Você está na página 1de 190

O Brasil e os outros:

o poder das ideias


Chanceler
Dom Dadeus Grings
Reitor
Joaquim Clotet
Vice-Reitor
Evilázio Teixeira
Conselho Editorial
Ana Maria Lisboa de Mello
Bettina Steren dos Santos
Eduardo Campos Pellanda
Elaine Turk Faria
Érico João Hammes
Gilberto Keller de Andrade
Helenita Rosa Franco
Ir. Armando Luiz Bortolini
Jane Rita Caetano da Silveira
Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente
Jurandir Malerba
Lauro Kopper Filho
Luciano Klöckner
Marília Costa Morosini
Nuncia Maria S. de Constantino
Renato Tetelbom Stein
Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
Elizabeth Cancelli

O Brasil e os outros:
o poder das ideias

Porto Alegre
2012
© EDIPUCRS, 2012
CAPA Rodrigo Valls

Revisão de texto Patrícia Aragão

Revisão Final Autores

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Andressa Rodrigues

C215b Cancelli, Elizabeth


O Brasil e os outros : o poder das ideias [recurso eletrônico]
/ Elizabeth Cancelli. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2012.
188 p.

ISBN 978-85-397-0105-6 (on-line)


Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>

1.Brasil – História – Século XX. 2. Brasil – Política e


Governo. 3. Brasil - Desenvolvimento Cultural. I. Título.

CDD 981.061

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas
gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial,
bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também
às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código
Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998,
Lei dos Direitos Autorais).
MEMÓRIA

Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido


contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,


muito mais lindas,
essas ficarão.
AGRADECIMENTOS

Ao longo do tempo em que me enredei com a vida intelectual e com


a produção de textos, fui privilegiada por privar de companhias estimulantes.
Discussões, leituras, aulas, seminários, encontros e trocas constantes de
literatura, além de intermináveis jantares, incentivaram-me e me fazem ainda
crer que a vida acadêmica faz muito bem ao espírito, em que pese a sistemática
tentativa de transformá-la em medíocre atividade de prestação de serviços,
medida por fórmulas derivadas da administração de fábrica taylorista, das
quais Charles Chaplin já fazia troça nos anos 30.
Nesta viagem de histórias, são muitas as amizades que alimentaram a
“vida do espírito”. Tenho muito a agradecer pela companhia intelectual que,
desde Brasília, fizeram-me, especialmente, Ana Vicentini, Tereza Christina
Kirshner, Sônia Lacerda, Mireya Suarez, Geralda Dias, Vânia Otero, Daniel
Faria e Calos Henrique Romão Siqueira.
A todo o grupo que, a partir de Stella Bresciani, formou na
Universidade de Campinas o Núcleo História e Linguagens Políticas, devo
muito do desafio em pensar na contramão, com independência, especialmente
pelas constantes trocas mantidas. A Stella Bresciani, especificamente, com
quem tenho o privilégio de conviver pessoal e academicamente há quase trinta
anos, continuo em dívida pelos “nortes” que recebi.
Ruth Chittó Gauer e Martha Huggins, uma em Porto Alegre, outra nos
Estados Unidos, portanto em hemisférios opostos, além da jovialidade e do
humor, tenho gratidão pela companhia e fluente incentivo intelectual.
Aos colegas do Departamento de História da USP, quero agradecer
a respeitosa e generosa acolhida pessoal e acadêmica que obtive quando
optei profissional e civicamente em não aceitar o inaceitável, e acabei sendo
induzida a me demitir da Universidade de Brasília. Pude ingressar numa nova
instituição e reiniciar minha carreira. Em especial, a Maria Helena Capelato,
Maria Lígia Prado e Maria Helena P. T. Machado.
Assim como minha família e alguns amigos, colegas, alunos e
orientandos, muitos com os quais construí estreitos laços de amizade,
instigaram-me a não permanecer no mesmo lugar, a seguir em frente, a virar
páginas. Uns, às vezes, de perto, outros de longe, vários em Brasília, outros já
em São Paulo, com eles contei, com muita dignidade.
SUMÁRIO

Apresentação....................................................................................................8

I
Ressentimento e memória: a América da (des)ilusão.................................... 11
Em nome da virtude, da política e de Deus...................................................28
Pesadelo, exotismo e sonho ..........................................................................45

II
O poder das ideias..........................................................................................65
Entre o Exotismo e a humilhação..................................................................88
O ódio e a ira: testemunho e totalitarismo...................................................104
A crise dos alienados e o revival da intolerância.........................................120
Mal-estar de civilização: a democracia e o negro no Brasil........................134
Mal-estar de escrever...................................................................................161
Referências ..................................................................................................178
8 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

APRESENTAÇÃO1

Iniciei este trabalho há alguns anos, aos poucos. Na época, em meados


desse primeiro decênio, ainda não tinha clareza por onde esta pesquisa enveredaria.
De certa forma, vários questionamentos relativos à historiografia sobre o Brasil me
forçaram a este caminho de reflexão. Deles, dois podem ser apontados como os mais
imediatos, aqueles que, cedo na carreira acadêmica, começaram a me perseguir:
um deles era o caráter ou o recorte um tanto ensimesmado com que as pesquisas
sobre a história brasileira se desenvolviam. Quando muito, elas apresentavam
uma remissão ao “(con)texto” mundial, político ou econômico, à procura de uma
espécie de mapeamento da circunstancialização de quadros históricos que as
justificassem. Esta era uma opção teórica que me causava desconforto, pois, no
meu entender, se apresentav1a através de pressupostos estruturais restritos, fazia
poucas perguntas e apontava, inevitavelmente, em direção ao futuro de opções
políticas no mais das vezes limitadoras da reflexão histórica e historiográfica. Era,
ainda, e sempre me pareceu, acobertada por esta “(con)textualização” que a leitura
sobre a História feita no Brasil colocava-se como refém.
O outro aspecto imediato de questionamento da historiografia que me
fez seguir por este caminho, e cuja exposição se encontra neste volume, diz
respeito ao retorno que comecei a receber de meu próprio trabalho: eu seria
uma pesquisadora da polícia ou da violência. Ingenuamente, penso eu, esta
rotulação me chocou. Passado o susto, sei que o rótulo aconteceu em razão
dos caminhos teóricos e metodológicos que acabei escolhendo para fazer meu
percurso de imbricação entre a história política e a história das ideias. Um
dos primeiros erros que cometi foi o de abrir mão do título original de minha
tese de doutorado, O mundo da violência: o Estado policial na Era Vargas.
Publiquei-o como O mundo da violência, a polícia na Era Vargas. Feita a
opção, acho que colhi o que equivocadamente plantei.
Neste trabalho, sigo tentando estabelecer um diálogo intenso com a
historiografia brasileira sobre o século XX. Se nem sempre ele é explicitado,
é porque pelo diálogo frontal eu estaria presa aos pressupostos do que já
foi escrito. Preferi transitar livremente pela pesquisa, pela documentação
e pela reflexão. Um ato de rebeldia? Provavelmente, mas uma postura que
me fez arriscar em direção à exploração de fontes documentais inéditas,
muitas vezes excitantes, e que me forçou a procurar caminhos alternativos
de reflexão teórica.
1
O CNPq e a Fapesp fizeram possível a realização da pesquisa e a participação em encontros.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 9

Aqui, nem todos os textos que apresento são inéditos, eles sofreram
interferências no sentido de revelarem o sentido da trajetória da pesquisa e de
questões que fui me colocando, de complementar e de corrigir informações.
Eles não seguem uma ordem cronológica de produção, mas perfazem um
percurso de conversa com meus trabalhos anteriores. Neste primeiro volume
que agora publico, os textos foram divididos em duas partes, porque a primeira
foi um pressuposto para o desenvolvimento da segunda. As duas, entretanto,
têm vida própria, ou, pelo menos, foi assim minha intenção ao concebê-las e
apresentá-las, como uma espécie de caleidoscópio.
A primeira dessas partes – que contém três capítulos: Ressentimento e
memória: a América da Desilusão; Em nome da virtude, da política e de Deus;
e Pesadelo exotismo e sonho – foi guiada, posso dizer, por uma profunda
curiosidade em pensar o Novo Mundo de uma forma distante das interpretações
das Relações Internacionais, por exemplo. Tentei aí sistematizar uma série de
reflexões teóricas sobre o que vinha lendo, especificamente sobre a história do
Brasil, nos últimos anos. Estes capítulos são, de fato, uma espécie de pano de
fundo da segunda metade (parte) do livro.
A segunda parte deste volume está dividida em seis capítulos diferentes:
O poder das ideias; Entre o exotismo e a humilhação; O ódio e a ira: testemunho
e totalitarismo; A crise dos alienados: o revival da intolerância – inédito; Mal-
Estar de civilização: a democracia e o negro no Brasil; e Mal-Estar de escrever.
Nela, o trabalho é remetido fundamentalmente ao período pós-Segunda Guerra
Mundial, mais especificamente nas décadas de 1950 e 1960. Algumas questões
são recorrentes: o poder das ideias, o exercício da política, noções de atraso e
de modernidade, democracia capitalista, vitimização e memória, testemunho,
estranhamento, exotismo e construção do outro. Há ainda reflexões sobre
totalitarismo, desenvolvimentismo, questões sociais, humilhação, ressentimento,
liberdade, ódio e ira na política e a chamada “terceira via”.
Enfim, posso dizer que este primeiro volume de O Brasil e os
outros (serão dois), convida o leitor a repensar a História do Brasil do pós-
Segunda Guerra, sua vida política, cultural e intelectual a partir de outra
perspectiva, distante e crítica, pelo menos, das teorias do desenvolvimento e
do desenvolvimentismo, da glorificação das facetas de progresso social dos
anos 1930, 40 e 50, do endeusamento da inclusão social dos trabalhadores
e da “nacionalização” da política, bem como da crença nos projetos sociais,
econômicos e intelectuais que foram levados a cabo pelos governos, pelas
agências nacionais e internacionais e pelas universidades.
I
Ressentimento e memória:
a América da (des)ilusão
12 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

C onvidamos o leitor para um passeio sobre viagens ou, melhor,


sobre o sentido de viagens construídas por dois autores. Um deles é um
sofisticado político e intelectual italiano que visitou o Brasil no início do
século XX1. Trata-se de Vittorio Emanuele Orlando, jurista e professor
universitário nascido em Palermo, em 1860. Foi deputado desde 1897 até
os primeiros tempos do fascismo da Itália, quando se afastou da política.
Ocupou o cargo de ministro da Educação (1903-1905), da Justiça (1907-
1909 e 1914-1916) e do Interior (1916-1917), e de presidente do Conselho
de Ministros, em 1917. Autor de uma obra intelectual considerável
(mais de 26 livros publicados), Vittorio Emanuele Orlando esteve no
Brasil representando a Itália, em outubro de 1920, como embaixador
extraordinário. O outro autor é Samuel Rawet, um engenheiro/escritor
judeu que imigrou para o Brasil ainda menino. Viveu no Rio de Janeiro e
em Brasília e consagrou-se como um dos malditos na literatura de contos.
Judeu polonês, nasceu em 1929 na cidade de Klimontov. Chegou ao Rio
de Janeiro em 1936. Vencedor de vários prêmios literários, morreu aos 55
anos, em Brasília, bastante perturbado emocionalmente2.
Buscaremos aqui o sentido das viagens e das estadas que ambos
relatam, já que são diametralmente diferentes, e tentaremos resgatar o que
os dois autores falam de forma metafórica. Ou seja, como constroem textos
que se utilizam de estratégias narrativas de profunda riqueza e que dão o
sentido de suas ideias ao outro, o leitor, a partir da qualidade desenvolvida
pela linguagem de fundir ideias com imagens, através das metáforas, e, assim,
criar sensibilidade para a recepção da fala, que, na verdade, aparece de forma
figurada nos textos.
Em comum, os dois autores, Vittorio Emanuele Orlando e Samuel
Rawet, trabalham a perplexidade do estranho (estrangeiro) ao aportar no
sul do continente americano e os meandros do ressentimento que deixam
transparecer em suas falas, seja através das personagens de Rawet, seja
através das descrições de Orlando. Descartamos, entretanto, a possibilidade
nietzschiana de tratar o ressentimento como engendrador da violência, a
exemplo do que é construído na A Genealogia da moral, embora façamos
algumas referências a Max Sheler (1874-1928), que compartilha das ideias
de Nietzsche (1844-1900) a este respeito, e lembramos que a etimologia de
ressentimento é no sentido de “ir-sentir”, de melindrado, zangado, magoado,
1
Vide relato desta visita em: BIANCO, Francesco. Il Paese del avenire. Confira também as informações de
CERVO, Amado Luiz. As relações históricas entre o Brasil e a Itália: o papel da diplomacia.
2
Cf.: BAZZO, Ezio Flávio. Rapsódia a Samuel Rawet.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 13

ofendido, desgostoso e de sofrer, e não de revidar, como sugere Nietzsche. 3 E


é sob este último prisma que trabalharemos.
Iniciaremos com o relato de Vittorio Emanuel Orlando:
Quando apareceu a montanha escura, Cabo Frio, a
extremidade setentrional do enorme golfo onde desemboca
a baía do Rio de Janeiro. Mas se até aqui tudo coincide com
a profética visão dantesca, uma profunda diferença está no
fato de que a viagem de Ulisses acaba – como se sabe –
tragicamente: a nova terra avistada rechaça, com a violência
de um turbilhão apocalíptico, os audazes que tentavam o
seu inviolado mistério. Será então que o moderno viajante,
ao contrário, que tenha visitado aquela terra e vivido
entre aquela gente, traz consigo a férvida e reconhecida
lembrança da maior e mais dedicada hospitalidade, o
confronto e a utilidade dos grandes ensinamentos, um
mais vasto horizonte de conhecimentos e de ideia, uma
espontânea, irrefletida sensação de exotismo, ao entrar-se
em contato com a natureza continental diversa e estranha,
senão hostil, aquela sensação é experimentada mesmo se
juntarmos a ela a admiração atônita de belezas que, para
nós europeus, é impossível imaginar.
É assim que Vittorio Emanuele Orlando começa a descrever o Brasil
quando por aqui aparece nos anos 1920. Se pensava que a chegada à América
do homem italiano não havia se transformado em tragédia, deixou latentes em
todo o seu texto, um inédito, depositado no Arquivo de Estado em Roma,4 suas
construções de ressentimento e memória, sua projeção no futuro e a imagem
que construiu do “outro”: o além da fronteira.
Um texto recheado de metáforas e alusões a Dante, o documento de
Vittorio Emanuele Orlando é todo ele, na verdade, uma construção que tem a
Divina Comédia como sustentáculo.
A princípio, este pequeno manuscrito de pouco mais 17 páginas registra
apenas um apelo, provavelmente lido no parlamento italiano, que carrega em
seu interior, da maneira como é tecido, a força e a magia do ressentimento de
algo que a Itália, bem como a Europa inteira, tentava – e tenta aparentemente
até hoje – negar: o seu lugar na América.
O texto de Orlando, à primeira vista linear, começa a relatar as
impressões cunhadas por ocasião da primeira partida do autor rumo ao Novo
Cf.: SILVA BUENO. Grande dicionário etimológico da língua portuguesa.
3
4
Archivio Centrale Dello Stato - Busta 110, fasc. 1829. Texto sem título, traduzido para o português por
Mabel Malheiros.
14 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Continente e sua visão do paulatino afastamento da Itália, depois da Europa, até


chegar ao Rio de Janeiro, ponto inicial de uma visita de duas semanas à América
do Sul. Do Rio, e das impressões que registra sobre a Bahia de Guanabara,
Orlando tenta dar a dimensão do Continente e do papel das gentes europeias que
o habitam, os italianos, para chegar ao ponto que só na aparência parece ser o
aceno final do seu texto: a América do Sul como as “Vias do futuro”.
Na verdade, ao retornar à Divina Comédia, Vittorio Emanuele faz
muito mais do que revela à primeira vista a suposta linearidade que apresenta
no texto. Ele recupera, de maneira muito forte, o ressentimento que Dante
Alighieri (1265-1321) perpetuou. Não em relação à Beatriz, é claro, mas em
relação à Florença, e, por isso, ao seu desterro.
São duas as passagens de Dante citadas. A primeira está inserida
brevemente na observação do intelectual italiano:
Mas senti irromper de minh’alma, e ser vencido e
dominado pela sensação de exoticidade continental,
quando percebi que não era só o fato de abandonar o
meu por um outro continente, mas um velho mundo por
um novo mundo, com o qual eu não tinha, nem mesmo
através das recordações inextinguíveis das longínquas
estirpes dos avôs, o mais remoto relacionamento.
Contudo, na inexaurível fecundidade do seu gênio, a
Itália havia descoberto aquele mundo mediante um seu
glorioso filho, primeiro e simbólico emigrado italiano na
América que, não pelo seu, mas por outros países, havia
lutado, sofrido e vencido.
Para a América do Sul, porém, a descoberta aconteceu
mais de dois séculos antes, em virtude de uma prodigiosa
adivinhação de um outro gênio italiano: nova e, talvez,
não observada reprova de misteriosa potência que faz do
adivinho, ao mesmo tempo, o poeta e o profeta. No 26º
canto do inferno, Dante descreve a viagem de Ulisses
após ter deixado a foz estrita atrás do sol, onde as balizas
Hércules pusera para que o homem não fosse além:
Gibraltar. A popa voltada para o nascente e, assim, a
proa em direção ao ocidente, mas “inclinando à esquerda
e sempre a rumo”: eis então assinalada a direção exata
do sudoeste, que vai de Gibraltar à América meridional.
Passa-se a linha que divide igualmente a esfera terrestre:
“Já se viam à noite os astros todos do outro pólo, e
baixara tanto o nosso que os marinhos plainos mal se
erguiam”; e a viagem prossegue por uma medida de
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 15

tempo correspondente à dos meios náuticos de então


(cinco meses: “vezes cinco acendera, e extinguira o seu
fulgor a lua”), tempo hoje reduzido pela velocidade dos
modernos transatlânticos há apenas quinze dias.

A segunda extrai um trecho do Purgatório. Diz Orlando:


Vocês se lembram, no comovente episódio do purgatório,
o encontro entre Sordello e Virgílio?
...ó, mantuano, disse, eu sou Sordello – da mesma pátria
tua! E nisto o abraça... Tão pronta foi aquela alma formosa
em afagar o conterrâneo, sou Sordello, teu conterrâneo. E
entre abraços ambos se estreitaram. Ah!

É assim que Vittorio Emanuele deita seu olhar sobre a América do


Sul. Parte de um eixo europeu construído para fazê-lo e, mais do que isto,
institui como referencial a obra de Dante e as façanhas de Ulisses. Vê na
América uma derivação, mas uma derivação de exterioridade naquilo que foi
criado como novo, que teve um início, para então ser denominado de Novo
Mundo, mas que teve o início a partir de uma premissa: a da descoberta
através do gênio italiano. Muito mais do que espanhola, muito mais do que
portuguesa ou muito mais do que inglesa, fora da Itália a glória de gênio.
Para relembrar suas palavras:
(...) na inexaurível fecundidade do seu gênio, a Itália
havia descoberto aquele mundo mediante um seu glorioso
filho, primeiro e simbólico emigrado italiano na América
que, não pelo seu, mas por outros países, havia lutado,
sofrido e vencido.

O chamamento de Ulisses ao argumento, através de Dante e da Divina


Comédia, e o paralelo com a figura de Cristóvão Colombo (1437/1448-1506)
nos sugerem uma nítida tentativa do autor, Vittorio Emanuele, de dar ao
acontecimento da transposição do Oceano Atlântico e da chegada às terras
meridionais a grandiosidade digna da construção de uma epopeia. A escolha
da linguagem feita por Orlando, ao descrever sua própria transposição física
do velho ao novo continente, permite a indução do leitor a uma espécie de
ambientação literária que se recheia poeticamente de feitos extraordinários
e ações ilustres: uma nova Odisseia. Não sem motivo, o primeiro parágrafo
do texto é uma breve introdução poética à noção de pertença europeia, o que
possibilitará ao autor, a partir daí, aventurar-se através da presença do mar e
16 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

introduzir a lembrança de uma epopeia das civilizações que formaram a Itália


e que terminará por fazer ressurgir o herói grego Ulisses:5
Quando, após navegar durante apenas dez horas, tempo
suficiente para transpor o breve trecho de mar que separa
Trapani de Túnis, vi, ao romper do dia, desenhar-se no
horizonte o perfil escuro, delicado, quase hierático de
Cabo Bom, naquele céu que – mesmo nas horas matinais,
entre nós, sempre encobertas por vapores – resplandecia
com uma luminosidade metálica, tive instintivamente uma
nova sensação: poderia chamá-la de pertença continental.
Esta nova sensação pode ser expressa pela notória
representação daquela série de círculos concêntricos que
o arremesso de uma pedra determina em águas tranquilas,
onde do menor e mais interno passa-se sucessivamente
aos maiores e mais externos: o mesmo ocorre com a
progressiva expansão do vínculo que começa ligando à
cidade, depois à região e depois à pátria, e ainda prossegue
a partir dessa última. Onde, após a sensação de sermos
italianos para a Itália, temos também a sensação de sermos
europeus para a Europa. E assim, Cabo Bom, mesmo tão
próximo à minha terra natal, me parece mais estranho que
os promontórios invernais das costas britânicas, ou as
planas dunas holandesas: não tão estranho, porém, a ponto
de não evocar, das profundezas da alma, as memórias
lendárias ou históricas das relações decorridas entre os
meus progenitores e aquela terra, historicamente mais
antiga que a minha; aquela terra da qual fenícios, púnicos,
árabes vieram fundir o seu sangue com sangue siciliano,
ainda que os aborígenes não fossem exatamente idênticos,
aquela misteriosa raça mediterrânea que teria dado os
mesmos primeiros habitantes à África setentrional e à
Itália meridional e insular.

Orlando, que não faz uso da forma métrica em seu texto para
caracterizar uma composição épica, insiste que a conquista e o risco da
complicada arte de navegar se fazem presentes à viagem de visita à América
do Sul. Por isso, a necessidade de buscar sua história de italianidade ou
mesmo a de europeidade para poder partir em direção àquela terra que
Ulisses já havia vislumbrado. Este chamamento seria, por si só, na visão
do autor, uma odisseia, tal qual a empreendida por Ulisses. Mesmo não
5
“Mas quando a roda do tempo chegou ao ano em que os deuses haviam fiado a sua volta o lar, em Ítaca, sem
sequer então, e na companhia dos entes queridos, ele chegou ao fim de suas provações” (HOMERO, Odisséia).
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 17

buscando em Homero (Séc. VIII a.C.) – mas em Dante – sua inspiração,


vale lembrar que o caráter épico dos feitos narrados pelos gregos traziam em
si a tarefa de aconselhar, advertir, admoestar e exortar6, e este é justamente o
objetivo primeiro do texto de Orlando – embora ele carregue vários sentidos.
A pretensão do autor, como veremos, é a de que a Itália preste atenção
comercial à América Latina. A odisseia – tanto a de Orlando como a de
Homero – é, então, uma advertência que parte de uma premissa interessante:
a dos riscos e perigos da própria odisseia.
Mas Orlando inspira-se em Dante e não em Homero para recuperar
a figura do herói Ulisses. Na Divina Comédia, Ulisses está no Inferno, no
nono círculo, onde penam traidores da família, da pátria, dos amigos e dos
benfeitores, como narra o poeta italiano:
Ardem no interior dessa dupla chama Ulisses e Diomedes,
unidos no castigo assim como unidos foram ao merecê-
lo. Purgam a traição do cavalo (de Troia) que de resto foi
a porta pela qual entrou na Itália o gentil sêmen romano;
pagam o ardil que levou a morta Deidama a chamar por
Aquiles; pagam o roubo do sacro Paládio.7

E mais adiante:
A mais alta parte da antiga chama, agitando-se com
murmúrio igual ao da lâmpada que oscila ao vento,
inclinando-se em vários rumos conforme é próprio da
língua eloquente, disse: “Quando fugi dos feiticeiros
encantos de Circe, os quais por todo um ano me
retiveram junto à Gaeta, antes que Gaeta por Enéas
visse a ser assim chamada, nem a forte saudade do
filho, nem a lembrança da proveta idade do pai, nem
o puro amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em
mim o desejo de conhecer o vasto mundo, o aspecto dos
demais mortais e a sua valia respectiva(...)”.8

A utilização do Ulisses de Dante é por si só uma metáfora em que, para


o ensejo da odisseia e da antevisão de terras além-mar, Ulisses atua como se
estivesse só: há o esquecimento da família e de Ítaca, país de Ulisses, um fator
importante, pois, como chama a atenção Homero, o reino de Ulisses não tira
apenas de Ítaca sua riqueza, mas das ilhas vizinhas.
6
Cf.: JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego; e BENJAMIN, Walter. O narrador:
observações sobre a obra de Nikola Leskow.
7
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Canto XXVI do Inferno, p. 98.
8
Idem, Ibidem. Canto XXVI do Inferno, p. 98.
18 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Já a segunda passagem de Dante utilizada por Orlando, em que os


conterrâneos se encontram, se dá no Purgatório. E nesta passagem da Divina
Comédia há a alusão ao desterro, fruto de uma Itália objeto de crise criada
pelo descaso político:
(...) Nota como a falta de aguilhões açulou a fera dos
maus instintos, depois que mãos sem firmeza tomaram
as rédeas do governo. Ó Alberto de Germânia, que
abandonas a Itália tornada indômita e selvagem, a qual
deverias com severidade reger; caia sobre ti, por causa
desse abandono, o justo castigo do Céu – castigo tão
nítido e forte que todos compreenderam9 a sua razão
–, de modo que teu sucessor dele tenha receio. É culpa
tua e do teu pai – mantidos, por mera cobiça, em terra
estranha – que o Jardim do Império se encontre em tal
abandono. Vê, ó negligente, Capuletos e Montéquios em
permanente angústia; Monaldi e Fillspeschi em constante
fúria! Vem, ó sensível, sentir a opressão em que vivem
teus seguidores e ocupa-te em minorar-lhes as mazelas.
Corre Santafior, para saber como são tratados!

Uma interessante escolha metafórica feita por Orlando, quando se sabe


que este intelectual teve uma expectativa no mínimo simpática ao fascismo
em seus primeiríssimos tempos10, daí a provável identificação com Dante no
que se refere à crítica aos maus reis: negligentes e ímprobos11.
Não seria por acaso que a América, em função dos italianos emigrados,
seria o espaço de definição de uma nova identidade coletiva, mas não
autóctone em relação à cultura de origem. É por isso que Orlando descreve
sua satisfação ao encontrar os conterrâneos na América Latina como parecida
àquela descrita por Dante Alighieri:
Não é diferente a maneira pela qual os irmãos lá de
baixo acolhem o italiano, mesmo se no lugar de uma
só pessoa estiver toda uma coletividade, uma nova
Itália. Em Buenos Aires como em São Paulo, em Porto
Alegre como em Ribeirão Preto, em Rosário como
em Mendoza, encontramos o mesmo acolhimento de
Roma, Milão, Palermo. Ou, melhor dizendo, o mesmo
recebimento proporcional ao número de pessoas; mas,
em solo americano, como aqueles acolhimentos vibram
9
Idem, ibidem. Canto VI do Purgatório, p. 148.
10
Os fascistas tomaram o controle do governo italiano em 1922.
11
A este respeito ver o Canto VII do Purgatório, por exemplo.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 19

com maior fervor e entusiasmo nos milhares de pessoas


que se aproximam como se estivessem se aproximando
de um irmão! Com qual filial ternura falam ao mesmo
tempo da Itália inteira e de suas pequenas cidades; com
quanta ânsia de saber pedem infinitas notícias a respeito
de grandes acontecimentos e fatos insignificantes; a
distância parece atenuar as dimensões que intercedem
entre as coisas e as pessoas, mas em compensação, tudo
aquilo que suscite um afeto, um interesse, até uma simples
lembrança assume da mesma forma significado e valor,
porque a eles fala da Itália, evoca a Itália. Fazem festa a
vocês, como se devessem referi-lo a ela – para que tenha
a certeza de que lá em baixo tem filhos, muitos filhos
seus que não a esquecem, que preservam o imaculado, na
melhor parte de si, o amor que a distância não enfraquece
e o tempo não apaga. E mais são primitivas as almas, mais
esse sentimento de pátria parece estar enraizado, menos
se distanciam. O homem que acredita ser culto ou querer
parecer sem preconceitos, pode algumas vezes fingir
sentir-se cidadão do mundo e renegar ou esquecer o lugar
de origem; mas nenhuma força arrancará do coração dos
homens simples as lembranças e o afeto pela terra que
os viu nascer e onde a vida teve, para eles, os primeiros
sorrisos e, ai de mim, os primeiros desconfortos e as
primeiras dores. O pobre tugúrio, a terra banhada com
seu suor, o pequeno povoado, as pessoas conhecidas que
o deixaram, tudo está sempre presente em sua memória;
e o encontro com um patriota que veio há muito da Itália,
é a ocasião para reacender de chama mais ardente a
lembrança e evocar tempo longínquo com uma aflição
mais apaixonada, com uma comoção mais brilhante.

Este emigrado, que é o conterrâneo, aparece no texto como exterioridade.


Ou seja, é o outro, porque já modificado, porque distante da verdadeira Itália.
Neste enfoque de Orlando, é o outro já ressentido da distância, mas não é o
outro em virtude do abandono sofrido pelo descaso das autoridades e pela
diáspora europeia do final do século XIX. É o outro apenas porque seu sentido
de pertença europeia foi modificado: ele afastou-se da família e partiu em
direção à antevisão de Ulisses no Canto XXVI do Inferno. É o outro, ainda,
porque não é um igual: é constituído de “almas primitivas”, aliás, algo que se
encaixa perfeitamente na construção de Purgatório de Dante Alighieri, porque
o purgatório seria, ao mesmo tempo, o local da expiação e o da esperança. Na
20 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

América, essas almas primitivas, esse “sordellos”, a exemplo do conterrâneo


que Dante e Virgílio encontraram, estariam passando seu período de purga!
Ainda como jurista, Vittorio Emanuele Orlando recupera da tradição do Direito
italiano e de sua estreita ligação com a Antropologia Criminal o preceito da
existência de homens primitivos, aqueles que, pela sua organização física e
psíquica, externariam qualidades e defeitos que expressariam as sensações e
sentimentos mais primitivos (amor, ódio, medo, etc.)12 e de forma espontânea.
Ou seja, um tipo de homem completamente adequado ao Purgatório, porque
lá, ponte entre o Inferno e o Céu, coexistem a virtude e o pecado. Este homem
simples, então, expressa-se sem a censura civilizatória: é primitivo.
Esta natureza rude do homem emigrado é ainda destacada quando Vittorio
Emanuele Orlando atribui mais um status de exterioridade à identidade europeia
deste homem: o de estar em sua “nova pátria”, onde se transformara em um outro
tipo de italiano, o que “soube conquistar o grau de dignidade e de respeitabilidade”
através do trabalho e formar uma nova nacionalidade sul-americana. Primitivos,
então, são o homem e a natureza,13 pois, a exemplo deste italiano diferenciado,
“a paisagem sul-americana mantém, ainda, praticamente intacta, a sua beleza
exuberante, irredutível, primitiva”, completamente diferenciada dos golfos de
Nápoles ou de Bósforo, “paisagens, por assim dizer, domesticadas pelo homem
durante milênios”. E, descrevendo o Rio de Janeiro, sublinha:
Imaginem: um golfo tão profundamente interno, que os
primeiros descobridores acreditam tratar-se da foz colossal
de um rio e o chamaram Rio; protegido na entrada e ao
redor por montanhas que parecem monstros antediluvianos,
quimeras, dragões, esfinges, por rochas atormentadas e
contorcidas onde triunfa a assimetria, a estranheza de linhas
audazes, enquanto 365 ilhas, tantos quantos os dias que
formam um ano, ou parecem elas também dorsos gigantescos
de monstros adormecidos na água, ou são encobertos pelo
verde da floresta tropical, onde a mata austera, escura e
profunda tem algo de defensivo, de exclusivo e fechado.

