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Cultura Material: Fonte de contato com o passado

Anelise Martins de Barros

Graduanda em história

Universidade Federal do Rio de Janeiro

a.nelise_martins@hotmail.com

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre o uso da cultura material enquanto fonte pelos
historiadores ao longo do tempo. Sendo a cultura material interpretada enquanto fonte
primária e de grande importância para a história por permitir que o historiador construa uma
visão de como era o cotidiano dos indivíduos que viveram tanto em períodos distantes quanto
próximos a contemporaniedade.

Palavras-chave: Cultura Material, Fonte primária, História.

Abstract

This article proposes a reflection about the use of material culture as a source by historians
over time. Being the material culture interpreted as a primary source and of great importance
for the history for allowing the historian to construct a vision of the quotidian of the
individuals who lived as much in distant as near contemporary times.

Keywords: Material culture, Primary source, History.

Introdução

Vista enquanto objeto de estudo apenas da arqueologia e da museologia, a cultura material por
um longo período de tempo foi utilizada apenas como fonte para os historiadores que estudam
a antiguidade, os quais não possuíam uma vasta gama de fontes escritas1 para análise. Com
isso, a cultura material foi relegada as sombras e não foi objeto de estudo dos historiadores, de
modo geral, por um longo período de tempo.

Definições de Cultura Material

1
O que se compreende por fontes escritas varia de acordo com o período histórico. Antes da virada
historiográfica, com a Escola dos Annales e os apontamentos da historiografia alemã, as fontes deveriam
compreender os documentos oficiais e a história possuía um viés, sobretudo, político.
Os autores Anne Gerritsen 2 e Giorgio Riello 3 , no livro Writing Material Culture History,
apontam justamente para a dificuldade da história, assim como de outras ciências humanas,
em relação ao uso da cultura material. A proposta dos mesmos é por meio de seu trabalho
definir o que é cultura material e reunir uma coletânea de artigos que apontem caminhos para
que pesquisadores de diversas áreas façam uso dessa fonte, assim como fazem uso das fontes
escritas.

Sendo assim, para os autores a cultura material não se resume apenas a objetos, mas a objetos
que possuíam um significado no passado.

A compreensão do significado desse objeto é realizada por meio da análise do contexto em


que ele foi encontrado, do seu modo de fabricação, dos vestígios botânicos presentes em seu
interior, dentre outros4.

Ulpiano de Meneses 5 , em "A cultura material no estudo das sociedades antigas" realiza
críticas a discriminação dos historiadores em relação ao uso dessa fonte, aponta uma
"marginalização da cultura material" e o uso da "informação arqueológica, de maneira
puramente instrumental" (Meneses, p.104).

Interessante ressaltar que assim como a cultura material, a iconografia também passa por esse
processo de defesa enquanto objeto de estudos dos historiadores, onde autores, como Lília
Schwarcz, defendem que ela não deve mais ser vista enquanto ilustração de um documento,
mas sim como fonte primária. Com o uso das ilustrações e fotografias enquanto fontes
primárias, diversos estudos podem ser desenvolvidos, como por exemplo, o trabalho de
Schwarcz sobre o triângulo - o rei, a natureza e seus naturais - que é estabelecido enquanto
base do Brasil Imperial de D. Pedro II.

2
Afiliada a Universidade de Leiden, tem como objeto de pesquisa as dinâmicas interculturais entre a Ásia e a
Europa, tendo como foco a cultura material, arte e o desenvolvimento humano.
3
Professor da Universidade de Warwick. Tem como objeto de estudo a história da cultura material, moda,
design e consumo na Europa e Ásia durante a idade moderna.
4
Sobre esta temática consutar os seguintes artigos:
Scheel-Ybert, Rita et al. "Novas perspectivas na reconstituição do modo de vida dos sambaquieiros: uma
abordagem multidisciplinar". Revista de Arqueologia, v. 16, n. 1, p. 109-137, jun. 2017. ISSN 1982-1999.
Disponível em: <http://www.revista.sabnet.com.br/revista/index.php/SAB/article/view/182>. Acesso em: 09 out.
2017.
Agostini, Camila. Resistência cultural e reconstrução de identidades: Um olhar sobre a cultura material de
escravos do século XIX. Revista de História Regional, RJ. p. 115-137. 1998.
5
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP. Estuda História Antiga (história da
cultura, pintura helenística, urbanismo antigo), cultura material, cultura visual, patrimônio cultural, museus e
museologia.
Retornando a questão da cultura material, Ulpiano de Meneses defende o uso da cultura
material por historiadores e a define como "segmento do meio físico que é socialmente
apropriado pelo homem. Por apropriação cultural convém pressupor que o homem intervém,
modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais."
(Meneses, p. 112).6

