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ensinar a saber wer a arguitetura, por uma clareza nada, nos pr ia de uma nova atitude critica — ni-lo ~ nJo é mencionada pela ginas, A parte as intuicdes dos prec de método, Esta ¢ parece supérfluo afi primeira vez nestas criticos ¢ historiadores antigos, de Lao Tse a Vischer, de Vasari a Goethe, de Schopenhauer a Milizia ¢ a Wolilin, pode-se dizer que todos 0s livros de critica arquitetOnica pelo menos um trecho que diz respeito a esta Na producio critica dos tltimos anos, estas la vez mais freqientes; alguns Ke, © de Pevsner, abriram 0 caminho. A presente contribuicao nao constitui, por isso, uma nova descobei esclarecer os resultados criticos mais rec Pressupsem todo o imenso trabalho desenvolvido pelos estudiosos anteriores, € retinem tudo aquilo que, com le, foi por eles ser j ssa6 0641.2 tt ———! 3! ie ool Ea A a 5 = i) < 3 SABER VER A ARQUITETURA Bruno Zevi re i oppright © by Bruno Zev en is CS Paulo, 1984, para a presente edicdo 5 etigin sexed e199 “Traducio Moria Vee! Caspar Gatton Merins de Olivera Reno da rade, ‘Pier Luigi Cabra Producto erafica Geraldo Aes PaginagdeFotltor tutto 3 Desenvolvimento Edoril ‘Capa Suzana Lasb aes oe eee ame rea) Fee al et cra a is PE opts | Bees Za estos bere shel cape ours Onan Pa: tines Yom (cag) Biningrai. ISON AS 396-0541-2 1, Argtetan 2 Angier Hira. Tl Série 96307 epp-720 Indices para catatogo sstemstio: Tdos os direitos para a lingua portaguese ‘reserados a Livaria Martins Fomies Edtora Lida. ‘ua Conseheio Raraaho, 330/340 0125-000 Sdo Paulo SP Brasil Telefone 239-1677 INDICE Capitulo 1 A ignorancia da arquitetura Capitulo? O espaco, protagonista da arquitetura Caphulo 3 A representasao do espaco ‘Capitulo 4 As varias idades do espaco A escala humana dos gregos O espago estético da antiga Roma A ditetriz humana do espago cristio A aceleragio direcional ¢ a dilatagio de Bizancio A barbarica interrupao dos ritmos A métrica romanica Os contrastes dimensionais e a continuidade espacial do gético As leis e as medidas do espago do século XV Volumetria e plistica do século XVI O movimento e a interpenetracio no espago barroco O espago urbanistico do século XIX A “planta livre” e 0 espago orgdnico da idade modema 33 56 or 70 4 7 aw 9S 101 113 118 121 Capitulo 5 A ‘As interpretagdes da arquitetura interpretago politica A interpretacao cientifi A interpretagiio econémico-social Interpretagdes materialistas Avinterpretagio técnica As interpretagdes fisiopsi A interpretagio formalista Da interpretacdo espacial Capital 6 f Para uma hist6ria moderna da arquitetura Notas Bibliografia Tice dos lugares e monumentos citados Indice das figuras Indice dos quadros 137 142 143 144 150 152 175 195 219 231 207 277 279 CAPITULO 1 A IGNORANCIA DA ARQUITETURA E quase uma praxe iniciar um estudo de eritica ou de hist6ria da arquitetura com uma censura ao pablico, Dezenove livros em cada vinte dentre os citados na bibliografia comegam com diatri- bese apologias: ~ Opiiblico interessa-se por pintura e misica, por escultura e literatura, mas ndo por arquitetura. O intelectual que se envergo- nharia de ndo conhecer um pintor do nivel de Sebastiano del Piombo e empalideceria se 0 acusassem de ignorar um quadro de Matisse ou uma poesia de Eluard, sente-se perfeitamente & von- tade ao confessar nao saber quem é Buontalenti ou Neutra. ~ Os jornais dedicam colunas inteiras a um novo livro de Koestler ou a uma exposigio de Buri, mas ignoram a edificago de um novo palicio, ainda que seja obra de um famoso arquiteto, E, se todos os jomais que se prezam tm um noticiério sistemAti- Co de miisica, de teatro, de cinema ¢ pelo menos uma coluna se- manal sobre as artes, a arquitetura continua a ser a grande esque- ccida pela imprensi ~ Assim como nilo existe uma propaganda adequada para difundir a boa arquitetura, também nao existem instrumentos cficazes para impedir a realizacao de edificios horriveis, A cen- Sura funciona para os filmes ¢ para a literatura, mas nao para evi- {ar escindalos urbanisticos e arquiteténicos, cujas consequén- 2 SABER VER A ARQUTETUTA cias sio bem mais graves e mais prolongadas do que as da publi- cago de um romance pornografico. ~ Todavia (c aqui comegam as apologias), qualquer um pode desligar o ridio e abandonar os concertos, ndo gostar de cinema € de teatro e nao ler um livro, mas ninguém pode fechar os olhos diante das construgdes que constituem o palco da vida citadina e trazem a marca do homem no campo e na paisagem. O desinteresse do piiblico pela arquitetura no pode, contudo, ser considerado fatal e inerente & natureza humana’ ou & natureza da produgiio de edificios’, de tal forma que tenhamos de nos Timitar a constaté-lo, Existem sem diivida dificuldades objetivas, € uma incapacidade por parte dos arquiteios, dos historiadores da arquitetura e dos eriticos de arte para se fazerem portadores da mensagem arquitet6nica, para difundir 0 amor pela arquitetu- a, pelo menos entre a maioria das pessoas cultas. HG, antes de mais nada, a impossibilidade material de trans- portar edificios para um determinado local e de com eles fazer luma exposigtio, como se faz com os quadros. E necessétrio jé ter interesse por este tema e estar munido de notével boa vontade para ver a arquitetura com uma certa ordem c inteligéncia. O homem médio que visita uma cidade monumental e sente 0 dever de admirar seus edificios desloca-se segundo critérios meramente préticos de localizago: hoje, visita uma igreja barro- ‘ca num determinado bairro, depois uma ruina romana, depois uma praga moderna ¢ uma basilica protocrista. Em seguida, Passa para outro setor urbano e, no “segundo dia” do guia de turismo, volta a se deparar com a mesma mistura de exemplares arquitetOnicos estranhos e diferentes'. Quantos turistas se pro- poem visitar hoje todas as igrejas bizantinas, amanha todos os monumentos renascentistas, depois de amanhi as obras moder- nas? Qual de n6s resiste 3 tentagio de niio seguir esta ordem de contemplagio para admirar aquela torre romiinica que se ergue a0 fundo de uma igreja barroca, ou para entrar mais uma vez no Pantedo que est4 logo ali, ao lado das pedras géticas de Santa Maria sopra Minerva? E possivel reunir em toda a Europa os. ‘quadros de Ticiano ou de Brueghel e revelar as suas personalida~ des em grandes exposi¢des; também é possfvel executar as obras AIGNORANCIA DA ARQUTETURA 3 de Bach ou de Mozart em concertos unitérios; mas cada um tera de criar com 0 préprio esforco fisico moral — que pressupoe uma