A natureza selvagem e a natureza quase selvagem deste homem


primitivo italiano se congregam em vários níveis no texto de Orlando, porque
tudo é apresentado a partir da visão de estranhamento que carrega o poema
épico. Por isso ele dirá:
12
Sobre o assunto: CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei (1889-1930). Brasília: EdUnB, 2005.
Especialmente Capítulo I.
13
Diz o autor: “(...) aquela primeira, espontânea, irrefletida sensação de exotismo, ao entrar-se em contato
em contato com uma natureza continental diversa e estranha”.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 21

E, para continuar sob a inspiração de velhas lendas,


onde os tesouros mais preciosos eram circundados e
defendidos a custo de pavorosas dificuldades, parece,
à primeira vista, que a natureza nesta parte do mundo,
com sua própria esmagadora imponência, com o fascínio
de uma beleza selvagem, tenha desejado mais rechaçar
do que atrair, mais combater que favorecer a penetração
do homem e da civilização; mas, no momento em que
a barreira é ultrapassada, eis revelarem-se tesouros
inestimáveis, e surpresas sob bem outros aspectos
maravilhosas. A surpresa, entanto, de encontrar povos
cuja formação, resumida no breve ciclo de um século,
constitui, para quem entende, um dos prodígios mais
extraordinários da história moderna (...) povos que,
pelas condições geográficas e pela variedade de recursos
inexauríveis, pelas atitudes espirituais, e pelo domínio de
atração sobre as pessoas e sobre os interesses do mundo
antigo e do novo, veem abrir-se diante de si, com potência
quase ilimitada, o caminho para o futuro.

Esta mescla de herói homérico com o bom selvagem que é


imprimida ao emigrado ainda parte de uma constatação do que seria
a maior virtude deste estrangeiro, que purga na América do Sul: a de ter
contribuído “enormemente, em suma, a fazer daqueles nobres e abastados
Estados patriarcais – como eram há quarenta anos – ativíssimas fábricas de
riqueza moderna”.14 Nesta exaltação ao seu italiano primitivo, Orlando tenta
construir no texto uma imagem de ajustamento, fruto da diáspora europeia,
que se choca frontalmente com a imagem sobre o imigrante construída tanto
no Brasil quanto na Argentina. Diz o italiano que
Os representantes dos poderes públicos – do Presidente
dos Estados aos ministros; da grande imprensa a todo
o povo daqueles países, todos atestam em uníssono
a gratidão que têm pelo italiano, considerado como
um criador incomparável de prosperidade; como um
elemento insubstituível de tranquilidade e de ordem. Ele
centuplicou a grande produção agrícola; criou a grande
indústria, o grande comércio.

Se a utilização do termo “uníssono” fixa uma noção de incontestável


verdade à virtuosidade do primitivo e de seu reconhecimento enquanto
14
Parece sugestiva esta referência ao fim dos patriarcas. Seria a modernização pela construção de uma nova
ordem? A da ordem aos moldes modernizantes do fascismo?
22 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

herói, ela mascara de forma surpreendente toda a aversão construída no


Novo Mundo – América do Sul e do Norte – sobre estes homens miseráveis
que em massa a Europa expatriava e despejava nos portos dos Estados
Unidos, Canadá, Argentina, Uruguai, Chile e Brasil. Um surpreendente
mascaramento, uma vez que a miserabilidade do italiano emigrado, em
especial15, era notoriamente publicada nos jornais, reconhecida pela polícia
e pelas próprias autoridades italianas, que, segundo o autor, “só em um
período relativamente tardio” criou “repartições institucionais para assegurar
a intervenção e a garantia estatal do fenômeno da emigração”16.
Este pretenso reconhecimento uníssono que Orlando pretende
dar ao emigrado, na verdade, não existiu, mas faz sentido na sequência de
estruturação de seu texto. O autor italiano introduz, a partir daí, uma espécie
de chamamento àquilo que a Itália deveria engendrar: a solidariedade dos
emigrados, os Ulisses, e seus descendentes, com a terra Natal: à Ítaca desta
história, a Itália. Mesmo negando-se a fazer recriminações e queixas, Orlando
pensou que a assimilação dos primitivos ao Novo Mundo havia provocado um
“fenômeno de desnacionalização velocíssima”, principalmente pela “força de
aderência de que per se tem a terra, que fornece o alimento e que se junta com
mais intimidade às nossas alegrias, às nossas dores, às nossas esperanças”17.
Reconhece, então, que, como Ulisses, que estava no nono círculo do Inferno,
o emigrado se esqueceu da família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores.
Mesmo que ao se aproximar um conterrâneo este emigrado pudesse se
transformar em Sordello, o inevitável e necessário esforço para conquistar sua
independência teria gerado, neste emigrado, muito mais razões de dissídio do
que de camaradagem.
Apresentadas todas estas questões, caberia agora, por parte da Itália,
uma vasta e complexa ação política, além de atividades governamentais,
sobre a grande “ramificação demográfica” sul-americana, pois, como Zeus
que empurrava Ulisses em direção a Ítaca, Orlando pergunta-se, ao reconhecer
que a Itália precisa transpor “a indiferença, que marca a política nas relações
com a América do Sul, onde a ignorância justa-se à vaidade”:
15
Talvez ele perdesse na comparação do estado de miserabilidade com os emigrados do leste Europeu, mas
a disputa era acirrada.
16
Em 1929, o Primeiro Congresso de Criminologia realizado no Rio de Janeiro consagraria as teses sobre a
estreita ligação entre a presença de estrangeiros e a criminalidade. No Rio, dizia-se, “quase todos os crimes
sensacionais, os crimes de sangue, os crimes de roubo e os crimes sexuais são praticados por malfeitores
de origem estrangeira”. A razão seria simples: (...) “Sabemos que, em sua maioria, os imigrantes que se
encaminham para o Brasil procedem de países onde o coeficiente de crimes de sangue é excessivo, como
por exemplo, Portugal, Espanha e Itália”. In: CARVALHO, Elysio. A delinqüência dos estrangeiros.
17
Seria uma análise proveniente do suposto de que as teorias “científicas” totalitárias repousavam sobre o
sangue, a raça e o solo?
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 23

No novo equilíbrio das forças pelas quais será composta


a nova ordem mundial, qual e quanta será a parte
da América Latina? Em qual direção se orientará?
Permanecerá o elemento continental e pan-americano ou o
elemento étnico que reaproxima a Europa? Ou procurará,
como é mais provável, com um meio-termo, amenizar
o exclusivismo continental que parece prevalecer na
política da grande república norte-americana? São estes
problemas de importância incalculável para o mundo, e
aos quais a Itália, quanto mais vivos e profundos forem
os vínculos que a ligam por interesse e por sangue aos
países da América Latina, não pode ficar alheia.

A ignorância apontada, sem dúvida, refere-se à incapacidade de pôr


em prática uma política. Mas e a vaidade, seria ela fruto da dificuldade de
reconhecer esta incapacidade de formular uma política eficiente no interior da
nova ordem econômica que secundou a Primeira Grande Guerra? Ou a vaidade
seria a impossibilidade de reconhecer o emigrado e seus descendentes18 como
ainda conterrâneos capazes de guardar, na visão excludente do autor, traços de
irmandade com a ilha-mãe?
Ressente-se Vittorio Emanuele Orlando, não da exclusão imposta à
massa dos expatriados e seus descendentes, mas da perda de poder da Itália
sobre esse exército de homens e de suas possibilidades nas trocas econômicas,
já que conclui, batendo na velha tecla que reserva à América do Sul um lugar
ainda a ser construído, sobre esses povos:
Pelas condições geográficas e pela variedade de recursos
inexauríveis, pelas atitudes espirituais, e pelo domínio de
atração sobre as pessoas e sobre os interesses do mundo
antigo e do novo, veem abrir-se diante de si, com potência
quase ilimitada, o caminho para o futuro.

A exemplo de Dante na Divina Comédia, Orlando, que assume uma


postura heroica no texto, porque protagonista magnânimo, é o narrador que
tem como objetivo reprovar, exortar e repreender tanto a política italiana como
o emigrado. Em relação a este último, sua esperança é justamente a memória,
pois, mesmo que identifique ressentimentos que apartam os sordellos da
pátria mãe, sua tentativa é a de reconstrução desta memória por uma vertente
ingênua: a da saudade.

18
Já que ele foi construído pelo autor como o outro, o primitivo.
24 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Com qual filial ternura falam ao mesmo tempo da Itália


inteira e de suas pequenas cidades; com quanta ânsia
de saber pedem infinitas notícias a respeito de grandes
acontecimentos e fatos insignificantes; a distância
parece atenuar as dimensões que intercedem entre as
coisas e as pessoas, mas em compensação, tudo aquilo
que suscite um afeto, um interesse, até uma simples
lembrança assume da mesma forma significado e valor,
porque a eles fala da Itália, evoca a Itália. Fazem festa
a vocês, como se devessem referi-lo a ela – para que
tenha a certeza de que lá em baixo tem filhos, muitos
filhos seus que não a esquecem, que preservam o
imaculado, na melhor parte de si, o amor que a distância
não enfraquece e o tempo não apaga.

A escolha do autor em trabalhar a memória num recorte que sirva


a seus propósitos está afinada com a política dos países europeus que
insistentemente, ao longo do século XX, recusaram-se em reconhecer
qualquer tipo de responsabilidade civil sobre os emigrados e seus
descendentes. Eximiram-se em assumir obrigações sociais e políticas
sobre a emigração em massa ocorrida para a América nas várias décadas
do século XIX e XX. Retrabalhar a memória a partir do viés ingênuo da
saudade e do amor que ela exprime exime de culpa e responsabilidade, e
afasta possibilidades de ressentimento.
Mas é na própria dificuldade que os imigrantes europeus tiveram em
adaptar-se a este Novo Mundo, retratada de forma tão expressiva pela literatura
e pela historiografia, que encontraremos, na verdade, expressada a construção
de uma memória em que o ressentimento possui um lugar alavancador.
Analisaremos três textos, O Profeta, A Prece e Gringuinho, integrantes
do livro Contos do Imigrante, de Samuel Rawet. Em cada um desses contos,
as personagens, todas imigrantes, amalgamam-se naquilo que têm em comum:
o ressentimento, a ofensa recebida, a mágoa de terem sido abandonadas e a
solidão advinda do sofrimento e da diferença. Dois idosos – um homem e uma
mulher – e um menino, cada qual em um conto diferente, são personagens
que, em comum, gritam o sofrimento através do silêncio e das lembranças.
Não da saudade ingênua, como preferiu Orlando, mas da mágoa das perdas.
Tanto Orlando como Rawet trabalham a América como espaço de
definição de uma nova identidade coletiva, mas não autóctone em relação à
cultura de origem. De qualquer forma, eles trazem como pano de fundo algo que
apenas um deles, Orlando, se nega a admitir: a diáspora europeia. Ou seja, o que
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 25

existe em comum é que ambos os autores não partem da Europa como elemento
de simbiose com a América. O Novo Mundo não é a extensão do Velho, mas é
outro mundo. Ele não é mais sequer Novo Mundo. Fora rebatizado no séc. XIX:
América do Norte, América do Sul, América Central. Esta visão dicotômica parte
agora do pressuposto da identidade e da não identidade. Isto é: a identidade do que
é europeu e está na Europa; e a não identidade em dois níveis: do que é europeu,
mas não está na Europa, e do que não é absolutamente europeu.
Em O Profeta, por exemplo, o primeiro conto de Rawet, há uma
instigante análise psicológica da personagem. Trata-se de um judeu que aporta
no Brasil para morar com o irmão, a filha, o genro e o neto. Não tem nome,
mas acaba por ganhar a alcunha que zombeteiramente o genro lhe coloca:
Profeta. Rawet inicia este conto pelo desfecho encontrado pela personagem
para fugir da dor de não pertencer: voltar à Europa. Não entende a língua, os
costumes, os valores. Sofre a tortura da não identidade e do ressentir-se das
perdas, dos olhares, dos gestos. Há apenas o vazio.
A primeira frase do conto é: “Todas as ilusões perdidas, só lhe restava
mesmo aquele gesto”: voltar. E a personagem olha do navio para o cais:
Lá embaixo correrias e línguas estranhas(...) Pouco lhe
importavam os olhares zombeteiros de alguns. Em outra
ocasião sentir-se-ia magoado. Compreendera que a barba
branca e o capotão além do joelho compunha uma figura
estranha para eles.

O profeta sofre. Era fruto de uma diáspora imediatamente seguinte àquela


dos italianos: a da Segunda Guerra. Não entendia a alegria de seus familiares e
Deduziu que seus silêncios eram constrangedores. Os
silêncios que se sucediam aos questionários de si mesmo,
sobre o que mais terrível experimentara. Esquecer o
acontecimento, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe
a essência do horror ante uma mesa bem posta, ou um chá
tomado entre finas almofadas e macias poltronas? Os olhos
ávidos e inquiridores que o rodeavam não teriam ouvido o
bastante para também se horrorizarem e com ele participar
dos silêncios? Um mundo só. Supunha encontrar aquém
mar o conforto dos que com ele haviam sofrido, mas que o
acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. E consciente
disso partilhariam com ele o humilde encontro. Vislumbrou,
porém, um ligeiro engano.19
19
RAWET, Samuel. Op. cit., p 11.
26 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Como o Profeta, Ida, a personagem de A Prece, também viera da Guerra


para o Brasil. A ela, não restara nenhum parente. Haviam sido mortos. E o
sentimento de não pertencer era o mesmo do conto anterior. Do Profeta, partiam
do genro as brincadeiras de mau gosto; de Ida, eram os meninos do casarão em
que fora morar – um cortiço – que constantemente apontavam seu estranhamento:
A princípio receberam-na na casa de alguém, mas como
novidade, bicho raro de outras terras que tem histórias
para mais de um mês. As histórias cansaram. A bondade
também. Veio o casarão com uma língua que não
entendia, moleques a arremedar.20

No conto, o auge de todo o estranhamento viria logo. Durante as rezas


de uma sexta-feira, Ira teve seu quarto invadido por todos os habitantes do
casarão. Insuflados pelas crianças, suspeitaram que as velas acesas para o
ritual das preces do Shabat estariam servindo para velar um corpo...
Os imigrantes de Rawet eram os recortes de memória que guiavam suas
vidas, a partir desta dicotomia estipulada entre os dois mundos. Uma dicotomia
física e de mentalidade. Paisagens, costumes e sentimentos diferentes,
estranhos. Se o profeta e Ida alimentavam-se do sofrimento e ressentiam-se de
não encontrar na nova morada a identidade com suas histórias e a lembrança
do terror, o pequeno menino de O Gringuinho não identificava na nova terra
nem a paisagem nem o carinho. Era excluído pelo nome – Gringuinho – e
pelas atitudes dos meninos, agora seus vizinhos e colegas de escola21. Não
encontra similitudes, mas sobrecarrega nas diferenças, sofrimentos e exclusão
que não estavam presentes em sua vida na velha Europa:
Antigamente, antes do navio, tinha seu grupo. Verão,
encontravam-se na praça e atravessando o campo
alcançavam o riacho, onde nus podiam mergulhar sem medo.
À chatura do velho barbudo (de mão farta e pesada nos tapas
e beliscões) havia o bosque como recompensa. Castanheiros
de frutos espinhentos e larga sombra, colinas onde o corpo
podia rolar até a beira do caminho. Framboesas que se
colhiam à farta. Cenoura roubada da plantação vizinha (...).
No inverno havia o trenó que se carregava para montante.
O rio gelado onde a botina ferrada deslizava tal qual patim.
Em casa a sopa quente de beterrabas, ou o fumegar de
repolhos. Sentava-se no colo do avô recém-chegado das
RAWET, Samuel. Op. cit., p 25.
20

Vide também a este respeito a narrativa de Boris Fausto sobre o tratamento dado pelos seus colegas no
21

Colégio Mackenzie aos meninos judeus. FAUSTO, Boris. “Lembrança da guerra na periferia”.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 27

orações e repetia com entusiasmo o que aprendera. Onde


o avô? Gostava do roçar da barba na nuca que lhe fazia
cócegas, e dos contos que lhe contava ao dormir.22

Não queria ser o Gringuinho. Não queria ser o motivo de chacota


dos meninos no colégio. Na memória, sofrimentos e exclusão não estavam
presentes em sua vida na velha Europa. A reação emocional frente ao outro
é de sobrevivência, ao mesmo tempo em que revive repetidamente a mesma
emoção negativa, que expressa hostilidade, que retém a negação deste Novo
Mundo e que expressa, de maneira excessiva, a impotência frente à realidade23.
Bastante diversa da memória imputada por Orlando aos seus
conterrâneos “primitivos”, os judeus de Rawet pretensamente constroem eles
mesmos sua própria memória – embora sejam fruto de criação literária –, que
desemboca na situação de estranhamento e exterioridade em relação ao novo.
Não há saudade. Há sofrimento, desgosto, mágoa e melindre, pois não há
simbiose entre a antiga e a nova vida, e porque o lugar comum do futuro
reservado à América do Sul se dissipa frente ao estranhamento e à falta de
solidariedade que, em última instância, ele significa. Os excluídos estão sós,
apartados, distantes. Estão num mundo exterior, que não é continuidade.
Mesmo que os italianos emigrados e os judeus fugidos do nazismo e da
guerra identifiquem-se nos textos constantemente em contrapartidas diferentes
que se entrelaçam de individualismo econômico (porque também vêm em
busca de oportunidades)24, espírito de aventura, dignificação do trabalho
e de ressentimento exacerbado ou não, a América é agora simplesmente o
lugar que as diásporas europeias reservaram aos excluídos. Aos “primitivos”
italianos, porque, homens simples, tiveram a coragem de imitar Ulisses e,
como em Homero, realizar a Odisseia para humanizarem-se; e aos judeus,
porque frutos de uma diáspora milenar e do terror, há muito não possuíam
pátria. Aos párias, então, restou a construção da América do sonho, da (des)
ilusão: uma América do Sul, não um Novo Mundo, porque o novo carrega em
si a ideia de recomeço, de vida, sem ressentimento, sem fronteiras.

22
RAWET, Samuel. Op. cit. pp. 44 e 45.
23
SHELER, Max. El resentimiento en la moral. Buenos Aires/México, Espasa - Calpe Argentina S.S., 1944.
24
O Profeta inveja o sucesso financeiro do irmão.
Em nome da virtude,
da política e de Deus
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 29

“Todas as origens dos povos são utopias”


Voltaire (1694-1778)

J á no iniciar do século XVI, ao criar o gênero utópico como exercício


de crítica política, Thomas More (1478-1535) introduziu um pressuposto que
tornar-se-ia recorrente nas propostas da constante reconstrução dos desígnios
americanos. Isto é, como que profetizou a incessante busca dos intelectuais –
sejam eles americanos ou não – de entender e buscar para a América como um
todo o lugar de sua idealização primeira, ou seja, a de realizar a utopia da ilha
criada pela projeção do sonho moderno de um mundo voltado à idealização
do Paraíso da Gênese, do Jardim do Éden. Portanto, de um mundo que, afinal
de contas, se encontra cercado dos ideais primitivistas, cristão de moral e de
princípios de felicidade.
A estratégia narrativa de More não só introduziu um gênero literário
através da fala fictícia da personagem de Rafael Hitlodeu25 como, a partir do
contraste dos valores morais e políticos das duas sociedades – o da Ilha Utopia
e a europeia –, encaminhou o sentido de uma regeneração inglesa. Anunciou,
por isso, uma espécie de visão moralizante utópica capaz de não só pensar as
possibilidades dos mundos que estavam sendo (re)descobertos como deu um
sentido de indagação para aquilo que, no caso específico do nosso estudo, a
América poderia e deveria vir a ser: a ruptura de tradições políticas assentadas
na virtude que, desde os antigos, haviam-se degenerado.
Um novo sentido de moral pública e de moral privada é perseguido no
texto de More. Daí a indignação virtuosa e o equilíbrio que logra encontrar
no que diz respeito à junção da eficácia na condução dos negócios públicos
com o moralmente correto, numa forma original de tentar achar o contexto de
um mundo ideal para a realização da virtude. Uma aposta que, através de uma
espécie de Ulysses criado no texto, a personagem de Hitlodeu e que exalta
os predicados de Utopia, realiza a Odisseia, qual seja, a forma praticamente
perfeita de organização social e política da Ilha, onde os homens atingiriam
a similitude encontrada nos deuses gregos, no que tange ao encontro da
sabedoria ideal para a realização da virtude.
Não seria por acaso, portanto, que as referências às viagens de
Américo Vespúcio – Odisseia da qual Rafael Hitlodeu faz parte – são
utilizadas por More para criar a possibilidade de que esta ilha – presente em
25
Hitlodeu seria uma composição vinda do grego – Hytlos (conversa fiada, disparate) e daios (astúcia,
sagacidade) ou daiden (distribuir): especialista em disparates, ou mercador de disparates. Cf. LOGAN,
George M. e ADAMS, Robert M. Notas. In: MORE, Thomas. Utopia. p. 8. Utopia de Thomas More foi
publicado em latim no ano de 1516.
30 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

lugar nenhum – pudesse existir como ideal de república, de vida civita. A


América do relato de Hitlodeu, desconhecida, surpreendente e ainda envolta
em mistérios, seria a prova imaginada da possibilidade de construir uma nova
maneira de existir e principalmente de conviver, e carregaria, neste relato de
construção feliz, a prova viva da factibilidade utópica, ou melhor, da negação
da utopia enquanto algo que não se concretiza, embora seja possível; a
comprovação da utopia enquanto capacidade do homem moderno, portador
da sabedoria e da razão renascentista, crítico de sua realidade europeia, de
realizar o melhor Estado, num contexto ideal para a idealização da virtude.
Enfim, uma probabilidade de que o homem civilizado pudesse buscar o bem
comum ao abandonar a emulação, os vícios, a intolerância, os privilégios e
a desorganização da vida pública.
Neste rastro de crítica e de idealização política e social, praticamente
inaugurado por More enquanto formulador do gênero utópico – o da indignação
virtuosa e o do equilíbrio entre a eficácia pública e o moralmente correto –,
seguiram-se formulações que tiveram na América o contraponto de reflexão
sobre a virtude e a felicidade e sobre alternativas políticas de se chegar a ela.
Como importante moralizador moderno, More, neste volver do
princípio moral na e para a virtude cívica, retoma diretamente o entrelaçamento
entre a questão social e a virtude26. Uma virtude que, por princípio, pretende a
felicidade, mas depende do labor. Ou seja, uma realidade em que o labor deixa de
se constituir como a escravidão do homem, assim como postulado pelos gregos,
para ganhar um outro estatuto: o da condição necessária para despertar a virtude
cívica. Esta, por sua vez, atrela-se à noção de sacrifício. Neste atrelamento, o
sacrifício (labor) passa a ser a fonte da virtude, razão pela qual a política, cujo
objetivo é a felicidade, só se reconhece enquanto consequência da divisão das
privações. Daí, ao mesmo tempo, o dever e a felicidade encontrados no labor.
A própria estratégia narrativa escolhida por More, ao ter elegido
Hitlodeu como narrador e conferir a ele a incumbência de relatar a maneira
sábia e harmoniosa pela qual os moradores da Ilha haviam atingindo a
felicidade, abre a possibilidade de estabelecer a plausibilidade de atingir um
reordenamento político para a organização da vida pública. Envolvente, a
narrativa leva o leitor a trabalhar com a dúvida sobre a existência ou não do
narrador e de sua ilha. Se disparate ou não, este lugar, ou lugar nenhum, que
aparece como ideal – e imaginemos o impacto desta maneira “popularizadora”
que More criara para discutir princípios fundamentais e complexos da política
26
MORE, Thomas. Op. cit. E aqui falamos em virtude no seu sentido romano: o da preocupação com a res
publica, com a liberdade.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 31

no início do século XVII –, desperta por si só a indagação sobre a possibilidade


da existência do praticamente perfeito, em que a imperfeição tem lugar apenas
na constatação de que os homens imperfeitos podem, em termos de virtude, se
parecer com os deuses, estes igualmente imperfeitos, desde que a organização
social assim o permita. A narrativa escolhida, ao introduzir o narrador como
testemunho do lugar imaginado, cria a verossimilhança.
Portanto, se Hitlodeu foi a esta ilha do Novo Mundo viver a felicidade,
há de fato a exequibilidade do homem civilizado reencontrar a virtude. Para
isto, a civita se constitui como fundamental no mundo da Utopia. Ou melhor,
a ilha da Utopia, em sendo o próprio lugar da virtude (moral, probidade,
austeridade, justiça e gratidão), atingiu a felicidade.
Fechada em si própria, Utopia se tornara realidade porque unia o
moralmente correto com o eficaz politicamente. Ou seja, a igualdade com a
prosperidade, muito de acordo com o arcaísmo e com o fundamento de que a
vida em sociedade seria composta de direitos e de deveres, em que labor e vida
cívica se comporiam de deveres e de direitos ao mesmo tempo, uma assertiva
bem anterior ao que John Locke e Adam Smith visualizaram, sob o ponto de
vista teórico no que concerne ao trabalho como fonte de toda a riqueza27.
Através deles, e isto se prova no texto pela contraposição que o autor constrói
entre a Ilha da Utopia e a Ilha inglesa, chega-se à verdade incontestável de
que a república perfeita estaria ao alcance do homem. Ela está desenhada, pela
verossimilhança, na expectativa de esperança que a descoberta de um Novo
Mundo propiciava. Estas questões apresentadas por More como fundamentais
à moral pública estavam ainda assentadas na igualdade política atingida pela
moralidade voltada em direção à construção de um mundo dirigido ao labor,
e como essência da existência, a civitas, não o ouro. Por isso mesmo, a busca
das práticas necessárias e eficientes de convívio.
Num outro texto que também se apresenta como marco de reflexão
e que se relaciona ao alargamento de concepção de mundo que a Europa
enfrentou com as conquistas marítimas, William Shakespeare (1564-1616)
escreveria, ao final da vida, sua A tempestade (1611 ou 1613)28. Influenciado,
provavelmente, pelo livro de Sylvester Jourdan, A Discovery of the Bermudas
(1610), que continha referências do naufrágio de Sir George Sommers, em
1609, e por outros escritos sobre a colonização da Virgínia29, Shakespeare
concentra-se também na reflexão sobre a virtude. Para chegar à conclusão
A este respeito, ver os comentários de ARENDT, Hannah. Da Revolução. pp. 18 e 19.
27

SHAKESPEARE, William. A tempestade.


28

Nesta mesma A tempestade, Shakespeare fala através de Antônio, nobre italiano, que “os viajantes não
29

mentem, muito embora na pátria os tolos os acoimem disso”. SHAKESPEARE, William. p . 38.
32 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

idílica e otimista que logrou encontrar, elegeu como um dos focos de


reflexão o empenho desenvolvido pela personagem de Próspero, tendo como
fundamento a providência, isto é, a prudência e a presciência do futuro como
forma de ação capaz de resgatar – no caso muito mais de encontrar30 – o ideal
de equilíbrio da virtude.
Se levarmos em conta que em A tempestade há uma nítida separação
entre o velho (o que ficara para trás) e o novo (o que deveria vir a ser), a
vitória de Próspero derrotando seus inimigos só era possível através de uma
projeção ideal: da fantasia de que, ajudado pelo gênio de Ariel, a nobreza31
latente em Próspero seria capaz de superar os vícios dos homens incorporados
nas personagens de seus inimigos.
Há aí uma aposta de que, aliados, Próspero e Ariel pudessem ser
capazes de realizar a empreitada idílica de – para derrotar os vícios das
criaturas presentes no mundo (a ingratidão, o egoísmo, a traição, a sede
de poder, o parasitismo, a vaidade, a guerra, a cobiça e a ambição; a
vingança, o medo e a inveja, piores dos males) –retornar o reino da virtude.
Na vontade de Próspero e em sua bondade e na capacidade de despertar os
homens novamente para a virtude, estava a própria concepção que Próspero,
o destronado príncipe de Milão, tinha da república ideal. É em uma fala
de Gonzalo, o conselheiro piedoso do príncipe, que Shakespeare, de certa
forma, retoma Thomas More de uma forma ainda mais radical, em que a
república seria sinonímia de Éden:
Não, na república faria tudo pelos meus contrários, pois
não admitiria espécie alguma de comércio; de magistrados,
nada, nem mesmo o nome; o estudo ficaria ignorado de
todo; suprimiria, de vez, ricos e pobres e os serviços;
contratos, sucessões, questões de terra, demarcações,
cuidados da lavoura, plantação de vinhedos, nada, nada.
Nenhum uso, também de óleo e de vinho, trigo e metal.
Ocupação nenhuma. Todos os homens, ociosos, todos. E
as mulheres, também; mas inocentes e puras. Faltaria, de
igual modo, soberania

(...)
Todas as coisas em comum seriam, sem suor nem
esforço, produzidas pela natura. Espadas, espingardas,
30
Encontrar, porque Próspero havia descuidado dos assuntos públicos em sua gestão de príncipe de Milão.
Embora preocupado com a sabedoria, essencial para a condução dos assuntos públicos, deixara a cargo de
seu irmão as tarefas de governar. Omisso, acabou sendo traído.
31
Como sinonímia de virtude.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 33

facas, chuços, traições e felonias, eu não admitiria. A


natureza produziria tudo por si mesma, só para alimentar
o povo ingênuo.

A abundância, a perfeição moral e a equidade social sob um reino de


justiça e paz eram a visão dos homens agora acometido pela harmonia. Isto é,
onde a organização social racionalizada fosse capaz de extrair todos do estado
bárbaro das paixões e do vício, ou seja, das deficiências naturais do homem.
Enfim, um mundo projetado capaz de ser pensado pelos homens.
É interessante notar que esta organização idílica profetizada por
Shakespeare e por More se constitui justamente no pressuposto teórico sob
o qual Alexis de Tocqueville (1805-1859) fundamenta toda a sua análise
interpretativa sobre a América: um éden abençoado pela virtude de homens
que tomaram a religião, e através dela o trabalho, como pressuposto cívico.
Por isso, moral, Deus e pátria se tornam um só.32
O princípio sobre o qual o homem poderia construir sua virtude estava
dado na América: era a própria existência do Jardim do Éden. Tocqueville
utilizava-se, para estabelecer a verdade deste pressuposto, de recursos
narrativos quase que poéticos. Dizia ele:
Quando os europeus abordaram as costas das Antilhas
e, mais tarde, da América do Sul, acreditaram-se
transportados nas regiões fabulosas que os poetas
haviam celebrado. O mar coruscava com os fogos do
trópico; a transparência extraordinária de suas águas
descobria pela primeira vez, aos olhos do navegador,
a profundeza dos abismos. Aqui e ali mostravam-se
pequenas ilhas perfumadas que pareciam flutuar como
corbelhas de flores na superfície tranquila do Oceano.
Tudo o que, nesses lugares encantados se oferecia
à vista parecia preparado para as necessidades do
homem, ou calculado para seus prazeres. A maior
parte das árvores era carregada de frutas nutritivas e
as menos úteis ao homem encantavam seus olhares
com o esplendor e a variedade de suas cores. Numa
floresta de cheirosos limoeiros, de figueiras bravias,
de murtas de folhas redondas, de acácias e loendros,
todos entrelaçados por cipós floridos, uma multidão
de pássaros desconhecidos na Europa fazia brilhar
suas asas de púrpura e de azul e juntava o concerto
32
Uma junção que torna, de certa forma, inevitável que os americanos do norte cunhem sua moeda, o dólar,
usando o nome de Deus, materializando-o justamente no dinheiro: “In God we trust”!
34 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

de suas vozes às harmonias de uma natureza cheia de


movimento e de vida.
Ocultava-se a morte sob este manto brilhante, mas
ninguém a percebia de então; reinava aliás no ar desses
climas não sei que influência debilitadora que prendia o
homem ao presente e tornava-o incapaz para o futuro.
A América do Norte apareceu sob outro aspecto. Lá
tudo era grave, sério, solene; dir-se-ia que fora criada
para vir a ser o domínio da inteligência, como a outra
morada dos sentidos33.

