Você está na página 1de 18

Limites e possibilidades da cartografia afetiva enquanto método de

pesquisa nas ciências sociais1.

Laila Sandroni (CPDA-UFRRJ/RJ)


Bruno Tarin (ECO-UFRJ/RJ)

RESUMO:
As ciências sociais passaram, a partir da década de 1970, por profundas reorganizações
paradigmáticas que, pode-se dizer, geraram uma “crise epistemológica”. A antropologia,
certamente, teve um papel fundamental no processo de construção da crítica e na
reformulação das formas de produção de conhecimento em humanidades. Em paralelo,
no final do século XX, prosperaram em torno da ideia de cartografia novos meios de
produção de conhecimento. Essa nova maneira de encarar os desafios do exercício do
saber têm sido um fértil plano de experimentações metodológicas no sentido de
incorporar continuamente os processos de subjetivação na construção do conhecimento,
afirmando o caráter relacional e de transformação recíproca entre sujeito e objeto como
fontes de potência para a pesquisa em humanidades. O principal objetivo deste artigo é
fazer um diálogo reflexivo entre os caminhos propostos pela cartografia enquanto
método de pesquisa em humanidades e alguns dos desafios enfrentados pela
antropologia contemporânea. As intentonas de construir ligações entre diferentes
abordagens que procuram lidar com os problemas gerados na “crise epistemológica” e
que, em certa medida, chegam a “saídas” parecidas, é um exercício que pode gerar uma
fertilização recíproca entre essas. Em suma,o intuito desse trabalho é formular um lugar
comum onde possa ocorrer um encontro entre antropologia e cartografia - dentre
diversos outros possíveis.

Palavras-Chave: Cartografias, Metodologia, Antropologia Contemporânea.

Introdução:

As ciências sociais passaram, a partir da década de 1970, por profundas


reorganizações que tiveram como base mudanças paradigmáticas nos modos de vida e
contextos socioeconômicos - principalmente no ocidente 2. Na esteira dessas mudanças,

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
2
Estas mudanças em diversas escalas foram reconhecidas por inúmeros pensadores e nomeadas de
diferentes formas: do fordismo ao pós-fordismo; da sociedade moderna à sociedade de risco; da
sociedade disciplinar à sociedade de controle etc. Apesar de reconhecermos a importância dessa
discussão e que cada uma dessas categorizações carrega consequências teóricas e políticas diversas,
não é o objetivo desse trabalho explaná-las especificamente. A apropriação dessa problemática, nesse
trabalho, se restringe somente a abrir espaço para a discussão sobre as transformações nas formas de
produção de conhecimento nas ciências sociais a partir da identificação de uma mudança de
paradigma ocorrida no final do século XX.

1
surgem amplas experimentações sobre as formas de construção de conhecimento, que
redefiniram, requalificaram e colocaram novas problemáticas para o exercício da
pesquisa em humanidades. Este processo de reorganização, pode-se interpretar, gerou
uma “crise epistemológica”, na medida em que colocou em cheque as formas
estabelecidas de construção do conhecimento nas quais se baseavam
predominantemente as ciências sociais “modernas”.
A antropologia, certamente, teve um papel fundamental no processo de
construção da crítica e na reformulação das formas de produção de conhecimento em
humanidades. De forma geral, pode-se afirmar que o fazer antropológico - por tradição
fundamentado no exercício da alteridade - permitiu, a partir do contato com a
perspectiva dos “outros”, questionar de forma ampla e direta a cultura do “mundo
moderno”. Como consequência dos estudos de “outros” modos de vida, os antropólogos
formularam um grande número de indagações em relação à universalidade do
conhecimento gerado pela ciência régia3, bem como das dicotomias, tomadas por
verdades absolutas, tais como objetividade e subjetividade, natureza e cultura etc. Estas
indagações sempre permearam implícita ou explicitamente o fazer antropológico, mas
tornaram-se cada vez mais claras e elaboradas, encontrando aos poucos mais espaço na
disciplina, estimuladas pelas transformações ocorridas nos últimos quarenta anos.
Em paralelo, no final do século XX, prosperaram em torno da ideia de
cartografia novos meios de produção de conhecimento. Essa nova maneira de encarar os
desafios do exercício do saber têm sido um fértil plano de experimentações
metodológicas no sentido de incorporar continuamente os processos de subjetivação na
construção do conhecimento, afirmando o caráter relacional e de transformação
recíproca entre sujeito e objeto como fontes de potência para a pesquisa em
humanidades.
O principal objetivo deste artigo é fazer um diálogo reflexivo entre os caminhos
propostos pela cartografia enquanto método de pesquisa em humanidades e alguns dos
desafios enfrentados pela antropologia contemporânea. As intentonas de construir
ligações entre diferentes abordagens que procuram lidar com os problemas gerados na
“crise epistemológica” e que, em certa medida, chegam a “saídas” parecidas, é um
exercício que pode gerar uma fertilização recíproca entre essas. Em suma, objetiva-se
nesse trabalho formular um lugar comum onde possa ocorrer um encontro entre
antropologia e cartografia - dentre diversos outros possíveis.
3
Sobre o conceito de ciência régia, Cf. DELEUZE; GUATARRI, 1996.

