Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Brasil e os outros:
o poder das ideias
Porto Alegre
2012
© EDIPUCRS, 2012
CAPA Rodrigo Valls
CDD 981.061
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas
gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial,
bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também
às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código
Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998,
Lei dos Direitos Autorais).
MEMÓRIA
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Apresentação....................................................................................................8
I
Ressentimento e memória: a América da (des)ilusão.................................... 11
Em nome da virtude, da política e de Deus...................................................28
Pesadelo, exotismo e sonho ..........................................................................45
II
O poder das ideias..........................................................................................65
Entre o Exotismo e a humilhação..................................................................88
O ódio e a ira: testemunho e totalitarismo...................................................104
A crise dos alienados e o revival da intolerância.........................................120
Mal-estar de civilização: a democracia e o negro no Brasil........................134
Mal-estar de escrever...................................................................................161
Referências ..................................................................................................178
8 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
APRESENTAÇÃO1
Aqui, nem todos os textos que apresento são inéditos, eles sofreram
interferências no sentido de revelarem o sentido da trajetória da pesquisa e de
questões que fui me colocando, de complementar e de corrigir informações.
Eles não seguem uma ordem cronológica de produção, mas perfazem um
percurso de conversa com meus trabalhos anteriores. Neste primeiro volume
que agora publico, os textos foram divididos em duas partes, porque a primeira
foi um pressuposto para o desenvolvimento da segunda. As duas, entretanto,
têm vida própria, ou, pelo menos, foi assim minha intenção ao concebê-las e
apresentá-las, como uma espécie de caleidoscópio.
A primeira dessas partes – que contém três capítulos: Ressentimento e
memória: a América da Desilusão; Em nome da virtude, da política e de Deus;
e Pesadelo exotismo e sonho – foi guiada, posso dizer, por uma profunda
curiosidade em pensar o Novo Mundo de uma forma distante das interpretações
das Relações Internacionais, por exemplo. Tentei aí sistematizar uma série de
reflexões teóricas sobre o que vinha lendo, especificamente sobre a história do
Brasil, nos últimos anos. Estes capítulos são, de fato, uma espécie de pano de
fundo da segunda metade (parte) do livro.
A segunda parte deste volume está dividida em seis capítulos diferentes:
O poder das ideias; Entre o exotismo e a humilhação; O ódio e a ira: testemunho
e totalitarismo; A crise dos alienados: o revival da intolerância – inédito; Mal-
Estar de civilização: a democracia e o negro no Brasil; e Mal-Estar de escrever.
Nela, o trabalho é remetido fundamentalmente ao período pós-Segunda Guerra
Mundial, mais especificamente nas décadas de 1950 e 1960. Algumas questões
são recorrentes: o poder das ideias, o exercício da política, noções de atraso e
de modernidade, democracia capitalista, vitimização e memória, testemunho,
estranhamento, exotismo e construção do outro. Há ainda reflexões sobre
totalitarismo, desenvolvimentismo, questões sociais, humilhação, ressentimento,
liberdade, ódio e ira na política e a chamada “terceira via”.
Enfim, posso dizer que este primeiro volume de O Brasil e os
outros (serão dois), convida o leitor a repensar a História do Brasil do pós-
Segunda Guerra, sua vida política, cultural e intelectual a partir de outra
perspectiva, distante e crítica, pelo menos, das teorias do desenvolvimento e
do desenvolvimentismo, da glorificação das facetas de progresso social dos
anos 1930, 40 e 50, do endeusamento da inclusão social dos trabalhadores
e da “nacionalização” da política, bem como da crença nos projetos sociais,
econômicos e intelectuais que foram levados a cabo pelos governos, pelas
agências nacionais e internacionais e pelas universidades.
I
Ressentimento e memória:
a América da (des)ilusão
12 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
Orlando, que não faz uso da forma métrica em seu texto para
caracterizar uma composição épica, insiste que a conquista e o risco da
complicada arte de navegar se fazem presentes à viagem de visita à América
do Sul. Por isso, a necessidade de buscar sua história de italianidade ou
mesmo a de europeidade para poder partir em direção àquela terra que
Ulisses já havia vislumbrado. Este chamamento seria, por si só, na visão
do autor, uma odisseia, tal qual a empreendida por Ulisses. Mesmo não
5
“Mas quando a roda do tempo chegou ao ano em que os deuses haviam fiado a sua volta o lar, em Ítaca, sem
sequer então, e na companhia dos entes queridos, ele chegou ao fim de suas provações” (HOMERO, Odisséia).
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 17
E mais adiante:
A mais alta parte da antiga chama, agitando-se com
murmúrio igual ao da lâmpada que oscila ao vento,
inclinando-se em vários rumos conforme é próprio da
língua eloquente, disse: “Quando fugi dos feiticeiros
encantos de Circe, os quais por todo um ano me
retiveram junto à Gaeta, antes que Gaeta por Enéas
visse a ser assim chamada, nem a forte saudade do
filho, nem a lembrança da proveta idade do pai, nem
o puro amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em
mim o desejo de conhecer o vasto mundo, o aspecto dos
demais mortais e a sua valia respectiva(...)”.8
18
Já que ele foi construído pelo autor como o outro, o primitivo.
24 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
existe em comum é que ambos os autores não partem da Europa como elemento
de simbiose com a América. O Novo Mundo não é a extensão do Velho, mas é
outro mundo. Ele não é mais sequer Novo Mundo. Fora rebatizado no séc. XIX:
América do Norte, América do Sul, América Central. Esta visão dicotômica parte
agora do pressuposto da identidade e da não identidade. Isto é: a identidade do que
é europeu e está na Europa; e a não identidade em dois níveis: do que é europeu,
mas não está na Europa, e do que não é absolutamente europeu.
Em O Profeta, por exemplo, o primeiro conto de Rawet, há uma
instigante análise psicológica da personagem. Trata-se de um judeu que aporta
no Brasil para morar com o irmão, a filha, o genro e o neto. Não tem nome,
mas acaba por ganhar a alcunha que zombeteiramente o genro lhe coloca:
Profeta. Rawet inicia este conto pelo desfecho encontrado pela personagem
para fugir da dor de não pertencer: voltar à Europa. Não entende a língua, os
costumes, os valores. Sofre a tortura da não identidade e do ressentir-se das
perdas, dos olhares, dos gestos. Há apenas o vazio.
A primeira frase do conto é: “Todas as ilusões perdidas, só lhe restava
mesmo aquele gesto”: voltar. E a personagem olha do navio para o cais:
Lá embaixo correrias e línguas estranhas(...) Pouco lhe
importavam os olhares zombeteiros de alguns. Em outra
ocasião sentir-se-ia magoado. Compreendera que a barba
branca e o capotão além do joelho compunha uma figura
estranha para eles.
Vide também a este respeito a narrativa de Boris Fausto sobre o tratamento dado pelos seus colegas no
21
Colégio Mackenzie aos meninos judeus. FAUSTO, Boris. “Lembrança da guerra na periferia”.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 27
22
RAWET, Samuel. Op. cit. pp. 44 e 45.
23
SHELER, Max. El resentimiento en la moral. Buenos Aires/México, Espasa - Calpe Argentina S.S., 1944.
24
O Profeta inveja o sucesso financeiro do irmão.
Em nome da virtude,
da política e de Deus
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 29
Nesta mesma A tempestade, Shakespeare fala através de Antônio, nobre italiano, que “os viajantes não
29
mentem, muito embora na pátria os tolos os acoimem disso”. SHAKESPEARE, William. p . 38.
32 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
(...)
Todas as coisas em comum seriam, sem suor nem
esforço, produzidas pela natura. Espadas, espingardas,
30
Encontrar, porque Próspero havia descuidado dos assuntos públicos em sua gestão de príncipe de Milão.
Embora preocupado com a sabedoria, essencial para a condução dos assuntos públicos, deixara a cargo de
seu irmão as tarefas de governar. Omisso, acabou sendo traído.
31
Como sinonímia de virtude.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 33
Ou ainda:
A constituição dos Estados Unidos parece essas belas
criações da indústria humana que enchem de glória e de
bens os que inventam, mas que permanecem estéreis em
outras mãos.
É o que o Méxi,co faz ver nos dias de hoje.
Os habitantes do México, querendo estabelecer o
sistema federativo, tomaram por modelo e copiaram
quase inteiramente a constituição federal dos anglo-
americanos, seus vizinhos. Mas, ao transportarem para
o seus país a letra da lei, não puderam transportar aos
mesmo tempo o espírito que a vivifica. Vimo-los então
se embaraçar o tempo todo entre as engrenagens de seu
41
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. Cit. p. 466
42
TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. cit., p. 182.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 37
E em outra passagem:
Alguém me contava outro dia, na Filadélfia, que quase
todos os crimes na América eram causados pelo abuso das
bebidas fortes, que a arraia miúda podia consumir à vontade,
porque lhe eram vendidas a baixos preços. “Por que vocês
não instituem uma taxa sobre a aguardente?”, indaguei.
