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Introdução: o movimento indicial na mídia binam em distinto grau os três tipos de signo
contemporânea para gerar o significado. Porém, postulo que
o índice é o signo predominante nesses
O texto procura caracterizar um gênero formatos, o que determina seu efeito de
que abrange diversos formatos muito popu- sentido específico, de gênero, no público.
lares no mundo, quais sejam: o reality show Mas, como ter certeza de que o gênero
televisivo, o documentário cinematográfico indicial representa o real e, portanto, esta-
e a fotografia jornalística. Todos se dedicam belece uma diferença com a ficção e com
à representação do real, o que faz pensar os outros gêneros? Para responder à questão
num verdadeiro movimento indicial na mídia. recorro ao dispositivo pragmático de análise
Penafria (2003a) propõe o termo do sentido criado por Peirce em 1878.
“documentarismo” para analisar todo e qual- A máxima pragmática de Peirce (CP
quer filme a partir dos componentes do gênero 5.403)3 define o significado de um conceito
documentário clássico (ex. a filmografia de (p. ex. “documentário fílmico”) como o
Grierson). Proponho descrever estes forma- conjunto de suas “conseqüências práticas”.
tos como casos concretos do gênero indicial: Por sua vez, elas são as “consequências
o resultado da hegemonia ou do predomínio experienciáveis” dos conceitos (Ibri 2000:33),
neles da classe de signo que possui um laço que apresentarei aqui como todo aquilo que
existencial, factual com seu objeto dinâmico decorre fenomênicamente dos conceitos, isto
– o real considerado fora da relação de é, aquilo que pode ser observado na expe-
representação. O motivo para introduzir o riência (do público, do crítico, etc). O acir-
termo “indicial” não é uma simples mudança rado debate sobre a autenticidade do
de uma palavra por outra, mas é uma de- registrado no reality show e no documentário,
corrência do uso da semiótica triádica e assim como uma forte resistência social a
pragmática de C. S. Peirce (1839-1914) para olhar um documento fotográfico que fornece
a análise da representação do real na mídia. uma evidência insuportável da fragilidade
Graças às contribuições recentes de pesqui- coletiva, logo após de um ataque terrorista,
sadores do universo lusófono à análise do são alguns exemplos de tais experiências. A
registro documentário no cinema e na tele- pragmática concebe o significado como “o
visão, é possível avançar na discussão sobre lado exterior que gera o próprio conceito”
uma oposição ontológica fundamental na (Ibri 2000:34). Tal análise permite explicar
reflexão sobre a mídia hoje: a problemática o vínculo dos formatos da mídia com o real.
fronteira entre o real e a ficção.2 Embora existam manipulações, mentiras e
Na semiótica triádica, o termo “indicial”, interferências de toda classe (montagem,
que caracteriza as três formas de realismo efeitos especiais, etc), isso não altera o
documentário no texto, deve ser compreen- estatuto indicial do gênero dos formatos
dido como uma das três classes sígnicas que midiáticos considerados. No limite, tais al-
resultam da relação entre o signo e o real terações determinam a existência de alguma
a ser representado ou objeto dinâmico. Assim, falta ética ou estética no gênero.
índice, ícone e símbolo se alicerçam nas
relações de contigüidade existencial, de Alguns antecedentes analíticos recentes
semelhança e de interpretabilidade geral, res- sobre o gênero documentário
pectivamente. No texto, vou me concentrar
no segundo tipo, o índice, com a ressalva Os trabalhos de Godoy (1999), Penafria
de que nos formatos considerados se com- (2003, 2004) e Rial (2003) analisam do ponto
104 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
de vista tecnológico e semiótico o e falível do real. Sob este prisma, cada signo
documentário, e sua conflituosa relação com é uma promessa não totalmente cumprida,
seu assunto distintivo, o real extra-midiático. ou uma que não pode não fazer novas
Para me posicionar no que diz respeito às promessas. Só no longo prazo, postula-se uma
propostas teóricas destes autores, apresento convergência tendencial entre o objeto dinâ-
abaixo um resumo de seus argumentos. mico (o real fora de toda representação) e
Conforme os pesquisadores citados, o a interpretação chamada final. Nem o filme-
documentário Zapruder, que é o exemplo considerado pela
a. não consegue transpor o real (Rial 2003); autora, nem os inúmeros livros escritos nos
b. não é uma representação conclusiva do últimos quarenta anos sobre o célebre assas-
real (Penafria 2003); sinato de Dallas exaurem a interpretação
c. tem uma diferença de grau e não de desse acontecido. Mas os signos procuram
natureza com respeito à ficção (Penafria 2003) e, de fato, conseguem revelar aspectos su-
d. serve para caracterizar todo filme, e mais cessivos do real a uma criatura falível como
ainda no caso dos filmes de autor (p. ex. uma o ser humano, e assim a aproximam à
obra típica de Almodóvar) (Penafria 2004); verdade. Postular uma tendência aproxima-
e. não cria a realidade mas a descobre tiva em direção à verdade não é o mesmo
e exibe seus aspectos existenciais, menos do que negar absolutamente tal possibilidade.
