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Diálogos com Márcia Regina da Costa

JOGOS DE RPG NA INTERNET:


Socialidades e Sociabilidades on line e off line

Ivelise Fortim*

O presente artigo é uma adaptação de um capítulo da


dissertação de mestrado “Alice no País do espelho: realida-
de virtual baseada em texto e imaginação”1. O texto versa
sobre um jogo baseado em texto chamado MUD. A partir de
uma pesquisa de levantamento, constatou-se que esse jogo
era freqüentado por jovens que permaneciam muito tempo
on line2, conectados a ele, chegando a permanecer jogando
cerca de 8 horas contínuas. Pesquisou-se por que esses jovens
participavam tão ativamente desse jogo, e quais seriam os en-
cantos e seduções de um ambiente virtual textual.
Verificou-se que os jovens se interessavam pelo jogo prin-
cipalmente por três motivos: (i) por ser um Jogo, e, ao mes-
mo tempo, (ii) por ser uma realidade virtual, e (iii) porque lhes
proporciona um ambiente de sociabilidade. Concluiu-se que
esses eram os motivos mais comuns que levavam os jogado-
res a permanecer tanto tempo conectados ao MUD.

*Psicóloga pela PUC-SP, mestre em Ciências Sociais, ênfase em Antropologia, também


pela PUC-SP. É especialista em Orientação Profissional pelo Sedes Sapientiae, e em
Abordagem Junguiana pela COGEAE- PUC-SP. Atualmente é professora da Faculdade
de Psicologia da PUC-SP, onde leciona no curso de Jogos Digitais e é pesquisadora do
NPPI - Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC-SP.
1
Defendida no Programa de Ciências Sociais, Antropologia, na PUC-SP em
2004. A dissertação foi publicada no livro “Level up! A aventura numa
comunidade virtual de RPG”, Giz Editorial, 2007.
2
Como os termos relacionados à informática já estão sendo incorporados pela
língua portuguesa, optei por mantê-los no texto sem o destaque de itálicos.

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O que são MUDs?

A palavra MUD, de origem inglesa, é a abreviação de


“Multi-user dungeons and dragons3”, e se refere a um am-
biente virtual – um jogo de aventura, em que o usuário ex-
plora mundos em busca de monstros e tesouros. Foi criado
em 1979, por estudantes da Universidade de Essex, Ingla-
terra. Desde então, o jogo se popularizou e, apesar de anti-
go, ainda atrai inúmeros jovens. Os MUDs são mundos
virtuais baseados em textos, nos quais os usuários podem
criar personagens num espaço interativo e compartilhado.
Nesses ambientes virtuais, a interface e as interações entre
o usuário e o ambiente são realizadas unicamente por meio
da linguagem escrita. Os MUDS são considerados os ances-
trais de todos os jogos eletrônicos de RPG (role playing
game4), como os atuais jogos Ragnarok e World of Warcraft.
O MUD original é baseado no mundo mágico do
Dungeons and Dragons (AD&D), um jogo de temática me-
dieval e mágica, com magos, guerreiros, elfos, anões e
duendes. As aventuras incluíam lutas com dragões, mons-
tros, expedições a castelos, em busca de tesouros ou em bus-
ca de equipamentos para melhorar o desempenho do
personagem.
O acesso a esses mundos virtuais não é feito pela Web, e
sim pela porta Telnet do microcomputador. Neste artigo, será
descrito um MUD brasileiro, “O Mundo de Vitália5”, um RPG
situado num mundo medieval. Esse MUD contava com cerca
de 2000 jogadores, à época da pesquisa (realizada em 2002), e
foi o maior MUD em língua portuguesa existente no Brasil.
A pesquisa demonstrou que o público usuário desse MUD
era composto, em sua maioria, por homens com idade entre 17-
20 anos, solteiros e de nível socioeconômico de classe média ou

3
Uma tradução literal seria “Domínio multi-usuário: Calabouços e
Dragões”.
4
RPG- Jogos de Interpretação de papéis.
5
Também conhecido como “Vitália MUD” ou apenas “Vitália”.

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Diálogos com Márcia Regina da Costa

superior. Eram estudantes, em especial do final do Ensino Mé-


dio ou dos primeiros anos da graduação. A região do Brasil que
mais concentrava jogadores era a sudeste. Esse MUD foi estu-
dado porque muitos jovens se diziam “viciados”, “fanáticos”,
pois passavam muitas horas on line nesse mundo virtual.
Toda a interface de um MUD é textual, ou seja, não exis-
tem figuras, nem gráficos, ou qualquer coisa semelhante, na
interação como usuário. O usuário pode mover-se entre os di-
ferentes espaços do ambiente virtual utilizando comandos
digitados no teclado. Os lugares são descrições textuais, que
evocam tanto sentimentos como estímulos sensoriais, procu-
rando estimular a imaginação do visitante. As descrições dos
lugares apresentam os objetos e as pessoas presentes neles. Essa
percepção permite ao usuário interagir com objetos existentes
e com outros usuários; as interações são consideradas ações.
O número de ações de um usuário dentro de um MUD é limi-
tado. As ações dependem do ambiente e dos objetos nele exis-
tentes. A interação entre pessoas pode se dar de duas formas:
pelos canais de comunicação e pela manipulação de objetos-
por exemplo, um jogador pode entregar um objeto para outro
segurar (SOUZA NETO, 2001). O jogo é multi-usuário, ou seja,
diversos jogadores podem jogá-lo simultaneamente.
Para entrar em Vitália, era necessário criar um persona-
gem, que poderia ser homem ou mulher, e devia pertencer a
uma das seis classes: Mago, Guerreiro, Druida, Bardo, Cléri-
go ou Ladrão. Cada uma dessas categorias tinha habilidades
e dons específicos, necessários para sobreviver no mundo
medieval. Além disso, poderia ser incluída uma descrição de
suas características físicas ou sua história.
Quando se entra em um MUD, o que aparece no monitor
é um texto descritivo sobre o ambiente onde apresentado,
os objetos existentes, os monstros para se matar e as pessoas
que nesse local, bem como as ações de outros personagens.
Abaixo, o exemplo da sala principal de muitos MUDs:

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ANTROPOLOGIA URBANA

O Templo de Midgaard: Você está a sul do hall do Templo de Midgaard.


O templo foi construído com blocos gigantes de mármore, com apa-
rência eterna, e muitas paredes eram cobertas por velhas pinturas de
Deuses, Gigantes e camponeses. Grandes degraus descem logo após
o portal do templo, descendo o enorme monte sobre o qual o templo
está construído e termina na Praça do Templo logo abaixo. Para oes-
te você pode ver a Sala de Leitura. A Sala de Doações é uma pequena
sala para o leste. [Saídas: n e s w d ]

Para se locomover nesses ambientes, é necessário dar co-


mandos no teclado, como N (norte), S (sul), etc. Para pegar
coisas, comer, beber água, é necessário digitar a ação que
você quer executar (ex. Drink água, Get espada; kill mons-
tro; open porta etc.).
O objetivo da maioria dos MUDs , como Vitália, é tor-
nar-se imortal, e para isso é preciso jogar até o nível 100 com
cada classe de personagem. Esses níveis eram conseguidos
mediante lutas com “monstros virtuais” que o programa
fornece. Cada monstro morto é um ganho de experiência, e
é isso que permite as mudanças dos níveis. A cada mudan-
ça, são adquiridas novas habilidades para o personagem,
que passa a ser mais poderoso e matar monstros maiores.
O Vitália MUD era regido por uma classe especial de
jogadores, chamados “Deuses”, que eram os programado-
res desse ambiente virtual. Além de programadores, eles
tinham por função regulamentar tudo o que ocorria no
ambiente, como brigas entre jogadores, problemas nas in-
teligências artificiais etc.
À primeira vista, o MUD é um jogo eletrônico, como
muitos. Mas um MUD é muito mais que um jogo: ele é con-
siderado por diversos autores, como Bruckman (1992), como
uma mistura de Jogo, Realidade Virtual baseada em texto e Co-
munidade Virtual.
O MUD é considerado um jogo pelo fato de o usuário
poder matar monstros e adquirir pontos de experiência, pro-
curando equipamentos e procurando melhorar seu persona-

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Diálogos com Márcia Regina da Costa

gem para torná-lo mais forte, em um ambiente de diversão e


desafio que entretém o jogador. Os jogadores se interessam
pela ludicidade que é dada por este esse tipo aventura que o
jogo proporciona (matar monstros e ganhar tesouros).
Segundo Bruckman (1992), um MUD também é uma re-
alidade virtual baseada em texto, multiparticipante. O termo
“Realidade virtual” refere-se à simulação computadorizada
de um ambiente que possui vários graus de interatividade.
Os MUDs dão ao usuário a sensação de estar dentro de um
ambiente compartilhado, por meio de suas descrições textu-
ais. Para Turkle (1997), os MUDs são um tipo de realidade
virtual, mas com ênfase na interação social.
Esses autores usam o conceito de realidade virtual por-
que os jogadores costumam manter uma vida paralela den-
tro dos MUDs – pois ali não apenas se joga, mas se vive:
existem casas, os personagens passam por necessidades
“biológicas” (como comer, beber água, apesar de não pre-
cisar ir ao banheiro); existem amigos, namoradas, clãs (agru-
pamentos de jogadores amigos), famílias, e há toda uma
vida social, com regras sociais próprias ao contexto do jogo,
códigos de conduta e honra.
Apesar de o MUD ser considerado um jogo eletrônico,
ele não é apenas um videogame: além da interação entre
homem e máquina, existe a interação entre humanos medi-
ada por um computador. Essa interação se dá por meio dos
diversos canais de comunicação disponíveis no jogo. É jus-
tamente essa interação mediada pelo computador que per-
mite que se estabeleçam grandes amizades entre os
jogadores. No levantamento realizado, a maior razão apon-
tada pelos jogadores para se estar no jogo era a sociabilida-
de que era proporcionada por ele.
O jogo permitia que os jogadores fizessem grandes amiza-
des, porque o contato iniciado pelo jogo podia ser estendido
para a vida presencial. Dentro do MUD havia vários canais de
comunicação: públicos, privados, sincrônicos (em tempo real)
e assincrônicos (a mensagem podia ser deixada e lida posteri-