“Nossos legisladores pensaram muitas vezes em fazê-lo”,
replicou, “mas seria difícil. Teme-se uma revolta; e, aliás,
os congressistas que votassem tal lei teriam a certeza de não
se reelegerem”. “Como que então”, tornei, “no seu país os
beberrões são a maioria e a temperança é irregular”.
Quando se faz ver tais coisas aos homens de Estado,
eles se limitam a responder: “Deixe o tempo agir; o
sentimento do mal esclarecerá o povo e lhe mostrará
suas necessidades”. Isso costuma ser verdade: se a
democracia tem mais possibilidades de se enganar do
que um rei ou um corpo de nobres, também tem mais
possibilidades de voltar à verdade, uma vez difundida
a luz, porque em geral não há em seu seio interesses
contrários aos da maioria e que lutem contra a razão. Mas
a democracia só pode obter a verdade da experiência,
e muitos povos não seriam capazes de aguardar, sem
risco, os resultados de seus erros.
O grande privilégio dos americanos não é pois apenas
serem mais esclarecidos do que os outros, mas também
terem a faculdade de cometer erros irreparáveis.
Acrescentem a isso que, para tirar facilmente proveito da
experiência do passado, é preciso que a democracia já
tenha alcançado certo grau de civilização e de luzes.
Vemos povos cuja educação inicial foi tão viciosa e cujo
caráter apresenta tão estranha mescla de paixões, ignorância
e noções erradas de todas as coisas, que seriam incapazes de
discernir por si sós a causa de suas misérias; eles sucumbem
sob os males que ignoram.
Percorri vastas plagas habitadas outrora por poderosas
nações indígenas que hoje já não existem; habitei em tribos
43
Idem, ibidem. p. 187.
38 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
44
Idem, ibidem. p. 262. Vide ainda as referências feitas pelo autor no sentido da contraposição sul-americana
nas páginas 328, 360, 393, 466.
45
Idem, ibidem. p. 37 e 38.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 39
58
ARENDT, Hannah. Da Revolução. p 95.
59
Ou do direito de acesso à esfera pública por seus cidadãos.
60
THOMAS JEFFERSON. In: A summary view of the rigths of British America, 1774. The Life and
Selected Writings, edição Moddern Lybrary, p 293. Citado por Arendt Hannah. Op. cit., p. 101.
61
Como os negros, os índios e os imigrantes não protestantes.
62
A Doutrina possibilitou promover o “destino manifesto” dos Estados Unidos e, através dele, incorporar
o Oregon, em 1845, e, em 1848, terras que hoje fazem parte dos estados do Novo México, Arizona e
Califórnia, apenas para falar do século XIX.
63
Quatro de julho de 1776.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 43
que pretendera dar um novo sentido e vida à esfera pública – ou ao que ela
chamava de “revolução significativa” – e as implicações para o homem
como um ser político e seu papel na história moderna.68 As advertências, sem
dúvida, estavam refletidas no que aqui apontamos como questões de exclusão
e de preservação, incitação e justificativas à intolerância.69 Até porque, para
Hannah Arendt, a aposta em um novo começo estava na vitalidade e na
liberdade política e na libertação da abjeta miséria. Não em nome de Deus,
como princípio, ou por Ele, mas em nome dos Homens. Não em contraposição
entre nações, ou da estigmatização, mas na esperança na esfera pública e no
pleno exercício da política – jamais enquanto utopia –, já que somente a
política é capaz de colocar o mundo de ponta cabeça ao mostrar, via oposição,
diálogo e pluralidade, a insensatez da humanidade.
68
Vide a este respeito as repercussões de On Revolution. In: YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah
Arendt: por amor ao mundo.
69
Talvez até, como chama a atenção Arendt, porque a ambiguidade de saber se a revolução deveria ter um
governo cuja finalidade seria a prosperidade ou a liberdade, sempre esteve em questão. Vide ARENDT, H.
Da Revolução. p. 109.
Pesadelo, exotismo e sonho
46 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
construções políticas que não a viam e não a veem como Novo Mundo, já que
o novo deveria carregar em si a ideia de recomeço, ou mesmo de simbiose
e de extensão em relação ao Velho Mundo; ao invés disto, construiu-se algo
que se constituiria no imaginário destas construções políticas como a América
enquanto representativa do verdadeiramente velho, no sentido de ultrapassado,
de pesadelo, de estranhamento, de antiparadisíaco.
Se um dos fatores provocativos deste sentido de estranhamento é
justamente a construção de uma América como sinônimo de atraso – e daí de
algo ou de algum lugar que não se aceita como adequado ou como digno de
vir à luz –, não admira que toda a América e sua cultura intelectual tenha sido
classificada como “fora de lugar”, sincrética ou como estabelecia, em meados
do século XIX, o argentino Esteban Echeverría (1805-1851), um inspirado
em Saint Simon (1760-1825) e Pierre Leroux (1798-1871)73, que em ciência
poderíamos seguir a Europa, “em política não; nosso mundo de observação e
aplicação está aqui (...). Apelar para a autoridade dos pensadores europeus é
introduzir a anarquia, a confusão, o embrolho na solução de nossas questões”74.
Entenda-se: como dar legitimidade ou reconhecer pensamento em um
lugar que se sente como de estranhamento?
Sentir-se, portanto, a América a partir da estética, de perceber o
outro, tal qual definida por Freud ao refletir sobre o estranho (unheimlich)75,
é assumir que o unheimlich é apresentado de certa forma como assustador,
estranho, exótico, porque, na verdade, deixou de ser familiar (heimlich),
assimilável, e que, embora devesse permanecer secreto, acabou por vir à luz
e trazer à tona significados secretos capazes de produzir esta sensação de
estranhamento (Unheimlichkeit)76.
De certa forma, Colombo antecipara esta postura de alteridade do e
em relação ao homem americano. É como sugere Todorov (1939) ao analisar a
relação do descobridor do Continente com os selvagens e afirmar que Colombo
constrói simultânea e ambiguamente dois tipos de relação perante o “outro”:
ou pensa que os índios “são seres completamente humanos, com os mesmos
direitos que ele, e aí os considera não somente iguais, mas idênticos, e este
comportamento desemboca no assimilacionismo, na proteção de seus próprios
valores sobre os outros; ou então parte da diferença, que é imediatamente
traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente
73
Sobre Echeverría (1805-1851), que fazia parte do que passou a ser conhecido como a geração de 37, ver
o estudo de Lígia Prado: América Latina do século XIX: tramas, telas e textos.
74
In: ZEA, Leopoldo. Op. cit., pp. 89 e 90. A confusão e dificuldade estavam no caos das ideias importadas.
75
Isto quer dizer, não simplesmente como teoria da beleza, mas da teoria da qualidade do sentir.
76
Cf.: FREUD, Sigmund. “O estranho”, pp. 233-273.
48 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
97
PRADO, Eduardo. Op. cit., p. 175.
98
Imagem construída pelo Império em contraposição à suposta instabilidade revolucionária das repúblicas
da América Latina.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 55
102
Sergipano, Manoel Bomfim havia sido influenciado por Rocha Pombo em suas análises sobre a História
do Brasil e da América. Cf.: MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. p. 274. Nossas
referências à América Latina, Males de Origem são da edição da Top Books.
103
“É noção banal em sociologia que o progresso social se faz segundo um paralelismo perfeito com o
progresso orgânico – diferenciação dos órgãos, especialização das funções, divisão do trabalho – estas são
as condições indispensáveis à perfeição”. Cf.: BOMFIM, M. Op. cit., p. 59.
104
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 108.
58 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
Os negros, é bem verdade, teriam nos dado uma certa “afetividade passiva,
uma dedicação morna, doce e instintiva, sem ruídos e sem expansões”, que
acompanham seus clássicos defeitos: “submissão incondicional, frouxidão
de vontade, docilidade servil.121 O índio positivamente nos dava “um amor
violento à liberdade, uma coragem física verdadeiramente notável e uma
grande instabilidade intelectual (...) até mesmo uma instabilidade de espírito”,
acompanhadas de desinteresse e indolência.122
Bomfim antecipava-se assim à criação intelectual do desejo por
uma utopia calcada na transformação do homem – e não das esferas de
poder – advinda das peculiaridades raciais e da aposta nas transformações
educativas.123 Era um Gilberto Freyre em antecipação, no sentido de que esta
peculiaridade racial diferenciada fundava uma original cultura luso-brasileira,
embora Freyre fizesse a ressalva de que toda esta cultura se forjava em torno
da família patriarcal e escravocrata e não do Estado, Igreja ou indivíduo.124
A discussão política que permearia América Latina, males de origem de
Bomfim não seria portanto a desilusão em relação à República que sonhara e
que não via realizar-se naquele início de século, como quer crer grande parte
da historiografia, mas de uma proposta política que não privilegia o exercício
de poder propriamente dito, mas a forma de governo enquanto estrutura
capaz de diagnosticar (ciência) e meio capaz de agir (ação educativa). As
almas rudes poderiam, assim, transformar-se em algo original.125 Não pela
negação, como pressupunha o “exótico”, mas pela aprovação em função da
miscigenação positiva e da solidariedade que ela engendraria através deste
“Jeca” modificado, educado.