A narrativa “poética” permite que o leitor possa bem imaginar a boa-


venturança de viver neste lugar virgem dado milagrosamente por Deus, à
espera dos bons princípios dos homens para que se estabelecessem novos
paradigmas de civilização. De uma certa forma, sua descrição aproxima-se
da do popular livro de Daniel Defoe, Robison Crusoé,34 quando o náufrago
chega às Antilhas:
Submisso ao mundo divino, podia agora contemplar
serenamente o mundo maravilhoso que tinha à minha
volta: a melodia dos pássaros, a variedade de flores
e árvores estranhas, os regatos de águas cristalinas, o
cenário encantado que tive a ventura de conhecer ainda
no esplendor de sua beleza natural e do qual era o único
e privilegiado espectador35.

Mas se o éden é o lugar em que Deus ofereceu aos homens as melhores


possibilidades de chegar à felicidade, sua perfeição e sua natureza dadivosa
faziam com que este mesmo éden, como mostra Tocqueville, fosse, na medida
em que dispensasse o trabalho, a possibilidade mais séria de desvio do homem
para a objetivação da virtude.
Na perfeição do lugar, não haveria pensamento sobre o futuro, ou
melhor, sobre aquilo que Próspero de Shakespeare acabara por aprender
no período em que estivera confinado à sua ilha de desterro: o sentido da
prudência e da presciência do futuro. Sem elas, não haveria virtude. E, segundo
Tocqueville, é justamente em contraposição à ausência de virtude instalada
33
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América.
34
Usamos aqui a tradução de Paulo Bacellar. DEFOE, Daniel. Robison Crusoé. Robison Crusoé iniciou
algo que se chama de robisonadas que, utopias ou não, são a visão das viagens de exploração. O título
original é The life and strange surprising adventures of Robison Crusoe, of York, Mariner, who lived eight
and twenty years in an un-inhabited island on the coast of America, near the mouth of the great river of
oroonoque; having been cast on shore by ship wreck, where-in all the men perished but himself. Whith no
account os how he was at last strangely deliver’d by pyrates. Written by himself.
35
Cf.: DEFOE, Daniel. p. 66.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 35

por aqueles que colonizaram as Antilhas e toda a América do Sul36, porque


próximos demais à abundância do éden, que pudera ocorrer o nascimento
de uma sociedade totalmente nova, quando homens, dominados por uma
nova e revolucionária razão, chegaram ao novo continente e construíram a
democracia na América.
Estes homens, ao edificarem os Estados Unidos da América,
mostram então ao mundo como implementar, através das leis e dos
costumes, a continuidade estabelecida entre moral privada e moral pública,
com a consequente indignação virtuosa e o equilíbrio entre a eficácia e o
moralmente correto.
É interessante notar que mais do que usar a França como contraponto
de reflexão para entender a Europa e os Estados Unidos, como aliás pensa a
maioria dos intérpretes de Tocqueville37, há uma outra contraposição firmada
por Tocqueville que se constitui como fundamental para a exaltação dos
Estados Unidos, e este é a América Latina. Mostra quase perfeita para aquilo
que deu errado, a América Latina seria o lugar exemplar onde a ausência da
virtude fizera nascer uma sociedade desprovida de prudência e da presciência
do futuro. Não basta por isso apenas o Éden, profetiza ele, mas há a necessidade
da presença da virtude. Se a América do Norte é a virtude, à América do Sul,
para pensarmos também através de Shakespeare, estaria reservada a mesma
sorte que Prometeu e Ariel destinaram aos três inimigos que seguiam presos
para sempre em sua própria loucura 38.
Se os homens que haviam se regenerado (Alonso, rei de Nápoles;
Sebastião, seu irmão; Antônio, irmão de Próspero e usurpador do trono de
Milão; Gonzalo, o conselheiro; e Adriano e Francisco, os nobres) retomando
a nobreza através da união dos esforços de Próspero e de Ariel, foi graças ao
impulso de cólera de Próspero, ao resolver pregar-lhes a peça da tempestade
e através dela fazer com que se humanizassem, que puderam perder os
defeitos ou os vícios dos sem-razão. Eles eram agora aqueles que, por graça
divina, através do deus (ou do gênio) do ar, Ariel, e da grandeza de Próspero
readquiriam a razão. Aos que por não “serdes dignos de conviver com outros
homens. Vou deixar-vos privados da razão”, profetizava Ariel39. E era a este
destino, o da irracionalidade, que ficaram presos Caliban e seus seguidores.40
Este também seria o destino da América do Sul.
36
Onde Tocqueville inclui também o México.
37
Vide a este respeito o prefácio de François Furet, constante na edição brasileira da Martins Fontes.
38
SHAKESPEARE, W. p. 40
39
SHAKESPEARE, W. Op. cit. Fala de Ariel, p. 39.
40
Como todos sabem, anagrama de canibal.
36 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Para Tocqueville, a América Latina seria cabal para provar como ao


abandono da virtude se reserva a barbárie.41 São inúmeras as passagens em
que os “privados de razão” aparecem:
Não se pode imaginar a que ponto essa divisão da soberania
contribui para o bem estar de cada um dos Estados de
que a União se compõe. Nessas pequenas sociedades que
não têm a preocupação de se defender ou de se ampliar,
todo o poder público e toda a energia individual são
canalizados para os melhoramentos internos. O governo
central de cada estado, por estar próximo dos governados,
é cotidianamente informado dos interesses que se fazem
sentir; por isso, vemos apresentarem-se cada dia novos
planos que, discutidos nas assembleias comunais ou
diante da legislatura do estado e reproduzidos em
seguida pela imprensa, suscitam o interesse universal e
o zelo dos cidadãos. Essa necessidade de melhorar agita
sem cessar as repúblicas americanas e não as tumultua;
nelas, a ambição do poder cede lugar ao amor ao bem-
estar, paixão mais vulgar porém menos perigosa. É uma
opinião geralmente difundida na América a de que a
existência e a duração das formas republicanas no novo
mundo dependem da existência e da duração do sistema
federativo. Atribui-se grande parte das misérias em que
são mergulhados os novos Estados da América do Sul ao
fato de que se quis estabelecer ai grandes repúblicas, em
vez de fracionar a soberania.42

Ou ainda:
A constituição dos Estados Unidos parece essas belas
criações da indústria humana que enchem de glória e de
bens os que inventam, mas que permanecem estéreis em
outras mãos.
É o que o Méxi,co faz ver nos dias de hoje.
Os habitantes do México, querendo estabelecer o
sistema federativo, tomaram por modelo e copiaram
quase inteiramente a constituição federal dos anglo-
americanos, seus vizinhos. Mas, ao transportarem para
o seus país a letra da lei, não puderam transportar aos
mesmo tempo o espírito que a vivifica. Vimo-los então
se embaraçar o tempo todo entre as engrenagens de seu
41
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. Cit. p. 466
42
TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. cit., p. 182.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 37

duplo governo. A soberania dos Estados e da União,


saindo do círculo que a constituição traçara, penetram
cada dia uma na outra. Atualmente, ainda, o México se
vê incessantemente arrastado da anarquia ao despotismo
militar, e do despotismo militar à anarquia.43

E em outra passagem:
Alguém me contava outro dia, na Filadélfia, que quase
todos os crimes na América eram causados pelo abuso das
bebidas fortes, que a arraia miúda podia consumir à vontade,
porque lhe eram vendidas a baixos preços. “Por que vocês
não instituem uma taxa sobre a aguardente?”, indaguei.
“Nossos legisladores pensaram muitas vezes em fazê-lo”,
replicou, “mas seria difícil. Teme-se uma revolta; e, aliás,
os congressistas que votassem tal lei teriam a certeza de não
se reelegerem”. “Como que então”, tornei, “no seu país os
beberrões são a maioria e a temperança é irregular”.
Quando se faz ver tais coisas aos homens de Estado,
eles se limitam a responder: “Deixe o tempo agir; o
sentimento do mal esclarecerá o povo e lhe mostrará
suas necessidades”. Isso costuma ser verdade: se a
democracia tem mais possibilidades de se enganar do
que um rei ou um corpo de nobres, também tem mais
possibilidades de voltar à verdade, uma vez difundida
a luz, porque em geral não há em seu seio interesses
contrários aos da maioria e que lutem contra a razão. Mas
a democracia só pode obter a verdade da experiência,
e muitos povos não seriam capazes de aguardar, sem
risco, os resultados de seus erros.
O grande privilégio dos americanos não é pois apenas
serem mais esclarecidos do que os outros, mas também
terem a faculdade de cometer erros irreparáveis.
Acrescentem a isso que, para tirar facilmente proveito da
experiência do passado, é preciso que a democracia já
tenha alcançado certo grau de civilização e de luzes.
Vemos povos cuja educação inicial foi tão viciosa e cujo
caráter apresenta tão estranha mescla de paixões, ignorância
e noções erradas de todas as coisas, que seriam incapazes de
discernir por si sós a causa de suas misérias; eles sucumbem
sob os males que ignoram.
Percorri vastas plagas habitadas outrora por poderosas
nações indígenas que hoje já não existem; habitei em tribos
43
Idem, ibidem. p. 187.
38 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

já mutiladas, que cada dia veem decrescer seu número


e desaparecer o esplendor de sua glória selvagem; ouvi
esses mesmos índios preverem o destino final que estava
reservado à sua raça. No entanto, não há europeu que não
perceba o que seria necessário fazer para preservar esses
povos infortunados de uma destruição inevitável. Mas eles
não veem; sentem os males que, cada ano, se acumulam
sobre suas cabeças e perecerão, até o último homem,
rejeitando o remédio. Seria necessário empregar a força
para forçá-los a viver.
Ficamos espantados ao perceber as novas nações da América
do Sul se agitarem, há um quarto de século, em meio a
revoluções sempre renascentes, e cada dia esperamos vê-
las entrar no que se chama seu estado natural. Mas quem
pode afirmar que as revoluções não são, em nosso tempo,
o estado mais natural dos espanhóis na América do Sul?
Nesses países, a sociedade se debate no fundo de um abismo
do qual seus esforças próprios não podem fazê-la sair.
O povo que habita essa bela metade de um hemisfério
parece obstinadamente apegado a dilacerar suas entranhas;
nada poderia desviá-lo disso. O esgotamento se faz, por um
instante, cair no repouso, e o repouso logo o manda voltar a
novos furores. Quando o considero nesse estado alternante
de misérias e crimes, sou tentado a crer que para ele o
despotismo seria um bem.
Mas estas palavras nunca poderão estar unidas em
meu pensamento. 44

Assim, a sobrevivência da democracia subsiste não só pela providência,


mas pelo cultivo de leis e costumes, e na possibilidade de conjuminar
interesse privado com virtude pública, dada pela igualdade de condições e
pela transposição de valores religiosos para a esfera pública. Isto é, segundo
Tocqueville, o estabelecimento de uma ideia de liberdade e de democracia,
fundada em costumes advindos da crença que, em última instância, molda o
caráter austero e argumentador que formará a tradição da federação, de seu ar
familiar45. Sem pobres nem ricos, através da preocupação com a manutenção,
a ordem, a moral e os bons costumes, fora possível criar um determinado
tipo de intervenção do povo nas coisas públicas, que nascera do espírito de
comuna, uma inovação no que tange à existência política.

44
Idem, ibidem. p. 262. Vide ainda as referências feitas pelo autor no sentido da contraposição sul-americana
nas páginas 328, 360, 393, 466.
45
Idem, ibidem. p. 37 e 38.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 39

Note-se que Tocqueville retoma postulações introduzidas por Thomas


More, acreditando no princípio moral na e para a virtude cívica. Postula-
se, por isso, como um dos mais importantes “moralizadores” modernos
ao estabelecer a continuidade entre moral privada e moral pública: uma
compreensão moderna da virtude, em que há direto entrelaçamento entre a
questão social e a virtude46 e entre esta e o espírito religioso. Uma virtude que,
por princípio, depende tanto da fé como do labor47.
Os recortes que Alexis de Tocqueville faz para apresentar seu relato de
América aos leitores omitem desigualdades e a própria violência de conquista
evidentemente reinantes no séc. XIX na república puritana, que pretende ter
retomado valores cristãos primitivos. Estes valores, que, como pode ser visto,
estavam presentes na ilha de More, tiveram, também em Alexis Tocqueville,
o pressuposto de que a harmonia política se prende à ácida crítica aos desvios
da sociedade moderna, especialmente da vida política e social. Num caso a
inglesa, no outro a francesa e o contraponto com a América Latina.
Em desacordo com More, entretanto, não há questionamento em
Tocqueville sobre a propriedade privada. Enquanto em Utopia as terras eram
comunais, em Tocqueville, o acesso à terra e a inexistência de grandes riquezas
nos Estados Unidos (sic) é que tornavam possível a harmonização de interesses
através da fé. Diferentemente do mundo dos oligarcas fundados por espanhóis,
segundo ele, nos Estados Unidos erguia-se como uma sociedade em que o valor
não era a riqueza, em que os ricos são soberanos e os pobres não participam48.
Em consonância com os princípios da fé e, por conseguinte, com acesso
livre à riqueza, os norte-americanos teriam tido as bases ideais para poder criar
um sistema político que garantisse o exercício da democracia política. Uma
realização quase que utópica para a complexidade do mundo contemporâneo.
Se resolvida a questão social49, portanto, as fundações das instituições
políticas norte-americanas puderam apontar em direção à democracia.
Entretanto, a consideração feita por Hannah Arendt (1906-1975) ao dizer que
“se nos lembrarmos de que a existência de questão social no cenário americano
era, no final das contas, bastante ilusória, e a miséria abjeta e degradante estava
presente em toda a parte, na forma da escravidão e do trabalho dos negros”,50
46
MORE, Thomas. Op. cit.
47
A religião levaria às luzes, e a observância das leis divinas é que leva os homens à liberdade. Vide página
50 de A democracia na América.
48
Neste particular é interessante observar como os estudos históricos e políticos falam genericamente de
oligarquias para definir o poder político na América Latina, desconhecendo diferenças e a própria história
das lutas políticas.
49
Enquanto miséria e escassez e não enquanto pobreza.
50
Idem, ibidem. p. 56.
40 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

abre-se uma trilha de reflexão em que o resgate de conceitos fundamentais


que se diferenciam enormemente, como liberdade e libertação e de como a
apropriação do espaço público pelas chamadas questões sociais, que, desde
Aristóteles (384 a.C – 322 a.C), vinham desempenhando importante lugar de
estopim para a libertação, dando lugar ao interesse materialista ou, melhor,
exercendo motivação quando os homens começaram a duvidar de que a
pobreza fosse inerente à condição humana, vieram a confundir aquilo que se
pensou sobre o Novo Continente.
Nesse sentido, se a colonização da América teria sido “um grandioso
projeto da Providência para a iluminação dos ignorantes e a emancipação da parte
escravizada da humanidade em toda a terra”51, uma vez que o sucesso do novo
mundo tornava visível a inadequação da afirmativa de que a extinção da miséria
seria contrária aos desígnios naturais da humanidade, o que se viu construir, em
nome da fé, ou mesmo de Deus, já que ao cunhar em sua moeda o famoso “In God
we trust”, o princípio de liberdade política tinha componentes complicadores.
O primeiro desses componentes complicadores é que esta noção de
libertação que seria o impulsionador da liberdade da vida no Novo Mundo52
passou a ser lida ao longo da história, particularmente depois da obra de
Tocqueville, como se estivesse restrita unicamente aos Estados Unidos,
lugar que conseguira significar a projeção utópica de um mundo fundado
em valores e virtudes morais distintos dos da América Latina. O puritanismo
dos colonizadores traria em si a contraposição necessária aos princípios
decadentes do catolicismo que haviam influenciado uma espécie de frouxidão
latino-americana no que tange à ideia de bem cuidar dos negócios públicos.
Esta é uma espécie de contradição em termos do que a opção pela república
secular significa, na medida em que os norte-americanos conservaram muito
depois do início revolucionário, não só através da retórica, a necessidade
de conservação de princípios religiosos como garantia da virtude cívica,
mesmo que, como pondera Arendt ao chamar para si Locke (1632-1704),
um dos inspiradores dos founding fathers, que este recurso a Deus não tenha
sido inspirado em sentimentos de religiosidade, mas pelo desejo de fugir à
dificuldade de fazer a tarefa última de uma revolução em encontrar um novo
início, como novo absoluto, e que se colocava em contraposição à antiga
autoridade absoluta, outorgada por Deus.53 Algo que deveria cessar, mesmo
porque, citando Hannah Arendt:
51
ARENDT, Hannah. Da Revolução. Citação de John Adams feita mais de uma década antes da Revolução
Norte-Americana, citada pela autora. Cf.: p. 18
52
Como destaca Arendt em sua argumentação sobre o papel revolucionário da Independência norte-americana.
53
Vide a este respeito: ARENDT, Hannah. Da revolução. Op. cit., p. 31.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 41

esta última parte – encontrar um novo absoluto para


substituir o absoluto do poder divino – é insolúvel, pois
o poder, sob a condição da pluralidade humana, nunca
pode atingir a onipotência, e leis que se baseiam no poder
humano nunca podem ser absolutas.54

A ideia de que o puritanismo teria resgatado os princípios primeiros do


cristianismo em relação ao próprio comunitarismo, ou ao bem comum, como a
própria moeda norte-americana passou a cunhar,55 e estava iluminado – através da
recuperação dos valores morais do trabalho,56 como virtude – pelo Senhor. Sem
aderir a qualquer tipo de sincretismo religioso, a projeção que os norte-americanos
criaram sobre si mesmos – e que foi reforçada fortemente por Tocqueville – era
também a de que, como chama atenção Hannah Arendt, o papel abjeto reservado
aos escravos não poderia ser levado em conta nesta noção de democracia que
defendiam, porque esta parcela da população, embora estivesse comprometida
com o trabalho, era uma espécie de não população, uma vez que não introjetara as
noções de cristandade familiar trazidas pelos colonizadores e seus descendentes.
Portanto, seriam incapazes de realizar este novo absoluto.
Assim sendo, descartada a questão da escravidão como agente
impulsionador revolucionário – porque ela simplesmente não existia enquanto
questão –, o que interessava aos norte-americanos não era a resolução da questão
social, mas a procura de uma nova forma de governo que trouxesse a liberdade.
Um segundo complicador era a violência pela qual o território norte-
americano fora conquistado, já depois de amadurecido o seu processo de
independência, principalmente no século XIX. A onipotência demonstrada
nesta violenta ocupação se justificava como uma espécie de mão de ferro
da democracia porque fazia crer ser imprescindível o aumento do espaço
territorial a fim de que houvesse uma expansão para a realização da justeza
dos princípios cívicos revolucionários. Neste sentido, a continuidade de
uma leitura negativa sobre o restante dos habitantes do Novo Continente
era instrumentalizada para justificar o estender da realidade utópica a
outros territórios, de maneira irreversível. Daí a justificativa do bem (God),
representada pela república norte-americana, contra o mal (Evel), os outros,
tornar-se a inversão drástica de uma Revolução que, em seu princípio, não
estava calcada na bondade natural de um povo,57 embora tivesse contado
54
Idem, ibidem.
55
In God we trust.
56
Onde Adam Smith tem papel de destaque como inspirador.
57
No caso da Revolução francesa, os desvios que levaram a seu fracasso estavam amplamente ancorados
na crença “da bondade natural de uma classe”. Cf.: ARENDT, Hannah. Da Revolução. p 72.
42 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

com ela, mas que havia se comprometido com a implantação da liberdade e


de instituições duradouras.
A felicidade pública de que fala Arendt, portanto, em seu Da
Revolução, que pressupunha o saber dos norte-americanos de que “a liberdade
pública consistia em haver participação na gestão pública, e que as atividades
ligadas a essa gestão não constituíam, de forma alguma, um ônus, mas davam
àqueles que as exerciam em público um sentimento de felicidade que não
usufruíam em nenhum outro lugar”,58 era o pressuposto com que trabalhavam
os norte-americanos.
A ênfase dada aos norte-americanos para a felicidade pública,59 então,
como possibilidade de participação nos negócios públicos, pressupõe que haja
uma certa uniformidade na diferença. Isto é: estava reservada a participação
na esfera pública aos que, em última análise, comungassem dos princípios
que “nossos ancestrais, quando deixaram os domínios ingleses na Europa”,
exerceram “um direito que a natureza conferira a todos os homens [...] de
estabelecer novas sociedades, segundo leis e regulamentos que lhes parecessem
mais apropriados para promover a felicidade pública”, segundo as palavras
de Thomas Jefferson (1743-1826).60 Estes princípios eram os mesmos que
por um lado asseguravam a experiência revolucionária para a modernidade de
tornar os homens livres e que por outro lado excluíam parcelas significativas
da população norte-americana para este mundo da plena liberdade.61 Ao
mesmo tempo, estes princípios conferiam apenas para si, os Estados Unidos,
na contraposição que estabeleceram com o restante do continente americano,
o direito de estabelecer a verdade de que seriam os depositários da liberdade,
fato fundamentado pela Doutrina Monroe, em 1823,62 apenas 27 anos depois
da declaração de independência das treze colônias.63
Esta vida diferenciada no Novo Continente elegia, assim, para os
Estados Unidos, vários dos pressupostos da utopia como fundantes de uma
nova vida. Neste sentido, o espírito da vida comunitária pelo bem comum era
o pressuposto para a felicidade pública e privada também, daí o direito “`a
vida, à liberdade e à propriedade”. Mas ia além, na medida em que construía

58
ARENDT, Hannah. Da Revolução. p 95.
59
Ou do direito de acesso à esfera pública por seus cidadãos.
60
THOMAS JEFFERSON. In: A summary view of the rigths of British America, 1774. The Life and
Selected Writings, edição Moddern Lybrary, p 293. Citado por Arendt Hannah. Op. cit., p. 101.
61
Como os negros, os índios e os imigrantes não protestantes.
62
A Doutrina possibilitou promover o “destino manifesto” dos Estados Unidos e, através dele, incorporar
o Oregon, em 1845, e, em 1848, terras que hoje fazem parte dos estados do Novo México, Arizona e
Califórnia, apenas para falar do século XIX.
63
Quatro de julho de 1776.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 43

para os norte-americanos a nítida noção de que sua organização política era


igualmente uma espécie de ilha utopiana, reino da felicidade e, portanto, da
liberdade, segundo seus pressupostos, só que não em lugar nenhum, como
idealizara More, mas numa projeção de América como o lugar do realizável em
contraponto ao Velho e ao restante do Novo Mundo. O lugar, por excelência,
dos direitos civis no interior do corpo político. O lugar, por excelência, de um
isolacionismo ao estilo utopiniano.64
Mesmo que as revolucionárias realizações norte-americanas tenham
objetivado perspectivas igualmente revolucionárias para a organização
política da modernidade e da contemporaneidade, como quer destacar Arendt,
a exclusividade oferecida à inclusão na participação da esfera pública aos
eleitos como iguais – ou seja, àqueles que comungavam dos princípios em
que a fé em Deus era o pressuposto para a virtude cívica – oportunizou a
preservação, a incitação e as justificativas à intolerância. Em primeiro lugar,
porque excluíram da esfera pública, em graus variados, os negros, os índios,
os mexicanos vencidos pela violenta conquista do território, os imigrantes do
final do século XIX e início do XX, os defensores de ideologias de esquerda
e os novos imigrantes latino-americanos, que convencionaram estigmatizar
como “hispânicos”. A eles foi negado o direito à felicidade pública e ao
pertencimento em sua utopia.
Em segundo lugar, porque fomentaram a intolerância em um surpreendente
e novíssimo modo de estender seus domínios políticos, primeiro sobre o continente
americano, no início do século, e depois sobre o restante do globo. Uma expansão
salvaguardada na crença de que, portadores da verdadeira virtude, caberia a eles
preservar, em nome desta virtude e de Deus, os caminhos da Humanidade.
Não seria por acaso que Hannah Arendt iniciaria seu On Revolution65
discutindo o conceito de Revolução e dando a ele o sentido de um novo
início.66 Mas também não seria por uma acaso que o livro fora escrito para
encenar uma espécie de advertência: o perigo que ocorria com a República67
64
Uma reação cujo simbolismo apresenta-se de forma muito drástica no fato dos colonos fazerem questão
de sacudirem dos pés o pó que traziam da Europa ao desembarcarem no Novo Mundo.
65
Sua primeira publicação é de 1963.
66
Neste particular, a autora contesta as teses de que o movimento de independência das colônias teria sido
apenas uma guerra de separação com a Inglaterra. Ao contrário, insiste em que os princípios de liberdade que
foram estabelecidos e a própria busca desta liberdade e da felicidade foram definitivamente revolucionários.
67
Nas palavras da autora: “as noções revolucionárias de felicidade pública e de liberdade política jamais
desapareceram totalmente do cenário americano; elas se tornaram parte integrante da própria estrutura
do corpo político da república. Se essa estrutura possui uma base granítica, capaz de suportar as fúteis
artimanhas de uma sociedade voltada para a abastança e para o consumo, ou se cederá ante a pressão da
riqueza, como as comunidades europeias capitularam sob o jugo da descrença e do infortúnio, é algo que só
o futuro pode dizer. Existem hoje tantos sinais que justificam a esperança, como há indícios que infundem
o medo”. Cf. ARENDT, Hannah. Da Revolução. P. 110.
44 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

que pretendera dar um novo sentido e vida à esfera pública – ou ao que ela
chamava de “revolução significativa” – e as implicações para o homem
como um ser político e seu papel na história moderna.68 As advertências, sem
dúvida, estavam refletidas no que aqui apontamos como questões de exclusão
e de preservação, incitação e justificativas à intolerância.69 Até porque, para
Hannah Arendt, a aposta em um novo começo estava na vitalidade e na
liberdade política e na libertação da abjeta miséria. Não em nome de Deus,
como princípio, ou por Ele, mas em nome dos Homens. Não em contraposição
entre nações, ou da estigmatização, mas na esperança na esfera pública e no
pleno exercício da política – jamais enquanto utopia –, já que somente a
política é capaz de colocar o mundo de ponta cabeça ao mostrar, via oposição,
diálogo e pluralidade, a insensatez da humanidade.

68
Vide a este respeito as repercussões de On Revolution. In: YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah
Arendt: por amor ao mundo.
69
Talvez até, como chama a atenção Arendt, porque a ambiguidade de saber se a revolução deveria ter um
governo cuja finalidade seria a prosperidade ou a liberdade, sempre esteve em questão. Vide ARENDT, H.
Da Revolução. p. 109.
Pesadelo, exotismo e sonho
46 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

“Por maiores que sejam as diferenças, as particularidades


de outros homens ou outros povos, sempre haverá algo
que seja comum a todos. Este algo deverá ser o ponto de
partida de toda a compreensão”.
Leopoldo Zea (1912-2004)

A s várias construções sobre a América, o Novo Mundo, encerram,


de uma forma geral, projeções que poderiam ser circunscritas sob um eixo
principal: o do desejo. Mas de um desejo que se projeta primeiro em sonho,
depois em exotismo e pesadelo. À primeira vista, estes componentes de
projeção que perfazem esta vontade de possuir – a utopia – poderiam ser
tidos como antagônicos entre si. Com ser sonho e pesadelo, realidade de uma
terra alcançada, e exotismo ao mesmo tempo? Complexas, estas construções
de projeção por sobre a América encerram um dos princípios primários do
comportamento humano, veneração e horror ao mesmo tempo: totem e tabu70.
Assim, longe de se constituírem como um todo antagônico, estas três
projeções complementam-se e fundem-se como um amálgama indissolúvel. O
desejo, sob o qual todas elas se agrupam, manifesta a vontade de possuir. Tem
o significado do totem. Uma projeção de prazer que o continente descoberto
exercia enquanto foco de atração irresistível para a aventura, para a riqueza e
para a lascívia. Uma busca de liberdade perante o suplício da Europa miserável
e autoritária,71 daí o sonho, a utopia, a projeção no futuro.
Mas também um pesadelo, não pela razão que queria Leopoldo Zea
ao qualificá-la como fruto do demônio aos olhos do recente conquistador
seiscentista,72 mas porque mais e mais a América ao longo dos séculos, ou
mais especificamente a América Latina, se construiu, ao invés da utopia
paradisíaca, como o lugar da dificuldade, da pobreza e da miséria, onde sonhos
se transformaram em pesadelos, onde se criavam novos e se reproduziam
horrores europeus: uma América da (des)ilusão; uma América que se construiu
enquanto estranhamento, enquanto exótico, não mais enquanto utopia. Se
a utopia pressupunha a razão, ou seja, a libertação do ódio e das agruras
europeias, esta América era lida cada vez mais como o antídoto da razão e da
vontade, não na inserção de sua existência pré-colombiana, mas na inclusão
de sua dinâmica ao longo dos últimos cinco séculos da história universal.
Por isso, sobre os que passaram a ser chamados de párias americanos (os
seus habitantes) e sobre este exotismo enquanto diferença, se reservaram
70
A este respeito, ver FREUD, Sigmund. Totem e tabu.
71
Ou, como sugere Zea, como necessidade de um continente cansado de sua história. Cf. ZEA, Leopoldo.
América como consciência, pp. 44 e 45.
72
Idem, ibidem, pp. 68 e segs.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 47

construções políticas que não a viam e não a veem como Novo Mundo, já que
o novo deveria carregar em si a ideia de recomeço, ou mesmo de simbiose
e de extensão em relação ao Velho Mundo; ao invés disto, construiu-se algo
que se constituiria no imaginário destas construções políticas como a América
enquanto representativa do verdadeiramente velho, no sentido de ultrapassado,
de pesadelo, de estranhamento, de antiparadisíaco.
Se um dos fatores provocativos deste sentido de estranhamento é
justamente a construção de uma América como sinônimo de atraso – e daí de
algo ou de algum lugar que não se aceita como adequado ou como digno de
vir à luz –, não admira que toda a América e sua cultura intelectual tenha sido
classificada como “fora de lugar”, sincrética ou como estabelecia, em meados
do século XIX, o argentino Esteban Echeverría (1805-1851), um inspirado
em Saint Simon (1760-1825) e Pierre Leroux (1798-1871)73, que em ciência
poderíamos seguir a Europa, “em política não; nosso mundo de observação e
aplicação está aqui (...). Apelar para a autoridade dos pensadores europeus é
introduzir a anarquia, a confusão, o embrolho na solução de nossas questões”74.
Entenda-se: como dar legitimidade ou reconhecer pensamento em um
lugar que se sente como de estranhamento?
Sentir-se, portanto, a América a partir da estética, de perceber o
outro, tal qual definida por Freud ao refletir sobre o estranho (unheimlich)75,
é assumir que o unheimlich é apresentado de certa forma como assustador,
estranho, exótico, porque, na verdade, deixou de ser familiar (heimlich),
assimilável, e que, embora devesse permanecer secreto, acabou por vir à luz
e trazer à tona significados secretos capazes de produzir esta sensação de
estranhamento (Unheimlichkeit)76.
De certa forma, Colombo antecipara esta postura de alteridade do e
em relação ao homem americano. É como sugere Todorov (1939) ao analisar a
relação do descobridor do Continente com os selvagens e afirmar que Colombo
constrói simultânea e ambiguamente dois tipos de relação perante o “outro”:
ou pensa que os índios “são seres completamente humanos, com os mesmos
direitos que ele, e aí os considera não somente iguais, mas idênticos, e este
comportamento desemboca no assimilacionismo, na proteção de seus próprios
valores sobre os outros; ou então parte da diferença, que é imediatamente
traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente
73
Sobre Echeverría (1805-1851), que fazia parte do que passou a ser conhecido como a geração de 37, ver
o estudo de Lígia Prado: América Latina do século XIX: tramas, telas e textos.
74
In: ZEA, Leopoldo. Op. cit., pp. 89 e 90. A confusão e dificuldade estavam no caos das ideias importadas.
75
Isto quer dizer, não simplesmente como teoria da beleza, mas da teoria da qualidade do sentir.
76
Cf.: FREUD, Sigmund. “O estranho”, pp. 233-273.
48 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

são os índios os inferiores): recusa a existência de uma substância humana


realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si
mesmo”. E – complementa a ácida crítica de Todorov – estas duas figuras
básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo77.
Assim, de uma certa forma, as palavras do peruano Mariátegui
(1895-1930)
Pelos caminhos da Europa encontrei o país da América
que havia deixado e no qual havia vivido quase como
um estranho e ausente. A Europa revelou-me até que
ponto eu pertencia a um mundo primitivo e caótico e,
ao mesmo tempo, me impôs e me esclareceu o dever de
uma tarefa americana. 78

não fogem muito do pensamento desenhado por vários autores ao longo da


construção de pensamento sobre a América Latina ou, como querem alguns, da
América Ibérica: conseguir reconhecer-se apenas a partir da exterioridade em
relação ao Velho Mundo. Ser tido e se assumir como estranho79, não mais porque
índio, como definido por Colombo, mas como latino-americano. Um exercício de
construção política difícil de entender se partirmos de um outro pressuposto: o de
que não somos mais do que um lugar de simbiose histórica. Enquanto construção
da América, enquanto fruto da diáspora europeia, somos o mesmo, não o outro.
Era também assim, de uma visão integrante, que Hannah Arendt
partiria para finalmente lançar, em 1963, nos Estados Unidos, o seu On
Revolution. Um estudo sobre a independência americana que ela resolvera
ousadamente batizar de Revolução. Era originado de uma série de palestras
dadas em Princeton, no mês de abril de 1955, e foi retrabalhado durante o ano
de 196080. Este estudo carregava em si, além da peculiar crítica da autora à
banalização das ideias de democracia, como já vimos, princípios de análise
que evidenciavam não só a aposta em um novo começo, como o aviso sobre a
perda da herança democrática deixada pelos pais fundadores norte-americanos:
a ênfase na diferença crucial existente entre liberdade e libertação. Neste
ponto, especificamente, Arendt deixou transparecer os princípios díspares
77
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro, pp. 41 e segs.
78
MARIÁTEGUI, José Carlos. El alma matinal. Lima, Ed. Amauta, 1972. In: MORSE, Richard M. O
espelho do próspero: cultura e ideias nas Américas. p. 105.
79
Na primeira metade do século XIX, Domingo Faustino Sarmiento, no exílio em Santiago, já denunciava
o chileno André Bello por ser demais classicista e somava-se ao também chileno José Vittorio Lastaria no
sentido de chamar por uma literatura indígeno-americana, para que se quebrasse com hábitos coloniais de
pensamento. Cf.: HERING, Hubert. A history of Latin America.
80
BRIGHTMAN, Carol. Entre amigas. A correspondência de Hannah Arendt e Mary McCarthy (1949-
1975). pp. 80 e 109.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 49

que teriam guiado a independência americana e os modelos de “revolução


latino-americanos”, muito mais engajados na libertação do que na liberdade.
Portanto, muito menos utopia81.
As afirmações de Arendt eram contundentes e partiam da premissa
de que as condições alarmantes de miséria das massas, tão importantes para
a Revolução Francesa, não exerceram qualquer influência na Revolução
Americana,82 já que há muito o novo continente havia se transformado “em
um refúgio, um ‘asilo’ e um ponto de encontro de pobres” que construíram
neste novo mundo uma vida em que a questão social, ou seja, os problemas
gerados pela miséria, não tinham mais lugar, já que a miséria simplesmente
fora extinta, provocando uma mudança radical das condições sociais no
mundo moderno:
Se fosse verdade que nada mais estava em jogo nas
revoluções da Idade Moderna do que a mudança
radical das condições sociais, poder-se-ia então dizer
que a descoberta da América e a colonização do novo
continente constituíram suas origens – como se a
adorável igualdade que surgiria naturalmente, e como
que organicamente, no Novo Mundo, só pudesse ser
conseguida, no Velho Mundo, através da violência e da
sangrenta revolução.83