A cultura material enquanto objeto de estudo no Brasil

No artigo "Arqueologia no Brasil hoje", Pedro Paulo Funari e André Chevitarese, realizam
uma grande contribuição ao mostrarem como o estudo sobre a cultura material se modificou
ao longo do tempo no Brasil.

De acordo com os autores, os estudos relativos a cultura material se iniciaram com a vinda da
família real portuguesa, após a sua expulsão de Portugal por Napoleão Bonaparte. Na vinda,
diversos artefatos foram trazidos de Portugal.

No Brasil imperial, D. Pedro II juntamente com sua esposa, a Imperatriz Teresa Cristina,
trouxe diversos artefatos arqueológicos de Pompéia para o Brasil e em contrapartida, diversos
artefatos dos povos indígenas foram levados para a Europa em retribuição.

Com o fim do Império e a ascensão da República, uma forte repulsa ao indígena é trazida a
tona e, com isso, há um recuo da arqueologia brasileira, a qual será retomada apenas na
década de 30 do século XX quando o Estado novo escolhe o período da colonização como o
momento que irá definir a sociedade brasileira.

A emergência da ditadura civil-militar com o golpe de 1964 trouxe à tona projetos que
visassem o controle do território nacional, um desses projetos era o Pronapa, criado em
parceria com os EUA, que visava a descoberta de sítios arqueológicos em território brasileiro.
A partir dessas pesquisas, pode-se conhecer mais do território brasileiro e houve uma
valorização da cultura material produzida pelos povos indígenas devido ao trabalho de
pesquisadores como o professor Ondemar Dias, o qual participou de diversas pesquisas e
catalogou diversos sítios em território nacional.

Um dos sítios catalogados nesse período foram os sambaquis, os quais por muito tempo foram
interpretados enquanto montanhas de lixo empilhadas na costa pelos povos que residiam no
litoral brasileiro. No entanto, a partir de estudos como os de Madu Gaspar, pode-se
6
Para um maior aprofundamento na discussão sobre apropriação cultural, ver PERROTTI, E.; PIERUCCINI, I.
"Infoeducação: saberes e fazeres da contemporaneidade". In: LARA, M. L. G, FUJINO, A. NORONHA, D. P.
(Org.) Informação e contemporaneidade: perspectivas. Recife: Néctar, 2008.p. 46-97
compreender que havia um significado muito maior por trás desses monumentos, pois eles
continham uma grande quantidade de enterramentos, pequenas esculturas zoomórficas e
fogueiras em seu interior.

Com o fim da ditadura, a constituição passa a proteger o patrimônio cultural nacional através
do artigo 216, onde temos a seguinte premissa "bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à maioria dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem͟, de acordo com os
seus Parágrafos IV e V as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico."

Esse artigo promoveu uma valorização da cultura material, que a priori é vista enquanto
objeto de estudo apenas da arqueologia e dos historiadores que lidam com sociedades ágrafas.

A cultura material como fonte histórica

Recentemente diversos pesquisadores têm feito uso da cultura material para compreender não
apenas sociedades ágrafas, mas também sociedades com registros escritos.

Para ilustrar o diálogo da cultura material com a história, serão comentados três exemplos do
uso da cultura material como fonte na contemporaneidade. O primeiro são estudos sobre a
ocupação da cidade do Rio de Janeiro por meio do material retirado nas escavações
arqueológicas do Cais da Imperatriz, também conhecido como Cais do Valongo, onde os
artefatos recolhidos permitiram que pesquisadores acessassem como era o cotidiano dos
indivíduos que chegavam ao cais. Permitiram acessar também a realidade da população local
e a pluralidade presente na cidade do Rio de janeiro em um período que possui registros
escritos, onde diversas culturas dialogavam e onde emerge o que pode ser intitulado enquanto
uma cultura afro-americana, de acordo com Mintz e Price7.