2
Com este intuito, iremos inicialmente identificar algumas questões teórico-
metodológicas apontadas pela antropologia contemporânea. Em seguida, colocaremos
pontualmente algumas questões levantadas por autores que utilizam a cartografia como
método, sobretudo, pesquisadores relacionados a duas “escolas”, a saber: a cartografia
das controvérsias; e um conjunto de pesquisas que englobamos na denominação
“cartografias do desejo”. A partir desse ponto, realizaremos, na medida do possível, uma
comparação entre os limites e possibilidades propostos pelos antropólogos, e aqueles
elaborados pelas vertentes da cartografia que iremos apresentar.
Os argumentos aqui expostos são, em larga medida, resultado das reflexões
suscitadas pela prática cartográfica dos autores desse artigo, sobretudo na construção do
projeto ‘Cartografia Afetiva nas Nuvens das Raízes Profundas’ realizada entre os
Indígenas Tupinambá de Olivença (Ilheus/BA)4. Esta experiência gerou diversas
discussões e questionamentos sobre as nossas práticas enquanto atores políticos e
pesquisadores sociais. Podemos afirmar que foi nos sinuosos caminhos do percurso
deste trabalho - em confronto com nossa bagagem anterior - que foram levantadas
grande parte das questões aqui apresentadas. Dessa forma, neste texto, partiremos, de
debates teóricos e metodológicos, de forma ampla, na antropologia e na cartografia,
enraizando-os, sempre que possível, na experiência entre os Tupinambá de Olivença.
Vale, para por ponto a esta introdução, ressaltar que o discurso ora apresentado
não se pretende, de maneira nenhuma, um discurso fechado, ou seja, a realização de
afirmações categóricas. Pelo contrário, a proposta é, somente, abrirmos algumas
questões que surgiram na prática do cartografar. Nosso interesse concentra-se em revirar
algumas caixas de ferramentas no sentido de tentar encontrar instrumentos que nos
auxiliem melhor no grande desafio que é a produção de conhecimento em ciências
sociais na contemporaneidade. Isto não quer dizer que, caso encontremos ferramentais
úteis, munidos delas devamos enrijecer o processo. Afinal, a própria cartografia e a
antropologia - às quais nos referenciamos neste trabalho - apresentam o método não
como um conjunto fechado de elementos preestabelecidos que poderiam desvelar o
estático e o unívoco, mas sim uma longa preparação para um processo constituinte que
só se efetua nos encontros, ou seja, na constante transformação mútua.

Paisagens Antropológicas

4
O resultado deste trabalho está disponível em: < http://tupivivo.org >

3
A antropologia é uma disciplina extremamente rica, dotada de uma história
complexa e diversificada. Não é nosso intuito aqui, traduzir de maneira sintética os
anseios e soluções propostos pela disciplina como um todo, já que este trabalho seria em
si de enorme envergadura. Como aponta Wagner (2010), a diversidade teórica da
antropologia torna impossível a construção de qualquer tipo de perspectiva
generalizante - ou crítica generalizante, no caso do autor - que se dirija a disciplina
como um todo monolítico. Limitar-nos-emos, portanto, a apontar, somente,
determinados aspectos e questionamentos da antropologia com o intuito de reconhecer
possíveis lugares de encontro com a prática cartográfica. Parte-se inicialmente de
abordagens mais gerais e, ao fim desta sessão, apresenta-se algumas questões
particulares para a construção de pesquisas junto aos indígenas do nordeste brasileiro,
território onde se realizou o trabalho ‘Cartografia Afetiva nas Nuvens das Raízes
Profundas’. Reconhecemos que a realização de pesquisas junto a estes povos suscitam
uma série de indagações específicas, como veremos mais adiante.
Uma primeira abordagem extremamente rica em subsídios para o encontro entre
antropologia e cartografia é aquela elaborada por Roy Wagner em seu livro intitulado
“A invenção da cultura” (2010). Segundo Wagner, a antropologia é a disciplina que
possui como foco de estudo a noção extremamente vaga de “cultura”, conceito amplo
que procura dar conta daquilo que haveria de universal em toda a humanidade mas que,
ao mesmo tempo, se flexibiliza no sentido de abarcar as diferenças específicas no
fenômeno humano, apontando, dessa maneira, para a existência de uma extrema
variedade de culturas. Partindo desta intensa complexidade, tratar de cultura(s), exige
assim, segundo o autor, o acolhimento de uma abordagem duplamente “relativista”,
assumindo:
[...] o fato de que nós mesmos pertencemos a uma cultura (objetividade
relativa), e o de que devemos supor que todas as culturas são equivalentes
(relatividade cultural) [...] a compreensão de uma outra cultura envolve a
relação entre duas variedades do fenômeno humano; ela visa a criação de
uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua ambas.
(WAGNER, 2010, p.29).

Dessa forma, o fazer antropológico exige do pesquisador incluir a si e aos seus


modos de vida no seu objeto de estudo, pois enquanto ser humano ele também é dotado
de cultura. Ele sabe, portanto, a princípio, que as assertivas por ele elaboradas não são,
somente, uma descrição da “realidade” de uma outra cultura, serão sempre atravessadas
também por sua cultura. Em outros termos, o antropólogo só pode apreender a outra
cultura a partir de um complexo jogo de significações, operando assim por analogias ou