Era, segundo Hannah Arendt, pode-se dizer, a própria concretização


de sonhos utópicos realizados. Malgrado todos os enfrentamentos que Arendt
encararia devido à sua postura simpática em relação à revolução burguesa
norte-americana, em plena Guerra Fria e em pleno incentivo da CIA no sentido
que o debate entre intelectuais americanos e europeus solapasse a simpatia aos
soviéticos no Ocidente,84 ela recuperava, na verdade, uma velha discussão do
continente americano nos séculos XIX e XX sobre o sentido e as formas de
governo. Muito impressionadas por pensadores como Tocqueville, Hobbes
(1588-1679), Locke e Rousseau (1712-1778), as lideranças dos movimentos
de libertação das colônias americanas tinham em pauta a necessidade de debate
sobre aquilo que acontecera no final do século XVIII na colônia inglesa – que
se transformaria nos Estados Unidos –, a fim de construírem um arcabouço de
interpretação e um projeto para suas próprias realidades.
81
Uma incômoda afirmação em uma década em que a América Latina ainda era tida como lugar de esperança para
a concretização das revoluções libertárias de esquerda, um resquício de projeção das velhas utopias fundadoras.
82
ARENDT, Hannah. Da revolução. p. 20.
83
Idem, ibidem.
84
SAUNDERS, Frances Stonor. Op. Cit.
50 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Também no Brasil se reiterava este debate, acometido da discussão


da forma e do sentido dos governos, não apenas porque se declarara o país
independente de Portugal, mas porque ele sofrera, ao longo do regime
imperial, no transcorrer de quase todo o século XIX, dos impulsos em direção
à institucionalização do regime republicano.
Assim, a longa, torturante, preconceituosa e esquizofrênica
polêmica em torno do meio e da raça como os verdadeiros definidores do
perfil cultural nacional brasileiro e de comportamento nas esferas pública
e privada tentava estabelecer, em verdade, os parâmetros sob os quais os
aspectos de exercício de poder deveriam estar circunscritos e por onde
poderia e deveria caminhar a nação. Ou seja, primeiro era preciso construir
a nação, e este passo só poderia ser dado com as garantias do território
e de uma raça capaz de vencer os desafios do Novo, quer no sentido de
um recomeço para uma civilização alijada da Europa, quer no sentido do
novo como um Novo Mundo mesmo, como numa utopia. E não seria por
um acaso a iniciativa de D. Pedro II (1825-1891), imperador do Brasil,
amigo próximo e admirador de Gobineau (1816-1882),85 de apadrinhar o
Instituto Histórico Geográfico do Brasil (1838) e incentivar pesquisas de
fundamentação histórica, geográfica e antropológica que, em sua maior
parte, buscavam o “sentido” da nacionalidade e da raça86.
Tidos como atrasados, porque enredados em seus problemas de
ordem social, esta América Latina e este Brasil começaram, especialmente
a partir do século XIX e nas proximidades do XX, e daí em diante, a ser
refletidos politicamente: estavam distantes daquilo que Arendt imputava
como sendo o legado mais importante dos pais fundadores, ou founding
fathers – os princípios de liberdade e a criação de esferas múltiplas para o
exercício da cidadania e da preservação do direito à diferença. Esta restante
América estaria, nos séculos XIX e XX, atolada e comprometida com o
fazer revolucionário, ou seja, com as lutas de libertação. A libertação que
visava à garantia dos direitos civis: da vida, do fim da penúria e do medo.
Isto é, do estabelecimento apenas da condição para a liberdade e não da
liberdade propriamente dita.
Reflexões intelectuais acerca do Brasil e da América eram abundantes
entre homens envolvidos na vida pública. Elas se constituíam como o
85
O diplomata francês Gobineau foi chefe de Gabinete de Alexis de Tocqueville e, dentre outros cargos,
embaixador francês no Rio de Janeiro (1868). Seu trabalho, Essai sur l’Inegalité des races humanes (1853-55),
teve grande repercussão no mundo inteiro e, naturalmente, no Brasil. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
fundado em 1838, tinha como meta coligir e organizar a memória brasileira, histórica e antropologicamente.
86
Cf.: SANDES, Noé Freire. A invenção da Nação. Entre a Monarquia e a República.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 51

direcionamento político que eles pretendiam encetar. Em praticamente todas


estas discussões, apesar de suas matizes diferenciadas, a problemática de
raça e do meio se apresentava como fundante para o futuro do continente
e de suas nações. Mas apresentava-se como fundante, a bem da verdade,
porque mascarava o lugar onde a discussão da raça e do meio se justificava
teoricamente: a crença em uma ciência infalível, sinônimo de verdade e
produtora de saber incontestável, que impunha a causalidade da raça e do meio
para justificar, em última análise, a exclusão social e política e os problemas
de violência e miséria.
Se o sentido original do bom selvagem era o antídoto do homem
europeu embrutecido, como queria Rousseau, quem poderia construir uma
nova civilização no lugar que originariamente havia sido escolhido como
ideário utópico ao pressupor-se, durante o séc. XIX e parte do XX, que
caracteres raciais seriam determinantes da vontade? Partia-se da constatação
de que esta América conturbada, estranha e exótica, transformara-se muito
mais em purgatório do que em paraíso: lugar dos párias. Havia-se doravante
de, definitivamente, soterrar a herança barroca – se é que ela existia em sua
generalização mais superficial de representar a imposição ibérica do barroco,
como contrarreforma, da fé contra a razão, da fé contra a ciência. Daí o
entusiasmo em relação às ideias de Tocqueville. Havia-se igualmente de
superar os impasses de estigmas de ordem científica generalizados pelo Conde
de Buffon (1707-1788) de que tanto a natureza animal quanto os homens
americanos seriam inferiores frente ao europeu.87
Tentar consertar um eixo de caminho para que esta realidade purgatorial
fosse contornada fazia com que, recorrentemente, vários autores buscassem a
estratégia romântica do retorno ao mito fundador da nação e da peculiaridade
de sua formação. A implicação era óbvia: se em quase todos estes pensadores
o mal de origem encontrava-se na própria história da colonização,88 somente
uma ação consciente (do Estado ou da ciência) poderia reimprimir um
direcionamento ao povo, na forma de seu comportamento, e à nação como um
todo, na forma de sua administração. A recorrência ao mal de origem estava
assim intimamente ligada à busca de elaboração de imagens identitárias que
87
Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900).
88
Em seu trabalho, sobre Oliveira Vianna, M. Stella M. Bresciani discute vários autores que trabalham o
recorte da identidade nacional brasileira. Ressalta a dimensão mitológica na criação das identidades, o
seu viés romântico de raça e língua a fundirem-se na mística de pátria e nacionalidade, e como os meios
racionais e irracionais mobilizados a fim de provocar emoções e através delas adesão individual e coletiva.
In: BRESCIANI, M. Stella M. O Charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre
intérpretes do Brasil. Especialmente p. 24 e segs. Esta revisitação ao passado colonial como gênese e
origem é também recorrente aos intelectuais latino-americanos já no séc. XIX.
52 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

imprimissem sentido ao passado que se construíra como vistas a um projeto


de futuro: uma espécie de naturalização da identidade pelo nascimento em
dado território.89 Corrigir-se-ia através da busca do entendimento do passado,
a trajetória histórica que se desviara do sentido positivo de realização utópica.
Em vários autores com matizes diversas e até conflitantes, a percepção
do sentido original dado pela criação ou, melhor, pela colonização, tornar-se-ia
determinante. Num livro que foi recolhido pela polícia ao ser lançado em São
Paulo, no ano de 1893, por exemplo, Eduardo Prado (1860-1901), simpatizante
incansável do exotismo que representaria a forma republicana e “materialista” de
governo para o Brasil, explicitava suas teses. Monarquista, Eduardo Prado era
taxativo ao afirmar que teríamos muitas “razões para detestar essa Constituição
exótica [a republicana], copiada de uma raça estranha [a norte-americana], sem
raízes, nem antecedentes históricos entre nós (...) e que entrega a sorte dos Estados
a tiranos locais, Castilhos e Barbosas Limas90”, seguidores de ditames materialistas
positivistas. O argumento definitivo do autor era o de que se os Estados Unidos
estavam se constituindo como potência mundial era em virtude do fato de ser o
país mais rico do mundo em recursos naturais e de ter “povoado um solo destes
pela raça saxônica”. Assim, não seria grande em virtude de seu governo91, mas da
raça e do meio, já que “o solo não se pode trocar, a raça não se pode substituir,
mas, em todo o tempo, é possível mudar o governo”92. O jornalista usava ainda
do desprezo dos americanos do norte contra a América Latina, reproduzindo o
sarcasmo, para ele merecido, dos irmãos do norte:
No último número da Harper’s Magazine, a grande revista
americana, vem a relação de uma viagem feita por três
americanos, através das repúblicas espanholas. Entre
outras regiões, visitaram eles a colônia inglesa de Belise,
na América Central, e a seu despeito escreveram: “a única
vez, nesta viagem, em que nos sentimos tão livres, como
se andássemos em Nova Iorque, foi quando nos achamos
debaixo da proteção da odiada monarquia inglesa, em
Belise. Nunca vimos sinal de liberdade em nenhum dos
desorganizados acampamentos militares, que, na América
89
Vide, também, a este respeito, o já citado trabalho de Bresciani, especialmente página 217 e segs.
90
PRADO, Eduardo. Collectaneas (artigos), Volume II. Referência a Júlio de Castilhos (1860-1903),
presidente da província do Rio Grande do Sul, estado fronteiriço com a Argentina e o Uruguai, no extremo
sul do Brasil, e que levou a alguns extremos a leitura positivista para a organização de um estado republicano.
Positivismo execrado por Eduardo Prado, defensor da religião como guia de bondade nas nações. Alexandre
José Barbosa Lima, por sua vez, político influente, foi presidente da província de Pernambuco entre 1892
e 1896 e tio de Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), jornalista e intelectual influente no Brasil, deputado,
governador de Pernambuco entre 1948 e 1951.
91
A forma republicana que, na visão de Prado, acabara por destruir os princípios legítimos dos pais fundadores.
92
PRADO, Eduardo. A ilusão americana, pp. 170 e 171.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 53

espanhola, têm a alcunha de repúblicas livres. O cidadão


dessas terras está tão preparado para a forma republicana
como para fazer uma expedição ao pólo norte”.93

O exotismo a que se referia o monarquista partia de um princípio


galgado na determinação do império da raça sobre o meio e no fato de que
a própria noção de república estaria impregnada de exotismo, de imitação,
uma vez que existiria uma vontade incontestável: da Europa é que partiriam
sempre “a luz e o pão do espírito” – e por uma questão de colonização,
Europa também incluiria Estados Unidos.94 Daí a naturalidade de se adotar
a monarquia para o Novo Mundo, já que, por definição, a escolha norte-
americana é que seria estranha.
Aqui a questão do exótico toma seu real sentido: só poderia ter
surgido do estranho, do original, fruto de uma raça e de um meio diferentes
das dos americanos do norte. Uma mistura sui generis, que seria a-histórica.
Quanto ao determinismo biológico, resultante da simbiose de raças, de tão
idiossincrático, teria resultado nos arranjos de originalidade – ou cópia; pode-
se dizer de cópia malfeita ou “fora do lugar” (imitação, segundo palavras de
Prado) –, que faziam com que a preocupação latente de olhar a América ou
o Brasil fosse não a de encontrar a sua história, mas de pensar sua evolução.
A presença agora de um Estado laico, que havia se tornado, com a
Proclamação da República, em 1889, independente da Igreja, revoltava Eduardo
Prado.95 Não admitia a organização materialista do Estado e do governo e
refletia, em seus escritos, a tradição de formação ibérica em que se pensava
que a Igreja seria o corpo místico, enquanto o Estado, o corpo político e moral:
ambos indissociáveis96. No corpo político e moral, o peso da tradição, da
raça, que dependendo de sua constituição poderia caminhar no sentido mais
ou menos positivo de princípios organizadores do corpo político. Que, para o
monarquista Prado, sem dúvida, não poderia nunca ser republicano, uma vez
que esta organização, quando sadia, não estaria baseada no “contrato”, mas em
princípios orgânicos de organização só acessíveis ao “desinteressado” regime
monárquico e de acordo com a tradição ibérica. Dizia Prado:
O espírito americano é um espírito de violência; o
espírito latino transmitido aos brasileiros, mais ou menos
93
PRADO, Eduardo. Collectaneas, pp. 49 e 50.
94
Idem, ibidem, p. 58.
95
Não deve ser esquecido que a estratégia de envolvimento escolhida por Prado para o convencimento
do leitor é a paixão. O autor constrói uma trama em que envolve o leitor sentimentalmente contra o
republicanismo, induzindo-o à agressividade antiamericana.
96
MORSE, Richard M. Op. Cit., pp. 36 e segs.
54 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

deturpado através dos séculos e dos amálgamas diversos


do iberismo, é um espírito jurídico que vai, é verdade, à
pulhice do bacharelismo, mas conserva sempre um certo
respeito pela liberdade(...). O período de desbravamento
da terra, da derrubada das matas, do estabelecimento das
primeiras culturas, é, no interior e nas localidades novas,
a idade do capanga; É a lei que substitui a violência.
O espírito americano infundido nas populações, é
antes favorável ao capanga do que à gente do fôro; é o
estrangeiro, cujo prestígio é sempre grande, é o homem
de cabelo louro e de olhos azuis sempre acatado pelos
nossos negroides, influindo em favor da violência,
notabilizando-a pela sua prepotência.97

Temia Prado que a República trocasse a tradição imperial baseada na


lei e na serenidade política pelo aventurismo do conquistador do norte; do
simbolismo da monarquia aglutinadora pelos embates políticos constantes do
modelo político republicano98.
Embora o centro de discussão de Eduardo Prado e de outros
intelectuais pudesse resultar na forma de organização de governo, sem que
houvesse, a bem da verdade, preocupação maior em garantir a existência
política do direito à liberdade ou à cidadania, como no caso da revolução
norte-americana, o ponto-chave das análises – para que chegassem à
origem do problema: raça e meio – partia sempre da constatação relativa
às dificuldades de ordem social (pobreza e miséria), muito mais do que
das dificuldades de ordem política (exercício do poder e possibilidade
de impotência política). Fugia-se da definição sobre os princípios de
liberdade e da criação de esferas múltiplas para o exercício da cidadania
e para o convívio com a diferença. As explicações calcadas na raça e no
meio tentavam, em verdade, dar, por vieses diversos (exotismo, desespero
ou esperança, conforme a postura do autor), explicações para aquilo que
estava tão visível no final do século XIX e início do XX: a miséria e a
infelicidade da grande maioria da humanidade, em especial, na América
Latina. Eram explicações de cunho político para um espectro de ordem
material: a felicidade enquanto realização do indivíduo e não do cidadão.
Se monarquia ou república o modelo constitucional a ser adotado, ele só era
referência enquanto forma mais ou menos própria de resolver as carências,

97
PRADO, Eduardo. Op. cit., p. 175.
98
Imagem construída pelo Império em contraposição à suposta instabilidade revolucionária das repúblicas
da América Latina.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 55

não de garantir os princípios de liberdade e de isonomia. Não se pensava em


homens livres, mas em homens pobres, miseráveis!99 Daí o enfoque dado
ao papel do Estado e da ciência como fundamentais. A lei, portanto, a que
se referia Prado, era a garantia de preservação do Estado contra a violência
de sua destruição. Aos moldes da tradição Ibérica, como bem assinalaria
Richard Morse (1922-2001) mais de oitenta anos depois:
Como estava centrado no Estado, na estrutura herdada
da comunidade política, o pensamento político da era
barroca espanhola representava a liberdade não como
uma circunferência de imunidade para o indivíduo, e
sim como uma obediência ‘voluntária’ ou ativa ao poder
constituído, noção vinculada à doutrina católica que
definia o papel do livre-arbítrio na obtenção da graça.100

Momento agitado de embate político, especialmente no início do


século XX, projetos nacionais diferentes expostos por uma infinidade de
intelectuais engajados, portanto, tentaram responder de certa forma ao
exotismo existencial da América Latina, e do Brasil em particular. Em outras
palavras, precisava-se criar um Brasil moderno.
Se de um lado a nação era vista e revista como um conjunto em relação
ao restante dos países de colonização espanhola, esta visão era indesejável
para a maioria desses intelectuais políticos. A melhor maneira de negar
esta visão seria encontrar um modelo político para a supressão da miséria.
A razão deste sentido obstinado em relação à supressão da miséria estava
assentada na percepção de que a existência da pobreza absoluta reforçava a
noção construída pelo mundo ocidental de uma América obsoleta, atrasada,
até porque a visibilidade de sua miséria erroneamente fazia crer que, com
tais problemas, discutir questões de cunho verdadeiramente político – e que
portanto iam muito além da problemática de supressão da miséria –, seria um
luxo inaceitável. Primeiro, precisava-se arrumar o povo, sua raça, e criar nele
uma nova mentalidade. Liberdade, talvez, para o futuro. Segundo, porque a
própria tradição ibérica é que estaria a definir o estado de pobreza autoritária:
seria nosso legado genético.
99
Talvez esta percepção tenha perpassado as interpretações da historiografia, da sociologia e da política ao
longo de todo o século XX de forma tão intensa que seja a razão pela qual se fala em moderno e atrasado,
primeiro ou terceiro mundo, para designar estado de bem-estar social e confundi-lo com democracia
política. Talvez também seja esta a razão pela qual nos processos de “democratização” verificados nas
eleições de toda a América seja cada vez mais raro ver abordados assuntos de natureza verdadeiramente
política que envolvam liberdade e participação no governo, e cada vez mais corriqueiro falar em questões
sociais e atendimento de interesses específicos, em troca, é claro, da exclusão nas decisões.
100
MORSE, Richard. Op. cit., p. 68.
56 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Oswald de Andrade (1890-1954), um dos expoentes do modernismo


brasileiro, à época já bebendo das águas do marxismo, respondia à questão de
maneira esperançosa. Raça e meio permeavam sua análise:
Quando eu falo em contra-reforma, o que eu quero é
criar uma oposição imediata e firme ao conceito árido
e desumano trazido pela Reforma e que teve como
área cultural particularmente a Inglaterra, a Alemanha
e os Estados Unidos da América. Ao contrário, nós
brasileiros, campeões da miscigenação tanto da raça
como da cultura, somos a contrarreforma, mesmo sem
Deus ou culto. Somos a Utopia realizada, bem ou mal
em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte.
Somos a caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça
da selva, somos a bandeira estacada na fazenda. O que
precisamos é nos identificar e consolidar nossos perdidos
contornos psíquicos e históricos.101

Suas palavras centravam-se assim tanto na essência da Antropofagia


modernista, qual seja, a de deglutir, comer, assimilar os paradigmas estrangeiros
e vomitá-los de outra forma, através (como sugere Richad Morse ao endeusar
quase que ingenuamente o legado político-cultural ibero-americano) da
enorme e admirável capacidade de autorrenovação dos latino-americanos,
como na cresça na questão racional, mas não de sua forma negativa como
fator de inferioridade, e sim deglutida antropofagicamente, de uma forma
positiva, e, por isso, seríamos “a Utopia realizada, bem ou mal em face do
utilitarismo mercenário e mecânico do Norte...”. Daí que, para Oswald, não
só as utopias foram consequência do descobrimento da América, como a
América era o lugar da utopia para o mundo ocidental. O ócio generalizado
seria a recompensa pelas penas sofridas no mundo.
É interessante notar, a exemplo de muitos outros autores que tanto
Eduardo Prado como Oswald de Andrade, mesmo que compartilhando da
questão da raça e do meio sob pontos de vista bastante diversos, possuíam
um tom que não era negativista em absoluto. Para Prado, nosso problema
residia no meio (pressuposto supostamente galgado na assertiva sobre a
natureza tropical adversa tão fartamente explorada nos relatos dos naturalistas
do século XIX) e na raça enquanto constituinte do corpo político e moral
pelo peso da tradição. Precisaríamos, portanto, recuperar o princípio orgânico
sob o qual estariam organizados os ibéricos. Para Oswald, havíamos, por
101
ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. p. 11.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 57

nossas características raciais diversas às dos saxões e de sua ética protestante,


utilitarista, chegado ao prazer da preguiça estipulado como direito pela utopia
do paraíso, e agora bastaria que nos identificássemos e consolidássemos
“nossos perdidos contornos políticos e históricos”.
Um outro autor brasileiro, Manoel Bomfim (1868-1932)102, que
pertenceria à ordem diversa de escritores, alinhada a perspectivas mais
pessimistas do que as de Oswald e Prado, apostava de forma diversa
na utopia e na transformação da população para erguer uma América
diferente, nova. Era este seu sonho, um contraponto ao pesadelo. Seu
livro, A América Latina, males de origem, havia sido idealizado partindo
de princípios caros às ciências naturais. O ponto de partida da análise de
Bomfim era o parasitismo103. Assim como nos organismos vivos, o autor
cria que na ordem social a América como um todo fora a vítima de uma
colonização ibérica que ao ter como base que “Os homens pensavam nos
milhões de almas a ganhar para Deus! Montanhas de ouro a trazer para
casa!” fora vítima de uma espécie de efeito dominó de uma estrutura
organizacional parasitária:
O Estado era parasita das colônias; a Igreja parasita
direta das colônias, e parasita do Estado. Com a nobreza
sucedia a mesma coisa: ou parasitava sobre o trabalho
escravo, nas colônias, ou nas sinecuras e pensões. A
burguesia parasitava nos monopólios, no tráfico dos
negros, no comércio privilegiado. A plebe parasitava nos
adros das igrejas ou nos pátios dos fidalgos.104

Em sua análise, o abuso das metáforas biológicas era recorrente.


Mas um dos pontos centrais de seus argumentos residia no contraponto
que estabelecera com as correntes conservadoras do evolucionismo
biológico, em particular com Gustave Le Bon (1841-1931), que justificava
a intervenção e a conquista sobre a América Latina partindo do suposto
de que a supremacia de raças europeias superiores poderia resolver o
caos americano e o exotismo presente no constante afã revolucionário das
repúblicas sul-americanas. Bomfim contra-atacava dizendo que os países

102
Sergipano, Manoel Bomfim havia sido influenciado por Rocha Pombo em suas análises sobre a História
do Brasil e da América. Cf.: MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. p. 274. Nossas
referências à América Latina, Males de Origem são da edição da Top Books.
103
“É noção banal em sociologia que o progresso social se faz segundo um paralelismo perfeito com o
progresso orgânico – diferenciação dos órgãos, especialização das funções, divisão do trabalho – estas são
as condições indispensáveis à perfeição”. Cf.: BOMFIM, M. Op. cit., p. 59.
104
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 108.
58 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

latino-americanos haviam herdado um Estado que “existe para fazer


o mal”. Ele era “o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga
nenhuma ideia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança”,105 ao
contrário dos Estados Unidos, onde existia
um regime político espontâneo, inspirados pelas
necessidades próprias das sociedades nascentes; não era
sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável,
garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em
embrião se pudessem moldar com o tempo.106

Raça e meio, portanto, não seriam determinantes, porque uma raça,


para Bomfim, não era superior a outra. Mas a história seria o determinante, na
medida em que entre as espécies animais só o homem aprisionava para fazer
com que um semelhante trabalhasse pelo outro.107 Evoluir significava, então,
libertar-se de jugos, pois que a nacionalidade fosse “produto de uma evolução
(...) resultante de ação do seu passado, combinada à ação do meio”.108
A degradação moral de um país ou de um continente – como tentava
responder Manoel Bomfim aos intelectuais europeus que estavam a denegrir
a América Latina como lugar de gente inferior – gerara-se na consequente
ausência de educação das populações de descendência ibérica109, que aceitava
os jugos. Uma ausência que atestava a degeneração das populações que,
revoltadas, estavam sempre a lutar em forma de levante pela libertação, embora
não soubessem ainda guiar-se em direção à verdadeira liberdade democrática,
seja internamente, seja contra o aprisionamento das nações imperialistas,
europeias ou americana do norte110.
Bomfim identificava, já em 1903, aspectos característicos da
população brasileira que posteriormente seriam retrabalhados por outros
intelectuais – Hannah Arendt, inclusive, que certamente nunca tomou qualquer
conhecimento do brasileiro. Em primeiro lugar, como Arendt, acreditava que
fora a descoberta do Novo Mundo que suscitara a possibilidade do surgimento
das utopias, dentre elas a da liberdade. Ou seja, de pensar que coisas novas
entre o reino dos homens seriam possíveis de se construir. Quanto a Bomfim,
no que concerne aos Estados Unidos, dizia que a América Latina não poderia
ter tido a mesma “evolução”:
105
BOMFIM, Manuel. Op. cit., p. 143.
106
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 144.
107
Fator determinante para gerar ódios e impedir o desenvolvimento de uma sociedade orgânica e harmoniosa.
108
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p 52.
109
A Inquisição e a Companhia de Jesus seriam o retrato da degeneração ibérica.
110
Existe uma crítica inflamada de Bomfim contra a doutrina Monroe.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 59

É que as colônias inglesas puderam organizar-se desde


logo segundo convinha aos seus próprios interesses, e não
foram vítimas de uma parasitismo integral, como este que
as metrópoles ibéricas estabeleceram para suas colônias.111

E identificava uma tristeza latente entre os povos latino-americanos,


uma caracterização que seria tão cara – embora não original como querem fazer
crer alguns – das análises que Paulo Prado construiria alguns anos mais tarde,
entre 1926-28, em seu Retrato do Brasil: ensaio sobre a pobreza brasileira112,
em que a cobiça e a lascívia113 desenharam a herança do país, muito menos
como mal de origem, mas para explicar a tristeza do povo brasileiro114 e a
necessidade de se criar um homem novo. Um tipo próximo a uma nova raça,
porque havíamos todos, ao longo da história do país, sofrido de degeneração.
Esta tristeza era compensada, nas análises de Bomfim, pela
“sociabilidade natural, instintiva” do homem que vive à margem – nos sertões
– do sistema exploratório:
Quem viajou o interior das terras brasileiras, por
exemplo, notou, por força a cordialidade, a paz relativa
em que vivem essas populações – arraiais, povoados,
restos de aldeamentos, onde se acumulam os casebres
de sapê, onde vivem como formigas – formigas que
não trabalham115 – os produtos da mistura de negros,
índios, resíduos de colonos, etc.(...) essa tendência à
sociabilidade, esse altruísmo, é uma boa qualidade, um
elemento favorável ao progresso moral.116

O autor introduz aqui a construção do homem cordial, depois explorada


por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), tendo como elemento fundante
justamente a mestiçagem acontecida no Brasil, que provaria não haver
degradação racial no sentido dado à degenerescência dos que não fossem
arianos, como queria crer Agassiz (1807-1873), por exemplo117. Introduz
também aqui a explicação para o matuto que não trabalha, e que anos mais
tarde tornar-se-ia o Jeca de Monteiro Lobato (1882-1948)118. O exotismo da
111
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 134.
112
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a pobreza brasileira.
113
A ambição do ouro e a sensualidade livre - a nudez e o paraíso bíblico.
114
Também Bomfim refere-se à tristeza do brasileiro: “O conservantismo instintivo de uns, o reacionarismo
sistemático de outros, vêm perturbando todas as causas de mal-estar social, de apatia e desânimo, que dão
à sociedade brasileira essa tristeza morna”.
115
Trabalho, educação e ciência eram, para Bomfim, os propulsores da modernidade e do progresso.
116
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 266.
117
Agassiz é citado explicitamente por Bomfim
118
LOBATO, Monteiro. Urupês. Vide, em especial, Velha Praga e Urupês.
60 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

mestiçagem – atribuído por europeus –, era então recuperado no sentido de


que ele proporcionava não um fator negativo, mas um instrumento positivo de
construção de uma sociedade utópica:
América feliz, na clemência de seu clima, no esplendor
deste céu, inteligente, laboriosa e pacífica na comunhão
social, meiga e fraternal na expansão natural da instintiva
cordialidade, apartada dos egoísmos ferozes que aviltam
outras civilizações.119

