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CEM TEXTOS DE HISTÓRIA ASIÁTICA

1
[Org.]

BUENO, André [org.] Cem Textos de História Asiática. União da


Vitória, 2010. ISBN 978-85-65996-23-5

Disponível em: http://asiantiga.blogspot.com.br/


ÍNDICE

Apresentação
Mitos de Criação
1. O Purusha Sukta (Hino do Homem)
2. A Prajapati
3. A Canção da Criação
4. Cosmogonia no Shatapatha - Brahmana
5. Aitaryea Upanishad
6. A Perenidade da criação na Visão Budista, no Diga Nikaya
7. O mito chinês de Panku
8. Cosmologia daoista em Laozi
9. A cosmologia daoista do Huananzi
Natureza Humana
10. A Visão budista da Natureza Humana no Suttanipata 2
11. Outra visão budista, sobre a natureza humana, no Samyutta
Nikaya
12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio
13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi
14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de Lubuwei
15. A natureza humana depende da cultura - Huainanzi
16. A natureza humana depende da educação – Dong Zhongshu
A Morte
17 - Hino para ser entoado em um funeral, do Atharva Veda
18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no Manava Dharma
Shastra (As Leis de Manu)
19. A Morte no Katha Upanishad
20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima - Nikaya
21. A morte na visão de Zhuangzi
Caminhos para a Sabedoria
22. As Características do Sábio Perfeito no Bhaghavad Gita
23. Uma mestra em busca da sabedoria: A Conversa Entre
Yajñãvalkya e Maitreyi no Brihadaranyaka upanishad
24 A busca de Svetaketu, no Chandogya Upanishad
25. A sabedoria nos Yogas sutras de Patanjali - Formas de Meditação
e de Samadhi
26. O Caminho Budista, descrito no Samyutta Nikaya
27. A redenção pelo estudo, no Zhong Yong de Confúcio e Zisi
28. O dao dos daoístas, de Laozi
29. O dao obscuro de Zhuangzi
30. O Dao da saúde do Neijing (O Tratado Interno) - Tratado sobre a
Verdade Natural nos Tempos Antigos
Vivendo em Sociedade 3
31. A Criação do Mundo e a origem das leis e das castas no
Manavadharmashastra
32. Sobre a Origem e Valor das Quatro Castas no Mahabharata
33. A visão das castas para os budistas no Mojjhima - Nikaya
34. Regras Para um Chefe de Família, no manavadharmashastra
35. Deveres das Mulheres no Manavadharmashastra
36. Regras para um chefe de família budista, no Sutanippata
37. Ode ao rei que lavra a terra, pedindo um ano de abundância, no
Shijing (Tratado dos Poemas)
38. Poema de uma mulher divorciada, no Shijing
39. Lamento de um funcionário sobre a miséria, no Shijing
40. Sobre o labor agrícola, no Shijing
41. Outras gentes, no Zhongyong de Confúcio e Zisi
42. Os deveres de obrigação universal, no Zhongyong
43. A Visão da civilização em Zhuangzi
44. O ciclo da vida humana no Neijing
45. Queixa e apelo de Zhuang Qiang contra o mau trato que recebeu
do esposo, no Shijing (tratado dos Poemas)
46. Contra o Álcool e a Embriaguez, no Shujing (tratado dos livros)
47. Contra o Luxo, no Shujing
48. Sociedade e Educação, no Liji (manual dos Rituais)
49. Como surgiu Li (a cultura) no Liji
50. O papel do indivíduo na estruturação da sociedade, no Daxue
(Grande Estudo)
Deuses, Crenças e Encantamentos
51. A Morte e os Deuses no Rig Veda
52. A Lenda Indiana Sobre o Dilúvio
53. Hino à Indra, no Rig Veda 4
54. Hino à Indra, Varuna e ao Suco sagrado, o Soma, no Rig Veda
55. Hino às diversas divindades, no Rig Veda
56. Hino às diversas divindades, no Sama Veda
57. Os nomes de Indra, no Sama Veda
58. A especulação sobre o Brahman no Isha Upanishad
59. Quem é o criador? No Kena upanishad
60. Prece recitada durante o preparo de um ungüento preservativo
de males e doenças, do Atharva Veda
61. Para obter o amor de uma mulher (idem)
62. Hino às rãs, para que venham as chuvas (idem)
63. Para achar-se um objeto perdido (idem)
64. Para livrar alguém do vício do jogo (idem)
65. Fuxi e Nugua
66. Huangdi, o deus do Meio
67. O País dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e
dos Mares)
68. As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e
dos Mares)
69. Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing (Clássico das
Montanhas e dos Mares)
70. O Mundo antigo, por Zhuangzi
71. O cofre guarnecido de metal, a história de uma previsão no
Shujing (tratado dos livros)
72. Uma previsão do Tratado das mutações: Hexagrama 18, a
Recuperação do Deteriorado, do Yijing
73. Invocação ao ancestral da dinastia Shang, Tang.
74. Uma antiga cura para depressão, no Liezi
A Arte de Bem Governar 5
75. Os Deveres de um Rei, no Dharma sutra
76. Rei e Punição, no Manavadharmashastra
77. O poder do rei, no Artashastra
78. A política ecumênica de Ashoka
79. Discurso do Marques de Qin, no Shujing
80. As regras do bom governo, no Zhongyong
81. As cinco obrigações do bom líder, no Liji
82. Cinco deveres e quatro erros, no Lunyu (Diálogos) de Confúcio
83. O governo do povo, em Mêncio
84. As proibições, de Guanzi
85. O governo daoísta de Laozi, no Daodejing (tratado da virtude e
do caminho)
87. O Governo, para Shang Yang
88. Regras para o bom governo, de Hanfeizi
Visões da Guerra
89. Benção das armas de um príncipe em sua ida para a guerra, do
Atharva veda
90. A guerra nas leis de Manu
91. Um Soldado pensando no Lar, do Shijing
92. Sobre as proposições da vitória e a derrota, em Sunzi
93. Contra a Guerra, em Mozi
94. A guerra é um massacre, em Mêncio
95. A guerra, em Shangyang
A Ciência de Registrar o Passado
96. A Agitação do Oceano Pelos Deuses, no Vishnu purana
97. Uma passagem do Chunqiu (primaveras e outonos), comentada
pelo Zuozhuan de Zuoqiuming
98. O Canon de Yao, do Shujing 6
99. Contra os áulicos sistemáticos, do Zhanguoce, ou Discursos dos
estados combatentes
100. A Vida de Po Yi, por Sima Qian, no Shiji (recordações
históricas)
Anexo
a) A visão de passado em Shang Yang
b) Grande Tratado sobre a Harmonia da Atmosfera das Quatro
Estações com o Espírito Humano, no Neijing (o tratado interno)
Apresentação

Cem textos de história asiática não é, a princípio, uma continuação


do meu livro anterior, Cem textos de história chinesa. A idéia aqui
foi, primeiramente, apresentar um contraste entre as duas principais
civilizações do Extremo Oriente, Índia e China. Muitos são os mitos
acerca das relações entre essas duas culturas; de que a Índia
emprestara sua cultura à China, de que a China não tem autonomia
de pensar, ou de que ambas são muito semelhantes, etc. Todos estes
erros foram construídos por concepções históricas superadas, mas
que ainda persistem no imaginário popular ou dos estudantes
desavisados. Uma análise superficial e mal feita poderia, com
alguma boa vontade, indicar similaridades entre as duas, mas uma 7
leitura mais apurada de seus textos demonstra preocupações e
perspectivas amplamente diferentes. Esta foi uma das razões desta
antologia.
A segunda razão seria a de selecionar textos que mostrassem, então,
as visões de mundo destas sociedades, e evitei repetir textos já
utilizados na outra antologia. Em compensação, aproveitei
fragmentos já presentes nas traduções correntes, e nisso a
originalidade desta seleção consiste na escolha dos temas e eixos
principais. Alguns deles, como os da seção de religião, são quase
inteiramente dominados pelos textos indianos; história, porém, é
uma seção quase inteiramente chinesa. Isso por si só já demonstra,
substancialmente, algumas diferenças de perspectivas, que
abordaremos um pouco melhor adiante.
Por fim, a escolha dos textos situa-se na antiguidade, até o século -1
aec. A partir disso, os contatos entre indianos e chineses acentuam-
se, e daí podemos realmente falar de trocas culturais entre ambas as
civilizações. Antes disso, contudo, estas civilizações cresceram e se
desenvolveram de forma relativamente autônoma, possuindo suas
próprias problemáticas e interesses.
Com esta antologia, pretendo novamente suprir as falhas existentes
na academia e compor um corpo de textos que possam ser utilizados
com fins didáticos ou de pesquisa. Minha pretensão está longe de ser
definitiva, e na verdade, minhas intenções são a de ensejar a busca e
o estudo destes textos com maior profundidade. Espero, portanto,
que o leitor aproveite a experiência.

O Quadro histórico e literário de Índia e China 8


Devemos iniciar esta antologia com algumas considerações
fundamentais sobre a história de ambas as sociedades, apontando
principalmente suas singularidades, de modo que se possa construir
um conhecimento mais esclarecido sobre elas. Alguns pontos,
porém, são ilustrativos, como veremos a seguir.

Índia
A Índia não conheceu nada parecido com o conceito de história ou
de ciência histórica, tal como o propomos, em sua antiguidade. A
preocupação fundamental desta civilização atinha-se a uma
libertação espiritual que concebia este plano, material, com uma
espécie de purgatório das almas, e cujo ciclo de eventos era tão
somente algo repetitivo e por isso mesmo, desinteressante. A visão
indiana era da negação da materialidade; conseqüentemente, seu
foco principal dirigiu-se para uma filosofia de cunho metafísico, uma
atenção especial à religião, o que se desdobrava de forma nítida nas
considerações acerca da sociedade e da cultura. Assim, a Índia
antiga não pensou em qualquer forma de antropologia ou sociologia,
senão aquela pautada na interpretação da vida humana como um
processo de transmigração de almas; documentos como o
Arthashastra, um tratado dedicado a política e a administração são
exceções, e mesmo assim carregam o peso da religiosidade consigo.
A história indiana, portanto, é uma reconstrução moderna, muitas
vezes mais baseada na arqueologia do que nos textos. Estes nos
mostram modos de vida ideais, concepções teológicas profundas,
mas às vezes nos escapam como fontes sobre o cotidiano. Uma
divisão moderna situa as origens da civilização indiana como um 9
movimento autóctone, com raízes pré-históricas. Depois, segue-se o
período das primeiras cidades indianas, mohenjo daro e harappa,
que termina de modo relativamente abrupto em torno dos séculos -
18 -15 aec. Há uma aparente descontinuidade, mas emerge desta
época a sofisticada, guerreira e desenvolvida civilização védica,
calcada em seu politeísmo diversificado e na sua consolidada
estrutura de castas (ou varnas), doravante uma marca da civilização
indiana. É desta época a estruturação dos vedas, das cerimônias do
soma – o suco alucinógeno sagrado – mas também, o início de uma
especulação metafísica que só teria sua conclusão em torno dos
séculos -7 -8 aec. Enquanto isso, o mundo indiano dividiu-se em
vários pequenos reinos, cujo poder variava constantemente. A
unidade possível entre eles se baseava nos ritos religiosos, nos
princípios sociais e conceitos comuns, enfim, numa cultura que os
definia em relação aos outros – os estrangeiros.
Este mundo vasto, empreendedor e multifacetado dirigia-se, porém,
ao centro de uma discussão infindável sobre a realidade da vida
espiritual. O período dos séculos -8 -7 aec vê surgir a literatura
upanishádica, conclusão de um longo debate filosófico
acompanhado pelas aranyakas, brahmanas e puranas, todo um
corpus textual inteiramente voltado para a solução das questões
religiosas que amarravam esta sociedade. Deste processo, emergem
situações conflitantes; a busca da unificação política acompanha-se
do surgimento de heresias sócio-religiosas, como jainismo e o
budismo. A presença grega no mundo indiano sacode suas fronteiras
e sua visão de mundo, e nela, o budismo torna-se a primeira religião
proselititsta do mundo, tentando converter os estrangeiros.
Nos séculos -4 -3, a Índia finalmente se vê unificada por uma 10
dinastia, os Maurya, que unem a idéia de indianidade com política. É
desta época que surgem textos como o Artashastra, preocupado com
a administração das coisas públicas – mas também textos como o de
uma política ecumênica universal, como os éditos de Ashoka,
soberano pacifista cuja terrível carreira pretérita como conquistador
o levou a um acurado exame de consciência sobre as realidades da
vida.
Este mundo indiano se veria perturbado, somente, pela vinda dos
kushans entre os séculos -2 -1. Contudo, esta invasão estava longe de
abalar os alicerces solidamente instituídos da sociedade indiana.
A estrutura destes documentos indianos, portanto, é simples: a
primeira geração deles se consigna nos vedas, os primeiros textos do
mundo védico; seguem-se as brahmanas e as aranyakas, textos de
especulação filosófica que começam a analisar a religiosidade védica;
os upanishads concluem esta linha de pensamento, construindo uma
nova mentalidade acerca da filosofia, da sociedade e da cultura que
seria conhecida como bramanismo – com toda a carga religiosa dela
derivada.
Textos auxiliares como o Manavadharmashastra, ou as leis de Manu,
os Dharma sutras e o Artashastra surgem ao longo desta trajetória,
tentando explicar questões variadas, como a administração da lei,
papéis sociais, visões de mundo calcadas na religião, etc. Quanto aos
puranas, estes se estabelecem como formas de histórias religiosas,
como o Mahabharata, o Ramayana e os puranas dos deuses, todos
eles épicos que explicam as teogonias indianas. Juntam-se a estes os
textos budistas, com seu ponto de vista particular sobre a existência.
Por estas razões veremos a ênfase dos textos indianos em questões
centrais da existência de sua sociedade, tais como as castas, a criação 11
do universo, os deuses, a transmigração das almas, etc, deixando de
lado um aprofundamento dos aspectos da historiografia ou da
política.

China
Tendo em vista o quadro da Índia, não será difícil perceber o quanto
a história chinesa é diferente. Embora tivessem (e ainda tenham)
uma mitologia rica e variada, essa nos é pouco conhecida – a paixão
verdadeira dos filósofos e pensadores chineses foi a história, baseada
no desenrolar dos eventos, e investigada a partir de documentos,
relíquias e relatos. Suas escolas filosóficas ativeram-se ao ―real
material‖, buscando a imanência, a realização neste mundo,
deixando para o além o que seria o próprio além. Tão pouco afeitos a
esta metafísica, os chineses sofisticaram o seu pensamento em
direção a uma ciência elaborada, racionalmente explicada, que nos
permite formar um quadro satisfatório da história intelectual
chinesa. Confúcio, o primeiro grande documentarista desta
civilização, legou-nos um vasto conjunto de informações sobre o
cotidiano, hábitos, costumes, e do que seria a busca da sabedoria – o
Dao (via, método, caminho).
Entender a história chinesa, pois, é um desafio sério, mas não pela
carência de informações - e sim por sua abundância, e suas versões
formatadas, que vêm sendo reelaboradas até os dias de hoje. A
cronologia da China é uma hemeroteca de velhas notícias, que
dirigem a interpretação dos acontecimentos, aplicando-lhes lentes
antigas, mas eficazes. Como disse o sábio Hanyu, da dinastia Tang:
No princípio, não me atrevia a ler nenhum livro que não fosse das
antigas dinastias Xia, Shang, Zhou ou da dinastia Han, nem retomar 12
nada que não fosse o ensino de algum grande santo do passado.
Cada vez que me detinha, parecia que havia perdido algo, e cada vez
que continuava a ler, tinha a sensação de ter me descuidado em
alguma coisa. Sempre andava sério como se estivesse meditando, e
perplexo como se estivesse perdido. E, quando de pincel na mão, me
dispunha a pôr em escrito o que brotava do meu coração, queria
suprimir todos os lugares comuns, mas....como era difícil fazê-lo
nessas condições! (Hanyu 768-824).
Este espírito afetou de modo profundo o senso crítico chinês, mas
igualmente o afiou, tornando-o ao mesmo tempo inquiridor,
audacioso, conservador e sintético. A negação do novo é um
fenômeno recente nesta história, pois a cultura chinesa desenvolveu
desde cedo uma paixão inalterável por conservar o patrimônio de
seu passado e, da mesma maneira, encantar-se pelas rupturas
saudáveis do pensamento, pela descoberta do inusitado.
A trajetória que acompanharemos aqui, pois, é temporalmente
semelhante a da Índia, mas totalmente diferente em sua
conformação. A China antiga é um espaço em aberto no seu próprio
território, identificada somente por semelhanças culturais.
Aparentemente, um movimento de unificação de cidades-estado
levou a formação de um reino, conhecido como dinastia Xia, do qual
pouco sabemos, embora esteja comprovado arqueologicamente. Esta
civilização data de algo em torno dos séculos – 18 a -15, mas é
sucedida pela dinastia Shang, bem mais documentada. Entre os
Shang surge, aparentemente, a escrita (se essa não for também uma
conquista dos Xia, mas até agora não surgiram provas disso), mas
uma farta cultural material, depositada em seus túmulos, permite-
nos ter uma cronologia razoavelmente clara dos acontecimentos, que 13
nos permitem saber de sua existência entre os séculos – 15 -12.
Somente nesta época eles serão submetidos à dinastia Zhou, a mais
longa da história chinesa, que institui uma espécie de feudalismo na
administração do território, agora muito mais amplo e sinizado.
A história dos Zhou, longa, é também permeada por fases sucessivas
de poder e decadência; ela divide-se em dois períodos distintos, os
dos Zhou anterior (1027 – 771) e Zhou posteriores (771 - 221),
motivados por uma forçada transferência da capital real. A fase dos
Zhou posteriores divide-se, ainda, no tempo das primaveras e
outonos (771 - 481) e no tempo dos estados combatentes (481 – 221),
quando finalmente a dinastia é derrubada para dar lugar à nova
reunificação chinesa promovida pela dinastia Qin (221 – 206). O
governo Qin, embora eficiente na guerra e na administração, não era
sólido nem coeso, sendo derrubado brevemente pela dinastia Han,
que reinaria até o século 3 ec. Qin construir os grandes monumentos
da China antiga, como a grande muralha e a tumba dos guerreiros de
terracota, mas também queimou livros, prejudicando o estudo do
passado e da filosofia chinesa. Coube aos Han recuperarem parte
destas informações, permitindo-nos compreender esta história
chinesa antiga.
Os documentos de que dispomos – e que aqui apresentaremos – se
constituem basicamente em três corpos distintos: o primeiro trata-se
dos clássicos antigos, que seriam o tratado das mutações (yi), dos
livros (shu), dos poemas (shi), dos rituais (li) e da música (yue), este
último perdido, do qual só sobrou uma parte no Liji. Confúcio os
resgata no século -6, e adiciona a eles as crônicas das Primaveras e
Outonos (Chunqiu), que receberia três comentários explicativos
posteriormente (Zuozhuan, Guliang e Gongyang). Estes livros 14
seriam a documentação básica sobre o passado, que explicaria a vida
nas dinastias antiga e o que seria a cultura Zhou. Depois da revisão
confucionista, temos a vasta e inovadora literatura da época das cem
escolas (contida na transição entre as primaveras e outonos e que se
desenrola no meio dos estados combatentes), quando o debate
filosófico faz surgir toda uma nova quantidade de escritos,
defendendo as mais diversas visões sobre a sociedade e o
pensamento na época. São deste contexto os textos da escola
confucionista, o Lunyu, Zhongyong, Daxue e Xiaojing, dos autores
Mêncio e Xunzi, dos daoístas Laozi, Zhuangzi, Liezi, dos legistas
Shangyang e Hanfeizi, de Mozi, e a coletânea histórica do
Zhanguoce. O terceiro corpo é dos textos da época Han, tempo de
sínteses e da criação de novas teorias. Temos o Huainanzi de Liuan e
o Chunqiu fanlu de Dong Zhongshu, ambos tratados sobre filosofia;
o inovador Shiji, de Sima Qian, reinventando a história chinesa; ou
ainda, o Neijing, tratado sobre medicina chinesa que serve para uma
interpretação multifacetada do pensamento chinês deste momento.
Perceberemos que a presença marcante nesta textualidade é uma
análise pragmatista da realidade. Disso decorre a fundamental
importância nos textos das questões políticas, educacionais e
sociológicas; como dissemos, a China da antiguidade tem seu
pensamento mítico, mas a intelectualidade desta civilização atinha-
se ao que entendia ser a sua ciência, baseada numa busca da razão,
que o afasta de modo indiscutível da conformação da civilização
indiana.

15
Mitos de Criação

A Índia Antiga é uma civilização em que abundam os mitos de


criação, talvez devido a sua extrema flexibilidade religiosa e à uma
filosofia inteiramente dedicada aos temas metafísicos e teológicos.
Para uma mentalidade monoteísta, é difícil compreender como uma
mesma cultura – e por conseguinte, o que entendemos ser um
―mesmo sistema religioso‖, o hinduísmo -, consegue aceitar e
conviver com esta multiplicidade de visões; mas nisso reside,
exatamente, a riqueza da liberdade de pensar e de propor
interpretações diferentes sobre os mesmos temas, questão
fundamental que levou o pensamento ocidental a vários acidentes de
percurso. Nesta primeira seção, portanto, veremos três mitos de 16
criação presentes no documento mais antigo da civilização indiana, o
Rig Veda. O hino de purusha parece se tratar da primeira fonte a
buscar explicar e legitimar a separação das castas indianas; o hino a
prajapati e a canção da criação se tratam, contudo, de especulações
de origem teológica e filosófica sobre as origens. Lembremos que o
Rig veda é um texto de origem ariana, ancestral, em que o futuro
pensamento ―hinduísta‖ ainda está em seu embrião. A conseqüência
da evolução do pensamento indiano antigo aparece nos dois textos
seguintes – uma visão cosmogônica do surgimento do universo, do
Shatapatha – brahmana, e uma introdução ao problema no Aitareya
Upanishad. Ambos os textos fazem parte de um contexto cultural,
situado entre os séculos -8 e -6 aec, em que os indianos repensam
suas origens, sua cultura arianista e vêem surgir propostas
alternativas como a do budismo e do jainismo. Uma discussão sobre
o universo imperecível é proporcionada pelo texto budista do Digha-
nikaya, proporcionando um contraponto às visões tradicionais da
índia hindu-védica. Quanto à China, sempre tão carente de mitos de
criação, fornece-nos dois exemplos especulativos, baseados na teoria
yin-yang, do surgimento do universo. O primeiro aprece no texto de
Laozi, o Daodejing, e o segundo, no texto posterior, da época Han, o
Huainanzi. O terceiro exemplo, o mito de Panku, só surgiria
tardiamente, e é incluído aqui a título de demonstração – as
informações de que dispomos apontam que este mito não foi
divulgado, senão, depois do período Han como algo próprio da
cultura chinesa.

1. O Purusha Sukta (Hino do Homem)


Mil cabeças tem Purusha, mil olhos, mil pés. 17
Por toda parte impregnando a terra ele enche um espaço com
dez dedos de largura.
Esse Purusha é tudo que até agora já foi e tudo que será,
o senhor da imortalidade que se torna maior ainda pelo alimento.
Tão poderosa é sua grandeza! Sim, maior do que isto é Purusha.
Todas as criaturas são uma quarta parte dele, três quartas partes são
a vida eterna no céu.
Com três quartos Purusha subiu; um quarto dele novamente estava
aqui.
Daí saiu para todos os lados por sobre o que come e o que não come.
Dele nasceu Viraj (a); e novamente de Viraj nasceu Purusha.
Assim que nasceu, espalhou-se para oriente e ocidente sobre a terra.
Quando os deuses prepararam o Sacrifício com Purusha como
sua oferenda,
Seu óleo foi a primavera; a dádiva santa foi o outono; o verão
foi a madeira.
Eles embalsamaram como vitima sobre a grama o Purusha nascido
no tempo mais antigo.
Com ele as deidades e todos os Sadhyas e Rishis (b) fizeram
sacrifício.
Desse grande Sacrifício geral a gordura que gotejava foi colhida.
Ele formou as criaturas do ar, os animais selvagens e domesticados.
Daquele grande Sacrifício geral Rics (c) e hinos-Sama (d) nasceram;
Daí foram produzidos encantamentos e sortilégios; os Yajus (e)
surgiram disso.
Dele nasceram os cavalos e todo o gado com duas fileiras de dentes;
Dele se reuniu o gado vacum, dele nasceram cabras e ovelhas.
Quando dividiram Purusha, quantos pedaços fizeram? 18
A que chamam sua boca, seus braços? A que chamam suas coxas e
pés?
O Brâmane (f) foi sua boca, de ambos os seus braços foi feito o
Rajanya (xátria). Suas coxas tornaram-se o vaixá, de seus pés o
sudra foi produzido.
A Lua foi engendrada de sua mente, e de seu olho o Sol nasceu;
Indra e Agni nasceram de sua boca, e Vayu de seu alento.
De seu umbigo veio a atmosfera; o céu foi modelado de sua cabeça;
A terra de seus pés, e de suas orelhas as regiões. Assim eles
formaram os mundos.
Sete bastões de luta tinha ele, três vezes sete camadas de
combustível foram preparadas,
Quando os deuses, oferecendo o sacrifício, manietaram sua vítima,
Purusha.
Os deuses, sacrificando, sacrificaram a vítima; estes foram os
primeiros sacramentos.
Os poderosos chegaram às alturas do céu, lá onde os Sadhjas,
deuses antigos, estão morando.
a) Contrapartida feminina do principio masculino, Purusha.
b) santos e profetas de tempos antigos.
c) Estrofes do Rig-veda.
d) Estrofe do sama-veda.
e) Fórmulas rituais do Yajur-veda.
f) As quatro classes sociais.

2. A Prajapati
No início surgiu Hiranyagarbha, (a) nascido senhor único de todos
os seres criados. 19
Ele fixou e sustenta esta terra e céu. Que deus adoraremos
com nossa oblação?
Proporcionador de alento vital, de força e vigor, aquele cujos
mandamentos todos os deuses aceitam:
O senhor da morte, cuja sombra é a vida imortal. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Aquele que por sua grandeza tomou-se senhor único de todo
o mundo móvel que respira e dorme:
Aquele que é senhor dos homens e senhor do gado. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Suas, por seu poder, são estas montanhas cobertas de neve, e
[os homens chamam o mar e Rasa (b) sua posse:
Seus braços são estes, suas são estas regiões celestiais. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Por ele, os céus são fortes e a terra segura, por ele o reino da
luz e a arcada do céu são sustentados;
Por ele as regiões na atmosfera foram medidas. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Para ele, apoiados por sua ajuda, dois exércitos em batalha
olham com tremor no espírito,
Quando sobre eles o sol brilha. Que deus adoraremos com nossa
oblação?
Na época em que as águas poderosas vieram,
contendo o germe universal, produzindo Agni,
Daí passou a existir o espírito dos deuses.
Que deus adoraremos com nossa oblação?
Em seu poder, ele examinou as enchentes que continham
força produtiva e geravam a adoração. 20
Ele é o deus dos deuses e ninguém mais do que ele. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Que nunca possa ele nos ferir, ele que é o criador da terra, nem
ele cujas leis são certas, o criador dos céus,
Ele que trouxe as grandes e luminosas águas.
Que deus adoraremos com nossa oblação?
Prajapati! Só tu compreendes todas essas coisas criadas, e ninguém
mais senão tu.
Atende o desejo de nossos corações quando te invocamos -
que possamos ter muita riqueza em nosso poder.
a) Germe dourada, nome dado ao deus Brama.
b) Nome de um rio mítico.
3. A Canção da Criação
Então não existia o não-existente, nem o existente - não havia
reino do ar, nem céu além dele.
o que encobria, e onde? E o que dava abrigo? Existia água
ali, urra profundidade insondável de água?
Não existia então a morte, nem coisa alguma imortal - não
havia sinal, o divisor do dia e da noite.
Aquela coisa única, sem alento, respirou por sua própria natureza –
a não ser ela, não existia coisa alguma.
Existia treva; de começo oculto na treva, esse Tudo era caos
indiscriminado.
E tudo quanto existia então era vazio e sem forma –
pelo grande poder do calor nasceu aquela unidade.
Daí em diante surgiu o desejo no início, Desejo, a semente e 21
germes primevos do espírito.
Sábios que buscavam com o pensamento e seus corações
descobriram o parentesco do existente no não-existente.
Transversalmente sua linha de separação se estendeu - o que
estava acima, então, e abaixo?
Existiam reprodutores, forças poderosas,
ação livre aqui e energia acima, além.
Quem realmente sabe e quem pode declarar, de onde nasceu
e de onde veio essa criação?
Os deuses vieram depois da produção deste mundo. Quem sabe,
portanto, de onde ele veio pela primeira vez?
Ele, a primeira origem desta criação, tenha formado a mesma
toda ou não a tenha formado,
Cujo olho controla este mundo no céu mais alto, ele realmente
sabe, ou talvez não saiba.

4. Cosmogonia no Shatapatha - Brahmana


Na verdade, de inicio este universo era água, nada mais que um mar
de água. As águas desejaram: "Como podemos reproduzir?‖ Elas se
esforçaram e praticaram devoções fervorosas, e quando se estavam
aquecendo foi produzido um ovo dourado. O ano, na verdade, não
estava então em existência - esse ovo dourado flutuou durante o
espaço de um ano. No período de um ano um homem, este Prajapati,
a foi produzido dali, e por isso uma mulher, uma vaca ou uma égua
gera dentro do espaço de um ano, pois Prajapati nasceu em um ano.
Ele rompeu o ovo dourado. Não existia então, na verdade, qualquer
lugar de descanso; apenas esse ovo dourado, trazendo-o, flutuava
durante todo o espaço e um ano. 22
No final de um ano, ele tentou falar. Disse "bhuhr", palavra que se
tomou esta terra; - "bhuvar", que se tomou o ar; - ―svar", que se
tomou o céu além. Por isso uma criança tenta falar ao fim de um
ano, pois ao fim de um ano Prajapati tentou falar. Quando falava ela
primeira vez, Prajapati dizia palavras de uma sílaba e de duas
sílabas; por isso uma criança, quando fala pela primeira vez, diz
palavras de uma e duas sílabas. Essas três palavras consistem em
cinco sílabas e ele as tomou as cinco estações. Ao final do primeiro
ano, Prajapati subiu para estar sobre essas palavras assim
produzidas; por isso uma criança tenta estar de pé ao fim de um ano,
pois ao um de um ano Prajapati ficou de pé.Ele nasceu com uma
vida de mil anos; assim como alguém poderia ver a distância a costa
em frente, assim ele olhou a costa a frente de sua própria vida,
Desejando ter progênie, continuou a cantar louvores e a trabalhar.
Estabeleceu o poder de reprodução em seu próprio eu. Pelo alento
de sua boca criou os deuses - os deuses foram criados ao entrar no
céu; e esta é a divindade dos deuses, a que tenham sido criados ao
entrar no céu. Tendo-os criado houve, por assim dizer, dia para ele e
esta é também a divindade dos deuses, a que, depois de criá-los,
houve, por assim dizer, dia para ele.
E pelo alento ou respiração para baixo, ele criou os Asuras!- que
foram criados entrando nesta terra. Tendo-os criado houve, por
assim dizer, treva para ele. Agora que a luz do dia, por assim dizer,
existia para ele, ao criar os deuses, isso ele fez o dia; e a treva, por
assim dizer, que havia para ele, ao criar os Asuras, disso ele fez a
noite - eles são esses dois, o dia e a noite.
a) "Senhor das criaturas", o deus supremo a vir. 23
b) Uma classe de demônios, oponentes dos deuses.

5. Aitaryea Upanishad
ANTES DA CRIAÇÃO, tudo O que existia era o Eu, somente o Eu.
Nada mais havia. Então o Eu pensou: "Criarei os mundos."
Ele criou os mundos: Ambhas, o mundo mais elevado, que está
acima do céu e é sustentado por ele; Marichi, o céu; Mara, o mundo
mortal, a terra; e Apa, o mundo abaixo da terra.
Ele pensou: "Eis os mundos. Enviarei agora os seus guardiões."
Enviou então os guardiões.
Ele pensou: "Eis os mundos e seus guardiões. Enviarei alimento para
os guardiões." Então enviou alimento para eles.
Ele pensou: ―Como poderão existir guardiões sem que eu tome parte
neles?‖.
"Se, sem mim, a palavra é pronunciada, o alento é absorvido, os
olhos vêem, o ouvido ouve, a pele sente, a mente pensa, os órgãos
sexuais procriam, então o que sou eu?"
Ele pensou: "Penetrarei nos guardiões." E então, abrindo o centro
dos seus crânios, entrou. A porta por onde ele entrou é chamada de
porta da bem-aventurança.
Sendo o Eu desconhecido, todos os três estados da alma são apenas
sonho: vigília, sonho e sono sem sonhos. Em cada um deles habita o
Eu: o olho é o local em que habita quando estamos acordados, a
mente é o local em que habita enquanto sonhamos, o lótus do
coração é o local em que habita quando dormimos o sono sem
sonhos.
Após penetrar nos guardiões, ele se identificou com eles. Tornou-se
muitos seres individuais. Assim, conseqüentemente, se um indivíduo 24
acorda do seu tríplice sonho de vigília, sonho e sono sem sonhos, vê
apenas o Eu. Ele vê o Eu morando no lótus do seu coração como
Brahman, onipresente, e declara: "Conheço Brahman!‖
Quem é esse Eu que desejamos venerar? De que natureza é esse Eu?
É ele o eu através do qual vemos a forma, ouvimos o som, cheiramos
o odor, falamos as palavras e provamos o doce ou o amargo?
É ele o coração e a mente através do qual percebemos, comandamos,
discriminamos, conhecemos, pensamos, recordamos, queremos,
sentimos, desejamos, respiramos, amamos e executamos outros atos
semelhantes?
Não, esses são apenas adjuntos do Eu, que é consciência pura, que é
Brahman. E esse Eu, que é consciência pura, é Brahman. Ele é Deus,
todos os deuses; os cinco elementos - terra, ar, fogo, água, éter;
todos os seres, grandes ou pequenos, nascidos de ovos, nascidos do
útero, nascidos do calor, nascidos do solo; cavalos, vacas, homens,
elefantes, pássaros; tudo o que respira, os seres que caminham e os
seres que não caminham. A realidade que está por trás de todos eles
é Brahman, que é consciência pura.
Todos esses, enquanto vivem, e depois que cessam de viver, existem
nele.
O sábio Vamadeva, tendo percebido Brahman como consciência
pura, partiu desta vida, subiu aos céus, realizou todos os seus
desejos, e alcançou a imortalidade.

6. A Perenidade da criação na Visão Budista, no Diga


Nikaya
Há, ó monges, eremitas e brâmanes que são em parte eternalistas,
em parte não-eternalistas. Eles assentam em princípio por quatro 25
razões que o eu e o mundo são em parte eternos, em parte não-
eternos. Quais são os motivos? Ó monges, se produz um estado em
que, a um momento dado após um longo lapso de tempo, este
mundo está em involução. Este mundo estando em involução, os
seres na sua maioria tornam-se Radiantes. Tornam-se compostos de
espírito, gozam do êxtase, lúcido quanto ao eu, circulando no céu,
permanecendo na glória; eles duram durante uma longa, longa
existência. Ora, monges, produz-se um estado em que, a um dado
momento, após um longo lapso de tempo, este mundo está em
evolução. Este mundo estando em evolução, vem a aparecer a
morada vazia de um Brahma. Então um ser, seja que a duração de
sua vida esteja esgotada seja que seu mérito esteja esgotado tendo
morrido no grupo dos Radiantes, surge na morada vazia de um
Brahma. Ele se toma composto de espírito, goza do êxtase, lúcido
quanto ao eu, circulando no céu, permanecendo na glória, ele dura
durante uma longa, longa existência. Se eu estando perturbado, de aí
permanecer na solidão, após uma longa existência, a falta de
contentamento e a agitação nascem nele, e ele pensa: "Praza ao Céu
que outros seres venham também a este estado". Então
determinados seres também eles, seja porque a duração de sua vida
está esgotada, seja porque seu mérito está esgotado, tendo morrido
no grupo dos Radiantes surjam na morada de Brahma, na
companhia deste ser. Estes são igualmente compostos de espíritos...
etc. e duram durante uma longa existência. Em conseqüência, ó
monges, vem ao ser que surgiu ali primeiro esta idéia: "Sou eu que
um Brahma, um grande Brahmã, Vencedor, invencível, Aquele que
tudo vê, que governa, Senhor, Fazedor, Criador, Chefe, Dispensador,
Mestre, Pai de todos os seres que vieram a ser e virão. Estes seres 26
são criados por mim. Qual é a causa disto? Primeiro me veio esta
idéia: "Praza ao Céu que outros seres venham a este estado". E tal
era minha resolução que estes seres vieram a este estado. E também
aos seres que suspiram mais tarde veio esta idéia: "este Brahmã
venerado é um grande Brahmã... Pai de todos os seres que vieram a
ser e virão. Nós fomos criados por este Brahmã. Qual foi a causa
disto? É que vemos que ele surgiu aqui primeiro e que nós surgimos
depois dele". Mas pode suceder, ó monges, que um ser tendo
morrido neste grupo, venha a este estado e abandone o lar, viver sem
lar. Tendo feito assim, pode suceder que pelo resultado de seu ardor,
por um resultado de seu esforço, por um resultado de sua aplicação,
por um resultado de sua sinceridade, como resultado de seu trabalho
mental correto, ele atinja a uma contemplação mental tal que, seu
espírito estando em contemplação, ele se possa lembrar desta
habitação anterior: ele não se lembra de nenhuma outra anterior a
essa. Ele diz: O Brahmã venerado que é um grande Brahmã,
Vencedor, invencível etc... Pai de todos os seres que vieram e virão a
ser, é por este Brahmã venerado que fomos criados. Ele é
permanente, estável, eterno, não sujeito à mudança, igual ao eterno
pois durará como ele. Mas aqueles dentre nós que foram criados por
estes Brahmã, tendo chegado a este estado, são impermanentes,
instáveis, de curta vida, sujeitos à morte. É a primeira consideração
pela qual alguns eremitas e brâmanes assentam em princípio que o
eu e o mundo são em parte eterno, em parte não-eternos. Em
segundo lugar, ó monges, há devas que são chamados "Corrompidos
pelo prazer‖. Durante um tempo prodigiosamente longo eles vivem
inteiramente para as coisas do riso, do prazer do deleite; por isso sua
memória é confusa, e como sua memória é confusa estes devas 27
morrem neste grupo. Mas pode suceder, ó monges, que tendo
morrido neste grupo, um ser vem a este estado e abandona o lar para
viver sem lar. Tendo feito assim. .. (etc. como acima). .. ele não se
lembra de nenhuma habitação anterior a essa. Ele pensa: "Os dignos
devas, que não estão corrompidos pelo prazer, não viveram durante
um tempo prodigiosamente longo inteiramente para as coisas do
riso, do prazer, do deleite; assim sua memória não é confusa, e sua
memória, não sendo confusa, estes devas não morrem neste grupo.
Eles são permanentes, estáveis, ternos, não sujeitos à mudança; eles
são semelhantes ao eterno, pois durarão como ele. Mas aqueles
dentre nós que viveram inteiramente para as coisas do riso, do
prazer, do deleite durante um tempo prodigiosamente longo, têm a
memória confusa: nossa memória sendo confusa, nós morreremos
neste grupo e chegaremos a este estado. Nós somos impermanentes,
instáveis, de curta vida, sujeitos, à morte‖. É a segunda consideração
pela qual alguns eremitas e brâmanes assentam em princípio que o
eu e o mundo são em parte eternos, em parte não-eternos. Em
terceiro lugar, ó monges, há devas que se chamam "Corrompidos em
espírito". Durante um tempo prodigiosamente longo, eles são
considerados e julgados entre eles de uma maneira invejosa. Como
conseqüência disto seus espíritos são maculados uns em relação: aos
outros, e em conseqüência seu corpo é cansado, seu espírito é
cansado. Eles morrem neste grupo. Mas pode suceder, ó monges que
tendo morrido neste grupo, um ser vem neste estado, e abandona o
lar para viver sem lar... (como acima); ele não se lembra de nenhuma
habitação anterior a essa. Ele diz: "Os dignos devas que não são
corrompidos em espírito não são considerados e julgados entre si de
modo invejoso durante um tempo prodigiosamente longo. Assim 28
seus espíritos não são maculados uns em relação aos outros, seu
corpo e seu espírito não estão cansados. Estes devas não morrem
neste grupo. Eles são permanentes... (etc.), eles durarão. Nós que
somos Corrompidos em espírito, que somos considerados e julgados
entre nós de modo invejoso durante um tempo prodigiosamente
longo, nós cujo corpo e espírito estão cansados, nós que, tendo
morrido neste grupo, chegamos a este estado; nós somos
impermanentes, instáveis, de vida curta, sujeitos à morte." É a
terceira consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes
assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte eternos, em
parte não-eternos. Em quarto lugar, ó monges, um eremita ou
brâmane raciocina e estuda. De acordo com um sistema por ele
inventado, elaborado sobre o raciocínio, baseado sobre o estudo, ele
fala da seguinte maneira: "Tudo o que se pode chamar olho, orelha,
nariz, língua, corpo, esse eu é impermanente, instável não eterno,
sujeito à mudança. Mas o que chama espírito, pensamento ou
consciência este eu é permanente, estável, não sujeito à mudança;
semelhante ao eterno, pois como ele durará." É a quarta
consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes que são em parte
eternalistas, em parte não-eternalistas, assentam em princípio que o
eu e o mundo são em parte eternos, em parte não-eternos. Disto, ó
monges, o Descobridor da Verdade tem a presciência: Estas opiniões
especulativas, sustentadas desta maneira, afirmadas deste modo,
terminarão por levar a este ou àquele destino, a este ou àquele
estado futuro. Disso o Descobridor da Verdade tem a presciência, e
tem a presciência de outras coisas ainda. Mas mesmo tendo esta
presciência ele nela não insiste. Como ele não insiste, o nirvana se
encontra nele, conhecido de si mesmo; conhecendo tais como são 29
verdadeiramente a origem e o desaparecimento das sensações, sua
doçura; seu perigo, e o modo de deles se evadir, o Descobridor da
Verdade, ó monges, é libertado sem que subsista nele um resíduo
qualquer [levando a outra existência].