paixdo pela arquitetura — uma exposigaio de Francesco di Giorgio ou de Neumann. Esta paixio no existe. A obstinagio ¢ a dedicagao dos ar- uedlogos, merecedores de toda a admiragio no campo filol6gi- co, dificilmente se elevam a esse plano de sintética reevocagio que tem um eco exaltante no piblico, Os arquitetos profissionais que, para suportarem os problemas da arte de edificar contempo- Finea, nutrem uma profunda paixdo pela arquitetura no sentido vivo da palavra, nao tém hoje, em sua grande maioria, uma cul- tura que Ihes permita entrar de uma forma, digamos, legitima no debate histérico e eritico. A cultura dos arquitetos modernos esta muito frequentemente ligada 4 sua crdnica polémica. Lutando contra o academismo enganoso ¢ voliado a um simples trabalho de c6pia, eles tém declarado muitas vezes, ainda que inconscien- temente, o seu desinteresse pelas obras auténticas do passado, e renunciaram desta forma a cxtrair delas 0 elemento condutor Vital e perene sem 0 qual nenhuma nova posigao de vanguarda se desenvolve numa cultura. Nao falamos apenas de F, LI. Wright ¢ de sua hostilidade para com 0 Renascimento italiano; a um genio tudo € permitido e, particularmente, a falta de objetividade criti- ca. Referimo-nos também ao culturalismo de Le Corbusier; este Seu rogar superficialmente e julgar por impresses as €pocas his- 6ricas da arquitetura‘ constitui antes um elegante e brilhante exereicio intelectual do que uma fecunda contribuigao de reno- vagao critica. “Les yeux qui ne voient pas”, 0s olhos que nio viam a beleza das formas puristas hoje ndo véem nem entendem as ligdes da arquitetura tradicional. HA, portanto, muito o que fazer. E tarefa da segunda geragio de arquitetos modemos, uma vez superada a ruptura psicolégica do ato de gestagio do movimento funcionalista, restabelecer uma ordem cultural. Passado tempo da ostentagiio de novida- des e dos manifestos de vanguarda, a arquitetura moderna inse- Te-se na cultura arquiteténica, propondo antes de mais nada uma revisio critica dessa mesma cultura. E evidente que uma cultura orgiinica, no seu esforgo por dar uma base ¢ uma historia a0 “a saaen VER A ARQUTETURA homem modemo, disperso e sem raizes, ¢ por integrar as exigén- ias individuais ¢ sociais que se apresentam hoje em forma de antftese entre @ liberdade ¢ © planejamento, a cultura e a pratica, yoltando-se para o passado, e especificamente para a historia da arquitetura, ndo pode usar pesos diferentes de apreciagaio para ‘@arquiteturamodema ¢ para a tradicional. Quando formos capa- zes de adotar os mesmos critérios de avaliago para a arquitetura contemporinea e para a que foi edificada nos séculos que nos precederam teremos dado um decisivo passo em frente na senda dessa cultura. . Dezenas e dezenas de livros de estética, de critica e de histé- ria da arquitetura poderiam ser apreciados através de uma prova de fogo: nos volumes de carter arqucolégico-hist6rico, acres- centem 0 capitulo sobre @ arquitetura moderna e verifiquem se os conceitos criticos informadores continuam a ter validade; nos volumes de cardter apologético-modemo, incluam os capitulos sobre a arquitetura do passado c observem os absurdos a que chegaria a extensio critica da postura meramente funcionalista ou racionalista. de admitir que, com um expediente desse ‘g6ncro, os volumes que nao chegariam a ser eliminados se redu- Ziriam a muito poucos, De fato, a maioria dos livros histéricos seria eliminada por falta desse atributo de vitalidade, isto é, da ‘capacidade de falar de interesses palpitantes a homens vivos, sem a qual a critica ¢ a hist6ria da arquitetura se tornam arqueo. Jogia no sentido morto da palavra. Muitos dentre os livros recen- tes falhariam por sua parcialidade modemista, por esse entusias- mo continuamente infantil ¢ tio monotonamente ingénuo dos que descobrem todas as manhis a revelacdo funcionalista, uma revelagiio que jé tem mais de um quarto de século, afirmada pro- fusamente e culturalmente adquirida, que por isso atingiu aquela ‘dade madura em que todos os seres, ¢ todas as mensagens hu- manas, se propoem temas mais amplos da propria autodefesa. Essas sio, em resumo, as posigdes do publico, dos arquedlo- £05 € dos arquitetos, Mas aonde os eriticos de arte chegaram? Aparemtemente, deram um passo em frente. Hé quinze anos, juando socidlogos ¢ pensadores do tipo de Lewis Mumford jé se intetessavam pelos problemas da arquitetura hist6rica e contem- AIGNORANCIA DA ARQUTETURAS pordinea, era rarissimo encontrar criticos de arte que se dedicas- sem especificamente a esses problemas. Hoje em dia, as coisas Se passam de outro modo: podemos citar em todos os pafses varios criticos de arte que se ocupam quase que exelusivamente de arquitetura, e um ntimero muito maior deles que se interessa por ela periodicamente. E significativo observar que a arquitetu- ra seja frequentemente estudada nas revistas de artes figurativa: que publicagdes mensais como 0 Magazine of Art, de Nova lor- que, ou 0 londrino The Studio publiquem uma resenha sistemAt ca das mais importantes obras de arquitetura; que peritos de arquitetura comecem a entrar até mesmo na redagio de jornais como 0 London Times e 0 New York Herald Tribune. Mesmo na. Italia, alguns dentre os melhores criticos de arte, como Argan Ragghianti, compreendem perfeitamente a importancia do assunto e colaboram para sua difusdo, Porém, se analisarmos com mais cuidado esse fendmeno, tranqiilizador & primeira vista, observamos que, para além da aparéneia quantitativa, a substincia é, muitus vezes, pouco satis- fat6ria. A razio fundamental é a mesma que toma inadequados 6s capitulos de arquitetura da maior parte dos textos de hist6ria daarte, escritos por criticos de arte. Qual é 0 defeito caracteristico da maneira de tratar a arquitetu- ra nas hist6rias da arte correntes? Jé dissemos mais de uma vei Consiste no fato de os edificios serem apreciados como se fossem esculturas e pinturas, ou seja, externa e superficialmente, como imples fendmenos plasticos. Em vez de uma falta de método cri= tico, trata-se de um erro de postura filoséfica. Afirmada a unidade das artes e, portanto, outorgada a todos os que so entendidos numa atividade artistica a autorizagio para compreender e julgar todas as obras de arte, « massa dos criticos estende os métodos avaliativos da pintura a todo o campo das artes figurativas, redu- Zindo tudo aos valores pictéricos. Dessa forma, se esquecem de considerar 0 que é especifico da arquitetura e, portanto, diferente da escultura ¢ da