4
conjuntos de analogias entre a sua cultura e a dos “outros”. As aspirações de
neutralidade e universalidade da ciência moderna são, assim, radicalmente estremecidas,
quando reconhecemos que a posição do pesquisador é necessariamente relacional, e que
sua objetividade é necessariamente relativa.
Aprofundando o argumento, Wagner (2010) propõe a apostasia do auto-pleiteado
lugar de superioridade da cultura ocidental na linha evolutiva das culturas, partindo da
ideia de que não é possível correlacionar culturas em um sistema de ordenamento
hierárquico: toda e qualquer cultura é equivalente a qualquer outra em termos
valorativos - embora não o seja em termos qualitativos. O antropólogo é, assim,
colocado em pé de igualdade com os “objetos” da pesquisa. A antropologia, nesse
sentido, é o conhecimento que se dá na e para a relação entre culturas, afinal, somente
no encontro, baseado nas diferenças, a(s) cultura(s) pode se tornar visível. A concepção
da cultura não se efetua, nunca, de forma preexistente à relação: sua objetivação ocorre
quando se materializa. Esta perspectiva coloca em cheque a separação dicotômica entre
sujeito e objeto da pesquisa, incorporando o antropólogo no “objeto” e os indígenas no
“sujeito”.
A etnografia produzida por Bruce Albert, antropólogo inglês e Davi Kopenawa,
líder Yanomami, é um dos trabalhos de maior projeção que também opera diretamente a
partir do questionamento entre sujeito e objeto, negando frontalmente a autoridade
etnográfica generalizante perante o “discurso nativo”: A partir do contato com os
Yanomami e, sobretudo, de sua parceria com Kopenawa, o antropólogo realiza uma
delicada operação de entrecruzamento interétnico para reconhecer alguns
desdobramentos da questão ambiental e da conservação da biodiversidade na Amazônia,
fazendo um duplo caminho de incursão através da ecologia xamânica e da ecologização
do discurso étnico. O pesquisador realiza assim o que chama de etnografia comparativa
que tem como foco principal as relações entre as cosmologias Yanomami e o
ecologismo ocidental, escapando a uma visão estática da cultura Yanomami per se, a ser
“interpretada” por um antropólogo dotado de uma autoridade inerente conferida pela
legitimidade do discurso científico.
Albert (2002) centra, assim, seus esforços no reconhecimento do contato, na
“tradução” de categorias como natureza e meio ambiente, ao invés de realizar uma
busca de uma “explicação formal” da função destas categorias em cada uma das
cosmologias. A comunicação e a política interétnicas, geram assim novos significados
que ao mesmo tempo contornam e reafirmam as diferenças, a tradição indígena

5
empresta sua própria lógica à análise do ecologismo, ao mesmo tempo em que se
transforma no contato. É um processo de readaptação criativa que aparece como um
espaço de produção de novas concepções, a partir de um “mal entendido produtivo”,
reconhecendo as transformações culturais como processos dotados de dimensões
nefastas e produtivas, se afastando de uma visão demasiado polarizante, como coloca o
autor:
A constatação desta interdependência produtiva entre cosmologia e
etnicidade liberta os fenômenos de inovação cultural do maniqueísmo das
antinomias que habitualmente a esterilizam (assimilação versus resistência,
aculturação versus tradição, manipulação versus autenticidade etc.)
(ALBERT, 2002, p.263)

Para Albert (2002), as culturas devem ser pensadas em termos de transformação


mútua e não de interferência de uma sobre a outra. As visões dos índios sobre os
brancos e dos brancos sobre os índios se constroem e se inovam reciprocamente. mas,
para além disso, a visão dos índios sobre eles mesmos e a dos brancos sobre a própria
“sociedade ocidental” também se reorganizam neste processo: o contato gera novos
debates a partir desta intertextualidade, assim como cria novas posições nos debates.
A partir destas perspectivas gerais, gostaríamos de apontar algumas questões
específicas do estudo relacionado aos indígenas do nordeste, reconhecendo que estes
estudos trazem alguns desafios bastante instigantes e originais para o debate
contemporâneo da antropologia. Em virtude dos desdobramentos da ampla, antiga e
profunda colonização do nordeste os indígenas dessa região, que em muitos casos são
integrados a economia e sociedade locais e não possuem acesso a terra, são vistos,
segundo aponta Pacheco (1998), como populações tidas de pouca distintividade cultural
em relação aos brancos e negros da região, ou seja, não são populações isoladas
culturalmente, são ‘populações misturadas’. Ainda segundo o autor, a negligência aos
indígenas do nordeste se deu, em boa parte, por conta de uma visão - compartilhada pela
grande maioria dos etnólogos que estudam populações autóctones sul-americanas - que
coloca a antropologia como a disciplina do distanciamento social. Devido à esta visão,
ao menos até a década de 1980, os indígenas do nordeste foram considerados como um
objeto de estudo de interesse residual para a antropologia que realizava estudos
baseados na análise de documentos históricos ou na procura por resquícios das formas
de organização sociocultural pré-coloniais.
Citando e comentando a famosa metáfora de Lévi-Strauss sobre ‘o antropólogo
ser o astrônomo das ciências sociais’, Pacheco (1998) nos apresenta que a visão que

6
coloca a disciplina (antropologia) como baseada no ato de descobrir e representar
configurações culturais muito distantes entre si e afastadas daquela do pesquisador -
com o intuito de evidenciar uma realidade objetiva - seria totalmente inaplicável ao
estudo dos indígenas do nordeste. Indo além, o autor apresenta que esta perspectiva, em
realidade, contribuiu para a configuração de uma estranha maldição para o fazer
antropológico no nordeste, pois, a partir de seus pressupostos prevaleceu a ideia de que
no nordeste:
no momento mais adequado para a observação das diferenças - ou seja, no
início da colonização - não existia ainda a disciplina (com seu instrumental
teórico e metodológico); uma vez esta constituída, não havia mais culturas
que possibilitassem registros de afastamentos significativos. (PACHECO,
1998, p. 66)

Afastando-se dessa perspectiva, Pacheco, ao se apoiar fortemente na


antropologia pós-colonial5 - apesar de realizar algumas ressalvas sobre esta - propõe que
sejam abandonadas as imagens arquitetônicas de sistemas fechados e suas
pressuposições de distanciamento, isolamento e objetividade, passando-se a trabalhar
prioritariamente com a ideia de circulação de significados. Essa concepção permite
incorporar na pesquisa antropológica uma perspectiva constituinte das culturas
enfatizando, dessa forma, os aspectos não estruturais, dinâmicos e virtuais de seus
desenvolvimentos. A partir desse ponto de vista, a mistura não representaria,
necessariamente, a perda de cultura e a extinção de populações autóctones. Com efeito,
o que Pacheco aponta é que a realização de pesquisas com populações misturadas, ou
em outras palavras, o lado esquecido da antropologia americanista, em realidade, pode
contribuir bastante nos avanços e renovações da disciplina em geral - especialmente em
relação aos pressupostos teóricos que fundamentam os métodos etnográficos.

