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Comunicação nas práticas em saúde: revisão

integrativa da literatura
Communication in health practices: integrative literature
review

Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus Resumo


Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem da Uni-
versidade Federal de Pernambuco. Discente do Programa de Pós Objetivos: este artigo tem por objetivo descrever os
Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente. Universidade principais eixos temáticos explorados no campo da
Federal de Pernambuco. comunicação nas práticas em saúde nos cenários
E-mail: wandenf@yahoo.com.br
do Sistema Único de Saúde (SUS). Método: revisão
Bianca Arruda Manchester de Queiroga integrativa da literatura realizada a partir da busca
Professora Associada do Departamento de Fonoaudiologia da de artigos nas bases de dados Literatura Latino-
Universidade Federal de Pernambuco.
E-mail: queiroga.bianca@gmail.com
-Americana em Ciências da Saúde (Lilacs), Literatura
Internacional em Ciências da Saúde (MedLine) e
Lidia Ruiz-Moreno Science Direct, utilizando os descritores: comuni-
Professora Adjunto do Centro de Desenvolvimento do Ensino Su-
cação em saúde ou comunicação. Procedeu-se ao
perior em Saúde da Universidade Federal de São Paulo.
E-mail: lidia.ruiz@unifesp.br cruzamento dos descritores comunicação e educa-
ção em saúde. Resultados: foram construídas quatro
Luciane Soares de Lima
temáticas: 1) a comunicação no estabelecimento de
Professora Titular do Departamento de Enfermagem da Universi-
dade Federal de Pernambuco. relações entre profissionais da saúde e usuários; 2)
E-mail: luciane.lima@globo.com (des)comunicação: barreiras ao ato comunicativo; 3)
comunicação e formação do profissional da saúde;
e 4) modelos comunicativos em saúde: a busca pelo
Correspondência
modelo dialógico. Conclusão: a partir do entendi-
Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus
Rua Demócrito de Souza Filho, 370, apto 1304, CEP 50610-120,
mento da comunicação dialógica, que deve estar
Recife, PE, Brasil. presente na comunicação, as novas demandas da
legalização do SUS vêm mostrando fragilidades do
modelo unilinear e verticalizado de comunicação e a
necessidade de instrumentalizar os profissionais da
saúde, desde a graduação, com saberes que propor-
cionem práticas comunicativas dialógicas. Persiste
o desafio de vivências reflexivas e participativas nos
vários cenários de assistência à saúde, de forma a
promover um compartilhamento de saberes que
conduza ao entendimento entre os interlocutores
envolvidos no ato comunicativo.
Palavras-chave: Comunicação; Comunicação em
Saúde; Educação em Saúde.

1356 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.4, p.1356-1369, 2014 DOI 10.1590/S0104-12902014000400019
Abstract Introdução
Objectives: this study aims to describe the main A comunicação pode ser entendida como prática
thematic axes explored in the communication field social que advém da interação entre seres humanos,
in health practices in the scenarios of the Unified expressa por meio da fala (aspecto verbal), escrita,
Health System (SUS). Method: integrative literature comportamentos gestuais, distância entre os par-
review conducted by means of search for articles in ticipantes, toque (aspectos não verbais) (Fermino e
the databases Latin American Literature on Health Carvalho, 2007).
Sciences (LILACS), International Literature on He- Nos serviços de saúde, os encontros entre os
alth Sciences (MedLine), and Science Direct, using trabalhadores e os usuários do Sistema Único de
the descriptors: health communication or commu- Saúde (SUS) são intermediados pela comunicação,
nication. A crossing of the descriptors communica- objeto de análise desta revisão.
tion and health education was provided. Results: Muitas barreiras dificultam a comunicação, que
four themes were constructed: 1) communication gera significados relevantes tanto para o trabalha-
to establish relationships between health profes- dor de saúde como para o usuário, sendo objeto de
sionals and users; 2) (in)communication: barriers vários estudos que abordam essa temática. Essas
to the communicative act, 3) communication and dificuldades decorrem de linguagens e saberes
health professional education; and 4) communica- diferentes, nem sempre compartilhados entre os
tive health models: search for the dialogic model. interlocutores, limitações orgânicas do receptor
Conclusion: by understanding dialogic communi- ou emissor (afasias, déficit auditivo, déficit visual),
cation, which must be observed in communication, imposição de valores e influência de mecanismos in-
the new requirements posed by the legalization of conscientes (Acqua e col., 1997). Acrescidos a esses
SUS have shown weaknesses of the single-line and fatores, diferenças de ordem sociocultural e o está-
vertical communication model and the need to pro- gio de desenvolvimento cognitivo e intelectual dos
vide health professionals, since the undergraduate diversos atores sociais influenciam a comunicação.
course, with knowledge that enable dialogic commu- Com a regulamentação do SUS, em 1988, novos
nication practices. The challenge of reflective and arranjos na relação entre trabalhador e população
participatory experiences in the various health care passaram a fazer parte da atenção à saúde, destacan-
settings still remains, in order to promote a sharing do-se a universalidade, a equidade, a integralidade e
of knowledge that leads to understanding between a participação comunitária na organização e gestão
the interlocutors involved in the communicative act. dos serviços (Brasil, 1997).
Keywords: Communication; Health Communication; A definição de ação comunicativa feita por Ha-
Health Education. bermas (2003) indica que o falante diz algo dentro
de um contexto dinâmico, referindo-se não somente
ao mundo objetivo (como a totalidade daquilo que
é ou poderia ser o caso), mas ao mesmo tempo ao
mundo social (totalidade das relações interpessoais
reguladas de forma legítima) e ao mundo próprio,
inerente a cada ser em particular (totalidade das
vivências manifestáveis, as quais têm um acesso
privilegiado).
A esse respeito, o teórico separa as vivências
comunicativas humanas sob influência de três
mundos: o da Ciência – onde a verdade é factual; o da
Moral – ligado às regras e normas sociais (próprias
de cada grupo social); e o das Artes – associado ao
mundo subjetivo dos sentimentos, das emoções e
das percepções estéticas (Fiedler, 2006).