Neste sentido, igualmente Monteiro Lobato, ao escrever, em 1931,
um de seus livros de grande sucesso editorial, América126, não se limitaria a
diagnosticar a ausência de um Estado demiurgo capaz de soterrar a miséria.
Lobato preconizava que o motor do desenvolvimento – e aqui sempre
desenvolvimento é igual à supressão da miséria – era a economia. Somente
121
BOMFIM, Manuel. Op. cit., p. 238.
122
Idem, ibidem.
123
Ideias que permaneceram ao longo do século e que foram continuamente apropriadas como discurso de
redenção política. A este respeito, ver Darcy Ribeiro e Cristovam Buarque, por exemplo.
124
Vide FREYRE, Gilberto. Reinterpretando José de Alencar; FREYRE, Gilberto. O manifesto regionalista
de 1926. Embora Freyre fizesse a ressalva de que toda esta cultura se forjava em torno da família patriarcal
e escravocrata e não do Estado, Igreja ou indivíduo.
125
É interessante não haver qualquer referência em Manoel Bomfim relativa ao líder latino-americano
que talvez mais tenha se preocupado com a educação enquanto agente transformador já no século XIX:
Domingo Faustino Sarmiento, o presidente argentino, autor, entre outros de “Escola, base da prosperidade
e da democracia dos Estados Unidos”.
126
LOBATO, Monteiro. América.
62 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
159
O equívoco vem acompanhado da constatação de que o ILARI teria sido criado como forma de a CIA
atuar mais livremente, via canalização de verbas por fundações, especialmente da Ford, depois que o
CCF foi denunciado pelo The New York Times. O CCF, é certo, após a denúncia, foi transformado em
International Association for Cultural Freedom ao qual o ILARI permaneceria vinculado.
160
Nascido em 1914 na Bélgica, Louis Maciel Vega cometeu suicídio em 1977. Jornalista, anarquista e
antigo ativista do movimento operário francês, lutou na Guerra Civil espanhola e refugiou-se na América
Latina em 1939. Retornou à França após o final da Segunda Guerra e passou grande parte da sua vida
entre a Argentina, o Chile, o Paraguai, o Peru e o Brasil. Foi editor da revista Aportes, um dos fundadores,
em 1975, do jornal sobre anarquismo, Interrogations, e membro da direção da Cuadernos. Escreveu La
révolution par l’éta (1978), L’increvable anarchisme (1971), A chevauchée anonyme (1978), Autopsie
de Peron: Le bilan du peronisme (1974). Fazia parte do secretariado internacional do Congresso pela
Liberdade da Cultura. Cf.: www.iisg.nl/archives/nl/files/m/10764269.php, acesso em 10 de abril de 2008.
76 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
176
Na introdução de livro de Lipset e Solari é dito que: “a suposição fundamental deste livro é que os fatores
que influenciam a capacidade das elites desempenham um papel principal para determinar a tendência de
distintos países ao crescimento econômico e à estabilidade política, e que vale a pena considerá-los em
profundidade sem ter em conta a importância de outras variáveis”. Cf.: LIPSET, S. M. & SOLARI, A.E.
(compiladores). Elites y desarrollo en América Latina. Buenos Aires: Paidós, 1971 (2a. ed.), p. 10.
177
Dependente direta do órgão da ONU, a Comissão para o Desenvolvimento da América Latina (CEPAL).
178
Daí o financiamento da Unesco para a criação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
179
GRÈMION, Pierre. Op.cit., p 555-557.
180
Baciu publicou pelo menos três importantes livros no Brasil. Cf.: BACIU, Stefan. Manuel Bandeira de corpo
inteiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966; BACIU, Stefan. Um continente em busca de uma doutrina.
Rio de Janeiro: Livraria. São José Editora, 1959; e BACIU, Stefan. Lavradio, 98. Histórias de um jornal de
oposição: a Tribuna da Imprensa ao tempo de Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.
80 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
sociais. Para isto, o plano de Keith Botsford era o de fundar várias filiais do CCF
pelo Brasil, iniciativa que parece não ter dado muito certo. Na correspondência
de Baciu com Julian Gorkin, há uma série de referências a este respeito que
incluem a cópia de um artigo de jornal noticiando a inauguração do Comitê de
Pernambuco, sob a presidência de Gilberto Freyre (1900-1987).203
Os anúncios que a Cadernos Brasileiros passaria a publicar, a partir
da substituição de Baciu, nos informam sobre a diversidade de investidas
no mundo intelectual e das artes. É de 1968, por exemplo, o anúncio de
um ciclo de conferências de “Introdução ao Estruturalismo” ministrado por
Carlos Henrique Escobar (1933), Chaim Samuel Katz, Francisco Antônio
Doria, Luis Costa Lima e Miriam Lemle.204 Como pode ser observado na
Cadernos, a revista e o CCF do Brasil mudam de ênfase.205 É, portanto, a
partir do relatório da viagem de John Hunt ao Brasil, datado de maio de 1962
e do “Projeto para o desenvolvimento do Comitê Brasileiro”, de 1963206, que
observamos um plano mais amplo do sentido de sua atuação,207 contrário às
iniciativas de Stefan Baciu.208
De uma forma geral, a comparar a documentação das duas fases
diferentes do CCF e da Cadernos209 – anterior e posterior à concretização
203
Embora não haja registro do nome do jornal, a notícia é, provavelmente, do mês de abril de 1962. Cf.:
Anexo da carta de Baciu a Gorkin, de 11 de abril de 1962. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC,
IACF, Box 211, Series II. De qualquer forma, quando da vinda de John Hunt ao Brasil, em maio de
1962, Gilberto Freyre foi visitado como representante do CCF em Recife. Em São Paulo, era Domingos
Carvalho da Silva o escolhido, logo substituído. Cf.: Relatório de viagem de Hunt ao Brasil, maio de 1962.
Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 151, Series II. pp. 5 e 6.
204
Os temas abordados respectivamente pelos conferencistas foram: Lévi-Strauss e o Estruturalismo; Foucault, o
Estruturalismo e a Psicanálise; O Estruturalismo e as ciências; Estruturalismo e Crítica Literária; Estruturalismo
e Linguística. Cf.: Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: Ano VIII, n. 3, maio-junho de 1968. p 140.
205
É interessante notar que, já no primeiro número após a saída de Baciu, o exemplar de outubro a dezembro
de 1962, a Cadernos Brasileiros foi integralmente dedicada à questão negra. Sobre o levantamento de todos
os números da revista por autor e assunto, ver: VANDEN BERGHE, Kristine. Op. cit. p. 255 e segs.
206
Projeto de alcance nacional assinado, provavelmente, por Stefan Baciu e sua esposa Mira (M.B./S.B), de
25 de maio de 1962. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 47, Series II.
207
São 15 páginas com detalhes de políticas, contatos e estruturação do trabalho, datadas de maio de 1962.
Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 151, Series II.
208
No livro de Baciu, Lavradio, 98 o autor faz pouco do sucesso que a nova estratégia do CCF para a
América Latina atingirá e diz textualmente: “A entidade estava querendo fazer uma abertura para a
esquerda, coisa que hoje se costuma chamar de ‘eurocomunismo’, através de um ‘diálogo construtivo com
os comunistas aproveitáveis’. Mas, como as outras sucursais latino-americanas da organização, a do Brasil
não concordou com a ideia. Tendo a central parisiense insistido nessa tese do auto-suicídio, decidi pedir
demissão do Congresso. Eu e Mira, que trabalhava na sucursal brasileira”. Cf.: BACIU, Stefan. Lavradio,
98. Histórias de um jornal de oposição: a Tribuna da Imprensa ao tempo de Carlos Lacerda. P. 145. Sobre
a ofensiva comunista contra o CCF do Brasil, há ainda um interessante relatório de Baciu datado de julho
de 1959. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 62, Series III
209
Estas questões passam despercebidas no estudo de Kristine Vanden Berghe. Na verdade, sua colocação é
meramente que três grupos de redação se sucederam na revista (1959-1962; 1963-1966; e de 1966 em diante).