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ANTROPOLOGIA URBANA

ormente). Um dos atrativos da vida social on line é a possibi-


lidade de participar simultaneamente em mais de uma linha
de conversação. . Estando no MUD, podia haver muitas con-
versas simultâneas em vários canais, públicos ou privados.
Além dessa comunicação dentro do jogo, os recursos
extra-MUD também eram bastante utilizados. O recurso
principal era o comunicador instantâneo ICQ (depois subs-
tituído pelo MSN). Constantemente ligado quando os joga-
dores estavam conectados ao jogo, era usado quando os
jogadores adquiriam contato mais íntimo, e partilhavam de
outros aspectos de sua vida que não apenas ligados ao jogo.
Outros recursos utilizados eram os sistemas de Fóruns de
discussão. Havia o fórum “Amigos de Vitália”, destinado
a discussões sobre o jogo, e, além disso, cada grupo de jo-
gadores ( clã) mantinha separadamente seu site, fórum ou
lista de discussão, para tratar de assuntos internos.
Todos esses canais de comunicação permitiam que os
jogadores se agrupassem e se conhecessem e, com certeza,
era um dos principais diferenciais do MUD em relação aos
outros jogos eletrônicos da época.

A sociabilidade e a socialidade on line

O MUD permitia que as pessoas pudessem se relacio-


nar e formar amizades. Para Oliveira (2004), um espaço de
sociabilidade pode ser caracterizado como uma atividade
de troca ou compartilhamento de representações que indi-
víduos de uma coletividade têm em comum, mediante as
diversas formas de aprendizado recíproco nas interações,
isto é, dentro de uma mesma cultura. Para haver sociabili-
dade, não é necessário que os indivíduos sejam estritamente
da mesma cultura, mas sim que possam compartilhar de
algum mínimo de códigos em comum. A sociabilidade de-
senvolve-se a partir das necessidades que têm os indivídu-
os de participar de um todo (socializar-se, não estar isolado,
encontrar sentido nas ações que têm de realizar).
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Diálogos com Márcia Regina da Costa

É claro que o ciberespaço traz uma sociabilidade com ca-


racterísticas específicas. No MUD, a mediação pelo computa-
dor proporcionava uma interação principalmente via texto e,
eventualmente, com câmeras ou presencialmente. Uma das
principais características da sociabilidade no ciberespaço é uma
“inversão” que se dá na forma de conhecimento das pessoas.
Palacios (1996, p. 93) descreve esse fato, dizendo que:

Nos processos sociais da vida real (IRL), estamos acostumados a en-


contrar fisicamente as pessoas, conhecê-las pouco a pouco, e, à medi-
da que aprofundamos tal conhecimento, vamos, cada vez mais,
intercambiando informações, identificando áreas de interesse comum
e interagindo em função delas, e, nesse processo, conhecendo-as. Nas
comunidades virtuais, o processo parece inverter-se: interagimos ini-
cialmente, de maneira muitas vezes profunda, em função de interes-
ses comuns previamente determinados, conhecemos as pessoas e, só
então, quando possível, encontramos fisicamente tais pessoas.

A mediação da tela, característica do ciberespaço, faz tam-


bém com que, num primeiro momento, as imagens dos parti-
cipantes não sejam automaticamente discerníveis: o
estabelecimento das relações, a princípio, não mostram o sexo,
idade, raça e aspecto físico dos participantes. Esses aspectos
serão efetivamente conhecidos somente se o usuário assim o
desejar; caso contrário ele se contenta com a imagem que o
outro constrói de si para mostrar aos outros, como diz Palacios.
Essas características não impedem que se construam rela-
cionamentos duradouros dentro do ciberespaço. Segundo Ri-
beiro (2000, p.140):

Dentro deste espaço de convivência, constata-se que as pessoas


freqüentemente iniciam relações, formam agrupamentos, criam liga-
ções fortes em intensidade por vezes bastante significativas. A parti-
cularidade deste espaço está centrada no fato de possibilitar ao
navegante a exploração de novos fatos existenciais, cognitivos e
experienciais a partir de um ambiente desterritorializado.

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ANTROPOLOGIA URBANA

Assim, pode-se considerar que a elaboração e o aprimo-


ramento das modalidades de comunicação pelo computa-
dor fazem do ciberespaço um lugar de interação, onde
novas formas de sociabilidade são criadas e atualizadas
constantemente pelos usuários, como acredita Máximo
(2002). Para ela, o ciberespaço agora se constitui mais como
um conjunto de processos que permitem interações sociais
e possibilitam a emergência de grupos, do que um artefato
tecnológico. Acredita, entretanto, que ao proporcionar a cri-
ação e o aprimoramento constante de diferentes modalida-
des de comunicação, a Internet se apresenta como apenas
mais uma esfera de sociabilidade associada às demais di-
mensões da prática social na contemporaneidade.
Era possível observar essas novas formas de sociabilida-
de nos jovens jogadores, que estabeleciam laços sociais me-
diados pelo computador, construindo amizades bastante
sólidas. Era por meio desse forte vínculo que podiam criar
o que se chama de comunidades virtuais.
Lemos (1999) aponta que os ambientes virtuais, como os
MUDs, podem ser veículos do que ele chama de
Cibersocialidade. O autor parte do conceito de socialidade
de Maffesoli (1990), que descreve o que marca a atmosfera
das sociedades ocidentais contemporâneas, ou chamadas
pós-modernas: a “socialidade”. Esse conceito é definido em
oposição ao de “sociabilidade”, que o autor acredita que
regeu a vida no período da modernidade. A “socialidade”
seria, portanto, a marca dos agrupamentos urbanos contem-
porâneos, diferenciando-se da “sociabilidade”. Para
Maffesoli, a socialidade se constitui num conjunto de práti-
cas cotidianas que escapam ao controle social (hedonismo,
tribalismo, presenteísmo) e que constituem o substrato de
toda vida em sociedade, não só da sociedade contemporâ-
nea, mas de toda sociedade.
A socialidade marcaria os agrupamentos urbanos con-
temporâneos, colocando ênfase na tragédia do presente, no
instante vivido além de projeções futuristas ou morais, sen-