Paisagens Cartográficas

Antes de seguirmos com a proposta de criação de um espaço de encontro dos


horizontes antropológicos, até aqui expressos, com a cartografia enquanto método, cabe
uma explanação pontual sobre o lugar da cartografia na produção de conhecimento em
ciências sociais contemporâneas. A ideia de “cartografia” têm sido recorrentemente
acessada por autores provindos de distintas áreas de atuação para a formulação de novas
formas de construção do conhecimento sobre o campo social. Configurou-se assim,

5
Um dos principais expoentes dos estudos antropológicos pós-coloniais é Georges Balandier (1993)

7
atrelado à ideia de cartografia um interessante plano de experimentações da
interdisciplinaridade em seu sentido mais amplo, ou seja, em termos de um
entrecruzamento entre referências e formas de pensar de diferentes áreas do
conhecimento, e não apenas uma justaposição de resultados ou práticas metodológicas.
A cartografia enquanto método de pesquisa em humanidades não conforma,
entretanto, um campo homogêneo: há diferentes abordagens em relação à utilização do
termo6. Para os fins do debate aqui proposto iremos tratar especificamente de duas
vertentes teórico-epistemológicas que utilizam como base o conceito de cartografia - a
saber: cartografias do desejo e cartografia das controvérsias. Um dos pontos em comum
entre elas, e que nos levou a acessá-las na produção deste trabalho, é que ambas
utilizam a ideia de cartografia e a do próprio cartógrafo como meios para criar formas
de pensar e agir que apontam para a dimensão coletiva de constante transformação do
social e da cultura. Nesse sentido, para essas vertentes cartográficas, cada posição dos
sujeitos da pesquisa redefine as outras, inclusive a própria posição do pesquisador acaba
por se redefinir no processo de produção de conhecimento. Entretanto, vale ressaltar
que, cada uma destas abordagens utiliza e segue caminhos particulares em seus
processos, os quais pontuaremos de maneira extremamente sucinta a seguir.
Uma referência muito importante no desenvolvimento da cartografia enquanto
método de pesquisas em humanidades no Brasil é Suely Rolnik, filósofa paulista cuja
proposta de cartografia está intimamente ligada aos estudos sobre subjetividade. Para
Rolnik, (1989) “a prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às
estratégias das formações do desejo no campo social”, sendo assim, o fazer cartográfico
um processo onde estas estratégias encontram novas posições gestadas a partir dos
encontros efetivados no próprio ato de cartografar. O que ocorre, dessa maneira é “ a
incubação de novas sensibilidades e de novas línguas [...]”. A cartografia aparece aqui
como uma forma de pesquisar as paisagens psicossociais, cartografar processos
simbólicos, que vão desde movimentos sociais, a mudanças dos estilos de vida até os
quadros clínicos tanto coletivos como individuais - institucionais ou não.
Um dos principais desdobramentos, em termos de influência, do trabalho de
Rolnik ocorreu no campo da psicologia, sobretudo por pesquisadores da UFRJ, UFF e
UFRGS. A este conjunto de autores, incluindo a própria Rolnik, e seus desdobramentos
6
Para outras escolas que utilizam a ideia da Cartografia, além das apresentadas neste artigo, Cf.
ALMEIDA (2013) ACSERALD (2010) e RIBEIRO (2011). Não incorporamos estas abordagens na
presente comunicação por compreendermos que se afastam em alguma medida dos questionamentos
epistemológicos que constituem a base do encontro entre paisagens antropológicas e paisagens
cartográficos aqui proposto.

8
metodológicos nos referimos aqui, para fins didáticos deste trabalho, de “cartografias do
desejo”. Estes pesquisadores7, em grande medida, conformam um conjunto por sua
afinidade teórica com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari e por
procurarem enfrentar os desafios impostos pela utilização de uma metodologia
qualitativa em investigações sobre processos de produção de subjetividade. O foco
central de suas construções método-epistemológicas é incorporar o aspecto móvel e
relacional das formas de vida, a partir de uma postura que se contrapõe à ideia de
metodologia baseada em um conjunto de regras pré-estabelecidas (FONSECA; REGIS,
2012). As questões centrais para a construção do conhecimento são para os defensores
desta cartografia: estudar processos acompanhando movimentos, mais do que
apreendendo estruturas e estados de coisas; elaborar uma concepção de método tão
processual quanto o próprio social; assegurar, no plano dos processos, a sintonia entre
objeto e método (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010, p.8). O princípio da
cartografia é, assim, um antipricípio, pois obriga o cartógrafo a estar sempre mudando
de princípios, a cartografia se faz juntamente com as paisagens cuja formação ela
acompanha (GUATARRI; ROLNIK, 1986).
O cartógrafo possui um papel ativo nas paisagens que acompanha, pesquisar,
neste sentido, é implicar-se e intervir, afinal:
A análise do desejo [...] diz respeito, em última instância, à escolha de como
viver, à escolha dos critérios com os quais o social se inventa, o real social.
Em outras palavras, ela diz respeito à escolha de novos mundos, sociedades
novas. A prática do cartógrafo é, aqui, imediatamente política. (ROLNIK,
2011, p.69).