7. O mito chinês de Panku


Segundo a tradição, antes da separação do céu e da terra, o universo
assemelhava-se a um ovo gigantesco. Pan-Ku crescia em seu
interior. Após dezoito mil anos, subitamente despertou e abrindo os
olhos não se apercebeu de coisa alguma em torno de si. Atordoado
tomou de um machado e girando-o com grande ímpeto, conseguiu
quebrar a casca do ovo num enorme estrondo. Então a parte
superior elevou-se aos poucos formando o céu. A parte inferior
lentamente desceu, formando a terra. Quanto a Pan-Ku, este
assumiu sua forma: possuía cabeça de dragão e corpo de cobra. Sua
respiração era constituída pelo vento, a chuva e o trovão. Quando
abria os olhos se fazia luz. Quando os fechava, só o escuro.
Pan-Ku, para impedir que se unissem novamente as partes ora
separadas, exteriorizou todo o seu poder, fixando-se entre o céu e a
terra como eixo. O céu subia diariamente dez pés. O chão, já
estabelecido, avolumava-se dezoito mil pés por dia. Quanto ao corpo
de Pan-Ku, este se desenvolvia no mesmo ritmo.
E assim se passaram outros dezoito mil anos. Pan-Ku continuava a
desenvolver-se, tão forte e sólido, que sustentava o céu. Contudo,
chegado o momento em que estando firmes o céu e a terra, entendeu
não ser mais necessária a sua permanência na posição de eixo e
assim deitou-se para morrer. E se metamorfoseou. Magicamente sua
respiração se transformou no vento e nas nuvens e sua voz no 30
trovão. De seu olho esquerdo nasce o sol. De seu olho direito surge a
lua. Mãos e pés criam os quatro pontos cardeais e as grandes
montanhas. De seu sangue, o milagre dos rios e dos nervos os
caminhos naturais. De sua carne a terra fértil. De seus cabelos e
barba criam-se as estrelas. De sua pele e pêlos brotam árvores e
outros vegetais. De seus dentes e ossos eclodem as rochas e pedras
preciosas, as pérolas e o jade. E de seu suor, a fonte do orvalho e da
chuva. Os homens, numa atitude de profunda reverência e respeito,
fizeram erguer um grande túmulo de 300 milhas de comprimento
para todo o sempre cultuar o seu espírito.

8. Cosmologia daoista em Laozi


O Tao gera o um
o um gera o dois
o dois gera o três
o três gera as dez mil coisas
Todos os seres têm o Yin e o Yang
Fundido suas energias para a harmonia
Ninguém quer estar só ou desgostoso
Mas é assim que os reis se descrevem
Pode-se perder ganhando
E ganhar perdendo-se
O que os outros ensinam, eu também ensino
Os fortes não podem dominar sua morte
Este é o pai de todos os ensinamentos.

9. A cosmologia daoista do Huananzi


As essências entrelaçadas do Céu e da Terra produziram o Yin e 31
Yang
As essências exaladas por Yin e Yang produziram as quatro estações
As essências desagregadas de Yin e Yang criaram todas as coisas
O qi fervente do yang acumulado produz o fogo
O sol é a essência do qi fervente
O qi gelado do yin acumulado produz a água
A lua é a essência do qi aquoso
O qi advindo das essências de sol e da lua produziram as estrelas e
planetas
Ao céu pertencem o sol, a lua planetas e estrelas
A terra pertencem a água, as inundações, o povo e o solo
[...]
O dao do céu é circular
O dao da terra é quadrado
O quadrado governa o obscuro
O circular governa o brilhante
O brilhante emite qi e por esta razão
O fogo é o brilho externo do sol
O obscuro absorve qi, e por esta razão
A água é a luminosidade interna da lua
O sol preside o yang, por isso
Na primavera e no verão os animais lutam
No solstício do verão os cervos perdem seus chifres
A lua preside o yin, por isso
Quando a lua mingua, os peixes enlouquecem
Quando a lua morre, caranguejos ressecam
O fogo vai pra cima
A água vai pra baixo 32
Assim é também
O vôo dos pássaros, pra cima
O nado dos peixes, pra baixo
As coisas que pertencem a uma mesma classe movem-se
simultaneamente
A raiz e o tal respondem um pelo outro
Portanto
Quando o espelho candente (=lente) vê o sol
Incendeia a erva e produz o fogo
Quando o espelho quadrado (=espelho) vê a lua
Umedece e produz água (=orvalho)
Natureza Humana

A discussão sobre a natureza humana é antiqüíssima na Índia e na


China; no entanto, enquanto na Índia ela era lida pela questão da
transmigração das almas, na China ela era compreendida como
relacionada ao surgimento biológico do ser, fazendo parte de suas
propensões naturais. Por conta disso, a questão atravessa todos os
textos indianos – e talvez nenhum, se entendermos que esta
natureza humana é lida pelo prisma do karma, e todos os seres são,
então, iguais perante o absoluto, e diferentes em evolução. Uma
compreensão melhor sobre esta questão pode ser vista na seção
sobre Sociedade, em que são apresentados os textos que tratam
sobre a transmigração da alma e sua relação com as castas. Veremos, 33
pois, dois textos budistas que tratam brevemente sobre a questão,
buscando classificar os tipos humanos encarnados em seu ―nível de
espiritualidade‖. Na China, contudo, este problema foi discutido
amplamente pelos pensadores chineses, de modo que fosse aplicado,
de maneira prática, na formulação de uma ética e de uma ciência
sobre o ser humano. O início desse debate se deu com os textos de
Mêncio e Xunzi, no período dos sécs. -4 -3 aec., e continuou ao longo
da história chinesa. Como nos centramos no período da antiguidade,
podemos acompanhar um pouco desta discussão nos textos de
Lubuwei (da época Qin), do Huainanzi e de Dong Zhongshu, da
dinastia Han, que veremos a seguir.
10. A Visão budista da Natureza Humana no Suttanipata
Vãsettha, responde ele, eu te irei expor segundo a verdade e
gradualmente. A divisão em espécies dos seres vivos; pois as
espécies os dividem. Considera ervas e árvores! Eles não raciocinam;
entretanto eles são marcados cada um segundo sua espécie; pois em
verdade as espécies se diferenciam. Considera em seguida os
besouros, as borboletas, as formigas, cada um segundo sua espécie,
eles também são marcados... Da mesma maneira os quadrúpedes,
grandes e pequenos, os répteis, as serpentes, os animais de longo
dorso, os peixes, os hóspedes do lago, os habitantes das águas, os
pássaros, as criaturas aladas que povoam o espaço; todos são
marcados segundo sua espécie, pois as espécies se diferenciam. Cada
um segundo sua espécie leva sua marca. No homem não há
multiplicidade, nem na cabeleira, nem na cabeça, as orelhas ou os 34
olhos, nem na boca, no nariz, os lábios e as sobrancelhas, nem na
garganta, quadris, o ventre ou o dorso, nem nas nádegas, os órgãos
sexuais, ou o peito, nem nas mãos, os pés, os dedos ou as unhas,
nem nas pernas e as coxas, nem a tez nem a voz, não há uma marca
que diga sua espécie, como em todos os outros. Nada que seja único
nem se encontre no corpo humano: a diferença dos homens é
puramente nominal.

11. Outra visão budista, sobre a natureza humana, no


Samyutta Nikaya
Constata-se que existem no mundo quatro tipos de indivíduos. Quais
são? Há os sombrios, que caminham para as trevas, os sombrios que
caminham para a claridade; os claros que caminham para as trevas,
os claros que caminham para a claridade. Qual é aquele que é
sombrio, que caminha para as trevas? É, por exemplo, o homem
nascido numa família humilde; ele é pobre, mal nutrido, vivendo
numa condição miserável, aflito, disforme. Sua conduta do corpo, de
palavra e de pensamento é má, de modo que quando da
decomposição de seu corpo após a morte ele surge no Abismo, o
Mau Destino, a Queda. É como se o ser caminhasse de cegueira em
cegueira, das trevas a outras trevas, de uma mancha de sangue a
outra. Qual é aquele que é sombrio, e que caminha para a claridade?
É, por exemplo, aquele que é nascido nas condições más que acabo
de dizer, mas cuja conduta de corpo, de palavra e de pensamento é
boa, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a
morte ele surge num Bom Destino, num mundo celeste. É como se o
ser se elevasse do solo num palanquim, do palanquim ao dorso de
um cavalo, do dorso do cavalo ao dorso de um elefante ou do 35
elefante sobre um terraço. Qual é aquele que é claro mas que
caminha para as trevas? É, por exemplo, aquele que nasceu numa
família de elevada estirpe, muito rica, e com tudo que pode
assegurar o prazer. Mas sua conduta de corpo, de palavra e de
pensamento e mau, de sorte que quando da decomposição de seu
corpo após a morte, ele surge no Abismo, o Mau Destino, a Queda. É
como se o ser descesse de um terraço sobre um elefante, do dorso do
elefante ao dorso do cavalo, daí em um palanquim e do palanquim a
terra. Qual é aquele que é claro e que caminha para a claridade? É
por exemplo, aquele que nasceu nas circunstâncias felizes que eu
acabo de dizer e cuja conduta de corpo, de palavra e de pensamento
é boa, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a
morte, ele surge num Bom Destino, e num mundo celeste. É como se
o ser passasse de um palanquim a um outro, de um cavalo a outro
cavalo, de um elefante a um outro elefante, de um terraço a outro
terraço. É por esta imagem que eu descrevo este tipo de indivíduo.

12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio


Mêncio disse: ―todos tem um coração sensível aos sofrimentos de
outros. Os grandes reis do passado tiveram esta sorte do coração
sensível e políticas cheias de compaixão foram adotadas. Trazer a
ordem ao reino é tão fácil quanto mover um objeto em sua palma
quando você tem um coração sensível e põe, em prática, políticas de
compaixão. Me deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que
todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros: qualquer
um que viu, de repente, um bebê próximo de cair em um poço se
sentiria alarmado e iria salva-lo. Não seria porque quis melhorar
suas relações com os pais da criança, nem porque quis uma 36
reputação boa entre seus amigos e vizinhos, nem porque não gostou
de ouvir a criança gritar. Disto segue que qualquer um à quem falta
sentimentos de comiseração, de carinho, de cortesia ou um sentido
de certo e de errado não pode ser entendido como humano.
Gaozi disse: ―a natureza humana é como a água correndo: quando
um curso é aberto ao leste, ela flui para o leste; quando uma corrente
é aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza humana é mais
inclinada ao bom tanto para o leste quanto para o oeste. Mêncio
respondeu:‖ a água não tem preferência pelo leste ou pelo oeste, mas
não tem uma preferência pelo cimo ou para baixo?‖ A bondade é na
natureza humana como fluir da água para baixo. Não há nenhuma
pessoa que não seja boa e nenhuma água que não flua para baixo.
Espirrada, ela pode molhar sua cabeça; se forçada, pode ser trazida
acima de um monte. Mas esta não é a natureza da água; são
circunstâncias específicas. Embora os povos possam ser feitos para
serem maus, suas naturezas não são mudadas.

13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi


A natureza do homem é má. Bom é o produto humano. A natureza
humana é tal que os povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem
essa inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão uns aos outros, e as
inclinações ao dever e a produção morrerão. Eles nascem com
medos e ódios. Se os seguirem, transformar-se-ão em violentos e
tendenciosos indo de contra a boa fé, que morrerá. Se forem
indulgentes, e desordem da licenciosidade sexual resultará na perda
dos princípios rituais e da moral. Em outras palavras, se o povo agir
de acordo com a natureza humana e seus desejos, eles
inevitavelmente lutarão, arrebatar-se-ão, violarão as normas e 37
agirão com um violento abandono. Conseqüentemente, somente
depois de transformados por professores e por princípios rituais e
morais, conforme a cultura, poderão permanecer em boa ordem.
Visto por este lado, é óbvio que a natureza humana é má e bom é o
produto humano.

14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de Lubuwei


Se bem que a transparência seja a verdadeira natureza da água, a
sociedade perturba essa natureza, impedindo-a de se manter
transparente. Apesar da longevidade ser a verdadeira natureza do
homem, os bens materiais perturbam esta natureza, e por isso muita
gente morre antes do tempo. Os bens materiais deveriam ser usados
para aprimorar nossa natureza, e não deveríamos usar nossas
naturezas para obter bens materiais.
O fato é que hoje, a maioria dos homens, confusos, usa sua natureza
para melhorar seus bens materiais, o que mostra que eles não
compreendem a diferença entre o que é importante e o que é
insignificante. Quando não se compreende esta diferença, se
deprecia o que é importante e se valoriza o insignificante. Deste
modo, toda ação conduz ao fracasso. Devido a isso, os governantes
viram perversos, os ministros se tornam rebeldes e seus filhos
perdem os limites. Um estado ou família em que se suceda algumas
dessas coisas está condenado a extinção, a menos que tenha muita
sorte.

15. A natureza humana depende da cultura - Huainanzi


Suponhamos que uma pessoa nasça em um lugar remoto e pouco 38
civilizado, na choça de uma família pobre, fica órfão dos pais desde
criança e não tem irmãos, nunca teve contato algum com os ritos e
nada semelhante, jamais ouviu fala dos exemplos dos antigos sábios,
e vive cerrado em uma pequena habitação sem dela sair, então não
podemos supor que ele seja estúpido por sua própria natureza como
muitos supõem, mas sem dúvida é muito pouco o que ele sabe.

16. A natureza humana depende da educação – Dong


Zhongshu
O que se passa agora é que o povo é bom por natureza, mas ela ainda
não está desperta, como ocorre com uma pessoa que está com os
olhos fechados e, sem abri-los, ele nada pode ver. Tudo ficará bem se
lhe dermos educação. Enquanto permanecer sem despertar,
somente podemos dizer que ele tem uma natureza boa, mas ele não é
bom. É exatamente como os olhos que permanecem fechados, e que
ainda não foram abertos.

39
A Morte

Ato contínuo, se a discussão sobre a natureza humana era


evidentemente forte na China, a questão da morte tornou-se, porém,
o foco central das reflexões metafísicas indianas. Eis a razão pela
qual esta seção é praticamente dominada pelos textos indianos.
Iniciamos por um hino do Atharva Veda, que forma a coleção mais
antiga de textos védicos, e do qual podemos extrair alguma coisa do
primitivo politeísmo indiano; no seguir, uma explanação sobre a
morte e ação humana em um dos primeiros textos de caráter
legislativo da Índia, o Manavadharmashastra (ou Leis de Manu, o
primeiro homem da terra após o dilúvio indiano); depois, a
conclusão desta especulação é apresentada em um longo, porém 40
fundamental, texto upanishádico – o Katha upanishad traz,
especificamente, uma dissertação, sob forma de diálogo ―imaginado‖
(numa percepção religiosa, ele não o seria) acerca da morte, e da
transmigração da alma. Depois, uma contraposição budista ao tema,
e por fim, a insinuante perspectiva chinesa representada por
Zhuangzi; se há morte ou não, qual seria a diferença? Numa
proposta inédita, que consigna o desejo chinês de viver a vida
imediata, Zhuangzi propõe não só a continuidade da matéria como
também, a nossa impossibilidade total de governar este ciclo. (um
trecho sobre a visão da morte chinesa pode ser encontrado na seção
―Sociedade‖, no item 49).
17 - Hino para ser entoado em um funeral, do Atharva
Veda
Terra, sê leve, sem espinhos, repousante. Vasta, oferece-lhe o teu
abrigo.
Deponham-te, não em lugar estreito, mas em terreno largo. Tuas
oblações, enquanto viveste, agora sejam mel para ti.
Chamo o teu pensamento com o meu pensamento. Vai alegre para a
tua morada e reúne-te aos nossos antepassados, a lama.
Que os ventos te sejam favoráveis e benéficos!
Da tua alma, do teu alento, dos teus membros, nada fique por aqui.
Não sejas oprimido nem pela terra divina e poderosa, nem pela
árvore. Vai para o teu lugar, entre os antepassados, sê feliz entre os
súditos de lama.
O que se perdeu dos teus membros, ao longe, tua respiração, tua 41
expiração, levadas pelo vento, que os nossos antepassados te
restituam aos poucos.
[Durante a cremação]
Os vivos expulsaram-no de casa. Levem-no para longe da aldeia.
Enquanto enterram os ossos, depois da cremação
Ainda vês, depois não verás mais, o sol que está no céu. Ó Terra,
como a mãe trata do filho, recobre-o com teu manto.
Agora ainda, não mais depois, mesmo em tua velhice, ó Terra, cobre-
o com a tua vestimenta, como esposa com seu marido.
[Ao apagar da fogueira crematória]
Que te seja benéfica a neblina, benfeitora a geada. Fria e fresca de
frieza, fresca e feita de frescura, rã nas águas, sê benéfica. Extingue
esta chama!
18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no Manava
Dharma Shastra (As Leis de Manu)
A ação, que advém da mente, da fala e do corpo, produz resultados
bons ou maus; pela ação são causadas as diversas condições
humanas, as mais elevadas, as médias e as mais baixas.
A mente é o instigador aqui em baixo, mesmo aquela ação ligada ao
corpo, e que é de três tipos, tem três localizações e se classifica sob
dez títulos. Cobiçar a propriedade alheia, pensar no coração sobre o
que é indesejável e aderir a doutrinas falsas são os três tipos de ação
mental pecaminosa. Injuriar o próximo, dizer mentira, detrair dos
méritos de todos os homens e falar frivolamente serão os quatro
tipos de ação verbal má. Tomar o que não foi dado, ferir as criaturas
sem a sanção da lei e manter relações criminosas com a mulher do
próximo são declarados como os três tipos de ação corporal ruim. 42
Um homem consegue o resultado de ato mental bom ou mau
em sua mente, o de um ato verbal em sua fala e o de um ato corporal
em seu corpo. Em conseqüência de muitos atos pecaminosos
cometidos com seu corpo, no nascimento seguinte um homem se
toma algo inanimado; em conseqüência de pecados cometidos pela
fala, uma ave ou um animal, e em conseqüência de pecados mentais
ele nasce novamente em uma casta inferior.
[...]
Mesmo que morresse com ele, um familiar não consegue
acompanhar seu parente falecido e todos, com exceção de sua
esposa, estão proibidos de acompanhá-lo na trilha de Yama. (a)
Apenas a virtude o acompanhará, onde for; portanto, cumpre teu
dever sem hesitar neste mundo desgraçado. As questões de amanhã
devem ser tratadas hoje, e as da tarde na manhã, pois a morte não
esperara, tenha uma pessoa tratado delas ou não. Enquanto sua
mente estiver concentrada em seu terreno, ou ocupação, ou casa, ou
enquanto seus pensamentos estiverem absorvidos por algum objeto
amado, a morte repentinamente a leva como sua presa, como uma
loba arrebata um cordeiro. O tempo não é amigo de pessoa alguma,
nem seu inimigo - quando o efeito de seus atos em existência
anterior, pela que sua existência atual é causada, tiver expirado, ele
leva o homem a força.Ninguém morre antes de chegado seu tempo,
ainda que ferido por mil setas; ninguém vive depois de esgotado seu
tempo, ainda que tenha sido apenas tocado pela ponta de uma folha
de grama Kusha. Nem drogas, nem fórmulas mágicas, nem
oferendas queimadas, nem orações, poderão salvar quem esta nos
laços da morte ou na velhice.
Um mal iminente não pode ser evitado, mesmo com mil precauções; 43
que motivo tens, então, para te queixares? Assim como um bezerro
encontra sua mãe entre mil vacas, um ato cometido anteriormente
encontrara certamente quem o perpetrou. Das coisas existentes, o
início é desconhecido, o meio de sua carreira conhecido, e o fim
desconhecido também; que motivo tens, então, para te queixares?
Assim como o corpo dos mortais atravessa as vicissitudes da
infância, juventude e idade adiantada, também será transformado
em outro corpo dali em diante; um homem sensato não se engana a
esse respeito. Assim como um homem veste roupas novas neste
mundo, deixando de lado aquelas antes usadas, também o eu do
homem põe novos corpos, que se acham de acordo com seus atos
numa vida anterior. Arma alguma ferirá o eu do homem, nenhum
fogo o queimará, nenhuma água o molhará e nenhum vento o secara.
Ele não será ferido, queimado, molhado ou secado; é imperecível,
perpétuo, imutável, imóvel, sem início. Diz-se também ser imaterial,
passando todo o pensamento, e imutável. Sabendo que o eu do
homem é assim, não deves lamentar a destruição de seu corpo.
a) O deus da morte.

19. A Morte no Katha Upanishad


EM DETERMINADA OCASIÃO, Vajasrabasa, esperando obter um
favor divino, executou um ritual que exigia que ele se desfizesse de
todos os seus bens. Ele teve o cuidado, porém, de sacrificar somente
o seu gado e, dele, somente os animais inúteis - os velhos, os
estéreis, os cegos e os aleijados. Ao observar essa avareza, Nachiketa,
seu filho mais novo, cujo coração havia recebido a verdade ensinada
nas escrituras, disse para si mesmo: "Certamente, um devoto que
ousa levar presentes tão inúteis está destinado à total escuridão!" 44
Refletindo assim, dirigiu-se ao pai e falou:
"Pai, eu também vos pertenço: para quem me dareis?" Seu pai não
respondeu; porém, quando Nachiketa repetiu a pergunta uma e
outra vez, ele replicou impacientemente:
"Eu vos darei à Morte!" Nachiketa disse então para si mesmo: "Sou
de fato o melhor dentre os filhos e discípulos de meu pai, ou estou,
pelo menos, na categoria intermediária, não na pior; porém, de que
valor serei para o Rei da Morte?" Estando, porém, determinado a
seguir a palavra do pai, disse:
"Pai, não vos arrependais da vossa promessa! Considerai como tem
acontecido com aqueles que partiram antes, e como será com
aqueles que vivem agora. Como o milho, um homem amadurece e
cai ao solo; como o milho, ele brota novamente na estação propícia."
Após falar assim, o rapaz viajou para a casa da Morte. Porém o deus
não estava em casa, e Nachiketa esperou durante três noites.
Quando finalmente o Rei da Morte voltou, seus servos lhe disseram:
"Um Brahmin, parecido com uma chama de fogo, chegou à vossa
casa como hóspede, e vós não estáveis aqui. Desse modo, uma
oblação deverá ser feita a ele. Ó Rei, devereis receber vosso hóspede
com todos os rituais costumeiros, pois se o chefe de uma casa não
mostrar a devida hospitalidade a um Brahmin, perderá o que mais
preza - os méritos das suas boas ações, sua integridade, seus filhos e
seu gado."
O Rei da Morte, então, aproximou-se de Nachiketa e deu-lhe as
boas-vindas com palavras polidas.
"Ó Brahmin", disse ele, "Eu vos saúdo. Vós sois de fato um hóspede
digno de todo respeito. Permiti, eu vos imploro, que nenhum mal
caia sobre mim! Passastes três noites em minha casa e não 45
recebestes minha hospitalidade; pedi, portanto, três dádivas - uma
para cada noite."
"Ó Morte", replicou Nachiketa, "que assim seja. E como primeira
dessas dádivas peço que meu pai não fique ansioso a meu respeito,
que sua ira se acalme, e que, quando me mandardes de volta, ele me
reconheça e me dê as boas-vindas."
"Pela minha vontade", declarou a Morte, "vosso pai vos reconhecerá
e vos amará como antes; e, ao ver-vos vivo novamente, ficará com a
mente tranqüila, e dormirá em paz."
Nachiketa então disse: "No céu não há medo de modo algum. Vós, ó
Morte, não estais lá, nem naquele lugar onde o pensamento de ficar
velho faz com que a pessoa estremeça. Lá, livres da fome e da sede, e
longe do alcance da dor, todos rejubilam e são felizes. Vós conheceis,
ó Rei, o sacrifício do fogo que leva ao céu. Ensinai-me esse sacrifício,
pois estou cheio de fé. Esse é o meu segundo desejo."
Consentindo, então, a Morte ensinou ao rapaz o sacrifício do fogo, e
todos os rituais e cerimônias que o acompanhavam. Nachiketa
repetiu tudo o que havia aprendido, e a Morte, satisfeita com ele,
disse:
"Vou conceder-vos uma dádiva adicional. A partir de hoje esse
sacrifício será denominado Sacrifício Nachiketa, em vossa
homenagem. Escolhei agora vossa terceira dádiva."
Nachiketa, então, pensou consigo mesmo, e disse: - "Quando um
homem morre, há esta dúvida: Alguns dizem que ele existe; outros
dizem que ele não existe. Se vós me ensinásseis, eu conheceria a
verdade. Esse é o meu terceiro desejo."
"Não", replicou a Morte, "mesmo os deuses certa vez ficaram
intrigados com esse mistério. A verdade com relação a isso é 46
realmente sutil, não é fácil de ser compreendida. Escolhe alguma
outra dádiva, Ó Nachiketa."
Porém, Nachiketa não quis aceitar a recusa. "Vós dizeis, Ó Morte,
que mesmo os deuses certa vez estiveram intrigados com esse
mistério, e que ele não é fácil de ser compreendido. Certamente, não
há melhor mestre para explicá-lo do que vós - e não existe outra
dádiva igual a essa."
O deus replicou, mais uma vez tentando Nachiketa: "Pedi filhos e
netos que viverão cem anos. Pedi gado, elefantes, cavalo, ouro.
Escolhe para vós um poderoso reino. Ou, se não puderdes imaginar
algo melhor, pedi isto: não apenas doces prazeres, mas também o
poder, além de qualquer pensamento, para experimentar sua
doçura. Sim, verdadeiramente, farei de vós o supremo desfrutador
de todas as coisas boas. Donzelas celestiais, de beleza excepcional,
que não foram destinadas a mortais - mesmo essas, com suas
carruagens e seus instrumentos musicais, eu vos darei, para vos
servirem. Não me peçais, porém, Ó Nachiketa, o mistério da morte!"
Nachiketa, contudo, manteve-se firme e disse: "Essas coisas durarão
somente até o dia seguinte, Ó Destruidor da Vida, e os prazeres que
elas conferem desgastam os sentidos. Ficai, portanto, com os cavalos
e as carruagens, com a dança e a música, para vós mesmo! Como
poderá desejar a riqueza, Ó Morte, aquele que uma vez já viu a vossa
face? Não, apenas a dádiva que escolhi - somente isso eu peço.
Tendo descoberto a companhia do imperecível e do imortal, como
quando vos conheci, como poderei eu, sujeito à decadência e à
morte, e conhecendo bem a vaidade da carne - como poderei desejar
vida longa?
"Contai-me, Ó Rei, o supremo segredo com relação ao qual os 47
homens mantêm dúvidas. Não solicitarei qualquer outra dádiva."
Com o que, o Rei da Morte, bem satisfeito em seu coração, começou
a ensinar a Nachiketa o segredo da imortalidade.

O Rei da Morte;
O bem é uma coisa; o prazer é outra. Esses dois, diferindo em seus
propósitos, incitam à ação. Abençoados são aqueles que escolhem o
bem; aqueles que escolhem o prazer não atingem o objetivo.
Tanto o bem como o prazer se apresentam ao homem. Os sábios,
após examinarem ambos, distinguem um do outro. Os sábios
preferem o bem ao prazer; os tolos, levados por desejos carnais,
preferem o prazer ao bem.
Vós, Ó Nachiketa, após haverdes observado os desejos carnais,
agradáveis aos sentidos, renunciastes a todos eles. Vós vos
desviastes do caminho lamacento no qual muitos homens se atolam.
Distantes um do outro, e levando a diferentes desígnios, encontram-
se a ignorância e o conhecimento. Eu vos considero, Ó Nachiketa,
como alguém que anseia pelo conhecimento, pois uma infinidade de
objetos agradáveis foram incapazes de tentar-vos.
Vivendo no abismo da ignorância, embora julgando-se sábios, tolos
iludidos dão voltas e voltas, cegos levados por cegos.
Ao jovem irrefletido, enganado pela vaidade das posses terrenas, não
é mostrado o caminho que leva à morada eterna. Somente este
mundo é real: não existe depois - pensando assim, ele cai uma e
outra vez, nascimento após nascimento, dentro das minhas
mandíbulas.
A muitos não é concedido ouvir sobre o Eu. Muitos, embora ouçam a
respeito dele, não o compreendem. Maravilhoso é aquele que fala a 48
respeito do Eu. Inteligente é aquele que aprende a respeito do Eu.
Abençoado é aquele que, tendo aprendido com um bom mestre, é
capaz de compreendê-lo.
A verdade do Eu não pode ser completamente compreendida
quando ensinada por um homem ignorante, pois as opiniões a
respeito dele, não fundamentadas no conhecimento, variam de um
para outro. Mais sutil do que o mais sutil é esse Eu, e além de toda
lógica. Ensinado por um mestre que saiba que o Eu e Brahman são
um só, um homem deixa para trás a vã teoria e atinge a verdade.
O despertar que conhecestes não vem do intelecto, e sim,
totalmente, dos lábios dos sábios. Bem-amado Nachiketa,
abençoado, abençoado sois vós, porque procurais o Eterno. Quisera
eu ter mais discípulos como vós!
Bem sei que os tesouros terrestres duram pouco. Pois não fiz eu
mesmo, desejando ser o Deus da Morte, o sacrifício com o fogo? O
sacrifício, porém, foi uma coisa efêmera, realizada com objetos
fugazes, e pequena é minha recompensa, considerando que meu
reino só durará por um momento.
A finalidade do desejo mundano, os objetos fulgurantes que todos os
homens almejam, os prazeres celestiais que esperam obter através
de rituais religiosos - tudo isso esteve ao vosso alcance. Porém, a
tudo isso renunciastes, com firme resolução.
O antigo, fulgurante ser, o Espírito que habita interiormente, sutil,
profundamente oculto no lótus do coração, é difícil de ser conhecido.
Porém, o homem sábio, que segue o caminho da meditação,
conhece-o, e se torna liberto tanto do prazer como da dor.
O homem que aprendeu que o Eu está separado do corpo, dos
sentidos e da mente, e que o conheceu por completo, a alma da 49
verdade, o princípio sutil - tal homem verdadeiramente o alcança, e
se torna extremamente satisfeito, pois encontrou a fonte e o local
onde habita toda a felicidade. Verdadeiramente acredito, Ó
Nachiketa, que as portas da felicidade estão abertas para vós.

20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima - Nikaya


Ó chefes de família, se alguém que marcha segundo o dhamma, que
segue uma marcha igual, desejasse [um destes estados]: Possa eu,
quando da decomposição de meu corpo após a morte, surgir na
companhia de ricos nobres, de ricos brâmanes, de ricos chefes de
família, com os devas dos quatro grandes Regentes, com os devas
dos Trinta-e-três, com os devas de Yama, com os devas Satisfeitos,
com os devas que se deleitam em criar, com os devas que têm todo o
poder sobre as criações dos outros, com os devas do séquito de
Brahmã, com os devas do Esplendor, com os devas do Esplendor
limitado, com os devas do Esplendor infinito, com os devas
Luminosos, com os devas Belos, com os devas da Beleza limitada,
com os devas da Beleza infinita, com os devas Irradiantes, com os
devas Vehapphalã, com os devas Avihã, com os devas Novos, com os
devas Graciosos, com os devas da Boa Vista, com os devas Antigos,
com os devas que atingiram a infinidade do Éter, com os devas que
atingiram a infinidade da Consciência, com os devas que atingiram o
aniquilamento de si mesmos, com os devas que atingiram a "não
percepção nem a não-percepção" - poderia suceder que surgisse e
dessa maneira. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo o
dhamma, que segue uma marcha igual. Ó chefes de família, se
alguém que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha
igual, desejasse: "Possa eu, graças à destruição dos fluxos, tendo 50
neste mundo e desde agora realizado pelo meu próprio saber
superior a liberdade de coração e a liberdade de intelecto que são
sem fluxos, aí permanecer" - poderia acontecer que ele ai
permanecesse. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo o
dhamma, que segue uma marcha igual.