Não existem explicações sobre o alijamento dos integrantes da primeira fase. Do que a autora considera como
“uma transição da segunda para a terceira fase” da revista, há menção apenas à saída de Orlando Carneiro e
Nélida Piñon, ambos redatores, e a entrada de Kátia Valladares, além de um pequeno remanejamento interno,
84 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
permanecendo a equipe de comando intacta. Cf.: VANDEN BERGHE, Kristine. Intelectuales y Aniticomunismo:
La revista Cadernos Brasileiros (1959-1970). Leuven: Leuven University Press, 1997. p. 50-53.
210
As relações do ILARI e da Cadernos Brasileiros se estreitam. No que diz respeito à Mundo Nuevo,
em seu número 33, de março de 1969, são traduzidos quatro trabalhos de enfoque sócio-histórico sobre a
escravidão, que foram publicados na Cadernos de número 47, de maio e junho de 1968.
211
No Reports of the Seminar Program, há interessantes observações, feitas por John Hope Franklin,
a respeito das reações que as teses defendidas por Florestan Fernandes provocaram no seminário. Cf:
Reports of the Seminar Programme: Race and Color. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF,
BOX 62, Series III. pp 11 e 12.
212
Este já organizado pela Associação Internacional pela Liberdade da Cultura e pela Universidade de Fisk,
em Nashville, acontecido entre 9 e 11 de maio de 1969.
213
Vide a este respeito o European-Latin American Conference que se realizou em Bellagio, na Itália, em
1964. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 205, Series II.
214
In: Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: Ano VIII, n. 3, maio-junho de 1966. Cf.: pp. 22-40. O ILAS,
como é chamado o instituto da Columbia, foi fundado “in 1962 in response to the government’s need for
knowledge of what was then a relatively understudied region”. Sobre o investimento das fundações norte-
americanas nas universidades e seus departamentos de relações internacionais e estudo de áreas para uma
teoria do desenvolvimento e do “terceiro mundo”, vide: BERMAN, Edward H. The ideology of Philantropy.
In: http://www.icdc.com/~paulwolf/oss/foundations.htm, acesso em 15/12/2007. Vide também o site do
ILAS: http://www.columbia.edu/cu/ilas/AboutUs/aboutus.html, acesso em 28 de maio de 2008.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 85
oportuna carta do literato mineiro Luiz Santa Cruz, listado, em 1961, como
“consultor para publicação” da Cadernos Brasileiros218, que levantava uma
série de suspeitas. Dizia ele:
1. É verdade que o Congresso pela Liberdade da Cultura recebe subvenções
de fundações americanas (Rockfeller, etc.) e as Universidades ianques
para a propagação de suas ideias no Brasil?
2. É verdade que o Sr. Botsford, sob pretexto de servir a Paris, na verdade,
está a serviço dos americanos, tentando pelos “Cadernos Brasileiros”
enquadrar a Inteligência brasileira, por seus sistemas de colonização,
bem imbecis e americanos?
Venho também comunicar, caso isso seja verdade, como estou quase
certo, do seguinte:
1. Avise o Sr. Botsford, se realmente quer servir à causa da liberdade,
sem imposições imperialistas americanas, que deixe de lado a
“Cadernos” se não pretende vê-los desaparecerem e abalar-se
inclusive o prestígio mundial do Congresso, ao menos perante a
inteligência livre do mundo, que não se vende nem ao capital russo,
mas também ao americano.
2. Avise o Sr. Botsford que Minas não vai recebê-lo e que, se ele ousar
seguir para Belo Horizonte, será corrido de lado e logo em seguida do
Brasil. Lamento muito ter que dizer isso, mas se o caso estourar antes
das eleições de Afrânio Coutinho (na ABL), ele perderá na certa.
3. Recuso-me a trabalhar para a revista, se não provadas suas finalidades
realmente pró-liberdade cultural, sem imposição nenhuma americana,
pois não sou traidor do meu país nem de sua inteligência.219
As bem-aventuranças
220
Bíblia de Jerusalém. Mateus, cap. 5, ver. 1-6, p. 1845.
221
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. p. 1555.
90 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
Always my lighthouse
homeward to the hotel!
My breath whitened the winter air,
I was the worse for wear.
******************
Na praça principal
um obelisco branco
se ergueu como um falo
sem carne ou pelo.
depois, o Rio de Janeiro. De lá, deveriam seguir para Buenos Aires234, Chile e
Peru, que, aliás, jamais chegaram a visitar. 235
A chegada, especialmente a de Lowell, já vinha marcada por uma
espécie de áurea que estava sendo criada em torno do poeta, não apenas pela
qualidade de seus trabalhos – algumas vezes desigual –, mas em virtude de sua
própria personalidade. O apelido de Cal não era um acidente em sua vida nem
era despropositado o fato de que Carl Jung (1875-1961) tivesse dito à mãe do
poeta, em 1939, quando ela fora especialmente a Zurique para ter uma entrevista
com o psicanalista, que “se o seu filho é como a senhora o descreveu, ele é um
esquizofrênico incurável”236. A vida pessoal do poeta estava envolta em problemas,
desde o acidente de carro que provocara a desfiguração de sua primeira mulher,
Jean Stafford – e um estranho processo na justiça em virtude disso –, até seus
internamentos psiquiátricos, suas paixões repentinas por várias mulheres e sua
prisão, em 1943, quando, declarando-se “oponente consciente” da Segunda
Grande Guerra, Robert Lowell, numa fase de radicalismo católico que duraria até
os anos 50, foi condenado a cinco meses de prisão, não sem antes escrever uma
longa carta ao presidente F.D. Roosevelt (1882-1945). A recusa foi notícia em
vários jornais, inclusive matéria de capa do The New York Times e sensação em
Boston, já que a família do poeta pertencia ao círculo aristocrático da cidade. Seus
surtos nervosos também faziam crescer ao seu redor a áurea de excentricidade.
Em 1962, com 43 anos de idade, Lowell já era bastante conhecido.
Fazia parte do seleto grupo de intelectuais da revista Partisan Review,
especialmente desde que para lá mandara os manuscritos de Lord Weary’s
Castle, em 1945, e do sucesso que começara a fazer a partir de 1947. Críticos
ferrenhos do stalinismo, este grupo e a própria revista passaram para a lista
dos intelectuais de esquerda a serem secretamente cotejados pela CIA em sua
estratégia da Cultural War a partir da década de 1950.
Além de prêmio e honrarias, e de passagens por universidades,
Lowell que acreditava que “desde que o marxismo perdera sua integridade
intelectual, seus aderentes estavam limitados àqueles a quem esta perda
não tinha sentido algum”, esteve envolvido juntamente com Hardwick em
um incidente de perseguição comunista na Universidade de Yaddo no ano
1948237, imediatamente antes de ter uma de suas crises nervosas de grandes
234
Hardwick, pressionada pelo estado alcoólico de Lowell no Rio de Janeiro, nem chegou a embarcar para
Buenos Aires.
235
MARIANI, Paul. Op.cit. p. 307.
236
“If your son is as you described him, he is an incurable schizophrenic”. In: MARIANi, Paul. Op. cit. p.
80. Também em HAMILTON, Ian. Robert Lowell: a Bibliography. p. 63.
237
Diz respeito à investigação do FBI sobre a escritora Agnes Smedley e uma diretora da Universidade,
Elizabeth Ames, em 1948 e 49.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 99
246
http://www.brindin.com/psbarrob.htm, acesso de 23 de fevereiro de 2003.
247
Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF Collection, Box 205, series II.
O ódio e a ira:
testemunho e totalitarismo
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 105
Fonte: CIA Report. Origins of The Congress For Cultural Freedom. www.cia.gov/csi/
studies/95sunclass/warner.htlm/, acesso em 10 de julho de 2006. Foto do fechamento do Congresso, em 1950.
279
Especialmente pela instrumentalização do Holocausto pela política de direita israelense.
280
Sidney Hook e Silone, por exemplo.
281
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. p. 139.
282
Idem, ibidem, p. 21.
118 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
310
Programa do Partido Democrático para a recuperação e reforma econômica dos Estados Unidos durante
a Grande Depressão, implementado entre os anos 1933-1937.
311
Cf.: SCHLESINGER JR., Arthur M. Op. cit.
128 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
por exemplo, pretendia sepultar para sempre as críticas de cunho político sobre
o esvaziamento da esfera pública. No que diz respeito aos Estados Unidos,
e aos embates da Guerra Fria, a ênfase desenvolvimentista não era apenas
economicamente lucrativa, mas cômoda, pois, no que se refere à população
negra norte-americana, garantia que os direitos civis seriam conquistados
na medida em que o acesso à riqueza fosse conseguido.316 Quanto ao que se
chamaria agora de “terceiro mundo”, tudo poderia ser justificado na medida em
que houvesse investimento econômico, técnico e assistencial.