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Diálogos com Márcia Regina da Costa

do efêmera nas relações banais do cotidiano, nos momen-


tos não institucionais, racionais ou finalistas da vida de todo
dia, e se diferenciaria da sociabilidade pelo fato de esta se
caracterizar por relações institucionalizadas e formais de
uma determinada sociedade.
Lemos (1999) acredita que a Internet pode servir de su-
porte para o desenvolvimento de comunidades virtuais, que
constituem exemplos de como se podem constituir novos
tipos de socialidades: socialidades on line, que o autor cha-
ma de Cibersocialidades. Para ele,

[o Ciberespaço] ... enquanto forma técnica é, ao mesmo tempo, limi-


te e potência dessa estrutura social de conexões tácteis que são as co-
munidades virtuais (Chats, MUDs e outras agregações eletrônicas).
Em um mundo saturado de objetos técnicos, será nessa forma técni-
ca que a vida social vai impor o seu vitalismo [a socialidade] e
reestruturá-la.
Lemos acredita que os pressupostos da socialidade podem ser vistos
nessa nova cibersocialidade. Para ele, é possível ver essas caracterís-
ticas se pensarmos na formação de uma sociedade de comunicação
estruturada na conectividade generalizada, utilizando redes plane-
tárias de comunicação (ciberespaço, onde se verificaria o tribalismo),
em tempo real (imediato, presenteísmo) e sem finalidade última, ape-
nas se comunicando pelo gosto de se comunicar (hedonismo).

No entanto, alguns autores, como Máximo (2002) e Car-


neiro (1997), discordam de Lemos quanto ao fato de o
ciberespaço propiciar apenas uma socialidade. Ambas con-
cordam que a socialidade é uma relação efêmera, imediata
e circunstancial – passível de acontecer no mundo virtual –
, mas este não é o único tipo de relacionamento exibido pe-
las comunidades. Maximo acredita que o modelo da
socialidade não deve ser generalizado para as formações
sociais engendradas no ciberespaço, uma vez que também
é possível verificar dimensões institucionalizadas, marcadas
pela sociabilidade. A autora aponta que, apesar de alguns

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agrupamentos sociais virtuais serem caracterizadas pelo


desejo de “être ensemble”, estar junto em detrimento dos
conteúdos objetivos que levam à interação, a sociabilidade
visa à formação de uma unidade social.
As salas de webchat6, por exemplo, se apresentam mais
com características de socialidade, pois as interações tendem
a ser efêmeras, uma vez que não é necessário apresentar-se
sempre com o mesmo apelido. Já os chats conhecidos como
IRC7 poderiam estar mais próximos do conceito de sociabili-
dade, pois, como aponta Carneiro (1997), existe uma organi-
zação e uma hierarquia de poder. No IRC também existe uma
estabilidade de identidade (Fortim, 2001), ou seja, as pesso-
as procuram entrar sempre com o mesmo apelido, para se-
rem reconhecidas na sala. Como diz Carneiro,

O ponto que considero mais inadequado para tratar as comuni-


dades de IRC é a idéia de “ausência de organização”. Assim como
as seitas não teriam necessidade de uma organização social visí-
vel e um aparelho burocrático forte, as tribos escapariam a qual-
quer espécie de centralidade e até de racionalidade. Penso que esta
noção seja inadequada porque os canais, longe de serem
inorganizados, são espaços bem estruturados, hierarquizados e
com regras definidas e conhecidas de todos. (s/p)

Carneiro (1997) diz também que a permanência é uma ca-


racterística muito importante desses agrupamentos virtuais.
Caso contrário, as relações entre as pessoas não poderiam ser
aprofundadas o suficiente para que constituíssem laços soci-
ais mais fortes. Como exemplo, ela observa que seria impossí-
vel que as relações pudessem aprofundar-se de modo
suficiente para dar aos indivíduos um senso de pertinência, se
todas as vezes em que o indivíduo voltasse ao ambiente de
sociabilidade virtual precisasse reiniciar a operação de travar
6
Salas de bate papo virtual disponíveis na Web, como as disponibilizadas
pelos provedores Terra e UOL.
7
O IRC – Internet Relay Chat .