21. A morte na visão de Zhuangzi


Todas as coisas brotam de germes e se tornam germes novamente.
Todas as espécies vêm de germes. Certos germes, caindo na água,
tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se líquenes (...) tornam-se
um eritrônio (...) produzem o cavalo, que produz o Homem. Quando
o Homem envelhece, torna-se germes outra vez.
[...]
Quando Laozi morreu, Chin Yi foi ao funeral. Soltou três gritos de
dor e saiu.
Um discípulo dirigiu-se a ele perguntando - "Você não era amigo de
nosso Mestre?"
- "Era", replicou Chin Yi.
- "Assim sendo, acha que foi suficiente sua expressão de pesar pela
sua morte?", tornou o discípulo.
- "Acho", respondeu Chin Yi. "Estive pensando que ele era homem
(mortal), porém agora sei que não era. Quando cheguei para os
pêsames, encontrei pessoas de idade que choravam como chorariam
pelos filhos, jovens que se lastimavam como se tivessem perdido as
mães. Quando essas pessoas se encontraram deviam ter dito
palavras sobre o acontecimento e derramado lágrimas sem intenção
alguma. (Chorar assim pela morte de alguém) é fugir dos princípios
naturais (de vida e morte) e aumentar o apego humano, esquecendo- 51
se da fonte da qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto
"fugir à retribuição do Céu". O mestre veio porque tinha chegado a
hora de nascer, partiu porque chegou o tempo de partir. Os que
aceitam o curso natural e a seqüência das coisas e vivem em
obediência a eles estão acima da alegria e dos pesares. Os antigos
falavam disto como a emancipação da escravatura. Os dedos podem
não ser capazes de fornecer todo o combustível, porém o fogo é
transmitido e nós não sabemos quando terminará."
Caminhos para a Sabedoria

São muitos os caminhos da sabedoria, tanto na Índia como na


China. Na primeira, a busca pela supressão do karma e pelo alcance
da libertação – moksha, nirvana, shamadhi, ou como se preferir
chamar – é a constante em todos os métodos. Este sábio perfeito é o
primeiro dos textos, que aparece no clássico do Bhaghavad Gita (A
canção do Senhor), texto que faz parte do épico Mahabharata, mas
cuja importância religiosa e filosófica a tornaram uma obra em
separado. Esta definição é completada por dois textos upanishádicos
fascinantes: no primeiro, a discípula é uma mulher, mostrando que
na Índia védica buscadoras do caminho também; no segundo, a
famosa passagem em que Sevtaketu descobre a analogia da alma e 52
da semente. Por fim, a apresentação do método yóguico de
meditação de Patanjali, e do caminho budista. Diferente destes,
porém, a China consagrou a palavra Dao como a via, método,
caminho pelo qual se atinge uma realização imanente, neste mundo,
deslocando-se da visão transcendente, tal como vimos na Índia. Para
a escola de Confúcio, este Dao é a redenção pela educação; na visão
de Laozi, do desapego; para Zhuangzi, o Dao é obscuro e atingido
por experiências psicológicas e lingüísticas avançadas; e para
concluir, uma visão curiosa da escola médico-cosmológica, da época
Han, que propunha uma caminho para a longevidade por meio de
uma filosofia médica, ainda hoje existente.
22. As Características do Sábio Perfeito no Bhaghavad Gita
Disse Arjuna:
Qual é a descrição do homem que possui essa sabedoria firmemente
fundada, cujo ser é firme em espírito, Ó Krishna? Como fala o
homem de inteligência estabelecida, como se senta, como anda?
O Senhor Bendito disse: Quando um homem põe de lado todos os
desejos de sua mente, Ó Arjuna, e quando seu espírito está contente
em si próprio, então se chama estável em inteligência.
Aquele cuja mente não se perturba em meio às tristezas e está livre
do desejo ansioso entre prazeres, aquele de quem a paixão, medo e
raiva se afastaram, a este se chama um sábio de inteligência
estabelecida. Aquele que não tem afeição em qualquer lado, que não
se rejubila ou detesta ao ter o bem ou o mal, tem uma inteligência
firmemente estabelecida na sabedoria. Aquele que retira os sentidos 53
dos objetos do sentido em todos os lados, assim como uma tartaruga
recolhe seus membros ao casco, tem uma inteligência firmemente
estabelecida na sabedoria. Os objetos do sentido se afastam da alma
corporificada que se abstém de alimentar-se deles, mas o gosto por
eles continua. Até mesmo o gosto se afasta quando o Supremo é
visto. Embora um homem possa esforçar-se pela perfeição e
mostrar-se dono de discernimento, Ó Filho de Kunti, seus sentidos
impetuosos arrastarão sua mente à força. Tendo posto todos os
sentidos sob controle, ele deve permanecer firme no intento Yoga em
Mim, pois aquele cujos sentidos se acham sob controle teia uma
inteligência firmemente estabelecida. Quando, em sua mente, um
homem presta atenção aos objetos do sentido, produz-se sua ligação
aos mesmos. Dessa ligação surge o desejo, e do desejo vem a raiva.
Da raiva nasce a confusão, e desta a perda de memória; dessa perda
de memória vem a destruição da inteligência e desta ele perece. Um
homem de mente disciplinada, no entanto, que se move entre os
objetos de sentido com os sentidos sob controle e livre de ligação e
aversão, atinge a pureza de espírito. E nessa pureza de espírito
produz-se para ele um fim de toda tristeza; a inteligência de um
homem de espírito puro assim logo se estabelece na paz do eu. Não
existe inteligência para os incontrolados, nem tampouco para os
incontrolados existe o poder de concentração, enquanto para aquele
que não tem concentração não há paz, e como pode haver felicidade
para quem não tem paz? Quando a mente persegue .os sentidos
nômades, leva consigo a compreensão, assim como o vento impele
um navio sobre as águas. Aquele cujos sentidos estejam retirados de
seus objetos, portanto, Ó Poderoso, tem sua inteligência firmemente
estabelecida. 54
23. Uma mestra em busca da sabedoria: A Conversa Entre
Yajñãvalkya e Maitreyi no Brihadaranyaka upanishad
- Maitreyi - disse Yajñavalkya. - Eis que realmente estou quase
saindo deste estado para adiante. Olha! Vou fazer um acordo final
para ti e aquele Katyayani.
- Se hoje, senhor, toda esta terra cheia de riqueza fosse minha, seria
eu imortal por isso? - disse então Maitreyi.
- Não - respondeu Yajñavalkya. - Como a vida do rico, assim seria a
tua. Quanto à imortalidade, no entanto, não ha esperança através da
riqueza.
- Que devo fazer com aquilo pelo que eu não poderei ser imortal? O
que sabes, senhor, na verdade dize-me! - disse então Maitreyi.
- Ah! Eis que, querida como és para nos, querido é o que dizes! Vem,
senta-te. Eu explicarei para ti. Mas enquanto eu explicar, busca
pensar em minhas palavras - disse Yajñavalkya.
Depois disso, ele afirmou:
- Na verdade, não é pelo amor do marido que ele é querido, mas pelo
amor da Alma o marido é querido.
- Na verdade, não é pelo amor da esposa que ela é querida, mas pelo
amor da Alma a esposa é querida.
- Na verdade, não é pelo amor dos filhos que eles são queridos, mas
pelo amor das Almas os filhos são queridos.
- Na verdade, não é pelo amor a riqueza que ela é querida, mas pelo
amor da Alma a riqueza é querida.
- Na verdade, não é pelo amor da bramância (qualidade de
Brahman) que ela é querida, mas pelo amor da Alma a bramância é
querida. 55
- Na verdade, não é pelo amor dos mundos que eles são queridos,
mas pelo amor da Alma os deuses são queridos.
- Na verdade, não é pelo amor dos seres que eles são queridos, mas
pelo amor da Alma os seres são queridos.
- Na verdade, não é pelo amor de tudo que tudo é querido, mas pelo
amor da Alma tudo é querido.
- Na verdade, é a Alma o que se deve ver, ouvir, o que deve ser
pensado, o que deve ser ponderado, ó Maitreyi. Na verdade, com o
ver, ouvir, pensar e entender da Alma, este mundo total é conhecido.
- A bramância desertou aquele que não conhece a bramância em
nada mais do que a Alma.
. - Os mundos desertaram aquele que conhece os mundos em nada
mais do que a Alma.
- Os deuses desertaram aquele que conhece os deuses em nada mais
do que a Alma.
- Os seres desertaram aquele que conhece os seres em nada mais do
que a Alma.
- Tudo desertou aquele que conhece tudo em nada mais do que a
Alma.
- É como se, quando um tambor esta sendo tocado, não pudésemos
apreender os sons externos, mas apreendendo o tambor ou o
tamborileiro, o som é apreendido.
- É como se, quando uma concha está sendo soprada, não
pudéssemos apreender os sons externos, mas apreendendo o tambor
ou o tamborileiro, o som é apreendido.
- É como se, quando um alaúde esta sendo tocado, não pudéssemos
apreender os sons externos, mas apreendendo o alaúde ou seu
executante, o som é apreendido. 56
- É como se, de um fogo aceso com o combustível úmido, nuvens de
fumaça se destacassem separadamente, de modo que, na verdade,
desse grande Ser tenha sido criado aquilo que é Rig-Veda, Yajur-
Veda, Sama-Veda, Hinos dos Atharvanos e Angiras, Lenda,
Conhecimento Antigo, Ciências, Doutrinas Místicas, Versos,
Aforismos, Explicações e Comentários. Dele, na verdade, tudo isso
foi criado.
- É como se de todas as águas o ponto de reunião é o mar, também
de todos os toques o ponto de reunião é a pele, também de todos os
gostos o ponto de reunião é a língua, também de todos os cheiros o
ponto de reunião é a narina, também de todas as formas o ponto de
reunião é o olho, também de todos os sons o ponto de reunião é o
ouvido, também de todas as intenções o ponto de reunião é a mente,
também de todos os conhecimentos o ponto de reunião é o coração,
também de todos os atos o ponto de reunião são as mãos, também
de todos os prazeres o ponto de reunião é o órgão gerador, também
de todas as evacuações o ponto de reunião é o anus, também de
todas as jornadas o ponto de reunião são os pés, também de todos as
Vedas o ponto de reunião é a fala.
- É como se um bocado de sal posto na água dissolvendo-se nela, não
existisse mais sal algum para tirar, mas onde quer que essa água seja
levada, mostra-se salgada, e também assim, na verdade, este grande
Ser, infinito, ilimitado, é apenas uma massa de conhecimento.
- Surgindo desses elementos, neles nós desaparecemos. Depois da
morte não há consciência. Assim eu falo.
E assim falou Yajñavalkya.
Em seguida falou Maitreyi:
- Nisso, realmente, tu me confundiste, senhor, ao dizer que depois 57
da morte não ha consciência!
Disse então Yajñavalkya:
- Na verdade, eu não confundo. Suficiente é isso, na verdade, para o
entendimento.
- Pois onde existe uma dualidade, por assim dizer, um vê o outro, um
cheira o outro, um ouve o outro, um fala com outro, um pensa no
outro, um compreende o outro. Na verdade, onde tudo se tornou o
eu nosso, onde e quem cheiraríamos? Onde e quem vedamos? onde
e quem ouviríamos? Onde e a quem falaríamos? Onde e de quem
pensaríamos? Onde e a quem compreenderíamos? Onde iríamos
compreender aquêle por quem compreendemos este Tudo? Onde se
compreenderia o compreendedor?
24 A busca de Svetaketu, no Chandogya Upanishad
Quando Svetaketu tinha doze anos de idade, seu pai Uddalaka lhe
disse: "Svetaketu, agora deves ir para a escola e estudar. Ninguém da
nossa família, meu filho, é ignorante a respeito de Brahman."
Conseqüentemente, Svetaketu procurou um mestre e estudou por
doze anos. Depois de decorar todos os Vedas, voltou para casa cheio
de orgulho com seu aprendizado.
Seu pai, percebendo a vaidade do jovem, disse a ele: "Svetaketu,
pediste aquele conhecimento pelo qual ouvimos o que não é audível,
pelo qual percebemos o imperceptível, pelo qual conhecemos o
incognoscível?"
"O que é esse conhecimento, senhor?", perguntou Svetaketu. "Meu
filho, do mesmo modo como ao se conhecer um monte de barro,
todas as coisas feitas de barro são conhecidas, havendo a diferença 58
apenas no nome e surgindo da fala, sendo verdade que todas são de
barro; do mesmo modo como ao se conhecer uma pepita de ouro,
todas as coisas feitas de ouro são conhecidas, estando a diferença
apenas no nome e surgindo da fala, sendo verdade que todas são
ouro - exatamente assim é aquele conhecimento que, conhecendo-o,
conhecemos tudo."
"Com toda a certeza, meus veneráveis mestres ignoram esse
conhecimento; pois, se o possuíssem, tê-Io-iam ensinado a mim.
Ensinai-me então, senhor, esse conhecimento."
"Assim seja", disse Uddalaka, e continuou então:
"No início havia a Existência, apenas Um, sem segundo. Alguns
dizem que no início havia apenas a não-existência, e que dela nasceu
o Universo. Porém, como poderia ser tal coisa? Como poderia a
existência nascer da não-existência? Não, meu filho, no início havia
apenas a existência - somente Um, sem que houvesse outro. Ele, o
Uno, pensou: Serei muitos, expandir-me-ei. Assim, projetou o
Universo a partir de si mesmo, e entrou dentro de cada ser e de tudo.
Tudo o que existe possui o seu ser somente nele. Ele é a verdade. Ele
é a essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu, ISSO ÉS TU."
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."
―Assim seja, meu filho‖:
―Assim como as abelhas fazem o mel reunindo sucos de inúmeras
plantas e árvores floríferas, e como esses sucos, reduzidos a um
único mel, não sabem de que flores vieram individualmente, da
mesma forma, meu filho, todas as criaturas, quando estão
incorporadas àquela Existência única, seja no sono sem sonhos ou
na morte, nada sabem a respeito do seu estado passado ou presente,
devido à ignorância que as envolve - não sabem que estão fundidas 59
com ela e que delas vieram‖.
―Seja o que for que essas criaturas sejam, um leão, ou um tigre, ou
um javali, ou um verme, ou um borrachudo, ou um mosquito, elas
assim permanecem depois que voltam do sono sem sonhos‖.
"Todas elas têm seu Eu apenas nele. Ele é a verdade. Ele é a essência
sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu, ISSO ÉS TU."
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."
―Assim seja, meu filho‖:
"Os rios do Leste correm na direção do Leste, os rios do Oeste
correm na direção do Oeste, e todos vão para o mar. Eles passam de
mar para mar, as nuvens os elevam para o céu como vapor e os
mandam para baixo como chuva. E como esses rios, quando se unem
com o mar, não sabem se são este ou aquele rio, da mesma forma
todas as criaturas que mencionei, quando voltam de Brahman, não
sabem de onde vieram‖.
"Todos esses seres têm seu eu somente nele. Ele é a verdade. Ele é a
essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu, ISSO ÉS TU."
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."
"Assim seja, meu filho‖:
―Se alguém uma vez golpeasse a raiz desta grande árvore, ela
sangraria, mas viveria. Se golpeasse seu caule, ela sangraria, mas
viveria. Se golpeasse seu topo, ela sangraria, mas viveria.
Impregnada pelo eu vivente, esta árvore permanece firme, e se
alimenta; porém, se o Eu partisse de um dos seus galhos, esse galho
murcharia; se o abandonasse por um segundo, ele murcharia. Se o
abandonasse pela fração de um segundo, ele murcharia. Se ele saísse
de toda a árvore, toda a árvore murcharia‖.
―Do mesmo modo, meu filho, conhece isto: o corpo morre quando o 60
Eu o deixa - porém o Eu não morre‖.
"Tudo o que existe tem o seu Eu apenas nele. Ele é a verdade. Ele é a
essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu, ISSO ÉS TU."
"Por favor, senhor, dize-me mais a respeito desse Eu."
"Assim seja. Traze uma fruta daquela árvore Nyagrodha." "Aqui está,
senhor." "Parte-a."
"Está partida, senhor."
"O que vês?"
"Algumas sementes, extremamente pequenas, senhor."
"Parte uma delas."
"Está partida, senhor."
"O que vês?"
"Nada, senhor."
"A essência sutil tu não a vês, e nela está o todo da árvore
Nyagrodha. Acredita, meu filho, que naquilo que é a essência sutil -
todas as coisas têm sua existência. Aquilo é a verdade. Aquilo é o Eu.
E aquilo, Svetaketu, AQUILO ÉS TU!"
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."
"Assim seja. Coloca este sal na água, e volta aqui amanhã pela
manhã." Svetaketu fez como lhe foi solicitado. Na manhã seguinte,
seu pai pediu-lhe para trazer o sal que havia colocado na água.
Porém, ele não pôde fazê-Io porque o sal se havia dissolvido.
Uddalaka então disse:
"Prova a água e dize-me que gosto ela tem."
"Está salgada, senhor."
"Do mesmo modo", continuou Uddalaka, "embora não vejas
Brahman neste corpo, na verdade ele está aqui. Naquilo que é a
essência sutil - todas as coisas têm sua existência. Aquilo é a 61
verdade. Aquilo é o Eu. E aquilo, Svetaketu, AQUILO ÉS TU."
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu", pediu
novamente o jovem.
―Assim seja, meu filho‖:
"Do mesmo modo como um homem com os olhos vendados pode ser
levado para longe e abandonado num lugar estranho, e, tendo sido
tratado assim, pode voltar-se para todos os lados e gritar para que
alguém, remova a sua venda e lhe mostre o caminho de casa; e
alguém, atendendo ao seu chamado, poderá soltar a sua venda e dar-
lhe conforto; e, depois de caminhar de povoado em povoado,
perguntando seu caminho à medida que avança, ele finalmente
chega à sua casa - assim um homem que encontra um mestre
iluminado obtém o verdadeiro conhecimento‖.
"Aquele que é a essência sutil - nele todos os seres têm sua
existência. Ele é a verdade. Ele é o Eu. E Aquele, O Svetaketu,
AQUELE ÉS TU."
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."
―Assim seja, meu filho‖:
―Quando um homem está fatalmente doente, seus parentes se
reúnem em volta dele e perguntam: ‗Tu me conheces? Tu me
conheces?‘ Enquanto sua fala não estiver incorporada à sua mente,
sua mente ao seu alento, seu alento ao seu calor vital, seu calor vital
ao Ser Supremo, ele os conhecerá. Porém, quando sua fala estiver
incorporada à sua mente, sua mente ao seu alento, seu alento ao seu
calor vital, seu calor vital ao Ser Supremo, então ele não os
conhecerá‖.
"Aquele que é a essência sutil - nele todos os seres têm sua
existência. Ele é a verdade. Ele é o Eu. E Aquele, O Svetaketu, 62
AQUELE ÉS TU."

25. A sabedoria nos Yogas sutras de Patanjali - Formas de


Meditação e de Samadhi
A enfermidade, a preguiça mental, a dúvida, a falta de entusiasmo, a
letargia, a tendência para os prazeres dos sentidos, a falsa percepção,
a impossibilidade de atingir um perfeito estado de concentração e a
facilidade de perdê-lo, uma vez atingido, são as distrações que
obstruem.
O sofrimento, a angústia mental, o tremor do corpo, a respiração
irregular, acompanham a não-retenção de um perfeito estado de
concentração.
Para corrigir este estado (é preciso) que o sujeito se exercite.
Na amizade, na piedade, no contentamento e na indiferença os
quais, sendo concebidos com relação a sujeitos felizes e infelizes,
bons e maus, respectivamente, pacificam a Chitta.
Em soltar e reter a respiração.
Nessas formas de concentração que provocam extraordinárias
percepções nos sentidos e que são a causa de perseverança da mente.
Também na meditação da Luz Refulgente, que está acima de toda
tristeza.
Também na meditação sobre o coração que renunciou a todo apego
aos objetos dos sentidos.
Também na meditação sobre o conhecimento que vem a nós no
sono.
Também na meditação sobre qualquer coisa que nos pareça boa.
A mente do Yogui que assim meditar passa, sem impedimento, do
atômico para o infinito. 63
O Yogui que, dessa maneira, tiver tornado impotentes os Vrittis, que
os tiver (controlado), alcança, tanto no receptáculo, instrumento, no
receber, como no recebido (o Ser, a mente, os objetos externos),
completa concentração e igualdade, como o cristal (diante de objetos
de diferentes cores).
O som, o sentido e o conhecimento resultantes, unidos, constituem o
chamado Samadhi ―com-interrogação".
O Samadhi denominado ―sem-interrogação" vem quando a memória
é purificada ou esvaziada de qualidades e exprime apenas o sentido
do objeto meditado.
Por esse processo também se explicam (as concentrações) com
discriminação e sem discriminação, cujos objetos são, mais sutis.
Os objetos mais sutis têm um termo com Pradhana.
Essas concentrações têm semente.
Uma vez purificada a concentração sem discriminação, a Chitta está
firmemente fixada.
O conhecimento disto chama-se ―cheio de verdade".
O conhecimento ganho através do testemunho e da inferência
refere-se a objetos comuns. O que decorre do Samadhi e que
acabamos de mencionar, é de qualidade muito mais alta e pode
penetrar onde o testemunho e a inferência não podem.
A impressão que resulta do Samadhi obstrui todas as demais
impressões.
O Samadhi ―sem-semente" se obtém restringindo até mesmo (essa
impressão que obstrui todas as demais impressões).

26. O Caminho Budista, descrito no Samyutta Nikaya


Supõe agora, Tissa, dois homens, um ignorante do Caminho, outro 64
versado no Caminho. Aquele que é ignorante pergunta seu caminho
àquele que é versado no caminho. O outro responde: "Sim, vós estais
no caminho, senhor. Quando vós o tiverdes seguido por algum
tempo, vereis que ele se divide em duas veredas. Deixai aquela da
esquerda, tomai aquela da direita. Continuai a caminhar um pouco e
vereis uma espessa floresta. Um pouco mais longe vereis um grande
pântano. Um pouco mais longe vereis um precipício escarpado. Um
pouco mais longe vereis uma deliciosa planície de solo plano." É
uma parábola, Tissa, para me fazer compreender, e eis dela a
significação. O homem ignorante do caminho, é a multidão. O
homem versado no caminho, é o Descobridor da Verdade, o Perfeito,
o totalmente Desperto. A divisão em duas veredas, é o estado de
hesitação. O caminho da esquerda, é a Óctupla via errônea: a da
opinião errônea, dos conceitos errôneos, das palavras errôneas, dos
atos errôneos, da conduta errônea, dos esforços errôneos, da
vigilância errônea, da contemplação errônea. A vereda da direita é o
símbolo do Óctuplo caminho ariano, o da opinião correta, etc... A
floresta espessa, Tissa, designa a ignorância. O grande pântano
designa os prazeres sensuais. O precipício escarpado é sinônimo da
turbulência, da cólera. A deliciosa planície de solo plano designa o
nirvana. Sê reconfortado, Tissa. Eu te exortarei, te ajudarei, te
instruirei.

27. A redenção pelo estudo, no Zhong Yong de Confúcio e


Zisi
Aquilo que o céu outorgou se chama Natureza. A harmonia com essa
natureza chama-se Caminho do Dever. A ordenação desse caminho
chama-se Instrução. 65
Nem por um instante se pode abandonar o caminho. Se pudesse ser
abandonado, não seria o caminho. A esse respeito, o homem não
superior, para ser prudente, não espera até ver as coisas nem para
ser apreensivo espera até ouvir as coisas.
Nada há mais visível do que o secreto. Nada mais mani¬festo do que
o minúsculo. Portanto, o homem superior cuida de si mesmo quando
está sozinho.
Quando não há agitações de prazer, de cólera, de pesar ou de alegria,
pode-se dizer que a mente se encontra em estado de Equilíbrio.
Quando esses sentimentos se agitam e atuam em seu devido grau,
produz-se o que se pode chamar estado de Harmonia. Esse
Equilíbrio é a grande base da qual procedem todos os atos humanos
no mundo e essa Harmonia é o caminho universal que todos eles
devem seguir.
Se existem em sua perfeição esses estados de equilíbrio e da
harmonia, prevalecerá uma ordem feliz no Céu e na Terra e todas as
coisas serão estimuladas e florescerão.
―Que o homem superior sintetize o sistema do Meio, deve-se ao fato
de ser um homem superior e assim manter sempre o Meio. Que o
homem inferior atue contra o sistema do Meio, deve-se ao fato de ser
ele um homem inferior e não ter cautela‖.
Disse o Mestre: ―Perfeita é a virtude que está de acordo com o Meio.
Entre o povo, raros foram aqueles que puderam praticá-la!"

28. O dao dos daoístas, de Laozi


Procura atingir a suprema Humildade
Sustenta firme a base da Quietude.
Miríades de coisas se formam e se erguem para a atividade 66
mas eu as assisti tombarem de costas em repouso.
Assim como a vegetação que cresce luxuriante
mas retorna às raízes do chão onde nasceu.
Regressar às próprias origens, eis o que é o Repouso.
É o que se chama retornar ao seu próprio Destino.
Quem regressa à sua finalidade encontra a Eterna Lei
Conhecer a Lei Eterna é o Esclarecimento.
Desconhecer a Lei Eterna é expor-se ao fracasso
Aquele que conhece a Lei Eterna é tolerante:
sendo tolerante é imparcial;
sendo imparcial é nobre;
sendo nobre está de acordo com a Natureza;
estando de acordo com a Natureza está de acordo com dao;
estando de acordo com dao é eterno
e sua vida inteira está preservada de danos.

29. O dao obscuro de Zhuangzi


Como dao pode ser tão obscuro de modo que precisa haver a
distinção do verdadeiro e do falso? E como a palavra pode ser tão
obscura de modo que precisa haver uma distinção entre o direito e o
errado? Onde você pode ir e achar que dao não existe? Onde você
pode ir e achar que as palavras não podem ser provadas? Dao não
pode ser apreendido perfeitamente por nossa compreensão
inadequada, e as palavras não se patenteiam perfeitamente devido
às expressões floreadas. Daí as afirmativas e negativas das escolas de
Confúcio e de Mozi, cada qual negando o que a outra afirma e
afirmando o que a outra nega. Cada qual negando o que a outra
afirma e afirmando o que a outra nega, só nos pode redundar em 67
confusão.
Não há nada que não seja "isto"; não há nada que não seja "aquilo".
O que não pode ser visto por "aquilo", (a outra pessoa) pode ser
compreendido por mim. Daí eu digo, "isto" emana "daquilo";
"aquilo" também deriva "disto". Esta é a teoria da interdependência
"disto" e "daquilo" (relatividade dos padrões). Não obstante, a vida
decorre da morte, e vice-versa. A possibilidade decorre da
impossibilidade, e vice-versa. A afirmação baseia-se na negação, e
vice-versa. Sendo esse o caso, o verdadeiro sábio rejeita todas as
distinções e refugia-se no Céu (Natureza). Pois alguém pode baseá-
las sobre "isto", embora "isto" seja também "aquilo" e "aquilo" seja
também "isto". "Isto", outrossim, tem seus "direitos" e "errados", e
"aquilo" também tem seus "direitos" e "errados". Então existe
realmente, ou não, a distinção entre "isto" e "aquilo"? Quando "isto"
(subjetivo) e "aquilo" (objetivo) são ambos sem seus correlatos, esse
é o verdadeiro "Eixo de dao". E quando esse Eixo passa através o
centro para o qual o Infinito converge, as afirmações e as negações
confundem-se igualmente no infinito Único. Daí se diz que não há
nada como usar a Luz. Tomar um dedo como prova de que um dedo
não é um dedo não é tão bom como tomar qualquer coisa que não
seja um dedo para provar que um dedo não e um dedo. Tomar um
cavalo como prova de que um cavalo não é um cavalo não é tão bom
como tomar algo que não seja um cavalo para demonstrar que um
cavalo não e um cavalo. O mesmo se dá com o universo que não é
nem dedo nem cavalo. O possível é possível: o impossível é
impossível. Dao trabalha e o resultado obtido é o seguinte; as coisas
recebem nomes e afirma-se serem o que são. Por que são assim?
Porque se afirma serem como são! Por que não são de outro modo? 68
Afirma-se não serem assim! As coisas são assim por si mesmas e têm
possibilidades por si próprias. Não existe nada que não seja de certo
modo e não existe nada que não possa ser de certo modo. Por
conseguinte tome, por exemplo, um galho novo e uma coluna, ou
uma pessoa feia e uma grande beleza e tudo o que for estranho e
monstruoso. Tudo isso é igualado por dao. A divisão é o mesmo que
criação; a criação é o mesmo que destruição. Não há uma criação ou
uma destruição, porque essas condições são novamente igualadas
numa Única. Somente os verdadeiros sábios compreendem esse
principio de igualar todas as coisas numa Única. Descartam-se das
distinções e se refugiam nas coisas comuns e ordinárias. As coisas
comuns e ordinárias servem a certas funções e, portanto, conservam
a integridade da natureza. Partindo dessa integridade, uma pessoa
compreende, e da compreensão chega a dao. Aí pára. Parar sem
saber como pára - eis dao.

30. O Dao da saúde do Neijing (O Tratado Interno) -


Tratado sobre a Verdade Natural nos Tempos Antigos
O Imperador Amarelo foi dotado de talentos divinos, nos tempos
antigos em que nasceu: na primeira infância já sabia falar, muito
jovem ainda era rápido de entendimento e sagacidade, em adulto foi
sincero e compreensivo e quando atingiu a perfeição ascendeu ao
Céu.
Uma vez, o Imperador Amarelo dirigiu-se a Tien Shih, o mestre
divinamente inspirado, nos seguintes termos:
- Ouvi dizer que nos tempos antigos as pessoas viviam mais de um
século e mesmo assim permaneciam ativas e não se tornavam
decrépitas nas suas atividades. Hoje em dia, porém, as pessoas só 69
vivem metade desses anos e mesmo assim tomam-se decrépitas e
débeis. É por que o Mundo muda de geração para geração? Ou será
por que a espécie humana negligencia as leis da Natureza?
E Chi Po respondeu:
- Antigamente, essas pessoas que compreendiam o Dao [o caminho
do autodesenvolvimento] moldavam-se de acordo com o Yin e o
Yang [os dois princípios da Natureza] e viviam em harmonia com as
artes da adivinhação. Havia temperança no comer e no beber. As
suas horas de levantar e recolher eram regulares e não desordenadas
e ao acaso. Graças a isso, os antigos conservavam os seus corpos
unidos às suas almas, a fim de cumprirem por completo o período de
vida que lhes estava destinado, contando cem anos antes do
passamento. Hoje em dia, as pessoas não são assim; utilizam o vinho
como bebida e adotam a temeridade e a negligência como
comportamento habitual. Entram na câmara do amor em estado de
embriaguez; as paixões exaurem-lhes as forças vitais; o ardor dos
desejos malbarata-lhes a verdadeira essência; não são hábeis na
regulação da sua vitalidade. Devotam toda a atenção ao divertimento
dos seus espíritos, desviando-se assim das alegrias da longa vida.
Levantam-se e deitam-se sem regularidade. Por tais razões só
chegam à metade de cem anos e degeneram.
Na Antigüidade mais remota, os ensinamentos dos sábios eram
seguidos pelos que se encontravam abaixo deles. Os sábios diziam
que a fraqueza, as influências insalubres e os ventos nocivos deviam
ser evitados em ocasiões específicas. Sentiam-se tranqüilamente
satisfeitos no nada e a verdadeira força vital acompanhava-os
sempre; preservavam dentro de si o vigor vital primitivo. Assim,
como podia a doença acometê-los? Reprimiam a vontade e reduziam 70
os desejos; os seus corações estavam em paz e sem qualquer medo,
os seus corpos labutavam e, contudo, não sentiam fadiga. O seu
espírito respeitava a harmonia e a obediência, estava tudo de acordo
com os seus desejos e conseguiam o que quer que desejassem.
Achavam excelente qualquer espécie de comida e qualquer espécie
de vestuário os satisfazia. Sentiam-se felizes em todas as
circunstâncias. Para eles, não importava que um homem ocupasse
na vida uma posição elevada ou inferior. A homens assim se pode
chamar puros de coração. Não há desejo capaz de tentar os olhos
destas pessoas puras, e a sua mente não pode ser desencaminhada
pelos excessos nem pelo mal.
Numa sociedade assim, quer os homens sejam sensatos, quer
idiotas; quer virtuosos, quer maus, não têm medo de nada, estão em
harmonia com o dao, o Caminho Certo. Por isso, os antigos viviam
mais de um século e permaneciam ativos e sem se tomarem
decrépitos, porque a sua virtude era perfeita e nada jamais a punha
em perigo.

71
Vivendo em Sociedade

São múltiplas as facetas que dominam o tema Sociedade. Nesta


recolha de textos, o papel das castas é dominante nos assuntos
relacionados à sociedade. Elas são o ponto de inflexão central entre
religião, cultura e cotidiano; de sua afirmação, seja no texto de Manu
ou no Mahabharata, ou de sua negação, na visão budista, nasce o
confronto destas duas visões filosóficas tão caras a esta civilização.
Seguem-se dois textos mostrando o que vêm a ser o papel de um
chefe de família na índia, tanto na visão hindu quanto na visão
budista. Junto a eles, os deveres de uma mulher, proposto no
Manavadharmashastra, dá nos uma idéia da evolução do papel
feminino nesta sociedade nos tempos antigos. Já a China tem seu 72
cotidiano e a sociedade narrados na visão dos ritos, dos costumes,
elaboradamente preservados por Confúcio e sua escola. Distantes de
uma possível visão religiosa – ou se esta está presente, o faz de um
modo velado, quase inacessível, senão na ocasião dos sacrifícios
reais e aos ancestrais, ou nas cerimônias de luto - , a vida chinesa
nos é contada por poemas e prosas destinadas especificamente a este
fim. Inicialmente, vemos uma ode destinada ao rei lavrador, um ato
simbólico que o soberano realizava no início do período da
primavera, sulcando a terra para dar início aos trabalhos de plantio;
depois, um poema de uma mulher divorciada, apresentando as
tensões de uma sociedade que se pretendia cada vez mais misógina;
os lamentos da miséria reinante por um funcionário local; e os
cantares que mostram como se dava o trabalho nos campos ao longo
do ano. Numa mudança de foco, Confúcio nos apresenta uma visão
rápida sobe outros povos sinizados, a compreensão da diferença;
depois, os deveres de obrigação universal – ou melhor, social.
Zhuangzi nos mostra uma visão da sociedade como um
condicionamento problemático, uma perda da simplicidade original;
já o Neijing nos proporciona uma visão médica da civilização antiga,
por meio de uma filosofia da saúde, narrando o ciclo da vida
humana. Para finalizar, mais alguns textos sobre o cotidiano chinês
antigo: as queixas contra um esposo violento, uma declaração real
contra a embriaguez, outra contra o luxo, um texto do Liji
mostrando como se sabe se um povo é evoluído ou não; como surgiu
a civilização (o conceito de Li, ou cultura) e um texto do Daxue
(Grande Estudo), sobre o papel do indivíduo e do cultivo interior
como fundamento da convivência social e humana.
73
31. A Criação do Mundo e a origem das leis e das castas no
Manavadharmashastra
Este universo existia na forma de Treva, impercebido, destituído de
marcas distintas, inatingível pelo raciocínio, incognoscível,
inteiramente imerso, por assim dizer, em sono profundo. Foi quando
o Auto-existente divino, ele próprio indiscernível, mas tomando tudo
isso, os grandes Elementos e o resto, discernível, surgiu com poder
criador irresistível, desfazendo a treva.
Aquele que só pode ser percebido pelo órgão interno, que é sutil,
indiscernível e eterno, que contém todos os seres criados e é
inconcebível, brilhou por sua própria vontade.
Desejando produziu seres de muitas espécies com seu próprio corpo,
ele primeiramente criou as águas com um pensamento, e pôs sua
semente nas mesmas.
Essa semente se tomou um ovo dourado, em brilho igual ao sol;
naquele ovo ele próprio nasceu como um brâmane, o progenitor de
todo o mundo.
Dessa primeira causa, que é indiscernível, eterna e tanto real quanto
irreal, produziu-se aquele homem que é famoso neste mundo sob o
nome de Brahman.
O divino residiu naquele ovo durante todo um ano, e depois ele
próprio, por seu pensamento apenas, dividiu-o em duas metades;
E dessas duas metades ele formou céu e terra, entre elas a esfera
média, os oito pontos do horizonte e a morada eterna das águas.
Mas no início ele atribuiu seus diversos nomes, atos e condições a
todos os seres criados, de acordo com as palavras dos Vedas.
O curso de ação que o Senhor de início indicou a cada tipo de seres,
só esse fora adotado em cada criação posterior. 74
O que ele indicara a cada qual na primeira criação, nocividade ou
inofensividade, gentileza ou ferocidade, virtude ou pecado, verdade
ou falsidade, mais tarde se prendeu espontaneamente a cada um.
Como a alteração das estações, cada qual por sua própria conta toma
suas marcas distintivas, do mesmo modo os seres corporais em
novos nascimentos retomavam seu curso de ação indicado.
As diversas condições neste círculo de nascimentos e mortes sempre
terrível e em constante transformação, a que os seres criados estão
sujeitos, acham-se declaradas, para começar, com a de Brahman, e
para terminar com a das criaturas imovíveis.
Quando aquele cujo poder é incompreensível produzira assim o
universo, desapareceu em si próprio, suprimindo repetidamente um
período por meio de outro.
Quando esse ser divino acorda, o mundo acorda; quando dorme
tranqüilamente, o universo mergulha no sono.
Mas quando ele repousa em sono calmo, os seres corporais cuja
natureza é a ação desistem de seus atos e a inerte se toma inerte.
Quando se acham absorvidos todos de uma vez naquela grande
alma, aquele que é a alma de todos os seres dorme docemente, livre
de todas as preocupações e ocupações.
Quando essa alma entra na treva, permanece por muito tempo unida
aos órgãos da sensação, mas não executa suas funções, deixando
então o arcabouço corpóreo.
Assim ele, o imperecível, despertando e dormindo alternadamente,
revive e destrói sem cessar toda essa criação móvel e imóvel.
Mas ouçam agora a breve descrição da duração de uma noite e um
dia de Brahman e das diversas idades do mundo, de acordo com sua
ordem. 75
Eles declaram que a idade de Krita consiste em quatro mil anos dos
deuses; o crepúsculo antes dela consiste em outras tantas centenas, e
o crepúsculo seguinte no mesmo número.
Nas outras três idades, com seus crepúsculos antecedendo e
seguindo, os milhares e centenas são diminuídos de um em cada.
Esses doze mil anos que foram assim mencionados como o total de
quatro idades humanas são chamados uma idade dos deuses.
Mas saibam que a soma de mil idades dos deuses forma um dia de
Brahman, e que sua noite tem a mesma duração.
Somente aqueles, que sabem que o dia santo de Brahman na verdade
termina depois de completarem-se mil idades dos deuses e que sua
noite dura outro tanto, são os homens conhecedores da duração dos
dias e noites.
Ao final daquele dia e noite, aquele que dormia desperta e, depois
disso, cria a mente, que é tanto real quanto irreal.
A mente, impelida pelo desejo de Brahman de criar, executa o
trabalho da criação modificando-se, com o que o éter é produzido;
eles declaram que o som é a qualidade deste último.
Mas do éter, modificando a si próprio, surge o vento puro e
poderoso, veículo de todos os perfumes; a esse é atribuída a
qualidade do tato.
Em seguida ao vento, que se modifica sozinho, sai a luz brilhante,
que ilumina e desfaz a treva; a ela se atribui a qualidade da cor;
E da luz, modificando-se, produz a água, que tem a qualidade do
paladar, e da água a terra que tem a qualidade do olfato; tal é a
criação no início.
A idade mencionada antes, a dos deuses, ou doze mil de seus anos,
multiplicada por setenta e um, constitui o que aqui se chama o 76
Período de um Manu.
Os Períodos de um Manu, criações e destruições do mundo, são
inúmeros; divertindo-se, por assim dizer, Brama repete isso
infinitamente.
Na idade de Krita, Dharma tem quatro pés e é inteiro, e assim
também é a Verdade; nem tampouco advém qualquer benefício aos
homens por andarem eretos.
Nas três outras idades, devido a ganhos injustos, Dharma é
sucessivamente privado de um pé, e pela existência de roubo,
falsidade e fraude o mérito ganho pelos homens é diminuído numa
quarta parte em cada um.
Os homens acham-se livres de doença, atingem todos os seus
objetivos e vivem quatrocentos anos na idade de Krita, mas na idade
de Treta e em cada qual das subseqüentes sua vida é encurtada de
uma quarta parte.
A vida dos mortais, mencionada nos Vedas, os resultados desejados
dos ritos sacrificais e o poder sobrenatural dos espíritos
incorporados são frutos proporcionados entre os homens, de acordo
com o caráter da idade.
Um conjunto de deveres é prescrito aos homens na idade de Krita,
deveres diferentes na idade de Treta e na de Dvapara, e outra vez
novo conjunto na idade de Kali, em proporção na qual tais idades
diminuem em duração.
Na idade de Krita a virtude principal é afirmada como sendo a
execução de austeridades, na de Treta o conhecimento divino, na de
Dvapara a realização de sacrifícios, na de Kali somente a
liberalidade.
Mas para proteger este universo Ele, o mais resplendente de todos, 77
atribui deveres e ocupações separados aqueles que saíram de sua
boca, braços, coxas e pés.
Aos brâmanes, ele atribuiu o ensino e estudo dos Vedas, sacrificando
em seu próprio benefício e no de outros, dando e aceitando esmolas.
Aos xatrias, ele ordenou proteger o povo, dar presentes, oferecer
sacrifícios, estudar os Vedas e abster-se de se prender a prazeres
sensuais;
Aos vaixás, mandou tratar do gado, dar presentes, oferecer
sacrifícios, estudar os Vedas, comerciar, emprestar dinheiro e
cultivar a terra.
Apenas uma ocupação o senhor prescreveu aos sudras, a de servir
humildemente aquelas outras três castas.
Nesta obra a lei sagrada foi inteiramente declarada, bem como as
boas e más qualidades dos atos humanos e a regra imemorial de
conduta, a ser seguida por todas as quatro castas.
A regra de conduta é lei transcendente, quer ensinada nos textos
revelados ou na tradição sagrada; daí, um homem nascido duas
vezes que possuir consideração para consigo próprio dever sempre
ter o cuidado de segui-la.
A criação do universo, a regra dos sacramentos, os regulamentos do
estudantado e o comportamento quanto aos Gurus, a regra mais
excelente de banhar-se quando de volta da casa do mestre,
A lei do matrimônio e a descrição dos diversos ritos matrimoniais, os
regulamentos para os grandes sacrifícios e a regra eterna dos
sacrifícios funerais,
A descrição dos modos de ganhar a subsistência e os deveres de um
snataka, as regras a respeito de alimento legal é proibido, a
purificação de homens e coisas, 78
As leis a respeito de mulheres, a lei de eremitas, a maneira de
conquistar a emancipação final e de renunciar ao mundo, todo o
dever de um rei e a maneira de decidir questões judiciais,
As regras para o exame das testemunhas, as leis a respeito de marido
e mulher, a lei de herança e divisão, a lei acerca do jogo e a retirada
de homens nocivos como espinhos,
A lei sobre o comportamento de vaixas e sudras, a origem das castas
mistas, a lei para todas as castas em tempos de dificuldade e a lei de
penitências,
O curso triplo de transmigrações, o resultado de boas e mas ações, a
maneira de atingir a ventura suprema e o exame das boas e mas
qualidades das ações,
As leis primevas de países, castas, famílias, e as regras a respeito dos
hereges e companhias de comerciantes e coisas afins - tudo isso
Manu declarou nesses Institutos.

