deus como as préprias marcas de sua inexisténcia, O que subten- de a angdstia de existir, é, em outros termos, a “morte de Deus”. A f€ nietzschiana € uma fé no homem, e significa por isso, aos olhos do filésofo, que Deus nao faz mais parte de nossa cultura. O Deus moral é 0 defunto da cultura moder- na. O homem, em face do nada, encontra-se numa solidao absoluta, e Nietzsche abre por af o caminho a um existencia- lismo ateu. E assim que, em L’'Existentialisme est un humanis- me, Sartre interpretava “a morte de Deus” anunciada por Nietzsche em Assim falava Zaratustra: com ela “desaparece toda possibilidade de encontrar valores num céu inteligi- vel...” E Sartre conclufa por uma formula de Dostoievski: “Se Deus nao existisse, tudo seria permitido. Eis 0 ponto de partida do existencialismo”.° 35. Pierre Hadoe, “Histoire du souci”, in Magazine littérai- re, n° 345, julho-agosto 1996, p. 21. 36. Jean-Paul Sartre, L'Existentialisme est un humanisme, Ge- nebra, ed. Nagel, 1946, p, 35-36, A morte do Deu: . S Moral € també a m 5 to a liberdade do pensamento — uM caminho aber- . ce: lismo. Se os valores 4 Ntral do selene! * por uma aurora, nos- so coragao tranborda de espanto, de pressentimentos, : de reconhecimento, de expectativa. Pensamos: enfi i im, 0 hori- zonte estd aberto, podemos lancar-nos a qualquer risco; enfim, to- dos os desafios do conhecimento sao agora permitidos; enfim o mar, nosso alto mar, aparece, imével a nossa frente”.” O Cria- dor cristao € substitufdo pelo criador humano, a unica trans- cendéncia autentica que Nietzsche reconhece. O “além-do- homem”, para retomar a expressio empregada em Assim falava Zaratustra, € perpetuamente chamado a ultrapassar- se por suas proprias forgas. Antecipando o tema existen- cialista da safda de si mesmo do ser humano, Nietzsche realiza de antemio o voto de Francis Ponge — cujo elogio Sartre fez muitas vezes —, segundo o qual “o homem € 0 futuro do homem’. 37. Friedrich Nietzsche, Le Gai Savoir, trad. A. Vialatte, . Frie Paris, Gallimard, 1959, P- 174. OF Uma ironia pur ificadora neia COMO UM TISCO EM guy A consideragao da existe! e COM a idéjg nos langamos apressadamente encontr : tS pascaliana da aposta, mas despida de ig . ; € num Deus cristio, O homem nierzschiano, anunciando o tema exjs tencialista do ser humano abandonado por Deus € so2; nho no mundo, nao seria um homem de risco se nio ¢j- vesse dessa existéncia u espirito de seriedade nao poderia ser 0 quinhao de um ser de risco; paralisado pelas conseqiiéncias morais de sua agiio, este resignar-se-ia mais do que avangaria com éxta- se no desconhecido. Da ironia socrdtica ironia kierke- gaardiana, passando pela de Nietzsche, o procedimento pelo qual 0 espirito se liberta do jugo moral passa por uma avaliagao do tragico como irris6rio. Nao se trata ab- solutamente de um dandismo moral preocupado com o descuido, poder-se-ia dizer, mas de um engajamento que escapa 4 imobilizacao da afirmagao. Por este engajamen- to “desengajado”— pregado por Kierkegaard, que critica va “o espirito de gravidade”—, 0 homem “descobre em si mesmo, diz Mounier, a fonte do cémico que escapa a se- riedade do homem limitado, ele a capta e banha-se em ironia para nao se imobilizar na finitude da afirmagio”. Nisso, é um novo enfoque da seriedade, “uma seriedade ma visdo irdnica e desprendida oO mediata e dialética, no extremo oposto da seriedade ime- diata e maciga do burgués”.** O engajamento existencia- lista, tal como € aqui prefigurado, aparenta-se portanto com a capacidade de brincar com os valores mais séti0s- 38. Emmanuel Mounier, op. cit., p. 32. 34 NEM se satisfazer com ™ Impacto no plano da ago Uma consciéncia aguda da dificuldade de escather id emer g¢, EM que O sofrimento fundame: relacionado com a impossibilidade de « omunicar 4 exiseén cia de maneira direta, Com ou sem Deus, a fé é 6 principal motor do homem a caminho de seu proprio futuro ntal do ser hurmano ese Logie de la morale, wad. etasche, La Géntal 1964, § 34 39, Priedrich Ni Mercure de France, H. Albere, Paris,

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