Se o exotismo latino era desculpa para o ataque, para o estranhamento,


ele era recuperado por Bomfim no sentido de construir através da educação
uma sociedade livre e democrática porquanto reunia justamente três raças que
possuíam características tais que faziam possível – como podia ser constatado
longe da presença do meio em que se reproduziam as relações parasitárias – que
se produzisse este homem cordial. Toda a sua análise tinha como pressuposto que
o essencial era saber o valor absoluto de cada uma das raças e se elas seriam ou
não passíveis de serem civilizadas. A aposta era a de que todas as raças poderiam
progredir se devidamente educadas pelo trabalho, pela ciência e pela igualdade.
Mais ainda, que mesmo não tendo a hulha, apontada por Bomfim como riqueza
fundamental para a aplicação dos conhecimentos científicos na industrialização,
este conhecimento das características positivas de todas as raças e uma futura
intervenção em sua psicologia era passível de apontar na direção da construção
um novo homem (assunto, aliás, caríssimo tanto aos modernistas quanto aos
governos totalitários do séc. XX). Assim, localizar e diagnosticar o exótico – o ser
diferente do europeu porque em um outro meio físico e porque com características
biológicas que pressupunha-se que fossem diferentes – era procurar uma forma de
atingir o igual. É claro, para retrabalhar o exotismo em um sentido que pudesse
vir a ser positivo. Este sentido positivo teria na solidariedade uma característica
importante, porque dos ibéricos teríamos herdado, a par do parasitismo, a
hombridade patriótica, intransigente, irredutível, heroica, resistente. Além disso, e
talvez o mais importante, um extraordinário poder de assimilação social, resultante
de uma grande plasticidade intelectual e de uma sociabilidade desenvolvidíssima.
Dos negros e índios, raças primitivíssimas para Bomfim, recebemos,
pelo primarismo das duas raças, qualidades negativas: inconsistência de
caráter, leviandade, imprevidência, indiferença pelo passado e, por isso
mesmo, a grande adaptabilidade de ambos a qualquer condição de vida.120
BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 351.
119
120
(...) “os animais rudimentares são muito mais variáveis e adaptáveis que aqueles de organização
complexa”. BOMFIM, Manoel. Op. cit., p. 237.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 61

Os negros, é bem verdade, teriam nos dado uma certa “afetividade passiva,
uma dedicação morna, doce e instintiva, sem ruídos e sem expansões”, que
acompanham seus clássicos defeitos: “submissão incondicional, frouxidão
de vontade, docilidade servil.121 O índio positivamente nos dava “um amor
violento à liberdade, uma coragem física verdadeiramente notável e uma
grande instabilidade intelectual (...) até mesmo uma instabilidade de espírito”,
acompanhadas de desinteresse e indolência.122
Bomfim antecipava-se assim à criação intelectual do desejo por
uma utopia calcada na transformação do homem – e não das esferas de
poder – advinda das peculiaridades raciais e da aposta nas transformações
educativas.123 Era um Gilberto Freyre em antecipação, no sentido de que esta
peculiaridade racial diferenciada fundava uma original cultura luso-brasileira,
embora Freyre fizesse a ressalva de que toda esta cultura se forjava em torno
da família patriarcal e escravocrata e não do Estado, Igreja ou indivíduo.124
A discussão política que permearia América Latina, males de origem de
Bomfim não seria portanto a desilusão em relação à República que sonhara e
que não via realizar-se naquele início de século, como quer crer grande parte
da historiografia, mas de uma proposta política que não privilegia o exercício
de poder propriamente dito, mas a forma de governo enquanto estrutura
capaz de diagnosticar (ciência) e meio capaz de agir (ação educativa). As
almas rudes poderiam, assim, transformar-se em algo original.125 Não pela
negação, como pressupunha o “exótico”, mas pela aprovação em função da
miscigenação positiva e da solidariedade que ela engendraria através deste
“Jeca” modificado, educado.
Neste sentido, igualmente Monteiro Lobato, ao escrever, em 1931,
um de seus livros de grande sucesso editorial, América126, não se limitaria a
diagnosticar a ausência de um Estado demiurgo capaz de soterrar a miséria.
Lobato preconizava que o motor do desenvolvimento – e aqui sempre
desenvolvimento é igual à supressão da miséria – era a economia. Somente

121
BOMFIM, Manuel. Op. cit., p. 238.
122
Idem, ibidem.
123
Ideias que permaneceram ao longo do século e que foram continuamente apropriadas como discurso de
redenção política. A este respeito, ver Darcy Ribeiro e Cristovam Buarque, por exemplo.
124
Vide FREYRE, Gilberto. Reinterpretando José de Alencar; FREYRE, Gilberto. O manifesto regionalista
de 1926. Embora Freyre fizesse a ressalva de que toda esta cultura se forjava em torno da família patriarcal
e escravocrata e não do Estado, Igreja ou indivíduo.
125
É interessante não haver qualquer referência em Manoel Bomfim relativa ao líder latino-americano
que talvez mais tenha se preocupado com a educação enquanto agente transformador já no século XIX:
Domingo Faustino Sarmiento, o presidente argentino, autor, entre outros de “Escola, base da prosperidade
e da democracia dos Estados Unidos”.
126
LOBATO, Monteiro. América.
62 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

a riqueza produzida por um conjunto de fatores comandados pela ciência


poderia ser a resposta para os males da América Latina e, fundamentalmente,
do Brasil. O conjunto desses fatores era:

1. O clima, já que cientificamente seria incontestável que a natureza


tropical, por definição, seria sempre indomável – porquanto um meio
difícil, quanto mais pela ausência da estação climática que impulsionaria
os homens ao trabalho, ou seja, o inverno.
2. O solo, maltratado pelas queimadas e pela intervenção danosa do homem
ignorante, da falta de máquinas e de conhecimento técnico e científico.
3. A saúde, porque este homem tropical havia se transformado no Jeca:
pobre, doente e ignorante.
4. A máquina, a grande aliada do homem para a introdução do
trabalho organizado.
5. O petróleo, fonte de energia fundamental para o acesso ao
desenvolvimento moderno.

Como em Eduardo Prado, para Lobato a paisagem tropical era


também um problema. Carecíamos de símbolos de aglutinação nacional
e representávamos, por nossa inadaptabilidade aos novos tempos, o atraso.
Estávamos longe das máquinas. Construíramos, em nossa evolução, o Jeca,
a nossa síntese, o doente e ignorante. Agora, necessitávamos criar nossa
identidade em outras bases. Tudo deveria começar pelo desenvolvimento, ou
pelo desenvolvimentismo, tão ao gosto dos anos que se seguiriam.
Novamente partia-se da aceitação de uma situação de atraso para
montarem-se estratégias de modernidade. Liberdade, enquanto princípio e
criação de esferas múltiplas para o exercício da cidadania e da preservação do
direito à diferença estavam longe do sentido da modernidade. Raça e meio,
ditava a ciência infalível que estes intelectuais preconizavam ad nauseum,
construíram as mentalidades deste mundo não simbiótico, periférico.
De certa forma, o conjunto dessas posições tão intensamente presentes
em autores como Eduardo Prado, Manoel Bomfim, Oswald de Andrade e
tantos outros intelectuais encontra-se corroborado nas principais teses do livro
de Richard Morse, O Espelho do próspero, que produziu forte impacto entre a
intelectualidade latino-americana nos anos de 1980.
Embora o trabalho do pensador norte-americano tente ser uma
espécie de homenagem e aposta otimista na América Ibérica como
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 63

contraponto à Anglo-Saxã, por postular que entre os descendentes das


tradições de organização ibérica poderia estar a resposta ao fracionamento
imbecilizante do homem contemporâneo, envenenado pelos princípios
de Locke e Hobbes do individualismo e da razão, numa retomada das
principais teses de Adorno (1903-1969) e Horkheimer (1895-1973),
principalmente quando deixam-se chocar pelos Estados Unidos, não deixa
de ser revelador que o historiador americano trate tudo aquilo que chama de
América Ibérica como um bloco político-cultural praticamente monolítico
ou quase nada diverso, transparecem, nesse texto, constantemente,
construções imagéticas que impulsionam em direção ao exótico e que
reforçam, em última instância, a América como o lugar da exclusão:
pesadelo, muito mais do que sonho, porque, afinal de contas, atrasada ou
terceiro-mundista, embora, ressalve o autor, não fora de lugar, mas um
outro lugar, onde uma noção diversa de pertença e de Estado seriam talvez
capazes de realizar a promessa de felicidade, quem sabe, diríamos nós, de
utopia. Algum dia, com o uso de algum projeto...
II
O poder das ideias
66 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Nicola esteve aqui, e o Congresso [Congresso pela


Liberdade da Cultura] conseguiu a verba da Fundação Ford.
A acusação relativa à CIA foi totalmente contornada; aqui
ninguém a menciona. E que utilidade teria para Nicolas e
Silone, por exemplo, insistir em saber a verdade? Se agora
lhes garantissem que a CIA os subsidiou alguns anos atrás,
o que eles poderiam fazer com este conhecimento?127

A questão tornou-se um escândalo quando, em abril de 1966, o


jornal The New York Times publicou os resultados de uma investigação sobre
as finanças de várias organizações que – concluíra-se pela investigação
– estavam ligadas à Central Inteligence Agency (CIA).128 Destacado na
denúncia: o Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF).
Fundado em Berlim, no ano de 1950, o CCF estava sendo proposto
como uma reação ao sucesso dos congressos comunistas organizados em
março de 1949 no Hotel Waldorf Astoria de Nova Iorque129 e em Paris, um
mês depois. Estes dois congressos eram componentes da campanha comunista
pela paz mundial, inaugurada em agosto de 1948, com a Conferência Cultural
pela Paz de Breslau,130 que associava o fascismo à Doutrina Truman.
Ao assumir todos os gastos do encontro do CCF, que reuniu 118
intelectuais, de 21 países, o governo norte-americano, através da CIA,
estruturou secretamente um projeto – incluído na estratégia do que ficou
conhecida como Cultural War da Guerra Fria – de apoio a ações culturais
e intelectuais dentro e fora dos Estados Unidos. Neste congresso de Berlim,
ao final do encontro, não só era editado o Manifesto aos homens livres
como criado o CCF mundial, tendo como presidente Denis Rougemont e
presidentes de honra Theodor Heuss, Karl Jaspers, Salvador de Madriaga,
Jacques Murutais, Jayaprakash Narayan, Reinhold Niebuhr, Ernest Reuter e
Leopold S. Senghor. No Comitê Executivo estavam: Irving Brown, Ignazio
Silone e Stephen Spender. Os suplentes eram: Haakon Lie, Raymond Aron,
127
Carta de Mary McCarthy, de 11 de outubro de 1966. In: BRIGHTMAN, Carol (org.). Entre amigas: a
correspondência de Hannah Arendt e Mary McCarthy.
128
A CIA foi criada em 1947, pelo National Security Act, de 26 de julho, originariamente como agência de
coordenação entre a inteligência militar e a diplomática, tendo sido expandidas suas atribuições, no mesmo
ano, para intervir secretamente em outros países.
129
De uma forma geral, seus organizadores eram veteranos da Independent Citizens Committee of the Arts,
Sciences and Professions. Neste episódio, Sidney Hook, ex-comunista, ex-informante do FBI, professor
de Filosofia da NYU, e supostamente consultor contratado pela CIA, conclamou intelectuais como
Arthur Schlesinger, Mary McCarthy, Nicolas Nabokov, Dawid Macdonald, Robert Lowell, Browden
Broadwater, Nicola Chiaramonte, William Philips, Philip Rahv e Arnold Breichman a interrogarem os
conferencistas sobre as liberdades na URSS. Cf.: POWERS, Richard Gids. Not Without Honor: The
History of American Anticommunism.
130
Cultural Conference for Peace, que atraiu intelectuais como Charles Chaplin, Pablo Picasso, Albert Einstein.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 67

Carlo Schmid, Georges Altmoa, Nicola Chiaramonte, T.R. Fyvel, Andre


Philip, Malcom Muggeridge, Melvin Lasky, Sidney Hook e Manes Sperber.
A Secretaria Executiva ficaria baseada em Paris, dirigida pelos próximos 17
anos por Michael Josselson (1908-1978).131
Cinco anos depois, em 1955, o CCF já estava estruturado com o grupo de
presidentes de honra, um comitê executivo, um secretariado internacional, sediado
em Paris, uma rede de publicações, diversos comitês em vários países e o comitê
ciência e liberdade. Na agenda de financiamento estavam colóquios, viagens de
intelectuais, ajuda a intelectuais e artistas perseguidos e uma rede internacional
de periódicos, dirigida pelo suíço-alemão François Bondy. Financiadas pelo
Congresso pela Liberdade da Cultura, e na maioria fundada pelo CCF,132
constavam, entre as mais importantes da lista: Preveus (1951) Cuadernos (1953),
Encounter (1953), Forum, Cadernos Brasileiros (1959-1970), Jiju, Survey,
Quadrant, China Quartely, Tempo Presente, Minerva, Comment, Hiwar, Black
Orpheus, Sassangue, Transition, Mundo Nuevo e Monat.
A despeito da negativa oficial de ligação do CCF com a CIA133, e da
alegação de que o Congresso contava com absoluta independência intelectual,
ligando-se apenas a financiamentos da Fundação Ford, o CCF reestruturou-
se, passou a ter na CIA o seu principal agente financiador, e transformou-
se, em 1966, após o escândalo do Times, na Associação Internacional para a
Liberdade da Cultura (AILC).
Estudos bastante recentes sobre a Cultural War134 trouxeram à tona
discussões interessantes e importantes sobre a ingerência da política da
Guerra Fria ao subsidiar não só intelectuais anticomunistas, mas nomes de
destaque da inteligência internacional com posições de esquerda, mas críticos
ao regime soviético. Mais ainda, os próprios arquivos do Departamento de
Estado dos Estados Unidos, em que pese à dificuldade de acesso às pastas
contendo material sobre o Congresso pela Liberdade da Cultura135, indicam e
confirmam uma intervenção mais abrangente da CIA e da Fundação Ford no
espectro da Cultural War.
131
Cf. POWERS, R.G. Op. cit., p. 211. Segundo o autor, este americano de descendência judaico-estoniana
era agente da CIA. Quando das denúncias do The New York Times, renunciou ao cargo e ao emprego da
CIA ao mesmo tempo. Cf.: BRIGHTMAN, Carol. Writing Dangerously: Mary McCarthy and Her World.
132
Exceção para a alemã Der Monat (1948), que já era anteriormente financiada pela estratégia americana
da Cultural War. Cf.: SAUDERS, Frances. Who paid the piper? The Cia and the Cultural War. p. 30.
133
Vide a este respeito o texto enviado pelo CCF ao Le Monde e publicado pelo jornal em 24 de fevereiro de
1967. Vide também a confirmação deste envolvimento dada por Thomas Braden e publicada no Saturday
Evening Post, em 20 de maio de 1967, confirmando as informações de The New York Times.
134
Destacamos: SAUDERS, Frances. Op. cit.
135
Algumas delas vazias, apesar da qualidade da classificação e do tratamento da documentação do National
Archives de Washington.
68 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

A ação da CIA, especificamente, havia sido facilitada pelo Agency


Act, aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, em 1949, que permitia
à Agência dispor de fundos sem justificativa de gastos. Um livro de Peter
Coleman (1928), publicado em 1989136, ainda hoje o estudo mais importante,
confirmou, através de documentação, o envolvimento da CIA e, posteriormente,
da Fundação Ford no esforço cultural de uma estratégia anticomunista. Na
sequência de trabalhos e de novas informações que vêm sendo levantadas,
chama a atenção o fato de que um dos intelectuais que mais contribuiu para a
definição política da Cultural War envolvendo a intelligenzia foi o conhecido
historiador de Harvard, Arthur Schlessinger (1917-2007)137.
Já em 1948, Schlessinger escreveria um manifesto chamado The Vital
Center. Nele, uma postulação era fundamental para o governo de Truman
e para os futuros governos no que diz respeito à escolha de estratégias de
combate ao comunismo: socialists were among the strongests bulwarks in
Europe against communism.138
A política cultural norte-americana apostou nesta estratégia, até
porque ela estava completamente de acordo com o que George Kennan
(1904-2005), arquiteto do Plano Marshall e diretor do Policy Planning Staff
da CIA apregoava.139 Foi assim que o suporte financeiro para as atividades
do CCF veio primeiramente da International Division da CIA,140 chefiada
por Thomas W. Braden (1918), e estava apoiado no documento NSC68 do
Conselho de Segurança Nacional,141 em que a postulação era a de que influir
nas instituições sociais
that touch most closely our material and moral strength are
obviously the prime targets, labor unions, civic enterprises,
schools, churches, and all media for influencing opinion.
The effort is not so much to make them serve obvious
Soviet ends as to prevent them from serving our ends, and
136
COLEMAN, Peter. The Liberal Conspiracy: The Congress for Cultural Freedom and the Strugle for the Mind
of Postwar Europe. O livro deste australiano inicia esta trajetória de investigações sobre o CCF e é uma espécie
de acerto de contas do historiador, jornalista e político com sua própria participação e envolvimento com o CCF.
137
Schlessinger foi fundador da ADA (Americans for Democratic Action), em 1947, que foi organizada pela
UDA (Union for Democratic Action), criada em 1945, que tinha em Eleonor Roosevelt uma de suas principais
lideranças e que não admitia como associados comunistas ou fascistas ou mesmo seus simpatizantes.
138
POWERS, Richard Gids. Op. cit.
139
O Plano Marshall no Apendix Top-secret, NSC-4A, dava ao Diretor da CIA a tarefa de acobertar
atividades psicológicas em sustentação das políticas anticomunistas.
140
Carol Brightman afirma que a Fairfield Foundation era a mais importante condutora da CIA no apoio ao
CCF. Cf.: BRIGHTMAN, Carol. Writing Dangerously: Mary McCarthy and Her Word.
141
National Security Document 68 (NSC-68), preparado por Paul Nitze, chefe do State Department’s Policy
Planning Staff, também eventualmente denominado Office of Policy Coordination (OPC), um dos braços mais
importantes da CIA, com atividades instituídas em projetos. Este documento permaneceu secreto por cerca de 25
anos, tendo sido aceito por Truman em abril de 1950. Cf.: BRANDS, H.W. The Devil We Knew, p. 33.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 69

thus to make them sources of confusion in our economy,


our culture and our body politic.142

Foi integrada a estas concepções informativas das ações do governo


na Cultural War, que a Fundação Ford – uma vez que já havia reformulado sua
política, em 1950, a partir do chamado Gaither Report, deixando de direcionar
suas atividades localmente e transformando-se em organismo de alcance
nacional e internacional – pôde se dispor a substituir totalmente a CIA como
financiadora do CCF logo após as denúncias do Times.
Em linhas gerais, a política de intervenção sobre o trabalho intelectual
partia do entendimento de que o suporte cultural era o mais apropriado, se
levado em conta que o objetivo seria o de atingir intelectuais e aumentar seu
entendimento sobre os Estados Unidos, uma vez que marxismo e o comunismo
estariam desempenhando um papel crescente entre os intelectuais no pós-
guerra. Mas foi apenas em 1967 que a Ford passou a ser o suporte financeiro
fundamental do CCF143, chegando a repassar sete milhões de dólares somente
naquele ano144, embora seus auxílios já datassem do início da década de 1950.
É importante notar que o CCF considerava a situação da
intelectualidade latino-americana como um caso de excepcionalidade. Em
uma solicitação enviada à Ford Fundation, já em 1959, Michael Josselson,
secretário administrativo e um dos principais fundadores do CCF, ao
apresentar seus “novos desafios” para a América Latina, observa que, até
aquele momento, o alvo do Congresso havia sido o apoio a escritores,
jornalistas e artistas, mas que tendo em vista o papel peculiar que os
estudantes universitários representavam na região, se pensava agora nas
universidades como um alvo que merecia atenção especial e, por isso, estava
incluindo neste relatório de solicitação de verbas para atividades do CCF nos
anos de 1960, 1961 e 1962, um complemento para as atividades sustentadas
pela Ford. Habilmente, Josselson fazia a observação de que nesta solicitação
não estavam incluídas as despesas normais do CCF, tais como gastos com
a Secretaria Internacional, programa de publicações, afiliadas internacionais
ou com o Comitê Science & Freedom, esclarecendo que estas despesas
142
POWERS, R.G. Op. cit., p. 217.
143
MCCARTHY, Kathleen D. From Cold War to Cultural Development: The International Cultural
Activities of the Ford Foundation, 1950-1980, pp. 93 a 117.
144
Idem, ibidem. Entre 1957 e 1966, foram doados mais de dois milhões de dólares. Nesta época a
Fundação Ford já recebia fundos secretos da CIA. Após o escândalo causado pela divulgação no The New
York Times, de que o CCF era financiado pela CIA, como já chamamos atenção, o principal financiamento
da organização, que trocou seu nome para International Association for Cultural Freedom, ficou a cargo da
Fundação Ford. Cf.: CHESTER, Eric Thomas. The Ford Foundation. In: http://www.icdc.com/~paulwolf/
oss/fordfoundation.htm , p. 14. Acesso em 15/12/2007
70 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

eram cobertas por outras fundações e grupos privados, como a Catherwood


Foundation, a Fairfild Foundation, a Homes Foundation, o Miami District
Found, a Rockfeller Foundation e a Kuenstlerbund da Alemanha, entre
outras, não deixando de fazer a observação de que todas as contas do CCF
eram auditadas pela Price Waterhouse & Co.
O pedido de Michael Josselson é sintomático e vinha acompanhado
da lembrança de que em 1957 a Ford Foundation havia designado 500.000
dólares para complementar as atividades do CCF.145 Destas verbas, a maior
parte havia sido utilizada para custear mais de vinte encontros e conferências
internacionais sob o nome genérico de Tradition and Change Problems
of Progress, com a participação de acadêmicos importantes, escritores,
administradores públicos, lideranças políticas e jornalistas de várias partes do
mundo, incluindo alguns poucos da Polônia e da Yugoslávia146.
Apesar do envolvimento da CIA ter apenas sido denunciado pelo The
New York Times em 1966, as suspeitas sobre as atividades do Departamento
de Estado norte-americano interferindo diretamente em instituições civis
vinham já de algum tempo. Desde 1964, pelo menos, o deputado Wright
Patman concluíra, através de uma investigação, que a fundação M. Kaplan
recebia fundos da CIA, cuja entrega de dinheiro era canalizada por outras
fundações (Gouthan Foundation, Michigan Foundation, Andrew Hamilton
Fund, Bordon Fund, Orice Fund, Edsel Fund, Beacon Fund e Kentifield
Fund) e repassadas ao CCF.
Mesmo que a Public Law 402, de 1948, conhecida como The
Information and Educational Exchange Act ou como The Simith-Mundt Act,
tenha separado as atividades de informação das educacionais e culturais,
de fato, Laird Bell (1883-1965), em 1957, observara que as atividades no
exterior estavam sendo administradas pelo pessoal, não muito especializado,
da Agência de Informação147.
Em agosto de 1958, houve uma consulta formal do Congresso norte-
americano ao Departamento de Estado ou, melhor, ao Bureau of Cultural
145
Compunham a solicitação oito itens: Sumário do progresso feito através de concessões anteriores, proposição
de novas atividades na Europa, expansão de atividades no Midle East; programa para a África, novos desafios
para a América Latina, três projetos especiais internacionais e orçamento. Biblioteca da Universidade de
Chicago, SCRC, IACF, BOX 12, Series IV. Application for Grant to Cover Program of International Activities.
146
Idem, ibidem. Uma das atividades foi organizada por Raymond Aron, em Basel, na Suíça, com
participação de Karl Jaspers, Isaiah Berlin, Stuart Hampshire, George Kennan e Robert J. Oppenheimer.
Outra, em Caracas, com a participação de J. K. Galbraith, Adolf Berle, Arthur Schlesinger, Arthur Lewis,
Raul Prebish e Anísio Teixeira. Houve ainda três grandes conferências na Tunísia, na Nigéria, na Grécia e
uma em Viena. A maioria delas relativas à questão do desenvolvimento.
147
National Archives - RG 59 - Bureau of Cultural Affairs Subject Fail (1956-1960), Box 4 - Report of Latin
American Trip, March 13 - April 12, 1957. Laid Bell, foi enviado ao México, Equador, Brasil, Argentina e
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 71

Affairs, sobre o montante de verbas destinadas ao exterior. Diz o ofício interno


assinado por J. M. Alden, e enviado ao CPC, que, naturalmente, o postulante da
informação148 não estava usando a expressão “foreign aid” de forma estreita,
mas que “cultural pursuits” deveria ser tratada como termo mais abrangente,
aplicado a atividades culturais em geral. Os dados fornecidos eram:
IES – Fy-58 program – aproximadamente 29 milhões
de dólares para bolsas para professores estrangeiros
e americanos, estudantes, líderes, especialistas e para
escolas americanas no exterior;
USIA – Fy-58 – 95 milhões para o total do programa. A
Agência conduz atividades culturais e não se pode separar
os custos dessas atividades com do total do programa;
ICA – Fy-58 – aproximadamente 27 milhões em assistência
técnica (se o treinamento de estrangeiros pode ser incluído
em atividades culturais) para treinar estrangeiros nos
Estados Unidos e no terceiro mundo. Foi tornado claro que
os participantes são treinados de várias formas e em vários
campos, de agricultura à indústria e educação. 149

Um exemplo importante deste tipo de ofensiva pode ser constatado


pelo abstract de uma tese de doutoramento, defendida por Lewis M. K. Long
no Departamento de Relações Sociais de Harvard, para a obtenção do título
em Psicologia Social, no ano de 1955, com o título é The Brazilian Student
in the United States: a Study of Psychological Change, cujo objetivo foi
estudar as mudanças ocorridas entre os estudantes no que diz respeito a sua
orientação democrática, conhecimento cultural e imagem dos Estados Unidos.
A tese provavelmente estava ligada a estudos dirigidos para monitorar os
investimentos da guerra cultural.150
A CIA reconhecia, na guerra travada contra o que chamaria de ofensiva
soviética, que os “intelectuais ocupavam uma posição estratégica”151, também
muito importante na América Latina e no Brasil, ou nos países do terceiro
mundo, dada a sua sofisticação numa sociedade marcada pelas desigualdades:
Brazilian intellectuals constitute one of our most important
target groups. Since they play part in the involving ethos
of Brazilian civilization – which ultimately manifests
Peru como membro da US Division Commission of Educational Exchange.
148
Miss Babione do Congress Women Bolton’s Office.
149
National Archives. Bureau of Cultural Affairs. Subject Files 1956-1960. Box 5.
150
National Archives. Bureau of Cultural Affairs. Country Files 1955-1964. Box 210.
151
National Archives - RG 59 - Bureau of Cultural Affairs - Planning and Development Staff (1955-1964),
Box 205. To the Latin America Policy Committee. The Intelectual in the Latin American Cultural Program.
72 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

itself in concrete political, social, and economic schemes


– they merit increasing attention in our programs.152

Mais adiante, neste mesmo ofício enviado do Rio de Janeiro, há


informações a respeito da aproximação norte-americana. O ofício informa
sobre alguns dos receptores “entusiasmados” da tradução para o português do
livro de Morison e Commager, The Growth of the American Republic. Além
disso, fornece informações básicas sobre cada um deles:
Austregésilo de Athayde (Presidente da Academia
Brasileira de Letras), Renato Almeida (o mais importante
folclorista do Brasil), Manuel Bandeira (Secretário
da Academia Brasileira de Letras), Stella Leonardos
(conhecida poeta, romancista e crítica), Carlos
Drummond de Andrade (geralmente tido como o maior
poeta vivo no Brasil. O líder da tendência sociopolítica
da moderna poesia brasileira, um movimento que enfatiza
a irmandade do homem e almeja a organização ou no
comunismo ou no socialismo. Andrade é um comunista
que se desiludiu com os ideais do comunismo), Álvaro
Lins (Membro da Academia Brasileira. Influente editor
do Diário de Notícias), Cecília Meireles (a melhor poeta
da língua portuguesa. Ativa nas comunicações com seu
programa de rádio e em sua coluna semanal no jornal),
Vinícius de Morais (Diplomata. O mais conhecido autor
de música popular. Autor de ‘Orpheu Negro’, vencedor
da medalha de ouro do Festival de Cannes de 1959),
Jorge Amado (escritor eminente – provavelmente seu
maior autor vivo. Comunista que publicamente renunciou
ao Partido), Afrânio Coutinho (o mais recentemente
eleito membro da Academia Brasileira. Um dos críticos
literários mais influentes do Brasil), Rachel de Queirós
(conhecida nacionalmente, jornalista influente com
coluna semanal na revista O Cruzeiro. Romancista com
foco especial no Nordeste e em seus problemas de ordem
política e social); Elizabeth Bishop (a senhorita Bishop é
americana, residente no Brasil. Ganhou o prêmio Pulitzer
em poesia e tem uma ampla esfera de influência...).153

Antes disso, ainda na década de 50, em 11 de abril de 1958, 42 intelectuais


brasileiros e estrangeiros residentes no país haviam fundado a Associação
152
National Archives. Entry 1600 – Box 3. USIS-Rio, August 27, 1962. Há outros documentos com o
mesmo tipo de referência à Argentina, por exemplo.
153
Idem, ibidem.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 73