Em visita ao país por cerca de um mês no ano de 1964, logo após o
golpe militar de março, David Rousset preparava uma série de artigos para
a revista Preuves e o jornal Le Figaro. Escreveria também um artigo para a
revista Cadernos Brasileiros, fazendo uma análise da situação do Brasil.
Personalidade conhecida no mundo intelectual e político, Rousset
estava associado à rede de intelectuais que construíram o CCF desde antes
de sua criação em Berlim, embora tivesse forte ligação com Jean Paul Sartre
(1905-1980), especialmente no final dos anos 1940.317 David Rousset, nascido
na França em 1918, havia se formado em filosofia e literatura na Sorbonne
e se ligado à juventude socialista na década de 30. Esteve ainda muito
próximo a Trotsky, tornando-se, em 1936, um dos fundadores do Partido
Obreiro Internacional, engajando-se na luta contra o colonialismo na Argélia
e no Marrocos. Preso em 1943 por suas atividades políticas clandestinas, foi
confinado em Buchenwald e Neuengamm. Logo em seguida à Libertação,
escreveria um dos primeiros ensaios sobre os campos nazistas, L’Univers
concentrationnaire (Pavois, 1946), e o romance Les Jours de notre mort.
Inicialmente ligado à esquerda, Rousset foi paulatinamente associando-se à
“terceira força” e concentrou-se na luta contra o colonialismo e na oposição ao
regime soviético e seus campos de trabalho, especialmente depois da publicação
do livro de Victor Kravchenko, I Choose Freedom, em 1946 (traduzido o livro
para o francês, em 1947). Como Kravchenko fizera em 48, Rousset também
processaria a revista Les Lettres Française, num igualmente rumoroso caso
de difamação,318 em 1950, ano em que criou a Comissão Internacional Contra
o Regime Concentracionário. Rousset foi ainda candidato a presidente da
França em 1965 e, posteriormente, eleito deputado.
316
É deste enfoque que nascem as políticas de cotas.
317
Ambos criaram, em 1948, o Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDF), mais um movimento
do que um partido político, que nunca atingiu sucesso, mas que pretendia uma espécie de socialismo
revolucionário e democrático, rejeitando fortemente o stalinismo e o reformismo social-democrata. Era
uma terceira via à esquerda. Vide ainda: ARON, Raymond. Memórias. p. 446 e segs.
318
Tanto Rousset como Kravchenko venceram os processos contra a revista que os acusava de mentir sobre
a situação dos campos soviéticos.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 131
320
ROUGEMONT, Denis de. Reflexos do progresso sobre as liberdades. In: Cadernos Brasileiros, Rio de
Janeiro, Ano II, n.4, out.-dez., 1960. p. 4.
321
Discurso de Raymond Aron durante o Congresso, citado por: DUARTE, Jarbas. O debate de Berlim sobre
a crise da democracia. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 3, julho de 1962. pp. 84 e 85.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 133
demonstrar que, mesmo assumindo que a questão racial nos Estados Unidos
era complexa e que existia discriminação e segregação, o sistema democrático
possibilitava a resolução de problemas. Do ponto de vista interno, acreditava-
se que superar a questão racial era fundamental para enfrentar a luta contra o
comunismo e suas armas de propaganda.350
Já em 1949, quando Arthur Schlesinger lançava seu livro, The Vital Center,
o historiador fazia sérias recomendações acerca das “técnicas de liberdade”:351
A sociedade livre não pode sobreviver sem que derrote os
problemas da estagnação econômica e do colapso. Mas o
sucesso econômico pode apenas criar as condições para
a sobrevivência da liberdade; ela não pode dar garantias.
A preservação da liberdade requer um comprometimento
contínuo e positivo. Especificamente a manutenção dos
Estados Unidos como uma sociedade livre desafia o
povo americano à imediata responsabilidade em duas
áreas: os direitos civis e as liberdades civis.352
350
Cf.: DUDZIAK, Mary. Cold War Civil Rights: Race and the Image of American Democracy.
351
SCHLESINGER JR, Arthur M. The Vital Center. The Politics of Freedom. A passagem está no capítulo
IX (The Techniques of Freedom) do livro de Schlesinger.
352
SCHLESINGER JR, Arthur M. Op. cit., p. 189.
353
Esta tese foi definitivamente abandonada em 1959, embora já bastante enfraquecida desde 1944.
354
SCHLESINGER JR, Arthur M. Op. cit. p, 189.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 139
negros nos Estados Unidos, mesmo nos países mais simpáticos aos Estados
Unidos, como a Grã-Bretanha, a Alemanha Ocidental e a Noruega. Little Rock
teria apenas confirmado a imagem que se fazia.357
Não seria por acaso, portanto, que a iniciativa da Unesco em financiar
uma pesquisa sobre relações inter-raciais no Brasil havia provocado certa
surpresa, especialmente porque se considerava que, no âmbito mundial, o
Brasil era um país que não apresentava problemas urgentes desta natureza.358
Mas a Unesco estava oficialmente mobilizada em uma campanha contra a
discriminação e o preconceito raciais.359 A escolha havia sido feita, dizia
Alfred Metraux (1902-1963), então chefe da Division for the Study of Race
Problems da organização, justamente porque
Os raros exemplos de relações raciais harmoniosas
não têm, contudo, recebido a mesma atenção tanto
de cientistas como do público em geral. Mesmo que a
existência de países onde as diferentes raças vivam em
harmonia seja por si só um fato importante capaz de
exercer uma forte influência na questão racial em geral.
Metraux afirmava ainda que o Brasil é um dos raros países que alcançou
a democracia racial. Chamou a atenção para o fato de que a atitude dos países
ibéricos em relação à escravidão se diferenciou muito da de outras potências
coloniais, assim como cláusulas favoráveis a escravos teriam sempre existido
nas leis portuguesas e espanholas, reflexo da vontade da Igreja que, desde o
século XVII, reconhecia os indígenas e os negros como seres humanos. Além
disso, não poderia ser negada a contribuição do negro à tradição religiosa,
357
HEGER, Kenneth W. Race Relations in the United States and American Cultural and Informational
Programs in Ghana, 1957-1966. www.archives.gov/publications/prologue/1999/winter/us-and-ghana-
1957-1966-acesso em 16 de junho de 2007.
358
Cf.: METRAUX, Alfred. A Report on Race Relations in Brazil. Unesco Courier, vol. V, 8/9, 1952, p. 6.
http://unesdoc.unesco.org/images/0007/000711/071135. acesso de 19 de junho de 2007.
359
Idem, ibidem.
360
Idem, ibidem.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 141
AO SUL
Em 1918, Gilberto Freyre chegara para estudar em Waco, no Texas, na
Baylor University, uma tradicional instituição Batista de ensino superior 366.
Dois anos depois, desenvolveria severa crítica ao protestantismo e se voltaria
não só para o catolicismo como para o iberismo.367
Naquela época, vivia-se intensa agitação intelectual no Sul. Um de seus
movimentos era o chamado The New Poetry. Ele adentrara o Sul dos Estados
Unidos e procurava humanizar a poesia, fazendo uso de uma linguagem mais
fresca e original, fugindo completamente dos tipos tradicionais de versos, o
que viria a diferenciá-lo das formas estabelecidas pela literatura do século
XIX. Era a procura de novas plasticidades. Freyre foi tocado por esta forma
de fazer uso da palavra e da poesia.
Havia também uma intensa movimentação intelectual que
criticava a exaltação da segregação calcada na tentativa de conservar os
ideais do velho sul (Old South), de uma história feita por “senhoras” e
por remanescentes confederados, especialmente no que diz respeito ao
que esta velha escola tinha em relação às concepções de raça e política
e às hierarquias de classe368. Os admiradores deste renascer sulista
(Southern Renaissance) se posicionavam abertamente contra as doutrinas
de segregação que se haviam acirrado na década de 1880 e que haviam
encontrado eco de sustentação na exaltação do Old South e no restante da
nação, especialmente depois de 1915, quando do estrondoso sucesso do
filme The Birth of a Nation, de D. W. Griffith (1845-1948). O filme, que
veiculava imagens sobre a “selvagem sexualidade negra”, dava um retrato
negativo do período de Reconstrução sulista, quando se abrira um pequeno
espaço de cidadania ao negro 369.
Esta Renascença sulista estava imersa na tentativa de repensar a
História, muito embora, como assinalaria o historiador James Cobb, em 2007,
tenha acabado por contornar a “delicada questão da escravidão, pagando tributo
366
O pai de Freyre era um entusiasta da religião Batista. Foi em colégio batista que Freyre realizou seus
estudos no Recife e acabou sendo batizado naquela religião, em 1917, ano anterior a sua ida aos Estados
Unidos para estudar na maior universidade Batista do mundo. Cf.: SIEPIERSKI, Paulo D. Op. cit., acesso
em 20 de março de 2007.