Como pode-se verificar, o cartógrafo, faz parte dos movimentos por ele próprio
cartografados, e possui uma posição ética claramente estabelecida neste processo. O
cartógrafo realiza o seu trabalho de cartografar relações enquanto e porque se relaciona
com elas, o conhecimento se constrói nos encontros, sujeito e objeto da pesquisa, para
esta perspectiva, são coemergentes. A cartografia dos desejos, configura assim, uma
abordagem radicalmente relacional, que procura cartografar não um “estado das coisas”,
mas uma rede de relações entre relações. Dessa maneira, os elementos da cartografia,
não podem ser entendidos separadamente como “atores” ou “objetos”, na medida em
que só emergem e se constituem na complexidade de seus encontros, onde estão sempre
incessantemente se reconstituido, se transformando.

7
Alguns dos principais expoentes desta corrente na psicologia são Virgínia Kastrup (UFRJ), Eduardo
Passos (UFF) e Tania Mara Galli Fonseca (UFRGS)

9
A outra vertente cartográfica que iremos abordar, também opera a partir de uma
perspectiva relacional e processual, tendo como ponto em comum a ruptura com uma
epistemologia baseada em unidades pré-constituídas: todos os cartógrafos aqui
acessados concordariam que as unidades - seja, o social, a cultura, o grupo, ou a classe -
são construidas necessariamente como parte de uma teia de interdependências,
impossível de ser apartada de seus contextos temporais e espaciais de existência. Nesta
segunda vertente, denominada de cartografia das controvérsias 8, a interconexão é
acessada através da noção de rede acoplada à noção de ator, evidenciando o aspecto
inseparável entre unidades e contexto (social e natural). Trata-se de um conjunto de
técnicas elaboradas pelo sociólogo francês Bruno Latour enquanto versão didática da
Teoria Ator-Rede (TAR). O objetivo bastante particular deste tipo de pesquisa em
ciências sociais é fazer um mapeamento dos diversos atores (humanos e não humanos),
agenciamentos e associações dispostos em rede a partir de uma determinada
controvérsia.
Entretanto, um ponto central de divergência desta cartografia em relação à
perspectiva anterior é a centralidade do conceito de controvérsia na identificação de
processos cartografáveis, que seriam, nas cartografias do desejo, constituídos por todo e
qualquer processo de formação e transformação de subjetividades. Uma controvérsia é,
segundo os autores da TAR, uma situação onde diferentes atores discordam, ou melhor,
“concordam em discordar” (VENTURINI, 2010). Nessa concepção, este seria o
momento privilegiado para realizar uma pesquisa, pois os embates e organizações do
social ainda não se estabilizaram, as redes estão em movimento, permitindo uma visão
mais clara de sua dimensão dinâmica (LEMOS, 2013). Ao olhar para uma controvérsia
quente9 o pesquisador consegue acessar mais facilmente a circulação, criação e término
das associações que formam a rede, podendo, dessa forma, observar o social enquanto
ele se organiza, ou nas palavras de Latour, se ‘agrega’ (LATOUR, 2012).
A cartografia das controvérsias pretende assim materializar uma ‘sociologia das
associações’, capaz de abarcar a complexidade do social, ao afastar-se das
simplificações realizadas pela “sociologia do social”. Esta última, operaria por
processos de purificação das unidades sociais, despindo-as de suas associações,
deixando de fora da análise, dessa maneira, os fluxos móveis que necessariamente
8
No Brasil, a cartografia das controvérsias foi apropriada, sobretudo, por autores da comunicação que
realizam pesquisas sobre rastros digitais e ações no ciberespaço. Cf Lemos (2013) e Bruno (2012)
9
Segundo Venturini (2010), as controvérsias são o social em seu “estado magmático”: este líquido com
pedaços rígidos e frios e pedaços fluidos em chamas, cuja tendência, com o tempo, é se cristalizar por
inteiro.

10
fazem parte de sua constituição. Segundo Lemos (2013), as críticas da TAR à
“sociologia do social” e as bases fundamentais da cartografia das controvérsias,
sinteticamente, seriam:
o social é consequência e não causa das associações; humanos e não humanos
inscrevem e mediam ações criando redes por onde a agência circula sem
essencia; mais do que estruturas fixas, macro, agindo sobre sujeitos nas
microrelações, temos complexas relações recursivas e negociadas a cada
associação; fenômenos não podem ser explicados por categorias a priori;
cada actante é uma mônada, ao mesmo tempo indivíduo e rede, onda e
partícula; não há essência e tudo se faz nas associações; todas elas encontram
na análise das controvérsias seu momento principal de observação e
comprovação. (LEMOS, 2013, p.109)