32. Sobre a Origem e Valor das Quatro Castas no


Mahabharata
Brama criou assim anteriormente os Prajapatis bramânicos,
penetrados por sua própria energia e em esplendor igualando o sol e
o fogo. O senhor formou então a verdade, correção, fervor austero e
os Vedas eternos, a prática virtuosa e a pureza para se atingir o céu.
Formou também os deuses, demônios e homens, brâmanes, xátrias,
vaixás e sudras, bem como todas as outras classes de seres. A cor dos
brâmanes era branca, a dos xátrias vermelha, a dos vaixás amarela e
a dos sudras negra. Se a casta das quatro classes for distinguida por
sua cor, então se mostra observável uma confusão de todas as castas.
O desejo, a raiva, o medo, a cupidez, a aflição, a apreensão, a fome, a 79
fadiga, atingem-nos todos; pelo que se discrimina a casta, então? O
suor, urina, excremento, fleuma, bílis e sangue são comuns a todos;
todos têm corpos que degeneram; pelo que se discrimina a casta,
então? Há inúmeras espécies de coisas que se movem e são
estacionárias; como se pode determinar a classe desses diversos
objetos?
Não há diferença de castas; tendo sido criado inteiramente
bramanico de inicio por Brama, em seguida este mundo se separou
em castas devido às obras. Aqueles brâmanes que gostavam o prazer
sensual, ferozes, irascíveis, inclinados à violência, que tinham
abandonado seu dever e apresentavam membros vermelhos, caíram
na condição de xátrias. Aqueles brâmanes que extraíam sua
subsistência do gado, eram amarelos, subsistiam pela agricultura e
negligenciavam seus deveres entraram no estado de vaixás. Aqueles
brâmanes que gostavam da maldade e falsidade, eram cobiçosos e
viviam de todos os tipos de trabalho, eram negros e tinham
abandonado a pureza, mergulharam na condição de sudras. Estando
separados uns dos outros por essas obras, os brâmanes se dividiram
em castas diferentes. O dever e os ritos de sacrifício nem sempre
foram proibidos a qualquer um deles. São estas as quatro classes
para quem o Sarasvati bramânico foi destinado de início por Brama,
mas que, pela sua cupidez, caíram na ignorância. Os brâmanes
vivem de acordo com as prescrições dos Vedas, e enquanto se atêm a
eles e às observâncias e cerimônias, seu fervor austero não
desaparece. E a ciência sagrada foi criada como a coisa suprema -
aqueles que a ignoram não são homens nascidos duas vezes. Destes,
há diversas outras classes em lugares diferentes, que perderam todo
o conhecimento sagrado e profano e praticam quaisquer 80
observâncias que lhes agradem. E diferentes espécies de criaturas
com os ritos purificadores de brâmanes, e discernindo os seus
próprios deveres, são criados por Rishis diferentes, através de seu
próprio fervor austero. Esta criação, nascida do deus primaz, tendo
sua raiz em brahman, indegenerável, imperecível, chama-se a
criação nascida da mente, estando devotada às prescrições do dever.
Que é aquilo, em virtude do que um homem é um brâmane, um
xátria, um vaixá ou um sudra? Dize-me, ó eloqüentíssimo Rishi.
Aquele que é puro, consagrado às cerimônias natais e outras, que
estudou completamente os Vedas, vive na prática das seis
cerimônias, executa perfeitamente os ritos da purificação, come os
restos das oblações, prende-se a seu mestre religioso, é constante
nas observâncias religiosas e devotado à verdade, chama-se um
brâmane. Aquele em quem se vêem a verdade, liberalidade,
inofensividade, modéstia, compaixão e fervor austero, é declarado
um brâmane. Aquele que pratica o dever advindo do cargo de rei,
dedica-se ao estudo dos Vedas e tem prazer em dar e receber, a este
se chama um xátria. Aquele que prontamente se ocupa com gado, é
dedicado à agricultura e à aquisição e se mostra perfeito no estudo
dos Vedas, denomina-se um vaixa. Aquele que habitualmente se
inclina a todos os tipos de alimento, executa todos os tipos de
trabalho, não é limpo, abandonou os Vedas e não pratica as
observâncias puras, é tradicionalmente chamado um sudra. E isto
que afirmei é a marca de um sudra, e não se encontra em um
brâmane; um sudra assim continuará a ser um sudra, enquanto o
brâmane que agir assim não será um brâmane.

33. A visão das castas para os budistas no Mojjhima - 81


Nikaya
Eis, senhor, as quatro castas: a dos nobres, a dos pobres, a dos
comerciantes, e a dos trabalhadores. Entre elas, duas têm a
supremacia: a dos nobres e a dos sacerdotes: isto pelo modo com
que se dirigem a seus membros, com que os saúda levantando-se e
juntando as mãos em homenagem, e com que são tratados. Há cinco
qualidades que devem ser procuradas: a fé, a saúde, a sinceridade, a
energia, a sabedoria. As quatro castas podem ser dotadas das cinco
qualidades que se deve procurar e recebem a bênção e a felicidade
por muito tempo. E eu não digo que em seu caso que haja uma
distinção em seu esforço. É como se se tivesse um par de elefantes
domesticados, cavalos ou bois bem domesticados, exercitados; e um
outro par não domesticado e não exercitado. O primeiro par seria
contado como domesticado, atingiria o valor dos animais
domesticados; o segundo, não. Da mesma maneira não é possível
que o que se adquire pela fé, a saúde, a sinceridade, a ausência de
velhacaria possa se obter onde há falta de fé, a má saúde, o engano, a
velhacaria, a inércia, a sabedoria limitada. No caso das quatro castas
se [seus membros] são dotados de cinco qualidades que se deve
procurar, se eles fazem os esforços devidos, eu digo que neste caso
não há diferença entre libertação e libertação. É como se quatro
homens, um trazendo lenha bem seca, outro uma acha seca da
árvore sãla, o terceiro uma acha seca de mangueira, o quarto uma
acha seca de figueira, fizessem cada um fogo que produzisse calor.
Haveria uma diferença entre os fogos produzidos por estas
diferentes madeiras quanto à sua chama, sua cor, ou seu clarão? O
mesmo sucede com o calor aceso pela energia e produzido pelo
esforço. Eu não digo que haja diferença entre libertação e libertação. 82
34. Regras Para um Chefe de Família, no
Manavadharmashastra
Tendo morado com um mestre durante a quarta parte da vida de um
homem, um brâmane deve viver a segunda parte de sua existência
em sua casa, depois de ter-se esposado.
Um brâmane deve buscar um meio de subsistência que não cause
dor aos outros, ou a menor possível, e viver disso, a não ser em
tempos difíceis.
Para o fito de ganhar sua subsistência, seja-lhe permitido acumular
propriedade seguindo essas ocupações irrepreensíveis prescritas
para sua casta, sem fatigar demais seu corpo.
Que nunca siga os caminhos do mundo, para subsistir; que viva a
vida pura, correta e honesta de um brâmane.
Quem desejar a felicidade deverá esforçar-se por ter uma disposição
perfeitamente satisfeita e controlar-se, pois a felicidade tem o
contentamento por raiz, sendo a indisposição a raiz da infelicidade.
Seja ele rico ou mesmo na dificuldade, que não procure a riqueza em
atividades pelas quais os homens se dividem, nem por ocupações
proibidas, nem tampouco aceite presentes de qualquer pessoa, seja
lá quem for.
Que nunca se prenda, por desejo de desfrute, a qualquer prazer
sensual, e que elimine cuidadosamente uma ligação excessiva ao
mesmo, refletindo em seu coração sobre sua falta de valor.
Que evite todos os meios de adquirir riqueza que impeçam o estudo
dos Vedas; que se mantenha de qualquer maneira, mas estude,
porque essa devoção ao estudo dos Vedas garante a realização de
seus objetivos. 83
Que ande aqui na terra, trazendo suas roupas, fala e pensamentos
em conformidade com sua idade, ocupação, riqueza, sabedoria
sagrada e sua raça.

35. Deveres das Mulheres no Manavadharmashastra


Por uma menina, uma moça ou mesmo uma mulher idosa, nada
deve ser feito independentemente, nem mesmo em sua própria casa.
Na infância, a menina deve estar submetida a seu pai, na mocidade a
seu marido; quando seu senhor morre, a seus filhos; uma mulher
jamais deve ser independente.
Ela não deve buscar separar-se de seu pai, marido ou filhos;
deixando-os, ela tornaria tanto sua própria família quanto a de seu
esposo dignas de desprezo.
Ela deve ser sempre alegre, inteligente na direção das questões
domésticas, cuidadosa com seus utensílios e econômica nas
despesas.
Aquele a quem seu pai possa dá-la, ou seu irmão com permissão do
pai, será obedecido por ela enquanto viver, e quando morrer, ela não
devera insultar sua memória.
Com o fito de trazer boa sorte às noivas, a recitação de textos
bendizentes e o sacrifício ao Senhor das criaturas são usados nos
casamentos, mas o matrimônio pelo pai ou guardião é a causa do
domínio do marido sobre sua esposa.
O marido que a esposou com textos sagrados sempre dá felicidade à
esposa, tanto na estação quanto fora dela, neste mundo e no
seguinte.
Embora destituído de virtudes, ou buscando o prazer noutro lugar,
ou despido de boas qualidades, ainda assim um marido deve ser 84
constantemente adorado como um deus por uma esposa fiel.
Nenhum sacrifício, voto ou jejum deve ser executado por mulheres
separadas de seus maridos; se uma esposa obedece a seu marido,
será por esse motivo apenas exaltada no céu.
Uma esposa fiel, que deseja morar com seu marido após a morte,
jamais deverá fazer qualquer coisa que desagrade aquele que tomou
sua mão, esteja morto ou vivo.
Se quiser, ela poderá emagrecer o corpo vivendo de flores, raízes e
frutas, mas jamais deverá mencionar o nome de outro homem
depois de ter morrido seu marido.
Até a morte deve ser paciente quanto as dificuldades, controlada e
casta, e esforçar-se por cumprir aquele mais excelente dos deveres,
prescrito as esposas que têm apenas um marido.
Violando seu dever com relação ao marido, uma esposa se desgraça
neste mundo; depois da morte ela entrara no ventre de um chacal e
será atormentada por doenças, a punição por seu pecado.
Aquela que, controlando seus pensamentos, palavras e atos, jamais
rebaixar seu senhor, reside apos a morte com seu marido no céu, e é
chamada uma esposa virtuosa.
Um homem nascido duas vezes, versado na lei sagrada, queimará
uma esposa de casta igual que se conduza assim e morra antes dele,
com os fogos sagrados usados para Agnihotra e com os artigos
sacrificais.
Tendo assim no funeral dado os fogos sagrados a sua esposa morta
antes dele, ele poderá casar-se de novo, e manter vivos os fogos.

36. Regras para um chefe de família budista, no


Sutanippata 85
Direi agora a regra para os chefes de família e que ação convém a
estes ouvintes, pois em suas ocupações nenhum deles saberia
completamente se ajustar ao que é exigido dos monges. Que ele não
mate as criaturas; que ele não incite a matar: que ele não aprove as
que tiraram a vida; que ele deixe de lado toda a violência para com
tudo o que vive, e para com tudo que resiste ou que treme neste
mundo. Que o ouvinte começando a despertar se abstenha
totalmente de tomar o que não é dado, não incite ninguém a roubar,
não aprove o roubo: que se abstenha de todas as formas de roubo.
Que se abstenha de toda a luxúria, como o sábio se afasta da fossa
cheia de brasas: se ele não pode viver na continência, que ele não
peque com a mulher do próximo. Indo à sala de reunião, à
assembléia que ele não fale falsamente a outrem; que ele não incite
outrem a mentir; nem aprove. Que se abstenha de tudo o que não é
verdade. Que não tome bebidas embriagantes, o chefe de família que
escolhe este dhamma! Que não incite outrem a beber nem aprove a
bebida, sabendo que ela só pode terminar na loucura. Pois em
verdade, os tolos que bebem, cometem más ações, e encorajam
outros em suas loucuras; que ele evite este ciclo de atos maus,
desatinados e mentirosos, delícias dos imbecis. Que ele não mate
nem tome o que não foi dado: que ele não minta nem se embriague;
que ele fuja das práticas nocivas; que ele não coma à noite de
refeições inoportunas. Que ele não traga grinaldas nem use
perfumes; se deite numa esteira estendida ao sol. É isso que se
chama a óctupla observância, chamada pelo Desperto, para pôr
termo ao mal. Segundo o dhamma ele servirá seus pais, mas o
dhamma, exercerá seu ofício; chefe de família que leva esta vida
sincera perguntará novamente aos devas chamados os Luminosos. 86
37. Ode ao rei que lavra a terra, pedindo um ano de
abundância, no Shijing (Tratado dos Poemas)
Eles limpam o solo tirando a relva e os arbustos; e ei-lo que fica todo
sulcado pelos arados. Em milhares, aos pares, tiram as raízes, alguns
nas terras baixas e úmidas, outras ao longo do rio. São o dono e o
filho mais velho; os filhos mais novos e todos os seus rebentos; os
auxiliares mais fortes e os criados contratados. Como comem e
saboreiam as viandas que trouxeram! (Os maridos) pensam
amorosamente nas mulheres; (as mulheres) ficam bem perto dos
maridos. (Então) com as afiadas relhas dos arados se põem a
trabalhar nos acres que ficam ao sul. Semeiam várias espécies de
grãos, cada semente contendo dentro de si um gérmen de vida. Em
linhas perfeitas surgem as hastes e, bem nutridas, crescem bastante.
O grão verde parece que vai abundar e os homens com enxadas
passam por entre eles em multidões.
Depois vêm verdadeiras multidões de segadores. E o grão é em
pilhado nos campos, miríades e centenas de milhares e milhões (de
montes de trigo) ; para os espíritos e os espíritos doces, para oferecer
a nossos ancestrais, homens e mulheres, e para suprir todas as
cerimônias. Fragrante em seu aroma, adornando a glória do estado.
Tal como pimenta com o seu cheiro, para dar conforto aos velhos.
Não é somente aqui que há essa (abundância); não é somente agora
que há um tempo como este: pois desde antigamente assim tem
sido.

38. Poema de uma mulher divorciada, no Shijing


O vestido amarelo é sinal de distinção, 87
O verde, da desgraça.
Uso o verde e não o dourado,
E escondo o meu rosto.
Uso o verde do desprezo
Depois de tanto tempo usar o amarelo.
Medito nos ensinamentos dos Sábios,
Com medo de julgá-los errados.
Foi por ela que ele me cobriu de vergonha.
Sento-me e penso solitária.
Fico pensando se os Sábios conhecem
O coração de uma mulher.
39. Lamento de um funcionário sobre a miséria, no Shijing
Deus inverteu seu procedimento habitual e os humildes estão cheios
de angústia. As palavras que pronunciais não são justas; os planos
que traçais não são de grande alcance. Como não há sábios, pensais
que careceis de guia. Não sois realmente sinceros. Por isso vossos
planos vãos não seguem muito longe e por isso severamente vos
censuro.
O Céu envia calamidades agora. Não sejais tão complacentes. O Céu
produz agora essas perturbações. Não sejais tão indiferentes. Se
vossas palavras fossem harmoniosas o povo se uniria. Se vossas
palavras fossem suaves e bondosas o povo se tranqüilizaria.
Embora meus deveres sejam distintos dos vossos, sou vosso
companheiro de trabalho. Venho para aconselhar-vos e vós me ouvis
com depreciativa indiferença. Minhas palavras referem-se aos 88
urgentes assuntos atuais. Não acrediteis que constituam matéria
para riso. Os antigos tinham esta máxima: ―Consulta os que
apanham a erva e a lenha‖.
O Céu exerce opressão, agora. Não vos burleis desse modo das
coisas. Como ancião falo com sinceridade completa, mas vós, mais
jovens do que eu, estais cheios de orgulho. Não é que minhas
palavras sejam as da idade avançada, mas vós vos burlais do que é
triste. Mas as inquietações se multiplicarão como chamas até que já
não tenham remédio.
O Céu mostra agora seu rancor. Não sejais jactanciosos aduladores,
afastando-vos completamente de toda conduta decorosa, até que os
homens bons se convertam em personificações da morte. O povo
agora suspira e geme e não nos atrevemos a examinar as causas do
seu mal-estar. A ruína e a desordem esgotam todos os meios de vida
e não nos mostramos bondosos para com as nossas multidões. O Céu
ilumina o povo como a flauta de bambu responde ao silvo terrestre.
Como as duas metades de um todo. Como ao tomardes uma coisa e a
levardes na mão, levais sem mais rodeios. A ilustração do povo é
muito fácil. Agora possui, por si mesmo, muitas perversidades. Não
exibi diante dele vossa própria perversidade.
Os homens bons são uma vala. As multidões são muralha. Os
grandes Estados são biombos. As grandes famílias, contrafortes. O
cuidado da virtude assegura a tranqüilidade. O círculo dos parentes
do rei é uma muralha fortificada. Não devemos deixar que seja
destruída a muralha fortificada. Não devemos deixar que o rei esteja
solitário e consumido pelo terror.
Venerai a cólera do Céu e não vos atreveis a divertir-vos por vosso
prazer. O Grande Céu é inteligente e vos acompanha por toda a 89
parte. O Grande Céu é clarividente e vos acompanha até nos vossos
extravios e nas vossas indulgências.

40. Sobre o labor agrícola, no Shijing


Alegres são estes campos extensos, uma décima parte de sua
produção é anualmente tomada como tributo. Com as velhas
provisões alimento os agricultores. Desde os tempos de outrora
temos tido anos bons e agora vou-me para as terras do sul onde uns
extirpam as ervas daninhas e outros juntam a terra em torno das
raízes. O milho parece exuberante e numa ampla clareira reúno e
estimulo os homens que mais prometem.
Com meus vasos cheios de brilhante milho e meus puros carneiros
vitimários, sacrificamos no altar dos espíritos da terra e nos altares
dos espíritos das quatro regiões. O estado dos meus campos em tão
boas condições, é o que enche de alegria os lavradores. Tocando os
alaúdes e fazendo ressoar os tambores invocaremos o Pai da
Agricultura e lhe imploraremos uma chuva suave, para aumentar o
produto de nossas colheitas e tornar felizes meus homens e suas
mulheres.
O longínquo descendente chega quando suas esposas e filhos levam
o alimento aos que trabalham nas terras do sul. O inspetor dos
campos também chega e está alegre. Toma o alimento à esquerda e à
direita e prova-o para ver se é ou não é bom. O cereal está bem
cultivado nos campos. Será bom e abundante. O longínquo
descendente mostra-se satisfeito e estimula os lavradores a que se
mostrem diligentes.
As colheitas do longínquo descendente parecem altas como tetos de
colmo e altas como a coberta de uma carruagem. Empilham-se 90
formando ilhas e montículos. Serão necessários milhares de celeiros,
centenas de carros. O milho, o arroz e o painço provocarão a alegria
dos agricultores e estes dirão: ―Quiçá seja recompensado com uma
grande felicidade, milhares de anos, vida sem fim!‖

41. Outras gentes, no Zhongyong de Confúcio e Zisi


Disse o Mestre: ‗Todos os homens dizem: ―Somos sábios‖, mas se
são empurrados e aprisionados numa rede, armadilha ou laço, não
sabem como livrar-se. Todos os homens dizem: ―Somos sábios‖ mas
se lhes acontece escolherem o caminho do Meio não são capazes de
aí permanecer nem por um mês. Zi lu perguntou sobre a energia.
Disse o Mestre: ―Mencionas a energia do Sul, a energia do Norte ou
aquela que tu mesmo poderias cultivar?‖.
―Mostrar indulgência e doçura ao ensinar aos demais e não se vingar
de uma conduta injustificada: esta é a energia das regiões
meridionais, e o homem bom procura estudá-la. Estar sob o peso das
armas e encontrar a morte sem lamentos: esta é a energia das
regiões do Norte, e o homem forte a estuda. Mas o homem superior
cultiva uma harmonia amistosa sem ser débil. Como é firme, na sua
energia! Permanece erguido, ao centro, sem se inclinar para um nem
outro lado! Como é firme, na sua energia! Quando no governo do seu
país prevalecem os bons príncipes, não deixa de ser aquilo que era
em seu refúgio. Quando prevalecem os maus príncipes no país,
mantêm sem desfalecimentos seu caminho até a morte. Como é
firme, em sua energia!‖

42. Os deveres de obrigação universal, no Zhongyong


Os deveres de obrigação universal são cinco e são três as virtudes 91
com as quais são eles praticados. Os deveres são os que existem
entre o soberano e o ministro, entre pai e filho, entre esposo e
esposa, entre irmão maior e irmão menor e os que correspondem ao
trato entre amigos. Esses cinco são deveres de obrigação universal. O
conhecimento, a magnanimidade e a energia são as três virtudes
universalmente obrigatórias. E o meio pelo qual põem os deveres em
prática é a simplicidade.
Alguns nascem com o conhecimento desses deveres. Alguns o
conhecem através do estudo. Alguns adquirem esse conhecimento
depois de um penoso sentimento de sua ignorância. Mas, uma vez
possuído o conhecimento, o resultado é o mesmo. Alguns o praticam
com naturalidade. Outros atraídos pelos seus benefícios. Outros,
através de esforços enérgicos. Mas, uma vez praticados, o resultado é
o mesmo‘‖.
Disse o Mestre: ―Ser amante do saber é estar próximo do
conhecimento. Agir com energia é estar próximo da
magnanimidade. Possuir o sentimento da vergonha é estar próximo
da energia‖.
Aquele que conhece essas três coisas sabe como cultivar o caráter.
Sabendo como cultivar o caráter, sabe como governar os homens.
Sabendo como governar os homens, sabe como governar o reino
com todos os seus Estados e famílias.‖

43. A Visão da civilização em Zhuangzi


Os cavalos têm cascos para carregá-los por sobre as geadas e as
neves e pêlo para protegê-los do vento e do frio. Comem relva e
bebem água e retesando as caudas, galopam. Tal é a natureza
verdadeira dos cavalos. Salões cerimoniosos e grandes mansões não 92
são para eles.
Um dia Polo (famoso treinador de cavalos) apareceu dizendo - "Sei
cuidar muito bem de cavalos". Assim escovou-lhes o pêlo e os
tosquiou, aparou-lhes os cascos e os marcou. Pôs-lhes cabrestos
pelos pescoços e grilhões em suas pernas e numerou-os, segundo os
estábulos. O resultado foi que, em cada grupo de dez, dois ou três
morreram. Depois, fê-los passar fome e sede, fê-los trotar e galopar e
ensinou-os a correr em formação com a infelicidade de ostentar
bridões com borlas na testa e recear o chicote com nós por trás, até
que mais de metade morreu.
O oleiro diz "Sei trabalhar bem com o barro. Se o quero redondo, uso
compasso; se quero retangular uso o esquadro". O carpinteiro diz -
"Sei trabalhar bem a madeira. Se a quero em curva, uso o arco; se em
linha reta, uso a régua". Mas como é que podemos pensar que a
natureza do barro e da madeira desejam a aplicação do compasso e
do esquadro, do arco e da régua? Não obstante, durante muitos anos
Polo foi exaltado por sua perícia em treinar cavalos, e oleiros e
carpinteiros por sua habilidade com o barro e a madeira. Os que
dirigem (governo) os negócios do império cometem o mesmo erro.
Penso que aquele que sabe como governar o império não deve fazê-
lo. Porque o povo tem certos instintos naturais - tecem as roupas e se
vestem, lavram os campos e se alimentam. Esse é o instinto comum
do qual todos têm sua parte. Tal instinto pode ser chamado "no Céu
nascido". Assim, nos dias da natureza perfeita, os homens eram
calmos nos movimentos e serenos no olhar. Naquele tempo não
havia caminhos nas montanhas, nem botes ou pontes sobre as
águas. Todas as coisas produziam-se naturalmente. Os pássaros e as
feras se multiplicavam; as árvores e os arbustos medravam. Dessa 93
sorte, acontecia que as aves e as feras podiam ser levadas pela mão e
podia-se subir e espiar para dentro do ninho da pêga. Pois nos dias
da natureza perfeita, o homem vivia junto com as aves e as feras e
não havia distinção de espécie entre eles. Quem pode saber as
distinções entre os gentis homens e os homens do povo? Sendo
todos igualmente sem desejos, permaneciam num estado de
integridade natural. Nesse estado de integridade natural, o povo não
perdia sua natureza (original).
E depois, quando apareceram os Sábios, rastejando por caridade e
mancando com o dever, a dúvida e a confusão entraram no espírito
dos homens. Eles disseram que era preciso alegrá-los por meio da
música e criaram as distinções por meio de cerimônias, e o império
dividiu-se contra si mesmo. Sem cortar a madeira bruta, quem faria
os navios de sacrifício? Se o jade branco não fosse cortado, quem
poderia fazer as insígnias reais da corte? Não sendo destruídos Dao e
a virtude, que utilidade teriam a caridade e o dever? Se não se
perdessem os instintos naturais dos homens, que necessidade
haveria de música e cerimônias? Se as cores não se confundissem,
quem precisaria de decorações? Se as cinco notas não se
confundissem, quem adotaria os seis diapasões? A destruição da
integridade natural das coisas para a produção de artigos de várias
espécies - eis a falta do artífice. A destruição de dao e da virtude a
fim de introduzir a caridade e o dever - eis o erro dos Sábios. Os
cavalos vivem em terra seca, comem relva e bebem água. Quando
lhes agrada, esfregam os pescoços uns nos outros. Quando se
encolerizam, viram-se e dão com os cascos uns nos outros. Até aí são
apenas levados por seus instintos naturais. Porém, com bridão e
freio, com uma placa de metal de feitio de lua sobre suas testas, 94
aprendem a lançar olhares maldosos, a virar as cabeças para morder,
a esbarrar no outro animal da parelha, a tomar o freio nos dentes ou
fugir com a cabeça ao bridão. Desse modo, ficam com mentalidade e
gestos iguais aos dos ladrões. Eis a falta de Polo.
Nos dias de Hexu os homens nada faziam de particular em seus lares
e saiam a passeios sem destino. Tendo alimentos, regozijavam-se;
dando pancadinhas na barriga andavam de um lado para outro. As
capacidades naturais desses homens os levavam até aí. Os Sábios
vieram depois e os fizeram curvar-se e abaixar-se com cerimônias e
música, a fim de regular as formas externas de trato social e
ostentaram a caridade e o dever diante deles com o fito de
conservar-lhes os espíritos submissos. Depois o povo começou a
trabalhar e desenvolveu gosto pela ciência, e começou a lutar entre si
na ambição do lucro, para a qual não há fim. Eis o erro dos Sábios.
44. O ciclo da vida humana no Neijing
O imperador perguntou:
— Quando as pessoas envelhecem, não podem procriar filhos. É por
terem exaurido a sua força na depravação ou por sorte natural?
Ch‘i Po respondeu:
— Quando uma menina tem sete anos as emanações dos seus rins
tornam-se abundantes, começa a mudar os dentes e o cabelo fica
mais comprido. Quando perfaz o décimo - quarto ano começa a
menstruar, pode engravidar e o movimento do pulso da grande
artéria é forte. A menstruação ocorre em períodos regulares, e assim
a jovem pode dar à luz uma criança.
―Quando a mulher atinge a idade de vinte e um anos, as emanações
dos seus rins são regulares, o último dente saiu e está
completamente desenvolvida. Quando a mulher atinge a idade de 95
vinte e oito anos, os seus músculos e ossos são fortes, o seu cabelo
atingiu o comprimento máximo e o seu corpo está vigoroso e
fecundo‖.
―Quando a mulher atinge a idade de trinta e cinco anos, o pulso que
indica a região da ‗Luz Solar‘ deteriora-se, o rosto começa a enrugar-
se e o cabelo a cair. Quando atinge a idade de quarenta e dois anos, o
pulso das três regiões do Yang deteriora-se na parte superior do
corpo, o rosto tem rugas e o cabelo começa a embranquecer‖.
―Quando atinge a idade de quarenta e nove anos, já não pode
engravidar e a circulação do pulso da grande artéria diminuiu. A
menstruação acaba, as portas da menstruação deixam de estar
abertas; o corpo deteriora-se e a mulher deixa de poder gerar filhos‖.
―Quando um rapaz tem oito anos, as emanações dos seus testículos
(rins) estão completamente desenvolvidas; o cabelo cresce mais e
começa a mudar os dentes. Quando tem dezesseis anos, as
emanações dos seus testículos tornam-se abundantes e começa a
segregar sêmen. Tem uma abundância de sêmen que procura
expelir, e, se nessa altura o elemento masculino e o elemento
feminino se unem em harmonia, pode ser concebida uma criança‖.
―Na idade de vinte e quatro anos, as emanações dos testículos são
regulares, músculos e ossos estão firmes e fortes, nasceu o último
dente e o homem atingiu a altura máxima. Aos trinta e dois anos,
músculos e ossos estão no apogeu, a carne é saudável e o homem é
robusto e fecundo‖.
―Na idade de quarenta anos, as emanações dos testículos diminuem,
o cabelo começa a cair e os dentes a apodrecer. Aos quarenta e oito
anos, o vigor masculino está reduzido ou esgotado, aparecem rugas
no rosto e o cabelo das têmporas embranquece. Aos cinqüenta e seis 96
anos, a força do fígado deteriora-se, os músculos deixam de
funcionar devidamente, a secreção de sêmen esgota-se, a vitalidade
diminui, os testículos deterioram-se e a força física do homem chega
ao fim. Aos sessenta e quatro anos, perde os dentes e o cabelo‖.
―Os rins do homem regulam a água que recebe e armazena a
secreção das cinco vísceras e dos seis intestinos. Quando as vísceras
estão abundantemente cheias, encontram-se aptas a segregar; mas
quando, neste estágio, as cinco vísceras estão secas, os músculos e os
ossos declinam, as secreções reprodutoras exaurem-se e, por isso, o
cabelo do homem encanece nas fontes, o corpo torna-se-lhe pesado,
a postura deixa de ser ereta e ele se torna incapaz de procriar.‖
O imperador perguntou:
— Mas há homens que, apesar de velhos em anos, geram filhos.
Como é isso possível?
Ch‘i Po respondeu:
— Trata-se de homens cujo limite natural de idade é mais elevado. O
vigor do seu pulso permanece ativo e há um excedente de secreção
dos seus testículos. No entanto, se tiverem filhos, os varões não
excederão os sessenta e quatro anos, e as filhas não ultrapassarão os
quarenta e nove, pois nessa altura a essência do Céu e da Terra
estará esgotada.
O imperador perguntou:
— Os que seguem o Dao, o Caminho Certo e atingem assim a idade
de cerca de cem anos, podem gerar filhos?
Ch‘i Po respondeu:
— Os que seguem o Dao, o Caminho Certo, podem escapar à velhice
e conservar o corpo em perfeitas condições. Embora velhos em anos,
continuam capazes de gerar filhos. 97
Huang Ti disse:
— Ouvi dizer que em tempos antigos houve os chamados Homens
Espirituais, que dominaram o Universo e controlaram o Yin e o
Yang. Respiravam a essência da vida, eram independentes por
preservarem o espírito e os seus músculos e a sua carne
permaneciam imutáveis. Podiam, portanto, gozar uma longa vida,
pois não há fim para o Céu e a Terra. Tudo isso resultava da sua vida
de harmonia com o Dao, o Caminho Certo.
―Nos tempos medievos existiram os Sapientes, que preservavam a
virtude e defendiam (infalivelmente) o Dao, o Caminho Certo.
Viviam de acordo com o Yin e o Yang e em harmonia com as quatro
estações. Afastavam -se deste mundo e renunciavam à vida
mundana, poupavam as energias e preservavam o espírito intacto.
Viajavam por todo o Universo e eram capazes de ver e ouvir para
além dos oito espaços distantes. Graças a tudo isso, aumentavam e
fortaleciam a sua vida e, por fim, atingiam o estágio do Homem
Espiritual‖.
―Sucederam-lhes os Sábios, que alcançaram a harmonia com o Céu e
a Terra e respeitaram estritamente as leis dos oito ventos. Eram
capazes de conciliar os seus desejos com os assuntos mundanos, e o
seu coração não conhecia o ódio nem a cólera. Não desejavam
separar as suas atividades das atividades do Mundo e conseguiam
ser indiferentes ao hábito. Não forçavam excessivamente o corpo no
trabalho físico nem a mente em meditações extenuantes. Não se
preocupavam com coisa alguma, consideravam fundamentais a
felicidade e a paz interiores e a satisfação a mais elevada das
realizações. Nada podia molestar-lhes o corpo nem malbaratar-lhes
as faculdades mentais. Assim, conseguiam chegar à idade de cem 98
anos ou mais‖.
―Sucederam-lhes os Homens de Excelente Virtude, que obedeceram
às regras do Universo e imitaram o Sol e a Lua, além de descobrirem
a disposição das estrelas. Podiam prever o funcionamento do Yin e
do Yang e obedecer-lhe, e aprenderam a distinguir as quatro
estações. Respeitaram os tempos antigos e tentaram manter-se em
harmonia com o Dao. Fazendo-o, aumentaram a duração da sua
vida, até uma idade avançada.‖

45. Queixa e apelo de Zhuang Qiang contra o mau trato que


recebeu do esposo, no Shijing (tratado dos Poemas)
Ó Sol, ó Lua, que iluminais esta baixa terra! Aqui está o que não me
trata de acordo com a antiga lei. Como pode ter a consciência
tranqüila? Será que não me quer ver?
Ó Sol, ó Lua que dais sombra a esta baixa terra! Aqui está o homem
que não me quer dar sua amizade. Como pode ter tranqüila a
consciência? Será que não me quer corresponder?
Ó Sol, ó Lua, que vindes do Oriente! Ó pai, ó mãe! Para nada serviu o
me haverdes criado. Como pode ter tranqüila a consciência? Será
que não me quer corresponder, contra toda razão?

46. Contra o Álcool e a Embriaguez, no Shujing (tratado


dos livros)
O rei fala do seguinte modo: ―Fazei conhecer claramente minhas
grandes ordens no país de Mei. Quando vosso venerável pai, o rei
Wen, lançou as bases de nosso reino na região ocidental, fez
declarações e admoestações aos príncipes das diversas regiões e a
todos os altos funcionários, com seus ajudantes e os diretores dos 99
negócios, dizendo dia e noite: ―Devem ser empregados alcoóis nos
sacrifícios‖. Quando o Céu outorgou seu decreto favorecedor e
assentou as bases da eminência do nosso povo, utilizavam-se as
bebidas espirituosas unicamente nos grandes sacrifícios. Quando o
Céu envia seus terrores e nosso povo se desorganiza
consideravelmente com eles e perde sua virtude, pode-se atribuir
invariavelmente ao seu abuso, de bebidas. Mais ainda, a ruína dos
Estados pequenos e grandes, por esses terrores é invariavelmente
motivada por sua culpa no uso de bebidas.
―O rei Wen admoestou e instruiu os jovens nobres que
desempenhavam funções administrativas ou qualquer emprego para
que não utilizassem ordinariamente as bebidas espirituosas e em
todos os Estados exigiu que esses funcionários não bebessem a não
ser por ocasião dos sacrifícios, e que então predominasse a virtude
de modo a que não pudesse haver embriaguez‖. Disse: ―Ensine, meu
povo, aos jovens, que unicamente devem amar os produtos da terra,
pois assim serão bons seus corações. Ouçam os jovens atentamente
as constantes recomendações de seus pais e contemplem todas as
ações virtuosas, sejam estas grandes ou pequenas, a mesma luz, com
atenção vigilante. Tu, povo da terra de Mei, se podes empregar teus
membros, cultivando amplamente tuas lavouras e mostrando-te
ativo no serviço de teus pais e irmãos mais velhos; e se com teus
carros e bois transitas diligentemente até uma distância que te
permita atender filialmente a teus pais, então teus pais serão felizes
e poderás preparar clara e fortemente tuas bebidas espirituosas e
utilizá-las. Ouvi constantemente minhas instruções, todos vós, meus
altos funcionários e chefes de seção, todos vós, meus nobres
principais; quando houverdes cumprido amplamente o vosso dever 100
na atenção de vossos maiores e no serviço de vosso governante,
podereis comer e beber livremente até saciar-vos. E para falar de
coisas mais importantes: quando puderdes manter constantemente
um exame vigilante de vós mesmos e vossa conduta esteja de acordo
com a virtude correta, então podereis apresentar as oferendas do
sacrifício e ao mesmo tempo entregar-vos às festividades. Nesse caso
sereis verdadeiramente ministros que prestais o devido serviço ao
vosso rei o Céu aprovará igualmente vossa grande virtude, de modo
que nunca sereis esquecidos na Casa Real‖.

47. Contra o Luxo, no Shujing


Disse o duque de Zhou: ―Oh! o homem superior baseia-se nisto: não
se entregar ao ócio luxurioso. Antes de mais nada, compreende que o
penoso trabalho de semear e colher leva à fartura, assim como
compreende que o povo humilde depende do trabalho para sua
subsistência. Observou entre os humildes que quando os pais
trabalharam diligentemente na semeadura e na colheita, seus filhos
não compreendem com freqüência esse penoso trabalho e se
entregam ao ócio e à vagabundagem aldeã e se tornam
completamente desorganizados. Ou, quando assim não agem,
desprezam seus pais, dizendo: ―Estes velhos ouviram e nada sabem‖.
O duque de Zhou disse: ―Oh! Ouvi que noutro tempo Kung Zung, um
dos reis de Yin, era sério, humilde, reverente e timoratamente
prudente. Conformava-se reverentemente aos decretos do Céu e
abrigava uma reverente apreensão no governo do povo, sem se
atrever a abandonar-se ao ócio luxurioso. Assim desfrutou o trono
durante setenta e cinco anos. Se passarmos à época de Zhou Zung,
este trabalhou a princípio fora da Corte, entre as mais humildes 101
criaturas. Quando subiu ao trono preferia não falar mas quando
falava suas palavras eram cheias de harmoniosa sabedoria. Não se
atreveu a entregar-se a um ócio inútil, presidiu admirável e
tranqüilamente as regiões de Yin, até que em todas elas pequenas e
grandes, não houve um só murmúrio adverso. Assim desfrutou o
trono durante cinqüenta e nove anos. No caso de Zuxia, este se
negou a ser rei injustamente e foi, a princípio, um dos mais humildes
súditos. Quando subiu ao trono, sabia de que podia depender o povo
de seu apoio e foi capaz de exercer uma bondade protetora para com
as massas e não se atreveu a tratar depreciativamente os viúvos e
viúvas. Assim desfrutou o trono durante trinta e três anos. Os reis
que vieram depois gozaram a ociosidade desde o nascimento.
Desfrutando a ociosidade desde o nascimento não conhecia o penoso
trabalho de semear e colher e não haviam ouvido falar do árduo
labor da gente humilde. Não aspiravam outra coisa senão um prazer
excessivo e por isso nenhum deles viveu muito tempo. Reinaram
durante dez anos, durante sete ou oito, cinco ou seis, ou talvez
unicamente durante três ou quatro anos".

48. Sociedade e Educação, no Liji (Manual dos Rituais)


Confúcio disse: Assim que entro num país, posso dizer facilmente o
seu tipo de cultura. Quando o povo é gentil e bom e simples de
coração, isto se demonstra pelo ensino da poesia. Quando o povo é
esclarecido e cioso de seu passado, isto se demonstra pelo ensino da
história. Quando o povo é generoso e disposto ao bem, isto se
demonstra pelo ensino da música. Quando o povo é quieto e
pensativo, com agudo poder de observação, isto se demonstra pelo
ensino da filosofia das mutações (I Ching, ou Livro das Mutações). 102
Quando o povo é humilde e respeitoso, sóbrio de costumes, isto se
demonstra pelo ensino da li (princípio da ordem social). Quando o
povo é culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, isto
se demonstra pelo ensino da prosa (Chunqiu, ou Livro das
Primaveras e dos Outonos). O perigo do ensino da poesia é que o
povo continua ignorante ou demasiado simplório; o perigo do ensino
da história é que o povo chegue a imbuir-se de falsas lendas e
narrativas; o perigo do ensino da música é que o povo se se tornou
extravagante; o perigo do ensino da filosofia é que o povo fique
desnaturado; o perigo do ensino da li é que os rituais se tornem
muito afetados; e o perigo do ensino do ―Livro das Primaveras e
Outonos‖ é que o povo se deixe contaminar pela confusão moral
dominante.
Se um homem é gentil e bom e simples, mas não ignorante, decerto
será profundo no estudo da poesia; se um homem é esclarecido e
cioso do seu passado, mas não imbuído de falsas lendas e narrativas,
decerto será profundo no estudo da história; se um homem é
generoso e disposto ao bem, mas não extravagante em seus hábitos
pessoais, decerto será profundo no estudo da música; se um homem
é quieto e pensativo, com agudo poder de observação, mas não
desnaturado, decerto será profundo no estudo da filosofia; se um
homem é humilde e respeitoso e sóbrio em seus hábitos, mas não
afetado nos rituais, decerto será profundo no estudo da li; e se um
homem é culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem,
mas não contaminado pela confusão moral dominante, decerto será
profundo no estudo do Livro das primaveras e Outonos‖.