pintura, ou seja, no fundo, o que vale na arqui- tetura como tal’, No decorrer dos tiltimos cingiienta anos, ¢ em especial nos tiltimos trinta, a renovagao da pintura, do cubismo em diante, (6 SABER VER A ARQUITETURA marcou uma simplificagao da equagaio pictérica. Os movimentos seguintes, num primeiro momento, divulgaram a libertagao do sujeito e da semelhanga, depois a arte abstrata. Gritou-se aos quatro ventos que 0 contetido nio tinha valor, e, por fim, ex- cluiu-se 0 contetido. Linhas, cor, forma, volume, massa, espago- tempo sio as palavras-tabu da modema critica figurativa, que ecoaram na opinigo pablica com frases aproximat vas; foi dito que o artista “estiliza” o humano e que o valor da pintura moder- na é de carter “arquitetOnico”. Esse adjetivo ressoa, por toda parte, com o poder de uma sentenca definitiva. De um desenho de Van Gogh a um baixo-relevo de Manzi, do Addo de Epstein & Guernica de Picasso, tudo 0 que tem uma forma expressiva sin- tética, que mostra uma vontade simplificadora de representagio, tudo 0 que se propde exprimir figurativamente o essencial de uuma realidade sem o acréscimo de adjetivos e de decoracao, foi definido como arquitetOnico. Assim, a arquitetura voltou a estar ina moda nao pelos seus méritos intrinsecos, mas pela arquiteto- nicidade, se assim nos for permitido dizer, dos movimentos pic- \6ricos modems, fenémeno parecerd menos surpreendente se considerarmos que, apesar de todas as declaragdes tedrico-estéticas, a critica figurativa bascava-se amplamenie no conteddo representativo. A arquitetura mantinha-se hostil em relagao ao eritico de arte médio exatamente por nao permitir a ele todas aquelas evoca- 0es romintico-psicolégicas em relagio as quais demonstrava certa indulgéncia em matéria de pintura ¢ escultura, isto é, por ser uma arte “abstrata”, Uma vez que a pintura modema impu- nha uma renovacdo do vocabulério crftico, recorreu-se, como & atural, precisamente aquela arte e A musica, que, numa classifi- cacao to superficial quanto abusada, era unida 8 arquitetura por ‘uma pretensa fraternidade na abstragio, Do ponto de vista de uma critica de efeito e de um brilhantis- ‘mo social, essa moderna confusio de linguas abria infinitas pos- sibilidades. E mesmo estudiosos sérios, como Giedion, deleita- Fam-se em comparar o equilfbrio de uma bailarina de Degas com ‘© equilfbrio da base dos arcos da Galerie des Machines (Galeria «das Méquinas), na Exposigio de Paris de 1889; ou entio em con- rea aa ee a AIGNORANCIA DA ARQUTETURA frontar um quadro de Mondrian com uma planimetria de Miés van der Rohe, ou um esquema urban{stico curvilineo de Le Corbusier, com as volutas de Borromini ou de Jones: todos jogos de azar agradaveis como ginistica intelectual, mas nada mais do que isso. Ninguém pode impedir que se fale do cubismo de Le Corbu- sier, do construtivismo da primeira fase de Terragni, do neoplas- ticismo de Miés; As vezes, podemos mesmo considerar esses atributos justos pelo que diz respeito a uma vaga orientagaio do gosto, e quase sempre divertidos e estimulantes. Mas € preciso reconhecer dois fatos: 1) com esse método apenas continuam aplicados & arquitetura os critérios da critica pictérica, com a tinica diferenca de que atribuem-se agora & arquitetura contem- porinea os conceitos validos para a pintura contemporanea, enquanto anteriormente atribuiam-se os da pintura tradicional A aarquitetura tradicional; 2) desse modo a critica e a histéria da ar- quitetura no progridem. A ignordincia da arquitetura. desinteresse pela arquitetura. ‘Mas, diante de tamanha confusio critica, podemos sinceramente culpar o piiblico? Nao € talvez a caréncia de uma interpretagio clara e vélida da arquitetura que determina esse desinteresse & essa ignorincia? Se os engenheiros continuarem a escrever his- Arias da arquitetura como se fossem hist6rias da construcdo téc- nica, de que maneira o grande pablico pode acompanhé-los? Se 08 arquedlogos persistem na ensafstica filoldgica, como podem pretender que as pessoas nio especializadas se interessem pelo Aassunto? Por outro lado, se os criticos de arte ilustram a arquite- tura como um reflexo ¢ um eco das tendéncias pict6ricas, por que razio o piblico deveria deter-se sobre a arquitetura ¢ nao dirigit-se as fontes primordiais, ou seja, 2 pintura e A escultura? Se queremos, de fato, ensinar a saber ver a arquitetura, pre- cisamos, antes de mais nada, nos propor uma clareza de método. O leitor médio que tem acesso aos livros de estética ¢ de critica arquitetnica fica horrorizado com a imprecisio dos termos: “verdade”, “movimento”, “forga”, “vitalidade”, “sentido dos :S”, “harmoni “escala”, ‘propor¢ao", “1uz.e sombra”, “eurritmia”, “cheios e vazios ritmo”, “massa”, “volume”, “énfase”, “cariter”, “con- traste”, “personalidade", “analogia” —sdo atributos da arquitetu- ra que 08 diversos autores registram, muitas vezes sem especil a que se referem. Todos tém certamente um lugar legitimo na que tenha sido histéria da arquitetura, mas com uma condiga esclarecida a esséncia da arquitetura. Essa exigéncia de uma nova atitude critica ~ parece supérfluo é mencionada pela primeira vez. nestas paginas. A parte as intuigdes dos eriticos e historiadores antigos, de Lao Tse a Vischer, de Vasari a Goethe, de Schopenhauter a Milizi Wolff, pode-se dizer que todos os livros de critica arquitei6ni- ca contém pelo menos um trecho que diz respeito a essa exigén. Cia. Na produgao critica dos tiltimos anos, essas referencias tor- haram-se cada vez mais frequentes; alguns volumes, e, notad: mente, o de Pevsner, abriram 0 caminho. A presente contribuigdio 1do constitui, por isso, uma nova descoberta; ela pretende ape- nas compendiar € esclarecer os resultados criticos mais recentes, que pressupdem todo o imenso trabalho desenvolvido pelos estudiosos anteriores, e reiinem tudo aquilo que, com inte cia e tenacidade, foi por eles semeado, afirma-lo — nd é encima 35 Cove Ave Mclaren. CAPITULO 2 © ESPACO, PROTAGONISTA DA ARQUITETURA da arquitetura que possa ser considera iva da falta de habito da maior parte dos homens de entender 0 espago, e do insucesso dos historiadores e dos crit: Cos da arquitetura na aplicagao e difusdo de um método coerente Parao estudo espacial dos edificios. Todos aqueles qu jue fugazmente, refletiram sobre esse tema, sabem que o carter essencial da arquitetura—o que a distingue das outras atividades artisticas ~ estd no fato de agir com um vocabuldrio tridimensional que inclui o homem. A pin tura atua sobre duas a despeito de poder