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Diálogos com Márcia Regina da Costa

relacionamentos com os demais indivíduos. Se as relações


pudessem ser consideradas como efêmeras, teria que se admi-
tir que, a cada desconexão, tudo aquilo que havia sido
construído seria imediatamente destruído. A permanência é
o oposto da efemeridade, por isso a autora critica Lemos quan-
to à aplicação do conceito de socialidade no ciberespaço.
Após essa breve discussão, como se pode caracterizar este
objeto? É possível considerar que nos MUDs existe espaço
para a socialidade, relação efêmera, mas também para a so-
ciabilidade, relação longa e estável. Além disso, tem-se que
levar em consideração que Vitália se apresentava como um
agrupamento de jovens ordenado, em que existiam relacio-
namentos formais e institucionais.
Assim, por meio da socialidade e da sociabilidade,
pode-se considerar que os laços de amizade entre os joga-
dores acabavam por formar um agrupamento social com
normas e características próprias. Esses agrupamentos so-
ciais formados pela Internet recebem o nome de comuni-
dades virtuais. Em Vitália, existia uma simulação, não
apenas de uma interação social (como nas salas de chat),
mas também de uma comunidade com normas, regras e
valores inerentes a ela.

Comunidades virtuais

O conceito de comunidade foi identificado na Sociolo-


gia por diversos autores, tais como Simmel, Wirth, Tonnies,
Freyer, e mesmo Weber – autores escolhidos por Florestan
Fernandes (1973), para discutir o assunto. Alguns dão ên-
fase a aspectos como a coesão social, a base territorial, o con-
flito e a colaboração para um fim comum. Outros elencam
aspectos como o sentimento de pertencimento, a
territorialidade, a permanência, a ligação entre o sentimen-
to de comunidade, o caráter corporativo e a emergência de
um projeto comum, e a existência de formas próprias de
comunicação, como bem resumiu Palacios (1998).
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ANTROPOLOGIA URBANA

Em geral, os autores consideram que a comunidade está li-


gada por um sentimento de “pertença”, em que o indivíduo é
parte do todo, coopera para uma finalidade comum com os de-
mais membros (caráter corporativo, sentimento de comunidade
e projeto comum). A territorialidade também é bastante aponta-
da como uma característica da comunidade, pois permite a con-
dição essencial para o estabelecimento das relações sociais.
Para Wirth (1956), o conceito de comunidade refere-se
à vida grupal, que é composta por uma base territorial, dis-
tribuição de homens, instituições e atividades no espaço,
com uma vida conjunta fundada no parentesco e na
interdependência econômica, e baseada em uma mútua cor-
respondência de interesses. Para o autor, o que faz com que
uma comunidade exista é o fato de que a vida social huma-
na invariavelmente envolve um grau de comunicação, e é
isso que diferencia as comunidades humanas das dos ani-
mais. Os homens vivem numa comunidade em virtude das
coisas que têm em comum, e a comunicação é a maneira
pela qual passam a possuí-las em comum. Esse autor dá
ênfase aos aspectos de participação dos indivíduos em em-
preendimentos em comum, que tenham as mesmas esperan-
ças e idéias comuns, e nos mecanismos de comunicação e
de interação social que existem na linguagem, nos símbo-
los coletivos, nas leis e costumes.
Outros autores, como Beamish (apud RECUERO, 2002),
explicam que o significado de comunidade gira em torno de
dois sentidos mais comuns. O primeiro refere-se ao lugar fí-
sico, geográfico, como a vizinhança, a cidade, o bairro. As-
sim, as pessoas que vivem em um determinado lugar
geralmente estabelecem relações entre si, devido à proximi-
dade física, e vivem sob convenções comuns. O segundo sig-
nificado refere-se ao grupo social, de qualquer tamanho, que
divide interesses comuns: religiosos, sociais, profissionais etc.
No entanto, houve modificações no contexto e nos concei-
tos de comunidades. Manta e Sena (apud CARNEIRO, 1998)
acreditam que o conceito de comunidade teria sofrido uma

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Diálogos com Márcia Regina da Costa

mudança, na passagem da modernidade para a pós-


modernidade. O momento atual seria uma época de transição
dos ideais modernos (racionalização, progresso, planejamen-
to do futuro) para os ideais pós-modernos (imaginário, cultu-
ra do sentimento, sensibilidade, solidariedade, religiosidade).
O conceito clássico de comunidade, caracterizado pelo senti-
mento de pertença, permanência, territorialidade, crença nas
relações genuínas e verdadeiras, o ideal do projeto comum e
a existência de uma forma própria de comunicação entre seus
membros foi substituído na análise dessas novas comunida-
des, pela noção de tribalismo, de Maffesoli (1990).
Para Carneiro (1997), entretanto, a noção de tribalismo
não seria bem aplicada às comunidades virtuais, uma vez
que Maffesoli considera terem as tribos uma forte relação
com a territorialidade geográfica. Só será possível entender
as comunidades virtuais como tribos se acreditarmos que
o território no qual elas se inserem é simbólico, e não físico.
Assim, pode-se considerar que Vitália é uma comunida-
de num espaço virtual, um espaço simbólico vivido e com-
partilhado por seus jogadores. Ela não tem território
presencial, mas sim virtual. Lemos (1999), baseado nos con-
ceitos de Maffesoli (1990), acredita que se pode considerar
essas agregações sociais como comunidades que são forma-
das da mesma forma que as tribos urbanas (ou seja, por la-
ços emocionais, por uma vontade de estar junto, onde o que
importa é o compartilhamento de emoções em comum). São
“comunidades sem proximidade”, formadas em torno de
um território não físico, mas simbólico.
Segundo Balardini (2001), os espaços virtuais não têm a
territorialidade geográfica à qual os indivíduos se apegam,
mas somente o agrupamento que ele propicia, à identida-
de que está vinculada à sua pertinência e qualidade. Ou seja,
mais que um território, essas comunidades estão baseadas
nos laços afetivos que os usuários estabelecem entre si.
Uma comunidade virtual pode formar-se por meio das
várias formas de comunicação mediada pelo computador.