49. Como surgiu Li (a cultura) no Liji 103


No começo, li (civilização) surgiu com a comida e bebida. O povo
assava milho e carne de porco, cortados à mão, em lascas de pedra
aquecidas. Cavavam buracos no chão, à maneira de vasilhames, e
bebiam diretamente nas conchas das mãos. Modelavam em barro
seus tambores e as baquetas, materiais esses que parece terem-se
provado à altura de seus cultos aos espíritos. Quando morria
alguém, os parentes subiam ao telhado e gritavam bem alto, ao
espírito: "Ahoooooo! Fulano, quereis fazer o obséquio de voltar ao
vosso corpo?" (Se o espírito não voltava, e a pessoa estava realmente
morta) então assavam arroz cru e carne assada para oferendas,
levantavam a cabeça para o céu "a fim de ver longe" (wang) o
espírito e enterravam o cadáver. O elemento material descia então (à
terra) e o elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos
eram enterrados com a cabeça na direção norte, e os vivos tinham
suas casas com o frontispício voltado para o sul. Tais eram os
costumes primitivos.
Antigamente os governantes não possuíam casas; moravam em
grutas escavadas ou em abrigos de madeira empilhada, no inverno, e
em ninhos feitos com ramos secos (na copa de árvores) durante o
verão. Não conheciam os usos do fogo; comiam frutos e a carne de
aves e animais, bebendo-lhes o sangue. Não tinham sedas nem
outros tecidos, vestiam-se com penas e peles de animais. Mais tarde
vieram os Sábios, que lhes ensinaram a utilizar o fogo e a fundir
metais em moldes de bambu e a modelar o barro em vasilhas. Então
construíram galpões e casas com portas e janelas, e passaram a
chamuscar e fumegar e cozer e assar a carne em espetos, e
fabricaram o vinho e o vinagre. Começaram também a usar tecidos
de fibras e sedas, preparando as vestes para uso dos vivos e 104
oferendas aos mortos e cultos aos espíritos e a Deus. Tais práticas
foram também herdadas dos primórdios. Por isso, guardava-se o
vinho escuro no aposento interior, o vinho branco junto à porta do
sul, o vinho tinto no vestíbulo e o vinho mosto do lado de fora. As
oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé redondo e o
vaso quadrangular postos em ordem, e os instrumentos de música -
o chin, o sebo a flauta, o ching (pedra musical suspensa por um fio e
batida como gongo), os guizos e tambores, tudo nos seus lugares, e a
oração do sacrifício aos mortos e a de resposta dos mortos eram
cuidadosamente elaboradas e lidas a fim de que os espíritos do céu e
os dos ancestrais pudessem baixar ao lugar do culto. Todas essas
práticas tinham o propósito de manter a devida distinção entre
governantes e governados, preservar o amor entre pais e filhos,
incutir a gentileza entre os irmãos, regular as relações entre
superiores e subalternos, e estabelecer de parte a parte as condições
de convívio entre marido e mulher, para que sobre todos pairasse a
bênção do Céu. Preparavam-se então as lamentações do sacrifício. O
vinho negro ou escuro era empregado nas libações, e o sangue e o
pêlo dos animais era usado nas oferendas, e a carne crua colocava-se
num vaso quadrangular. Também se oferecia carne assada; abria-se
uma esteira no chão e cobriam-se os vasos com uma peça de tecido
rústico, e as indumentárias que se vestiam para a cerimônia eram de
seda. Os diversos vinhos, li e chien, carnes assadas e de fumeiro,
também se usavam nas oferendas. O soberano e a rainha procediam
ao oferecimento alternadamente, a fim de que os bons espíritos
pudessem baixar e eles se integrassem no mundo oculto. Após os
sacrifícios, propiciava-se então uma festa aos hóspedes, dividindo os
cães e porcos e as reses e ovelhas da oferenda e distribuindo-os em 105
vasilhames diversos. A oração aos mortos proclamava a gratidão e
lealdade dos viventes, e a resposta dos mortos sugeria a sua contínua
afeição aos vivos. Tal era o grandioso e abençoado sentido da li‖.

50. O papel do indivíduo na estruturação da sociedade, no


Daxue (Grande Estudo)
As coisas têm suas raízes e seus ramos. Os assuntos têm fim e
começo. Conhecer o que é primeiro e o que é último, levará ao que é
ensinado na Grande Estudo.
Os antigos, que desejavam dar exemplo da virtude ilustre em seu
reino, começaram por bem ordenar seus próprios Estados.
Desejando ordenar bem seus Estados ordenaram primeiro suas
famílias. Desejando ordenar suas famílias, cultivaram antes suas
pessoas. Desejando cultivar suas pessoas, primeiro corrigiram seus
corações. Desejando corrigir seus corações, primeiro trataram de ser
sinceros em seus pensamentos. Desejando ser sinceros em seus
pensamentos, primeiro ampliaram ao máximo o seu conhecimento.
Essa extensão do conhecimento baseia-se na investigação das coisas.
Uma vez investigadas as coisas, seu conhecimento tornou-se
completo. Sendo completo seu conhecimento, seus pensamentos
foram sinceros. Sinceros que foram seus pensamentos, seus corações
corrigiram-se. Corrigidos os corações, suas pessoas foram
cultivadas. Cultivadas que foram suas pessoas, ordenaram-se-lhes as
famílias. Ordenadas suas famílias, foram justamente ordenados seus
Estados. Justamente governados seus Estados, todo o reino viveu
tranqüilo e foi feliz.
Desde o Filho do Céu até a massa do povo, todos devem considerar o
cultivo da pessoa como a raiz de todas as outras coisas. 106
Quando a raiz é descuidada, não pode o que dela nasce ser bem
ordenado. Nunca se deu o caso daquilo que tem grande importância
ter sido cuidado levianamente, e, ao mesmo tempo, tenha sido
objeto de grandes cuidados aquilo que tem pouca importância
Deuses, Crenças e Encantamentos

Imersos em sua teologia, os indianos antigos legaram uma vasta


documentação sobre seus cultos religiosos, a partir dos quais
desenvolveram suas filosofias interpretativas. Já os mitos chineses
nos são mal conhecidos; eles vêm, em geral, de fontes bastante
posteriores, e o que temos em mãos é considerado, de certa forma, o
que restou de antigas tradições. Neste caso, a textualidade precisa,
em muito, do suporte arqueológico, que tem trazido a luz uma
reconstituição pontuada destes mitos. Esta parte, pois, é constituída,
principalmente, por textos indianos. O primeiro texto, do Rig veda,
nos conta como os deuses alcançaram a imortalidade; depois, do
Shataphata brahmana, temos o mito do dilúvio indiano, no qual 107
teria sobrevivido Manu, o suposto autor do Manavadharmashastra.
Seguem-se uma série de hinos dedicados as divindades védicas
indianas, tanto do Rig veda quanto do Sama veda, mostrando os
modos de invocação e nos dando algumas informações sobre a
cerimônia do soma, o suco sagrado alucinógeno que expandia a
consciência dos brâmanes arianos. Dois upanishads mostram a
evolução das especulações metafísicas sobre o criador – brahman –
apontando para a formação do henoteísmo clássico indiano, e no
seguir, uma série de encantamentos mostram-nos uma outra faceta
dos textos védicos: o Atharva veda, o mais tardio dos quatro vedas, é
um livro de magias, encantamentos mundanos e invocações
populares, adotado pela elite bramânica. Quanto à China, dois
relatos mitológicos recontados em coletâneas posteriores nos servem
de ilustração; um sobre Fuxi e Nugua, os dois patronos fundadores
da cultura chinesa, e outro sobre Huangdi, o primeiro grande
imperador mítico (o soberano amarelo), cujo nome foi empregado
pelo unificador da dinastia Qin no séc. -3. Três textos da
enciclopédia Shanhaijing – Tratado sobre as montanhas e os mares,
o primeiro texto de mitologia chinesa, da época Han (e negado
veementemente pelos historiadores da época como fonte fidedigna)
nos apresentam alguns mitos da literatura fantástica chinesa; para
completar, Zhuangzi explica em seu relato o que seria a vida ideal
dos tempos antigos, e como a perda deste mundo utópico gerou a
busca do Dao; a história de uma predição é contada no Shujing, em o
―cofre guarnecido de metal‖; um texto oracular do Yijing, o tratado
as mutações, nos é apresentado, com os comentários de Confúcio; no
Shijing, o tratado dos poemas, é feita uma invocação ao ancestral da
dinastia Shang, Tang; e no Liezi, narra-se uma antiga cura para 108
depressão.

51. A Morte e os Deuses no Rig Veda


O ano, sem qualquer dúvida, é o mesmo que a morte, pois o Pai
Tempo é aquele que, por meio do dia e da noite, destrói a vida dos
seres mortais, e então os mesmos morrem; portanto, o ano é o
mesmo que a morte, e quem souber que este ano é a morte não tem
sua vida destruída nesse ano, pelo dia e pela noite, antes da velhice,
atingindo toda a duração normal de vida. Sem dúvida ele é o
Terminador, pois é quem, pelo dia e pela noite, atinge o fim da vida
dos mortais, e então os mesmos morrem; portanto, ele é o
Terminador, e quem conhecer este ano, a morte, o Terminador, não
terá sua vida terminada nesse ano, pelo dia e pela noite, antes da
velhice, atingindo toda a duração normal de vida. Os deuses tinham
medo deste Prajapati, o ano, a morte, o Terminador, receando que
ele, pelo dia e pela noite, atingisse o final de suas vidas. Eles
executaram estes ritos sacrificais - o Agnihotra os sacrifícios da Lua
Nova e Lua Cheia, as oferendas das estações, o sacrifício de animais
e o sacrifício-Soma; fazendo essas oferendas eles não conseguiram a
imortalidade. Construíram também um altar de fogo, - dispondo
inúmeras pedras de encerramento, inúmeros tijolos de yaiushmati,
inúmeros tijolos de lokampritta, como alguns os dispõem até hoje,
dizendo: "Os deuses fizeram assim". Eles não conseguiram a
imortalidade. Continuaram a louvar e trabalhar, esforçando-se por
conquistar a imortalidade. Prajapati disse-lhes então: "Vós não
dispondes todas as minhas formas, mas fazeis-me ou grande demais,
ou deixais-me defeituoso; por isso vós não vos tomais imortais‖. Eles
disseram: "Dize-nos tu mesmo, então, de que modo podemos dispor 109
todas as tuas formas!" Ele respondeu: "Disponde trezentas e
sessenta pedras de encerramento, trezentos e sessenta tijolos de
yaiushmati e trinta e seis, outrossim; e de tijolos de lokamplita
disponde dez mil e oitocentos; e vós estareis dispondo todas as
minhas formas e vos tomareis imortais". E os deuses dispuseram
conforme dito, e daí em diante se tornaram imortais.
A morte disse aos deuses: "Certamente com isso todos os homens se
tornarão imortais, e que parte então será a minha?" Eles
responderam: "Doravante ninguém será imortal com o corpo;
somente quando tiveres tomado esse corpo como tua parte, aquele
que se deverá tornar imortal, seja pelo conhecimento ou pela obra
sagrada, se tomará imortal depois de separar-se do corpo". Ora,
quando eles disseram "seja pelo conhecimento ou pela obra
sagrada", é o altar de fogo que constitui o conhecimento e esse altar
é a obra sagrada. E aqueles que sabem isso, ou aqueles que fazem
essa obra sagrada, voltam a vida novamente quando morreram e,
voltando a vida, chegam a vida imortal. Mas os que não sabem isso,
ou não executam essa obra sagrada, voltam a vida novamente
quando morrem, e tornam-se o alimento da Morte repetidamente.

52. A Lenda Indiana Sobre o Dilúvio


Pela manhã trouxeram a Manu água para se lavar, assim como hoje
trazem água para lavar as mãos. Quando se lavava, um peixe veio ter
as suas mãos. O peixe lhe disse: "Ajuda-me, eu te salvarei!" Do que
me salvarás?' "Uma enchente varrera todas estas criaturas - isso te
salvarei!" "Como te devo ajudar?‖
O peixe lhe disse: "Enquanto somos pequenos, há grande destruição
para nós e um peixe devora o outro. Tu me manterás primeiro em 110
uma jarra. Quando eu crescer, tu cavarás um poço e me manterás
nele. Quando eu crescer mais, tu me levaras ao mar, pois estarei
então além da destruição".
O peixe logo se tornou grande, com o que disse: "Em tal e qual ano a
enchente virá. Tu ouvirás então o meu conselho, preparando um
navio; e quando a enchente chegar tu entrarás no navio e eu te
salvarei dela".
Depois de criado desse modo, ele o levou para o mar. E no mesmo
ano que o peixe dissera ele ouviu seu conselho, preparando um
navio; e quando a enchente chegou, ele entrou no navio. O peixe
então nadou para ele e a seu chifre ele atou a corda do navio,
passando assim rapidamente para outra montanha no norte.
Ele disse então: "Eu te salvei. Amarra o navio à uma arvore, mas não
deixa a água te levar, enquanto estiveres na montanha. A medida
que a água baixar, tu poderás descer gradualmente!" Assim fazendo,
ele desceu gradualmente e por isso aquela encosta da montanha ao
norte se chama "a descida de Manu!" A enchente então varreu todas
estas criaturas e somente Manu ficou aqui.

53. Hino à Indra, no Rig Veda


Indra, que aceitas nossos louvores, conduzam-te até aqui os teus
corcéis, a fim de beberes o suco do soma. Celebrem tua presença os
sacerdotes radiantes como o sol.
Conduzam Indra os seus corcéis a puxarem um carro leve e rápido,
quando estas sementes desfeitas em manteiga clarificada estiverem
sobre o altar.
Nas cerimônias matinais, invocamos Indra. Invocamo-lo, durante o
sacrifício. Convidamos Indra a beber o suco do soma. 111
Vem, Indra, presenciar nossos sacrifícios com teus cavalos de longas
crinas. Nós te invocamos, depois de bebermos a libação.
Aceita nossos louvores, vem aos nossos sacrifícios, para os quais
preparamos a libação. Bebe como um cervo sedento.
Derramamos o suco do soma sobre a erva sagrada. Bebe-o, Indra,
para seres mais vigoroso.
Que te seja agradável e aceito no coração o nosso canto. Bebe a
libação que derramamos.
A fim de beber o suco do soma, Indra, o destruidor dos inimigos,
acha-se presente em todas as cerimônias, em que se faz libação do
suco do soma.
Satakrata, realiza nossos desejos, dá-nos gado e cavalos, Nós te
louvamos com nossa profunda meditação.
54. Hino à Indra, Varuna e ao Suco sagrado, o Soma, no
Rig Veda
Busco a proteção dos senhores soberanos, lndra e Varuna. Que os
dois nos sejam favoráveis.
Protetores dos mortais, vós ambos estais dispostos a conceder o
amparo solicitado por um oficiante como eu.
Concedei-nos, lndra e Varuna, a riqueza que desejamos. Queremos
ter-vos sempre ao nosso lado.
Estão prontas as libações para os nossos atos piedosos e louvores
dos nossos sacerdotes puros. Assim, estejamos em companhia
daqueles que nos concedem alimentos.
Indra é mais generoso do que os outros deuses cujas generosidades
se contam aos milhares. Varuna deve ser louvado entre todos
aqueles dignos de elogios. 112
Graças à proteção de ambos, possuímos e guardamos riquezas,
vivendo na abundância.
Eu invoco os dois, Indra e Varuna. Façam-nos ambos vencedores
dos nossos inimigos.
Indra e Varuna, trazei-nos logo felicidade. Nossos espíritos são
dedicados.
Subam até vós os fervorosos louvores que vos dirigimos, Indra e
Varuna. Aceitando os nossos louvores, vós os fazeis preciosos.

55. Hino às diversas divindades, no Rig Veda


Despertem os Asvins, juntos para o sacrifício da manhã. Venham os
dois aqui beber o suco do soma.
Nós invocamos os dois Asvins, ambos divinos. Guiando bem o seu
carro celeste, eles alcançam o céu.
Asvins, animai a chama do sacrifício com o vosso chicote, umedecido
na escuma da boca dos vossos cavalos.
Não está longe de vós a morada de quem vos oferece o sacrifício.
Vinde em vosso carro.
Eu rogo a Savitri que me proteja com as suas mãos douradas. Ele
determinará o lugar daqueles que o adoram.
Glorificai Savitri, que não é amigo da água. Implorai sua proteção.
Desejamos celebrar o seu culto.
Invocamos Savitri, que ilumina a humanidade e concede a
opulência.
Sentai-vos, amigos. É justo louvarmos Savitri. Ele dá-nos riquezas.
Agni, traz-nos aqui as queridas esposas dos deuses e Tvastri, para
beberem o suco do soma.
Jovem Agni, traz aqui para proteger-nos as esposas dos deuses - 113
Hotras, Bharati, Vavatri e Dischana.
As deusas de asas perfeitas, protetoras da raça humana, concedam-
nos sua proteção e inteira felicidade.
Convido-vos a virem aqui, Indra, Varuna, Agni para a nossa
felicidade e para beberdes o suco do soma.
O vasto céu e a terra umedeçam com seu orvalho este sacrifício e nos
dêem alimentos.
Onde reina Gandarva, os sábios colhem pelas suas preces o leite do
céu e da terra.
Terra limpa de espinhos, estende-te ao longe, sê a nossa morada,
concede-nos grande felicidade.
Protejam-nos os deuses na terra de onde se levantou Visnú, animado
pelas nossas sete orações.
Visnú atravessou o mundo. Três vezes firmou o pé e o mundo inteiro
uniu-se no pó.
Protetor invencível, Visnú vigia dos deveres sagrados, deu três
passos e terminou seu caminho.
Vede as ações de Visnú, pelas quais o devoto cumpriu votos
piedosos. Ele é o digno amigo de Indra.
O sábio contempla sempre esta suprema parada de Visnú, assim
como o olhar percorre o céu.
O sábio, sempre vigilante e solícito, acende o fogo do sacrifício, e em
seus cânticos glorifica a suprema estação de Visnú.

56. Hino às diversas divindades, no Sama Veda


Namadeva - Nós nos refugiamos ao lado do rei Soma, Varuna, Agni,
Aditia, Visnú, Suria, Brahma e Vriaspati.
Os conquistadores da terra elevam-se do mundo inferior às altas 114
regiões do céu, tal como subiram ao paraíso os descendentes de
Angiras.
Nós te acendemos, Agni, a fim de nos concederes grandes riquezas.
Tu que fazes chover as bênçãos, aprova nossos manjares excelentes,
próprios para os sacrifícios, produto do Céu e da Terra.
Gritsamada - Tudo quanto dizemos é ex- pressão sincera do nosso
pensamento. Agni sabe onde se servem as ofertas dos sacrifícios.
Assim como o céu envolve o horizonte, assim Agni inspira os nossos
cânticos.
Paiú - Agni, destrói em toda parte o funesto esplendor dos nossos
inimigos. Destrói o poderio e a força dos gigantes Iatudanas.
Prascanva - Agni, prepara aqui um excelente sacrifício para os
Vasús, os Rudras, os Aditias, e para os outros deuses, descendentes
de Manu, para as divindades que trazem a chuva.
57. Os nomes de Indra, no Sama Veda
Canva - O estalido do chicote que eles empunham ouve-se até aqui
assim como também o ruído dos seus carros, pintados de muitas
cores.
Trisoca - Indra, que estás. bebendo o sumo da planta da lua, os teus
amigos aqui presentes olham-te com a afeição de um dono de
rebanho a olhar para o seu gado.
Vatsa - Todos os sacrificantes tratam de aclamar Indra e lhe rendem
homenagem, assim como os rios homenageiam o mar.
Cusidina - Pedimos aos deuses que façam cair a chuva, que nos
protejam, a fim de estarmos bem amparados.
Medatiti - Ó senhor do alimento, faz por mim, chantre no banquete
da planta da lua, o que fizeste por Cacsivan, o filho de Usija.
Sucacsa - Traz-me a ciência, matador de Vrita. Ouve-me, poderoso 115
Indra, possuidor de muitas excelentes qualidades.
Concede-nos, divino Savita, abundantes riquezas e muitos
descendentes. Afasta de nós o causador do fatal sono da morte.
Pragata - Onde quer que esteja residindo aquele que envia a chuva,
sempre jovem, que envolve tudo, invencível, é lá que o oficiante
executa o seu trabalho.
Vatsa - É lá, na região das nuvens, onde se juntam as grandes águas,
que o sábio Indra foi gerado pela inteligência. *
Irimiri - Elevai a voz para louvar Indra, o rei dos homens, digno de
todo louvor, distribuidor de dons, superior aos heróis.

*Segundo a cosmogonia vedantina, as três divindades supremas -


Brama, Visnú, Siva, - suscitam o nascimento de um ser divino,
participante da natureza daquelas três divindades. Denominam-nos
os hindus Senhor Isvara, não somente criador como também regente
da vida das formas e dos seres existentes em um universo planetário.
Essa divindade corresponderia ao Logos de Plotino, ao Demiurgo de
Platão e ao Deus criador de várias religiões.

58. A especulação sobre o Brahman no Isha Upanishad


No coração de todas as coisas, de tudo o que existe no Universo,
habita Deus. Somente ele é realidade. Portanto, renunciando às vãs
aparências, rejubilai-vos nele. Não cobiceis a riqueza de ninguém.
Bem pode ficar satisfeito de viver cem anos aquele que age sem
apego - que realiza seu trabalho com zelo, porém sem desejo, não
ansiando por seus frutos - ele, e somente ele.
Existem mundos sem sóis, cobertos pela escuridão. Para esses
mundos vão depois da morte os ignorantes, assassinos do Eu. 116
O Eu é um só. Sendo imóvel, ele se move mais rápido do que o
pensamento. Os sentidos não o alcançam, pois ele sempre vai
primeiro. Permanecendo imóvel, ultrapassa tudo o que corre. Sem o
Eu, não há vida.
Para o ignorante, o Eu parece mover-se - embora ele não se mova.
Ele está muito distante do ignorante - embora esteja próximo. Ele
está dentro de tudo, e está fora de tudo.
Aquele que vê todos os seres no Eu, e o Eu em todos os seres, não
odeia ninguém.
Para a alma iluminada, o Eu é tudo. Para aquele que vê harmonia em
todos os lugares, como pode haver ilusão ou pesar?
O Eu está em todos os lugares. Ele é brilhante, imaterial, sem mácula
de imperfeição, sem osso, sem carne, puro, intocado pelo mal.
Aquele que vê, Aquele que pensa, Aquele que está acima de tudo, o
Auto-Existente - ele é aquele que estabeleceu a ordem perfeita entre
objetos e seres desde o tempo que não tem princípio.
À escuridão estão destinados os que se dedicam apenas à vida no
mundo, e a uma escuridão ainda maior os que se entregam apenas à
meditação.
Viver somente no mundo leva a um resultado, meditar apenas leva a
outro. Assim falaram os sábios.
Aqueles que se dedicam tanto à vida no mundo como à meditação
superam a morte através da vida no mundo e atingem a imortalidade
através da meditação.
À escuridão estão destinados os que cultuam somente o corpo, e a
uma escuridão ainda maior os que veneram apenas o espírito.
Cultuar somente o corpo leva a um resultado, venerar apenas o
espírito leva a outro. Assim falaram os sábios. 117
Os que veneram tanto o corpo como o espírito, pelo corpo vencem a
morte, e pelo espírito atingem a imortalidade!
A face da verdade está oculta por vosso orbe dourado, ó Sol.
Removei-o, para que Eu, que sou dedicado à verdade, possa
contemplar a sua glória!
Ó vós que alimentais, o único que vê, o que tudo controla - Ó Sol que
ilumina, fonte de vida para todas as criaturas - retende a vossa luz,
reuni os vossos raios. Possa Eu contemplar através da vossa graça a
vossa forma mais abençoada. O Ser que aí habita - mesmo esse Ser
sou Eu.
Permiti que minha vida agora se una à vida que tudo permeia. As
cinzas são o fim do meu corpo. OM... Ó mente, lembrai-vos de
Brahman. Ó mente, lembrai-vos das vossas ações passadas.
Lembrai-vos de Brahman. Lembrai-vos das vossas ações passadas.
Ó deus Agni, levai-nos à felicidade. Vós conheceis nossas ações.
Preservai-nos da ilusória atração do pecado. A vós oferecemos
nossas saudações, uma e outra vez.

59. Quem é o criador? No Kena upanishad


Quem comanda a mente para que ela pense? Quem ordena que o
corpo viva? Quem faz a língua falar? Quem é o Ser radiante que
conduz o olho à forma e à cor, e o ouvido ao som?
O Eu é o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala da fala. Ele
também é o alento do alento, o olho do olho. Ao abandonarem a
falsa identificação do Eu com os sentidos e com a mente, e ao
saberem que o Eu é Brahman, os sábios, ao deixarem este mundo,
tornam-se imortais.
O olho não o vê, nem a língua o exprime, nem a mente o alcança. 118
Não o conhecemos e nem podemos ensiná-lo. Ele é diferente do
conhecido, e diferente do desconhecido. Foi o que ouvimos dos
sábios.
Aquilo que não pode ser expresso em palavras mas pelo qual a
língua fala - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é
adorado pelos homens.
Aquilo que não é compreendido pela mente, mas pelo qual a mente
compreende - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é
adorado pelos homens.
Aquilo que não é visto pelo olho, mas pelo qual o olho vê - sabei que
é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos homens.
Aquilo que não é ouvido pelo ouvido, mas pelo qual o ouvido ouve –
sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos
homens.
Aquilo que não é trazido pelo sopro vital, mas pelo qual o sopro vital
é trazido, sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado
pelos homens.
Se pensais que conheceis bem a verdade de Brahman, sabei que
conheceis pouco. O que pensais ser Brahman no vosso Eu, ou o que
pensais ser Brahman nos deuses - não é Brahman. Deveis, portanto,
aprender o que é realmente a verdade de Brahman.
Não posso dizer que conheço Brahman totalmente. Nem posso dizer
que não o conheço. Aquele dentre nós que melhor o conhece é quem
entende o espírito das palavras: "Eu nem sei que não o conheço".
Aquele que verdadeiramente conhece Brahman é quem sabe que ele
está além do conhecimento; aquele que pensa que sabe, não sabe. O
ignorante pensa que Brahman é conhecido, porém os sábios sabem
que ele está além do conhecimento. 119
Aquele que percebe a existência de Brahman por trás de todas as
atividades do seu ser - seja sensação, percepção ou pensamento -
somente ele obtém a imortalidade. Através do conhecimento de
Brahman, vem o poder. Através do conhecimento de Brahman,
revela-se a vitória sobre a morte.
Abençoado o homem que enquanto ainda vive percebe Brahman. O
homem que não o percebe sofre sua maior perda. Quando deixam
esta vida, os sábios, que perceberam Brahman como o Eu em todos
os seres, tomam-se imortais.
Em determinada ocasião, os deuses obtiveram uma vitória sobre os
demônios e, apesar de o terem feito apenas através do poder de
Brahman, ficaram extremamente vaidosos. Eles disseram a si
próprios: "Fomos nós que derrotamos os nossos inimigos, e a glória
é nossa."
Brahman percebeu a vaidade deles e apareceu diante deles. Porém
eles não o reconheceram.
Os outros deuses então disseram ao deus do fogo: "Fogo, descobri
para nós quem é esse misterioso espírito."
"Sim", disse o deus do fogo, e aproximou-se do espírito. O espírito
lhe disse:
"Quem sois vós?"
"Sou o deus do fogo. Aliás, sou muito conhecido."
"E que poder exerceis?"
"Posso queimar qualquer coisa que exista sobre a Terra."
"Queimai isto", disse o espírito, colocando palha à sua frente. O deus
do fogo caiu em cima da palha com toda a sua força, mas não pôde
consumi-Ia. Então voltou rapidamente para junto dos outros deuses
e disse: 120
"Não posso descobrir quem é esse misterioso espírito."
Os outros deuses disseram então ao deus do vento: "Vento, descobri
para nós quem é ele."
"Sim", disse o deus do vento, e aproximou-se do espírito. O espírito
lhe disse:
"Quem sois vós?"
"Sou o deus do vento. Aliás, sou muito conhecido. Vôo velozmente
através dos céus."
"E que poder exerceis?"
"Posso soprar para longe qualquer coisa que se encontre sobre a
Terra."
"Soprai isto para longe", disse o espírito, colocando palha diante
dele.
O deus do vento caiu em cima da palha com toda a sua força, porém
foi incapaz de movê-la. Então, voltou rapidamente para junto dos
outros deuses e disse:
"Não posso descobrir quem é esse misterioso espírito."
Os outros deuses disseram então a Indra, o maior deles todos: "Ó
respeitável, descobri para nós, nós vos suplicamos, quem é ele."
"Sim‖, disse Indra, e aproximou-se do espírito. Porém o espírito
desapareceu, e em seu lugar surgiu Uma, a Deusa-Mãe, bem-
adornada e de uma beleza extraordinária. Contemplando-a, Indra
perguntou:
"Quem era o espírito que apareceu para nós?"
"Aquele", respondeu Uma, "era Brahman. Foi através dele, e não de
vós mesmos, que obtivestes a vitória e a glória."
Desse modo, Indra, o deus do fogo e o deus do vento, reconheceram
Brahman. 121
O deus do fogo, o deus do vento e lndra - eles superaram os outros
deuses, pois chegaram mais perto de Brahman, e foram os primeiros
a reconhecê-lo.
Porém, dentre todos os deuses, lndra é supremo, pois ele foi dos três
o que chegou mais perto de Brahman, e foi o primeiro deles a
reconhecê-lo.
Essa é a verdade de Brahman com relação à Natureza: seja no clarão
do relâmpago, ou no piscar dos olhos, o poder que aparece é o poder
de Brahman.
Essa é a verdade de Brahman com relação ao homem: nos
movimentos da mente, o poder que aparece é o poder de Brahman.
Por esse motivo, um homem deveria meditar sobre Brahman de dia
e de noite.
Brahman é o adorável ser em todos os seres. Meditai sobre ele assim.
Aquele que medita desse modo sobre ele é respeitado por todos os
outros seres.

60. Prece recitada durante o preparo de um ungüento


preservativo de males e doenças, do Atharva Veda
Vem como protetor de vida! És o olho da montanha, foste concedido
por todos os deuses como escudo defensor da vida. És salvaguarda
para os homens, para as vacas, cavalos, corcéis.
És a salvaguarda que estrangula os feiticeiros. Ungüento, conheces
também a origem da imortalidade. És alimento vital, remédio para a
icterícia.
Ungüento, quando penetras no corpo, de um membro a outro
membro, de uma articulação a outra articulação, expulsas a tísica,
como se fosses um rei sentado entre adversários. 122
A maldição não atinge a pessoa que faz uso de ti, ungüento, nem a
magia, nem o sofrimento, nem a doença.
Mau conselho, mau sonho, ação má, mau coração, mau olhado,
protege-nos de tudo isso, ungüento.
Sabedor disso, direi a verdade, não a mentira, ungüento! Quero
ganhar um cavalo, uma vaca, e a tua própria vida, homem!
O ungüento possui três escravas: a febre, a inchação e a serpente. e.
teu pai, ungüento, a mais alta montanha, a montanha dos três
cumes, o Trikakud.
O ungüento nasceu na montanha das neves. Que ele estrangule
todos os feiticeiros e feiticeiras. Sejas oriundo do Trikakud ou te
chames ungüento do rio Iamuna, estes dois nomes são propícios e
por eles protege-nos, ungüento!
61. Para obter o amor de uma mulher (idem)
Deseja meu corpo, meus pés, meus olhos! Deseja minhas coxas!
Teus olhos, teus cabelos, amorosa, sofram de paixão por mim!
Faço que te agarres ao meu braço, apegando-te ao meu coração.
Estejas submissa à minha vontade e sob o meu domínio.
Vacas, mães da manteiga sagrada, cuidadosas dos vossos bezerros,
fazei que esta mulher me ame!
Como o cipó enrola-se na árvore, assim não te afastes de mim, sê
minha amante!
Como a águia ao levantar vôo toca no chão com as asas, assim eu
toco em teu coração. Sê minha amante e não te afastes de mim!
Como o sol envolve a Terra na mesma luz, assim eu envolvo o teu
coração. Sê minha amante e não te afastes de mim!
123
62. Hino às rãs, para que venham as chuvas (idem)
Elas estiveram escondidas o ano inteiro, como os brâmanes na
observância do voto. Agora, ao convite de Parjania, elas alteiam a
voz.
Quando foi molhada pelas águas do céu aquela que estava
ressequida como tripa seca de boi, propagou-se a cantoria das rãs,
como se fosse o mugido de vacas e bezerros.
No começo da época das chuvas, todas, satisfeita a sede, gritam:
Akhkhala! - e correm umas para as outras assim como os filhos
correm para os pais.
Embriagadas sob o aguaceiro, congratulam-se umas com as outras.
Pulando sob a chuva, a rã mosqueada canta com a loura. Se uma
repete as palavras da outra, como o aluno repete as do professor,
harmoniza-se o todo como o do vosso belo canto coral, às margens
de um lago.
Uma está mugindo como vaca, a outra balindo como cabra, esta é
mosqueada, aquela é loura. Têm o mesmo nome, mas são diferentes
na forma e modulam a voz de diferentes maneiras.
Brâmanes, que estais falando em tomo do lamaçal, como em festa
noturna do Soma, ó rãs, o que festejais agora é o primeiro dia do ano
das chuvas.
Brâmanes do soma, elas altearam a voz, no encantamento de cada
ano. Oficiantes suados no aquecimento da panela, as rãs estão
aparecendo, nenhuma fica no seu esconderijo.
Como se fossem homens, elas executam a divina cerimônia para o
ano dividido em doze partes. Elas respeitam as estações. Quando
vem a época das chuvas, não se aquecem os vasos do sacrifício.
Aquela que mugiu como vaca, a que baliu como cabra, a mosqueada, 124
a loura, trouxeram-nos donativos. Na hora de esmagarmos as raízes,
dêem-nos as rãs centenas de vacas, prolonguem a nossa vida!

63. Para achar-se um objeto perdido (idem)


Longe dos caminhos, longe do céu, longe da terra, nasceu Puschan,
Entre essas duas abençoadas regiões, ele vai e vem, ele que sabe de
tudo.
Puschan conhece todas as regiões celestes e conduz-nos pelo
caminho mais certo; benfeitor, ardente, patrono dos heróis,
onisciente, Proteja-nos, ó deus!
Ó Puschan, sob o teu patrocínio, estejamos isentos de danos. Aqui
estamos, nós que te louvamos.
Que Puschan nos estenda a mão do lado do Oriente. Que ele nos
traga aquilo que perdemos, Possamos achar o objeto perdido, sob o
seu patrocínio!

64. Para livrar alguém do vício do jogo (idem)


Estonteiam-me as nozes trêmulas da grande árvore vibhidaka, as
quais, trazidas pelos altos ventos, rolam com força na mesa.
Esposa fiel, não discutia nem se aborrecia comigo, era atenciosa para
com os meus amigos e também comigo. Eu abandonei-a pelo dado
fatal.
Odeia-o a sogra, rejeita-o a mulher. Implorando, não encontra
ninguém que tenha pena dele. O jogador é inútil como o cavalo velho
oferecido à venda.
Outros acariciam a mulher do jogador, cujos dados desperdiçam os
seus haveres. Dizem-lhe o pai, a mãe, os irmãos: "Não o
conhecemos, levem-no para a prisão". 125
"Se eu resolvo não jogar, meus amigos vão embora, abandonando-
me. Mas logo que os dados transmitem o seu chamado, vou ao seu
encontro como se fora um amante".
Trêmulo, o jogador entra na sala, perguntando a si mesmo: "Vou
ganhar?" Os dados anulam a sua esperança, dando ao adversário os
lances decisivos.
Em verdade, os dados têm pontas, ferem, derrubam, queimam,
consomem. Presentes de príncipe, untados de mel para o jogador,
frenéticos, eles recaem sobre o seu vencedor.
Os seus cento e cinqüenta companheiros, como o deus Savitri, jogam
com a verdade. Não receiam a raiva do poderoso. O próprio rei
respeita-os.
Rolam para baixo, saltam para cima. Não possuem mãos e no
entanto dominam aqueles que as têm.
Brasas divinas lançadas à mesa, por mais frios que estejam, os dados
incendeiam o teu coração.
Desprezada, a mulher do jogador atormenta-se e a mãe sofre pelo
filho, que ela não sabe onde está. Endividado, trêmulo, buscando
boa sorte, à noite, ele vai para a casa de outra pessoa.
Ele sente remorsos, o jogador, quando vê a esposa de um conhecido
em casa bem arrumada. Se, pela manhã, ele atrelou os cavalos
pretos, à tarde o pobre diabo vai cair no pátio.
Ao general do vosso grande exército, àquele que foi o primeiro rei do
vosso clã, eu mostro os dedos abertos, eu juro que não escondi
dinheiro atrás de mim.
Não jogues dados, cultiva o teu campo, alegra-te e aprecia o que
possuis. Trata dos teus bois, jogador, cuida da tua mulher! Assim
fala o nobre Savitri. 126
Faz um acordo conosco, se quiseres. Tem piedade, não atires sobre
nós, a tua cruel, audaciosa imprecação! Acalme-se a tua raiva, a tua
agressividade. Seja outra a vítima dos dados negros.

65. Fuxi e Nugua


No noroeste da China, a muitas milhas de distância existia um país
chamado Hua-Xu-Xi onde reinava a felicidade. Não havia ali
governo constituído e nem sequer a liderança de um chefe. Seu povo
não possuía ambições ou desejos, tampouco inclinações. Viviam em
estado natural e sua vida era longa. Percebiam através da neblina. O
trovão não os ensurdecia, não afundavam na água e não se
queimavam no fogo. Além disso deslocavam-se livremente pelo
espaço. Habitavam a terra em condição divina.
Vivia nesta terra uma bela moça enamorada da floresta e da
natureza. Certo dia, passeando em torno da lagoa encantada de
nome Trovão, cujo senhor era o deus do trovão, o qual se
apresentava com cabeça humana e corpo de dragão, deu-se um fato
muito estranho. Ao longo do passeio pela floresta intensamente
verde e plena de vibrações, localizou uma pegada gigantesca.
Extasiada tocou com o pé aquela profunda marca e, ao pisá-la, num
tempo mágico viu-se mãe de uma criança com a cabeça humana e o
corpo de serpente, que recebeu o nome de Fu-Xi.
Fu-Xi veio a ser o filho do deus do trovão com uma mulher do país
da felicidade terrestre. Na qualidade de semi-deus possuía livre
trânsito entre o céu e a terra, beneficiando largamente os homens.
Criou os oito trigramas, traços organizados significando: céu, terra,
água, fogo, montanha, trovão, vento e lagoa. Este sistema foi usado
para expressar o sentido de diversos elementos, vindo a constituir a 127
base da escrita.
Ensinou os povos a entrelaçar cordas para fazer redes, e assim
aprenderam a pescar. Obteve a ajuda de Gou-Mang, deus da
primavera, o qual mostrou como se apanhavam pássaros.
Fu-xi, mesmo não sendo o deus do fogo, conseguiu dominar o
relâmpago e o trovão, produzindo o fogo e obtendo assim alimentos
cozidos para o consumo.
Nü-Gua era uma deusa com cabeça de mulher e , corpo de serpente.
Possuía o poder de transformar-se de setenta maneiras diferentes
por dia. Solitária passeava pelos caminhos virgens do mundo,
envolvida pela beleza e encanto da paisagem. Contudo abrigava em
seu coração uma grande melancolia. Era o clamor de seu instinto
materno, trazendo-lhe uma sensação de infinita tristeza e frustração.
Em determinado momento, num ímpeto incontido, cavou barro do
chão e com ele moldou uma figura humana. Surpreendeu-se com
aquela pequena figura ganhando vida e movimento próprio,
pulando, cantando e indo-se embora, levada por sua própria
inquietação. Nü-Gua não coube em si de felicidade e com suas mãos
continuou criando as figuras dentro do mesmo espírito de
enlevamento até se cansar. Quando então tomou de um feixe de
vime, entumesceu-o com barro e vibrou-o com energia. Os pingos
caídos no chão milagrosamente se transformavam em seres
humanos e em pouco tempo o mundo estava repleto.
Os seres nobres foram os criados pela mão de Nü-Gua. Quanto aos
pobres, estes foram os lançados com o feixe de vime. Porém a
natureza mortal desses homens obrigava a deusa a repetir
constantemente o processo, tornando-o extremamente cansativo.
Decidiu-se então pelo acasalamento dos seres para, através desta 128
forma, se perpetuarem. Havendo estabelecido esta união, é chamada
pelos chineses a Deusa do Matrimônio. Nü-Gua é a primeira
mediadora entre homens e mulheres.