que sua generalidade (Godoy 1999). O terceiro ponto refere-se ao postulado
Coincido com o primeiro ponto, que Rial de Penafria (2003a) sobre a diferença de grau
(2003) postula com respeito à transmissão entre o documentário e a ficção. Há aqui uma
televisiva do futebol. O dicionário Aurélio afinidade com o ponto de vista semiótico.
define o verbo TRANSPOR como o ato de “pôr No mundo real não há ícones, índices ou
(algo) em lugar diverso daquele em que estava símbolos puros. Para se manifestar, o índice
ou devia estar”. Embora seja verdade que não deve incorporar alguma qualidade, i.e., um
há tal transposição no gênero indicial, isso ícone, e no seu funcionamento, o símbolo
também é válido para todos os outros gê- necessita incorporar os outros dois tipos de
neros. Não é possível colocar o mundo tal signo. No clássico romance de Daniel Defoe,
qual é num filme, num vídeo, nem no papel a pegada de Sexta-feira na areia apresenta
Kodak. Todo formato da mídia é uma re- ao náufrago a indicação palpável da existên-
presentação ou signo do real e não uma cia de outra pessoa, junto com a forma de
transposição. Peirce (CP 5.283) postula que seu pé.4 Claro que poderia ter sido uma falsa
a percepção é direta e mediada a um mesmo pista, uma forma natural feita pelo vento na
tempo. Como o arco íris, que é a manifes- ilha. Porém, o decisivo neste contexto, con-
tação do sol e da água, toda representação forme o propósito de Robinson, é o valor
consiste na convergência de um sistema indicial da representação, isso é o dominante.
representacional e do real. Portanto, o que Em 1935, Jakobson propôs o conceito
seria, segundo Rial (2003), uma carência do formalista de “dominante”, que definiu como
documentário constitui, a priori, a condição “um dispositivo na hierarquia interna do signo
essencial de toda ação sígnica ou semiose. global constituído pela obra literária, (e que)
O signo é a manifestação interpretativa de sempre é levado ao primeiro plano
alguém e também de algo independente dos (foregrounded)”.5 Tal como o elemento focado
intérpretes, e dos próprios signos. da obra de arte “assegura sua gestalt ou ordem
Vamos agora ao segundo argumento. As total”,6 no que diz respeito ao propósito
três relações do signo com o representado sistêmico que regula seu uso, cada signo
acima mencionadas são os três modos bá- manifesta a primazia de uma relação sígnica,
sicos de conhecer o mundo. Penafria (2003) conforme Peirce. É seu aspecto indicial o que
admite a natureza representacional do gera a expectativa do público do
documentário, mas ela objeta que tal repre- documentário Edifício Máster (Brasil, 2002,
sentação “é inconclusiva”, porque sua reve- EM de aqui por diante), que, naturalmente,
lação é parcial. Concordo com tal postulado, inclui na sua complexa gestalt símbolos,
mas trata-se de uma condição de todo signo, índices e ícones. Se apagássemos a relação
que pela sua natureza é uma revelação parcial de contiguidade existencial entre as imagens
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 105
e sons do filme e isso que de fato existe, do índice, do ícone ou do símbolo num
além da filmagem, naquele prédio verdadei- contexto determinado. O documentário EM
ro e não cinematográfico de Copacabana no tem como seu objeto semiótico o fato sin-
Rio de Janeiro, onde a ação acontece, essa gular de um encontro concreto com as pessoas
obra cinematográfica mudaria completamen- e lugares registrados, segundo as palavras do
te. EM seria mais uma ficção encenada na realizador Coutinho.13 O filme é a crônica
bela cidade carioca.7 É verdade que tanto na do aqui e agora, a evidência audiovisual de
ficção quanto no documentário há “um olhar, uma resistência diádica entre quem filma e
uma visão sobre determinado assunto”, se- quem é filmado. Isso constitui o aspecto
gundo Penafria.8 Mas é o dominante indicial documental do documentário, seu sentido
o que determina logicamente o efeito de oficial e público, o chamado “indexing” do
sentido primordial do formato considerado, filme.14
sem ignorar a influência dos outros elemen- Embora seja verdadeiro, o resultado
tos presentes no filme. apontado pela proposta que faz Penafria
É preciso introduzir, porém, uma cautela (2004) da existência de um documentarismo
analítica na proposta gradualista desta pes- generalizado não parece ser produtivo. Em