A cartografia das controvérsias poderia - e deve segundo seus defensores -


conformar assim, um mapa dos deslocamentos de atores e agências, organizando, se
possível visualmente, um diagrama das relações de força e das posições de cada ator. Ao
realizar esta tarefa o pesquisador poderia reorganizar o formato da própria controvérsia
podendo inclusive tornar-se um ator, dessa forma, interferindo na maneira como os
outros atores a compreendem e, portanto, agem. Nesse ponto, se apresenta uma outra
diferença entre a perspectiva cartográfica anterior e a presente. Para a cartografia das
controvérsias a implicação e a intervenção são vistas como consequências e não,
necessariamente, enquanto práticas políticas e partes, indissociáveis, da pesquisa, como
no caso das cartografias do desejo. Nesse sentido, ambas as perspectivas abandonam por
completo qualquer pretensão de neutralidade. Contudo, enquanto a primeira perspectiva
reconhece a implicação e a intervenção como elementos produtivos e necessários do
processo de produção do conhecimento, a segunda as reconhece como uma
consequência inevitável com a qual o pesquisador pode lidar de diversas maneiras.
Com efeito, há como fundamento comum entre as duas vertentes apresentadas a
vontade de construção de um saber dinâmico que reconheça a emergência de atores e
ações nos movimentos e encontros que realizam, negando, dessa maneira, uma visão
“naturalizante” do social e da cultura que teria como base as ideias de estabilidade e de
essência. Ora, se partimos da concepção de que não há uma essência ou uma ontologia a
ser descoberta ou desvelada, o critério de objetividade se desloca da aproximação de
uma realidade estática, para a capacidade de acompanhar processos. Isto incorre em um
necessário questionamento da posição de “legitimidade” do pesquisador mediante os
fenômenos com os quais se relaciona através da pesquisa, bem como de sua autoridade,
enquanto porta-voz de uma dada realidade.

11
Paisagens “Misturadas”

O ponto central que perpassa todas as abordagens aqui acionadas é, a nosso ver,
a centralidade do encontro, no processo de construção do conhecimento. Todos os
antropólogos e cartógrafos aqui mencionados reconhecem o encontro como
potencialmente produtivo, não necessariamente homogeneizante e como condição
central para a criação de novos agentes, ações e espaços. Permeando todos os
argumentos até aqui expostos, há uma convergência no sentido de olhar para a mistura
entre diferentes - sociedades, sujeitos, culturas, formas de ordenamento. A centralidade
do encontro, por sua vez, abre algumas trilhas e caminhos para a construção de novas
bases para pensar e fazer conhecimento na contemporaneidade.
Em primeiro lugar, essa perspectiva, conforme vimos, pressupõe a incorporação
da relação do pesquisador com a realidade estudada na própria pesquisa. Wagner
(2010), Albert (2002) e Pacheco (1998), apontam muito claramente para a necessidade
de refletir sobre o lugar de autoridade do pesquisador como parte do processo de
construção do conhecimento em antropologia, explicitando a necessidade de se pensar
uma equivalência valorativa na relação do antropólogo (e de sua cultura) com a cultura
estudada como elemento primordial da análise antropológica. A partir desse
reconhecimento e da consolidação da noção de que todo processo de construção do
conhecimento é perpassado por uma relatividade dos pontos de vista, há uma quebra da
hierarquia dos discursos, na medida em que por ser apenas um entre tantos discursos
possíveis o conhecimento científico se destitui da legitimidade conferida pela quimera
da objetividade absoluta. A sensibilidade da antropologia nos permite perceber que
rechaçar uma primordialidade valorativa ao discurso científico, não quer dizer, contudo,
que estes discursos sejam simétricos. O trabalho de Albert (2002) nos demonstra como
as diferenças qualitativas entre a cultura Yanomami e o ecologismo ocidental são
justamente o ponto onde são produzidas novas formas discurso e práticas culturais,
tanto entre indígenas quanto não-indígenas, sendo a sua interação um fenômeno de
particular interesse para a antropologia.
A cartografia dos desejos oferece também um instrumento interessante - a saber,
o conceito guattariano de transversalidade - para refletir sobre a equivalência valorativa
e a diferença qualitativa. Barros e Passos (2010) sugerem que o pesquisador deve
procurar aumentar o quantum de transversalidade das relações estabelecidas durante a
pesquisa, ou seja, estimulando o plano onde as diferenças se comunicam e se

12
reorganizam constantemente. Este plano é transversal pois cruza e desestabiliza os
planos vertical, que organiza as diferenças em uma hierarquia rígida e estabelecida, e o
horizontal, que organiza as diferenças de maneira corporativa, tendendo a
homogeneização. Na transversalidade, vão sendo gestados outros mundos passíveis de
serem compartilhados por sujeitos dotados de pontos de vista diversos (EIRADO;
PASSOS, 2010). A partir desta noção torna-se possivel se contrapor às hierarquias
estabelecidas - entre saberes, sociedades, culturas etc - sem incorrer em uma
homogeneização, ou em uma apropriação ingênua dos processos sociais, como se não
houvessem diferenças, inclusive em termos de poder, entre as diferentes perspectivas.
Assumir e constituir uma perspectiva transversal requer que não tenhamos uma
concepção pré-estabelecida dos tipos de linguagem que podem ser utilizados na
construção do conhecimento. Conforme aponta Rolnik:
o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. não tem o menor
racismo de freqüência, linguagem ou estilo. Tudo o que der língua para os
movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e
criar sentido, para ele é bem-vindo. (ROLNIK, 2011, p.65)

Na cartografia realizada entre os Tupinambá de Olivença, procuramos lançar


mão da maneira mais cautelosa possível desta compreensão. Por mais que estivéssemos
em diversos momentos falando sobre a “vida Tupinambá”, procuramos deixar bastante
explícito que a cartografia apresentada configurava apenas uma dentre tantas
perspectivas possíveis, propositalmente produzida em diálogo com outras. Lançamos
mão da maior variedade de discursos acessíveis, costurando entremeadamente, textos de
nossa autoria, textos de autoria dos indígenas, filmes com entrevistas, imagens
realizadas por nós e por eles, citações de falas indígenas, bem como poesias, dentre
outras linguagens. Cientes de nosso papel de organizadores das diferentes linguagens
expostas, procuramos, entretanto, sempre que possível, incorporar indígenas Tupinambá
na escolha das questões a serem abordadas bem como na organização destas questões na
cartografia. Contudo, vale uma ressalva sobre a questão de dar voz aos diferentes tipos
de construção de conhecimento e linguagens: não se pode confundir dar voz, com
tornar-se “porta-voz”.
A questão da incorporação de diferentes linguagens na produção de
conhecimento se apresenta de forma potente na obra de Bruce Albert e Davi Kopenawa,
sobretudo no que diz respeito à questão da autoria. Após a construção da etnografia
citada anteriormente10, foi lançado na França o livro “La Chute du Ciel: paroles d’un
10
'O Ouro canibal e a queda do céu' (2002).