66. Huangdi, o deus do Meio


O centro do mundo era controlado pelo deus do meio. A área dessa
região era de 12 mil milhas quadradas. Inicialmente o deus do meio
era Huang-Di. Existia no entanto outro deus perverso, chamado Chi-
You que havia escapado dos céus e concentrado todo seu esforço em
criar a raça Miao. Deste feito maléfico resultou uma guerra na região
de Zhou-Lu, na China Central. Huang-Di conseguiu superar o
conflito, após o que deixou o posto de deus do meio para o deus do
norte, Zhuan-Xu.
A primeira atitude de Zhuan-Xu foi interromper o percurso livre
entre o céu e a terra. Os homens ficaram assim definitivamente
separados dos deuses. Os primeiros não podiam subir mas os
segundos ainda possuíam o poder para descer. Zhuan-Xu passou
então a dois deuses chamados Zhong e Li, a incumbência de realizar
este processo de obstrução das relações entre o céu e a terra. A
Zhong cabia a tarefa de controlar o céu e sua entrada. A Li cabia o
controle da terra. A perda da liberdade de acesso dos homens foi
contudo compensada pela volta da ordem ao universo.
O filho de Li chamava-se Ye. Sua forma era estranha. A cabeça
humana, não tinha braços e as duas pernas estavam na cabeça.
Habitava numa montanha localizada no extremo oeste. O nome
desta montanha era "Sol e Lua". Ye guardava o portão do céu, por
onde entravam somente o sol, a lua e as estrelas. Vigiava as entradas
e saídas e regulava os horários. 129
Os deuses não conviviam mais com os homens, tam- pouco o dia
com a noite. E assim retornou a ordem ao universo.
Zhuan-Xu ainda estabeleceu a superioridade do homem em relação
à mulher. Separou as funções dos sexos e proibiu os casamentos
entre irmãos. Além disso, foi o primeiro deus a instituir o rito
matrimonial.
Huang-Di morava no centro do céu. Seu auxiliar era o deus da terra.
Este segurava nas mãos um fio com o qual controlava toda a vida e
suas manifestações e media a justiça dos assuntos terrestres. Huang-
Di possuía quatro faces. Podia contemplar simultaneamente as
quatro direções. Controlava as relações entre os deuses. Huang-Di
era o deus dos deuses.
O deus da terra, seu auxiliar, era igualmente o deus das
manifestações elementares que habitavam o inferno. Por isso
Huang-Di também controlava o inferno através do ministério do
deus da terra.
Nas montanhas Kun-Lun havia um palácio luxuoso. Era o palácio de
Huang-Di na terra. A quatrocentas milhas deste, havia um jardim
denominado ―Jardim Flutuante", situado tão alto que dele era
possível passar-se ao céu. Huang-Di possuía ainda outro palácio no
município de Xin-An na província de Hé-Nan, chamado "Montanha
de Qing-Yao". Em cada um desses lugares havia um deus,
permanentemente alerta. O deus que vigiava o palácio situado na
montanha Kun-Lun, chamava-se Lu-Wu. Humano de rosto, corpo
de tigre com nove caudas.
Pelo jardim flutuante zelava o deus Zhao-Yíng. Sua cabeça era
humana, o corpo eqüino, a pele mosqueada e provido de duas asas.
O último deus cuidava da "'Montanha Qing-Yao" e seu nome era 130
Wu-Luo. Seu rosto era humano, o corpo de leopardo e portava dois
brincos nas orelhas que tiniam como jade. Nessas paragens existiam
plantas, insetos e outros animais de um exotismo singular. Entre
eles havia um mais enigmático ainda, chamado Shi-Rou, o que pode
ser traduzido por "carne visível". Era um ser pastoso que ao viver,
apresentava a forma de um pedaço de carne. Nada distinguia-se nele
a não ser dois olhos pequeninos. O sabor de sua carne era
ambrosíaco. Cortando qualquer parte dele, imediatamente se
regenerava, permanecendo sempre do mesmo tamanho.
Alimentavam-se dessa carne os viajantes e os anacoretas que viviam
nas montanhas.
Certa ocasião, Huang-Di apresentou-se em Han-Sha, ao leste da
montanha Kun-Lun. Na praia encontrou um animal chamado Bai-Ze
que falava a língua dos homens e sabia tudo que havia entre o céu e a
terra. Possuía grandes conhecimentos de teratologia, sendo um
narrador de maravilhas e prodígios sem fim. Conhecia os lagos e as
florestas. Huang-Di, sendo o controlador do universo, julgou de
suma importância a atividade deste animal e através de auxiliares
fez registrar e ilustrar tudo sobre o que discorria. Resultou dessas
narrativas um livro contendo 11 mil e 500 curiosidades.
Naquele tempo o magnífico Huang-Di reunia em si, as harmonias e
as monstruosidades. Viajava num carro luxuoso, decorado com
pedras preciosas, puxado por dois elefantes, tendo à sua retaguarda
seis dragões. Chi-You, com o poder de controlar os animais, corria
na frente para limpar o caminho. Seguiam-se os deuses do vento e
da chuva para limpar o pó. Ainda um robusto pássaro, chamado Bi-
Fang, voava embaixo do carro. O deus do vento tinha cabeça de
pássaro onde se salientavam dois cornos, corpo caprídeo, cauda 131
ofídica e pele de leopardo. O deus da chuva era ainda mais estranho.
De tão minúsculo, confundia-se com um bicho da seda.
Havia muitos deuses fantásticos no séqüito do carro de Huang-Di.
Em cima voava uma fênix e embaixo de tudo havia uma cobra
voadora. A magnificência desse cortejo aguçou a cobiça de Qu- You,
que se revoltou com o intuito de ocupar o lugar de Huang-Di. O que
resultou desta disputa será conhecido ao termo da história.
Huang-Di bondosamente modelou no mundo, carros, barcos,
espelhos, caldeirões com três pés e um recipiente para ferver água.
Também fez cruzamentos para obter mulas. Acrescentou a estes
feitos o jogo e em especial os jogos de bola, e não se esqueceu - e
aqui está a mais importante invenção - de projetar a bússola.
Os auxiliares de Huang-Di, potências demiúrgicas, continuaram a
criação cumprindo ordens divinas. Entre eles, resultaram os mais
importantes: Chang-Tie, criador das letras, Lei-Gong e Qi-Bo, que
registraram as doenças e os correspondentes medicamentos e Lei-
Zu, esposa de Huang-Di, que criou o bicho da seda e fabricou seda
para o tear.

67. O País dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das


Montanhas e dos Mares)
No decurso das suas viagens marítimas, Da Yu teve a oportunidade
de visitar uns países onde viviam os imortais.
Segundo uma lenda, para além do Mar do Norte, havia uma ilha
chamada Wu Ji (sem descendentes), os seus habitantes eram
imortais e sem descendentes. Eles moravam em grutas, nas
montanhas da ilha e comiam exclusivamente um tipo de peixe,
desconhecido presentemente, que se chamava "peixe voante". Como 132
os habitantes deste país eram assexuados, logicamente, não se
casavam nem constituíam famílias. Após terem vivido um certo
número de anos, os habitantes "morriam" temporariamente e,
embora fosse prática comum, os seus cadáveres eram enterrados
mas os seus corações continuavam a bater e os seus corpos não
apodreciam. Depois de um período de gestação, de cerca de 120
anos, os "mortos" ressuscitavam e continuavam vivendo e assim iam
vivendo e "morrendo" alternativamente; a população mantinha-se
constante e o país era extremamente próspero.
Para além do Mar do Sul, havia uma outra ilha semelhante à
primeira, chamada de A Xing, por todos os seus habitantes terem o
mesmo sobrenome de A. A cor da sua pele era preta, e, fisicamente,
eram bem constituídos, cheios de vigor e de juventude, e com o dom
de poderem viver eternamente, por se alimentarem exclusivamente
de frutos das árvores imortais e se refrescarem nas águas da Fonte
Vermelha. Graças às árvores imortais e à Fonte Vermelha, os
animais que viviam neste país eram, igualmente, imortais, existiam
morcegos com mais de mil anos, sapos com dez mil e muitos outros.
Para além do Mar do Oeste, existiam, ainda, dois países dos
imortais: o primeiro chamado de Huangdi e o segundo chamado dos
Brancos. O Estado de Huangdi, estava situado, adjacente, à
Montanha de Qingshan, sendo a fisionomia dos seus habitantes
muito estranha, pois tinham cabeças humanas e corpos de jibóias.
Segundo uma lenda, numa guerra que tinha outrora entre Huangdi e
Chiyou, o povo deste país tinha ajudado os de Huangdi a vencerem o
demônio de Chiyou ganhando assim méritos militares. Após a
vitória, os habitantes de Huangdi construíram um outeiro ao qual
chamaram de Outeiro de Huangdi, significando deste modo que 133
ambos os povos deste país e de Huangdi, tinham saído igualmente
vitoriosos sobre os de Chiyou. Os seus habitantes podiam, pelo
menos, viver até 500 anos, sendo muitos os homens que contavam
mais de dois mil anos de idade. Os habitantes do Estado dos Brancos
tinham os seus cabelos e peles tão brancos como a neve e possuíam
também uma prolongada longevidade. Segundo uma lenda, neste
país viviam um gênero de animais sobrenaturais que se chamavam
Cheng Huang e tinham o corpo coberto de pêlos dourados, uma
longa e grossa cauda, fisionomia de raposa, dois chifres sobre o
dorso e eram capazes de correr tão depressa como o vento, sendo,
portanto, também apelidados de Fei Huang (Amarelos Velozes). Se
alguém montasse um deles por só uma vez que fosse, já poderia
viver, pelo menos, por mais dois mil anos. A origem do provérbio
chinês que diz: "Que alcance a tua boa sorte com a velocidade de um
Fei Huang" provém do conto acima mencionado.

68. As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das


Montanhas e dos Mares)
Antigamente, os mares eram tão impetuosos, que as suas altíssimas
ondas podiam alcançar o Céu e tão vastos, que milhares e milhares
de rios desembocavam neles dia e noite - até mesmo as águas do Rio
Celeste (Via Láctea) corriam para eles. No entanto, os mares nunca
transbordaram. Porque é que os mares eram então assim? Uma
lenda conta que a dezenas de milhares de li, a leste do Mar Bohai,
havia um grande vale submerso chamado Gui Xu - que significa o
"lugar de retorno das águas" -, na realidade tratava- se de um vale
sem fim. Na vasta superfície marítima do "lugar de retorno das
águas" havia cinco ilhas flutuantes de alcantiladas e majestosas 134
montanhas: Daiyu, Yuanjiao, Fanghu, Yingzhou e Penglai. Para
chegar aos píncaros de qualquer uma destas montanhas era preciso
seguir serpentuosos caminhos - o menor dos quais tinha mais de
trinta mil li -, que desembocavam em amplos planaltos - cada um
com cerca de nove mil li de periferia. As cinco ilhas estavam
alinhadas no mar, distanciadas umas das outras de setenta mil li, na
lonjura, frações dos seus altos picos aparecendo entre nuvens
auspiciosas e, nos tempos mais claros, podia-se mesmo ver os perfis
dos seus magníficos pavilhões e palácios.
As ilhas eram conhecidas pelas cinco Ilhas dos Imortais, por nas
suas cinco montanhas se situarem as residências dos imortais,
constituídas por palácios e pavilhões de ouro e jade. Nas encostas
das suas montanhas cresciam numerosas flores e raras árvores de
fruto e todos os animais e aves que aqui habitavam, eram tão
brancos como a neve. Uma árvore, em particular, produzia pérolas e
uns frutos muito brilhantes, em forma de cristais, a ingestão de um
só dos quais transformava qualquer ser humano num imortal. Todos
os habitantes destas ilhas eram imortais e descendentes do
Imperador Celestial possuindo os dons, quer de ascenderem às
nuvens, ou de vagarem de ilha para ilha, conforme quisessem.
Embora a altitude de cada uma das montanhas fosse colossal, estas
cinco ilhas eram flutuantes e deslocavam-se perpetuamente para o
Oeste, como se fossem gigantescos navios, o que causava grande
preocupação aos seus imortais habitantes, pois se continuassem na
sua inexorável progressão, seriam arrastadas até ao pólo Oeste, o
qual, segundo uma lenda, era um lugar extremamente frio e sombrio
onde nunca tinha aparecido nem o Sol nem a Lua, sendo a sua única
fonte de luz, uma tênue claridade proveniente de uma vela segura na 135
boca dum animal chamado de "dragão da vela" Numa palavra, o pólo
Oeste era um lugar avassalador!
Um dia, os imortais das cinco ilhas decidiram subir ao Céu para
relatarem conjuntamente as suas preocupações ao Imperador
Celestial. Depois de os ouvir, o Soberano enviou um dos seus
ministros, o deus dos mares chamado Yu Jiang, resolver o problema.
Yu Jiang mandou então que 15 gigantescas tartarugas carregassem,
às costas, essas cinco ilhas para a eternidade, no entanto, para lhes
aliviar o cansaço, o deus dividiu-as em três turnos alternando-os
cada 60 000 anos. Claro que a missão de carregarem às suas costas
as ilhas era um trabalho extremamente duro, mas as 15 tartarugas
não tinham outra alternativa senão obedecerem às ordens de Yu
Jiang e, assim, passaram a suportar as montanhas esticando as suas
cabeças à tona das ondas e não se atrevendo a deslocarem-se
minimamente. A partir de então as cinco ilhas, originalmente
flutuantes, permaneceram estáticas desafiando as furiosas ondas, as
impetuosas correntes e os freqüentes tufões e os seus imortais
habitantes vivendo dias tranqüilos sem mais nenhumas
preocupações.
Contudo, tal como os seres humanos, os imortais também vieram a
encontrar alguns percalços imprevistos. A uma distância de 46 000
li da costa do Mar do Leste havia uma montanha chamada Bogushan
ao pé da qual, havia um país de gigantes chamado, o Estado dos
Dragões. Todos os seus habitantes eram tão altos que quase
alcançavam o Céu e alimentavam-se principalmente de grandes
peixes e tartarugas-gigantes marítimas.
Ora certo dia, alguns dos gigantes, tendo ido à pesca nas costas do
Mar do Leste, subitamente aperceberam-se que algumas tartarugas 136
gigantescas apareciam e desapareciam por entre as altas ondas
marítimas esticando as suas cabeças fixamente. Bastavam-lhes dar
alguns passos para atravessarem as águas duma longa distância
lançando então as linhas com as iscas para as águas onde
trabalhavam as tartarugas. As tartarugas, que não tinham comido
nada durante várias dezenas de milhares de anos, ao verem alimento
esticavam imediatamente os seus pescoços e tragavam as iscas.
Então, aos gigantes do Estado dos Dragões bastou-lhes puxarem as
linhas para as apanharem e depois de comerem as carnes secaram
ainda os seus ossos fazendo-os em lascas e utilizaram as suas
carapuças como tetos de tendas abrigando-se assim melhor contra o
vento e a chuva. Logo após a morte das seis tartarugas duas das
cinco ilhas, as Dayu e Yuanjiao, perdendo o seu suporte,
recomeçaram a flutuar imediatamente em direção ao pólo Oeste. Os
imortais destas duas ilhas apercebendo-se do que estava
acontecendo, emigraram apressadamente para as outras que ainda
se mantinham imóveis não tardando que, pouco tempo depois,
ambas as ilhas Da-yu e Yuanjiao fossem arrastadas pelas impetuosas
correntes e pelos incontáveis tufões para o pólo Oeste vindo-se a
afundar nas profundezas marítimas.
O que aconteceu provocou tamanha cólera ao Imperador Celestial
que, para castigar os gigantes do Estado dos Dragões e valendo-se
dos seus poderes sobrenaturais, ele reduziu não só a ex- tensão deste
pais como a estatura dos seus habitantes. Mesmo assim, diz-se que
eles continuaram com uma altura de cerca de dez metros, a qual, se
bem que fosse ainda considerável pelo menos impedia-os de
pescarem à linha quaisquer outras tartarugas-gigantes.
A partir de então, no Mar Bohai restaram só três ilhas de imortais: 137
Fanghu, Yingzhou e Penglai. No período dos Reinos Combatentes
(475-221 aec.) os monarcas dos reinos de Qi e Yan vieram a saber da
existência destas três ilhas dos imortais e de nestas se encontrar o
elixir de imortalidade. Querendo gozar eternamente das glórias e
riquezas que tinham acumulado, estes dois reis ordenaram aos seus
súditos que fabricassem várias centenas de grandes embarcações e
que partissem em demanda destas ilhas com o fim de obter o elixir
de imortalidade. Contudo, pouco tempo após a partida da expedição,
uma grande tempestade de gigantescas e furiosas ondas fez com que
todos os barcos se afundassem, só poucos homens conseguiram
escapar da tragédia. Segundo os relatos dos sobreviventes, após
vários dias de navegação todos tinham efetivamente conseguido
vislumbrar as três ilhas dos imortais pairando entre densas nuvens
brancas e flutuando alinhadas nos confins do mar mas, quando os
barcos se aproximaram delas, as três ilhas tinham misteriosa e
subitamente desaparecido. E tinha sido quando os barcos
persistiram em continuar na direção das ilhas desaparecidas, que
uma tempestade furiosa se abateu bruscamente impedindo o avanço
das embarcações e fazendo-as capotar no seio das altas ondas.
Ninguém podia confirmar se esses relatos eram verdadeiros ou não,
mas a verdade é que nenhum dos reis que tentaram obter o elixir de
imortalidade veio a alcançar o seu objetivo e, naturalmente,
acabaram por morrer uns após os outros.
Segundo a lenda, o imperador Qin Shi Huang - o primeiro
imperador da Dinastia Qin - em plena satisfação pela sua unificação
da China (221 a.C) também sonhava em ser um imortal. Sob os
auspícios dos seus ministros e demais subordinados, ele viajou,
pessoalmente, para a montanha Huiji organizando neste local uma 138
enorme oficina, onde algumas dezenas de milhares de trabalhadores
vieram a fabricar cerca de mil embarcações, após a sua conclusão, o
monarca obrigou um número considerável dos seus homens a
navegar em direção às ilhas dos imortais em busca do elixir da
imortalidade. No entanto, este seu colossal empreendimento
também não logrou obter bons resultados e, inclusivamente,
nenhum dos seus enviados regressou à terra natal. Por ironia do
destino o imperador Qin Shi Huang veio a morrer no caminho do
regresso da montanha Huiji à sua capital.
Durante a Dinastia Han, no reinado de Wu Di (156-87 aec), um
ocultista chamado Li Shaojun contou um dia ao imperador que,
encontrando-se uma vez viajando numa rota marítima, tinha
travado conhecimento com um imortal chamado An Qi Shen que
estava comendo uma jujuba, tão grande como uma melancia, sendo
o suco desta fruta realmente o elixir mágico das montanhas do além-
mar. Impressionado pelas palavras do ocultista, o Imperador Wu Di
ordenou que um exército de homens fabricasse embarcações,
enviando depois um grande número dos seus subordinados nestas à
procura do elixir da imortalidade. Contudo passaram-se meses e
anos e até à sua morte o imperador esperou sem receber quaisquer
notícias da expedição marítima.

69. Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing (Clássico


das Montanhas e dos Mares)
Durante uma prolongada viagem, Da Yu visitou nove continentes e
atravessou quatro mares, no entanto, nem todos os lugares por onde
passou eram acolhedores: na realidade, algumas destas regiões eram
habitadas por demônios hostis e feras bestiais. 139
Na extremidade do Mar do Sul, havia uma região toda em chamas,
habitada por demônios de cara humana e corpos peludos,
monstruosos, que das suas bocas gigantescas lançavam
constantemente labaredas e fumo, atacando, assim, os animais, as
aves e mesmo os humanos.
Na costa do Mar do Sul havia, ainda, um país de homens-crocodilos
tendo os seus habitantes uma cabeça humana, a bocarra dos
crocodilos, o corpo coberto de densos pêlos pretos e, mais estranho
ainda, dois gigantescos pés virados para trás. Se encontrassem
alguém, primeiro lançavam uma terrível gargalhada para depois
saltarem sobre o desgraçado engolindo-o por completo. Estes
demônios vagabundeavam pelas florestas levando com eles flautas
de bambu que tocavam produzindo uma melodia dolente.
Entre os países imaginários havia uns mais inacessíveis que outros,
tais como: o dos homens zarolhos - cujos habitantes só tinham um
olho localizado verticalmente no centro do rosto, o dos homens dos
peitos furados, o dos homens com três cabeças - cujos habitantes
podiam olhar em três direções ao mesmo tempo e pronunciar
simultaneamente três vozes diferentes.
No que se refere às feras bestiais, os países imaginários possuíam
numerosos e diversos gêneros, das quais só citaremos aqui algumas.
Havia umas chamadas Qiong Qi, semelhantes aos tigres, mas com
duas asas gigantescas. Eram tão gananciosas quanto cruéis e quando
conseguiam capturar um ser humano começavam a roê-lo pela
cabeça e acabavam nos pés, engolindo mesmo todos os seus ossos e
cabelos.
Havia um gênero de raposas com nove caudas aparentemente
esbeltas e encantadoras, de focinho pontiagudo, pêlos dourados e 140
espessas caudas, mas que, na realidade eram extremamente
manhosas, podendo-se metamorfosear em terríveis criaturas,
transformando-se, por vezes, em figuras de lindas jovens que
atraíam os homens devorando-os depois.
Nas florestas das montanhas do Norte da China havia um gênero de
borboletas vermelhas, do tamanho de elefantes, que sobre- viviam
sugando o sangue de outros animais.
Uma outra fera bestial era um gênero de abelha venenosa de cor
preta que, quando esvoaçava, emitia um zumbido que se transmitia
a vários quilômetros de distância, sendo a sua picada muito dolorosa
e o veneno dela, mortal.
Em certas regiões meridionais vivia à beira dos lagos um animal
extremamente venenoso chamado Yu, que tinha apenas três
polegadas de comprimento mas uma carapaça tão dura como uma
tartaruga. Era um ser extraordinariamente sinistro e cruel que
habitualmente se escondia nos lugares sombrios esperando a
passagem de uma presa fácil. Se alguém passasse pelas vicinalidades
donde estava emboscado, o animal abria a sua boca lançando um
jato venenoso quer sobre a pessoa, ou no seu reflexo, na água,
causando-lhe assim uma morte violenta. No entanto, graças à
existência dum país adjacente a esta região, cujos habitantes eram
bons caçadores, apreciavam comer a carne dos Yu conjuntamente
com legumes, estes animais estavam em vias de extinção e os
humanos estavam menos ameaçados.
Segundo umas lendas antigas, depois de dominar as águas, os povos
de todo o mundo passaram a respeitar Da Yu como o salvador da
humanidade, elegendo-o como o seu soberano. Para se precaver da
latente ameaça dos demônios hostis e das feras bestiais aos seres 141
humanos, Da Yu ordenou que todos os lugares onde se produziam
objetos de ferro e bronze tinham que entregar uma determinada
quantia das suas matérias-primas para com estas se fundirem nove
trípodes gigantescos nos quais, baseando-se nas experiências e
recordações de todas as suas viagens, ele fez cinzelar todas as figuras
de demônios e feras bestiais assim corno as suas regiões de origem
de modo a ajudar a humanidade a precaver-se melhor contra estes.

70. O Mundo antigo, por Zhuangzi


Aquele que sabe o que é do Céu e o que sabe o que é do Homem
alcançou verdadeiramente o cimo (da sabedoria). Aquele que sabe o
que é do Céu, molda sua vida segundo Céu. Aquele que sabe o que é
do Homem, pode ainda usar sua ciência para desenvolver o
conhecimento do desconhecido, vivendo até o fim de seus dias e não
perecendo jovem. Eis a perfeição do saber.
Nisso, entretanto, há uma falha. O saber correto depende dos
objetos, mas os objetos da ciência são relativos e incertos (mutáveis).
Como se pode saber que o natural não é realmente do homem e o
que é do homem não é realmente natural? Nós devemos, além disso,
ter os homens verdadeiros antes de termos a ciência verdadeira.
Mas o que é o homem verdadeiro? O verdadeiro homem de
antigamente não se aproveitava do fraco, não atingia seus fins pela
força bruta, e não reunia ao redor de si os conselheiros. Assim,
falhando, não tinha motivo para arrependimentos; sendo bem
sucedido, nenhuma causa para satisfação própria. E podia subir a
alturas sem tremer, entrar na água sem molhar-se e passar pelo fogo
sem queimar-se. Eis a espécie de conhecimento que chega às
profundezas de Dao. Os verdadeiros homens de antigamente 142
dormiam sem sonhos e acordavam sem preocupações. Comiam
indiferentes ao paladar e aspiravam fundamente o ar. Porque os
verdadeiros homens aspiram o ar até os calcanhares; os vulgares até,
apenas, a garganta. Da boca dos perversos as palavras são expelidas
como vômitos. Quando as afeições do homem são profundas, seus
dons divinos são superficiais.
Os verdadeiros homens antigos não sabiam o que era amar a vida ou
temer a morte. Não se alegravam pelos nascimentos nem se
esforçavam para evitar a dissolução vinham sem preocupações e
partiam sem preocupações. Era tudo. Não se esqueciam de onde
tinham surgido, mas não procuravam indagar quando voltariam
para lá. Alegremente aceitavam a vida esperando pacientes pela
redenção (o fim). Eis o que se chama não desencaminhar o coração
de Dao, e não suprir o natural por meios humanos. A um homem
desses chamar-se-ia com razão um homem verdadeiro.
Homens assim são de espírito livre e calmos no agir e têm testas
altas. Algumas vezes são desconsolados como o outono, e outras
animados como a primavera; suas alegrias e tristezas estão em razão
direta com as quatro estações, em harmonia com toda a criação e
ninguém pode conhecer-lhes o limite. E assim é que quando o Sábio
assalaria a guerra, ele pode destruir um reino e sem perder contudo
a afeição do povo; espalha bênçãos sobre todas as coisas, porém isso
não é devido a seu (consciente) amor dos semelhantes. Portanto
aquele que sente prazer em compreender o mundo material não é
um Sábio. O que tem afeições pessoais não é humano. O que calcula
o tempo de suas ações não é inteligente. O que desconhece a
diferença entre o beneficio e o mal não é um homem superior. O que
anda atrás da fama sob risco de perder o próprio eu não é um 143
erudito. O que perde a vida e não é sincero para si mesmo, nunca
pode ser mestre dos homens. Assim Hu Puxie, Wu Kuang, Po Yi, Shu
Chi, Chi ci, Xu Yu, Chi To e Shentu Ti foram os servos dos
governantes e cumpriram o mandato de outros e não o seu próprio.
Os verdadeiros homens de antigamente pareciam ser de estatura
gigantesca e, contudo, não podiam ser abatidos. Portavam-se como
se em si próprios faltasse alguma coisa, mas sem olhar para os
outros. Naturalmente independentes de espírito, não eram severos.
Vivendo em liberdade sem peias todavia não tentavam exibi-la.
Pareciam sorrir quando quisessem e mover-se apenas segundo
necessidade. Sua serenidade fluía da bondade interior. Nas relações
sociais conservavam o caráter íntimo. De espírito tolerante,
pareciam grandiosos; gigantescos pareciam acima de controle.
Constantemente dentro de suas casas, pareciam portas fechadas; de
espírito abstrato, pareciam ter esquecido o dom da palavra. Viam
nas leis penais uma forma externa; nas cerimônias sociais, certos
meios; na ciência, instrumentos de utilidade; em moralidade, uma
guia. Eis a razão pela qual, para eles, as leis penais significavam uma
administração misericordiosa; as cerimônias sociais, um meio de
caminhar com o mundo; a ciência, uma ajuda para fazer o que não
podiam evitar; e a moralidade, um guia que os podia fazer andar ao
lado de outros para chegar a uma colina. E todos os homens
pensavam realmente que eles sofriam para viverem corretamente.
Pois o que lhes prendia a atenção era o Único e o que não os
preocupava era o Único também. O que consideravam como Único
era Único e o que não consideravam como Único era Único
outrossim. No que era Único, eles eram de Deus; no que não era
Único, eram do homem. E assim, entre o humano e o divino não se 144
produzia nenhum conflito. Eis o que era ser um homem verdadeiro.

71. O cofre guarnecido de metal, a história de uma previsão


no Shujing (Tratado dos livros)
Dois anos após a conquista de Shang o rei caiu doente e ficou muito
desconsolado. Os dois outros grãos - duques disseram:
"Consultemos reverentemente o casco de tartaruga a respeito do
rei"; o duque de Zhou, porém, disse: "Não deveis afligir desse modo
os nossos antigos reis". Chamou a si, então, o encargo e ergueu três
altares de terra na mesma clareira; e, construindo outro altar ao sul
destes, voltado para o norte, aí tomou posição. Havendo colocado
um símbolo de jade, redondo, em cada um dos três altares e
empunhando o símbolo maior da sua própria hierarquia, dirigiu-se
aos reis Tai, Chi e Wen
O grande historiador escreveu em tábuas a sua prece, que assim
rezava: [fulano], o vosso grande descendente, está sofrendo de
moléstia grave e violenta; - se vós, três reis, tendes no Céu o encargo
de velar por ele - grande filho do Céu, permiti que eu, Tan, seja o
substituto da sua pessoa. Fui amorosamente obediente a meus pais;
possuo muitas capacidades e arte que me tornam apto a servir a
seres espirituais. O vosso grande descendente, por outro lado, não
possui tantas capacidades e artes quanto eu e não é capaz de servir
aos seres espirituais. E, além disso, foi nomeado na casa de Deus
para estender o seu auxilio por todo o reino, visando estabelecer
aqui na terra os vossos descendentes. O povo dos quatro quadrantes
permanece em reverente temor dele. Oh! Não permiti que esse
mandato precioso, conferido pelo Céu, caia por terra - para que toda
a longa linhagem dos nossos antigos reis também possua alguém em 145
quem possa confiar sempre, quanto aos nossos sacrifícios. Agora,
buscarei a vossa determinação a respeito do assunto, no grande
casco de tartaruga. Se atenderdes o meu pedido, tomarei desses
símbolos e dessa maça, retornarei e aguardarei as vossas ordens. Se
vós não o atenderdes, eu os deixarei de lado".
Então, consultou o duque os augúrios, através dos três cascos de
tartaruga. E foram todos favoráveis. Abriu, com uma chave, o lugar
onde estavam guardadas as respostas oraculares e as contemplou.
Elas foram igualmente favoráveis. Disse ele: "Segundo a forma do
prognóstico o rei não sofrerá mal algum. Eu, pobre criança, consegui
junto aos três reis a renovação do seu mandato, aos quais um longo
futuro foi consultado. Devo, agora, aguardar as conseqüências. Eles
poderão agir em favor do nosso Primeiro Homem".
Quando o duque regressou, colocou as tábuas da oração num cofre
guarnecido de metal e, no dia seguinte, o rei melhorou.
Mais tarde, com a morte do Rei Wu, o irmão mais velho do duque de
Kuan e os seus irmãos mais moços propalaram pelo reino um
relatório sem fundamento para que o duque não fizesse nenhum
benefício ao jovem filho do rei. Diante disso o duque declarou aos
outros grãos duques: "Se eu não aplicar a lei a esses homens, não
poderei apresentar o meu relatório aos antigos reis".
Ele residiu assim no oriente, dois anos, durante os quais os
criminosos foram presos e levados perante a justiça. Depois, compôs
um poema para apresentar ao rei e o denominou: "A coruja". O rei,
por seu turno, não ousou censurar o duque.
No outono, quando o grão era abundante e maduro, porém, antes de
ser colhido, o Céu enviou uma grande tempestade de trovão e
relâmpagos, acompanhada de ventos, quebrando-se todo o grão e 146
sendo desarraigadas grandes árvores. O povo ficou muito
atemorizado; o rei e os altos funcionários, todos com seus capacetes
de autoridade, puseram-se a abrir o cofre guarnecido de metal e a
examinar os escritos nele contidos, encontrando as palavras
pronunciadas pelo duque, quando ele chamou a si o encargo de ser o
substituto do Rei Wu. Os dois grãos duques e o rei interromperam o
historiógrafo e todos os outros funcionários familiarizados com a
questão. Eles replicaram: "Foi realmente assim: mas, ah! o duque
nos ordenou que não ousássemos falar a esse respeito". O rei tomou
o documento nas mãos e chorou, dizendo: "Nós hoje não precisamos
ir reverentemente proceder à adivinhação. Outrora o duque foi
assim zeloso da casa real; mas, sendo uma criança, não o soube.
Hoje o Céu mobilizou os seus terrores para exibir-lhes a virtude. Que
eu, pobre criança vá agora ao seu encontro com as minhas opiniões e
sentimentos renovados, eis o que exigem as normas de propriedade
do nosso reino".
Quando o rei se dirigia às fronteiras ao encontro do duque, o Céu
enviou chuvas; e, em virtude de ventos contrários, todo o grão se
ergueu. Os dois grãos duques deram ordens ao povo para que
levantasse as árvores que haviam caído e as substituísse. O ano,
então, tornou-se muito frutuoso.

72. Uma previsão do Tratado das mutações: Hexagrama 18,


a Recuperação do Deteriorado, do Yijing
Sun (o Vento, embaixo) sopra ao pé da Montanha (Ken). Isto implica
em destruição; plantas desenraizadas, pomares arruinados. Mas o
tempo indicado pela primavera (Sun) seguindo-se ao inverno (Ken)
indica a mudança. Indica também trabalho duro. Em negócios, 147
comunidades, relações, etc., estabelecidos, Sun indica arranjos
fundamentalmente maus ou incompatíveis.

_________

_________

_________

_________

_________

O Julgamento
A Recuperação do Deteriorado possui um supremo sucesso. É
vantajoso cruzar as grandes águas. Antes de começar, três dias;
Depois de começar, três dias.
A Imagem
O Vento soprando ao pé da Montanha simboliza a Deterioração.
Assim, o homem nobre movimenta o povo E fortifica seu espírito.

As Linhas
Seis no fundo: a ruma acarretada pelo pai é reparada pelo filho. Se
tiver sucesso, o pai não ficará desonrado. Perigo, ao fim, fortuna.
Nove no segundo lugar: ao reparar o que foi deteriorado pela mãe,
não se deve ser muito persistente.
Nove no terceiro lugar: reparar o que foi deteriorado pelo pai. Algum
remorso, mas não haverá desonra considerável.
Seis no quarto lugar: tolerar o que foi deteriorado pelo pai. Ao
continuar, é-se humilhado. 148
Seis no quinto lugar: reparar o que foi deteriorado pelo pai,
Encontra-se elogio.
Nove no alto: ele não serve a sacerdotes e reis,- ele se fixa objetivos
superiores.

73. Invocação ao ancestral da dinastia Shang, Tang


Admirável! Perfeito! Aqui estão nossos tambores. Harmoniosos
ressoam os tambores. Para deleitar nosso venerável antepassado.
O descendente de Tang com esta música o invoca. Pois ele pode
aliviar-nos pela realização de nossos desejos. Profundo é o som de
nossos tambores. Agudas soam as flautas. Todas entre si se
harmonizam e se combinam. Em acordo com as notas da gama
sonora. Oh! O descendente de Tang é majestoso. Verdadeiramente
admirável é a sua música.
Os grandes sinos e os tambores enchem os ouvidos. As danças
desenvolvem-se grandiosamente. Temos admiráveis visitantes que
se mostram deleitados. Desde a Antigüidade, antes de nossa época,
os primeiros homens nos deram exemplo. Como ser mansos e
humildes de manhã à noite. E ser reverente no desempenho do
serviço.
Ele pode contemplar nossos sacrifícios do Inverno e do Outono.
Oferecidos assim pelo descendente de Tang!

74. Uma antiga cura para depressão, no Liezi


Yang Chu tinha um amigo, de nome Chi Liang. Um dia Chi Liang
caiu doente, e ao cabo de sete dias ficou muito sério. Os filhos
choravam à beira da cama e chamaram um doutor.
— Tenho filhos tão indignos, — disse Chi Liang a Yang Chu. — Não 149
queres cantar uma canção para os fazer compreender?
Então Yang Chu cantou:
O céu não sabe
Por que é assim,
Como podemos, os homens,
Adivinhá-lo então?
O infortúnio vem
Nos caminhos do céu,
Passe bem ou mal,
É o homem quem paga.
Nem tu nem eu
Sabemos o que é gota,
Pode então a feiticeira
Ou o doutor
Saber o que isso é?
Os filhos de Chi Liang ainda não conseguiram entender, e chamaram
três doutores. O nome de um era Chiao, o segundo chamava-se Yu e
o terceiro Lu. E o médico Chiao disse a Chi Liang:
— Não vives convenientemente. A tua doença vem da fome, da
comida demasiada e dos excessos sexuais. O teu espírito está
atormentado. Isso não é devido ao céu nem aos maus espíritos.
Embora o caso seja sério, pode haver cura.
Disse Chi Liang:
— É um doutor vulgar. — e mandou-o embora.
Disse o doutor Yu:
— Sofres de uma constituição fraca e não foste convenientemente
criado na infância. Não é questão de dias, mas de anos. Não há cura.
E disse Chi Liang: 150
— É um bom doutor. Dai-lhe de comer.
O doutor Lu disse:
— A tua doença não vem do céu, nem dos homens, nem dos maus
espíritos. Houve alguém que a dirigiu quando ainda estavas no
ventre de tua mãe, e houve alguém que a conhecia. Para que servem
os remédios?
Disse Chi Liang:
— É um doutor divino, — e despediu-o com valiosos presentes. E Chi
Liang logo ficou bom sozinho.
A Arte de Bem Governar

A arte de bem governar era um tema presente entre os pensadores


asiáticos, abrangendo problemáticas diversas, tais como as relações
sociais, a religião, a economia, a lei, hábitos, costumes, etc. Não que
isso fosse uma novidade, tanto lá quanto no ocidente: mas a
variedade de propostas é instigadora. Na Índia, três textos nos
apresentam o que seriam os deveres de um rei na visão hindu; um
dos Dharma sutras (os textos das leis ―morais‖, ou ― espirituais‖,
também conhecido pelos budistas como dhamma, na língua páli),
um do onipresente Manavadharmashastra e ainda, um texto do
Artashastra, um dos primeiros tratados dedicados inteiramente a
questão da política e da sociedade em moldes parecidos com o da 151
escola legista chinesa ou, século depois, com Maquiavel.
Completando a visão indiana, temos dois éditos do ecumênico
soberano Ashoka, da dinastia Maurya, que depois de ter
(supostamente) se convertido ao budismo, instituiu uma política de
tolerância e diversidade religiosa dentro de sue império. Observe-se
que são duas proclamações incitando à paz e a boa convivência,
tendo sido redigidos em idiomas diversos, inclusive grego e
aramaico.