367
Vide especialmente os trabalhos de Elide Rugai Bastos. Uma síntese desta questão pode ser encontrada
em: BASTOS, Elide Rugai. Brasil: um outro ocidente? Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira.
In: http://www.fundaj.gov.br/clacso/paper10.doc, acesso em 5 de julho de 2007.
368
COBB, James. A Way Down South: A History of Southern Identity. Veja a este respeito o que pondera o
autor quanto aos esforços de industrialização e modernização após o período de Reconstruction (1865-77),
especialmente na página 68.
369
Idem, ibidem, pp. 87 e 88.
144 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
que se iniciara ao final do século XIX, mas atingira seu auge depois
da Primeira Guerra até o II Conselho do Vaticano, na década de 1960,
tinha forte inspiração de literatos e clérigos que pretendiam integrar a
doutrina católica às tendências do humanismo cristão. Uma crítica à noção
popularizada do Iluminismo de um progresso inevitável da humanidade
juntava-se ao renovado interesse pela escolástica e por Santo Tomás
de Aquino (1225-1274), acompanhada da imagem bastante negativa do
mundo moderno impulsionado pela noção de progresso.
De sua vertente à direita, o Revival Católico teve como principais
representantes a Action Française, liderada por Charles Maurras (1868-1952), de
quem Freyre se aproximou em 1922387, quando de sua estada na França e, mais
tarde, a Opus Dei. É conhecida também a ascendência ideológica de Maurras
sobre o ditador português, Antônio Salazar (1889-1970), de quem Freyre se
aproximaria388. Dentre os próprios Agrarians, alguns de seus membros também
tiveram a reputação abalada no decorrer dos anos 1930, quando acabaram por se
associar ao intelectual fascista norte-americano Seward Collins389.
Aliada à busca de princípios cristãos e humanistas, o grupo dos
Agrarians cultivou uma ácida crítica à sensibilidade vitoriana e ao empecilho
que ela trazia. Ainda como um Fugitive, Allen Tate, inspirado em T. S. Eliot
(1888-1965), dizia que “somente as novas técnicas poéticas poderiam servir
à causa do Sul, que ele veio a admirar; um Sul que um dia incorporou uma
tradição cultural profunda. A literatura da causa perdida, da luz do luar e das
magnólias, ou das cores locais, não era apenas falsa em sua factualidade e
em sua espoliação do Sul, mas era a literatura produzida pelos mercados no
Norte. As velhas técnicas poéticas, atreladas à sensibilidade vitoriana, eram
inadequadas ao desafio de resgatar o verdadeiro Sul”390. Ou melhor, estas
novas técnicas deveriam, em última instância, denunciar a moderna alienação
da humanidade e de seu passado.
A reação intelectual aos valores burgueses e filisteus do Norte parece
ter dado certo. Em 1925, em Vanderbilt, a mais importante e influente
Wallace Stevens e Walker Percy. Cf.: MURPHY, Paul V. Op. cit. p. 36.
387
Segundo Palhares-Burke, a aproximação e o entusiasmo de Freyre por Maurras teriam sido breves.
Cf.: PALHARES-BURKE, M.L. Op. cit., p. 180. A este respeito vide também FREYRE, Gilberto.
Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade (1915-1930,
especialmente pp. 132 e ss.
388
Salazar adotou a noção de tropicalismo lançada por Freyre que, a serviço do ditador, visitou as colônias
portuguesas na África nos anos 1951 e 1952.
389
Rico, dono de dois jornais literários, o The Bookman e o American Review, Collins (1899-1952) era
admirador confesso de Benito Mussolini. Allen Tate, entretanto, publicaria, em 1936, na The New Republic,
uma severa crítica ao fascismo.
390
CONKIN, Paul K. The Southern Agrarians. p. 25.
148 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
NA USP
Distante da perspectiva freyreana, e especialmente contra ela, a posição
do grupo de pesquisa de Florestan Fernandes e Roger Bastide, que havia sido
contratado em São Paulo pela Unesco, era a de que a essência do modo de vida do
Nordeste brasileiro seria justamente a segregação racial e não esta pseudocivilização
que paga seu tributo à cordialidade, à plasticidade e à miscigenação.
As duas visões se chocavam. Enquanto os agraristas procuravam fugir
da dimensão, da lógica de sistema capitalista e do progresso, o grupo da USP,
em sua perspectiva estrutural-funcional, afirmava categoricamente que a
escravidão era um empecilho estrutural ao desenvolvimento do capitalismo e,
portanto, da inscrição do país na modernidade, como bem enfatizaria Fernando
Henrique Cardoso:
A economia escravista, por um lado, é uma economia de
desperdício pela sua própria natureza, e por outro lado,
funda-se em requisitos sociais de produção que a tornam
obrigatoriamente pouco flexível diante das necessidades
de inovação na técnica de produção. Noutros termos, e
sintetizando, a economia escravocrata, por motivos que
se inscrevem na própria forma de organização social do
trabalho, impõe limites ao processo de racionalização da
produção e à calculabilidade econômica. Isto significa
que, a partir de certo limite, a economia escravocrata
se apresenta como um obstáculo fundamental para a
formação do capitalismo.403
ilhas de protesto. A segregação racial seria mais do que uma questão social
e política, mas moral também.
Um grande passo teria sido dado para a solução do problema, diz Eric
Lincoln, quando se compreendeu que a questão não poderia ser resolvida por
negros, ou brancos, mas por um esforço concentrado do povo norte-americano.
Outro paradoxo levantado por Lincoln é o de que a questão não deveria mais
ser olhada como questão sulista. O preconceito não era a única causa da
segregação; seus aliados estavam escondidos no desemprego, na insegurança
econômica, na ansiedade, no medo e na política415.
Assim, se esta segregação e alienação estavam em choque com os
princípios fundamentais da filosofia política dos Estados Unidos e seu
corpo de ideias e valores, trazendo consequências sociais e políticas,
cabia essencialmente enfrentar o problema através da transformação das
mentalidades racistas. Era fundamentalmente a mentalidade que fazia com
que houvesse consequências sociais no que diz respeito ao acesso ao trabalho,
à educação e à segurança econômica. As mentalidades ou, melhor, a cultura,
portanto, e não o sistema econômico, seriam responsáveis pela marginalização.
Na verdade, tanto a perspectiva freyreana (existência de democracia
racial) quanto a perspectiva defendida pelo grupo da USP (existência
de preconceito racial como resultado da marginalização provocada pela
escravidão e por suas consequências pós-abolição) respondiam às estratégias
de combate ao racismo nos Estados Unidos.
A primeira, como visto, porque apostava em mudanças culturais, o
que, em última análise, impulsionava a construção de políticas que pudessem
transformar as mentalidades racista e segregacionista. Apropriava-se da suposta
constatação de Freyre de que uma democracia racial seria plenamente possível,
sem levar em conta sua fascinação pelo passado e seu profundo desconforto
com os valores e o sistema político e econômico da república norte-americana.
A segunda perspectiva também alimentava a estratégia de combate ao
racismo porque apostava que a democracia seria possível pela consolidação
de uma sociedade de classes que pudesse expurgar os antigos hábitos,
padrões de comportamento e funções sociais institucionalizadas, na qual
estava o comportamento subordinado da população negra, que se adequava
às elites conservadoras, como analisado por Florestan Fernandes. Nesta
visão, aceitava-se o modelo socioeconômico de acumulação ocidental como
o grande engendrador da democracia social e política e, em última instância,
aceitava-se o fato de que existiria um paradoxo na presença de segregação
415
Idem, ibidem. pp. 458 e ss.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 155
o cerne das políticas relativas às questões dos direitos e das liberdades civis.423
Daí a implementação das políticas de ação afirmativa, termo usado pela primeira
vez em 1961, por John F. Kennedy (1917-1963), de quem Arthur Schlesinger,
admirador do trabalho de Gunnar Myrdal, seria assessor.424
Aliadas à implementação dessas iniciativas governamentais de
compensação social, as estratégias governamentais incluíam o apoio ao
movimento pelas liberdades civis, quando assentado na premissa da não
violência, de sua vinculação com líderes religiosos e da desobediência civil às
leis de segregação, desde que pactuante do pacifismo.425
Nessa linha política, foram inúmeros os encontros, seminários e
iniciativas que tomaram como tema a questão racial, fortemente pautados
pela agenda de discussões da Guerra Fria e de sua Guerra Cultural, como fica
evidente pela iniciativa do CCF, da American Academy of Arts and Sciences
e da Fundação Ford, em patrocinarem, em setembro de 1965, na cidade de
Copenhagen, o Congresso Race and Color.426
No caso brasileiro, as interpretações conflitantes sobre a questão
racial de Gilberto Freyre e do grupo liderado por Florestan Fernandes, que
apareceram tão fortemente nas pesquisas financiadas pela Unesco, em 1951
e 1952, fizeram parte deste ambiente mundial de discussão e embates sobre
a questão racial tão caro à estratégia norte-americana de respostas às críticas
sobre o sentido de sua democracia política.