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ANTROPOLOGIA URBANA

É construída sobre afinidades de interesses, conhecimentos,


projetos mútuos, em um processo de cooperação e de tro-
ca, independentemente das proximidades geográficas. Cada
uma dessas comunidades tem formas, regras, e seus usuá-
rios apresentam comportamentos específicos.
Para Rheingold (1993), uma comunidade virtual pode
ser definida como agregações que emergem da Internet
quando várias pessoas entram em discussões públicas com
uma carga de afeto suficiente para formar teias de relacio-
namentos pessoais no ciberespaço. Para explicar o que é
uma comunidade virtual, o autor diz: “Pessoas que usam
computadores para comunicar-se, fazer amizades que às
vezes formam a base das comunidades, mas você deve ter
cuidado para não misturar a ferramenta com a tarefa e pen-
sar que apenas escrever palavras numa tela é a mesma coi-
sa que uma comunidade” (p. 1).
Mas como funcionam essas comunidades virtuais? Aoki
(apud FOSTER, 1997) dividiu o estudo das comunidades vir-
tuais em três grupos diferentes: 1) aqueles que se origina-
ram de comunidades físicas; 2) aqueles que englobam em
algum grau comunidades reais; 3) aqueles totalmente sepa-
rados das comunidades físicas.
Essas diferenças são fundamentais, quando se pensa no
estudo das comunidades virtuais. No MUD, boa parte da
comunidade permanece virtual, mas uma grande parte en-
globa, em algum grau, os encontros presenciais. Nesse jogo,
a comunidade se conheceu no virtual e partiu para encon-
tros presenciais.
Segundo Reid (1991), os usuários das comunidades vir-
tuais levam o mundo virtual a sério, e têm um senso de res-
ponsabilidade com seus companheiros, pois essa interação
propicia que as pessoas se abram com pessoas razoavelmen-
te “desconhecidas”. A comunidade propicia aos participan-
tes um grau de acolhimento e de confiança.
Os relacionamentos entre os jogadores podem ser esta-
belecidos de diversas maneiras. Na rede há espaço para

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Diálogos com Márcia Regina da Costa

velocidade e mudança, mas também existe espaço para per-


manência e sistematização entre os relacionamentos. As re-
lações podem ser múltiplas e efêmeras, mas também
profundas e articuladas (BALARDINI, 2001).
As comunidades virtuais são fluidas: em Vitália constan-
temente entravam e saiam usuários. Nos seus 8 anos de exis-
tência, Vitália viu muitas gerações de jogadores. Existia uma
população fixa, que eram os jogadores mais antigos do pro-
grama, estando lá há três, quatro ou mais anos jogando, mas
existiam muitos jogadores que faziam personagens, joga-
vam um pouco e nunca mais retornavam.

Comunidade virtual - interações on line e off line

Que aspectos usualmente são analisados em uma comu-


nidade? Para MacIver e Page (1955), as comunidades são
feitas por teias de relações sociais, em que seres sociais se
comportam em relação a outros de acordo com a maneira
determinada pelo reconhecimento um do outro. Para o au-
tor, as relações sociais estão vinculadas ao fato de os indi-
víduos se sentirem, de certa forma, da mesma classe. Para
ele, comunidade é o termo que se aplica a qualquer grupo,
grande ou pequeno, que partilhe de uma vida em comum.
Para esse autor, as comunidades têm diversos aspectos, que
a caracterizam como uma organização social. Há vários pe-
quenos agrupamentos, dentro do agrupamento social mai-
or, denominado comunidade. As comunidades podem ter
associações (grupos organizados com certo interesse co-
mum). As famílias e o Estado podem ser consideradas as-
sociações que fazem parte da vida da comunidade.
Essas formas de organização existiam na comunidade
vitaliana. Uma comunidade forma-se por meio de relacio-
namentos sociais, ligações de parentesco, relações de poder,
regras sociais estabelecidas, por hábitos e costumes, e pe-
los valores estabelecidos entre as pessoas. A comunidade
vitaliana tinha todos esses aspectos. Havia, inclusive, um
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ANTROPOLOGIA URBANA

linguajar próprio, quase um dialeto. Essa sensação de simu-


lação de uma comunidade “diferente”, fora da vida comum,
mantinha a freqüência de muitos jogadores no MUD.