A China nos apresenta um quadro filosoficamente mais variado, e


novamente distinto de crenças religiosas. Inicialmente, veremos a
idéia de política antiga na proclamação do marques de Qin, presente
no Shujing; seguem-se trechos da visão confucionista de bom
governo, preocupação constante desta escola: a visão de bom
governo no Zhongyong, no Liji, e no Lunyu. Mêncio, apesar de
confucionista, nos informa algo sério e profundo na antiguidade: um
bom soberano ouve seu povo, e quem não faz deve ser derrubado.
Um trecho da obra de Guanzi, autor pouco conhecido, e
supostamente do séc. -4, apresenta-nos as 6 proibições básicas que
deveriam ser aplicadas a sociedade; depois, a concepção de bom
governo pela inação, proposta por Laozi, sintetiza a visão daoísta da
questão – governar seria ausentar-se, intervindo somente em casos
de necessidade. Mozi resume em poucas linhas o que seria o dever
de um rei em sua utópica sociedade pré-comunista; por fim,
Shangyang e Hanfeizi representam a dura linha de raciocínio do
totalitarismo legista, que obteve sucesso, no entanto, em reunificar a
China no séc. -3, apesar da derrocada fragorosa da dinastia Qin, que
eles ajudaram a eleger.
152
75. Os Deveres de um Rei, no Dharma sutra
O rei é senhor de todos, com exceção dos brâmanes.
Ele será santo em atos e palavra,
Inteiramente instruído na ciência sagrada tripla e na lógica,
Puro, de sentidos controlados, cercado de companheiros donos de
excelentes qualidades e pelo meio de sustentar o seu governo.
Ele será imparcial com seus súditos;
E fará o que for bom para os mesmos.
Todos, com exceção dos brâmanes, o adorarão, a ele que se senta
num lugar mais alto, enquanto eles próprios sentam-se em lugares
mais baixos.
Também os brâmanes o homenagearão.
Ele protegerá as castas e ordens, de acordo com a justiça;
E aqueles que deixarem a trilha do dever, ele os reconduzirá a
mesma.
Pois está declarado nos Vedas que ele obtém uma parcela do mérito
espiritual ganho por seus súditos.
E ele escolherá como seu sacerdote doméstico um brâmane versado
nos Vedas, de nobre família, eloqüente, bem apessoado, de idade
adequada e de disposição virtuosa, que viva corretamente e seja
austero.
Com sua ajuda, cumprirá seus deveres religiosos.
Pois está declarado nos Vedas: "Xátrias que sejam ajudados por
brâmanes prosperam e não caem em dificuldades‖.
Ele levará em conta, também, o que astrólogos e augures lhe
disserem.
Pois alguns declaram que a aquisição de riqueza e segurança
depende disso também. 153
Ele executará no fogo do salão os ritos que garantem a prosperidade
e estão ligados as expiações, festivais, uma marcha próspera, vida
longa e auspiciosidade, bem como aqueles destinados a causar
inimizade, dominar os inimigos, destruí-los por encantamentos e
levá-los ao infortúnio.
Os sacerdotes oficiantes executarão os demais sacrifícios, de acordo
com os preceitos dos Vedas.
Sua administração da justiça será regulamentada pelos Vedas, os
institutos da Lei Sagrada, os Angas, e o Purana.
As leis de países, castas e famílias, que não se oponham aos registros
sagrados, também têm autoridade.
Os agricultores, comerciantes, pecuaristas, financiadores e artesãos
têm autoridade para determinar regras para suas respectivas classes.
Tendo-se informado do estado das coisas graças aos que, em cada
classe, têm autoridade para falar, ele emitira a decisão legal.
O raciocínio é um meio de chegar a verdade.
Chegando a uma conclusão por intermédio dele, ele decidira
adequadamente.
Se as indicações estiverem em conflito, ele saberá da verdade com os
brâmanes, que sejam bem versados no conhecimento sagrado triplo,
dando sua decisão de acordo.
Isso porque, se agir assim, as bênçãos o atingirão neste mundo e no
seguinte.

76. Rei e Punição, no Manavadharmashastra


Só a punição governa todos os seres criados, só a punição os protege;
é a punição o que os protege enquanto dormem; os sábios declaram
que a punição é a lei. 154
Se a punição for devidamente aplicada depois de exame devido,
toma feliz o povo; mas aplicada sem exame, destrói tudo.
Se o rei não aplicasse incansavelmente a punição aos que merecem
ser punidos, os mais fortes assariam os mais fracos, como peixes em
um braseiro;
O corvo comeria o bolo sacrifical e o cachorro lamberia as carnes
sacrificais, e a propriedade não ficaria com pessoa alguma, e os
inferiores usurpariam o lugar dos superiores.
Todo o mundo é mantido em ordem pela punição, pois é difícil achar
um homem sem culpa; pelo medo a punição, todo o mundo
proporciona os desfrutes que deve.
Os deuses, os Danavas, os Gandharvas, os Rakshasas, as deidades de
pássaro e serpente, só proporcionam os prazeres devidos aos
mesmos se forem atormentados pelo medo da punição.
Todas as castas se corromperiam pela mistura, todas as barreiras se
romperiam e todos os homens se irariam uns contra os outros, em
conseqüência de erros com relação à punição.
Mas onde a Punição com cor negra e olhos vermelhos impera,
destruindo os pecadores, os súditos não se perturbam, desde que
quem a aplique tenha o necessário discernimento.

77. O poder do rei, no Arthashastra


Os líderes têm três motivos para empregar um sábio: uma boa
reputação, um grande enriquecimento e uma vida no paraíso. Ha
três motivos para um líder não empregar o tolo: a ma reputação, o
empobrecimento e seu caminho para o inferno.
Portanto, um líder deveria sempre empregar o virtuoso e evitar
quem não tem virtude. 155
Assim, a justiça, o prazer e a prosperidade podem nascer. O líder
deveria rejeitar os empregados hipócritas, enganadores, destrutivos,
indecisos, sem entusiasmo, incompetentes e covardes. Uma pessoa
que e cruel, desregrada, avarenta, indecisa, sem tato, desonesta e
extravagante não deveria ser indicada para urna posição de
autoridade. O líder deveria rejeitar quem não tem paciência ou
dedicação, os intrigueiros e os mesquinhos, e quem fosse
incompetente e amedrontado. [...]

Quando o líder é justo, seu povo e honesto; quando um líder e cruel,


seu povo e desonesto. Quando o líder e indiferente, o povo e
indiferente. O povo segue seu líder; o povo se comporta como seu
líder. o rei é responsável pelo mal feito por seu povo; o sacerdote e
responsável pelo mal causado pelo líder. o marido e responsável
pelos atos de sua esposa; e o professor é responsável pelos males
causados por seu estudante. O povo e destruído por um líder que
parece um leão, por um ministro que parece um tigre e por um
oficial que parece um abutre. [...]
Quem pune severamente será temido pelas pessoas. Já quem pune
de maneira branda será menosprezado. Aquele que pune
adequadamente será respeitado. Uma justiça criminal bem
estruturada faz com que as pessoas se atenham às intenções e aos
desejos legítimos. Uma punição mal aplicada, fruto de um mero
capricho, da raiva ou da ignorância, revolta até mesmo os exilados
que vivem na floresta e ofende mais ainda os que sustentam suas
famílias! Quando não há uma justiça criminal capaz de regular a
sociedade, ela acaba se rendendo à lei dos peixes: sem os limites
ditados pela justiça criminal, o forte devora o fraco. Pessoas de
classes e idades diferentes são protegidas pelo sistema de justiça 156
criminal criado por seu líder; dedicadas às suas obrigações e
ocupações, vivem as próprias vidas. Como um caminho para o
estabelecimento da ordem, a justiça criminal traz a segurança às
pessoas: pois se os jovens encararem o juiz como o rei da morte, eles
não cometerão crimes. Os líderes que exercem a justiça criminal
eliminam o crime do seio do povo, trazendo segurança. A justiça
criminal mantém a integridade deste mundo e do próximo, desde
que o líder a aplique de acordo com o crime, seja contra seu filho ou
contra um inimigo.

78. A política ecumênica de Ashoka


Édito 1. Não devemos honrar apenas a religião própria e condenar a
dos outros e devemos honrar as religiões alheias por este ou aquele
motivo. Fazendo assim, ajudamos nossa própria religião a crescer e
prestamos serviço também as alheias. Ao fazer de outro modo,
estamos cavando a sepultura de nossa própria religião e, ao mesmo
tempo, fazendo mal as alheias. Quem quer que honre sua própria
religião e condene as alheias certamente o faz por devoção a própria,
pensando em glorificá-la, mas, ao contrário, ao fazer isso prejudica a
mesma gravemente. Por isso, a concórdia é boa, e que se permita a
todos ouvir e prestar-se a ouvir as doutrinas professadas pelo
próximo.
Édito 2. No passado, por muitas centenas de anos, muitos seres
vivos foram mortos ou prejudicados, e aumentou os casos de
comportamento impróprio com parentes, com os brâmanes e com os
ascetas. Mas agora, devido ao Amado-dos-deuses, Piyasadi, o rei que
pratica o dhamma, o som do tambor foi substituído pelo som do
dhamma. A visão de carros divinos, elefantes auspiciosos, corpos 157
luminosos e outras visões divinas não aconteciam há muito tempo.
Mas agora, graças ao Amado-dos-deuses, Piyasadi, se promove a
restrição severa ao massacre dos seres vivos, e se estimula o
comportamento apropriado com parentes, brâmanes e ascetas, se
respeita pais, mães e anciãos, e as visões divinas voltaram.
Estas e muitas outras práticas do dhamma foram encorajadas pelo
Amado-dos-deuses, Piyasadi, e ele continuará promovendo a pratica
do dhamma. Ele a praticará até o final dos tempos, a promoverá
entre seus filhos, netos e bisnetos, e estes continuarão promovendo o
dhamma, e se instruindo nele. Verdadeiramente, este é o trabalho
mais elevado, ensinar o dhamma. Mas a prática do dhamma não
pode ser feita por quem é destituído de virtude, então, sua difusão e
ensino [por sábios homens] são recomendáveis. Este Édito foi
escrito de modo que isso possa ajudar meus sucessores a se dedicar e
promover estas coisas, e não lhes deixar perdê-las. O Amado-dos-
deuses, Piyasadi, escreveu isso doze anos depois de sua coroação.

79. Discurso do Marquês de Qin, no Shujing


Disse o duque: ―Ah! Meus funcionários, ouvi-me em silêncio.
Declaro-vos solenemente a mais importante de todas as máximas.
Foi o que disseram os antigos: ―Assim sucede a todos: amam, de
preferência, o ócio. Não há dificuldade em censurar os outros, mas é
difícil aceitar a censura e dar-lhe livre curso. O que me entristece o
coração é que hajam transcorrido os dias e os meses e não seja
provável que voltem, de modo que devo seguir um caminho
diferente.
―Ali estavam meus velhos conselheiros. Eu disse: ―Não farão o que
eu desejo‖, e os odiei. Ali estavam meus novos conselheiros e eu quis 158
outorgar-lhes minha confiança. Tal é certamente o que eu fiz. Mas
daí por diante me aconselhei com os homens de cabelos brancos e
me livrarei do erro. Aquele bom funcionário velho! Sua força está
esgotada, mas preferiria não tê-lo como conselheiro. Aquele arrojado
e bravo funcio¬nário! Seu modo de caçar e de guiar a carruagem são
impecáveis, mas preferiria não tê-lo por conselheiro. Quanto aos
homens de palavras sutis, hábeis e astutos, capazes de fazer mudar
de propósito o homem bom, que hei de fazer com eles?
―Pensei profundamente e cheguei a uma conclusão. Tenha eu um só
ministro resolvido, simples e sincero, sem outra ha¬bilidade mas
com uma inteligência honrada e possuído de generosidade, que
considere os talentos alheios como se ele mesmo os possuísse, e que
quando encontra homens perfeitos e sábios os ame de coração mais
do que a boca pode dizer, mostrando-se realmente capaz de apoiá-
los. Semelhante ministro seria capaz de proteger meus descendentes
e meu povo e seria verdadeiramente um outorgador de benefícios.
―Mas se o ministro quando encontra homens hábeis os inveja e
odeia; se quando encontra homens perfeitos e sábios opõem-se a
eles e não consente que progridam, mostrando-se incapaz de ajudá-
los, semelhante homem não será capaz de proteger meus
descendentes e meu povo e não será um homem perigoso?‖.
―O declínio e queda de um Estado podem ser devidos a um só
homem. A glória e a tranqüilidade de um Estado podem também ser
devidos à bondade de um só homem‖.

80. As regras do bom governo, no Zhongyong


Todos os que detêm o governo do reino com seus Estados e famílias
têm de seguir nove regras fixas: o cultivo do caráter, a honra devida 159
aos homens virtuosos e de talento, o afeto a seus parentes, o respeito
aos grandes ministros, o trato bondoso e equânime a todo o corpo de
funcionários, o trato com a massa do povo como se fossem crianças,
o estimulo à concorrência de todas as classes de artífices, o trato
indulgente com os homens à distância e o bondoso apreço aos
príncipes dos Estados.
Mediante o cultivo do seu próprio caráter, pelo governante,
realizam-se os deveres de obrigação universal. Honrando os homens
virtuosos e de talento, livra-se dos erros de julgamento. Mostrando
afeto para com os parentes, não há murmu¬ração nem
ressentimento entre seus tios e seus irmãos. Respeitando aos
grandes ministros, livra-se de erros na prática do governo. Tratando
com bondade e consideração a todo o corpo de funcionários, estes
são levados a responder com o maior agradecimento a suas
cortesias. Tratando a massa do povo como se fossem crianças, estas
são levadas a exortar-se entre si para praticar o bem. Estimulando a
consciência de todas as classes de artífices, ampliam-se seus
recursos para as despesas. Tratando indulgentemente os homens a
distância, de toda parte estes acodem para ele. E apreciando
bondosamente os princípios dos Estados, chega à veneração de todo
o reino.
A correção pessoal e a purificação, com a ordenação cuidadosa de
suas vestes e o não fazer movimento contrário às regras da correção:
tal é, para um governante, o modo de cultivar sua pessoa. Afastar os
caluniadores livrar-se das seduções da beleza, não dar importância
aos ricos e honrar a virtude. Tal é, para ele, o meio de estimular os
homens dignos e de talento. Dar-lhes postos de honra e grandes
emolumentos, compartilhar com eles seus gostos e aversões, tal é 160
para ele, o meio de estimular seus parentes para que o amem. Dar-
lhes numerosos funcionários para aliviá-los de suas ordens e
incumbências, tal é, para ele, o meio de estimular os grandes
ministros. Conceder-lhes confiança generosa, aumentar seus
emolumentos tal é o meio de estimular o povo. Exames diários e
provas mensais, e conseguir que suas reações estejam de acordo com
seus trabalhos, tal é o meio de estimular as classes de artífices.
Acompanhá-los quando saem e ir-lhes ao encontro quando chegam,
recomendar o bom dentre eles e mostrar compaixão pelo
incompetente, tal é o modo de tratar indulgentemente os homens
distantes. Restaurar as famílias cuja linha dinástica se rompera e
revivificar os Estados que se tenham extinguido, pôr em ordem os
Estados em que haja confusão e apoiar os que estejam em perigo,
assinalar datas fixas para as audiências na Corte e para a recepção de
seus enviados, despedi-los depois de tratá-los liberalmente e
celebrar sua chegada com pequenos tributos tal é o modo de apreciar
os príncipes dos Estados.
3o. Todo aquele que mantêm o governo do reino com seus Estados-
família deve ter em vista as anteriores nove regras fixas. E o meio
pelo qual são elas postas em prática, é a simplicidade.

81. As cinco obrigações do bom líder, no Liji


―Dos cinco chefes, o mais poderoso era o duque de Hui. Na
assembléia dos príncipes reunidos, amarrou uma vitima e sobre ela
colocou um escrito, mas não a matou para manchar seus lábios com
o sangue. O primeiro mandamento de seu pacto foi: ―Dar morte ao
que não é filial. Não mudar o filho escolhido para herdeiro. Não
elevar a concubina à categoria de esposa. O segundo era: ―Honrar o 161
digno, apoiar o homem de talento, distinguir o virtuoso‖. O terceiro
era: ―Respeitar o velho, ser bondoso com o jovem. Não esquecer os
estrangeiros e os viajantes‖. O quarto era: ―Que os em¬pregos
públicos não sejam hereditários, que não sejam acumuladores os
funcionários. Na seleção de funcionários, seja cada emprego
desempenhado pelos homens adequados. O governante não deve
tomar a seu cargo a morte de um Alto Fun-cionário‖. O quinto era:
―Não seguir uma política desonesta na construção de represas. Não
impor restrições à venda de cereais. Que não haja promoções sem
primeiro anunciá-las ao soberano‖. Então se disse: ―Todos os que
nos unirmos neste pacto manteremos doravante relações amistosas‖.
Todos os príncipes de nossos dias violam essas cinco proibições;
portanto digo que os príncipes de nossos dias pecam contra os cinco
chefes.
―O crime daquele que tolera e ajuda a maldade do seu príncipe é
pequeno, mas grande é o crime de quem se antecipa e exalta essa
maldade. Os funcionários de nossos dias saem ao encontro da
maldade de seus soberanos e por isso digo que pecam contra os
príncipes‖.

82. Cinco deveres e quatro erros, no Lunyu (Diálogos) de


Confúcio
Zizhang perguntou a Confúcio: "Como alguém se qualifica para
governar?" O Mestre disse: "Quem cultiva os cinco tesouros e evita
os quatro pecados está pronto para governar" Zizhang disse: "Quais
são os cinco tesouros?" O Mestre disse: "Um cavalheiro é generoso
sem ter de gastar; ele faz as pessoas trabalharem sem as fazer
padecer; ele tem ambição mas não rapacidade; ele tem autoridade 162
mas não arrogância; ele é rigoroso mas não violento". Zizhang disse:
"Como é possível ser generoso sem ter de gastar?" O Mestre disse:
"Se deixares o povo procurar o que lhe é benéfico, não estarás sendo
generoso sem ter de gastar? Se fizeres o povo trabalhar apenas em
tarefas razoáveis, quem padecerá? Se tua ambição é a humanidade e
se realizas a humanidade, que lugar pode haver para a rapacidade?
Um cavalheiro trata com igualdade os muitos e os poucos, os
humildes e os grandes. Ele dá a mesma atenção a todos: não tem ele
autoridade sem arrogância? Um cavalheiro se veste corretamente,
seu olhar é reto, o povo olha-o com admiração: não é ele rigoroso
sem ser violento?"
Zizhang disse: "Quais são os quatro pecados?" O Mestre disse: "O
terror, que se apóia na ignorância e no assassinato. A tirania, que
exige resultados sem aconselhar adequadamente. A extorsão, que é
conduzida por meio de ordens contraditórias. A burocracia, que
recusa ao povo aquilo a que ele tem direito".

83. O governo do povo, em Mêncio


Disse Mêncio: "Quando prevalece no reino o governo justo, os
príncipes de pouco valor e virtude mostram-se submissos aos de
grandes predicados e de subido valor. Quando predomina o mau
governo, os pequenos são sujeitos aos grandes, os fracos servem os
fortes".
"Estes dois casos são lei do Céu. Os que se harmonizam com o Céu
são poupados; os que se rebelam contra o Céu têm de perecer". [...]
Disse Mêncio: "Chieh e Chou* perderam o reino, em conseqüência
de haverem perdido o povo; perder o povo significa perder o amor
dos súditos. Há um modo de conquistar o reino: conquiste-se o 163
povo, e o reino está ganho. Há um meio de conquistar o povo: cative-
se o coração popular, e o povo está adquirido. Há maneira de cativar
o coração do povo: é simplesmente oferecer-lhe o que ele deseja e
não lhe impor o que detesta".
"O povo volta-se para um soberano clemente, como a correnteza
desce o rio, e os animais ferozes correm para as selvas".
"Assim como a lontra favorece as águas profundas, atraindo os
peixes para elas, e o falcão favorece as matas, chamando para elas os
passarinhos, assim Chieh e Chou auxiliam Tang e Wu,
encaminhando o povo para estes".
"Se entre os atuais soberanos do reino houver um que preze a
clemência, todos os outros príncipes o ajudarão, encaminhando o
povo para ele. E embora esse rei não deseje exercer a autoridade
real, não a poderá evitar".
*últimos tiranos mandatários de Xia e Shang, respectivamente.

84. As proibições, de Guanzi


Seis são as coisas que o soberano deve procurar, e quatro as que
deve proibir. As que deve procurar são: economizar gastos,
promover ministros sábios e capazes, estabelecer leis e medidas,
impor castigos, seguir os tempos do Céu e acomodar-se as
conveniências da Terra.
Quatro são as coisas que o soberano deve proibir: na primavera não
deve permitir matar, cortar, rebaixar terrenos, suprimir vegetação,
podar árvores, aplanar montes, incendiar campos, castigar os
ministros, exigir contribuições de grãos. No verão, não obstruir o
curso dos rios, não fazer barrancos, não remover terras, não matar
aves. No outono, não perdoar delitos, não perdoar nem suavizar 164
penas. No inverno, não conceder feudos nem galardões, nem atacar
ou casar dano aos campos.
Sem as proibições da primavera, a vida não poderá se desenvolver;
sem as proibições do verão, não crescerão os cereais; sem as
proibições de outono, não se poderão evitar vícios e delinquências
sem as proibições de inverno, os vapores terrestres não se fixarão na
terra.
Se se falta contra estas quatro proibições, o yin e o yang não poderão
combinar-se harmoniosamente. Os ventos e as chuvas virão ao seu
tempo, as águas inundarão terras e povoados, os vendavais levarão
casas e arrancarão árvores, os incêndios arrasarão os montes, nevará
no inverno e a terra tremerá. No verão cairá a copa das árvores e no
outono ela voltará a nascer. Os animais não invernarão: os que o
fariam estarão acordados e soltos. Os montes se cobrirão de mal, e se
povoarão de animais e répteis. A cria de gado não prosperará, a
gente morrerá prematuramente, o Estado se empobrecerá e haverá
revolta.

85. O governo daoísta de Laozi, no Daodejing (tratado da


virtude e do caminho)
Do melhor dos governantes
O povo mal sabe que existe.
O Próximo ama e elogia.
O Próximo o teme.
E o Próximo o recrimina
Quando aqueles não regulamentam a fé do povo,
alguns acabam perdendo a fé neles,
e passam então a recorrer aos oráculos! 165
Porém, o melhor disto é após os deveres cumpridos e as tarefas
terminadas,
o povo inteiro observar: "Fomos nós que realizamos tudo sozinhos".
[...]
Quando o governo é indolente e estúpido,
seu povo é despojado.
Quando o governo é eficiente e alerta,
seu povo mostra-se descontente.
O erro está no caminho da fortuna.
Pois a riqueza é a máscara da desgraça.
Quem seria capaz de prever suas derradeiras conseqüências?
Tal como é nunca existiria o normal,
visto que o normal se converteria imediatamente no falso,
e o bom se converteria no sinistro.
Tão longe a humanidade se transviou!
Por isso o Sábio é probo (de firmes princípios), porém sem
exagerada pureza,
cultiva a integridade porém, sem espezinhar os outros,
é correto sem ser voluntarioso,
e brilhante sem chegar a ofuscar.
[...]
Ao dirigir os negócios humanos, não há regra melhor que ser
comedido
Ser comedido é prevenir.
Prevenir é estar preparado e forte.
Estar forte e preparado é antecipar a vitória.
Antecipar a vitória é ter infinita capacidade.
Ter infinita capacidade é estar preparado para dirigir um país, 166
e só a arte (Mãe) de governar um país tem vida perene.
Isto é estar firmemente plantado, ter longa duração,
rumo aberto para a imortalidade e a visão duradoura.
[...]
Governa um grande país como se fosses um peixinho.
Aquele que dirige o mundo de acordo com Dao
acabará achando que os espíritos perdem seu poderio.
Não é que os espíritos percam seu poder,
mas sim que eles cessem de prejudicar o povo.
E não é somente porque eles cessem de prejudicar o povo,
mas que o Sábio, ele próprio, também não prejudique o povo.
Quando um e outro deixam de se prejudicar mutuamente
o poder da Virtude paira entre ambos.
86. O propósito de um Soberano, em Mozi

Mozi disse: ―O propósito do Soberano consiste em outorgar


benefícios ao mundo e libertá-lo das calamidades.‖
Mas quais são os benefícios e calamidades do mundo?
Mozi disse: ―Os ataques recíprocos entre os estados, a mútua
usurpação entre as dinastias, as injúrias recíprocas entre os homens,
a intolerância e a deslealdade entre governo e governados, o
desamor e a ausência de piedade filial entre pai e filho, a desarmonia
entre o irmão mais velho e o mais novo! Eis as maiores calamidades
do mundo.‖

87. O Governo, para Shangyang


Um governo estável é alcançado num estado com base em três
fatores. O primeiro é a lei, o segundo a boa fé e o terceiro os padrões 167
corretos. A lei é exercida em comum pelo príncipe e respectivos
ministros. A boa fé é estabelecida em comum pelo príncipe e
respectivos ministros. O padrão correto é fixado apenas pelo
príncipe. Se um governante de homens deixar de o cumprir, existe
perigo; se o príncipe e os ministros negligenciam a lei e agem
segundo os seus interesses pessoais, a desordem será o resultado
inevitável. Por conseguinte, se a lei é estabelecida, os direitos e
deveres esclarecidos e o interesse pessoal não prejudicam a lei, então
existe um governo estável. Se a criação do padrão correto é decidida
apenas pelo príncipe, existe prestigio. Se as pessoas têm fé nas
recompensas, então as suas atividades alcançarão resultados; e se
depositam fé nas penalidades, então a malvadez não terá sequer
inicio. Somente um governante inteligente preza os padrões corretos
e valoriza a boa fé, não prejudicando, assim, a lei em nome de
interesses pessoais. Se proferir muitas palavras liberais, cortando,
porém, as recompensas, os seus súditos não serão úteis; e se emitir
ordens severas, umas atrás de outras, mas não aplicar as
penalidades, as pessoas desprezarão a pena de morte. Em geral, as
recompensas constituem uma medida civil e as penalidades uma
medida militar. As medidas civis e militares representam a síntese
da lei. Por conseguinte, um governante inteligente deposita
confiança na lei.

88. Regras para o bom governo, de Hanfeizi


(...) Nenhum país é permanentemente forte. Nem todo país é
permanentemente fraco. Se ele se conforma com leis fortes, então o
país é forte; se ele se conforma com leis fracas, o país é fraco...se
existir alguma regra capaz de expulsar os ladrões do privado e 168
sustentar a lei pública, os povos se acharão seguros e o Estado em
ordem; e alguma regra capaz de expurgar a ação privada no ato da
lei pública, encontrará um exército forte e um inimigo fraco. Assim,
procure homens de fora que sigam a disciplina das leis e os
regulamentos, e os coloque num lugar acima do corpo de oficiais.
Então, o soberano não poderá ser iludido por qualquer um com
fraudes e falsidades... [...]
Os meios pelos quais uma regra inteligente controla seus ministros
são somente os dois punhos. Os dois punhos são a punição e a
recompensa. Que significam o castigo e a recompensa? Quando se
infligi a morte ou a tortura em cima dos culpados, é chamado
castigo; já os incentivos para homens do mérito são chamados de
recompensa. Os ministros são receosos do censura e da punição,
mas são afeiçoados ao incentivo e a recompensa.
Conseqüentemente, se o senhor dos homens usar os punhos do
castigo e da recompensa, todos os ministros temerão sua severidade
e por seu turno, sua liberdade. (...) Agora, supondo que o senhor dos
homens colocasse sua autoridade da punição e do lucro não em suas
mãos, mas deixando os ministros administrarem os casos de
recompensa e de punição, a seguir todos no país temeriam os
ministros, e também a regra, voltando-se para os mesmos e
afastando-se da última. Esta é a calamidade da perda da regra dos
punhos do castigo e da recompensa.

169
Visões da Guerra

O desdobramento da política, em alguns casos, é a guerra. Não é


óbvio, porém, que os antigos fossem absolutamente amantes da
guerra, apesar da existência dos xátrias na Índia (a casta guerreira) e
de mestres da estratégia como Sunzi na China. A guerra existia, fosse
como necessidade, ou como conseqüência de interesses políticos. O
hino do Atharva veda, da época védica, traz ainda o fulgor guerreiro
das tribos arianas; as leis de Manu, contudo, já antevêem que a
guerra, mais do que um exercício glorioso, é também uma questão
estratégica importante. No caso chinês, fica claro que a guerra é vista
como uma calamidade para o povo, como parece no poema do
Shijing; mesmo Sunzi, o primeiro autor a escrever um tratado
170
especifico sobre o tema, entende que a guerra é um evento
desastroso e nada romântico, defendo uma vitória pela inteligência,
mais do que pela violência; Mozi e Mêncio, embora de escolas
diferentes, desprezavam o conflito (apesar dos moístas fossem bom
estrategistas também), mas Shangyang, da escola legista, advogava
que a guerra deveria ser uma das principais atividades do governo,
mantendo o povo ocupado e sempre requisitado aos interesses do
Estado. Os regimes totalitários modernos incorporaram idéias
semelhantes, mostrando suas potencialidades e falhas desastrosas.

89. Benção das armas de um príncipe em sua ida para a


guerra, do Atharva veda
Quando está revestido da couraça e avança no meio da batalha, ele
parece uma nuvem de tempestade.
O arco! Manejando-o, iremos apossar-nos das vacas, dos despojos
do combate, e ganhar a batalha. O arco desagrada ao inimigo. Vamos
conquistar com o arco todas as regiões do espaço.
Ela está junto à orelha, como se fosse falar, beijando o amante
querido, a corda! Distendida no arco, vibra como se fosse uma jovem
mulher, salvadora na confusão da luta.
E as duas que a sustentam, como a mãe ao seu filho, que se
aproximam dela, como vai a amante ao encontro do amado, são as
pontas do arco. Repelem os inimigos, expulsam os adversários.
É mãe de muitas filhas e filhos, fazendo-os tinirem quando ela desce
à arena, a aljava. Amarrada às costas, logo agitada, ganha as
batalhas.
Em pé no carro está hábil cocheiro, estimulando os cavalos até onde
ele quiser. Admirai a beleza das rédeas. As bridas vêm de trás e 171
dirigem o animal segundo o pensamento do cocheiro.
Quando avançam com os carros, os cavalos fazem ruído, os cavalos
de ferraduras fortes. Pisando o inimigo, eles destroem o adversário.
A oblação é a carreta onde se colocam as armas e a couraça. Quem
nos dera estar sempre de coração alegre, sentados no carro.
Sentados em círculo para sorverem a doce bebida, estão os Manes,
doadores de vida, apoio no perigo, valorosos, profundos, brilho das
armas, impulso das flechas, incansáveis, corajosos, dominadores dos
clãs.
Ó brâmanes, Pais que honram o soma, sede benevolentes conosco,
vós e também o Céu e a Terra, que ninguém domina. Puschan,
defenda-nos do mau passo. Salvai-nos, vós que sois exaltado pela
ordem Universal. Nenhuma palavra pérfida nos domina.
A flecha tem a pena da águia, seu dente é o da fera e, presa na corda
do arco, ela voa quando se solta. Onde os soldados se juntam ou se
separam, venham as flechas socorrer-nos.
Ó flecha direita, poupa-nos! Seja de pedra o nosso corpo! Interceda
por nós, Soma. Conceda-nos um abrigo, Aditi!
Ó chicote, açoita o lombo dos animais! Ó chicote, estimula os cavalos
ao combate!
A luva enrola-se no braço como se fosse uma ser- pente. Proteja o
braço do valente.
Embebida em arsênico, cabeça de antílope com boca de aço, semente
de Parjania, a Flecha! A nossa homenagem dirige-se a essa deusa.
Voa longe, Dardo afiado pela oração! Vai, penetra nas fileiras dos
inimigos, sem poupar nenhum deles!
Quando as flechas voam juntas, como rapazes em cavalos
impetuosos, Briaspati e Aditi ofereçam-nos um refúgio em toda 172
parte, sempre um refúgio!
Protejo suas partes vitais com a couraça. Digne-se Soma Rei vestir-te
de imortalidade, Varuna, abrir-te um campo livre, e os deuses
saudarem sua vitória!
Quem pretende matar-nos, longe ou próximo de nós, destruam-nos
os deuses! A oração é a minha couraça interior!

90. A guerra nas leis de Manu


Quando um rei sabe que em algum momento próximo a
superioridade será sua, e que na presente ocasião seus danos serão
pequenos, então ele deve apelar para medidas pacificadoras
Mas quando ele está realizado em todos os sentidos, que há paz,
contentamento, e que o povôo exalta como um grande líder, então o
deixe ir à guerra.
Quando seu exército alegre, disposto e forte, e o de seu inimigo está
fraco e desanimado, o deixe marchar contra o seu inimigo.
Mas se o rei for fraco, tiver poucas carruagens, poucas montarias
para o transporte e poucos soldados, deixe-o acalmar-se,
cuidadosamente, e tente conciliá-lo gradualmente com seus
inimigos.
Quando o rei sabe que o seu inimigo é muito mais forte que ele,
então deixe que o inimigo divida suas forças para assim alcançar os
seus propósitos.
Mas se um rei for muito fraco e facilmente dominável por seus
inimigos, então deixe que ele fuja para o abrigo de um outro rei mais
forte rapidamente.
Que ele sirva ao rei que o abriga, que trata de seus assuntos e de seu
inimigo, com todo esforço, como se este fosse seu guru. 173
Que ele percebe até quando, e como, é desfavorável a proteção que
ele pede aos outros, ou o mal que ele causa quando vai a guerra.
Por isso um príncipe se baseia no seguinte princípio: que nem seus
amigos, inimigos, e nem os neutros são mais fortes do que ele.
Ele deve considerar o destino de todas as suas ações, suas
conseqüências, o lado bom e ruim de tudo o que faz.
Ele sabe que o bem e o mal serão resultados de seus atos, tanto no
futuro quanto do passado. Se ele entender isso, não será
conquistado.
Se ele souber se organizar de modo que nenhum amigo, inimigo ou
neutro seja mais poderoso que ele, isso será a sabedoria política.
91. Um Soldado pensando no Lar, do shijing
Vou até o alto daquela colina coberta de árvores,
E olharei em direção à casa paterna,
Até que com os olhos do espírito possa divisá-la,
E com os ouvidos do espírito possa ouvir meu pai dizer:
- Pobre de meu filho que está em serviço fora de nossa terra!
Ele não descansa de manhã até o anoitecer.
Possa ele ser cuidadoso e voltar para meus braços!
Enquanto está longe, como eu sofro!
Subo até o alto daquela colina estéril,
E olho pensando em minha mãe,
Até que com os olhos do espírito diviso suas feições
E com os ouvidos do espírito ouço o que ela diz:
- Ai! O meu pobre filho está em serviço longe de mim! 174
Ele nunca fecha os olhos num bom sono.
Que ele tenha cuidado consigo e que volte a meus braços!
Que seu corpo não fique no meio das selvas!
As mais altas cadeias de montanhas eu, com esforço, subo
E olhei pensando em meu irmão.
Até que com os olhos do espírito divisei sua silhueta,
E com os ouvidos do espírito ouço o que ele diz:
- Ai de mim! meu irmão mais novo está servindo fora do país. O dia
inteiro deve vaguear com seus camaradas.
Que ele tenha cuidado consigo e que volte para perto de mim
E que não morra longe de nosso lar!
92. Sobre as proposições da vitória e a derrota, em Sunzi
Como regra geral, é melhor conservar um inimigo intacto do que
destruí-lo. Captura seus soldados para conquistá-los, e domina seus
chefes.
Um General dizia: "Pratica as artes marciais; calcula a força de teus
adversários; faz com que percam o ânimo e a orientação, de maneira
que ainda estando intacto, o exército inimigo fique imprestável: Isto
é ganhar sem violência. Se destruíres o exército inimigo e matares
seus generais, assaltas suas defesas disparando, reúnes uma
multidão e usurpas um território, tudo isto é ganhar pela força."
Por isto, os que ganham todas as batalhas não são realmente
profissionais; os que conseguem que se rendam impotentes os
exércitos alheios sem lutar, são os melhores mestres do Arte da
Guerra. 175
Os guerreiros superiores atacam enquanto os inimigos estão
projetando seus planos. Logo desfazem suas alianças.
Por isso, um grande imperador dizia: "O que luta pela vitória frente
a espadas nuas não é um bom general." A pior tática é atacar uma
cidade. Assediar, encurralar uma cidade só se leva a cabo como
último recurso.
Emprega não menos de três meses em preparar teus artefatos e
outros três para coordenar os recursos para teu assedio. Nunca se
deve atacar por cólera e com pressa. É aconselhável tomar-se tempo
na organização e coordenação do plano.
Portanto, um verdadeiro mestre das artes marciais vence outras
forças inimigas sem batalha, conquista outras cidades sem assediá-
las e destrói outros exércitos sem empregar muito tempo.
Um mestre experiente nas artes marciais desfaz os planos dos
inimigos, estropia suas relações e alianças, corta os mantimentos ou
bloqueia seu caminho, vencendo mediante estas táticas sem
necessidade de lutar.
É imprescindível lutar contra todas as facções inimigas para obter
uma vitória completa, de maneira que seu exército não fique
aquartelado e o beneficio seja total. Esta é a lei do assédio
estratégico.
A vitória completa se produz quando o exército não luta, a cidade
não é assediada, a destruição não se prolonga durante muito tempo,
e em cada caso o inimigo é vencido pelo emprego da estratégia.
Assim, pois, a regra da utilização da força é a seguinte: se as tuas
forças são dez vezes superiores às do adversário, cerca-o; se são
cinco vezes superiores, ataca-o; se são duas vezes superiores, divide-
o. 176
Se tuas forças são iguais em número, luta se te é possível. Se tuas
forças são inferiores, te mantém continuamente em guarda, pois a
menor falha te acarretaria as piores conseqüências. Trata de manter-
te ao abrigo e evita o quanto possível um enfrentamento aberto com
ele; a prudência e a firmeza de um pequeno número de pessoas
podem chegar a cansar e a dominar até grandes exércitos.
Este conselho se aplica nos casos em que todos os fatores são
equivalentes. Se tuas forças estão em ordem enquanto que as do
inimigo estão imersas no caos, se tu e as tuas forças estão com ânimo
e eles desmoralizados, então, mesmo que sejam mais numerosos,
podes entrar em batalha. Se teus soldados, as tuas forças, a tua
estratégia e o teu valor são menores que os de teu adversário, então
deves retirar-te e buscar outra alternativa.
Em conseqüência, se o bando menor é obstinado, cai prisioneiro do
bando maior.
Isto quer dizer que se um pequeno exército não faz uma avaliação
adequada de seu poder e se atreve a enfrentar uma grande potência,
por mais que a sua defesa seja firme, inevitavelmente se converterá
em conquistado. "Se não podes ser forte, porém tampouco sabes ser
débil, serás derrotado." Os generais são servidores do Povo. Quando
seu serviço é completo, o Povo é forte. Quando seu serviço é
defeituoso, o Povo é débil.
Assim, pois, existem três maneiras pelas quais um Príncipe leva o
exército ao desastre. Quando um Príncipe, ignorando as ações,
ordena avançar a seus exércitos ou retirar-se quando não devem
fazê-lo; a isto se chama imobilizar o exército. Quando um Príncipe
ignora os assuntos militares, porém compartilha em pé de igualdade
o mando do exército, os soldados acabam confusos. Quando o 177
Príncipe ignora como levar a cabo as manobras militares, porém
compartilha por igual sua direção, os soldados estão vacilantes. Uma
vez que os exércitos estão confusos e vacilantes, iniciam os
problemas procedentes dos adversários. A isto se chama perder a
vitória por transtornar o aspecto militar.
Se tentas utilizar os métodos de um governo civil para dirigir uma
operação militar, a operação será confusa.
Triunfam aqueles que:
Sabem quando lutar e quando não.
Sabem discernir quando utilizar muitas ou poucas tropas.
Possuem tropas cujas categorias superiores e inferiores têm o
mesmo objetivo.
Enfrentam com preparativos os inimigos desprevenidos.
Tem generais competentes e não limitados por seus governos civis.
Estas cinco são as maneiras de conhecer o futuro vencedor.
Falar que o Príncipe seja o que dá as ordens em tudo é como o
General solicitar permissão ao Príncipe para poder apagar um fogo:
quando for autorizado, já não restam senão cinzas.
Se conheces os demais e te conheces a ti mesmo, nem em cem
batalhas correrás perigo; se não conheces os demais, porém te
conheces a ti mesmo, perderás uma batalha e ganharás outra; se não
conheces aos demais nem te conheces a ti mesmo, correrás perigo
em cada batalha.