sugerir trés ou quatro delas. A escultura atua sobre trés dimensdes, mas 0 homem fica de fora, desligado, olhando do exterior as trés di mensées. Por sua vez, a arquitetura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha. Quando queremos construir uma casa, o arquiteto nos apre- Senta uma perspectiva de uma das suas vistas exteriores e possi- Velmente outra da sala de estar. Depois apresenta-nos plantas, fachadas ¢ segdes, isto é, representa o volume arquitetonico, decompondo-o nos planos que 0 encerram e o dividem: paredes exteriores e interiores, planos verticais ¢ horizontais, Do uso desse método representativo, utilizado nos livros téenicos de his- ‘6ria da arquitetura e ilustrado nos textos populares de historia da satisfat6ria der 18 SABER VER A ARQUTETURA da arte com fotografia, provém, em grande parte, 4 Noss de educacao espacial. a Na verdade, a planta de um edificio nada mais é do que uma projecdo abstrata no plano horizontal de todas as suas paredes, uma realidade que ninguém vé a nifo ser no papel, cuja unica jus- tificativa depende da necessidade de medir as distincias entre 05 vérios elementos da construgao, para os operarios que deve: xecutar matcrialmente o trabalho. As fachadas ¢ as segGes lon- sgitudinais, imeriores ¢ exteriores, servem para medir as alturas. Mas a arquitetura nao provém de um conjunto de larguras, com= primentos e alturas dos elementos construtivos que encerram 0 ‘espago, mas precisamente do vazio, do espago encerrado, do es- ‘paco interior em que os homens andam ¢ vive. Em outras pala- ‘vras, utilizamos como representagio da arquitetura a transferén- cia pratica que o arquiteto faz. das medidas que a definem para uso do construtor. Para o que diz. respeito ao objetivo de saber ver a arquitetura, isso equivale, mais ou menos, a um método que, para ilustrar uma pintura, desse as dimenses da moldura ou calculasse as distincias das diversas cores, reproduzindo-as separadamente. E 6bvio que uma poesia é algo mais do que um grupo de belos versos; quando a apreciamos, estudamos 0 seu contexto, 0 conjunto, ¢, ainda que depois se proceda & andlise dos versos iso- ladamente, essa andlise € feita em fung4o e em nome desse con- junto, Quem quer se iniciar no estudo da arquitetura deve, antes ‘de mais nada, compreender que uma planta pode ser abstrata- mente bela no papel; quatro fachadas podem parecer bem estu- dadas pelo equilibrio dos cheios e dos vazios, dos relevos e das reentrdncias; o volume total do conjunto pode mesmo ser pro porcionado, € no entanto 0 edificio pode resultar arquitetural- mente pobre. O espaco interior, o espaco que, como veremos no capjtulo seguinte, ndo pode ser representado perfeitamente em nenhuma forma, que nao pode ser conhecido e vivido a nio ser por experiéncia direta, € o protagonista do fato arquiteténico. ‘Tomarmo-nos senhores do espaco, saber “vé-lo”, constitui a ‘chave que nos dard a compreensio dos edificios. Enquanto nio tivermos aprendido nao s6 a compreende-lo teoricamente, mas © ESPACO, PROTAGONISTA DA ARQUTETURA 19 também a aplic4-lo como elemento substancial na critica arqui: tetOnica, uma hist6ria e, conseqtientemente, um prazer propor- cionado pela arquitetura apenas nos serio vagamente permiti- dos. Debater-nos-emos numa linguagem critica que se refere aos edificios com os termos prOprios da pintura c da escultura’, ¢, quando muito, clogiaremos o espago imaginado de forma abstra- ta endo sentido de forma concreta’. Os estudos e as investiga- es limitar-se-do as contribuigdes filolégicas os dados sociais, isto é, da fungi; os dados construtivas, isto é, da técnica; os dados volumétricos ¢ decorativos, isto 6, plisticos e pict6ricos decerto bastante titeis, mas ineficazes para fazer entender o valor da arquitetura, uma vez que se esqueca a sua esséncia, o substan- tivo que € 0 espago. Continuaremos a usar indistintamente pala- vras como “ritmo”, “escala”, “balance”, “massa”, até darmos a eles um ponto de aplicagao especifico na realidade em que se concretiza a arquitetura: 0 espaco. Uma parte enorme e seguramente desproporcionada das paginas sobre arquitetura que se encontram nas histérias da arte escolares € dedicada a historia da esculturae da pintura, 3 hist6- ria social ¢ talvez psicolégica (através do estudo da personalida- de dos autores) dos edificios, ndo a sua realidade arquiteténica, a sua esséncia espacial. Esse material ¢, indubitavelmente, pre- cioso: para quem nao conhece a lingua inglesa e pretende ler 0 Hanilet & de enorme utilidade aprender 0 significado de cada palavra, depois, através do estudo dos verbos, apreender o senti- do das frases, e enfim conhecer a hist6ria britanica do século XV1e as vicissitudes materiais e psicolgicas da vida de Sha- kespeare. Mas seria absurdo deixar de lado, durante esse labo- rioso preparo, 0 seu motivo original e 0 seu objetivo Ultimo, que Ereviver 0 poema trigico, Todo o trabalho arqueolégico-histé- rico € filolégico-critico é todavia til, na medida em que prepa~ ra ¢ enriquece a possibilidade sintética de uma hist6ria da arqi tetura’, O que € arquitetura? E, o que mais interessa agora, o que &a nio-arquitetura”” E correta a identificagdo entre arquitetura ¢ edi- ficagao artistica, ¢ entre nio-arquitetura ¢ edificagao feia? Em ou- tras palavras, a disting2o entre arquitetura e ndo-arquitetura baseia- 20 SABER VER A ARQUITETURA se numa spreciagio meramenteestética? E 0 que € esse espaco protagonista da arquitetura? Quanta so as suas dimensOes? Essas so as perguntas imediatas que se colocam 3 critica arquitet6nica, Tentemas responder comegando pela tltima, que é amais specifica. Jéidissemos que as quatro fachadas de uma casa, de uma igre- {ja ou de um palicio, por mais belas que sejam, constituem ape- nas a caixa dentro da qual est4 encerrada a joia arquitetOnica. A caixa pode ser artisticamente trabalhada, ousadamente esculpi da, decorada com gosto, pode constituir uma obra-prima, mas continua a ser um invélucro; nos Estados Unidos desenvolveu- se toda uma técnica e uma arte de fazer embrulhos, que € ensina- dda nas escolas industriais e de commercial design, mas ninguém jamais pensou em confundir 0 valor da caixa com o valor daqui- lo que ela contém, Em cada edificio, o continente & 0 invélucro contetido € 0 espaco interior. Na maioria das vezes, um na o outro (basta lembrar uma catedral gética francesa ua maior parte dos edificios autenticamente modemos), mas essa regra tem numerosas excegdes no que diz respeito wo passa 3s nos quais existe uma ‘entre