13
chaman yanomami”, constituído de relatos orais autobiográficos de Davi Kopenawa
enquanto líder Yanomami e xamã transcritos por Bruce Albert. No posfácio do livro,
Albert reconhece o dimensão de encontro embutida na obra, na medida em que a
transcrição das falas de Kopenawa só foi possível a partir da colaboração entre o
antropólogo e o indígena Yanomami. O livro é, portanto, resultado de um processo de
fusão das duas epistemologias, a oral e a escrita, imanente à coautoria do livro, tendo
como objetivo, segundo Albert, oferecer a Kopenawa, a oportunidade de difundir seu
próprio ponto de vista sobre o pacto e o projeto que sustentaram a empresa comum entre
o antropólogo e o líder indígena.
Entendemos que todas as abordagens apresentadas no presente trabalho operam
um questionamento radical da relação sujeito e objeto, e da ideia de unidades
preestabelecidas como colocadas pela ciência régia. Os antropólogos nos demonstram a
fragilidade da perspectiva que trata das culturas como objetos “em si”, como se fossem
elementos isolados, fechados. Como vimos, Wagner (2010) aponta para a
primordialidade da relação no processo de construção do conhecimento antropológico,
inclusive na constituição da própria ideia de cultura. Da mesma maneira, Albert (2002)
fala da fundamentalidade das interações simbólicas na construção tanto do discurso
etnográfico quanto do discurso indígena. Já Pacheco (1998), ressalta que foi justamente
uma perspectiva demasiado estanque das relações que fez com que a antropologia,
durante muito tempo tivesse prestado pouca atenção aos indígenas do nordeste. Ora, um
dos pontos centrais tanto da cartografia dos desejos, quanto da cartografia das
controvérsias é a quebra das unidades preestabelecidas. Nessas perspectivas categorias e
unidades não são transcendentes, ou seja, não há uma essência por trás dos processos,
tudo se constrói na materialidade das relações.
A cartografia das controvérsias tem como objetivo construir uma forma de olhar
que permita reconhecer o caráter extremamente dinâmico do social: a perspectiva
construída a partir da noção de rede permite que as associações estejam no centro da
análise, ao invés de unidades sociais preestabelecidas. Atores e agenciamentos podem a
todo momento se decompor e recompor de acordo com seu lugar na rede e as ações dos
outros atores. A rede reconfigura a todo tempo as ações, e as ações reconfiguram a todo
o tempo a rede. A cartografia das controvérsias propõe um afastamento em relação às
categorias sociológicas em nome da observação do processo que as estabelece, em suas
palavras operar a abertura de 'caixas pretas'. A cartografia dos desejos aprofunda este
aspecto a partir da noção de coemergência. Isto significa dar um passo adiante na

14
incorporação da dimensão relacional, pois aponta para uma compreensão que identifica
as identidades ou unidades estabelecidas como produtos do próprio encontro, e este é
sempre historicamente enraizado e dotado de características singulares. A cartografia
dos desejos se opõe frontalmente a qualquer tipo de padronização generalizante, pois
esta encurrala na quina da verdade a multiplicidade da vida (REGIS; FONSECA, 2012).
Esta perspectiva, embora pareça simples, modifica profundamente o olhar do
pesquisador. Entre os Tupinambá de Olivença, por exemplo, procuramos reconhecer
explicitamente que a cartografia produzida não tinha como objetivo traduzir a
“verdadeira verdade” sobre este povo. Nos contrapusemos a princípio a uma busca do
que é, do ser, Tupinambá, ou mesmo da “origem” deste povo. Estas perguntas partem da
ideia de que haveria uma essência Tupinambá enquanto unidade transcendente, dada a
priori, dotada de uma estrutura específica a ser revelada pelo pesquisador, na medida em
que aqueles que vivem o processo não têm a capacidade de enxergá-la – pois estaria no
inconsciente. Nos perguntamos, assim, sobre as práticas que os Tupinambá realizam e
as relações que constituem suas vidas. A partir de uma livre inspiração da célebre frase
de Espinosa 'o que pode um corpo?', colocamos em movimento a questão: ‘o que faz um
Tupinambá aqui e agora?'. Nesta medida toda a discussão sobre a “veracidade” ou
“falsidade” da identidade indígena Tupinambá, discurso amplamente utilizado por
grandes fazendeiros da região de Ilhéus para deslegitimar a luta pela demarcação do
território, é deslocada no sentido de uma visão que ultrapassa a dicotomia tradição
versus aculturação. Apenas culturas reconhecidas como identidades fixas fechadas em
si, podem desaparecer. No entanto, as culturas entendidas como processos de
transformação contínuos, não desaparecem, somente, se modificam constantemente.
Na discussão específica sobre os indígenas do nordeste, a virada de afastamento
em relação à ideia de aculturação, que no limite ancora a perspectiva da 'extinção', se
relacionou, em alguma medida, a uma incorporação de concepções advindas da
antropologia pós-colonialista. Há hoje todo um conjunto de etnografias voltadas para os
povos indígenas do nordeste, bem como todo um esforço teórico de diversos
antropólogos - dentre os quais Pacheco é um importante autor – que ressaltam a
densidade cultural destes modos de vida gestados no encontro entre os povos autóctones
e os colonizadores. Pacheco (1998) aponta que o estudo sobre os “índios misturados”,
hoje, pode contribuir para o enfrentamento de desafios presentes na antropologia como
um todo. As bases das cartografias do desejo aprofundam este argumento, ao reconhecer
a produção de subjetividades minoritárias - que no caso da antropologia podem ser