Ambas as interpretações foram opostas em termos de modelos de
civilização. Ambas anunciavam certo mal-estar na civilização. Apontavam,
entretanto, e cada uma a seu modo, saídas que respondiam à problemática
do racismo. A saída de Gilberto Freyre estava fortemente sedimentada nos
alicerces de renovação intelectual ocorrida no Sul dos Estados Unidos nas
primeiras três décadas do século XX. A de Florestan Fernandes era uma aposta
na modernização via desenvolvimento; modernização e conscientização da
classe trabalhadora ou, como ele dizia, da consolidação burguesa de um país
em uma sociedade de classes em formação.
Ambas as saídas continuaram a ser tema de embates políticos e
intelectuais, especialmente após a adoção das políticas de ação afirmativa por
instituições públicas brasileiras na década de 1990, embora suas ênfases sobre
423
SCHLESINGER JR., Arthur M. Op. cit.. p. 252.
424
O uso do termo se deu quando da edição da Ordem Executiva 10925, que exigia dos empregadores
federais a adoção de ações afirmativas que assegurassem emprego e tratamento sem discriminação por raça,
credo, cor ou origem.
425
O maior expoente desta corrente de protesto foi Martin Luther King.
426
Estiveram presentes, entre outros, Philip Mason (Grã-Bretanha), Eric Lincoln (Brown University),
Talcott Parson (Harvard), Louis Lomax (Los Angeles), Rarold Isaacs (MIT).
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 157
ANEXO DO CAPÍTULO
Patterns
Amy Lowell
I would choose
To lead him in a maze along the patterned paths,
A bright and laughing maze for my heavy-booted lover,
Till he caught me in the shade,
And the buttons of his waistcoat bruised my body as he clasped me,
Aching, melting, unafraid.
With the shadows of the leaves and the sun drops,
And the plopping of the water drops,
All about us in the open afternoon -
I am very like to swoon
With the weight of this brocade,
For the sun sifts through the shade.
Underneath the fallen blossom
In my bosom,
Is a letter I have hid.
It was brought to me this morning by a rider from the Duke.
“Madam, we regret to inform you that Lord Hartwell
Died in action Thursday se’nnight.”
As I read it in the white, morning sunlight,
The letters squirmed like snakes.
“Any answer, Madam?” said my footman.
“No,” I told him.
“See that the messenger takes some refreshment.
No, no answer.”
And I walked into the garden,
Up and down the patterned paths,
In my stiff, correct brocade.
The blue and yellow flowers stood up proudly in the sun,
Each one.
I stood upright too,
Held rigid to the pattern
By the stiffness of my gown.
Up and down I walked,
Up and down.
In a month he would have been my husband.
In a month, here, underneath this lime,
We would have broke the pattern;
160 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
GAARDER, Jostein. Vita Brevis: a carta de Flora Emília para Aurélio Agostinho.
427
Vide a este respeito as considerações sobre o projeto do último capítulo de Memórias do Cárcere dadas
428
por Ricardo Ramos, filho de Graciliano, na Explicação Final. Cf.: RAMOS, Graciliano. Memórias do
Cárcere. p. 317-319.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 163
Semana Santa”.434 Enfim, não faria mais a “análise crítica do homem a partir
da tristeza”. Seria outra pessoa, em paz com o mundo e com os homens. De
cabeça aberta:435 num verdadeiro exercício de libertação.
Torna-se evidente no livro de Santiago a (re)escritura sobre a vacilação
pessoal e política de Graciliano em falar da dor do arbítrio. A recomposição
das minúcias de vida do autor o tempo que levou para deparar-se com a
empreitada de escrever suas Memórias do Cárcere teria levado Graciliano ao
encontro deste triste vacilo: o de relembrar o que se quer esquecer.
Dizendo precisar manter a família, por exemplo, depois de ter
passado aqueles 10 meses e 11 dias de prisão, Graciliano acabaria como
colaborador da revista Cultura Política, órgão oficial do Estado Novo
ligado ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), dirigida por
Almir de Andrade (1911-1991).436
A diretriz da Cultura Política era passar em revista os estudos
brasileiros, especialmente os estudos das transformações socioeconômicas do
país. Como a tônica da questão social, e da miséria, havia tomado os espaços
da política no séc. XX, no Brasil e fora dele437, além dos intelectuais orgânicos
do regime – como o próprio Almir de Andrade, Francisco Campos (1891-
1968), Azevedo Amaral (1881-1942), Lourival Fontes (1899-1967) e Cassiano
Ricardo (1895-1974) – autores ligados a correntes liberais e de esquerda,
inclusive ao Partido Comunista, também participavam como colaboradores
da mais importante publicação intelectual da Era Vargas.
Graciliano Ramos, na companhia de Nelson Werneck Sodré, Marques
Rabelo (1907-1973), Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986), Herberto Sales
(1917-1999), Guerreiros Ramos (1915-1982), Peregrino Junior (1898-1983)
e Gilberto Freyre, tornar-se-ia assíduo colaborador entre 1941 e 1944. A
ênfase de seus escritos: a vida sertaneja. Seu trabalho principal, Quadros e
costumes do Nordeste.438
Vítima do regime e ao mesmo tempo protagonista das preocupações
sociais do mesmo regime, estar agora “em liberdade, na capital da República,
434
Idem, ibidem, p. 188.
435
Idem, ibidem, p. 189.
436
Graciliano Ramos foi nomeado Inspetor Federal do Ensino secundário no Distrito Federal em 1939.
Trabalhava também como jornalista no Correio da Manhã.
437
Vide a respeito dois estudos sobre o sucumbir da esfera pública frente às questões sociais: ARENDT,
Hannah. A condição humana, especialmente o capítulo II; e FOUCAULT. Michel. Governamentalidade.
In: Microfísica do poder, pp. 277-293.
438
RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste II. In: Cultura Política. Ano 1, n.. 2; Quadros
e costumes do Nordeste III. In: Cultura Política. Ano 1, n. 3; Quadros e costumes do Nordeste IV. In:
Cultura Política. Ano 1, n. 4; Quadros e costumes do Nordeste V. In: Cultura Política. Ano 1, n. 5; Quadros
e costumes do Nordeste VI. In: Cultura Política. Ano 1, n. 6; Quadros e costumes do Nordeste VII. In:
166 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
Cultura Política. Ano 1, n. 7; Quadros e costumes do Nordeste VIII. In: Cultura Política. Ano 1, n. 8.
Quadros e costumes do Nordeste X. In: Cultura Política. Ano 1, n. 8; Quadros e costumes do Nordeste XI.
In: Cultura Política. Ano 1, n. 9; Quadros e costumes do Nordeste XII. In: Cultura Política. Ano 1, n. 10.
Quadros e costumes do Nordeste XIII. In: Cultura Política. Ano 1, n. 11. Quadros e costumes do Nordeste
XVI. In: Cultura Política. Ano 2, n. 14. Além deles, Está aberta a sessão do júri. In: Cultura Política.
Ano 3, n. 23; Uma visita inconveniente. In: Cultura Política. Ano 2, n. 20; A viúva Lacerda. In: Cultura
Política. Ano 4, n. 39; A decadência de um senhor de engenho ( Nordeste). In: Cultura Política. Ano 2, n.
17; Recordações duma indústria morta. In: Cultura Política. Ano 1, n. 44; Booker Washington. In:
Cultura Política. Ano 4, n. 40. Cf.: PEÇANHA, Michelle dos Reis et alli. Os intelectuais e o Estado Novo:
um estudo sobre o nacionalismo nas páginas da revista Cultura Política (1941-1945). In: http:\\www.
newtonpaiva.br , acesso em 18 de outubro de 2007.
439
Vide MORAES, Dênis. Graciliano Ramos, literatura e engajamento. In: www.lainsignia.org/2006/
septiembre, acesso em 7 de fevereiro de 2008.
440
A filiação de Ramos ao PC é de 1945.