continente e contetido, ¢ basta uma ripida andilise para observar que, com alguma freqiiéncia, na verdade com freqliéncia demasiada, o invélucro mural foi objeto de maiores preocupagOes e trabalho do que o espago arquitetonico’ Ora, quantas dimensdes tem o invélucro mural de um edificio? Podem clas identificar-se com as dimensdes do espago, isto é, da arquitetura? A descoberta da perspectiva, ou seja, da representagio gréfica das tres dimens6es — altura, profundidade e largura -, podia levar 0s artistas do século XV a acreditar que possuiam finalmente as dimensdes da arquitetura ¢ 0 método de representd-las. Os edifi- ios ilustrados nas pinturas pré-renascentistas so, de fato, acha- tados e tortos; Giotto perdia a paciéncia no momenio de colocar fundos arquiteténicos em seus afrescos, mas cle préprio devia compreender que tecnicamente 0 seu sucesso era bastante rela- tivo, ainda que aproveitasse, de uma maneira até certo ponto PCO, PROTAGONSTA DA ARQUTETURA 21 incapacidade, para sublinhar propésitos cro- miticos que ele sabia seriam alterados pelas representagées tri mensionais. Na época, a pintura ainda agia sobre duas dimen- 86es; a rigidez frontal bizantina ia-se arqueando nos rostos das figuras, uma maior capacidade nas passagens pictoricas da luz para as sombras transferia as experiéncias plasticas da escult Ta para 0 quadro cromitico; a arquitetura pisana rompia a pri- meira superficie das fachadas das catedrais e dava uma profundi- dade, além de uma vibratilidade cromatica, aos planos murais. No entanto, foi preciso esperar a descoberta da perspectiva para ‘obter uma representagio adequada dos ambicntes interiores das vistas exteriores da arquitetura, Uma vez elaborada a pers- pectiva, o problema parecia solucionado: a arquitetura — con- cluiu-se —tem trés dimensdes; 0 método € esse, qualquer pessoa pode desenhi-la. De Masaccio, Angelico e Benozzo Gozzoli a Bramante, aos sciscentistas, e continuando até o século XIX, um sem-niimero de pintores alinha-se aos desenhistas ¢ arquitetos na representagio em perspectiva da arquitetura. Quando, no tiltimo decénio do século passado, a reprodugaio de fotografias se torou comum, isso facilitou sua difusio em massa; os fot6grafos entéo tomam o lugar dos desenhistas e com um disparo de sua objetiva substituem as perspectivas que os apaixonados estudiosos da arquitetura vinham laboriosamente tragando desde o Renascimento, No entanto, quando tudo pare- ccia criticamente claro e tecnicamente aleangado, a mente huma- na descobriu que, além das trés dimensSes da perspectiva, exis- tia uma quarta. E foi a revolugo dimensional cubista do perfodo imediatamente anterior 3 guerra. Nio nos demoraremos a ilustrar a quarta dimensdo mais do que seja cstritamente necessério ao nosso assunto, O pintor pari- siense de 1912 fez 0 seguinte raciocinio: eu vejo € represento um objeto, por exemplo uma caixa ou uma mesa; vejo-o de um ponto de vista e faco 0 seu retrato nas suas trés dimensdes a par- tir desse ponto de vista. Mas se girar a caixa nas nis, ou cami- nhar ao redor da mesa, a cada passo mudo o meu ponto de vista, € para representar 0 objeto desse ponto devo fazer uma nova perspectiva, Conseqiientemente, a realidade do objeto ndo se ‘22 SA06h VERA ARQUTETURA asi spectiva; para possur-la int spots ot oo foe ummmero infnito de perspctivas Fanner ee soatos de vista, Existe, pois, outro elemento além os infintiog Rots edicionaig, o 6 preciramente o deslocamen- ddas tes dimensdes tradicionais, e é preci deslecamen- .Gvo dodngulo visual. Assim designou-se o tempo, “quar to slimensio”, De que maneira os pintores cubistas tentaram exprimiressarealidade da quarta dimensio sobrepondo as ima ns de um mesmo abjeto representado de diversos pontos de sata para projetar 20 mesmo tempo seu conjunto, nio nos di rev os cubistas alo peraram por aqui. Sun ansia de descobrir, ‘de compreender profundamente a realidade de um objeto, con- diziv-os ao seguinte pensamento: em cada fato corpéreo, além da forma externa existe 0 organismo intemo; além da pele, exis- tem os misculs ¢ 0 esqueleto, a consttuigio interna, Assim, em suas pinturas eles representam simultaneamente nao s6 os dife- rentes aspectos exteriores de um objeto, digamos uma caixa, mas acaixa aberta, acaixaem planta, acaixa rasgada. ‘Acconquista cubista da quarta dimensio & de grande alcance histérico, independentemente da avaliagio estética, positiva ou negativa, que se pode fazer das pinturas cubistas; pode-se prefe- rirum mosaico bizantino a um afresco de Mantegna sem por isso se desconhecer a importincia da perspectiva no desenvolvinento das pesquisas dimensionais; e assim € possivel ndo gostar dos quadros de Picasso, mesmo reconhecendo o valor da quart dimensZo, Esta teve uma relagio decisiva com a arquitetura, tanto pelastradugdes em termos de edificagio da linguagem pic- t6rica cubista, numa primeira fase do movimento moderno fran- és e alemao (influéncias melhor ilustradas na obra Moderna historia da arquitetura), mas porque propiciou uma sustentagio cientfica a exigéncia critica de distinguir entre arquitetura cons- trufda e arquitetura desenhada, entre arquitetura e cenografia, ve durante longo tempo permaneceu em estado confuso. A quarta dimensio pareceu responder de forma satisfat6ria & questo das dimensoes da arquitetura, Viramos uma estatueta em Rossas mios para observé-la de todos os lados, ou andamos em tomo de um grupo estatudrio para estuds-lo de um lado e de OESPACO. PROTAGONSTA DA ARQUTETURA 23. outro, de pertoe de longe. Em arquitetura—raciocinou-se—exis- te mesmo elemento “tempo”, ou melhor, esse elemento é indis- pensivel d atividade de construcio: da primeira cabana, da pri- meira caverna do homem primitivo & nossa casa, 4 igreja, a esco- Ia, a0 escrit6rio onde trabalhamos, todas as obras de arquitetura, para serem compreendidas ¢ vividas, requerem 0 tempo da nossa ‘caminhada, a quarta dimensio. O problema pareceu mais uma vez solucionado, Uma dimensio, porém, comum a todas as artes no pode, evi- dentemente, ser caracterfstica de nenhuma, e por isso 0 espaco arquiteténico nio se esgota nas quatro dimensdes, Esse novo fator “tempo” tem, assim, dois significados antitéticos em arqui- tetura ¢ em pintura. Nesta, a quarta dimensdo € uma qualidade Tepresentativa de um objeto, um elemento da realidade do objeto que um pintor pode preferir projetar no plano, e que nio requer nenhuma participacao fisica do observador. Na escultura, sucede a mesma coisa: “movimento” de uma figura de Boccioni é uma