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A partir da relevância da comunicação como Ciências da Saúde (Lilacs) e Literatura Internacional
instrumento laboral dos trabalhadores de saúde e em Ciências da Saúde (MedLine) e Science Direct; (2)
da necessidade de implementação da comunicação artigos com descritores “comunicação em saúde” ou
dialógica, pautada na relação de troca e intercâmbio “comunicação”. Posteriormente procedeu-se ao cru-
de saberes que deve ocorrer nos cenários do SUS, zamento dos descritores “comunicação e educação
surgiu a questãonorteadora dessa revisão: “quais os em saúde”, buscando apreender as relações entre as
principais eixos sobre a comunicação nas práticas ações educativas e a comunicação na lógica do SUS;
em saúde nos diversos cenários do SUS e enfocados (3) publicações no período de 2000-2010; (4) artigos
pelas publicações no período de 2000 a 2010?” com texto completo; (5) artigos de pesquisa, de re-
A partir dessa questão, o estudo tem como flexão e ensaios; (6) artigos nos idiomas português,
objetivo identificar os principais eixos temáticos inglês e espanhol; (7) artigos que atendiam ao objeti-
explorados ano campo da comunicação nas práticas vo previamente definido, de abordar a comunicação
em saúde nos diversos cenários do SUS. como encontro e inter-relação entre trabalhador de
saúde e usuários nos cenários do SUS: atenção bá-
sica, atenção hospitalar, formação de estudantes da
Método área de saúde e processos de educação permanente
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, em saúde.
definida como tipo de estudo que inclui a análise Quando cruzados os descritores comunicação
de pesquisas relevantes que dão suporte para a em saúde ou comunicação, foram encontrados na
tomada de decisão e a melhoria da prática clínica, base Lilacs 1.401 publicações e na MedLine, 31.654.
possibilitando a síntese do estado do conhecimento Considerando os critérios de inclusão, foram sele-
de um determinado assunto. Além disso, permite cionadas 13 publicações. Foram excluídos artigos
apontar lacunas do conhecimento que precisam ser que enfocavam deficiências orgânicas que compro-
preenchidas, bem como comporta a síntese de estu- metiam o ato comunicativo.
dos publicados com conclusões gerais a respeito de No sentido de relacionar a comunicação às prá-
uma particular área de estudo (Mendes e col., 2008). ticas educativas em saúde, a busca com os descrito-
A revisão integrativa proporciona a síntese de res comunicação e educação em saúde apontou 92
conhecimento e a aplicabilidade dos resultados de trabalhos na base de dados Lilacs. Desses, 63 foram
estudos significativos na prática. Envolve a aplica- excluídos por não disponibilizarem o texto completo,
ção das etapas do método científico, definição do 10 extrapolavam o período de tempo delimitado, dois
problema de pesquisa, busca das informações na enfocavam a comunicação em massa, um enfocava
literatura, avaliação crítica dos estudos incluídos, deficiências orgânicas e dois estavam repetidos
identificação da aplicabilidade dos dados coletados. em relação à busca anterior, restando na inclusão
Permite a inclusão de estudos de diferentes aborda- de 14 trabalhos. Ao se proceder à leitura dos textos
gens metodológicas, transversais, longitudinais, selecionados, restaram 9 estudos, que abordavam
qualitativos, de reflexão e revisões narrativas (Souza a comunicação do ponto de vista interacional, to-
e col., 2010). talizando 29.
Para realização do estudo foram delimitadas as Para a coleta dos dados foi construído um ins-
seguintes etapas: identificação do tema e seleção trumento que abordava os itens: autor/ano, área
da questão de pesquisa; definição dos critérios para do conhecimento/periódico, objetivos, método e
inclusão e exclusão dos estudos e das informações principais resultados.
a serem extraídas; categorização e avaliação dos Na avaliação foi realizada leitura completa de
estudos incluídos na revisão; interpretação dos cada artigo, com intuito de compreender os prin-
resultados e apresentação da revisão/síntese do cipais aspectos abordados. Na interpretação dos
conhecimento (Mendes e col., 2008). resultados, seguiu-se à leitura comparativa entre
Após a definição da questão condutora, os cri- os artigos (leitura vertical), verificando-se as simi-
térios para inclusão dos artigos foram: (1) artigos laridades e procedendo-se ao agrupamento de temas
nas bases de dados Literatura Latino-Americana em comuns em eixos a serem explorados.

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Resultados e discussão ato comunicativo; 3) comunicação e a formação do
trabalhador de saúde; e 4) modelos comunicativos
A partir da interpretação dos achados foram cons-
truídas quatro temáticas: 1) a comunicação no es­ em saúde: a busca pelo modelo dialógico.
ta­belecimento de relações entre trabalhadores de Os artigos incluídos nas temáticas apresentadas
saúde e usuários; 2) (des)comunicação: barreiras ao estão descritos no Quadro 1.