441
Do slogan “Queremos Getúlio”. Campanha que reivindicava, tendo em vista o esgotamento político
do Estado Novo, o adiamento das eleições presidenciais e a convocação de uma Assembleia Nacional
Constituinte. No caso de serem confirmadas as eleições, queriam Vargas como candidato.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 167
desde 1943, explicava em palanque o espaço de justiça que estava sendo buscado
através do líder do governo, que, na visão do Partido Comunista, ao qual Graciliano
se juntou atendendo a convite do próprio Prestes, havia sido desviado pelos
inimigos do povo. Prestes, já liberto das prisões do Estado Novo, conclamava a
classe trabalhadora a apoiar Getúlio Vargas para mais um termo no poder:
Companheiros! Aproximava-se, no início deste ano, a
olhos vistos, a derrota militar do nazismo, e o Governo
brasileiro, esse mesmo Governo, composto quase dos
mesmos homens que tudo haviam feito para levar o
Brasil ao fascismo, cedia algo mais ao nosso povo, cedia
no caminho da democracia. A liberdade de imprensa foi
reconquistada pelo povo e reconquistado foi o direito
de reunião, o de livre associação política, inclusive,
concidadãos, para o Partido do proletariado, e isto pela
primeira vez em nossa história. Depois de 23 anos de
vida clandestina, o Partido Comunista alcançava a vida
legal e os comunistas enfrentando a calúnia, enfrentando
a difamação de seus adversários, desses homens que
os acusavam de cambalachos com o Governo, que os
acusavam de queremismo, ou continuísmo, ou getulismo,
ou não sei mais o que, os comunistas, sufocando paixões
pessoais, esmagando ressentimentos, colocavam os
interesses de nossa pátria acima de tudo e apoiavam,
com convicção, com orgulho, com audácia também, o
Governo do Sr. Getúlio Vargas porque este cedia ao povo
e marchava para a democracia.
Companheiros! E nesta época, os nossos difamadores,
esses que nos atacavam, eram esses mesmos velhos
políticos que do ano de 1935 ao ano de 1937 dispunham
de uma tribuna parlamentar e nada faziam em defesa
da democracia. Naquela época aqueles senhores todos
cediam ao Sr. Getulio Vargas a lei de segurança; nenhum
protesto contra o fechamento da Aliança Nacional
Libertadora; as emendas inconstitucionais do fim do ano
de 1935; todos os estados de guerra em plena paz; esse
imundo papel Cohen que aceitaram como verdadeiro,
para acabar dissolvendo o Parlamento e a Democracia
e facilitar o golpe de 10 de Novembro. Naquela época,
quando o Sr. Getúlio Vargas marchava para a reação
e de mãos dadas com o integralismo , tudo fazia para
levar o Brasil ao fascismo, aqueles senhores políticos o
apoiavam, tudo lhe davam. Por quê? Porque temiam o
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 169
448
A partir desta Reunião no Rio de Janeiro, ainda foi criado o Comitê Consultivo de Emergência para a
Defesa Política, com sede em Montevidéu, que desde abril de 1942 atuava “como centro de coordenação da
defesa das Repúblicas Americanas contra a agressão política iniciada pelo Eixo no Hemisfério Ocidental.
Sob este mesmo prisma, o presidente dos Estados Unidos estabeleceu, extralegalmente, o SIS (Serviço
Especial de Inteligência do FBI), em 24 de junho de 1940. Rapidamente, sob a cobertura de agentes
comerciais de firmas americanas, foram estabelecidos serviços de informação e troca de informações pelos
norte-americanos na Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Cuba e México. O SIS chegou a cooperar com o
DOPS no interrogatório de suspeitos de espionagem, “olhando para o lado” quando os agentes brasileiros
utilizavam a tortura. Cf.: HUGGINS, Martha .Vigilantism and the State in Latin America. pp. 225-227.
449
ANJ, IJ1 1329. Ministério das Relações Exteriores, 21 de fevereiro de 1951.
450
GORENDER, Jacob. Graciliano Ramos: lembranças tangenciais. Estudos Avançados, vol. 9, no. 23, São
Paulo, 1995. In: www.scielo.br/scielo.php?script=sci, acesso em 23 de outubro de 2007.
172 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros
451
CARONE, Edgar. O P.C.B: 1943 a 1964. vol. 2. p. 51.
452
Idem, ibidem, p. 51.
453
São sintomáticas de todo o ambiente que envolvia os intelectuais na década de 1940, as palavras
proferidas por Getúlio Vargas, que, ao ser empossado, em 1943, na Academia Brasileira de Letras,
disse que era chegado o momento de os intelectuais se juntarem ao governo numa campanha tenaz e
vigorosa em prol do levantamento do nível mental e das reservas de patriotismo do povo brasileiro,
colocando as suas aspirações e as suas necessidades no mesmo plano e na direção em que se processa
o engrandecimento da nacionalidade.
454
SANTIAGO, Silviano. Op. cit., p. 24.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 173
até porque há no mártir mais devoção a uma causa do que força moral.462
Estaria aí a hesitação de Graciliano em falar do cárcere?
O certo é que o livro sobre a cadeia poderia esperar, como teria
confidenciado a personagem do diário, Graciliano Ramos, a Manuel Bandeira:
“Falei-lhe das preocupações em não escrever um livro de memórias em
cima de minhas recentes experiências na cadeia. Não sei escrever no calor
da hora”.463 Ao invés disso, escreveria sobre Cláudio Manoel da Costa, mas
como se fosse ele próprio. Ficaria perdido nos meandros de Vila Rica, como
se perdeu no porão do Manaus, ou na cela imunda de Ilha Grande.464 Seria
assim que a personagem Graciliano Ramos escreveria algo mais significativo,
enfrentaria o sonho,465 sem martírio e sem traição.466
Como dar sentido ao que não tem sentido? A personagem de Graciliano
criada por Silviano Santiago, estava agora reconciliada pela rememoração
através de Cláudio Manuel da Costa.
De certa forma, o inconfidente fazia com que o dever de Graciliano
em rememorar, em tornar visível o que ficara guardado, escondido, recalcado,
fosse aberto. Na verdade, uma sequência dos fatos, fora da imaginada por
Silviano Santiago, abriria esta possibilidade para Graciliano Ramos tecer
a memória sobre o cárcere: o Partido Comunista acabaria rompendo com
Getúlio Vargas, tendo em vista seu alinhamento com o presidente Dutra e
com os Estados Unidos. Além disso, a cassação do Partido, em 1947, e uma
profunda campanha anticomunista estavam ocorrendo no Brasil. Era aquilo
que o próprio Partido Comunista chamaria de “viragem”.467
462
Idem, ibidem, p. 219.
463
Idem, ibidem, p. 225.
464
Idem, ibidem, p. 226.
465
Idem, ibidem, p. 219.
466
Idem, ibidem, p.227.
467
CARONE, Edgar. Op. cit., p. 80.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 175
473
MAGALHÃES, Mário. Memórias de um militante stalinista. In: Folha de São Paulo. 09-03-2006. www.
biblioteca.folha.com.br/1/13/2003030902.html, acesso em 09 de março de 2008.
REFERÊNCIAS
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 179
GLEASON, Abbot. Totalitarism: The Inner History of The Cold War. NY.
Oxford: University Press, 1995.
GORENDER, Jacob. Graciliano Ramos: lembranças tangenciais. Estudos
Avançados, vol. 9, n. 23, São Paulo, 1995. In: www.scielo.br/scielo.
php?script=sci, acesso em 23 de outubro de 2007.
GRÉMION, Pierre. Intelligence de l´anticommunisme: Le Congrès pour la
liberté de la culture à Paris (1950-1975). Paris: Fayard, 1995.
HAMILTON, Ian. Robert Lowell: a Biography. Ny, Ramdom House, 1982.
p. 302.
HEGER, Kenneth W. Race Relations in the United States and American
Cultural and Informational Programs in Ghana, 1957-1966. www.archives.
gov/publications/prologue/1999/winter/us-and-ghana-1957-1966-acesso em
16 de junho de 2007.
HERING, Hubert. A history of Latin America. New York: Alfred A. Knopf, 1969.
HITLER, Mein Kampf. Project Gutenberg of Australia eBook, Translated into
English by James Murphy. Disponível em www.promo.net/pg/. Acesso, 02 de
julho de 2006.
HOMERO. Odisséia. Introdução e notas de Médéric Dufour e Jean Raison;
tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p 1081
http://www.brindin.com/psbarrob.htm.
http://www.kirjasto.sci.fi/rlowell.htm, 18/07/2003.
http://www.poets.org/poets.cfm?45442B7C000C0705, 10/04/2003.
HUGGINS, Martha. Vigilantism and the State in Latin America. New York:
Praeger, 1991.
IANNI, Otávio. Otávio Ianni: o preconceito racial no Brasil (entrevista).
Estudos Avançados. vol. 18, n. 50. São Paulo 2004. www.scielo.br/scielo.php,
acesso em 14 de junho de 2007.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo/Brasília,
Martins Fontes/EDUnB, 1986.
JEFFERSON, Thomas. In: A summary view of the rigths of British America,
1774. The Life and Selected Writings, edição Moddern Lybrary, p 293. Citado
por Arendt Hannah. p. 101.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 185