As teias de relações sociais – Interações on line

Seguindo o pensamento de MacIver e Page, as comuni-


dades têm determinados tipos de organização, e elas se or-
ganizam em torno de instituições, tais como associações. Em
Vitália, existiam associações formais, como os clãs, e asso-
ciações informais, como a “elite” formada pelos vitalianos
mais velhos (em tempo de jogo).
Os clãs podiam ser considerados associações formais.
Filiar-se a um clã indicava o grau de comprometimento que o
jogador tinha em relação ao jogo e à comunidade virtual que
existia nele. Praticamente, todos os jogadores ingressavam nos
clãs quando tinham nível para isso (nível 10), sendo raros os
jogadores que preferiam permanecer sozinhos. Cada clã pos-
suía suas próprias regras e valores, que o membro devia res-
peitar.
Uma família era um grupo de jogadores que começava a
constituir laços familiares entre si, adotando um sobrenome
comum. Por exemplo, um jogador podia casar-se e adotar fi-
lhos, que, por sua vez, também se casavam e também adota-
vam filhos. Os jogadores anunciavam seu parentesco nos
títulos, formando assim as famílias. Pode-se considerar que as
famílias se formavam também como associações, uma vez que
partilhavam de um mesmo sobrenome e sentimento familiar
Na questão familiar, também é interessante notar o pa-
pel da mulher dentro do jogo, pois, como as mulheres eram
em número bem reduzido (em uma amostra de 149 questi-
onários preenchidos, havia apenas 12 mulheres), elas eram
extremamente valorizadas e muito disputadas em Vitália.
Os jogadores homens as favoreciam em diversos aspectos,
principalmente na exploração do jogo e quanto aos equipa-
mentos, que eram oferecidos a elas como presentes. Isso
36
Diálogos com Márcia Regina da Costa

tudo era feito porque havia a possibilidade de namoro e


casamento no MUD - e muitas vezes fora dele também.
Muitos procuravam no MUD a namorada ou a companheira
que pudesse ser trazida para o mundo presencial.
Os Deuses, programadores do jogo, formavam uma clas-
se diferenciada, que tinha controle e exercia o poder na co-
munidade. Se fosse feito um paralelo com as comunidades
presenciais, os Deuses representariam o Estado, pois eles
tinham controle absoluto sobre tudo e todos, e não se mis-
turavam com os demais jogadores. O estado, como aponta
MacIver e Page, também pode ser considerado como uma
associação, com finalidades próprias, que, neste caso, sig-
nificava gerenciar o jogo. Os deuses de nível mais alto eram
extremamente “poderosos” dentro do jogo. Poder, em um
MUD, era o poder de criar e destruir locais, objetos e, prin-
cipalmente, personagens (REID, 1994). Os Deuses eram te-
midos pelos jogadores, pois tinham o poder de destruir
personagens ou de removê-los para determinadas áreas do
jogo, a fim de que fossem impedidos de jogar.
Existia um conjunto de regras, chamado Policy (que era
a Política do Jogo), que devia ser respeitado pelos jogado-
res e que seria o código pelo qual os deuses regiam o MUD
(um paralelo adequado seria a Constituição). Entretanto,
muitas vezes o MUD era regido de forma arbitrária, privi-
legiando alguns jogadores em detrimento de outros. Isso
gerava muito descontentamento na comunidade, e levou os
deuses a instaurarem o que alguns jogadores chamavam de
“Ditadura Vitália”. Jogadores descontentes ou que reclama-
vam simplesmente eram punidos ou excluídos do jogo; os
deuses cediam às bajulações e eram rígidos com aqueles
com os quais não simpatizavam.
Existia em Vitália a oposição entre os experientes e os
novatos. Quando um jogador entrava no jogo e estava no
primeiro nível da sua primeira encarnação, era chamado de
“Newbie”, ou novato. Era considerado um jogador novato
até que pudesse, sozinho, entender o funcionamento do

37
ANTROPOLOGIA URBANA

jogo, sem a ajuda de outros jogadores. Os novatos eram


desvalorizados, pois não sabiam jogar e, principalmente,
não conheciam as regras da comunidade. Em oposição a
isso, os experientes formavam uma espécie de “elite” com
grande reconhecimento social. Considerava-se que esses
jogadores (que freqüentavam o MUD há três anos ou mais)
tinham visto Vitália crescer e se modificar, e já haviam in-
corporado as normas e valores da comunidade. Assim, po-
demos ver essa “Elite” dos mais velhos como uma
associação informal,
A comunidade vitaliana também tinha um sistema de valo-
res próprios. Eram mantidas certas regras morais do mundo
presencial (como casamentos heterossexuais e monogâmicos),
mas também tinha como valores a solidariedade e a honra. Além
disso, contava com valores específicos, como a importância da
amizade e a utopia de uma comunidade perfeita.
Os jogadores mantinham o que eles chamavam de solidari-
edade – um sistema de ajuda mútua, uma vez que para jogar
eles eram dependentes uns dos outros. Também era valoriza-
do o conceito de honra- aqui, para os vitalianos, entendido como
a manutenção dos ideais do que eles acreditavam que fossem
os da cavalaria medieval. Honra para a comunidade não signi-
ficava apenas a definição dada pelo Aurélio, e sim todo e qual-
quer sentimento que para eles fosse considerado “nobre”, como
altruísmo, desprendimento e amizade.
Mas Vitália tinha um valor específico: a manutenção da co-
munidade e os laços de amizades eram mais importantes do que sim-
plesmente jogar. Não dito explicitamente em nenhum lugar, o
principal valor de Vitália era que os laços afetivos
deveriamsempre ser mais importantes que o ganho de pon-
tos de experiência e os equipamentos. Os jogadores que privi-
legiavam a conquista de pontos e itens eram extremamente
malvistos pela comunidade.
Além disso, os jogadores mantinham a utopia de que
Vitália deveria ser um mundo melhor que o mundo real, li-
vre da violência. Este era um dos principais valores da co-

38
Diálogos com Márcia Regina da Costa

munidade, que prometia ser um lugar onde imperasse a


aventura e o mal estivesse banido. Isso atraía muitos jovens
descontentes com sua vida cotidiana, sem aventuras mági-
cas e cheia de incertezas, cercada de uma violência que de
fato atinge os corpos físicos, ao contrário do MUD, onde o
personagem pode sofrer qualquer dano sem que o jogador
realmente seja afetado.