Quadro 1 - Descrição dos artigos incluídos na Revisão Integrativa da Literatura, segundo autor/ano, periódico,
método, núcleo de sentido e temática. Recife-PE, 2011

Autor/ano Periódico Método Núcleo de sentido Temática


1. Silva e colaboradores (2000) Revista Latino-Americana Estudo Comunicação como interação 1
de Enfermagem qualitativo
2. Acevedo e colaboradores (2009) Investigación y Artigo de Comunicação como inter-relação e 4
Educación en Enfermería reflexão intercâmbio de saberes
3. Braga e Silva (2007) Acta Paulista de Estudo Comunicação como compreensão 1
Enfermagem qualitativo do outro e compartilhamento
4. Fermino e Carvalho (2007) Cogitare Enfermagem Estudo quase Predomínio da comunicação 1
experimental terapêutica 2
5. Leonello e Oliveira (2009) Acta Paulista de Estudo Comunicação como intercâmbio dos 2
Enfermagem qualitativo saberes científico e popular 3
6. Martins e Araújo (2008) Psicologia Argumento Importância da comunicação no 2
contexto da interação profissional
de saúde-usuário
7. Oliveira e colaboradores (2008) Interface –Comunicação, Estudo Necessidade de comunicação numa 4
Saúde, Educação qualitativo perspectiva acolhedora
8. Mourão e colaboradores (2009) Revista Rene Artigo de Comunicação como troca de 1
revisão informações, instrumento para
modificar comportamentos
Dificuldades para o exercício dessa
habilidade
9. Oliveira (2002) Interface –Comunicação, Artigo de Necessidade de colocar o usuário no 4
Saúde, Educação reflexão centro do processo de cuidado
10. Oliveira e colaboradores (2006) Enfermería Global Ensaio Comunicação numa perspectiva de 1
troca e feedback entre profissional
de saúde e usuário
11. Silva e colaboradores (2000) Revista Latino-Americana Estudo Importância da linguagem corporal 1
de enfermagem qualitativo
12. Santos e Shiratori (2005) Revista Brasileira de Estudo Importância da comunicação 1
Enfermagem qualitativo não verbal para os usuários na
assistência de enfermagem
13. Risso e Braga (2010) Revista da Escola de Estudo Comunicação não efetiva entre 1
Enfermagem da USP qualitativo enfermeiros e crianças/cuidadores
14. Silva e Nakata (2005) Revista Brasileira de Estudo Falta de informações no processo 2
Enfermagem qualitativo cirúrgico
15. Bruschi e colaboradores (2005) Revista Brasileira de Estudo Falhas de comunicação profissionais 1
Anestesiologia transversal de saúde-usuários

(continua)

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Quadro 1 - Descrição dos artigos incluídos na Revisão Integrativa da Literatura, segundo autor/ano, periódico,
método, núcleo de sentido e temática. Recife-PE, 2011 (continuação)

Autor/ano Periódico Método Núcleo de sentido Temática


16. Howells e Lopez (2008) Pediatrics and Child Artigo de revisão Comunicação entre pediatra-criança- 1
Health cuidador proporciona desfechos
positivos
17. Nova e colaboradores (2005) Patient Education Estudo qualitativo Participação limitada da criança 1
and Counseling durante as consultas pediátricas.
18. Nunes e Ayala (2010) Patient Education Estudo transversal Os pediatras utilizaram uma gama 1
and Counseling limitada de técnicas para informar,
aconselhar e dar suporte narrativo para
os pacientes
19. Tates e Meeuwesen (2001) Social Science and Artigo de revisão Necessidade de integração da criança 1
Medicine durante consultas médicas em pediatria
20. Tija e colaboradores (2009) Journal of Patient Estudo Barreiras na comunicação entre 2
Safety quantiqualitativo membros da equipe de saúde
21. De Marco e colaboradores Interface – Relato de Treinamento de habilidades de 3
(2010) Comunicação, experiência comunicação em graduandos de
Saúde, Educação medicina
22. Rossi e Batista (2006) Interface – Estudo qualitativo Conceituação de comunicação numa 3
Comunicação, Saúde visão impositiva por parte dos egressos
e Educação de medicina
23. Pereira (2003) Cadernos de Saúde Revisão Histórico da educação em saúde e 2
Pública comunicação como práticas centradas
na normatização dos profissionais de
saúde
24. Cardoso e Nascimento (2010) Ciência & Saúde Estudo qualitativo Comunicação dos ACS com grupo 4
Coletiva técnico, outros ACS e moradores mais
antigos da comunidade (principais
interlocutores)
25. Martínez- Hernáez (2010) Revista de Saúde Artigo de revisão Modelos comunicativos – proposta de 4
Pública substituição do modelo unilinear pelo
modelo dialógico
26. Montoro (2008) Interface – Debate Comunicação entre gestores federal, 4
Comunicação, estadual e municipal
Saúde, Educação
27. Silva e colaboradores (2009) Ciência & Saúde Estudo qualitativo Educação em saúde unidirecional, não 4
Coletiva favorecimento do diálogo
28. Teixeira e Veloso (2006) Texto e Contexto Artigo de reflexão Sala de espera como espaço de 3
Enfermagem interação para ações de educação em
saúde participativas
29. Trapé e Soares (2007) Revista Latino- Estudo qualitativo Concepção de educação em saúde 4
Americana de pautada na transmissão de informações
Enfermagem