Brasileira do Congresso pela Liberdade da Cultura. São eles: o crítico católico


Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Athayde (1893-1983), o poeta Paulo
Armando (1918), o crítico Stefan Baciu (1918-1993), o jornalista Luiz Alberto
Bahia (1923-2005), o poeta Manuel Bandeira (1908-1978), o filósofo Euryalo
Cannabrava (1908-1979), o jornalista Elmano Cardin (1891-1979), o jurista e
ensaísta Levy Carneiro (1882-1971), o jornalista Carlos Castello Branco (1920-
1993), o jornalista Odylo Costa Filho (1914-1979), o literato Afrânio Coutinho
(1911-2000), o médico e ensaísta Deolindo Couto (1902-1992), Baptista Costa, o
editor Roberto das Neves (1907-1981), o jornalista Austregésilo de Athaíde (1898-
1993), o jurista Aloysio de Carvalho Filho (1901-1970), o jornalista Franklin de
Oliveira (1916-2000), o escritor Adonias Filho (1915-1990), o médico e educador
Clementino Fraga Filho, o crítico literário Eugênio Gomes (1897-1972), o médico
Heitor Grilo (1901-1972) e sua esposa, a poeta Cecília Meirelles (1901-1964), o
escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), o diplomata e sociólogo panamenho
Homero Icaza Sánchez (1925), o professor Américo Jacobino Lacombe (1909-
1993), o jornalista Hilcar Leite (1912-?), Djalma Marinho Angelo (?), o professor
Thiers Martins Moreira (1904-1970), o ensaísta Djacir Menezes (1907-1996), o
jornalista Macedo Miranda (1920-1975), o pintor José Paulo Moreira da Fonseca
(1922-2004), Carlos Alberto Nóbrega Cunha (?), o poeta Rodrigo Otávio Filho
(1892-1969), o exilado paraguaio Justo Pastor Benítez (1895-1963), o escritor
Peregrino Júnior (1898-1983), o escritor Arino Peres (1931), o professor Eduardo
Portella (1932), o advogado Faustino Porto Sobrinho (1928), o jornalista Prudente
de Morais Neto (1904-1977), Carlos Ribeiro (?), o poeta Vitto Santos (1927) e o
escritor Erico Verissimo (1905-1975).
Um ano após a criação da Associação, foi publicado o primeiro número
da revista Cadernos Brasileiros, “órgão trimestral da Associação Brasileira do
Congresso pela Liberdade da Cultura, editado sob o patrocínio do Congresso
pela Liberdade da Cultura”154.
Como pode ser observado por estes exemplos, o tipo de investida
norte-americana no Brasil compõe-se com o que o Departamento de Estado
154
BERGHE, Kristine Vanden. Intelectuales y anticomunismo: la revista “Cadernos Brasileiros” (1959-1970).
p. 55. Numa pesquisa que faz parte de um conjunto desenvolvido na Universidade de Leuven e que estuda o
papel dos intelectuais, as revistas e as polêmicas surgidas em países latino-americanos, onde as revistas ligadas
ao CCF tiveram papel de destaque, Kristine Vanden Berghe faz um apanhado das temáticas levantadas e das
diferenças ocorridas ao longo do tempo na linha editorial do periódico brasileiro. Um estudo importante, que
muito contribuiu, mas que não esgotou questões importantes sobre a intervenção da CIA e da Fundação Ford na
vida intelectual e cultural do Brasil. Berghe se detém, fundamentalmente, nos eixos dos editoriais da revista ao
longo de sua existência, em seus significados e nas temáticas abordadas. No que diz respeito à intervenção do
Departamento de Estado norte-americano, seja através da CIA e da USIA (United States Information Agency),
seja através da Fundação Ford, pouco é revelado. O eixo da pesquisa esgota-se na revista Cadernos Brasileiros
propriamente dita, especialmente em seus editoriais.
74 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

vinha fazendo no restante do mundo. Pelas características da política


adotada, vários intelectuais desconheciam completamente a maneira pela
qual seus projetos vinham sendo monitorados e financiados. Se este fato não
pode ser generalizado, uma vez que Ignazio Silone (1900-1978) na Itália,
Schlessinger155 nos Estados Unidos, e o próprio Josselson156, por exemplo,
estavam completamente cientes e compartilhavam desta política, a indignação
demonstrada no manifesto de repúdio assinado, logo após as denúncias do
The New York Times, por gente como Hannah Arendt, os escritores Mary
McCarthy (1912-1989), Lillian Helmann (1905-1984), Alfred Kazin (1915),
Larry Rivers (1923-2002), Philip Roth (1933), William Styron (1925-2006) e
o pintor Mark Rothko (1903-1970)157 dava mostras de como estes intelectuais
indignaram-se ao se darem conta de que haviam feito parte de uma espécie de
corrente de inocentes para implementar a política secreta traçada pela CIA.
Nesta política cultural, apostou-se na estratégia de envolver a
intelectualidade numa espécie de nomeação da diferença, numa estratégia
que recuperava, especialmente, valores éticos e morais que se constituíam
como os mais legítimos, ou os mais virtuosos. Na guerra cultural traçada pelo
governo norte-americano, houve um incentivo programado de participação
da intelligentsia no esforço de uma nova construção cultural e política que
pressupunha uma expansão salvaguardada na crença de que, portadores da
verdadeira virtude, caberia a eles, os norte-americanos, preservar os caminhos
da virtude cívica e dos princípios cristãos de política da humanidade, como
sugerimos anteriormente. O intercâmbio de intelectuais não aliados com a causa
soviética ou, melhor, críticos a ela, era um dos pontos altos da chamada Cultural
War. Um exemplo bastante sintomático é a aproximação do Secretariado de Paris
do CCF com Mário Pedrosa (1900-1981), ainda no ano de 1954, conhecido por
sua militância trotskista, portanto crítico do comunismo stalinista158.
Se na década de 1950 o peso desta investida estava dirigido
fundamentalmente às áreas mais tradicionais do pensamento, como a
literatura, as artes e a filosofia política, paulatinamente esta tendência acabou
incorporando – para se tornar enfática na década de 1960 – as assim chamadas
ciências sociais. Esta nova ênfase, por sua vez, apresentou características
peculiares no que diz respeito à América Latina .
155
SAUNDERS, Frances Stornor. Op. cit.
156
BIOCCA, Mario e CANALLI, Mauro. L’informatore: Silone, i coministi e la Polizia.
157
Idem, ibidem, pp.91, 200 e 394.
158
Além da cópia da carta de Julián Gorki endereçada a Mário Pedrosa pedindo-lhe apoio para o Congresso de
Filosofia que o CCF estava apoiando em São Paulo, no mês de agosto de 1954, há um telegrama confirmando
um convite a Rubem Braga para Santiago, no Chile, e uma ficha, ao estilo policial, dando informações sobre o
perfil de Mário Pedrosa. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF Collection, Box 211, series II.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 75

Embora na literatura especializada, sem exceção, seja considerado o


ano de 1966 como a data em que o Instituto Latino-Americano de Relações
Internacionais (ILARI) foi criado, citando invariavelmente o livro de Peter
Coleman como fonte, ele já existia em 1965 159. Louis Maciel Vega (1914-
1977)160 era seu diretor e ele mesmo diria que, em 1965, uma ruptura “orgânica
foi feita” para separar o Instituto Latino-Americano do CCF e “estabelecê-lo
como entidade independente”. Ou seja, o conceito de orgânico chamava atenção
para o fato de que o Instituto fazia parte do corpo maior que era justamente do
Congresso pela Liberdade da Cultura. Portanto, não houve uma cisão.
Os estatutos do ILARI foram discutidos em novembro de 1965 em um
encontro no Peru com os membros da seção de Paris do CCF, portanto ainda
antes da denúncia do New York Times sobre o financiamento da CIA ao CCF
e antes da transformação do Congress for Cultural Freedom na International
Association of Cultural Freedom (IACF), em 1967.
Nos relatos das realizações do ILARI para o ano de 1965, temos uma
mostra da abrangência das atividades do Instituto e de suas pretensões, bem
como da importância da corrente intelectual que ela expandia e construía. O
CCF que, em seu início, havia se estabelecido numa espécie de tripé – ou
seja, produzir informação sobre o bloco soviético, servir de contrapeso às
tendências neutralistas de vários países no âmbito da Guerra Fria e estabelecer
laços de solidariedade intelectuais – aprofundava sua influência, de maneira
intensa, para as áreas das ciências sociais.
As atividades do ILARI, centradas principalmente na metade inferior
do continente americano, incluíam, apenas em seu início, naquele ano de 1965,
iniciativas em: galerias de arte, centros de estudo e salas de conferência na
Argentina, Chile, Peru, Paraguai, Uruguai e Brasil. Os planos eram de criar, também
na Bolívia e no México, filiais do Instituto. Para se ter ideia, foram publicados,
através do Instituto, igualmente em 1965, 232 livros e 4 revistas, patrocinadas
mais de 70 exibições de artistas e escultores sul-americanos, cerca de 50 mesas-

159
O equívoco vem acompanhado da constatação de que o ILARI teria sido criado como forma de a CIA
atuar mais livremente, via canalização de verbas por fundações, especialmente da Ford, depois que o
CCF foi denunciado pelo The New York Times. O CCF, é certo, após a denúncia, foi transformado em
International Association for Cultural Freedom ao qual o ILARI permaneceria vinculado.
160
Nascido em 1914 na Bélgica, Louis Maciel Vega cometeu suicídio em 1977. Jornalista, anarquista e
antigo ativista do movimento operário francês, lutou na Guerra Civil espanhola e refugiou-se na América
Latina em 1939. Retornou à França após o final da Segunda Guerra e passou grande parte da sua vida
entre a Argentina, o Chile, o Paraguai, o Peru e o Brasil. Foi editor da revista Aportes, um dos fundadores,
em 1975, do jornal sobre anarquismo, Interrogations, e membro da direção da Cuadernos. Escreveu La
révolution par l’éta (1978), L’increvable anarchisme (1971), A chevauchée anonyme (1978), Autopsie
de Peron: Le bilan du peronisme (1974). Fazia parte do secretariado internacional do Congresso pela
Liberdade da Cultura. Cf.: www.iisg.nl/archives/nl/files/m/10764269.php, acesso em 10 de abril de 2008.
76 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

redondas de discussão, debates públicos e uma série de conferências sobre tópicos


em política, economia, sociologia e cultura. Foram ainda estabelecidos:

1. 18 temas de pesquisa que envolveram investigações sociológicas em


seis países;
2. a criação de um centro de estudos antropológicos e sociológicos
no Paraguai;
3. a criação de um centro de documentação para pesquisa na Argentina;
4. a organização de quatro grandes seminários no Uruguai, Chile,
Argentina e Paraguai;
5. a organização e o financiamento de turnês de conferências através da
América Latina e Europa com “sete proeminentes especialistas”;
6. o financiamento de inúmeros concursos de contos, concursos artísticos,
recitais de música e poesia, incluindo o primeiro concerto de música
eletrônica na Argentina;
7. além de dois happenings. O ILARI teve ainda participação em três
campanhas mundiais em apoio à perseguição de intelectuais na URSS,
Yugoslávia e Espanha e publicizou as atividades do Instituto e do
Congresso pela Liberdade da Cultura em centenas de artigos de jornais,
programas de rádio e de televisão e newsreel pela América Latina161.

Nesta mesma reunião de 1965, Luis Mercier Vega insistiu na necessidade


de que o ILARI praticasse a liberdade cultural e intelectual, não se restringindo
apenas a defendê-la. A ação do Instituto deveria sempre procurar novos caminhos
de investigações em ciências sociais, assumindo a pesquisa em áreas que estavam
sendo evitadas por outras entidades em função de seu potencial explosivo, como
os estudos sobre o peronismo na Argentina162, e as investigações sobre o papel das
Forças Armadas que estavam em curso em diversos países. Tais estudos deveriam
ser feitos no sentido de construir ferramentas que pudessem ser utilizadas “por
outros” para demolir as velhas estruturas.163
161
Organizational Conference of the Instituto Latino Americano de Relaciones Internacionales, Lima,
Peru, 29 de novembro a 3 de dezembro de 1964. In: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF
Collection, Box 205, series II.
162
A visão era a de que os comunistas estavam aliados ao peronismo. “Na Argentina, os comunistas
são o único grupo que evita atritos com a ditadura de Pero. In: The Congress for Cultural Freedom in
Latin America, de Julián Gorkin, julho de 1953. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF
Collection, Box 205, series II.
163
As ênfases de pesquisa seriam cinco: a composição social dos partidos políticos; a composição social e o papel
cívico das forças armadas; a universidade e a sociedade; a censura na América Latina; os problemas do romance
latino-americano. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF Collection, Box 205, series II.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 77

Foi nesta mesma reunião acontecida em Lima, no Peru, que Mercier


Vega anunciou que, em 1966, seria criada uma revista mensal em língua
espanhola, sob a direção do uruguaio Emir Rodriguez Monegal (1921-1985),
que substituiria a revista Cuadernos. Esta seguiria o modelo de outra já
consagrada publicação financiada pelo CCF, a Encounter. Mundo Nuevo,164
a ser publicada em Paris, se dirigia ao público universitário, à nova geração
de intelectuais latino-americanos e ao público educado.165 Duas outras
publicações trimestrais ainda seriam criadas: uma revista dedicada à pesquisa
em ciências sociais, a Aportes166, e um boletim sobre as atividades do ILARI.
De fato, uma investida mais sistemática vinha sendo feita na América
Latina desde o lançamento da revista de língua espanhola, Cuadernos, em
1953, publicada em Paris. Neste sentido, as atividades de Julian Gorkin
(1901-1987), seu diretor, que havia se refugiado no México em 1940, em
frequentes turnês pela América Latina foram fundamentais. Entretanto, houve
mudanças de estratégia a partir dos rumos tomados pela revolução cubana e,
em 1961167, o Congresso pela Liberdade da Cultura redefiniu e intensificou
seu programa de intervenções através da indicação de dois ativistas do CCF
na América Latina: Keith Botsford (1928-1991) e Louis Mercier Vega. A
Botsford coube a reorganização da Cadernos Brasileiros, e do Informativo,
164
Sobre a Mundo Nuevo, ver: MUDROVCIC, María Eugenia. Mundo Nuevo: Cultura y Guerra Fria en la
década de 60. A revista foi distribuída no Brasil pela Livraria Hachette do Rio de Janeiro e durou de 1966 a 1971.
165
Logo após a publicação, em 27 de abril de 1966, da matéria do New York Times denunciando o CCF como
braço da CIA, Rodriguez Monegal publicaria, em agosto de 67, na Mundo Nuevo, um longo artigo de 20 páginas
colocando a posição da revista: “Mundo Nuevo condemns this action most energetically. It is not only that the
CIA has tricked so many independent writers, but that it has tricked precisely those who have shown their
independence in the face of fascism and Stalinism in times when it seemed almost impossible to utter a word.
People like Silone, Spender, Malraux, or Oppenheimer, who have rejected the seduction of one dogma have been
the involuntary victims of the maneuvers of the other. These revelations are painful, and they merely confirm
the obvious: how difficult it is to win and keep your independence. The situation of the independent intellectual
in the modern world is fraught with risk and misery. The writer or artist unwilling to say Amen or Heil, to sign
where, when, and what he is told, to recite the catechism or the latest party line, is for that very reason exposed
to the cruelest hoaxes. On one hand he is the victim of calumnies of the organized reactionaries - McCarthyism
or Stalinist; on the other he is tricked by the CIA. Fortunately, while lies or dirty tricks can shape current opinion
of a work of art or someone’s behavior, this is an ephemeral victory, because calumny cannot alter the quality
and independence of the work of art itself. The CIA or the corruptors from other groups can pay independent
intellectuals as long as the intellectuals don’t know about it. What they can never do is buy them outright. In:
www.archivodeprensa.edu.uy/r_monegal/entrevistas/entrev, acesso em 23 de fevereiro de 2006. Sobre Silone,
ver o interessante estudo que prova o envolvimento do escritor com a polícia fascista enquanto ele ainda era
membro do Partido. Cf.: BIOCCA, Mario e Canalli, Mauro. L’informatore: Silone, i coministi e la Polizia.
166
Seu primeiro número saiu em julho de 1966. Para se ter uma ideia do conteúdo da revista, a de número
10, de julho-setembro de 1968, publicaram Gino Germani (?Pertenece América Latina al Tercer Mundo?),
Marcos Kaplan (El Estado empresario en la Argentina), Pierre Clastres (Filosofía de la jefatura india),
Manuel Diégues Júnior (Las instituciones brasileñas), Enrique A. Sobrado (Influencia social de la Iglesia
en el Uruguay ) e Hector Martinez (Migraciones en Perú).
167
Em dezembro de 1960, o CCF lançou um interessante manifesto de alerta sobre os rumos que a revolta
cubana contra Batista havia tomado. Cf.: Declaration on Cuba. Biblioteca da Universidade de Chicago,
SCRC, IACF Collection, Box 205, series II.
78 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

que fazia a publicidade das conferências de grandes nomes do CCF: Raymond


Aron, Ignazio Silone,168 Stephen Spender (1909-1995),169 o escritor polonês
Kot Jelensky (1922-1977), Robert Lowell (1917-1977) e Ulli Beier (1922).170
Depois do Brasil, Botsford foi ao México, onde se criaria uma nova
revista: a Revista Mexicana de Literatura, sob a direção de Otavio Paz (1914-
1998) e de Carlos Fuentes (1928). Sem dúvida alguma, este novo projeto era
uma reação à criação, em Cuba, da Casa de las Américas, em 1959, cuja frente
foi tomada por Haydée Santamaría (1922-1980) até 1980, e que teve em sua
revista, sob a edição dos poetas Fausto Masó e Antón Arrufat, um dos veículos
mais importantes de disseminação da nova literatura latino-americana.171
Vega, o verdadeiro engenheiro da empreitada do ILARI na América
Latina, basearia suas operações a partir do espanhol radicado no Uruguai,
Benito Milla (1918-1987), o homem base para a publicação da revista
Temas, de Aldo E. Solari (1922-1989), que foi encarregado de organizar um
seminário internacional sobre a América Latina, e de Rodrigues Monegal,
que fez a Mundo Nuevo.
Financiado pelo CCF e pela Fundação Ford,172 sob os auspícios da
Universidade de Montevidéu e da Universidade da Califórnia, o seminário
uruguaio foi organizado em junho de 1965173 na capital uruguaia e editado, na
forma de livro, primeiramente pela Oxford University Press174.
Do ponto de vista teórico, a organização do seminário, como bem
observou Pierre Grémion, era a aceitação conceitual da autonomia das elites
– contrária às análises marxistas – que fundaria um ramo de investigações
nas ciências sociais: a do desenvolvimento político comparado. A atuação
desta estratégia era centrada, fundamentalmente, nos domínios da economia,
da sociologia e da ciência política.175 Os indivíduos a serem selecionados
168
Como Aron, Silone visitou o Brasil em outubro de 1962.
169
Conhecido poeta e romancista inglês, foi um dos editores da Encounter.
170
Intelectual alemão que viveu na Nigéria, foi fundador da revista Black Orpheu. Estudioso da cultura
yorubá, tornou-se importante africanista e publicou Black Orpheus: An Anthology of New African and
Afro-American Stories, em 1965.
171
O pintor Mariano Rodríguez foi seu presidente de 1980 a 1990. Roberto Fernández Retamar o substituiu.
172
Coletamos material referente a relatório do CCF de Paris sobre o financiamento de atividades feito pela
Fundação Ford. Cf.: Biblioteca de Chicago, SCRC, IACF, BOX 12, series IV. Um quadro comparativo
pode ser feito a partir do relatório do CCF sobre o recebimento de dinheiro de várias fundações (Fairfield e
Rockfeller, além de outras doações), acompanhado do montante enviado aos diversos comitês e escritórios
internacionais (21, em 1955). Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 11, Series IV.
173
Uma outra importante conferência foi realizada em Bruxelas (The Brussels Conference of European Latin
Americanists), em maio de 1969. Cf.: VINE, Katharine. The Brussels Conference of European Latin
Americanists, may 1969. In: Latin American Research Review, Vol. 5, N. 2 (Summer, 1970), pp. 99-10.
174
SEYMOUR, M. Lipset & SOLARI, Aldo. Elites in Latin America: Oxford University Press, 1967.
175
GRÉMION, Pierre. Intelligence de l’ anticommmunisme: Le Congrès pour la liberté de la culture à Paris.
(1950-1975). Paris: Fayard, 1995. p 554.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 79

nesta empreitada do CCF deveriam estar filiados à perspectiva liberal, ter


excelência intelectual, ter abertura internacional e capacidade de criação
institucional176. Era a partir daí a sustentação, através do CCF, de projetos
que apostavam nas elites latino-americanas como capazes de conduzir o
desenvolvimento econômico e a modernização social, inscritas que seriam
nos quadros institucionais da UNESCO, do ILPES (Instituto Latino-
Americano de Planificação Econômica)177e da Fundação Ford178. Participaram
do Congresso, além do sociólogo norte-americano Lipset e de Solari: Luis
Ratinnof, Robert E. Scott, Ivan Vallier, Frank Bonilla, Irving Louis Horowitz,
Aníbal Quijano Obregón, Henry A. Lansberg, Aparecida Joly Gouveia, Luiz
Scherz Garcia, Kenneth N. Walker e os brasileiros Darcy Ribeiro (1922-1997),
Fernando Henrique Cardoso (1931) e Glaucio Ary Dillon Soares (1936). Dos
participantes brasileiros no Congresso, em 1961, Fernando Henrique Cardoso
seria o diretor adjunto do ILPES (1964-1967), e Glaucio Soares, diretor da
FLACSO no Chile (1965-1968).
O desafio dos novos projetos era o de renovar intensamente os círculos
liberais e os social-democratas após a ruptura provocada pelo castrismo.
Vários membros do CCF tinham a compreensão de que Fidel Castro (1926)
vinha desenvolvendo profunda fascinação entre intelectuais,179 e, nesse
sentido, o CCF continuava centrado num tipo de trabalho sofisticado e que se
pretendia afastado de ações limitadas de contrapropaganda.
Encontramos agora uma imbricação muito mais complexa que a
anteriormente imaginada na confecção das teias intelectuais que giravam em
torno dos rumos do CCF no Brasil, da Cadernos Brasileiros e do ILARI, bem
como de uma ampliação das redes intelectuais, com ênfase especial na área
de ciências sociais.
A correspondência do Secretário-Geral do Congresso no Brasil e redator-
chefe da Cadernos Brasileiros, o jornalista e poeta romeno Stefan Baciu,180
editor de Internacional da Tribuna da Imprensa, jornal de Carlos Lacerda

176
Na introdução de livro de Lipset e Solari é dito que: “a suposição fundamental deste livro é que os fatores
que influenciam a capacidade das elites desempenham um papel principal para determinar a tendência de
distintos países ao crescimento econômico e à estabilidade política, e que vale a pena considerá-los em
profundidade sem ter em conta a importância de outras variáveis”. Cf.: LIPSET, S. M. & SOLARI, A.E.
(compiladores). Elites y desarrollo en América Latina. Buenos Aires: Paidós, 1971 (2a. ed.), p. 10.
177
Dependente direta do órgão da ONU, a Comissão para o Desenvolvimento da América Latina (CEPAL).
178
Daí o financiamento da Unesco para a criação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
179
GRÈMION, Pierre. Op.cit., p 555-557.
180
Baciu publicou pelo menos três importantes livros no Brasil. Cf.: BACIU, Stefan. Manuel Bandeira de corpo
inteiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966; BACIU, Stefan. Um continente em busca de uma doutrina.
Rio de Janeiro: Livraria. São José Editora, 1959; e BACIU, Stefan. Lavradio, 98. Histórias de um jornal de
oposição: a Tribuna da Imprensa ao tempo de Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.
80 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

(1914-1977), é reveladora não só da primeira fase do Congresso no Brasil e da


Cadernos Brasileiros (até o afastamento de Baciu, em agosto de 1962), como
das etapas seguintes,181 das investidas do CCF no Brasil e da construção de
imagens políticas, como veremos nos próximos capítulos. No que diz respeito à
segunda fase, a correspondência e os relatórios do substituto de Baciu, Vicente
de Paula Barretto,182 são igualmente interessantes e esclarecedores.183
Uma análise acurada desse material nos aponta aspectos importantes,
especialmente sobre as apreciações da conjuntura internacional ao longo da
existência do CCF no Brasil e da Cadernos: a preparação, nos primeiros anos da
década de 50, da montagem das filiais do CCF (comitês e bureaux) na América
Latina;184 os primeiros passos para a criação do Congresso pela Liberdade da
Cultura no Brasil, bem como a presença de Julian Gorkin (1901-1987)185 no
Rio de Janeiro e o envolvimento de intelectuais brasileiros com o projeto; o
financiamento da vinda de intelectuais europeus e norte-americanos ao Brasil; o
envio de recursos para o pagamento de salários da Cadernos Brasileiros e demais
atividades;186 a política de edição de livros e formação de bibliotecas187; parcerias
com universidades europeias, norte-americanas e brasileiras; relatório sobre a
preparação de congressos; e a troca de correspondência, em que destacamos as
de Julian Gorkin, Afrânio Coutinho188, John Hunt189 e Louis Mercier Vega.
No que diz respeito à correspondência de Julian Gorkin, por exemplo,
são surpreendentes suas informações sobre a vinda à América do Sul de
181
A direção permaneceu com Afrânio Coutinho, com breve assistência de Garrido Torres, uma vez que tanto
Coutinho como Vicente Barretto viam problemas em Garrido Torres. Cf.: Carta de Vicente Barreto a John
Botsford, de 13 de maio de 1963. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 47, Series II.
182
Vicente de Paula Barretto atualmente é professor da UERJ.
183
Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 471, Series II.
184
Correspondência de Julián Gorkin, de outubro de 1953. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago,
SCRC, IACF, BOX 211, Series II.
185
Líder do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), de orientação marxista-trotskista,
antistalinista, ficou exilado no México após a Guerra Civil espanhola. Foi diretor da revista Cuadernos e
secretário-geral do CCF para a América Latina.
186
Afrânio Coutinho recebia $3000 por ano, em 1965. Nas negociações salariais com os brasileiros,
aparecem sempre Ivan Katz e John Hunt. Em 1959, o salário de Coutinho era de 13.500 cruzeiros por
mês, bem como o de Mira, esposa de Baciu. Já este recebia 27 mil por mês. Contavam ainda da folha de
pagamento, Irina Panaitopolus (Cr$ 5.000,00), Nelson Beda (Cr$ 1.420,00), João da Costa (Cr$ 110,00) e
gastos com empregada doméstica (Cr$ 500,00). O gasto total do comitê brasileiro para o mês de julho foi
de Cr$ 170.314,70. Os colaboradores eram igualmente pagos, e seu pagamento variava de Cr$ 1.200,00
a Cr$ 12.000,00. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 47, Series II, Folder 4.
187
O Secretariado de Paris tinha consciência de que, no quesito livros, a literatura apoiada pelos comunistas
era a de grande sucesso no Brasil. Cf.: Relatório de viagem Hunt ao Brasil, maio de 1962. Biblioteca da
Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 151, Series II, p 13.
188
Expoente intelectual na área de Literatura, Afrânio Coutinho foi Presidente do Congresso pela Liberdade
da Cultura no Brasil e Editor-Chefe da Cadernos Brasileiros entre 1959 e 1970.
189
É particularmente interessante a trocada com Carlos Lacerda. John Hunt era assistente do Diretor
Executivo do CCF em Paris, Michael Josselson. Hunt seria um dos cinco agentes da CIA operando no
Secretariado do CCF em Paris. Cf.: PYBUS, Cassandra. The Devil and James McAuley.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 81

Babette L. Gross (irmã de Margarete Buber-Neumann [1901-1989] e esposa


de Willi Münzenberg [1889-1940]), o líder do Comintern, que, como a irmã,
Margarete, sobre quem trataremos mais adiante neste volume, se junta ao
Congresso da Liberdade da Cultura numa cruzada de críticas ao comunismo e
à União Soviética)190. Ou ainda a correspondência de censura que John Hunt
enviou a Stefan Baciu recriminando a insistência em concentrar seu trabalho
na crítica ao novo governo cubano. Há ainda as queixas feitas por Baciu a
Julián Gorkin – responsáveis que foram pelas gestações de criação do CCF no
Brasil, desde 1953191-, que evidenciam a ingerência direta da direção do CCF
no andamento das revistas e dos comitês192. Hunt chamava a atenção de Baciu
para a necessidade de reformular editorialmente a Cadernos Brasileiros e o
trabalho do CCF no Brasil193, uma posição que seria aparentemente reforçada
pela insistência de M. Cândido Mendes de Almeida e, principalmente, de
Keith Botsford, enviado de Hunt ao Rio de Janeiro, para que Baciu não
enfrentasse diretamente os comunistas, mas os isolasse.194. A avaliação de
Baciu, em carta dirigida a seu amigo Julian Gorkin, era a de que o Comitê
brasileiro seria modificado, “talvez com elementos do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB), onde militavam vários comunistas camuflados,
com os quais Mr. B. (Botsford) vem flertando”.
A intenção de Botsford, enviado do agente Hunt, e dos dirigentes do
CCF em Paris, seria amenizar a orientação “direitista” do CCF no Brasil.195
De fato, parece que tanto Baciu como integrantes do CCF, como Sidney
Hook (1902-1989), não aceitavam a nova estratégia do CCF de combate ao
marxismo e ao castrismo, que deveria ser mais sutil e mais abrangente.196
190
Carta de Julián Gorkin a Ferrandiz Alberx. Paris, 6 de abril de 1959. Biblioteca da Universidade de
Chicago, SCRC, IACF, BOX 209, Series II. Willi Münzenberg, como sabemos, acabou sendo assassinado
por Stalin em 1938, durante estada em Moscou. Deputado do KDP e integrante do Comintern, Münzenberg
atuou na International Aid Committee for the Victims of Fascism e aproximou-se do grupo londrino de
Bloomsbury. Teve importante papel na arregimentação da inteligência internacional a favor da URSS.
191
Relatórios detalhados destes esforços estão em: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF,
BOX 204, Series II.
192
Ao contrário do que afirma Ruiz Gavete em seu artigo, quando diz que o controle exercido pelo CCF
se limitava essencialmente a questões administrativas. Cf.: RUIZ GALVETE, Martha. Cuadernos del
Congreso por la Libertad de la Cultura: anticomunismo y guerra fría en América Latina. p. 5.
193
Correspondência de 5 de março de 1963. In: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box
211, Series II.
194
Correspondência de Louis Mercier de La Vega a Stefan Baciu, de 7 de março de 1962, comentando relato
de Baciu sobre o encontro com Botsford e Cândido Mendes. Idem, ibidem.
195
Correspondência de Stefan Baciu, em 26 de março de 1962. Nesta mesma carta, ao referir-se a Gustavo
Corsão, Baciu classifica-o como “democrata”. Idem, ibidem.
196
Em 7 de novembro de 1963, Vicente Barretto enviou correspondência a John Hunt fazendo esclarecimentos
sobre a Galeria de Arte que o CCF do Brasil iria inaugurar no Rio. Com o nome de Galeria Oswaldo Goeldi, o CCF
entraria com 51% do capital. Seu diretor de arte seria Clarival Valadares, e a gerente, Dulce Meyer (responsável
pelas exposições do Museu de Arte Contemporânea (MAC) e da Bienal). Cf.: Biblioteca da Universidade de
Chicago, SCRC, IACF, Box 43, series II, Folder 3. O endereço escolhido para a Galeria: Prudente de Moraes,
82 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Embora críticas à situação brasileira do CCF também fossem inicialmente


dirigidas a Afrânio Coutinho, diretor da Cadernos e presidente do secretariado
brasileiro do CCF,197 Baciu foi o elemento da alta direção que acabou sendo
substituído. Não por acaso, em 1963, Keith Botsford referia-se a Baciu como
maníaco198. Seu sucessor: Vicente de Paulo Barretto.199
As investidas do CCF no Brasil, a partir do novo direcionamento,
tornar-se-iam cada vez mais multiplicadas. Iam desde a organização do
Festival Internacional de Música do Rio de Janeiro, em agosto/setembro
de 1963, aos moldes dos festivais de Paris (1952), de Roma (1955) e de
Tóquio (1961), com ingerência direta do músico Nicolas Nabokov (1903-
1978)200, até a organização, junto à Universidade Federal da Bahia, em
setembro de 1963, do seminário A Contribuição da Tradição Africana para
a Música e a Arte do Século XX, numa cruzada de investimentos sobre a
questão racial que, no Brasil, vinha desde o financiamento das pesquisas
da UNESCO, como apontaremos a seguir. Neste assunto em particular, O
CCF e a American Academie of Arts realizaram, em setembro de 1965, a
International Conference on Race and Color201, de onde partiria a sugestão,
em correspondência de 17 de setembro de 1965, de Louis Mercier (1914-
1917) a Vicente Barretto, de que Florestan Fernandes organizasse um
seminário sobre a questão racial no Brasil.202
Da mesma forma, como acontecia no restante da América Latina, esta
nova fase do CCF no Brasil, inaugurada a partir do afastamento de Stefan Baciu,
também estendia de forma muito enfática suas influências nas áreas das ciências
129, Rio de Janeiro. Em seu número de maio a junho de 68, a Cadernos Brasileiros anunciou a exposição na
Galeria, para o segundo semestre daquele ano, dos seguintes artistas: Miguel Angel Batalla, Solange Magalhães,
Dulce Magno, Kenichi Kaneko, Tarcisio Feliz, Fernando Durval, Miriam Sambursky, Humberto Spindola e
Edgar Ketz. Cf.: Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: Ano VIII, n. 3, maio-junho de 1966.
197
Afrânio Coutinho esteve à frente da Cadernos Brasileiros durante toda a sua existência, ou seja, de 1959
a 1970. Além de literato com grande prestígio e de imensa biografia no campo universitário, Coutinho foi
redator colaborador da Readers Digest nos Estados Unidos, entre 1942 e 1947.
198
Carta de Keith Botsford de 22 de agosto de 1963, do México, ao Secretariado de Paris. Biblioteca da
Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 151, Series II. Sobre Baciu, Jonh Hunt escreveu que ele “tinha
horizontes terrivelmente estreitos (...) Embora seja verdade que sua reputação é a de um forte anticomunista,
mesmo assim não seria justo caracterizá-lo como um homem de direita. Ele é um democrata-socialista de
variante à direita, mas, ao mesmo tempo, é necessário lembrar que ele é um grande amigo de homens como
(Romulo) Betancourt”, presidente da Venezuela. Relatório de viagem de Hunt ao Brasil, maio de 1962.
Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 151, Series II.
199
Vicente Barretto foi igualmente o responsável pelo ILARI no Brasil e diretor-assistente da Cadernos
Brasileiros na nova estrutura implementada por Keith Botsford e John Hunt. Guimarães Padilha seria o
redator-secretário.
200
CF.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 47, Series II, Folder 8. Vide também informe
da Embaixada do Brasil em Tóquio. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 210, Series II.
201
Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 43, Series II, Folder 5. Do Brasil, a
participação de Florestan Fernandes.
202
Idem, ibidem.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 83