quisadora na sua versão extrema, qual seja: princípio, não haveria coisa nenhuma no
“todo filme é documental”.9 Em princípio, mundo que não possa incluir-se nesta ca-
não há coisa nenhuma que não possua as três tegoria fílmica, o qual esvaziaria este con-
propriedades categoriais que analisam a ceito de seu valor heurístico. Se tudo fosse
experiência da realidade no modelo semiótico documental, nada poderia ser definido assim
triádico – Primeiridade, Segundidade e informativamente. Uma ilustração da utilida-
Terceiridade (CP 1.525). Baseadas nestas de da distinção documental/ficção encontra-
categorias, as coisas representadas desenvol- se num clássico da cinematografia mundial:
vem relações icônicas, indiciais e simbóli- o backstage do filme Fanny e Alexander
cas.10 Um típico filme de Almodóvar pode (Suécia, 1982), de Ingmar Bergman. Não é
sim documentar, como afirma Penafria, problemático afirmar que aquele filme, do
enquanto ele é um índice do realizador, de qual o documentário ulterior exibe os bas-
seu estilo. Mas isso não funciona, ipso facto, tidores, é uma típica obra do mestre sueco.
como critério para classificá-lo no gênero Mas isso não converte o filme ficcional num
documental (ou indicial). Conforme Lefevbre, documentário do estilo de Bergman. Se fosse
“seria impossível fazer o inventário de todos assim, como definir-se-ia o making up de
os objetos que uma coisa, uma vez Bergman, o qual foi exibido quatro anos após
semiotizada, pode chegar a representar”.11 Fanny e Alexander, com o título Diário de
Nesse texto dedicado a analisar uma célebre uma filmagem (Suécia, 1986)?
pintura de Magritte, Lefebvre propõe uma O último dos cinco argumentos é extra-
longa lista de possíveis referências dessa obra ído da crítica semiótica das posições anti-
pictórica. Dentre elas só mencionarei duas: realistas, “deconstrutivistas e nominalistas”
a Bélgica e o lugar específico onde um que desenvolve Godoy. Estas concebem “a
visitante encontra-se, num momento dado, no realidade de um universal apenas como um
museu. Mas estes não são índices signo mental”.15 Do ponto de vista criticado,
constitutivos daquela obra de arte de Magritte o signo fílmico é uma ilusão manipuladora,
como obra de arte, porque tais índices não “um instrumento de dominação burguesa”.16
revelam seu significado estético. A falácia da Concordo com a afirmação de Godoy de que
proposta de considerar documental todo fil- há uma “potencialidade epistemológica do
me, e alguns deles ainda ‘mais documentais documentário” de revelar o real.17 Claro que
(porque) nos mostram que estamos perante isso não garante que o gênero todo repre-
um filme de um e não de outro autor”,12 sente de modo fidedigno os fatos do mundo
decorre de não fazer a distinção entre o e que seja uma ajuda eficaz para compreendê-
suporte material através do qual se manifesta los. Mas tal cautela é válida para qualquer
uma representação e seu objeto semiótico. signo, em qualquer meio de expressão. Só
Somente o objeto representado é teoricamen- tenho uma pequena divergência com respeito
te relevante para decidir se há uma primazia às conclusões de Godoy. Além da presença
106 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
objeto significado”, tal como acontece no caso uma experiência reflexiva, conceitual, tal
de “um golpe na porta, um alarme, um silvo, como acontece em outros gêneros. A passa-
um tiro de canhão” (CP 5.554). gem do efeito hipnótico e compulsivo do
Minha hipótese é que nos três exemplos índice para o efeito convencional daquilo que
escolhidos – BBB, EM e a foto do Homem exige ser interpretado, seria o intuito de um
que Cai – os índices geram um tipo de gênero televisivo popular como Big Brother.
conhecimento carnal no espectador como A morte ou limite natural do reality show
sua conseqüência prática, experienciável. O seria sua completa convencionalização. Nis-
consumo estético desses três formatos do so consiste a suspeita de que haja uma atuação
gênero indicial envolve um efeito de resis- amadora mas que esta seja guiada por um
tência que nos faz cientes de nosso próprio roteiro segredo. Como uma sombra, tal
self. O específico dessas representações do suspeita do público acompanha o formato da
real é que a experiência baseia-se no efeito Endemol desde sua origem.