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Temática 1 - A comunicação no estabelecimento de ário, a influência de sua história de vida e cultura,
relações entre trabalhadores de saúde e usuários os meios empregados para a transmissão das men-
O ato comunicativo é destacado como processo de sagens, a situação e o momento em que o processo
compartilhamento e ajuda entre o trabalhador de comunicativo está acontecendo e as expectativas e
saúde e o usuário assistido, de forma a estabelecer as emoções dos interlocutores (Oliveira e col., 2006).
um processo de ajuda ao indivíduo e à família. No Esse ato social possui diversas funções de
contexto da assistência curativa, vários estudos acor­do com os objetivos, aspirações e crenças dos
abordaram essa temática com indivíduos hospitali- partícipes. É utilizado para fornecer informações,
zados, emergindo nessa abordagem a comunicação persuadir, gerar mudanças de comportamento,
como: a) instrumento que propicia uma recuperação ensinar, aprender e discutir os mais variados as-
mais rápida, efetivada por meio das linguagens suntos, sendo considerado um nó crítico para os
verbal e não verbal; e b) ferramenta que promove trabalhadores de saúde. Existe a valorização do
a humanização das relações por meio da troca de seu potencial terapêutico, embora se reconheçam
informações, validação das mensagens e interação as dificuldades no estabelecimento de uma relação
com as famílias dos pacientes hospitalizados. dialógica, competente e eficaz (Mourão e col., 2009).
Além dessas abordagens, outros estudos focali- A comunicação terapêutica é definida como a
zam a comunicação com cuidadores e crianças no habilidade do trabalhador de saúde em ajudar as pes-
âmbito da assistência curativa e outros abordam soas a enfrentar situações temporárias de estresse,
esse aspecto em nível ambulatorial, mencionando conviver com outras pessoas, ajustar-se à realidade,
principalmente as contribuições do pediatra, do superar os bloqueios, favorecer o tratamento e o
anestesista e do enfermeiro (Bruschi e col., 2005; desenvolvimento dos pacientes, tornando-os ativos
Howells e Lopez, 2008; Silva e Nakata, 2005). no processo de cuidar (Fermino e Carvalho, 2007).
O processo comunicativo é definido como um Pela definição apresentada, é uma comunicação
ato caracterizado não por relações de poder, mas voltada para usuários que se encontram em situa-
por atitudes de sensibilidade, aceitação e empatia ções temporárias ou permanentes de doença, que os
entre os sujeitos, em um universo de significações tornam mais ou menos dependentes de uma assis-
que envolvem tanto a dimensão verbal como a não tência direta por parte dos trabalhadores de saúde
verbal (postura e gestos). Nesse processo, é relevante e de sua família, os quais necessitam de processos
o interesse pelo outro, a clareza na transmissão da que favoreçam a sua recuperação, incluindo-se neste
mensagem e o estabelecimento de relações terapêu- conjunto, a comunicação.
ticas entre trabalhadores e usuários (Braga e Silva, No estudo de Fermino e Carvalho (2007) foram
2007; Silva e col., 2000). investigados, por meio da observação, os diálogos
Além de propiciar uma relação terapêutica, a entre os profissionais de enfermagem e pacientes
comunicação deve propiciar condições para práticas no contexto hospitalar. Os autores constataram
de promoção da saúde, tornando o usuário/cuidador diferentes técnicas de comunicação, a maioria das
autônomo à negociação diante do tratamento e quais foi considerada terapêutica. As técnicas de
das condições que favorecem o autocuidado e/ou o comunicação terapêutica mais encontradas foram
cuidado da criança sob sua responsabilidade. Essa do grupo denominado clarificação (torna as men-
perspectiva será gerida a partir da busca do inter- sagens mais compreensivas e claras) e o estímulo
câmbio de saberes, do diálogo e do entendimento para comparações (utilizadas pelos trabalhadores
entre o trabalhador de saúde e o usuário. de saúde para explicar questões relacionadas ao
O encontro produzido entre os trabalhadores e os processo saúde-doença-cuidado).
indivíduos, seja em unidades de saúde ou no ambien- O estudo de Silva e colaboradores (2000), por
te hospitalar, pode ser caracterizado como processo sua vez, abordou o ponto de vista de enfermeiras
convergente entre o cuidador e o ser cuidado, sendo que realizavam uma especialização Lato sensu em
importante a utilização de todos os sentidos para comunicação e identificou nos relatos das entre-
reconhecer e interpretar os sinais emitidos pelo usu- vistadas questões relacionadas à importância da