sociais. Para isto, o plano de Keith Botsford era o de fundar várias filiais do CCF
pelo Brasil, iniciativa que parece não ter dado muito certo. Na correspondência
de Baciu com Julian Gorkin, há uma série de referências a este respeito que
incluem a cópia de um artigo de jornal noticiando a inauguração do Comitê de
Pernambuco, sob a presidência de Gilberto Freyre (1900-1987).203
Os anúncios que a Cadernos Brasileiros passaria a publicar, a partir
da substituição de Baciu, nos informam sobre a diversidade de investidas
no mundo intelectual e das artes. É de 1968, por exemplo, o anúncio de
um ciclo de conferências de “Introdução ao Estruturalismo” ministrado por
Carlos Henrique Escobar (1933), Chaim Samuel Katz, Francisco Antônio
Doria, Luis Costa Lima e Miriam Lemle.204 Como pode ser observado na
Cadernos, a revista e o CCF do Brasil mudam de ênfase.205 É, portanto, a
partir do relatório da viagem de John Hunt ao Brasil, datado de maio de 1962
e do “Projeto para o desenvolvimento do Comitê Brasileiro”, de 1963206, que
observamos um plano mais amplo do sentido de sua atuação,207 contrário às
iniciativas de Stefan Baciu.208
De uma forma geral, a comparar a documentação das duas fases
diferentes do CCF e da Cadernos209 – anterior e posterior à concretização
203
Embora não haja registro do nome do jornal, a notícia é, provavelmente, do mês de abril de 1962. Cf.:
Anexo da carta de Baciu a Gorkin, de 11 de abril de 1962. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC,
IACF, Box 211, Series II. De qualquer forma, quando da vinda de John Hunt ao Brasil, em maio de
1962, Gilberto Freyre foi visitado como representante do CCF em Recife. Em São Paulo, era Domingos
Carvalho da Silva o escolhido, logo substituído. Cf.: Relatório de viagem de Hunt ao Brasil, maio de 1962.
Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, Box 151, Series II. pp. 5 e 6.
204
Os temas abordados respectivamente pelos conferencistas foram: Lévi-Strauss e o Estruturalismo; Foucault, o
Estruturalismo e a Psicanálise; O Estruturalismo e as ciências; Estruturalismo e Crítica Literária; Estruturalismo
e Linguística. Cf.: Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: Ano VIII, n. 3, maio-junho de 1968. p 140.
205
É interessante notar que, já no primeiro número após a saída de Baciu, o exemplar de outubro a dezembro
de 1962, a Cadernos Brasileiros foi integralmente dedicada à questão negra. Sobre o levantamento de todos
os números da revista por autor e assunto, ver: VANDEN BERGHE, Kristine. Op. cit. p. 255 e segs.
206
Projeto de alcance nacional assinado, provavelmente, por Stefan Baciu e sua esposa Mira (M.B./S.B), de
25 de maio de 1962. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 47, Series II.
207
São 15 páginas com detalhes de políticas, contatos e estruturação do trabalho, datadas de maio de 1962.
Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 151, Series II.
208
No livro de Baciu, Lavradio, 98 o autor faz pouco do sucesso que a nova estratégia do CCF para a
América Latina atingirá e diz textualmente: “A entidade estava querendo fazer uma abertura para a
esquerda, coisa que hoje se costuma chamar de ‘eurocomunismo’, através de um ‘diálogo construtivo com
os comunistas aproveitáveis’. Mas, como as outras sucursais latino-americanas da organização, a do Brasil
não concordou com a ideia. Tendo a central parisiense insistido nessa tese do auto-suicídio, decidi pedir
demissão do Congresso. Eu e Mira, que trabalhava na sucursal brasileira”. Cf.: BACIU, Stefan. Lavradio,
98. Histórias de um jornal de oposição: a Tribuna da Imprensa ao tempo de Carlos Lacerda. P. 145. Sobre
a ofensiva comunista contra o CCF do Brasil, há ainda um interessante relatório de Baciu datado de julho
de 1959. Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 62, Series III
209
Estas questões passam despercebidas no estudo de Kristine Vanden Berghe. Na verdade, sua colocação é
meramente que três grupos de redação se sucederam na revista (1959-1962; 1963-1966; e de 1966 em diante).
Não existem explicações sobre o alijamento dos integrantes da primeira fase. Do que a autora considera como
“uma transição da segunda para a terceira fase” da revista, há menção apenas à saída de Orlando Carneiro e
Nélida Piñon, ambos redatores, e a entrada de Kátia Valladares, além de um pequeno remanejamento interno,
84 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

de que a sublevação de Cuba havia se transformado em Revolução – bem


como de sua imbricação com as atividades do ILARI,210 relacionadas a uma
política internacional ampla, é que podemos dimensionar a importância de
iniciativas como a montagem da International Conference on Race and Color,
de Copenhagen, em 1965,211 do seminário internacional Litteratture Noire et
Pouvir Noire, em 1969,212 do seminário do Festival de Música do Rio, de
1963, e do seminário da Bahia, de suas pesquisas e publicações em ciências
sociais, além de outras reuniões, como a de discussão sobre os caminhos da
universidade brasileira que se acompanha nas páginas da Cadernos Brasileiros,
de reuniões, do financiamento de revistas e publicações, bem como do
incentivo para o intercâmbio entre intelectuais e atividades de pesquisa213. É
interessante notar o artigo de Florestan Fernandes (1920-1995), Como muda
o Brasil, publicado em 1966 na Cadernos Brasileiros, que traça um quadro da
dinâmica da sociedade brasileira “com vistas ao contexto civilizatório do qual
o Brasil faz parte”. No texto, Florestan Fernandes esclarece que seu ensaio
foi escrito “graças à condição de trabalho e sua estada no Institute of Latin
American Studies, da Columbia University”214.
Mesmo atentando para o fato de que as instituições tendem a insuflar
sua performance e objetivos, a abrangência, a magnitude e o montante de verbas
necessárias para a concretização das iniciativas estipuladas demonstram a
maneira tentacular de movimentação do Congresso pela Liberdade da Cultura.
Com a ressalva de que a tradição europeia de estudos sobre a
América Latina estava basicamente restrita às áreas de História, Literatura
e Linguística, Arqueologia e Antropologia, e aos vários ramos das ciências

permanecendo a equipe de comando intacta. Cf.: VANDEN BERGHE, Kristine. Intelectuales y Aniticomunismo:
La revista Cadernos Brasileiros (1959-1970). Leuven: Leuven University Press, 1997. p. 50-53.
210
As relações do ILARI e da Cadernos Brasileiros se estreitam. No que diz respeito à Mundo Nuevo,
em seu número 33, de março de 1969, são traduzidos quatro trabalhos de enfoque sócio-histórico sobre a
escravidão, que foram publicados na Cadernos de número 47, de maio e junho de 1968.
211
No Reports of the Seminar Program, há interessantes observações, feitas por John Hope Franklin,
a respeito das reações que as teses defendidas por Florestan Fernandes provocaram no seminário. Cf:
Reports of the Seminar Programme: Race and Color. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF,
BOX 62, Series III. pp 11 e 12.
212
Este já organizado pela Associação Internacional pela Liberdade da Cultura e pela Universidade de Fisk,
em Nashville, acontecido entre 9 e 11 de maio de 1969.
213
Vide a este respeito o European-Latin American Conference que se realizou em Bellagio, na Itália, em
1964. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF, BOX 205, Series II.
214
In: Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: Ano VIII, n. 3, maio-junho de 1966. Cf.: pp. 22-40. O ILAS,
como é chamado o instituto da Columbia, foi fundado “in 1962 in response to the government’s need for
knowledge of what was then a relatively understudied region”. Sobre o investimento das fundações norte-
americanas nas universidades e seus departamentos de relações internacionais e estudo de áreas para uma
teoria do desenvolvimento e do “terceiro mundo”, vide: BERMAN, Edward H. The ideology of Philantropy.
In: http://www.icdc.com/~paulwolf/oss/foundations.htm, acesso em 15/12/2007. Vide também o site do
ILAS: http://www.columbia.edu/cu/ilas/AboutUs/aboutus.html, acesso em 28 de maio de 2008.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 85

naturais, havia um crescente interesse na pesquisa e na docência nas áreas de


sociais, econômicas e políticas.
O que torna todas estas questões ainda mais instigantes é o fato de
que havia, já desde o início de suas atividades no Brasil, como no restante do
mundo, uma suspeita acirrada sobre o Congresso pela Liberdade da Cultura
e suas fontes de financiamento. Na tarde do dia 16 de abril de 1958, quando
Julian Gorkin, falava sobre A “Evolução biológico-social (sic) da juventude no
mundo totalitário e no mundo livre”, a uma plateia de cerca de 200 pessoas na
Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, houve
protestos e acusações de que a Faculdade, da qual fazia parte Afrânio Coutinho,
estaria se transformando em “sucursal da Embaixada norte-americana”215. Aliás,
o próprio boletim da Associação Brasileira pela Liberdade da Cultura informava
que, nesta quinta viagem que Gorkin fazia pela América Latina, e que coincidia,
no Rio de Janeiro, com a inauguração do comitê brasileiro,
Sua presença no Chile suscitou malicioso ataque do
poeta Pablo Neruda e dos comunistas, mas foi imediata a
reação da opinião democrática. Na Universidade de São
Marcos de Lima, sofreu inqualificável agressão de um
grupo de estudantes comunistas, que provocou grande
escândalo em todo o país.216

Stefan Baciu não deixaria de, queixosamente, informar Paris sobre


os constantes ataques dirigidos à Associação Brasileira do Congresso pela
Liberdade da Cultura. Segundo ele, por trás de tudo estavam os comunistas
e seus simpatizantes na grande imprensa. Os nomes de Jorge Amado (1912-
2001), Nelson Werneck Sodré (1911-1999), Egídio Squeff, Dalcídio Jurandir
(1909-1979), Brasil Gerson, do poeta Geir Campos (1924-1999) e o do
colunista literário do Jornal do Brasil, Mauritonio Meira (1930-2005), eram
apontados como importantes articuladores de uma campanha que insistia em
saber de onde vinha o dinheiro da Associação217.
Os rumores sobre a real natureza do CCF rondavam há muito os
círculos intelectuais e, à intelligenzia brasileira, não faltaria o acesso a
estas informações, como o próprio Baciu fez questão de salientar ao enviar
ao Secretariado de Paris, durante a crise que acabou em sua demissão, uma
215
Relatório número 3 de Stefan Baciu, de 1958. Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF
Collection, Box 205, series II.
216
Associação Brasileira do Congresso pela Liberdade da Cultura. Informações. Rio de Janeiro, no 1,
dezembro de 1958, p. 3.
217
Vide o relatório de 3 de agosto de 1959, enviado por Stefan Baciu ao Secretariado de Paris. In: Biblioteca
da Universidade de Chicago, SCRC, IACF Collection, Box 208, series II.
86 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

oportuna carta do literato mineiro Luiz Santa Cruz, listado, em 1961, como
“consultor para publicação” da Cadernos Brasileiros218, que levantava uma
série de suspeitas. Dizia ele:
1. É verdade que o Congresso pela Liberdade da Cultura recebe subvenções
de fundações americanas (Rockfeller, etc.) e as Universidades ianques
para a propagação de suas ideias no Brasil?
2. É verdade que o Sr. Botsford, sob pretexto de servir a Paris, na verdade,
está a serviço dos americanos, tentando pelos “Cadernos Brasileiros”
enquadrar a Inteligência brasileira, por seus sistemas de colonização,
bem imbecis e americanos?

Venho também comunicar, caso isso seja verdade, como estou quase
certo, do seguinte:
1. Avise o Sr. Botsford, se realmente quer servir à causa da liberdade,
sem imposições imperialistas americanas, que deixe de lado a
“Cadernos” se não pretende vê-los desaparecerem e abalar-se
inclusive o prestígio mundial do Congresso, ao menos perante a
inteligência livre do mundo, que não se vende nem ao capital russo,
mas também ao americano.
2. Avise o Sr. Botsford que Minas não vai recebê-lo e que, se ele ousar
seguir para Belo Horizonte, será corrido de lado e logo em seguida do
Brasil. Lamento muito ter que dizer isso, mas se o caso estourar antes
das eleições de Afrânio Coutinho (na ABL), ele perderá na certa.
3. Recuso-me a trabalhar para a revista, se não provadas suas finalidades
realmente pró-liberdade cultural, sem imposição nenhuma americana,
pois não sou traidor do meu país nem de sua inteligência.219

O que ocorria, de fato, é que o CCF estendia seus tentáculos em


todas as atividades que considerava fundamentais, inclusive as artísticas.
Em São Paulo, foi Roger Allain, da Galeria Selearte, inaugurada por
Giuseppe Baccaro, o escolhido em 1963 para representar o Comitê da
pauliceia, trabalho pelo qual receberia Cr$ 10.000,00 por mês, ou cerca
de $ 20,00 dólares. Ponto de encontro de artistas importantes, o trabalho
de representação do CCF seria feito na própria Selearte, localizada na Rua
Augusta para o lado dos Jardins.
218
Além de Cruz, consta também como consultor da Cadernos, Stephan Eleutheriades. In: Relatório de
Stefan Baciu sobre as atividades do CCF do Brasil em 1961. Biblioteca da Universidade de Chicago,
SCRC, IACF Collection, Box 47, series II.
219
Carta de Luiz Santa Cruz dirigida a Stefan Baciu de 28 de março de 1962. In: Biblioteca da Universidade
de Chicago, SCRC, IACF Collection, Box 211, series II.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 87

De uma maneira ou de outra, em que pesem as intrigas que existiam


no interior do próprio CCF e do fato de serem evidentes suas ligações com
os interesses do Departamento de Estado norte-americano, o papel do CCF
foi preponderante na disseminação de ideias, modelos e comportamento.
Acima de tudo, deixou marcas profundas na maneira de pensar e no ambiente
intelectual e permitiu que se fossem construídas tradições intelectuais que se
pretendiam independentes, modernas, democráticas e, muitas vezes, originais.
Mais ainda, alavancou, como se fosse por mérito intelectual, uma série de
carreiras literárias, acadêmicas, artísticas e científicas cujo ponto de partida
vinha ao encontro de uma política mais geral. De uma política mais geral que
se construíra, evidentemente, tecendo imagens de uns e de outros.
Entre o Exotismo
e a humilhação
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 89

As bem-aventuranças

Vendo ele as multidões, subiu a montanha. Ao sentar-se,


aproximaram-se dele os seus discípulos. E pôs-se a falar
e os ensinava dizendo:

Bem aventurados os pobres em espírito,


Porque deles é o Reino dos Céus.
Bem aventurados os mansos,
Porque herdarão a terra.
Bem aventurados os aflitos,
Porque serão consolados.
Bem aventurados os que têm fome de justiça,
Porque serão saciados. 220

A postura de humildade assume aqui, como também em várias


religiões não cristãs, uma conotação extremamente positiva, quiçá a mais
positiva de todas, pois, através da humildade, e somente através dela, estaria
assegurado o reino dos céus.
Parece-nos que a etimologia da palavra humildade esclarece de forma
bastante significativa esta condição apontada por Jesus e escrita por Mateus a
respeito de uma das virtudes mais apreciadas no homem. Humildade deriva
do antepositivo latino húmus, segundo o Dicionário Houaiss, e que significa
terra. O mesmo dicionário chama a atenção para a cognação de húmus com
homem, propriamente o habitante da terra (human), embora ambos não tenham
relação etimológica conhecida. Este humilde é aquele que possui a “virtude
caracterizada pela consciência das próprias limitações”, modéstia, simplicidade;
que tem sentimento de fraqueza, de inferioridade221. Não devemos esquecer que
do húmus, da terra, ou melhor, do constituinte orgânico do solo formado pela
decomposição das plantas e folhas pelas bactérias, nasce a vida.
É interessante notar que se, por um lado, ser humilde aparece como
grande virtude, humilhar-se – ou melhor, submeter-se, deixar-se comandar,
tornar-se então humilde –,embora possua a mesma raiz etimológica, assume
uma conotação de rebaixamento moral, de menosprezo, de deixar se abater,
de submeter-se, de sujeitar-se. Portanto, assume conotação pejorativa e
reprovável, distante da virtude, do correto, do desejável.

220
Bíblia de Jerusalém. Mateus, cap. 5, ver. 1-6, p. 1845.
221
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. p. 1555.
90 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Existe aí uma evidente tensão entre o caminho da humilhação


e o tornar-se humilde. A virtude, presente na humildade, se contrapõe à
humilhação, uma vez que enquanto uma aparece como qualidade, a outra está
presente como desqualificativo, porque injuria a dignidade, o autorrespeito. É
preciso levar em conta que ambas necessitam de visibilidade para existir, uma
vez que tanto a humildade quanto o humilhar-se se dão em relação ao outro.
Não são da ordem da intimidade, mas da relação (reação) com o outro. Assim,
para fazerem parte da realidade, o ser humilde ou o humilhado precisam ser
reconhecidos. Precisam estar e entrar em cena. Não existem nem humildade
nem humilhação em relação a si mesmo.
Outro aspecto importante a salientar é que humildade e humilhação – uma
enquanto virtude ou dignidade e a outra enquanto desqualificativo ou indignidade
– na verdade, e apesar do aparente, não se opõem; fazem parte de uma mesma
simbiose, de um mesmo plano. E isto se torna claro na linguagem política.
Como fica bastante evidente naquilo que Mateus pontifica como
a palavra de Cristo na Bíblia – e que transcrevemos antes –, os humildes
foram despojados e humilhados. Portanto, não existiu construção de uma
humildade dignificada sem a passagem pela prova da humilhação (Bem
aventurados os mansos, Porque herdarão a terra. Bem aventurados os
aflitos, Porque serão consolados. Bem aventurados os que têm fome e sede
de justiça, Porque serão saciados.). Para tornar-se digno, para sair do lugar
que da terra não se eleva, foi preciso ser rebaixado a este lugar e dele sorver
o húmus, o constituinte orgânico do solo, a camada fértil de onde nasce a
vida. Para atingir o reino dos céus, para ser, portanto, o “escolhido”, houve
necessidade de humilhação.
Temos agora um aspecto importantíssimo na questão (issue) da
humilhação, que é o próprio culto ao sofrimento. Se o humilde é o que foi
humilhado, em verdade a linguagem política heroifica a humilhação e cultua
o sofrimento, na medida mesma em que se aponta a possibilidade de que
haja uma elevação por sobre este patamar de humilhação. Ora, esta atitude
de espera pelo revoltar-se contra o sofrimento, contra o infortúnio do mais
fraco, é a própria enunciação da construção de uma trama que é em verdade
um drama. Nele – pelo fato de a humilhação adquirir visibilidade apenas
quando publicizada – a revolta ganha o status de tragédia social, pois é uma
luta contra a sociedade dos homens, travada por um ou mais indivíduos e
em público. Sob o ponto de vista do drama, dos que assistem à ação rebelde,
e reconhecem a humilhação, portanto a constroem, implica uma espécie
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 91

de satisfação masoquista (gozo) obtida através desses heróis rebeldes “que


se voltaram contra Deus ou contra alguma divindade”222 em virtude de seu
infortúnio, uma vez que há evocação de sofrimento.
Das narrativas sobre a Revolução Francesa, passando pelo Holocausto,
é recorrente a maneira pela qual é construído o drama do herói humilhado. Ou,
melhor, é recorrente evocar a humilhação para dignificar os vários sujeitos da
ação, seja ele o herói a ser construído seja ele o narrador. Uma das exceções
no século XX, no que diz respeito ao questionamento do que vamos chamar
aqui de evocar humilhante, pode ser encontrado na obra de Hannah Arendt,
em sua análise sobre o Holocausto, sobre a tirania soviética ou, para irmos
mais longe, da política e da ação, especialmente naquilo que elas engendram
como relação de poder. Provavelmente por não ter sido prisioneira do fetiche
do evocar humilhante é que Arendt tenha tido tantos problemas com seu
Eichmann em Jerusalém e com As origens do totalitarismo, sem deixar de
mencionar o tempo em que sua obra foi sumariamente ignorara na Europa.
Nesses trabalhos, não há heróis humilhados.
Se não fosse cinismo de nossa parte, poderíamos pensar que a maioria
desses relatos – que procura achar o humilde heroicizado em luta contra a
sociedade dos homens – segue à risca em sua construção narrativa algumas
reflexões feitas por Freud em seu ensaio Personagens psicopáticas no palco
(1906 [1905])223. Lá, ele se refere às características do drama (ação e diálogo).
Seguindo Aristóteles, postula que o propósito do drama é causar terror e
piedade e purgar as emoções, possibilitando desta forma recursos de imenso
prazer ao assistente. Esse exercício, que relaciona intensamente o sofrimento
e o infortúnio, diz Freud, deve possibilitar o gozo não só nos momentos de
triunfo, mas nos próprios presságios de derrota e infortúnio, como uma espécie
de satisfação masoquista.
Daí todo o fascínio masoquista pelos humildes e pelos humilhados.
Daí a tendência em outorgar, sem questionamento, dignidade e virtude ao
humilde ou ao humilhado. Daí a facilidade em transformá-los em heróis,
porque inquestionáveis, herdeiros do Reino de Deus.
No que diz respeito ao nosso “drama político”, Robert Lowell em
Buenos Aires, chamamos a trajetória dos incidentes envolvendo a humilhação.
Não sem motivo, Robert Lowell escreveria um longo poema chamado
Buenos Aires:
222
Na versão em inglês, FREUD, Sigmund. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of
Sigmund Freud, Vol. VII.
223
Idem, ibidem. p. 305.
92 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

In my room at the Hotel Continental


a thousand miles from nowhere,
I herd
the bulky, beefy breathing of the herds.

Cattle furnished my new clothes:


my coat of limp, chestnut-colored suede,
my sharp shoes
that hurt my toes.

A false fin de siecle decorum


snored over Buenos Aires,
lost in the pampas
and run by the barracks.

Old strong men denied apotheosis,


bankrupt, on horseback, welded to their horses, moved
white marble rearing moon-shaped hooves,
to strike the country down.

Romanic military sculpture


waved sabers over Dickensian architecture,
laconic squads patrolled the blanks
left by the invisible poor.

All day I read about newspaper coup d’Etats


of the leaden, internecine generals –
lumps of dough on the chessboard – and never saw
their countermarching tanks.

Along the sunlit cypress walks


of the Republican Martyrs’ graveyard,
hundreds of one-room Roman temples
hugged their neo-classical catafalques.

Literal commemorative busts


preserved the frogged coats
and fussy, furrowed foreheads
of those soldier bureaucrats.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 93

By their brazen doors


a hundred marble goddesses
wept like willows. I found rest
by cupping a soft palm to each hard breast.

That night I walked the streets.


My pinched feet bled in my shoes. In a park
I fought off seduction from the dark
python bodies of new world demigods.

Everywhere, the bellowing of the old bull –


the muzzled underdogs still roared
for the brute beef of Peron,
the nymphets’ Don Giovanni.

On the main square


a white stone obelisk
rose like a phallus
without flesh or hair -

Always my lighthouse
homeward to the hotel!
My breath whitened the winter air,
I was the worse for wear.

When the night’s blackness spilled,


I saw the light of morning
on Buenos Aires filled
with frowning, starch-collared crowds.

******************

No meu quarto do Hotel Continental,


a mil milhas de lugar nenhum,
ouvi a pesada e crua respiração dos rebanhos.

O gado supriu minhas roupas novas


meu casaco macio de camurça castanha
meus sapatos agudos
que feriam meus pés.
94 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Uma falsa atmosfera fin de siècle


resfolegava por sobre Buenos Aires,
perdida nos Pampas,
cortada pelos quartéis.

Homens velhos e fortes renegavam a apoteose:


Falidos, montados, soldados a seus cavalos, moviam
lápides brancas empinando cascos em meia-lua
para golpear o país.

A estatuária militar romana


agitava seu sabre sobre a arquitetura dickensiana
esquadrões lacônicos vigiavam o vazio
deixado pelos pobres invisíveis.

Todo o tempo eu lia sobre golpes de estado jornalísticos


de plúmbeos generais fratricidas
peças de massa sobre o tabuleiro de xadrez – e nunca vi
a contramarcha de seus tanques.

Ao longo dos caminhos de ciprestes iluminados pelo sol


do cemitério dos mártires republicanos,
centenas de templos romanos de um só ambiente
prendiam-se a seus cadafalsos neoclássicos.

Bustos comemorativos rijos


preservavam as casacas
e as testas tensas e encrespadas
de soldados burocratas.

Por suas portas de latão


uma centena de divindades de mármore
lacrimejava como os chorões. Eu achei descanso
apalpando suavemente cada um dos seios tesos.

Naquela noite caminhei pelas ruas.


Meus pés feridos sangravam nos meus sapatos. No parque
lutei contra a sedução dos escuros
e traiçoeiros corpos dos semideuses do novo mundo.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 95

Por todos os lados, os urros do touro velho -


os oprimidos amordaçados ainda rugiam
pela carne crua de Peron,
o Don Giovanni das ninfetas.

Na praça principal
um obelisco branco
se ergueu como um falo
sem carne ou pelo.

Meu farol sempre


me levava ao hotel!
Meu hálito embranquecia o ar do inverno,
Eu era um trapo usado.

Quando a treva da noite se espraiou,


vi a luz da manhã
recobrir Buenos Aires
com multidões sisudas e engomadas.

A perspectiva que o poema nos dá é de alguma coisa que acontece


ao longe, de uma maneira solitária, perdida, localizada. Extenuada até. No
sul do mundo, num novo mundo, imponente e traiçoeiro. Numa atmosfera
de madrugada invernal, quase lânguida, que percebe o outro – a cidade,
seus símbolos e suas personagens – com aguda estética de estranheza. Um
sentimento de Unheimlichkeit224, isto é, de uma qualidade de sentir o outro
presente no poeta e no poema como assustador, estranho, exótico, cheio de
significados secretos aludidos e que no poema veem à luz, procurando produzir
e confirmar esta sensação de que este unheimlich (estranhamento) se tornou
verdadeiro porque o outro é em essência, pelos significados que carrega, não
familiar (unheimlich), não assimilável.
Dos sapatos ao casaco de camurça, nada é prolongamento do poeta.
Tudo lhe é exterior, inclusive a dor sentida na carne dos pés. Uma dor que,
em verdade, coloca para fora a não aceitação do que ele prevê como presságio
de derrota e infortúnio causada por aqueles “homens velhos e fortes” prontos
a golpear o país, mas que eram de certa forma invisíveis, porque suas armas
de guerra não eram vistas, mas estavam lá, como ele mesmo, presentes e
perceptíveis, mas em lugar nenhum.
224
Cf.: FREUD, Sigmund. “O estranho”. pp. 233-273.
96 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Nesta qualidade – a de poder antever o presságio de derrota e


infortúnio que cairia sobre Buenos Aires e toda a Argentina em 1962 – a
posição do poeta é de se elevar, de se sobrepujar para um lugar de combate
e de indignação. De combate, porque não se deixaria seduzir pelos corpos
dos “semideuses traiçoeiros do novo mundo” e porque não abandonaria
para as estátuas e para os mártires republicanos do cemitério da Ricoleta a
incumbência da vigília de uma situação em que se sobressaiam os cadafalsos
e o tabuleiro de xadrez. De indignação, porque não se portaria com a
indiferença da multidão sisuda e engomada.
Robert Lowell havia publicado este poema em fevereiro de 1963, no
New York Review of Books225, logo após uma breve viagem à Argentina. A
maneira pela qual o poema foi construído e concebido vinha bem ao encontro
da trajetória poética do escritor. Lowell, desde o início dos anos 1950, trabalha
versos livres, métrica solta, abandono da rima e uso da fala coloquial. Uma
espécie de introdução da prosa na poesia. Era irônico e paradoxal, fazendo uso
do fantástico, dando voz a emoções.
Mais do que tudo, entretanto, o poeta fez com que sua autobiografia
estivesse presente o tempo todo em seu trabalho. E Buenos Aires era a
concretização da experiência de Lowell na Argentina às vésperas de um golpe
militar. Vejamos como tudo começou.
O poeta e dramaturgo Robert Traill Spence Lowell Jr. nasceu de uma
respeitável e proeminente família de Boston, em 1917. Na intimidade, era
conhecido por Cal, um diminutivo dos apelidos de Calígula e de Caliban, ou
ainda de Calvino, nome que recebera, ainda na juventude, em virtude de seu
temperamento avesso226. Era sobrinho-neto do poeta e crítico James Russel
Lowell e primo do poeta Amy Lowell (1874-1925), ambos pertencentes
ao eminente círculo das letras norte-americanas. Estudou em Harvard e no
Kenyon College227, com John Crowe Ransom (1888-1974)228. Pós-graduou-se
na Universidade Estadual de Louisiana, com Cleanth Brooks (1906-1994) e
Robert Penn Warren (1905-1989), como Ransom, outro participante do grupo
dos Agrarians, sobre o qual trataremos mais adiante.
Seu dois primeiros livros, Land of Unlikeness, de 1944 e Lord Weary´s
Castle, de 1946, estão marcados por sua conversão ao catolicismo e exploraram
225
O poema seria também publicado na coletânea de 1964, Union Dead.
226
Lowell cursou o colegial no tradicional colégio católico St. Mark. As duas primeiras referências são
a Calígula, Imperador de Roma, e a Caliban, da peça de Shakespeare. Cf.: Mariani, Paul. Lost Puritan: A
Life of Robert Lowell. p. 20 e segs.
227
Saiu de Harvard e transferiu-se para Ohio a conselho psiquiátrico depois que seus pais rejeitaram sua noiva.
228
Graduou-se em 1940. Cf.: The Academy of American Poets. http://www.poets.org/poets.cfm, acesso em
10 de abril de 2003. Ramson era membro do Agrarian Movement.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 97