Os encontros presenciais – Interações Off line

Os encontros presenciais eram chamados de MUD encon-


tros. Vitália era uma comunidade virtual, mas parcialmente
presencial. Nos “MUD encontros” realizados por este grupo,
às vezes os jogadores viajavam longas distâncias para se co-
nhecerem. Participar dos encontros era uma importante ati-
vidade na manutenção da comunidade, e certamente era o
que possibilitava que os jogadores interagissem em suas vi-
das off-line. Muitos relacionamentos off-line, como amizades,
namoros, e até casamentos, foram viabilizados na vida
presencial desses jogadores a partir dos encontros .
Pode-se considerar que os MUD encontros eram parte
do ambiente de sociabilidade do grupo, pois propiciava
transpor as amizades virtuais para o mundo presencial,
anulando assim divisões radicais entre o mundo presencial
e o virtual. Ambos se interpenetram, e, assim como compor-
tamentos no ambiente do jogo eram transpostos para o am-
biente presencial, muitos comportamentos do grupo
apresentados nos MUD encontros eram estendidos para a
vida virtual. De fato, a linha que separa o mundo virtual do
mundo presencial é bastante tênue. Havia comportamentos
dos jogadores que só existiam no universo do jogo e com-
portamentos que eram iguais no jogo e fora dele. Assim, o
que ocorria no MUD poderia ser em outra esfera que não a
física, mas não era menos real por causa disso.
Mas os MUD encontros atestam que a separação entre os
mundos virtuais e presenciais não é completa, pois todos se
39
ANTROPOLOGIA URBANA

encontravam e tinham amizades estendidas para além do


ambiente de sociabilidade do jogo. Existia uma grande dis-
cussão entre os jogadores, se vida de jogo é vida de jogo e não
se misturava com a presencial, ou se tudo fazia parte da mes-
ma coisa. O discurso dos deuses, ora tendia para uma sepa-
ração (MUD é uma vida separada da vida real), ora para a
junção dos dois mundos (se o jogador se comporta como um
canalha dentro do jogo, significa que também é assim fora
dele). Ou seja, não existem fronteiras entre o mundo virtual
e o mundo presencial, pois, em primeiro lugar, tudo faz par-
te do ambiente de sociabilidade grupal.
É com base na apresentação de todos esses comportamen-
tos dos jogadores, on e off line, que se considera Vitália uma
comunidade virtual, mantida, na maior parte do tempo vir-
tualmente, mas que contava com encontros presenciais.
Esse MUD podia ser considerado como um ambiente de
sociabilidade dos jovens. Esse ambiente de sociabilidade virtu-
al podia ser entendido como uma comunidade virtual que dis-
punha de normas específicas. Essa comunidade contava com
associações formais (como os clãs e famílias), com associações
informais (como a elite dos mais antigos e os novatos). Contava
ainda com uma organização que podia ser caracterizada como
Estado, e contava com valores específicos, que podiam ser com-
parados aos da cavalaria medieval (solidariedade, honra, uto-
pia vitaliana e a valorização da amizade e da manutenção da
comunidade). Os encontros presenciais faziam parte do ambi-
ente de sociabilidade do grupo, tornando assim mais rico o con-
tato entre jogadores e fazendo com que a amizade fosseo
principal motivo para os jogadores conectarem-se ao MUD.
Assim como o MUD, os jogos eletrônicos atualmente
conhecidos como MMORPGs (Massively ou Massive
Multiplayer Online Role-Playing Game8), são os novos
propiciadores de comunidades virtuais. Essas comunidades

8
Jogos de interpretação de personagem online e em massa para múltiplos
jogadores

40
Diálogos com Márcia Regina da Costa

se assemelham muito à do Vitália MUD, pela estrutura do


jogo e pelo comportamento desenvolvido pelos usuários.
Para finalizar, gostaria de comentar que o Vitália MUD
foi fechado em outubro de 2004, devido a desentendimentos
entre seus mantenedores. Isso causou grande comoção na
comunidade, que procurou outros MUDs para jogar. Após
uma longa história de aberturas e fechamentos de MUDs que
tentaram manter a comunidade, os jogadores foram sendo
absorvidos por outros jogos mais modernos do mesmo tema,
especialmente os jogos Ragnarok e World of Warcraft.
Entretanto, até hoje (abril de 2008), mesmo com o MUD
fechado há praticamente 3 anos, ainda são realizados MUD
Encontros pelos jogadores que participaram da comunida-
de, o que atesta que os laços de amizade formados por meio
virtual foram (e são!) muito fortes. Assim, creio que o estu-
do das comunidades virtuais merece mais atenção dos pes-
quisadores, pois, se podíamos ter todo esse material em um
ambiente de texto, com as inovações tecnológicas teremos
um material tão ou mais interessante para estudar o modo
como se dão as sociabilidades e socialidades juvenis.

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ANTROPOLOGIA URBANA

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