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dimensão não verbal da comunicação, apontando e de hospitalizações. Nos estudos analisados nessa
o papel desempenhado pela linguagem corporal revisão, evidenciou-se que as crianças necessitam
como um conjunto de expressões e movimentos ser envolvidas nas consultas, tendo em vista que a
que manifestam sentimentos, vontades, emoções e partir de 6 anos elas têm capacidade para participar
reações. A comunicação não verbal foi considerada da discussão sobre sua saúde e ser ouvidas nas suas
essencial pelas entrevistadas para a produção de necessidades.
relações interpessoais bidirecionais. Uma revisão do estado da arte sobre essa temáti-
Do mesmo modo, pesquisa com graduandos de ca aponta que, apesar da comunicação com crianças
enfermagem sobre o significado da comunicação envolver a tríade trabalhador de saúde-cuidador-
não verbal verificou que para todos os entrevistados -criança, a abordagem geralmente apresenta lacunas
esta comunicação encontra-se atrelada de forma no que tange ao envolvimento das crianças no ato
simbólica ao olhar, gestos, choro, vestimenta, olfa- comunicativo (Tates e Meeuwesen, 2001). Os autores
to, expressão corporal, toque e distância ou proxi- mencionam que para aprimorar as interações há ne-
midade entre os interlocutores, sendo relevante a cessidade de abordar tanto aspectos instrumentais,
articulação entre o significado de cada dimensão fornecendo informações, como também emocionais,
envolvida para que se estabeleça satisfatoriamente que permitem a empatia e envolvimento entre todos
o ato comunicativo (Santos e Shiratori, 2005). os atores envolvidos.
Os resultados do estudo de Risso e Braga (2010) Um estudo aplicando a técnica de observação
relacionado à comunicação entre enfermeiros e para analisar a comunicação entre pediatras, cuida-
cuidadores nos períodos pré, peri e pós-cirúrgico dores e crianças situa dois momentos na consulta
evidenciaram que o escasso destaque dado à comu- pediátrica: um no qual o médico colhe informações
nicação dialógica no período pré-cirúrgico motivou por meio da anamnese e exame físico, e outro ca-
cancelamento de cirurgias, destacando a necessi- racterizado por facilitar aos pais a manifestação
dade de uma comunicação mais interativa entre os de interesses e preocupações (suporte narrativo).
enfermeiros e as famílias. Segundo os autores (Nunes e Ayala, 2010), as técni-
A falta de uma comunicação efetiva entre o cas para coleta de dados e o aconselhamento seguem
anestesista, cuidadores e crianças sobre questões uma proporção praticamente igualitária, embora
relacionadas ao conhecimento e à identificação haja diferenças do ponto de vista discursivo entre
do profissional responsável pela anestesia e às os pediatras analisados, existindo um repertório
orientações adequadas no período pré-operatório variado de técnicas, como a clarificação, a compara-
apontaram falhas no processo comunicativo entre ção e o uso da comunicação para produção de uma
este profissional e os pacientes assistidos (Bruschi relação empática.
e col., 2005). Da mesma forma, Silva e Nakata (2005) Existem ainda muitas lacunas a serem preenchi-
abordaram a comunicação no período pré-operatório das, principalmente no que se refere à inclusão da
de pacientes cirúrgicos, numa faixa etária ampla (10 participação das crianças nos estudos que investi-
a 80 anos), constatando a necessidade de informa- gam as práticas comunicativas entre trabalhadores
ções adequadas nesse período como subsídio para de saúde, cuidadores e crianças, como mostra o
o sucesso terapêutico, aspecto que deixou a desejar estudo de Nova e colaboradores (2005). O trabalho
por parte da equipe de saúde. aborda a análise da relação comunicativa entre mé-
Em estudo de revisão que aborda a comunicação dicos e crianças, com uso de filmagem e análise do
do trabalhador de saúde, cuidadores e crianças, conteúdo para compreender a comunicação com o
Howells e Lopez (2008) apontam a relevância da médico, tanto no aspecto verbal como não verbal. A
comunicação como meio para a produção de satis- análise qualitativa revelou que a criança estabelece
fação das famílias com a assistência prestada pelos uma comunicação mais ou menos efetiva, a depen-
médicos. Adicionalmente, a comunicação propicia der dos estímulos e interações promovidos pelo
resultados positivos no âmbito da saúde, como dimi- pediatra. Isso indica que, embora falemos de uma
nuição de visitas aos médicos da atenção primária relação bilateral e compreensiva, é papel/responsa-

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bilidade do profissional motivar a comunicação com quais têm tido ênfase predominante na transmissão
o usuário/cuidador e crianças durante os encontros de informações com o objetivo de impor comporta-
terapêuticos. mentos a serem adotados pelos indivíduos. Essa
A partir dos artigos incluídos nesta categoria perspectiva vincula-se a um modelo de atenção
temática, verifica-se que a comunicação constitui à saúde focalizado na doença e na fragmentação
um instrumento de grande potencialidade para a das ações, resultando na adoção de uma postura
produção de práticas mais humanizadas entre os autoritária e coercitiva (Pereira, 2003). Como con-
trabalhadores de saúde e usuários, sendo necessá- sequência dessas práticas, há um distanciamento
rio superar modelos que reforçam as relações de entre os projetos educativos dos serviços de saúde
poder, na perspectiva do compartilhamento, ajuda e as necessidades de cuidado da população. As en-
e interação. Cabe destacar a responsabilidade do fermeiras, por exemplo, em um estudo sobre essa
profissional em estabelecer uma comunicação tera- temática, queixaram-se de dificuldades e falta de
pêutica e dialógica, facilitando a participação tanto competência para desenvolver práticas educativas
de adultos como crianças. participativas (Leonello e Oliveira, 2009).
Uma pesquisa desenvolvida nos Estados Unidos
Temática 2 - (Des)comunicação: barreiras ao ato
investigou a percepção das enfermeiras sobre a co-
comunicativo municação dentro da equipe, evidenciando barreiras
O tema comunicação em saúde tem despertado in- como falta de escuta por parte dos médicos. Entre
teresse particularmente com o estabelecimento de as sugestões, as enfermeiras propuseram maior
relações horizontais e democráticas, a humanização abertura para o diálogo entre ambos os profissionais
da assistência, o protagonismo do indivíduo assisti- (Tija e col., 2009).
do e o controle social. Entretanto, algumas barreiras Acredita-se que os aspectos comunicacionais en-
dificultam a sua concretude da forma ideal. tre trabalhadores de saúde que integram as equipes,
A (des)comunicação constitui uma dessas barrei- tanto no ambiente hospitalar como nos cenários de
ras, que se efetiva por meio de filtros perceptivos os atenção primária, precisam ser investigados na pro-
quais podem mudar a mensagem para ouvir o que cura dos problemas que permeiam as inter-relações.
o receptor deseja, bem como expressar mensagens Do mesmo modo, também deve-se buscar estratégias
contraditórias de forma não verbal, pela postura que articulem saberes em prol de melhorias nas
corporal assumida (Mendes e col., 1987). condições de vida da população.
Estudo que investigou práticas de comunicação
entre trabalhadores de saúde e usuários no contexto Temática 3 - Comunicação e a formação do tra-
assistencial assinala que, apesar da preponderân- balhador de saúde
cia de técnicas de comunicação terapêutica, foram A comunicação constitui-se um instrumento impres-
observadas 13,6% técnicas de comunicação não cindível na prática dos trabalhadores de saúde. Em
terapêutica, como induzir respostas, falsa tranquili- estudo sobre comunicação na concepção de alguns
zação, comunicar-se unidirecionalmente, mudar de coordenadores de cursos de graduação em medicina,
assunto subitamente e julgar o comportamento dos ela foi considerada de forma ampla; entretanto, para
usuários (Fermino e Carvalho, 2007). Dificuldades uma parcela significativa de entrevistados constitui-
adicionais foram abordadas nos artigos analisados -se apenas um instrumento para o diagnóstico (Rossi
como barreiras para o ato comunicativo: não saber e Batista, 2006).
ouvir, uso de linguagem inacessível, imposições de A competência comunicacional no exercício da
ordens e lições de moral, ameaças e sugestões que não profissão não é inata, devendo ser abordada nos cur-
podem ser cumpridas, negação da percepção do outro rículos dos cursos da área de saúde já que demanda
e expressão de falso apoio (Martins e Araújo, 2008). aprendizagem contínua e precisa ser sintonizada
Outro impasse que dificulta a comunicação entre todos os membros da equipe. Deve abranger
efe­tiva está nas raízes históricas das práticas de não somente a capacidade de se fazer claro, mas
educação em saúde voltadas para a população, as principalmente escutar de forma acolhedora, não