qualidade prOpria da estétua que contemplamos e que devemos reviver psicol6gica ¢ visualmente, Em arquitetura, no entanto, 0 fendmeno ¢ totalmente diferente e concreto: aqui é 0 homem que, movendo-se no edificio, estudando-o de pontos de vista sucessi- Vos, cria, por assim dizer, a quarta dimensio, dé ao espago a sua realidade integral”. Para sermos mais precisos — uma vez que se escreveram com- plicados volumes a respeito, quando ao contrario a unica dificul- dade é explicar de forma clara uma experiéncia que todos conhe- cem ~, a quarta dimensio ¢ suficiente para definir 0 volume arquitet6nico, isto €, o invélucro mural que encerra 0 espaco. Mas 0 espago em si ~ a esséncia da arquitetura—transcende os limites da quarta dimensio, Entdo, quantas dimensdes tem este “vazio” arquiteténico, 0 espago? Cinco, dez. Talvez infinitas. Mas, com relagio aos nos- 0s objetivos, basta estabelecer que espao arquitetdnico no pode ser definido nos termos das dimensdes da pintura e da escultura, E um fenémeno que se concretiza apenas em arquite- {ura e que desta constitui por isso a caracterfstica especifica. 24 SABER VER A ARQUTETURA tendo chegado a este ponto a per- Ss cu ura?” jéencontrou uma resposta. Dizer, a ee uulaarquitetara é a edificazio “bela” ¢ a ndo- on *feia" nio tem qualquer sentido esclare~ arquitetura a edificagao feia™ no tem q\ 3 aeecsicuen cedor, porque o belo eo feio sio relativos e poraue, de quslau chain, seria necessério dar antes uma definiglo analitica da tdificagio, recomecando de certo modo do principio. 'A definigao mais precisa que se pode dar atualmente da ar- quitetura é aque leva em conta 0 espago interior. A bela arquite- thra serd a arquitetura que tem um espago interior que nos atrai, fos eleva, nos subjuga espiritualmente; a arquitetura feia sera faguela que tem um espago interior que nos aborrece e nos repele. portante, porém, éestabelecer que tudo 0 que nao tem espa- interior nao é arquitetur. . ‘Se admitimos 0 que fica dito acima ~e admiti-lo parece ques- tio de bom senso, além de légica -, devemos reconhecer que os livros correntes de histéria da arquitetura estdo cheios de obser- ages que com a arquitetura, nesse sentido especifico, nada tém em comum, Dedica-se uma infinidade de péginas aos prospectos dos edificios, mas estes sio escultura, plastica em grande escala, «enio arquitetura no sentido espacial da palavra. Um obelisco, uma fonte, um monumento,ainda que de grandes proporgdes, um portal, um arco de triunfo, so todos feitos da arte que encontra- mos nas histérias da arquitetura, que podem ser obras-primas poéticas, mas nio sio arquitetura. A cenografia, a arquitetura pin- tada ou desenhada nio sio arquitetura, nem mais nem menos, ‘como um poema ainda ndo transposto em versos ¢ apenas narrado. em suas linhas gerais no 6 um poema ou sé o & no estado mera- mente intemacional; em outras palavras, a experiéncia espacial no 6dada enquanto a expressio mecdnica e factual nZo tiver rea- lizado a intuigdo lirica. Pois bem, se toméssemos uma hist6ria da arquitetura qualquer etirdssemos rigidamente todas as partes em que se nota uma hesitaglo na descrigio de fatos niio-arquitet6ni- os, poderfamos ter certeza de que, de cada cem paginas, pelo menos oitenta deveriam ser suprimidas. Por outro lado, podem surgir aqui dois graves equivocos que ‘io $6 anulariam 0 valor do raciocinio precedente, mas tora- leitor compreende qui (0 ESPAGO, PROTAGONSIA DA ARQUITETURA 25 riam mesmo ridicula a imterpretagao espacial da arquitetura. So eles 1) que a experiéncia espacial arquitetOnica s6 & possfvel no interior de um edificio, ou seja, que 0 espago urbanistico pratica- mente no existe ou nao tem valor; 2) que 0 expago nao somente € o protagonista da arquitetura, mas esgota a experiéncia arquitetdnica,e que, por conseguinte, interpretagdo espacial de um edificio € suficiente como instru- mento critico para julgar uma obra de arquitetura, Esses equivocos devem ser imediatamente dissipados. A experiéncia espacial propria da arquitetura prolonga-s cidade, nas ruas e pragas, nos becos e parques, nos estdios e dins, onde quer que a obra do homem haja limitado “vazios”, isto 6, tenha criado espacos fechados. Se no interior de um edifi- cio o espago é limitado por seis planos (por um soalho, um teto ¢ quatro paredes), isto nao significa que nao seja igualmente espa- 0 um vazio encerrado por cinco planos em vez de seis, como acontece num patio ou numa praca, Nao sei se a experiéncia espacial que se obtém percorrendo uma auto-estrada retilinea ¢ uniforme, por quilémetros de planicie desabitada, pode ser defi- nida como uma experiéncia arquitetOnica no sentido corrente da palavra, mas é certo que todo 0 espago urbanistico, tudo 0 que € visualmente limitado por cortinas, quer sejam muros, fileiras de Arvores ou cenérios, & caracterizado pelos mesmos elementos que distinguem o espago arquiteiGnico. Ora, visto que todos os Volumes arquiteténicos, todos os invélucros murais, constituem um limite, um corte na continuidade espacial, é ébvio que todos 8 edificios colaboram para a criagao de dois espacos: 0 interio- res, definidos perfeitamente pela obra arquitetGnica, ¢ os exterio- res ou urbanisticos, encerrados nessa obra e nas contiguas. Entao, € evidente que todos os temas que excluimos da arqu {ura auténtica—pontes, obeliscos, fontes, arcos de triunfo, gru- pos de drvores, etc. (v. Quadro 1) ~e particularmente as fachadas dos edificios, todos entram em jogo na formagio dos espagos urbanisticos. Mesmo aqui nao tem importancia o seu valor artis- tico particular, ou nao tem grande importincia; 0 que interessa & a sua fungio como determinantes de um espaco fechado. Que as > a 26 SABER VER A ARQUTETURA, \s sejam belas ou feias € até aqui (quer dizer, até termos eae segundo equivoco) secundério. Como quatro pare- des bem decoradas niio criam por si sés um ambiente bonito, um ‘grupo de magnificas casas pode limitar um péssimo espago urba- aistico,€ vice-versa. i 0 segundo equivoco leva o raciocinio aos seus limites extre- mos € a0 absurdo, com ilagdes totalmente estranhas as intengSes dos que defendem a interpretaco espacial da arquitetura. Dizer {que o espaco interior € a esséncia da arquitetura niio significa efetivamente afirmar que o valor de uma obra arquitetnica se esgota no valor espacial. Cada edificio caracteriza-se por uma pluralidade de valores: econdmicos, sociais, t€cnicos, funcio- nais, artisticos, espaciais e decorativos, ¢ cada um tem a liberda- de de escrever histérias ccondmicas da