quase táctil gerado pela transpiração No caso do documentário, a desconfian-
semiótica, pelos inúmeros rastos dos corpos ça é mais o resultado de um ceticismo
filmados e exibidos, ao vivo, em vídeo, em intelectual e profissional que uma reação dos
um documentário, ou captados numa foto espectadores. Trata-se de uma herança lon-
digital. Nisso precisamente consiste o cha- gínqua do modo nominalista de pensar, o qual
mamento indicial. Mesmo que pareça con- não aceita a manifestação do real através de
tra-intuitivo reunir numa comparação elemen- signos de tipo universal, seja na natureza ou
tos tão diferentes, há uma vantagem teórica na vida social. Porém, sem a tendência que
em fazê-lo. É possível contribuir desse modo têm todas as coisas a serem representadas
à compreensão de uma tendência cultural de algum modo (icônico, indicial ou simbó-
manifestada através do consumo de diversos lico), a vida na terra não seria possível. Para
formatos da mídia com um único intuito, qual concluir, vou apresentar um interpretante ou
seja: a procura do contato com o autêntico, efeito de sentido público de cada um dos três
com o real associado à atualidade máxima. formatos mencionados.
No chamamento indicial, o real encarna-se
em corpos anônimos que agem sem roteiro A rarefação de uma imagem fotográfica:
frente a câmaras e microfones, ou que passam a insuportável visão do Homem que Cai
impensadamente perante a lente de objetiva
de um jornalista bem situado. Essa presença A câmera digital de Richard Drew cap-
se encontra ali para fornecer uma evidência turou às 9hs 42’ 15’’ a.m., horário da costa
existencial, mais do que para falar ou refletir leste dos EUA, um indício que seria pronta
sobre ela. Proponho considerar que essa classe e inexoravelmente banido da mídia de seu
de revelação indicial tem se transformado no país. A foto do Homem que Cai virou um
Grial da cultura midiática do século XXI. testemunho intolerável pela sua capacidade
O mais característico do movimento de revelar indicialmente a máxima fraqueza
indicial é a saliência de signos que são fatos da nação mais poderosa da terra. Logo após
e que fornecem um testemunho do mundo, de ter aparecido na capa de vários jornais,
quer corriqueiro, quer sublime. Na perspec- no dia 12 de setembro de 2001, a figura
tiva evolucionista de Peirce, a ação dos signos improvável pela impactante graça e levian-
envolve seu contínuo crescimento, a integra- dade do anônimo homem-pássaro do World
ção do ícone e do índice no símbolo, cons- Trade Center sofreu um processo de rarefação
tituindo-se então uma forma mais complexa indicial semelhante às imagens invisíveis das
potencialmente submetida à interpretação. O vítimas norte-americanas da invasão de Iraque
símbolo é uma lei ou conceito geral através em 2003. Estes corpos retornaram sem glo-
do qual compreendemos e ordenamos nosso ria, nos ataúdes cobertos pela bandeira e pela
entorno, para nos adaptar melhor a ele, e censura oficial.
poder transmitir esse saber convencional. Ao A silhueta estranha desse homem sem
longo do tempo, os encontros corporais que nome, um dos muitos que pularam ao vazio
constituem o cerne do gênero indicial ten- do alto da Torre norte do World Trade Center,
dem a evoluir do conhecimento carnal para na manhã do 11 de setembro de 2001, virou
108 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
pobreza no Brasil. Na referida entrevista, uma da Rede Globo, que deu uma entrevista após
espécie de backstage verbal do filme, do fim da primeira edição deste reality show:
Coutinho se sente na obrigação de afastar-
se daquela ideologia tão oposta à sua. Sem Playboy: Você pretende detonar al-
se propor fazê-lo, claro, o realizador do EM guém na edição, como no caso do
vai explicar como o poder mesmerizador do videoclipe da Stella enfiando várias
índice define este gênero fílmico: “é preciso vezes o dedo no nariz...
se colocar no lugar do outro e, mais que isso, Boninho: Mas a Stella tinha mesmo
é preciso mostrar o lugar de onde o outro a mania do nariz e era impossível não
está falando” (225). Eis o paradoxo do gênero brincar com aquilo. ... Se a pessoa
indicial: a subjetividade do criador só pode tiver uma mania semelhante e
servir para preservar e não interferir com a entrar na casa do BBB, vou deto-
objetividade da presença do outro, de sua nar, sim. O cara sabe que, se está
subjetividade. O documentário é uma rede lá dentro, é para isso mesmo.
que traz de regresso de sua passagem pelas (Fernando Valeika de Barros, “Entre-
águas turbulentas do mundo o bom, o ruim, vista a José Bonifácio de Oliveira,
o admirável e o duvidoso, tudo o que acon- Boninho”, Playboy, 2003, p. 75, grifo
teceu no momento do encontro fílmico, e que meu, F.A.)