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fornecendo apenas um entendimento conceitual, de São Paulo. Essa experiência é destacada de forma
mas considerando os indivíduos na sua subjetivi- positiva por propiciar ao discente a atenção para os
dade (Oliveira e col., 2008). Abordar a comunicação diversos aspectos que interferem na comunicação
durante a graduação pode contribuir para o desen- verbal (linguagem clara), proxêmica (distância entre
volvimento de competências na interação com o os interlocutores envolvidos) e tacêsica (toque) (De
cliente, não apenas para transmissão de informa- Marco e col., 2010).
ções, mas reconhecendo no ato comunicativo a rea- Verificou-se, a partir dos estudos incluídos nesta
lidade sociocultural do sujeito, suas representações, revisão, que na realidade brasileira há necessidade
preconceitos e saberes (Teixeira e Veloso, 2006). de exploração do tema comunicação no processo
Em estudo com docentes, enfermeiros, estudan- de formação dos profissionais de saúde, tendo em
tes e usuários do SUS (Leonello e Oliveira, 2009) vista que a maioria dos discentes não tem sido
abordando a ação educativa em saúde constatou-se instrumentalizada com habilidades comunicativas
que os professores acreditam na necessidade de no seu processo de formação, o que pode ser um
desenvolver no graduando atitudes que estimulem dos fatores responsáveis pelas dificuldades na co-
a percepção das necessidades de saúde dos sujeitos municação bidirecional na sua futura inserção nos
assistidos, o que implica reconhecer seus conheci- cenários do SUS.
mentos e saberes. Situaram também a importância Quando se investigou processos de educação em
da autonomia dos indivíduos na adesão ao projeto saúde e comunicação com enfermeiros no cenário
terapêutico. Os estudantes verbalizaram que o curso da Estratégia Saúde da Família, Silva e colaborado-
de graduação reitera a supremacia do saber profis- res (2009) relatam que os processos educativos em
sional em detrimento do senso comum. saúde estão pautados predominantemente em uma
As questões que dificultam a comunicação dialó- abordagem comportamental, de cunho preventivo,
gica entre os trabalhadores de saúde e usuários do cujas estratégias e recursos favorecem a unidire-
SUS estão presentes também na própria compreen- cionalidade no sentido enfermeiro-usuário, não
são do que ambos atores entendem por comunicação. existindo a dialogicidade do processo. Desse modo,
Esse aspecto foi constatado no estudo em que Rossi constitui papel decisivo das universidades, nos
e Batista (2006) abordaram egressos e coordenado- processos de formação dos profissionais de saúde
res do curso de medicina. Os egressos usaram com e de educação permanente em saúde, a abordagem
frequência os verbos transmitir, passar, esclarecer da comunicação como processo dialógico entre
e explicar para caracterizar a comunicação entre trabalhadores de saúde e usuários para práticas de
médicos e pacientes. Os verbos transmitir e passar promoção à saúde com maior efetividade.
denotam a transferência de conhecimentos e condu- Apesar disso, destaca-se positivamente algumas
tas do universo científico para o universo popular iniciativas que têm produzido conhecimentos e
sem a devida atenção à demanda dos usuários. Por intervenções positivas ao propiciar a utilização
outro lado, os verbos esclarecer e explicar remetem da comunicação dialógica, respeitando os valores
a uma maior preocupação do profissional de saúde culturais e saberes do usuário, como a experiência
em se fazer compreendido durante a realização das relata por De Marco e colaboradores (2010).
consultas médicas, embora seja preocupante o fato Relevante destacar que a habilidade da comuni-
de não mencionarem o ato comunicativo como prá- cação constitui uma das cinco competências gerais
tica social de troca e intercâmbio de saberes. estabelecidas pelas Diretrizes Curriculares Nacio-
A partir das lacunas que existem na formação nais (DCN) para os cursos da área da saúde (Brasil,
dos trabalhadores de saúde no que se refere ao esta- 2001), sendo pontuado que os profissionais da área
belecimento de uma comunicação dialógica com os devem ser acessíveis e manter a confidencialidade
usuários do SUS, encontramos os resultados de uma das informações a eles confiadas, na interação com
intervenção direcionada a aperfeiçoar as habilida- outros profissionais de saúde e o público em geral.
des comunicativas dos estudantes de medicina no A comunicação envolve comunicação verbal, não
laboratório de comunicação da Universidade Federal verbal e habilidades de escrita e leitura; o domínio de