93. Contra a Guerra, em Mozi


Falemos agora dum só país em pé de guerra. Se for no inverno,
agravar-se-á o frio. Se for verão, o calor será excessivo. Se for na
primavera, a peleja inibirá os camponeses de semear e plantar; se for 178
no outono, tornará impossível a colheita e a segadura. Em qualquer
dessas estações, desde que os homens sejam arrancados aos campos,
inúmeras pessoas morrerão de fome e de frio. E, quando os exércitos
partem, com setas de bambu, flâmulas de penas, barracas,
armaduras, escudos e cabos de punhais... Inúmeras dessas coisas
serão quebradas, destruídas e jamais voltarão. As lanças, as adagas,
as espadas, os punhais, os carros, as carroças... Serão destruídos em
grande número e nunca voltarão. Numerosos cavalos e bois, que
partiram bem nutridos, se voltarem, voltarão descarnados. E
inúmeras pessoas morrerão à míngua, por lhes serem tirados os
mantimentos e não receberem – devido às grandes distâncias –
novas provisões. Inúmeros seres adoecerão e perecerão, em virtude
do constante perigo e da irregularidade com que comem e bebem,
dos extremos da fome ou dos excessos. Então o exército será
dizimado em grande parte, ou aniquilado na sua totalidade; noutros
casos, o número das vítimas pode ser incalculável. Isto significa que
os espíritos perderão os seus adoradores, e o número destes também
seria incontável.
Por que, então, o governo priva o povo de oportunidades e benefícios
em tamanha extensão? A resposta será: ―O motivo é: Ambiciono a
fama do triunfador e as possessões que se obtém pelas conquistas‖.

94. A guerra é um massacre, em Mêncio


O rei Huei de Liang disse: "Apesar da minha fraca virtude, ponho
todo o empenho em governar bem o meu reino. Se o ano for infausto
em Ho, removo todas as pessoas que posso para leste do Ho e
transporto cereais àquela região. Se o ano for mau a leste do rio,
procedo, noutra parte, de acordo com o mesmo plano. Examinando 179
os métodos governamentais, nos reinos vizinhos, não vejo soberano
que se esforce como eu. Contudo, a população dos reis vizinhos não
diminui; nem aumenta o meu povo. Como é isto?"
Mêncio replicou: "Vós prezais a guerra, Majestade. Permiti que vos
trace um quadro da guerra. Os soldados avançam, ao som do
tambor; e, quando o gume das suas armas se embota, eles despem as
couraças, arrastam as armas atrás de si e fogem. Alguns correm cem
passos e param; outros dão cinqüenta passos e param. Que
pensaríeis vós, se os que só andaram cinqüenta passos se rissem dos
que deram cem passos?"
O rei observou: "Eles não podem fazer isso. Os outros não
alcançaram cem passos, mas também fugiram".
"- Desde que sabeis isso, Majestade", tornou Mêncio, "não tendes
razão para esperar que o vosso povo se torne mais numeroso do que
as populações dos reinos vizinhos".

95. A guerra, em Shangyang


Geralmente, no método aplicado nas campanhas militares, o
principio fundamental consiste em tomar as medidas
governamentais supremamente prevalecentes. Se tal for alcançado,
então as pessoas envolvidas não terão disputas; e, não tendo
disputas, não terão pensamentos sobre interesses próprios, mas sim
sobre os interesses do governante. Por conseguinte, um verdadeiro
rei, através das medidas adotadas, tornará as pessoas receosas nos
combates entre várias cidades, mas valentes nas guerras contra os
inimigos externos. Se as pessoas forem treinadas para atacar os
perigos com vigor, estas não darão tanto valor à morte. Se,
porventura, o inimigo for perseguido assim que o combate se iniciar 180
e não cessar a sua retirada, abstende-vos de alcançar mais longe. [...]
Se um estado, ao ser pobre, se dedica à guerra, o veneno nascerá no
lado do inimigo e não terá os seis parasitas, mas será certamente
forte. Se um estado, quando é rico, não se dedica à guerra, o veneno
será transferido para o seu próprio interior, terá os seis tipos de
parasitas e será certamente fraco. Se o estado confere posição e
estatuto de acordo com o mérito, pode afirmar-se que concebe
planos com absoluta sabedoria e combate com plena coragem. Tal
país certamente será inigualável. Se um estado confere posição e
estatuto de acordo com o mérito, então as medidas governamentais
serão simples e as palavras serão poucas. Isto pode ser considerado
abolir as leis através da lei e abolir as palavras através das palavras.
Todavia, se um estado concede posição e estatuto de acordo com os
seis parasitas, então as medidas governamentais serão complexas e
as palavras emergirão. Isto pode ser considerado criar leis através da
lei e dar origem à loquacidade através das palavras. Então, o
príncipe dedicar-se-á a eloqüência, os funcionários estarão
distraídos a dirigir os funcionários malvados e estes terão proveitos
próprios, enquanto os que possuem mérito retirar-se-ão cada vez
mais, dia a dia. A isto pode chamar-se fracasso. Quando há que
cumprir dez regras, estabelece-se a confusão; quando há apenas uma
para cumprir, existe ordem. Quando a lei é estabelecida, aqueles que
gostam de praticar os seis parasitas deteriorar-se-ão. Se as pessoas
se dedicam inteiramente a agricultura, o estado é rico; se os seis
parasitas não são praticados, então os soldados e as pessoas, sem
exceção, rivalizarão entre si por incentivo e ficarão satisfeitos por
serem utilizados pelo governante; as pessoas, dentro dos limites das
fronteiras, rivalizarão entre si, considerando este fato honroso e não 181
vergonhoso. Em seguida, surgirá a circunstância em que as pessoas
rivalizarão entre si porque são incentivadas por via de recompensas
e reprimidas por via de punições. Contudo, o pior caso dá-se quando
as pessoas desprezam algo, são ansiosas e tem vergonha desta
situação; então, adornam as aparências exteriores e dedicam-se à
eloqüência; tem vergonha de assumir uma posição e exaltam a
cultura. Deste modo, negligenciam a agricultura e a guerra e
contemplando, assim, os interesses externos, criar-se-á um clima de
perigo para o país. Possuir pessoas a morrer de fome e de frio,
possuir mais vontade para lutar em nome do lucro e da gratificação
são práticas correntes num estado em deterioração. Os seis parasitas
são: festejos e música, odes e história, cultura moral e virtude,
piedade filial, obrigação fraternal, sinceridade e fé, castidade e
integridade, benevolência e justiça, criticismo do exército e vergonha
de lutar. Se existirem estes doze fatores, o governante é incapaz de
convencer as pessoas a cultivar as terras e a combater, pelo que o
estado será tão pobre, levando-o a ser desmembrado. Se estes doze
fatores se manifestam em conjunto, então poderá afirmar-se que a
administração do príncipe não é mais forte do que os seus ministros
e que a administração dos seus funcionários não é mais forte do que
o seu povo. Esta é considerada uma condição em que os seis
parasitas são mais fortes do que o governo. Quando estes doze
fatores adquirem um elo de ligação, então se dá o desmembramento.
Por conseguinte, para tomar um país próspero, não se deviam
praticar estas doze coisas; então, o estado terá muito mais força e
ninguém, no império, será capaz de invadi-lo. Quando os seus
soldados partem, atingirão o seu objetivo e, ao atingi-lo, serão
capazes de o manter. Quando um estado mantém os seus soldados 182
na reserva e não procede a ataques, tomar-se-á certamente rico. Os
funcionários da corte não rejeitam qualquer mérito, apesar do
pequeno número que representam, nem depreciam qualquer mérito,
apesar do grande número que representam. A posição e estatuto são
obtidos em função do mérito conquistado e, embora possam existir
conversas sofisticas, será impossível obter precedência indevida. Isto
é definido como o governo baseado em estatísticas. Ao atacar com
força, são ganhos dez pontos por cada ponto empreendido, mas no
ataque com palavras, perdem-se cem por cada palavra proferida. Se
um estado preza a força, diz-se que ataca com o que é difícil; se um
estado preza as palavras, diz-se que ataca com o que é fácil. Se as
penalidades são pesadas e as recompensas são poucas, então o
governante ama o seu povo e este morrerá por si; se as recompensas
são pesadas e as penalidades leves, então o governante não ama o
seu povo nem este morrerá por si. [...]
No domínio dos assuntos externos relacionados com as pessoas, não
há nada mais difícil do que as campanhas militares, daí uma lei fácil
não as poderem induzir a integrá-las. O que se chama de uma lei
fácil? É quando as recompensas são poucas e a autoridade é fraca e
quando as doutrinas depravadas não são obstruídas. O que se chama
de doutrinas depravadas? Existem quando o palavrório e o
conhecimento são valorizados, quando os políticos itinerantes
recebem cargos e quando a erudição e reputação particular se
encontram em evidência. Quando estes três fatores não são detidos,
as pessoas não combaterão e as questões esmorecerão. Uma vez que,
quando as recompensas são poucas, não se encontra qualquer
vantagem na obediência; quando a autoridade é fraca, não há
qualquer mal na transgressão. Desta forma, as doutrinas depravadas 183
são iniciadas de forma a induzir em erro as pessoas; e fazê-las lutar
enquanto a lei é fácil é como colocar um gato a engodar um rato. Não
será isto possível? Por conseguinte, aquele que deseja que o seu povo
lute providencia para que a lei seja severa; conseqüentemente, as
recompensas serão numerosas, a autoridade será rigorosa, as
doutrinas depravadas serão proibidas, aqueles que se dedicam ao
palavrório e ao conhecimento não serão honrados, os políticos
itinerantes não serão empregados no poder, a erudição e a reputação
privada não se evidenciarão. Se as recompensas são numerosas e a
autoridade rigorosa, então as pessoas, ao ver que na guerra as
recompensas são muitas, esquecerão o risco da morte e, ao ver a sua
degradação quando não existe guerra, considerarão a vida difícil.
Quando as recompensas os fazem esquecer do risco da morte e a
autoridade rigorosa os leva a considerar a vida difícil e, além disso,
as doutrinas depravadas são proibidas, deste modo enfrentar o
inimigo seria como disparar, com uma besta com capacidade de cem
piculs, sobre uma folha esvoaçante. Como seria possível não
sucumbir?

184
A Ciência de Registrar o Passado

Enquanto a Índia não possuía nenhuma concepção histórica


desenvolvida, em função da sua crença firme na questão da
realidade transcendente (e que este mundo material seria uma
incessante repetição de padrões), a China desenvolveu uma fixação
pela história como ciência, ensejando a evolução de métodos e
teorias até os dias de hoje. Por isso, esta seção se apresenta de modo
díspar: pela Índia, um extrato do Vishnu purana nos dá uma idéia do
que era a história para os indianos nas épocas antigas –
simplesmente contos, apólogos, que nós chamaríamos mesmo de
lendas, mas que para os indianos tinha valia se contivesse alguma
forma de ensinamento espiritual – ou seja, a história se afirmava por 185
acontecimentos inéditos e divinos merecedores de serem lembrados
por seus conteúdos religiosos. Do outro lado, a China apresenta-nos
uma tradução histórica devidamente assentada na avaliação moral,
na pesquisa das fontes e na reflexão ativa e explicativa. O primeiro
destes historiadores teria sido o próprio Confúcio, seguido depois
por outros autores até a aparição de Sima Qian, o grande ideólogo
dos métodos históricos chineses. Nesta relação, vemos
primeiramente um trecho do Chunqiu (primaveras e outonos),
crônica seca organizada por Confúcio, que necessitou
posteriormente de comentários explicativos, como o do zuozhuan.
Sua função era organizar as datas dos principais eventos, buscando
depois ilustrá-los com análises morais. O shujing (tratado dos livros)
é a coletânea de discursos e acontecimentos importantes do passado
chinês, reorganizados pelo mesmo Confúcio; o zhanguoce, uma
coleção de histórias posteriores, foi coligida nos tempos dos estados
combatentes (471-221 aec), não tendo um autor definido; por fim,
Sima Qian, da dinastia Han, apresenta-nos uma biografia, cuja
análise do personagem principal guarda o sentido do texto; uma
análise filosófica e moral da realidade, com fins educativos.

96. A Agitação do Oceano Pelos Deuses, no Vishnu purana


Sendo assim instruídas pelo deus dos deuses, as divindades
entraram em aliança com os demônios; e conjuntamente
compreenderam a aquisição da bebida da imortalidade. Reuniram
diversos tipos de ervas medicinais e jogaram-nas no mar de leite,
cujas águas eram radiantes como as nuvens finais e brilhantes do
outono. Depois, tomaram o monte Mandara por bastão, a serpente
Vasuki por corda e começaram a agitar o oceano para conseguir a 186
Ambrosia. Os deuses reunidos foram colocados por Krishna na
cauda da serpente; os daityas e danavas (a), em sua cabeça e
pescoço. Tostados pelas chamas emitidas de seu capuz inflado, os
demônios foram tosquiados de sua glória; enquanto as nuvens,
levadas para sua cauda pelo hálito de sua boca, refrescavam os
deuses com lufadas reconfortantes. Em meio ao mar lácteo, o
próprio Hari (b), na forma de uma tartaruga, serviu como pivô para
a montanha enquanto a mesma era girada. O portador da maça e
disco (b) estava presente, em outras formas, entre os deuses e
demônios e ajudou a arrastar o monarca da raça de serpentes; e em
outro corpo vasto, sentou-se no cume da montanha. Com uma
porção de sua energia, invisível a deuses e demônios, sustentou o rei
as serpentes e com outra infundiu vigor aos deuses.
Do oceano, agitado assim pelos deuses e Danavas, surgiu primeiro a
vaca Surabhi, a fonte de leite e coalhos, adorada pelas divindades e
contemplada por elas e seus companheiros com mentes perturbadas
e olhos brilhando de prazer. Então, enquanto os Santos no céu
imaginavam o que isto podia ser, surgiu a deusa Varuni,(c) com
olhos agitados pela embriaguez. Em seguida do redemoinho das
profundezas surgiu a árvore Parijata,(d) o deleite das ninfas no céu;
perfumando o mundo com suas flores. Foi produzida então a tropa
dos apsararas,(e) de surpreendente beleza, dotada de encanto e bom
gosto. Surgiu em seguida a lua de raios frios, sendo tomada por
Mahadeva;(f) e depois foi engendrado o veneno pelo mar, do qual as
najas (g) tomaram posse. Dhanvantari, vestido de branco e trazendo
na mão a taça de ambrósia, veio em seguida e em sua contemplação
os filhos de Diti e de Danu,(h) bem como os ascetas, se encheram de
satisfação e prazer. 187
Depois, sentada numa flor de lótus e segurando um nenúfar em sua
mão, surgiu das ondas a deusa Shri,(i) radiante de beleza.
Extasiados, os grandes sábios a homenagearam com hinos na canção
em seu louvor, Vishvavasu (j) e outros coristas cantaram e Ghrtaci e
outras ninfas celestes dançaram em seu redor. Ganga e outras
correntes santas se apresentaram para suas abluções, e os elefantes
dos céus, tomando suas águas puras em vasos de ouro, derramaram-
nos sobre a deusa, a rainha do mundo universal. O mar de leite
pessoalmente presenteou-a com uma coroa de flores perenes e o
artista dos deuses a decorou com ornamentos celestes. Assim
banhada, vestida e adornada a deusa, à vista dos celestiais, atirou-se
sobre o peito de Hari, e ali reclinada voltou os olhos para as
deidades, que se inspiraram extasiadas com seu olhar.
Não aconteceu assim com os daityas,(k) que com Vipracitti à sua
frente, encheram-se de indignação quando Vixnu se afastou deles, e
foram abandonados pela deusa da prosperidade.
Os daityas poderosos e indignados tomaram então à força a taça de
Ambrósia que estava nas mãos de Dhanvantari. Mas Vixnu,
assumindo forma feminina, fascinou-os e iludiu-os e retomando a
taça, entregou-a aos deuses. Shakra (l) e as demais deidades
embarcaram a
Ambrósia. Os demônios irritados, empunhando suas armas, caíram
sobre eles, mas os deuses, em quem a força da Ambrósia infundira
vigor novo, derrotaram e puseram seu anfitrião a fugir, e eles
escaparam pelas regiões do espaço, mergulhando nos reinos
subterrâneos. Com isso os deuses se rejubilaram, prestaram
homenagem ao portador da maça e do disco, (b) e retomaram seu
reino no céu. O sol brilhou com esplendor renovado e retomou a 188
tarefa que lhe fora atribuída; e os luminares celestes novamente
giraram em suas respectivas órbitas. O fogo mais uma vez ardeu,
belo em seu esplendor; e as mentes de todos os seres foram
animadas pela devoção. Os três mundos foram novamente tornados
felizes pela prosperidade e Indra, o chefe dos deuses, restaurado em
seu poder. Sentado em seu trono e mais uma vez no céu, exercendo
soberania sobre os deuses, Shakra (l) elogiou a deusa que traz um
lótus em sua mão. Louvada, a agradecida Shri, morando em todas as
criaturas e ouvida por todos os seres, respondeu ao deus dos cem
ritos(l)
"Estou feliz, monarca dos deuses, por tua adoração. Pede de mim o
que quiseres. Eu vim para satisfazer teus desejos". "Deusa", replicou
Indra, "se tu acederes às minhas orações; se sou digno de tua
generosidade, que seja este o meu primeiro pedido - que os três
munos jamais sejam novamente privados de tua presença. Minha
segunda súplica, filha do oceano, é que não esqueças aquele que
celebre teus louvores nas palavras que te dirigi". "Eu não
abandonarei os três mundos outra vez‖, respondeu a deusa. "Este
teu primeiro pedido é satisfeito, pois estou feliz por teus louvores.
Além disso, jamais virarei o rosto para o mortal que, de manhã e de
tarde, repetir o hino com que te dirigiste a mim".
a) Duas classes de demônios.
b) Vixnu.
c) A deusa do vinho.
d) Árvore paradisíaca.
e) Ninfas do céu.
f) Xiva.
g) Deidades das serpentes. 189
h) Demônios.
i) Divindade feminina da glória e Prosperidade.
J) Chefe dos Gandharvas, classe de semideuses.
k) Demônios.
l) Indra, chefe dos deuses.

97. Uma passagem do Chunqiu (Primaveras e Outonos),


comentada pelo Zuozhuan de Zuoqiuming
"Na primeira lua da primavera do nono ano do seu reinado, o duque
de Chuang derrotou o exército do estado de Qi em Chang Cho".
Comentário do Zuozhuan: Tendo o estado de Qi declarado guerra ao
nosso estado, e estando o nosso duque preparado para iniciar a
campanha, apareceu um homem chamado Kuei a pedir uma
audiência. Disseram-lhe os seus conselheiros:
- Os oficiais já decidiram sobre as estratégias a adotar. Que papel
pensas desempenhar nesses planos? - Eles não passam de um grupo
de incompetentes, que não têm a menor idéia do que sejam planos
secretos. Kuei acabou por ser levado a presença do duque, e
imediatamente interrogou: "Que forças dispõe vossa alteza para
fazer a guerra?
- Nunca monopolizei alimentação e roupas, sempre as partilhei com
todos - respondeu o duque.
- Isso não passou de um pequeno favor, compartilhado apenas por
alguns. O povo não o acompanhará, fiado apenas nesse motivo.
- Bem - continuou o duque - nos sacrifícios aos deuses, confiei mais
na sinceridade do coração do que no fausto das aparências.
- Também isso constitui uma razão insuficiente. Os deuses não
abençoarão as vossas armas baseados apenas nessa desculpa. 190
- Nas investigações judiciais, ainda que fosse difícil dar com a
verdade, tomei decisões sempre de acordo com provas que me foram
apresentadas.
- Também isso está longe de lhe dar a certeza de confiar no povo, e
pode comprometer o resultado da guerra por causa disso. Peço-lhe,
assim, para o acompanhar na sua campanha.
A isto o duque acedeu, levando Kuei na sua própria carruagem.
A batalha travou-se em Chuang-Cho. E à vista do inimigo, o nosso
duque deu sem demora as suas instruções para se iniciar o ataque,
mas Kuei advertiu:
-Ainda não.
E só quando os tambores do inimigo rufaram três vezes é que Kuei
aconselhou a não atacar.
E o duque prontamente deu ordens para os perseguir, mas Kuei
tornou a dizer:
-Ainda não.
Apeou-se da carruagem, e estudou cuidadosamente os trilhos dos
carros adversários. E só depois de examinar tudo com os seus olhos,
gritou:
- Agora.
E o duque deu ordem então para perseguir os inimigos.
Quando a batalha foi totalmente ganha, o duque pediu a Kuei uma
explicação da sua tática.
- Uma batalha - respondeu este - depende inteiramente, e acima de
tudo, do ardor dos combatentes. Ao primeiro sinal do tambor, o
ardor do inimigo estava violentamente excitado. Com o segundo,
começou a atenuar-se. E com o terceiro, entrou em exaustão. Então,
quando o ardor do inimigo chegou a essa fase, estavam os nossos no 191
auge do seu ardor.
Assim os vencemos. Mas, contra uma formidável força inimiga, deve
estar-se preparado para tudo. Receava uma emboscada. Mas
verifiquei pelos trilhos das carruagens, que a retirada foi feita em
visível desordem. Reparei igualmente nos seus pendões, e concluí
que se agitavam também em confusão. Portanto, aconselhei que só
nessa altura se perseguisse o inimigo".

98. O Canon de Yao, do Shujing


Investigando a Antigüidade, verificamos que Ti Yao se chamava
Fang- xün. Era reverente, esclarecido, instruído e atento, com
naturalidade e sem esforço. Era sinceramente cortês e capaz de toda
e qualquer complacência. A gloriosa influência dessas qualidades foi
sentida nos quatro quadrantes do território e alcançou o céu no alto
e a terra aqui em baixo.
Distinguiu os capazes e virtuosos; depois, amou a todos aqueles
pertencentes às nove classes da sua parentela, que assim se tomou
harmoniosa. Regulamentou e refinou também o povo dos seus
domínios, que se tornou todo ele brilhantemente esclarecido. Por
fim unificou e harmonizou os inúmeros estados; assim se
transformaram as populações de cabelos pretos. E o resultado foi a
concórdia universal.
Ordenou aos Xi e He, em reverente acordo com a sua observação dos
largos céus, que calculassem e desenhassem os movimentos e
aparências do sol, da lua, das estrelas e dos espaços zodiacais; e,
desse modo, respeitosamente decretassem quais as estações a serem
observadas pelo povo.
Ordenou separadamente ao segundo irmão Xi que residisse em Yü-i, 192
no lugar denominado Vale Brilhante e ai respeitosamente
hospedasse o sol nascente e regulasse e ordenasse os trabalhos da
primavera. "O dia", disse ele, "é de duração média e a estrela está em
Mao; - assim podereis determinar exatamente o meio da primavera.
O povo está disperso pelos campos e os pássaros e animais se
cruzam e copulam".
Depois ordenou ao terceiro irmão Xi que residisse em Naon- chiao,
no lugar denominado Capital Brilhante, para que regulasse e
ordenasse as transformações do verão e respeitosamente observasse
os limites exatos da sombra. "O dia", disse ele, "está na sua duração
máxima e a estrela acha-se em Huo; - assim podereis determinar
exatamente o meio do verão. O povo está mais disperso e os pássaros
e animais, com as penas e o pêlo ralos, mudam de roupagem".
Ordenou separadamente ao segundo irmão He que residisse no
ocidente, no lugar denominado Vale Obscuro e aí respeitosamente
acompanhasse o sol poente e regulasse e ordenasse os trabalhos do
outono, em conclusão. "A noite", disse ele, "está na sua duração
média e a estrela acha-se em Hou; - assim podereis determinar
exatamente o meio do outono. O povo sente-se bem e os pássaros e
animais estão com a sua roupagem em bom estado".
Depois ordenou ao terceiro irmão He que residisse na região norte,
no lugar denominado Capital Sombria e aí regulasse e observasse as
mudanças do inverno. "O dia", disse ele, "está na sua duração
mínima e a estrela acha-se em Mao; - assim podereis determinar
exatamente o meio do inverno. O povo fica em casa e a roupagem
dos pássaros e animais é farta e recoberta de penas ou pêlos".
Disse o Ti (imperador): "Ah! vós, Xi e He, um ano inteiro consiste de
trezentos e sessenta e seis dias. Mediante o mês intercalar, fixam as 193
quatro estações e completai o período do ano. E após, estando os
vários funcionários assim regulamentados, todos os trabalhos serão
plenamente executados".

99. Contra os áulicos sistemáticos, do Zhanguoce, ou


Discursos dos estados combatentes
O Rei Wei, de Qi, vivia inteiramente cercado de cortesãos que lhe
afagavam a vaidade e seguiam seus caprichos. Certo dia, Zou Chi
disse ao rei:
— Majestade, não sou exatamente de má aparência. (Era homem de
―oito pés‖ de altura). Mas, no norte da cidade, há um Sr. Shu, famoso
por seu belo aspecto. Um dia, fiquei em frente ao espelho e perguntei
a minha mulher: ―Quem achas mais bonito, eu, ou o Sr. Shu?‖ ―Tu,
naturalmente‖, respondeu minha mulher. Não ousei basear-me em
sua palavra e fiz a mesma pergunta à minha concubina. ―Como pode
o Sr. Shu comparar-se contigo?‖, foi sua resposta. Na manhã
seguinte, chegou um visitante e, após uns instantes, fiz-lhe a mesma
pergunta; ele respondeu: ―O Sr. Shu não pode comparar-se contigo‖.
No dia imediato, o próprio Sr. Shu foi visitar-me. Examinei-o
cuidadosamente e achei que ele era muito mais bonito do que eu.
Olhei-me bem ao espelho e fiquei inteiramente convencido de que eu
não me podia comparar a ele. Assim, deitei-me em minha cama e
pensei: minha mulher me louva, porque é parcial em relação a mim;
minha concubina me louva, porque tem medo de mim; meu amigo
me louva, porque tem algo a pedir-me. Ora, Qi é um reino de mil li
quadrados, com cento e vinte cidades. todas as damas e todos os
servidores do palácio são parciais em relação a Vossa Majestade.
Todos os cortesãos têm medo de seu poder. E todo o povo tem 194
alguma coisa a pedir-lhe. Assim, parece-me difícil que Vossa
Majestade consiga ouvir a verdade.
— Dizes bem — respondeu o rei. Então, baixou um decreto: ‗Todos
os ministros, funcionários e pessoas comuns que puderem mostrar
meus enganos receberão a mais alta classe de recompensas. Os que
escreverem cartas para aconselhar-me receberão a recompensa de
segunda classe. E os que puderem criticar-me e a meu governo na
praça do mercado, de modo que isso me chegue aos ouvidos,
receberão a recompensa de terceira classe‖.
Baixado o decreto, viu-se o rei inundado por uma torrente de
conselhos e a corte ficou repleta de gente. Isso continuou por vários
meses. Um ano depois, não havia erro do governo que não tivesse
sido considerado e apontado por alguém. Os países vizinhos, Yen,
Chao, Han e Wei, souberam do que o rei fizera e acabaram
reconhecendo o Estado de Qi como seu dirigente. Isso é o que se
chama ganhar a guerra sem sair de casa.

100. A Vida de Po Yi, por Sima Qian, no Shiji (Recordações


Históricas)
Certas pessoas dizem (citando o Livro da História): ―o Céu é
imparcial. Está com os homens que andam na retidão‖. Nós
diríamos que Poyi e Shuchi eram homens retos, não é verdade?
Eram homens de grande força de caráter e de rígidos princípios;
contudo, morreram de fome! Além disso, dos setenta discípulos de
Confúcio, o que recebeu dele o mais alto louvor como verdadeiro
amante do estudo foi Yen Huei. No entanto, Huei sempre foi pobre,
comendo grosseiras refeições sem queixar-se, e morreu jovem! É
assim que Deus recompensa os bons? Por outro lado, vemos o 195
famoso bandido Chih, que matava inocentes, comia fígado humano e
asso¬lava o país com milhares de sua quadrilha, assassinando e
roubando; e morreu de morte natural, em idade avançada! Que fez
para merecê-lo? Esses são exemplos do passado, bem conhecidos.
Nos dias atuais, vemos pessoas que infringem a lei e cometem atos
contrários à justiça ficarem ricas, levando vida confortável, e suas
famílias continuam a gozar de fausto e prosperidade. Outros, por
outro lado, observam os mais severos princípios, voltam as costas
aos atalhos para o êxito, sendo, ainda, cuidadosos com suas palavras
e só falando movidos por amor ao bem público, quando há uma
grande injustiça. Incontável, todavia, é o número de tais pessoas que
sofre desastres pessoais. É este o caminho do céu, de que o povo
fala? Ou será o contrário? Tenho grandes dúvidas a tal respeito.
Confúcio diz: ―Os que não acreditam nas mesmas coisas não podem
ter trato entre si‖; com isto, quer dizer que tudo quanto se pode fazer
é apenas seguir as próprias convicções. Eis por que Confúcio disse de
si mesmo: ―Eu gostaria até de puxar uma carroça se soubesse que,
assim fazendo, ficaria rico por meu próprio esforço. Como não posso
ter certeza, farei o que gosto de fazer‖. E diz mais: ―Quando chega o
inverno, verifica-se que os pinheiros e os ciprestes suportam melhor
o frio‖. Quem tem coração puro mantém-se firme num mundo de
corrupção geral. Sabe o que mais preza e desdenha o resto.
―Um cavalheiro detesta morrer sem deixar nome para a posteridade‖
(diz Confúcio). E Chiatse diz: ―O cobiçoso morre de juntar dinheiro,
o cavaleiro heróico morre pela fama, o homem de êxito morre de
lutar pelo poder e a gente comum evita a morte‖. ―Os que têm a
mesma luz atraem-se mutuamente e os animais da mesma espécie
um ao outro se buscam‖; ―As nuvens seguem o dragão e os ventos 196
seguem o tigre‖; ―Ergue-se o sábio e todas as coisas se tornam
claras‖ (Citação do Livro das Alterações). Poyi e Shuchi tornaram-se
imortais graças ao louvor de Confúcio, e Yen Huei ficou conhecido
da posteridade por ter seguido o Mestre, embora todos tivessem seus
méritos próprios. Há, porém, muitos filósofos que vivem em
isolamento e são admiráveis por seu caráter e sua conduta, mas de
quem nunca se ouve falar. Não é triste isso? Pessoas comuns que
sejam de rigorosa conduta e desejem tornar-se conhecidas dos
pósteros não têm outro remédio senão associar-se a letrados de
grande reputação.
Anexo

A fim de completar esta coletânea de textos históricos, creio serem


válidos dois textos ilustrativos para as concepções de história
chinesa. O primeiro, de Shangyang, embriona a idéia do passado
como referência para mudança, e não permanência. Este conceito
seria fundamental para os legistas na época de Qin, de Lisi e
Hanfeizi, que defendiam a inovação como um meio de superação do
passado, e a abolição dos antigos costumes e leis, em favor das
teorias jurídicas legistas. O segundo texto seria uma visão histórica
baseada na escola filosófico-médica do Neijing do que seria o
passado idela chinês. embora não se trate de um texto
especificamente histórico, ele cumpre algumas funções do mesmo, 197
tais como: apresentar uma noção de calendário ordenador do cosmo,
propor uma conexão – e uma teoria para perda – do dao, tão cara as
escolas filosóficas e por fim, propor que a ordenação social
dependeria da prática da saúde, pautadas na teoria yin-yang.
Decerto, uma concepção fascinante de história.

a) A visão de passado em Shangyang


Antigamente, na era do Grande e Ilustre Governante, as pessoas
encontravam o seu modo de vida no corte de árvores e abate de
animais; a população era dispersa e as arvores e os animais
numerosos. Nos tempos de Huang-ti, nem os animais novos nem os
ovos eram apanhados; os funcionários não tinham abastecimentos e,
quando as pessoas morriam, não eram autorizadas a utilizar caixões
exteriores. Estas medidas não eram as mesmas, mas o fato de ambas
atingirem supremacia era porque os tempos em que viviam eram
diferentes. Nos tempos de Shen-nung, os homens lavravam a terra
para obter comida e as mulheres teciam para fazer roupas. Sem a
aplicação de punições ou medidas governamentais, a ordem
prevalecia; sem a formação de soldados armados, reinava-se com
supremacia. Após a morte de Shen-nung, os fracos foram
conquistados pela força e os poucos oprimidos pelos numerosos. Por
conseguinte, Huang-ti criou as noções de príncipe e ministro, de
superior e inferior, de conduta entre pai e filho, entre os irmãos mais
velhos e mais novos, a união entre marido e mulher e entre
companheiro e parceiro. Na pátria, aplicou a espada e a serra e, no
estrangeiro, utilizou os soldados armados; tudo isto graças à
assuntos internos e externos.
198
b) Grande Tratado sobre a Harmonia da Atmosfera das
Quatro Estações com o Espírito Humano, no Neijing (o
Tratado interno)
Os três meses da Primavera chamam-se o período do princípio e do
desenvolvimento da vida. As exalações do Céu e da Terra estão
preparadas para gerar; assim, tudo se desenvolve e floresce.
Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de manhã
cedo, caminhar vivamente pelo pátio, soltar o cabelo e tornar mais
lentos os movimentos do corpo. Procedendo assim podem realizar o
seu desejo de viver saudavelmente.
Durante este período, o corpo deve ser encorajado a viver e não a ser
morto; devemos ceder-lhe livremente e não lhe tirar nada; devemos
recompensá-lo e não castigá-lo.
Tudo isto está em harmonia com a exalação da Primavera e tudo isto
é o método de proteção da nossa vida.
Os que desrespeitam as leis da Primavera serão punidos com mal do
fígado. A esses o Verão seguinte reservará arrepios e mudanças más.
Assim, terão pouco com que apoiar o seu desenvolvimento no Verão.
Os três meses de Verão chamam-se o período do crescimento
luxuriante. As exalações do Céu e da Terra misturam-se e são
benéficas. Está tudo em flor e começa a dar fruto.
Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de manhã
cedo. Não se devem cansar durante o dia nem consentir que o seu
espírito se irrite.
Devem permitir que as melhores partes do seu corpo e do seu
espírito se desenvolvam; devem permitir que o seu hálito se
comunique com o mundo exterior e devem proceder como se
amassem tudo quanto existe exteriormente. 199
Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Verão e tudo isto é
o método de proteção do nosso desenvolvimento.
Os que desrespeitam as leis do Verão serão punidos com mal do
coração. A esses o Outono trará febres intermitentes. Assim, terão
pouco apoio para as colheitas outonais e sofrerão de doença grave no
solstício do Inverno.
Os três meses de Outono chamam-se o período de tranqüilidade da
nossa conduta. A atmosfera do Céu é intensa e a atmosfera da Terra
é desanuviada.
As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se cedo, com o cantar do
galo. Devem ter o espírito em paz, a fim de minimizarem a punição
do Outono. Alma e espírito devem unir-se para que a exalação do
Outono seja tranqüila, e para conservarem os pulmões puros as
pessoas não devem dar expansão aos seus desejos.
Tudo isto está em harmonia com a atmosfera e tudo isto é o método
de proteção da nossa colheita.
Os que desrespeitarem as leis do Outono serão punidos com um mal
pulmonar. A esses o Inverno trará indigestão e diarréia e, assim,
terão pouco apoio para o armazenamento do Inverno.
Os três meses de Inverno chamam-se o período de fechar e
armazenar. A água gela e a terra estala e abre fendas. Não devemos
perturbar o nosso Yang (2).
As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se tarde, esperar que o
Sol nasça. Devem reprimir e ocultar os seus desejos, como se não
tivessem nenhum objetivo interior, como se estivessem em tudo
satisfeitas. As pessoas devem tentar fugir ao frio e procurar calor,
não devem transpirar pela pele e devem privar-se da exalação do
frio. 200
Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Inverno e é o
método de proteção do nosso armazenamento.
Os que desrespeitarem as leis do Inverno sofrerão de um mal dos
rins (e Testículos); a eles a Primavera trará impotência e produzirão
pouco.
O hálito do Céu é puro e leve. O Céu mantém sempre a sua virtude
primitiva e, por isso, nunca se desmorona. Se o Céu se abrisse por
completo, o Sol e a Lua nunca seriam luminosos, o mal chegaria
durante este período de vazio, a atmosfera de Yang fechar-se-ia e a
Terra perderia a sua luminosidade, nuvens e nevoeiro não poderiam
sofrer mudanças, e, conseqüentemente, o orvalho branco não cairia
e a circulação dos elementos naturais não se comunicaria à vida de
tudo na Criação. A esta situação chamar-se-ia ―não - doadora‖, e,
como conseqüência da sua ―não - doação‖, toda a vegetação
pereceria. Além disso, o ar nocivo não desapareceria, vento e chuva
não seriam harmoniosos, não cairia orvalho branco e a vegetação
jamais voltaria a florescer. Haveria sempre ventos violentos e
chuvaradas súbitas, e o Céu, a Terra e as quatro estações seriam
incapazes de se proteger entre si, perderiam o Tao e não tardariam a
ser destruídas.
Os sábios respeitavam as leis da natureza, e, por isso, o seu corpo
estava isento de doenças estranhas; não perdiam nada do que
tinham recebido da Natureza e o seu espírito de vida nunca se
esgotava.
Aqueles que não procedem de conformidade com o hálito da
Primavera não trarão vida à região do Yang inferior A atmosfera do
seu fígado modificar-lhes-á a constituição.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do 201
Verão não desenvolverão o seu Yang superior. A atmosfera do seu
coração tornar-se-á vazia.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do
Outono não colherão o seu Yin superior A atmosfera dos seus
pulmões ficará bloqueada, isolada do seu espaço de combustão
inferior.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do
Inverno não abastecerão o seu Yin inferior A atmosfera dos seus
testículos (rins) ficará isolada e diminuída.
Destarte, as interações das quatro estações e as interações do Yin e
do Yang, os dois princípios da Natureza, são os alicerces de tudo
quanto existe na Criação. Daí que os sábios tenham concebido e
desenvolvido o seu Yang na Primavera e no Verão e concebido e
desenvolvido o seu Yin no Outono e no Inverno, a fim de
respeitarem a regra das regras; e assim, juntamente com tudo o mais
da Criação, os sábios mantiveram-se no limiar da vida e do
desenvolvimento.
Os que se rebelam contra as regras básicas do Universo cortam as
próprias raízes e destroem a sua verdadeira personalidade. O Yin e o
Yang — os dois princípios da Natureza — e as quatro estações são o
princípio e o fim de tudo e são igualmente a causa da vida e da
morte. Os que desobedecem às leis do Universo dão origem a
calamidades e provações, enquanto os que respeitam as leis do
Universo permanecem isentos de doenças perigosas, pois a eles foi
concedido o Tao, o Caminho Certo.
O Tao era praticado pelos sábios e admirado pelos ignorantes. A
obediência às leis do Yin e do Yang significa vida; a desobediência
significa morte. Os obedientes dominarão, enquanto os 202
desobedientes viverão em desordem e confusão. Tudo quanto é
contrário à harmonia com a Natureza é desobediência e equivale à
rebelião contra a Natureza.
Por isso, os sábios não tratavam aqueles que já estavam doentes e
instruíam aqueles que ainda não estavam doentes. Não queriam
guiar aqueles que já eram rebeldes; guiavam aqueles que ainda não
eram rebeldes. E este o significado de toda a discussão precedente.
Administrar remédios a doenças que já se desenvolveram e reprimir
revoltas que já eclodiram é comparável ao comportamento daquelas
pessoas que começam a abrir um poço depois de terem sede, ou
daquelas que começam a fundir armas depois de já se terem lançado
na batalha. Não chegarão estas ações demasiado tarde?
Referências

Os materiais aqui disponíveis, bem como suas respectivas indicações


bibliográficas, encontram-se em:

www.indianidades.blogspot.com.br [para as fontes indianas]

www.chines-classico.blogspot.com.br [para as fontes chinesas]

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