arquitetura, hist6rias sociais, téenicas e volumétricas, como é possfvel escrever uma istGria cosmoldgica, tomista ou politica da Divina Comédia. Mas a realidade do edificio & conseqiiéncia de todos esses fato- res, ¢ uma sua historia valida no pode esquecer nenbum deles. Mesmo prescindindo dos fatores econémicos, sociais ¢ técnicos, ¢ fixando a atencio nos fatores artisticos, ¢ claro que 0 espago ‘em si, apesar de ser o substantivo da arquitetura, nao € suficiente para defini-la, Se & certo que uma bela decoragao nunca criard ‘um espaco bonito, também é verdade que um espaco satisfat6rio, quando no complementado por um tratamento adequado das Paredes que o encerram, nio cria um ambiente artistico, pelo menos enquanto a decora¢ao nio for renovada. E comum ver- mos todos os dias uma sala bonita estragada por pinturas feias ou por méveis inadequados ou mesmo por mé iluminagio, Trata-se, sem sombra de diivida, de elementos relativamente pouco im- Portantes, pois podem ser mudados com facilidade, enquanto o ‘espago Id estd e se mantém, Mas uma apreciagio estética sobre tum edificio baseia-se nio s6 no seu valor arquitetOnico especifi- £0, Mas em todos os fatores acessérios, ora esculturais, eomo na decoragiio aplicada, ora pict6ricos, como nos mosaicos, nos frescos e nos quadros, ora de decoragio, como nos méveis. Ap6s um século de arquitetura predominantemente decorati va. escultural,a-espacial, o movimento modemo, em sua magni (0 ESPACO, PROTAGONISTA DA ARQUTETURA27 ca tentativa de levar a arquitetura para o campo que Ihe é pré- prio, baniu a decoragao dos edificios, insistindo na tese de que os Gnicos valores arquitetdnicos legitimos sio 0s volumétricos € espaciais. A arquitetura racionalista voltou-se para os valores yolumétricos, enquanto 0 movimento organico se fixou nos espa- ciais. E Gbvio, porém, que, se como arquitetos sublinhamos os substantivos ¢ nio os adjetivos da arquitetura, como criticos € historiadores nao podemos propor as nossas preferéncias no campo dos modos ou das expressdes figurativas como o Gnico padrdo apreciativo para a arquitetura de todos os tempos. Mesmo Porque, passados vinte anos de nudismo arquiteténico, de desin- fecedo decorativa, de fria ¢ glacial volumetria, de esterilizacao es listica contréria a demasiadas exigéncias psicolégicas e espi- rituais, a decoragdo (ainda que em forma nao de ornamentagao aplicada, mas de acoplamento de materias naturais diversos, de novo sentido da cor, etc.) estd entrando de novo na arquitetura, € justo que assim seja. A “falta de decoragdo” nio pode ser um Ponto programético de arquitetura alguma, a nio ser em base polemica e, portanto, efémera. O leitor leigo ficaré possivelmente confuso a esta altura. Se a decoragiio tem importincia, se a escultura e a pintura, excluidas inicialmente, voltam ao campo da arquitetura, para que serviu todo este discurso? Evidentemente nio foi para descobrir novas idéias ow inven- tar teorias esotéricas da arquitetura, mas apenas para ordenar orientar as idéias que existem e que todos pressentcm. E verdade que a decoraco, a escultura e a pintura se relacionam ao estudo dos edificios (niio menos do que os motivos econdmicos, valores sociais ou funcionais, e razdes técnicas); tudo diz respeito & arquitetura como, de resto, a todos os grandes fenémenos artisti- cos, de pensamento ou de experiéncia humana. Mas de que forma isso acontece? Nao indistintamente, como se poderia jul- gar, afirmando uma genérica ¢ vazia unidade das artes. Rela- ‘cionam-se na equagio arquitetOnica, nos seus lugares de substanti- ‘ose de adjetivos, de esséncia e de prolongamentos. A hist6ria da arquitetura €, antes de mais nada e essencial- mente, a hist6ria das concepgdes espaciais. O julgamento arg) _28 SABER VER A ARQUTETRA é fundamentalmente um julgamento sobre 0 espaco ee edificios. Se cle néio pode ser expresso pon falta de ¢spago interme como acontece com os vrios temas corstruivos _jimencionados, o edificio — quer seja o Arco de Tito, a Coluna de Trajano, ou uma Fonte de Bernini —excede os limites da hist6- ria da arquitetura e passa a integrar, como conjunto volumétrico, ‘historia do urbanismo, e, como valor artistico intrinseco, a his- {ria da escultura. Se o julgamento sobre o espago interior for negativo, 0 edificio faz parte da ndo-arquitetura ou da mi arqui- {etura, mesmo que, mais tarde, os seus elementos decorativ possam ser abrangidios pela histéria da arte escult6rica. Se 0 jul- ‘gamento sobre o espaco de um edificio for positivo, este entra na historia da arquitetura, mesmo que a decoracao seja inefica: quer dizer, mesmo que 0 edificio, considerado integralmente, ja totalmente satisfat6rio. Quando, por fim, o julgamento sobre a concepgao espacial de um edificio, sobre sua volumetria ‘e seus prolongamentos decorativos, for positive, encontramo- nos entido diante das grandes e integras obras, em cuja excelsa realidade colaboram os meios expressivos de todas as artes figu- rativas. Concluindo: se podemos encontrar na arquitetura as contri buigdes das outras artes, € 0 espaco interior, o espago que no: rodeia e nos inclui, que dé 0 £4 no julgamento sobre um edificio, {que constitui o “sim” ou o “nao” de todas as sentencas estéticas sobre a arquitetura. Todo o resto é importante, ou melhor, pode sé-lo, mas é fungiio da concepgiio espacial. Todas as vezes que, na hist6ria e na critica, se perde de vista essa hierarquia de valo- Tes, gera-se a confusdo e se acentua a atual desorientagdio em matéria de arquitetura, Se pensarmos um pouco a respeito, o fato de o espaco, 0 vazio, sero protagonista da arquitetura , no fundo, natural, por- ue a arquitetura nao é apenas arte nem s6 imagem de vida hist6- rica ou de vida vivida por nds e pelos outros; é também, e sobre- tudo, o ambiente, a cena onde vivemos a nossa vida. CAPITULO 3 A REPRESENTACGAO DO ESPACO Um dia, por volta de 1435, um certo Gutenberg, de Mainz, teve a idéia de gravar em pedacinhos de madeira as letras do alfabeto; em seguida, as justap6s para formar palavras, linhas, frases e pAginas. Inventou a imprensa, e, ao fazé-lo, abriu 0 mundo das obras poéticas e dos escritos literdrios, até entao pro- priedade e instrumento de uma restrita classe de intelectuais, as ‘massas populares. Em 1839, um tal Daguerre aplicou os seus conhecimentos fotoquimicos para reproduzir as imagens de um objeto. Inventou a fotografia ¢ marcou a passagem de todas as experiéncias visuais, humanas e artisticas, do plano aristocratico, do plano das poucas pessoas que podiam pagar a