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pelo menos uma língua estrangeira e de tecnologias são leigos, não é necessário ter conhecimento deles
de comunicação e informação. para o desenvolvimento das intervenções (Martínez-
Desse modo, a conversão da comunicação em -Hernáez, 2010). Outra questão colocada diz respeito
instrumento necessário à conjuntura da assistên- às relações de poder que se estabelecem entre o saber
cia à saúde constitui um desafio a ser respondido a científico e o popular e, consequentemente, resultam
partir das demandas dos usuários, do intercâmbio em práticas comunicativas verticalizadas, unidire-
e da relação com outros profissionais, visando um cionais e hierarquizadas ainda vigentes, apesar de
cuidado integral. suas fragilidades já comprovadas.
Essas relações de poder foram aprofundadas em
Temática 4 - Modelos comunicativos em saúde: a
um estudo de Oliveira e colaboradores (2008) sobre
busca pelo modelo dialógico a comunicação na perspectiva do acolhimento. Para
Ao longo dos anos, diversos modelos comunicativos alguns trabalhadores de saúde e usuários a comu-
têm sido vivenciados nas práticas em saúde vincu- nicação deve ser trabalhada entre todos os atores
lados a ações de imposição, informação e educação, envolvidos, de forma franca e objetiva, visando à
de acordo com os modelos assistenciais em saúde criação de vínculos por meio de uma escuta empá-
hegemônicos. Ao retratar os diversos modelos co- tica, tendo como objeto final um atendimento reso-
municativos vigentes, Montoro (2008) salienta os lutivo para o usuário. No estudo, os trabalhadores
vários paradigmas da comunicação ligados à impo- de saúde afirmaram também que a comunicação
sição de comportamentos e repasse de informações, não deve se restringir a momentos formais, como
abordando a necessidade de construção de práticas as reuniões de equipe ou as consultas, mas precisa
mais horizontais. Nesse âmbito, críticas são feitas envolver todos os momentos de encontro entre os
ao modelo de comunicação monológico, que ainda interlocutores. Outra potencialidade advinda da
se faz presente nas práticas de educação em saúde comunicação, apontada, foi a possibilidade de for-
e se caracteriza por princípios verticalizados de necer informações à equipe sobre os problemas mais
intervenção, nos quais se acredita que o “envio” da frequentes da comunidade, como forma de subsidiar
informação “correta” e “científica” é suficiente para ações diagnósticas, intervenções e demais estra-
a transformação das normas de comportamento. tégias necessárias para a solução dos problemas
Acredita-se, ainda, que o coletivo dos usuários é (Oliveira e col., 2008).
“vazio” de conhecimentos, cabendo à educação em Em outro estudo, que investigou a comunicação
saúde preencher esse vazio. do agente comunitário de saúde como elo entre os
Esse sistema comunicativo configura o modelo anseios da comunidade e a oferta programática
unilinear ou monológico, no qual os diversos fenô- dos serviços de saúde, os entrevistados mencionam
menos de vida, saúde e doença, de natureza multidi- que a comunicação nas instituições de saúde ainda
mensional, são reduzidos aos aspectos meramente é verticalizada, existindo poucos espaços para o
biológicos e resultam em práticas que desconside- diálogo e a participação. Além disso, os agentes
ram a historicidade, a cultura e a complexidade do atribuem pouco valor às vozes da comunidade, o que
ser humano (Martínez-Hernáez, 2010). possivelmente resulta da percepção de supremacia
Nessa perspectiva, o fluxo comunicativo se do conhecimento científico em detrimento do conhe-
movimenta a partir dos trabalhadores de saúde em cimento popular (Cardoso e Nascimento, 2010). Nes-
direção à “população alvo”, mas não a partir desta em sa conjuntura, os autores destacam, por um lado, o
direção aos primeiros. Consiste na aplicação acrítica silenciamento dos agentes nos espaços coletivos da
do modelo clássico de comunicação (emissor-recep- Equipe de Saúde da Família, que consiste em abdicar
tor-mensagem) no terreno da educação para a saúde, de suas vozes e iniciativas no âmbito institucional.
de maneira que a população assume um papel passi- Do outro lado, frente aos anseios da comunidade,
vo (paciente) e o educador sanitário um papel ativo eles encontram limitações na interação com as famí-
(terapeuta). O ponto de partida dessa lógica unidire- lias sob sua responsabilidade, pois ao reproduzirem
cional é que, uma vez que os conhecimentos nativos as relações de poder dos serviços de saúde para a