15
identificadas como os espaços e povos “mestiçados” - como o lugar central para a
elaboração de novas estratégias de produção de conhecimento:
A cartografia deve conformar estratégias de produção de saberes que
extravasem a busca pelo conhecimento verdadeiro, em direção ao
conhecimento que funcione para atualizar as intensidades minoritárias,
aquelas que corajosamente produzem um mal-estar, justamente porque nos
arrancam do que éramos antes delas (...) atinge o poder de romper com todas
as generalizações, tantas vezes repetidas e, por isso, acreditadas. (REGIS;
FONSECA, 2012,p. 281)

Dessa forma, a cartografia dos desejos valoriza, devido a sua posição ético-
política, os devires minoritários. Conforme apontam Guatarri & Rolnik (1986), o devir é
um termo relativo à economia dos afetos que se referencia às dimensões do desejo que
extrapolam as imagens e identificações predispostas. Ao voltar a sensibilidade aos
devires menores pode-se contribuir para a abertura de espaços para diferentes
subjetividades, e construção de outros e novos mundos mais desejáveis de se viver.

Conclusão:

O intuito desta comunicação foi promover um encontro entre paisagens


cartográficas e paisagens antropológicas, partindo da ideia de que paisagens misturadas
são um local privilegiado de produção de saber. Partindo de uma perspectiva
profundamente relacional, tanto no que diz respeito ao papel do pesquisador na
construção do conhecimento, quanto ao abandono das unidades em nome das relações,
esperamos ter contribuído, para a ampliação dos encontros entre diferentes perspectivas,
não como anulação ou neutralização das diferenças, mas como transformação mútua.
No encontro, tanto a cartografia quanto antropologia, tanto o pesquisador quanto os
sujeitos “estudados”, ao incorporar a transformação coexistente ao pesquisar, podem
questionar posturas viciadas, lançando mão de 'caminhos de diferença'. A presente
comunicação configura assim mais um pequeno passo de uma longa e contínua
preparação no processo de construção de percursos metodológicos se desvencilhando,
assim, do estabelecimento de normas e etapas rígidas. Com efeito, a produção desse
trabalho significa, apenas, uma abertura de novas possibilidades teórico-metodológicas,
na esperança de que sejam produzidos outros percursos.

16
Referências Bibliográficas:

ACSELRAD, Henri. Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o


debate. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR, 2010.

ALBERT, Bruce. O Ouro Canibal e a Queda do Céu: Uma Crítica Xamânica da


Economia Política da Natureza Yanomami. In: ALBERT, Bruce. & RAMOS, Alcida.
(orgs.). Pacificando o Branco. Cosmologias do Contato no Norte Amazônico. São
Paulo, Editora da UNESP/IRD, 2002.

ALMEIDA, Alfredo Wagner; FARIAS JÚNIOR, Eduardo. (Orgs.) Povos e


comunidades tradicionais: nova cartografia social. 1ed.Manaus: UEA Edições, 2013.

BALANDIER, George. A noção de situação colonial. Cadernos de Campo , ano III,


No. 3. São Paulo: USP (PPGCS/Depto. de Antropologia), 1993.

BARROS, Regina; PASSOS, Eduardo. A cartografia como método de pesquisa e


intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (orgs).
Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade.
Porto Alegre: Sulina, 2010.

BRUNO, Fernanda. Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Revista


Famecos, Vol. 19, n. 3, 2012.

CALLON, Michel. ‘A coperformação das ciências e da sociedade. Entrevista com


Michel Callon.’ In: Revista Política & Sociedade. n. 14, vol abril. Florianópolis: UFSC,
2009, p 383 - 406.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs v.1. 2 ed. São Paulo: Editora 34,
1996.

EIRADO, André; PASSOS, Eduardo. Cartografia como dissolução do ponto de vista


do observador. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana
(orgs). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de
subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010.

FONSECA, Tania Mara Galli; REGIS, V. M. Cartografia: estratégias de produção do


conhecimento. Fractal, Rev. Psicol., v. 24 – n. 2, p. 271-286, Maio/Ago. 2012

17
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 1986.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. La Chute du Ciel: paroles d’un chaman


yanomami. Paris: PLON/Terre Humaine, 2010

LATOUR, B. Reagregando o Social. Bauru, SP: EDUSC/ Salvador, BA: EDUFBA,


2012.

LEMOS, A. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo:


Annablume, 2013.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação
colonial, territorialização e fluxos culturais. MANA, v.4/1, abr. 1998.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (orgs). Pistas do método


da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre:
Sulina, 2010.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Territórios da sociedade: por uma cartografia da ação.
In: SILVA, C. A. da (Org.). Território e ação social: sentidos da apropriação urbana. Rio
de Janeiro: FAPERJ, 2011.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do


desejo. Porto Alegre: Sulina, 2011.

VENTURINI, Tommaso. Diving in magma: how to explore controversies with actor-


network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258–273. 2010.

VENTURINI, Tommaso. Building on faults: how to represent controversies with


digital methods. Public Understanding of Science, 21(7), 796–812. 2012.

WAGNER, Roy. A Invenção da cultutra. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

18

Você também pode gostar