um pintor para que as retratasse ou podiam viajar para estudar as obras pict6ricas € ‘escult6ricas, a0 plano coletivo, Edison, em 1877, inventou um aparelho cilindrico e conse- ‘guiu, pela primeira vez, >-zistrar os sons numa lamina de esta- nho. Quarenta e trés anos mais tarde, em 1920, realizava-se a primeira transmissdo radiofbnica. A arte musical, até entio a dis- posigo exclusiva de limitados grupos de conhecedores, difun- arquitetd- {AS VARIAS IDADES 00 ESPAGO 101 contréria & cultura da Renascenga, que opde ao desejo de desfo- car 0s panoramas a vontade peremptéria de definir, medir e esta- belecer uma lei mesmo para as superffcies. E eis ao lado do Palazzo Strozzi, que racionaliza, mas nao revoluciona, a icono- grafia medieval, Alberti que, primeiro entre todos com 0 Palazzo Rucellai, divide e mede a superficie volumétrica com pilares, ea ritma segundo médulos simples. O que Brunelleschi fez nos espacos interiores, Alberti efetou-o nas superficies, Eesta a detestada decoragio aplicada? Certamente, 6a deco- ragio que serd explorada durante todo o século XIX, em todas as “ville d italiana”, desde os Estados Unidos até a Russia; contra cla serdo dirigidos os dardos da arquitetura moderna, Trata-se, porém, de uma decoragio aplicada que, se nos plagidrios se tor- nou inéreia e academismo, no século XV respondeu ao tema spacial da época, e concluiu nas paredes uma inspiragdo real zada na construcio dos vazios, foi um ato de profunda coeréncia € porisso de intima validade cultural ¢ artistica, Volumetria e plastica do século XVI Os temas espaciais fundamentais inaugurados no século XV prolongam-se no século seguinte e, através das obras de muitos e grandes génios, se enriquecem de motivos volumétricos e deco- rativos de tal diversidade ¢ individualidade que seria vi preten- stio querer sintetizé-los em poucas linhas. Os motivos culturais e arqueol6gicos que, junto com a ilusio de poder encontrar uma regra do belo constantemente valida, ja se haviam apresentado com a corrente albertiana no século XV, predominam em termos ideoldgicos nos tratadistas do séeulo XVI; nestes encontram-se afirmages de um to monstono con- formismo classicista que, se devéssemos nos restringir As suas palavras, s6 poderfamos defini-los segundo o critério da erudigio neocléssica do século XIX. Porém, a diferenga entre 0 nosso século c a psicologia do século XVI consiste precisamente no fato de que nés, depois de fragmentarmos todas as regras, invoca- ‘mos a originalidade absoluta e criticamente nos esforgamos por demonstri-la mesmo na produgdo artistica menor, enquanto os artistas do século XVI — ou melhor, os artistas entre si-=, mesmo 102 SABER VER A ARQUTETURA quando criavam em inteiraliberdade, traindo com a mais desas- sombrada indiferenga os canones do classicismo, tinham 0 falso pudor, a hipocrisia ou a astcia eultural de louvar incondicional- hente o antigo e declarar-se muito humildes seguidores dos seus ideais arquitetOnicos. Existe, por isso, uma dicotomia entre tura e vida produtiva, que sera mais tarde precursora do esco! ismo neocldssico ¢ constituiré a justificativa intelectual de inimeros ecletismos, mas que entiio nao ofendeu a pi vital dessa pléiade de artistas sublimes que vai desde Bramante a Palladio. Para o que diz respeito aos temas espaciais, 0 século XVI ‘como j dissemos, desenvolve a aspiracao céntrica do sécuslo XV, a visio do espaco absoluto, facilmente perceptivel de todos os Angulos visuais, exprimindo-se em equilibrios eurritmicos de pro. porcdo, Com relagiio ao século XV, 0 século de ouro exprime esses ideais em formas reencamnadas, de uma plasticidade que est ape- nas latente em Brunelleschi, é mais concreta em Alberti, ¢ triunta agora nas miltiplas variagdes temiticas do espaco simétrico. ‘O Tempietto, de Bramante, o San Pietro in Montorio, em Ro ma, que inaugura o século XVI, constitu até certo ponto a decla. ragao dos seus prinefpios: absoluta afirmagao central, valoriza do maxima das relagdes dimensionais entre as partes do edifi. Cio, isto 6, do elemento proporcional, e s6lida plasticidade (Qua dro 12). Esse pequeno templo é um pouco o Partenon da época ‘como tal, possui todos os defeitos ¢ qualidades da obraprima helénica, Mas a analogia entre a Grécia c 0 século XVI nio vai aalém desse comum ideal formal, uma vez que o programa arqui tetOnico do século XVI impée os espagos interiores. Se 0 g6tico havia marcado a vontade do espago continuo ¢ infinito no comprimento dispersive dos seus visuais, a primeira Renascenga no chegou a fechar 0 espayo, mas o ordenou segun- do uma métrica racional que o tornava definivel e mensurdvel; agora, o século XVI qualifica a mesma busca espacial em termos eurritmicos, voltando & antiga antftese entre espaco interior ¢ exterior, com a solidez pesada e corpdrea das suas paredes e com ‘aa maciga pléstica dos seus componentes decorativos. O carit da arquitetura do século XVI concretiza-se, por isso, nio ta t0 AS VANIAS IDADES 00 ESPAGO 103: numa renovago das concepgdes espaciais, como num nove sen= tido da volumetria, do equilibrio estatico e formal das massas dentro das quais adquire novo significado a dialética espacial do século XV, reforgada e solidificada por um gosto que prefere a uma linha e a um plano cromatico, um todo sem quebras e uma solidez consistente €, muitas vezes, monumental. Em nome desse gosto, todas as diretrizes visuais dindmicas siio exclufdas. Se uma torre gética impele a vista para o alto, para a agulha, se a basilica cristd di o tempo da caminhada do homem, s€0 palicio eo pitio do século XV, com suas estruturas esbeltas ¢ com complacéncias lineares indicam um itinerério visual circu- Jar, ainda que dentro do esquema simétrico, no sSculo XVI todas as forgas dindmicas, que antes haviam sido travadas mas nio extintas, acalmam-se definitivamente. Uma teoria de arcadas do século XV, ainda que encadeada por uma lei matemétiea com- positiva, move-se por um continuo e intimo vibrar de linhas- forgas; mas uma teoria de arcadas quinhentistas esta em equili- brio im6vel, com sua gravidade e seu peso. A articulagdo plani- métrica, espacial, volumétrica e decorativa ja nao € mais dis- curso manifesto da concepcdo arquitetOnica, mas sentenga que tudo organiza domina (Fig. 23). Os motivos do espago ¢s- Fig, 23 ~ bramante: erpieto ol San Petron Montoro, em Roma (1503), Andres Pod: Vila Capra, em Vicenza (1550): Anton di Sangalo: Palazzo Farnese, em Roma Rania Ver Quadios 2, 12 © 18.

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