O segundo são as escavações em África que trouxeram, e ainda trazem à tona constantes
descobertas sobre o passado pré-colonial, colonial e pós-colonial africano. Alberto da Costa e
Silva, em A enxada e a lança, no capítulo "Os litorais do Índico”, aponta para um contato
entre bantos e estrangeiros, por meio da análise de cerâmicas, faianças persas e vidros
islâmicos oriundos de escavações em territórios dos povos pertencentes ao tronco linguístico

7
Autores apontam como as condições heterogêneas do novo mundo podem ter servido como catalisadoras
para a emergência de uma cultura afro-americana que se desenvolve na medida em que esses indivíduos a
criam.
banto. Sendo assim, a cultura material foi um meio de comprovar e compreender a relação
comercial entre bantos e estrangeiros pelo litoral do índico.

Para além do uso da cultura material em estudos relacionados aos períodos anteriores a
chegada dos europeus, a materialidade africana é tão plural que permite ao historiador um
contato com diversos momentos na história dos países africanos. Como exemplo desse uso
para compreender os diversos momentos, temos a análise das trocas de galanterias entre o Rei
Adandozan e D. João VI, a qual demonstra a valorização que ambos davam a relação
estabelecida.

O terceiro e último, são as escavações realizadas no terreiro da Gomeia em Duque de Caxias,


pelo arqueólogo Rodrigo Pereira. Nessas escavações, há a busca por uma compreensão do
local e dos ritos que ocorriam nele por meio da estrutura remanescente do terreiro e dos
vestígios deixados.

Pereira ressalta a todo momento em seus estudos que a antropologia, a história e a arqueologia
são capazes da trazer a tona inúmeras respostas acerca de locais, ritos e acontecimentos que
transcorreram a algum tempo e se mantem enquanto um enigma.

Essas pesquisas apontam o quão enriquecedor para a historiografia é o uso dos artefatos do
passado enquanto fonte primária e não apenas como ilustração ou suporte para a fonte
documental.

Conclusão

Em suma, a cultura material permite diversas possibilidades de estudo. Historiadores na


contemporaneidade tem se aberto a essa fonte enquanto central no estudo de sociedades
ágrafas, no entanto, como vimos ao longo do artigo, esse objeto de estudo abre a possibilidade
de compreensão tanto de sociedades ágrafas quanto de sociedades em que a escrita é utilizada
como forma de narrativa.

Esse conjunto de fatores aponta a necessidade da valorização da cultura material e o seu uso
tanto pelos arqueólogos quanto pelos historiadores.

Por meio dela, todos os indivíduos do passado tem voz e, em decorrência, têm suas histórias
transmitidas. Sendo assim, a cultura material permite que se narre a história de todos os
homens no tempo.
Bibliografia

Bloch, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, p. 159,
2001.

Brasil. Artigo 206 da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988.

Funari, Pedro Paulo A., Chevitarese, André L. “Arqueologia no Brasil hoje”. In: Trabalhos de
Antropologia e Etnologia. Braga: v. 53, 2013, p. 61-74.

Gaspar, Madu. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, p. 92, 1999.

Gerritsen, Anne; Riello, Giorgio. Writing Material Culture History. London: Bloomsbury, p.
352, 2014.

Lima, Tania et al. Em busca do Cais do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX. In: Anais do
Museu Paulista. São Paulo: Vol.24., n.1, 2016, p. 299-391.

Meneses, Ulpiano. A cultura material no estudo das sociedades antigas. João Pessoa: Atas - I
Simpósio Nacional de História Antiga, 1983.

Mintz, Sidney; Price, Richard. O Nascimento da Cultura Afro-americana - Uma Perspectiva


Antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, p. 127, 2003.

Perrotti, Edmir; Pieruccini, Ivete. "Infoeducação: saberes e fazeres da contemporaneidade".


In: Lara, Marilda, Fujino, Asa, Noronha, Daisy. (Org.) Informação e contemporaneidade:
perspectivas. Recife: Néctar p. 46-97, 2008.

Silva, Alberto da Costa. “Os litorais do Índico” (Cap XII). In: A enxada e a lança. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 5º ed., 2011.

Soares, Mariza. Conhecendo a exposição Kumbukumbu do Museu Nacional. Rio de Janeiro:


Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 152, 2016.

Soares, Mariza. Trocando galanterias: a diplomacia do comércio de escravos, Brasil-Daomé,


1810-1812. Bahia: Afro-Ásia [online], n.49, 2014, p.229-271.

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