vai servir para se reconhecer a si próprio no
confronto com o outro. Não poderíamos achar uma mais perfeita
Se, como afirma Coutinho, “frente a esse antítese ética e estética do laconismo indicial
real, todo documentário, no fundo, é precá- do documentário de Coutinho, que esta
rio, incompleto, imperfeito” (215), pergunto descrição brutalmente sincera do efeito de
qual seria então a necessidade de se preser- sentido básico do reality show mais conhe-
var do eventual contágio com uma concep- cido do mundo. À circunspeção do EM se
ção do mundo antagônica, com a fala de quem contrapõe o excesso do indicial do BBB. Cada
encarna uma irreconciliável diferença? Po- uma das quatro edições produzidas no Brasil
rém este é o sentido das palavras do rea- a partir de 2002 e até 2004, é pródiga na
lizador, quando ele comenta sobre essa ide- multiplicação de rastos da transpiração
ologia tão oposta à sua: semiótica dos participantes deste programa
televisivo. Se o cuidado do outro leva o
Não estou ali para dar razão a nin- realizador de documentários Eduardo
guém. Nesse caso, é claro que não Coutinho a administrar com extrema prudên-
estou dizendo que a Maria aí esteja, cia o espaço e o tempo de quem é filmado,
mas não me cabe julgá-la. O que me no caso do BBB trata-se de dilapidar seu
cabe é, nessa conversa, tentar eviden- corpo, sua presença, através da fragmentação
ciar o lugar de onde nasce essa pos- e da multiplicação infinita de imagens e sons,
tura, essa posição do discurso do até configurar com os índices assim coletados
outro. (226) uma colagem grotesca, no estilo do pintor
manierista italiano Arcimboldo (1527-1593).
Mais do que um índice do estilo do autor, A seleção sígnica e sua montagem procuram
fica evidente que o essencial no atingir a audiência através de uma acumu-
documentário, seu objeto semiótico, são os lação de fatos representados, para que estes
índices do real, disso que o filme conseguiu produzam uma experiência carnal mais do
representar de modo limitado, como qualquer que uma reflexão moral, embora isso tam-
outro tipo de signo. bém possa acontecer, e de fato aconteça no
público fiel de BBB (Andacht 2002).
A sobreabundância indicial do Big Brother Uma dúvida inevitável surge neste ponto
Brasil: a arcimboldiana reiteração do real da argumentação: será admissível incluir no
gênero indicial um formato cujo nome ofi-
Para analisar o indicial no polêmico cial contém a idéia do espetáculo (‘show’),
formato televisivo do BBB, vamos a deixar numa desconfortável e promiscua proximi-
falar a seu produtor no Brasil, o Boninho dade da noção de ‘real(ity)’ que fornece a
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Manuela, Penafria, “O documentarismo do Pereira da Silva, Humberto, “O Edifício
cinema”. Retirado de http://bocc.ubi.pt/_listas/ Master”. Revista de Cinema. No. 31 (versão
tematica. php3? codt=42 em 02/01/2004. online) www.uol. com.br/revistadecinema/
13
Alexandre, Figuerõa et al.,“O documentário ediçao31/em_cartaz/critica.shtml, Retirado no 19/
como encontro. Entrevista com o cineasta Eduardo 09/2003.
19
Coutinho”, Galáxia. Revista transdisciplinar de Tom, Junod, “The falling man”. Esquire,
Comunicação, Semiótica, Cultura. No. 6, 2003, p.217. Vol. 140, Issue 3, September, 2003, p 277.
14 20
Noel, Carroll, “From reel to real” Alexandre, Figueroa et al., “O documentário
In:”Theorizing the moving image. Cambridge: como encontro. Entrevista com o cineasta Eduar-
Cambridge University Press, 1996, p. 238. do Coutinho”, Galáxia. Revista transdisciplinar
15
Hélio, Godoy, “Paradigma para Fundamen- de Comunicação, Semiótica, Cultura. No. 6, 2003,
tação de uma Teoria Realista do Documentário”. p.215. Todas as citações seguintes de E. Coutinho
Em Anais do 8º Encontro Anual da Associação provêm desta entrevista sobre o EM, e por isso
Nacional de Programas de Pós-Graduação em só será indicada a página.
21
Comunicação, UFMG, Belo Horizonte, 1999. Quero expresar meu agradecimento à dis-
16
Ibid. tribuidora Riofilme e ao diretor E. Coutinho por
17
Ibid. ter me facilitado uma cópia do EM.