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normatização de comportamentos encontram por formadora, a formação dos trabalhadores da área
parte dos moradores a falta de legitimidade dos seus deve ultrapassar a simples aquisição de técnicas
atos de fala (Cardoso e Nascimento, 2010). e instrumentos rígidos que possam ser utilizados,
Em estudo enfocando a percepção dos agentes de forma generalizada, em suas ações educativas.
comunitários de saúde sobre o tema educação em Em estudo realizado com enfermeiros da atenção
saúde, Trapé e Soares (2007) ressaltam que, para os básica no município de Sobral, Ceará, a principal
entrevistados, a concepção que permeia o trabalho estratégia educativa referida foi a palestra, a qual
é pautada na transmissão de informações e de re- possuía, na maioria das vezes, um caráter unidire-
ceitas e no amedrontamento do usuário, caracteri- cional, aferido pela exposição de informações técni-
zando uma atividade prescritiva e normativa, com cas pelos trabalhadores de saúde, sem participação
uma baixa frequência de discursos de educação ativa da comunidade, que desempenhava o papel de
em saúde como uma construção compartilhada do mera receptora das informações (Silva e col., 2009).
conhecimento. Nota-se que uma série de motivos vem apontan-
Oliveira (2002), ao abordar o encontro terapêu- do o modelo dialógico, que respeite a cultura e os
tico que se estabelece entre os saberes populares e saberes dos usuários, como o mais factível dentro
o universo do conhecimento científico dos serviços da atual conjuntura da assistência à saúde. Uma
de saúde, enfatiza a relevância da cultura para o série de questões dominantes ainda se faz presente
entendimento e compreensão do usuário, de forma e dificulta o seu alcance de forma plena, sendo ne-
que os diferentes modelos de atuação que se mani- cessárias mudanças no processo de formação em
festam no momento da consulta ou do contato com saúde, passando pelo empoderamento dos usuários
o serviço tenham como orientação primordial uma até a produção cotidiana de ações que fortaleçam
“negociação entre as partes”, cada uma usando os o caráter interacional da comunicação em saúde.
seus argumentos para alcançar um consenso possí-
vel. Ou seja, deveria haver uma concordância, mesmo
que temporária, entre o agente de cura e o paciente.
Considerações finais
E, para que o sucesso desejado seja atingido, além A partir da realização desta revisão observou-se que
dos modelos explanatórios tornarem-se ao menos o tema comunicação tem sido explorado pelas ciên-
parcialmente manifestos, também deve haver uma cias da saúde na busca de estratégias que fortaleçam
postura receptiva à negociação entre as partes, es- as relações de comunicação, informação, tratamento
tabelecendo a comunicação dialógica. e diálogo, produzidas entre os trabalhadores e a po-
Nesse campo, em contraposição ao modelo mono- pulação assistida no âmbito dos serviços de saúde.
lógico, verifica-se a necessidade de implementação É importante salientar a relevância do ato co-
de outro modelo comunicativo. Esse processo, con- municativo tanto com crianças quanto com adultos.
duzido pelo diálogo, pela reflexão e pela articulação Concomitante aos aspectos linguísticos, os traba-
de saberes, conduz à educação popular em saúde lhadores da saúde devem se mostrar atentos para
proposta por Paulo Freire. Centrada no ser humano os vários parâmetros não verbais envolvidos no ato
como um ser consciente, capaz de compreender, comunicativo e que podem validar a comunicação
crítico, autônomo, livre, transformador, que cria verbal ou mesmo contradizê-la durante o encontro
e recria, conhece e está aberto à realidade, a pers- comunicativo.
pectiva freireana envolve um ser que não está só no Nesse processo são reconhecidas as várias di­
mundo, mas em relação com o mundo e com outros ficuldades que permeiam a comunicação, sendo
seres humanos (Acevedo e col., 2009). apontados como possíveis fatores a formação
Os trabalhadores de saúde precisam se apro- técnico-cientificista, que privilegia a hegemonia do
priar de tecnologias, conhecimentos, habilidades e conhecimento científico como único e verdadeiro,
técnicas, dentre as quais se situam as práticas da sem o reconhecimento dos saberes produzidos a
educação em saúde. Entretanto, para que os proces- partir da cultura dos usuários; a falta de instru-
sos comunicativos em saúde se deem de forma trans- mentalização para a comunicação com o binômio

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as barreiras existentes dentro da própria equipe de BRASIL. Ministério da Educação. Conselho
saúde, como, por exemplo, a dificuldade de comuni- Nacional de Educação. Diretrizes curriculares
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a partir da legalização do SUS vêm mostrando as maio 2011.
fragilidades do modelo unilinear e verticalizado de
comunicação e a necessidade de instrumentalizar BRUSCHI, B. A. M. et al. Avaliação do atendimento
os trabalhadores de saúde, desde a graduação, com anestésico da criança e do adolescente em um
saberes que proporcionem o exercício de práticas co- hospital universitário. Revista Brasileira de
municativas dialógicas. Persiste o desafio de propi- Anestesiologia, Campinas, v. 55, n. 4, p. 405-420,
ciar experiências formativas também nos processos 2005.
de educação permanente nos cenários de assistência CARDOSO, A. S.; NASCIMENTO, M. C.
à saúde, de forma a produzir o compartilhamento Comunicação no Programa Saúde da Família:
de saberes que conduzam à compreensão e enten- o agente de saúde como elo integrador entre
dimento entre os vários interlocutores envolvidos a equipe e a comunidade. Ciência & Saúde
no ato comunicativo. Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, p. 1509-1520, 2010.
Suplemento.
Contribuição dos autores DE MARCO, M. A. et al. Laboratório de
comunicação: ampliando as habilidades
Coriolano-Marinus e Lima contribuíram com a
do estudante de medicina para a prática da
seleção da pergunta de pesquisa, coleta de dados,
entrevista. Interface: Comunicação, Saúde e
análise de dados e revisão final do texto. Queiroga
Educação, Botucatu, v. 14, n. 32, p. 217-227, 2010.
contribuiu na análise de dados e revisão final do
texto. Ruiz-Moreno contribuiu na análise de dados FERMINO, T. Z.; CARVALHO, E. C. A comunicação
e revisão final do texto. terapêutica com pacientes em transplante
de medula óssea: perfil do comportamento
verbal e efeito de estratégia educativa. Cogitare
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Recebido: 07/04/2013
Reapresentado: 03/11/2013
Aprovado: 25/11/2013

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