o lado obscuro do legado puritano nos Estados Unidos229. Na década de 50,


entretanto, rompeu com esta tradição, influenciado por outros poetas, entre eles
sua grande amiga Elizabeth Bishop230, e por sua própria condição psíquica.231
Em 1962, quando chegou à América do Sul, Cal era um dos expoentes
da chamada confessional poetry, uma espécie de produção poética que se
rebelava contra a impessoalidade da poesia americana de então, e que partilhava
com outros poetas como Sylvia Plath,232 Anne Sexton e John Berryman. Seus
poemas lidavam especialmente com a loucura (madness), da qual ele próprio
era prisioneiro, e a solidão. Recebera, em 1947, o Pulitzer Prize por Lord
Weary’s Castle e o National Book Award for Poetry por Life Studies, em 1960.
Em 1973, ganharia novo Pulitzer com The Dolfhin. Recebera ainda o Harriet
Monroe Poetry Award, em 1952, e o Guinness Poetry Award, em 1954.
Charmoso, e bem apessoado, Lowell desfrutava da intimidade de
intelectuais importantes nos Estados Unidos. Hannah Arendt, Mary McCarthy,
Elizabeth Bishop (1911-1979), Edmund Wilson (1895-1972), William Carlos
Williams (1883-1963), por exemplo, faziam parte de seu círculo de amizades.
Com uma relação problemática com o álcool, Lowell era vítima frequente
de colapsos nervosos, tendo sido internado várias vezes, uma quando de sua
estada em Buenos Aires. Acabaria morrendo muito cedo. Tinha apenas 60
anos de idade quando sofreu um ataque cardíaco fulminante no interior de um
táxi em Nova Iorque, em 12 de setembro de 1977.
O convite que lhe havia sido feito em 1962 para ir a Buenos Aires
partira do Congress for Cultural Freedom. Uma iniciativa do estratégico plano
da Cultural War desenvolvido pelo Departamento de Estado Norte-Americano
e parte das novas metas haviam sido estabelecidas em 1961 juntamente com
a intensificação do programa de intervenções coordenado, na América Latina,
por Keith Botsford e Louis Mercier Vega, como vimos anteriormente.
A viagem de Lowell começara em 4 de junho daquele ano. Robert
Lowell e sua segunda esposa233, a também escritora Elizabeth Hardwick
(1916-2007), trariam a filha de cinco anos de idade e passariam o verão
norte-americano como convidados do CCF. A viagem começou em Trinidad
e Tobago. Daí, breves estadas em Belém, Recife e Salvador, por 10 dias, e,
229
Lowell era episcopal. Cf.: The Academy of American Poets. Página citada.
230
Marcas importantes teriam ainda sido as de W.D. Snodgrass e de Allen Ginsberg. Lowell conheceu
Bishop em 1947 e a ela dedicou o poema Skunk Hour, de seu livro Life Studies (1959).
231
Cf.: http://www.kirjasto.sci.fi/rlowell.htm, acesso em 18 de julho de 2003.
232
Sylvia foi sua aluna na Boston University em 1959.
233
Sua primeira esposa foi a escritora Jean Stafford, com quem se casou, à revelia dos pais, em 1940,
ao converter-se ao catolicismo. Divorciaram-se oito anos depois. Em 1949, casou-se com Hardwick.
Divorciaram-se em 1972 para o poeta casar-se com a escritora Caroline Blackwood de quem estava se
divorciando para voltar para Hardwick quando faleceu.
98 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

depois, o Rio de Janeiro. De lá, deveriam seguir para Buenos Aires234, Chile e
Peru, que, aliás, jamais chegaram a visitar. 235
A chegada, especialmente a de Lowell, já vinha marcada por uma
espécie de áurea que estava sendo criada em torno do poeta, não apenas pela
qualidade de seus trabalhos – algumas vezes desigual –, mas em virtude de sua
própria personalidade. O apelido de Cal não era um acidente em sua vida nem
era despropositado o fato de que Carl Jung (1875-1961) tivesse dito à mãe do
poeta, em 1939, quando ela fora especialmente a Zurique para ter uma entrevista
com o psicanalista, que “se o seu filho é como a senhora o descreveu, ele é um
esquizofrênico incurável”236. A vida pessoal do poeta estava envolta em problemas,
desde o acidente de carro que provocara a desfiguração de sua primeira mulher,
Jean Stafford – e um estranho processo na justiça em virtude disso –, até seus
internamentos psiquiátricos, suas paixões repentinas por várias mulheres e sua
prisão, em 1943, quando, declarando-se “oponente consciente” da Segunda
Grande Guerra, Robert Lowell, numa fase de radicalismo católico que duraria até
os anos 50, foi condenado a cinco meses de prisão, não sem antes escrever uma
longa carta ao presidente F.D. Roosevelt (1882-1945). A recusa foi notícia em
vários jornais, inclusive matéria de capa do The New York Times e sensação em
Boston, já que a família do poeta pertencia ao círculo aristocrático da cidade. Seus
surtos nervosos também faziam crescer ao seu redor a áurea de excentricidade.
Em 1962, com 43 anos de idade, Lowell já era bastante conhecido.
Fazia parte do seleto grupo de intelectuais da revista Partisan Review,
especialmente desde que para lá mandara os manuscritos de Lord Weary’s
Castle, em 1945, e do sucesso que começara a fazer a partir de 1947. Críticos
ferrenhos do stalinismo, este grupo e a própria revista passaram para a lista
dos intelectuais de esquerda a serem secretamente cotejados pela CIA em sua
estratégia da Cultural War a partir da década de 1950.
Além de prêmio e honrarias, e de passagens por universidades,
Lowell que acreditava que “desde que o marxismo perdera sua integridade
intelectual, seus aderentes estavam limitados àqueles a quem esta perda
não tinha sentido algum”, esteve envolvido juntamente com Hardwick em
um incidente de perseguição comunista na Universidade de Yaddo no ano
1948237, imediatamente antes de ter uma de suas crises nervosas de grandes
234
Hardwick, pressionada pelo estado alcoólico de Lowell no Rio de Janeiro, nem chegou a embarcar para
Buenos Aires.
235
MARIANI, Paul. Op.cit. p. 307.
236
“If your son is as you described him, he is an incurable schizophrenic”. In: MARIANi, Paul. Op. cit. p.
80. Também em HAMILTON, Ian. Robert Lowell: a Bibliography. p. 63.
237
Diz respeito à investigação do FBI sobre a escritora Agnes Smedley e uma diretora da Universidade,
Elizabeth Ames, em 1948 e 49.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 99

proporções. Este incidente, que ganhou bastante notoriedade e que colocou


Lowell em evidência, aconteceu na mesma época em que se organizava uma
reação à Conferência pela Paz Mundial organizada em prol dos comunistas
no Hotel Waldorf Astoria de Nova Iorque, em março de 1949. Neste
episódio, Sidney Hook, ex-comunista, ex-informante do FBI, professor de
Filosofia da NYU, e supostamente consultor contratado pela CIA, conclamou
intelectuais como Arthur Schelssinger, Mary McCarthy, Nicolas Nabokov,
Dwight Macdonald (1906-1982), Robert Lowell, Bowden Broadwater
(1920-2005), Nicola Chiaromonte (1905-1972), William Phillips (1908-
2002), Philip Rahv (1908-1973) e Arnold Beichman (1913) a interrogarem
os conferencistas sobre as liberdades na URSS238. Lowell não só fez sua
parte como se tornou no período obcecado pela questão, especialmente em
sua relação com o catolicismo.
De uma forma geral, entretanto, ao mesmo tempo em que desaprovava
a esquerda marxista soviética, também se preocupava com o que ele chamava
de chauvinismo norte-americano. Crítico ferrenho da Guerra Fria, Lowell
tinha status e prestígio suficiente para participar da recepção que Kennedy deu
na Casa Branca, em maio de 62, quando recebeu André Malraux (1901-1974),
naquele tempo Ministro da Cultura Francês e um dos primeiros intelectuais
a integrar o CCF. Suas investidas públicas faziam, entretanto, com que seus
inimigos se perguntassem: “como este porta-voz das corretas causas liberais
persistentemente revela, na mania (estado maníaco), um fascínio por tiranos e
monstros de direita?”.239
O casal chegou ao Rio de Janeiro em 25 de junho de 62240. No
Rio, hospedados no Copacabana Palace, deveriam passar inicialmente seis
semanas, mas a estada prolongou-se. O plano inicial desenhado pelo CCF era
o de que, através das conferências e entrevistas programadas com a imprensa
e dos jantares que deveria atender, Lowell se contrastasse com escritores de
esquerda, como o chileno Pablo Neruda (1904-1973)241 e provavelmente com
o brasileiro Jorge Amado, apoiado fortemente pela URSS.
Este contraste, a final de contas, tinha sentido. Fazia parte da estratégia
de dar suporte a artistas, intelectuais e profissionais que potencialmente se
colocavam como críticos ao regime soviético, caso de Lowell242.
238
Cf.: POWERS, Richard Gids. Not Without Honor: The History of American Anticommunism.
239
Cf.: HAMILTON, Ian, op. cit., p 343.
240
Keith Botsford, como vimos, era representante oficial do Congresso na América Latina, encarregado de
acompanhar Lowell nas viagens. Cf.: SAUDERS, Fraces Stornor. Op. cit. p. 348 e segs.
241
MARIANI, Paul. Op. cit., p. 307.
242
Na agenda de financiamento estavam colóquios, viagens de intelectuais, ajuda a intelectuais e artistas
perseguidos e uma rede internacional de periódicos, dirigida pelo suíço-alemão François Bondy.
100 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

A política oficial norte-americana pretendia promover uma espécie


de “americanização” do mundo, que tinha se iniciado logo após o término da
Segunda Guerra no Continente europeu e que se espalharia pelas atividades
financiadas pelo Departamento de Estado na América Latina, África e Ásia.
Este incremento dos vínculos intelectuais e culturais com o continente
americano vinha ao encontro do entendimento do Departamento de Estado
de que havia uma necessidade premente de solidificar um consenso
anticomunista sobre a inteligência.
Nos planos desenvolvidos pelo CCF para Robert Lowell, tudo parecia
correr bem nos dois primeiros meses – inclusive Afrânio Coutinho tomara
para si a tarefa de traduzir Lowell para o português –, até que o poeta começou
a exagerar na bebida e mostrar-se obcecado pelos problemas da Guerra Fria.
Embora Elizabeth Hardwick tenha abandonado a viagem, em 1 de setembro
1962, Lowell seguiu do Rio de Janeiro para Buenos Aires.
Em 4 de setembro, ele chegava à capital Argentina. Imediatamente
foi convidado para almoçar na Casa Rosada, recebido por José María Guido
(1910-1975), que logo se tornaria o presidente da Argentina, em meio a
uma crise política bastante aguçada. Além de insultar Guido, Lowell, que já
chegara bêbado à recepção,243 saiu do almoço e, nu, iniciou uma espécie de
turnê, montando em várias das estátuas equestres do centro de Buenos Aires,
proclamando-se, a partir daí, frequentemente, o César da Argentina, exaltando
a figura de Hitler e chamando a seu convívio reconhecidos intelectuais
argentinos de tendência comunista.
O incidente e a estada de algumas semanas de Lowell na Argentina
acabaram gerando uma série de constrangimentos diplomáticos244 e renderam
ao poeta, além de uma internação na Clínica Bethlem, em Buenos Aires, e
dali uma transferência para um hospital psiquiátrico em Connecticut, a
confirmação de uma situação em que, a partir de uma postura de humilhação,
aliás uma recorrência na vida de Robert Lowell, se concretizou a possibilidade
de construir a transição da personagem humilhada para a idealização do herói.
No caso de Buenos Aires, temos a construção da personagem
humilhada com a publicização do surto nervoso. Esta acontece tanto pela
recordação através da feitura e da publicação do próprio poema na forma
de autobiografia, como pela circunstância de abandono de que Lowell fora
vítima quando, farto e constrangido, o representante do CCF para a América
Latina, Keith Botsford, foi embora para o Rio de Janeiro, deixando Lowell
243
Havia tomado seis martinis duplos já antes do encontro. Cf.: HAMILTON, Ian, Op. cit.
244
E completo embaraço ao representante do CCF para a América Latina, Keith Botsford.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 101

entregue à própria sorte no Hotel Continental, em meio a um surto psicótico, e


somente retornando para buscá-lo por insistência de Elizabeth Bishop.
Visivelmente humilhado, mesmo porque prisioneiro do infortúnio
da loucura, Lowell se expõe. Mostra-se no poema como a vítima do
infortúnio político que visualiza – e não a apática multidão sisuda e
engomada, ao longe, de uma maneira solitária, perdida, localizada.
Extenuada até. No sul do mundo, num novo mundo, imponente e traiçoeiro.
É ele quem percebe sofregamente a armadilha dos velhos golpistas e quem
vê a resistência circunscrita aos heróis mortos e às estátuas lacrimejantes
do Cemitério da Ricoleta. É ele quem tem os pés em sangramento e é
ele que só encontrara conforto apalpando os seios tesos das divindades
frias de mármore. Era a ele, portanto, que todo o sentido emocional do
drama, toda a solidariedade e toda a simpatia deveriam ser dirigidos, pois
dele partiram os presságios de derrota e infortúnio, com aguda estética
de estranhamento, de Unheimlichkeit, de sentir e pressentir o outro como
assustador, inassimilável, e ao mesmo tempo caricatural.
Destemido, o Lowell humilhado se projeta como herói porque reserva
para si o enfrentamento da sociedade dos homens, desafiando a autoridade
usurpadora do poder e declarando-se, inconformadamente, César. Daí poder
ficar nu, montar as estátuas, desafiar uma Argentina em crise. A mesma
Argentina que ele vê lutar, enaltecendo o que ele caricaturalizou como um
Perón (1895-1974) decadente, o Don Giovanni das ninfetas. Uma alusão direta
e de acenos trágicos à ópera de Mozart (1756-1792), aquele drama giocoso.
É a partir deste lugar caricatural, quase comediático, em que personagens
se imiscuem com as alusões ao gado, a um líder (Perón) decadente e dissoluto,
é que o poeta pôde escrever e publicar o poema projetando-se como o herói que
no drama eleva-se da humilhação. Cultua seu sofrimento e sua sensibilidade,
heroifica-se como homem político, nesse e em episódios futuros. Em 1965,
quando declinou do convite do presidente Lyndon Johnson (1908-1973) para
participar do White House Festival of Arts, porque discordava da política
exterior norte-americana e porque, dizia ele:
Estamos correndo o risco de imperceptivelmente nos
tornarmos uma nação explosiva e chauvinista (...) Sinto
que estou melhor servindo ao senhor e à nação não
fazendo parte.245
245
We are in danger of imperceptibly becoming ana explosive and suddenly chauvinist nation(..). I feel I
am serving you and ower country best by not taking part. Carta reproduzida no New York Times, em 3 de
junho de 1965.
102 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

E na ativa participação de protesto contra a investida dos Estados


Unidos contra o Vietnã, em 21 de outubro de 1967, que reuniu 35 mil pessoas
em frente ao Pentágono.
Sobre sua estada em Buenos Aires, o poeta argentino Carlos Babarito
(1955) escreveu Aeropuerto de Ezeiza, 1962:

¿Como luchar contra la locura


dolor azul en ninguna e todas las partes?
Del mundo ahora apenas puede ver el
dorso,
un número seco, la zarza antes de las llamas,
no puede subir desde lo oscuro,
desatar el nudo, calmar el hambre:
hay una aguja que perfora una a una las
olas,
un agua salobre y espesa
que llega hasta la boca luego de
infinidad de conductos,
un antiguo hedor que no se disipa.
En la palabra, la sutura.
En la razón, cuerpos que no se adhieren
a sus sombras,
ecos que resuenan sin origen aparente,
una memoria de infancia, soterrada,
transformada en
escarcha.
Al sueño sucede una obsesión.
La obsesión precede a la muerte, con
precio y sin
estética.
Y la muerte tarda, viene a lomo de perro
con tres patas.

“Quiero empezar todo de nuevo


con usted”
dice.
Se lo dice a una desconocida
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 103

como se lo diría, en su desesperación,


a una rueda que no para de girar,
a un evangelio bajo la roca,
a un pez envuelto en pasado acre.
Y sopla piedad desinflada, apócrifa. 246

Depois do episódio, o Congresso for Cultural Freedom ainda


convidou Lowell para viajar mais duas vezes, uma para o México e outra
para a Venezuela.
Perseguia-se uma nova identidade, não para o poeta, mas para o
continente. Para isto, eram necessários os heróis. O sonho seguido pela
obsessão de transformar. Ou, como dirigia, alguns anos depois, Mercier de
la Vega, críticas que pudessem ser utilizadas “por outros” para demolir as
velhas estruturas .247

246
http://www.brindin.com/psbarrob.htm, acesso de 23 de fevereiro de 2003.
247
Cf.: Biblioteca da Universidade de Chicago, SCRC, IACF Collection, Box 205, series II.
O ódio e a ira:
testemunho e totalitarismo
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 105

Quanto mais se o ouvia, mais claro se tornava que sua


inabilidade de falar estava intimamente relacionada com
sua inabilidade de pensar, especialmente de pensar em
relação ao ponto de vista das outras pessoas. Não havia
qualquer possibilidade de comunicação com Eichmann,
não porque mentisse, mas porque estava “fechado”
às palavras e à presença de terceiros, e, portanto, à
realidade como tal.
Hannah Arendt248

Você pensa saber quem é e de repente descobre que se


transformou no que os outros querem enxergar em você.
Antonio Muñoz Molina249

No campo de concentração de mulheres alemão, em


Ravensbruck, vi Milena Jesenká pela primeira vez. Era
outubro de 1940. Foi num caminho estreito, entre o lado
de trás das barracas e o alto muro do campo guarnecido
de arame farpado fortemente carregado de eletricidade,
que ela veio ao meu encontro. Estava ali apenas há
poucas semanas, um “acréscimo”, como denominavam
as recém-chegadas. Eu mesma fora transportada para
Ravensbruck havia apenas umas dez semanas, mas
em comparação aos “acréscimos” já então me sentia
prisioneira velha. Num campo de concentração algumas
semanas representavam muito. Além disso, pelo fato de
ter estado nas prisões soviéticas durante dois anos, antes
de ser entregue à Gestapo, e permanecido também num
campo de trabalhos forçados na Sibéria, com experiência,
portanto, em campos de concentração, fui indicada pelo
Chefe de Turma no Pavilhão dos Marginais, papel para o
qual eu absolutamente não estava em condições e que me
causava sofrimento, pois não conseguia me haver com
as prostitutas. Pouco antes da chegada de Milena, fui
promovida, na qualidade de Chefe de Pavilhão, para os
Pesquisadores da Bíblia; pareceu-me que saíra do inferno
e fora para o céu.
Nestas circunstâncias conheci uma das personalidades
mais admiráveis que jamais me apareceram na vida.
Milena era alta, dos ombros largos erguia-se uma
cabecinha bonita; o rosto estava marcado pelo sofrimento
248
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. p 65.
249
MOLINA, Antonio Muñoz. Sefarad.
106 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

profundo, os olhos ensombreados e a pele terrosa de


prisão. Usava um comprido e frouxo uniforme de
prisioneira e botas grandes demais. Debaixo do lenço de
cabeça obrigatório escampavam-lhe alguns cabelos pela
testa. Nunca me esquecerei do gesto com que me deu a
mão no primeiro movimento. Quando peguei sua mão,
ela me disse com leve ironia: “Por favor, não aperte nem
sacuda como vocês, alemães, costumam fazer. Os meus
dedos estão doentes”. Esta era, pois, a mulher que no seu
tempo de jovem fora amada por Franz Kafka. Mas nessa
ocasião eu ainda não sabia disso.250

A ssim são os primeiros parágrafos do pequeno texto de pouco mais


de cinco páginas de Margarete Buber-Neumann, publicado em 1960 na revista
Cadernos Brasileiros. Profundamente tocantes, os escritos apareciam sem
introdução, sem explicações, sem nenhuma chamada especial. Ali, apenas a
citação de praxe no índice e, ao final do periódico, uma breve nota sobre a
autora: “Viúva do líder comunista alemão Heinz Neumann (+ 1937), passou
longos anos nos campos de concentração de Stalin e Hitler. Seus livros de
memória relatam estas experiências”.251
Era estranho este silêncio da Cadernos Brasileiros sobre a
biografia de Margarete Buber-Neumann. Conhecida e festejada na Europa
e nos Estados Unidos, Buber-Neumann, ex-nora do filósofo Martin Buber
(1878-1965), não era propriamente apenas a viúva de Heinz Neumann,
importante líder comunista alemão, amigo e companheiro de Harry
Berger252, morto pela polícia de Stalin em 1937, sem deixar vestígios. Em
1960, ano deste número da Cadernos, Margarete já havia publicado um de
seus mais importantes livros. O Prisioneira de Stalin e Hitler havia saído
em 1948, em suas edições em alemão e sueco, traduzido na França e na
Inglaterra em 1949, e nos Estados Unidos, pela Dodd, Mead, já em 1950.
Nele, a ex-militante comunista relatava sua experiência como prisioneira
dos campos de concentração de Stalin (1878-1953) e de Hitler (1889-
1945), e, a exemplo do russo Victor Kravchenko (1905-1966), traçava um
perfil de semelhanças entre os dois regimes.
250
BUBER-NEUMANN, Margarete. Milena em Ravensbruck: recordações da companheira de Franz
Kafka. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano II, número 1, janeiro-março de 1960. p. 53-57.
251
Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano II, número 1, janeiro-março de 1960, p. 88.
252
Harry Berger e sua esposa Elisa Ewert foram presos pelo governo Getúlio Vargas logo após o levante
comunista de 1935 no Brasil. Elisa foi deportada e morreu num campo de concentração nazista, tendo
passado pelo campo de Ravensbruck. Berger ficou louco depois de torturado no Rio de Janeiro, tendo sido
solto e enviado para a Alemanha após o final da Segunda Grande Guerra.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 107

Além deste livro de grande repercussão, Margarete havia sido


testemunha do próprio Victor Kravchenko no rumoroso caso em que o russo
movera contra a revista Les Lettres Françaises acusando-a de difamação.
Kravchenko havia publicado I Choose Freedom, em 1946, e, em 1947,
traduzido o livro para o francês, a revista insistia em afirmar que o testemunho
de Kravchenko sobre os campos de concentração soviéticos eram uma
invenção. A ação judicial do dissidente soviético era bastante parecida com a
que David Rousset, também um dos primeiros autores do que hoje se chama
de literatura de testemunho, moveria contra a mesma Les Lettres Françaises253
em 1959, e da qual Buber-Neumann também fora importante testemunha.
O julgamento de 1949, entretanto, foi mais rumoroso e chegou a ser
conhecido como o Julgamento do Século. Kravchenko (1905-1966), ex-comunista
e capitão do Exército Vermelho, pedira asilo político aos Estados Unidos, em
1943, quando servia em Washington. Em 1946, ele publicou seu livro I Chose
Freedom: The Personal and Political Life of a Soviet Official. Nele, estavam as
denúncias contra o processo de coletivização soviético, os trabalhos forçados e
a existência de campos de concentração. Victor Kravchenko foi acusado de ser
espião da CIA e de mentiroso pela revista Les Lettres Françaises. O testemunho
de Margarete Buber-Neumann foi fundamental para que o russo ganhasse a ação.
Mesmo que o livro de Margarete, Milena – Kafkas Freundin, de 1963,
ainda não tivesse vindo a público, a trajetória da autora já era muito significativa,
embora a Cadernos Brasileiros não deixasse antever ao público brasileiro a
importância de Buber-Neumann nos círculos intelectuais e políticos da Europa,
especialmente na Alemanha, onde trabalhava na rádio e na televisão e onde a
primeira parte de sua autobiografia havia sido publicada. Estes escritos publicados
pela Cadernos Brasileiros e que antecediam o livro sobre a amiga Milena
seriam justamente aqueles em que ela reverenciava a companheira do campo de
concentração de Ravensbruck, a tcheca Milena Jesenská (1896-1944)254, musa de
Franz Kafka (1883-1924), a qual Margarete se referia neste artigo.
Ex-militante comunista, Margarete havia dividido com seus dois
maridos uma longa trajetória de burguesa de posses. Depois de ter se separado
253
Publicação literária francesa (1941-1972), ligada ao Partido Comunista Francês (PCF).
254
De família católica conservadora, Milena nasceu em Praga, em 1896, tendo perdido a mãe aos 16 anos.
De temperamento libertário e com problemas de relacionamento com o pai, cedo passou a frequentar os
círculos intelectuais dos cafés de Praga. Aos 20 anos se apaixonou por Ernest Pollak, 10 anos mais velho.
Tornou-se amiga de Max Brod, Franz Werfel e de Franz Kafka. Milena ficou grávida de Pollak, judeu
como Kafka, e fez um aborto. Foi internada pelo pai por nove meses em um hospital psiquiátrico em 1918.
Quando saiu, casou-se com Pollak e mudou-se para Viena. Foi lá que obteve de Kafka a permissão para
traduzir um pequeno conto do escritor do alemão para o tcheco, tendo iniciado sua correspondência e seu
caso de amor. Posteriormente separa-se de Pollak, acaba voltando a Praga depois de uma passagem por
Dresdem e Moscou e segue uma vida amorosa atribulada em meio a uma saúde precária. Milena tornara-se
108 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

de Raphael Buber (1900-1990), em 1929, ligou-se a Heinz Neumann, e juntos


militaram na Alemanha, na França e na Espanha. Em 1933, estavam refugiados
em Moscou, onde ficaram hospedados no famoso Hotel Lux.255 Em 1937,
acusado de traição, Heinz foi preso e desapareceu para sempre sem deixar
traços. Margarete foi presa em 19 de junho de 1938 em Moscou e enviada
à Sibéria para o campo de trabalhos forçados Karaganda, até que, em 1940
– fazendo uso do Pacto Ribbentrop-Molotov, de 1939-1941 –, transferiram
Margarete para o campo de Ravensbruck na Alemanha. Margarete conquistou
a liberdade em junho de 1944 e se seguiu uma longa trajetória de buscas, de
acerto de contas e de testemunhos256.
Após a publicação do livro em que traçava o paralelo entre o
comunismo e o nazismo, Buber-Neumann fez parte do Comitê de Liberação
para as Vítimas do Despotismo Totalitário em resistência à Berlim Oriental257.
Em 1951 e 1952, fundou e liderou o Instituto para Educação Política, dirigido
a jovens e orientado para o ensinamento dos “princípios fundamentais da
democracia”. Marcante ainda seria sua participação no Congresso para a
Liberdade da Cultura (CCF), órgão que oficialmente suportava e financiava
a revista Cadernos Brasileiros.
Juntamente com outros importantes intelectuais, como Raymond
Aron, Ignazio Silone, Sidney Hook, Arthur Schlesinger, Arthur Koestler,
François Bondy, Melvin Lasky, Salvador de Madriaga, Nicolas Nabokov,258
para citar alguns, Margarete Buber-Neumann foi uma das fundadoras do
militante do Partido Comunista, com quem rompeu em 1936. Em 1939, quando da invasão alemã, fazia
parte de uma organização cujo objetivo era a retirada de intelectuais, judeus e gentios, da Tchecoslováquia,
atividade que a levou à prisão, em 1940 e, de lá, para o campo de concentração de Ravensbruck. Morreu
em 17 de maio de 1944 de problemas renais.
255
O legendário Hotel Lux era destinado a hospedar militantes e lideranças comunistas do mundo inteiro.
São incontáveis as histórias ocorridas neste hotel, inclusive as de espionagem e de ostracismo a que foram
submetidas lideranças internacionais.
256
Margarete Buber-Neumann nasceu em Potsdam, em 1901. Em 1921 frequentava a Juventude
Comunista e, em 1926, filiou-se ao Partido. Em 1920, ao circular entre os judeus de esquerda,
conheceu Rafael Buber, com quem se casou e teve duas filhas. Separaram-se em 1925 e Margarete
criou as filhas até que perdeu a guarda, em 1928, para os avôs paternos. Em 1929 passou a viver com
Heinz Neumann, o segundo homem na hierarquia do PC alemão (estava só abaixo de Thaelmann). O
casal foi enviado à Espanha, em 1933, depois de passar férias com Stalin, e, posteriormente à Suíça,
onde foi preso. A Alemanha pedia, então, a extradição de Neumann. A União Soviética ofereceu asilo
a ambos, e assim eles retornaram a Moscou. Buber-Neumann era também irmã de Babete Gross,
esposa de Willi Münzenberg, o líder do Komintern. Foi presa em 19 de junho de 1938 em Moscou e
extraditada para a Alemanha no início de 1939. Entre 1934 e 1947, Margarete não teve contato com
suas filhas. Faleceu em novembro de 1989. In: TODOROV, Tzvetan. Hope and Memory: Lessons from
the Twentieth Century, p. 93 e segs.
257
Este Comitê existiu até 1952.
258
A lista dos fundadores do Congresso pela Liberdade da Cultura soma mais de uma centena de pessoas
da Alemanha, Áustria, Bélgica, Colômbia, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha,
Grécia, Holanda, Índia, Itália, Letônia, Noruega, Polônia, Rússia, Suécia, Suíça. Tchecoslováquia e
Turquia. Cf.: GRÉMION, Pierre. Op. cit.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 109

Congresso pela Liberdade da Cultura, cujo ato de constituição, como vimos,


foi um imenso acontecimento em Berlim, no ano de 1950, sob a mão invisível
de suporte e financiamento da CIA.
Margarete assumiu, logo após a fundação do CCF, o posto de Secretária
do Congresso em Berlim.259 O cargo era importante, ainda mais se levarmos
em conta que entre 10 e 14 mil pessoas estiveram presentes no ato de fundação
ocorrido na então ex-capital alemã. Some-se ainda o fato de que Buber-
Neumann havia escrito um dos primeiros livros de testemunho sobre os horrores
dos campos de concentração existentes na URSS, na Alemanha Oriental e na
Espanha de Franco. A denúncia sobre a existência dos campos havia sido um
dos pontos altos do encontro do Congresso pela Liberdade da Cultura.

Fonte: CIA Report. Origins of The Congress For Cultural Freedom. www.cia.gov/csi/
studies/95sunclass/warner.htlm/, acesso em 10 de julho de 2006. Foto do fechamento do Congresso, em 1950.

A revista Cadernos Brasileiros omitiria a importância de Margarete


Buber–Neumann, embora a própria publicação anunciasse que era “órgão
trimestral da Associação Brasileira do Congresso pela Liberdade da Cultura,
editado sob o patrocínio do Congresso pela Liberdade da Cultura”260,
259
A outra secretaria ficava em Paris.
260
Por ocasião do número I do ano II, edição que publicou o artigo de Margarete Buber-Neumann, era
110 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

cujo secretariado de Berlim era o segundo mais importante na estrutura da


organização, perdendo apenas para Paris.
O peso intelectual de Buber-Neumann era considerável. Ela tratava o
problema de seu testemunho nos campos de concentração com rara sensibilidade.
Juntamente com David Rousset (1912-1997), Primo Levi (1919-1987), Germaine
Tillion (1907-2008), Vasily Grossman (1905-1964) e Romain Gary (1914-1980),
Neumann fazia parte de uma certa aristocracia intelectual que cuidava ao mesmo
tempo de manter o passado como memória e, especialmente, de revivê-lo como
presente261. Os membros do Congresso pela Liberdade da Cultura, em especial,
reviviam esta memória pautada pelo reconhecimento de que totalitarismo262 era
sinônimo de nazismo e de comunismo soviético, em que pese toda a resistência
da esquerda simpatizante com Moscou a esta aproximação.
Esta postura aparecia fortemente na própria tessitura do texto de
Margarete Buber-Neumann. Em meio à lembrança da dignidade e da bondade
presentes em Milena, por exemplo, apesar da degradação humana, a autora
dizia que Milena “desenvolvia uma crítica apaixonada contra os métodos
terroristas dos comunistas” e que ambas foram vítimas de perseguição das
comunistas tchecas presas em Ravensbruck, de seu “ódio fanático”.
Seu trabalho trazia o testemunho (portanto, a certificação da veracidade)
e buscava um ajuste de contas com o passado e o presente. Seu fio condutor
era a possibilidade da manutenção da dignidade e da altivez humana trazida
à cena pela amiga Milena, em contraponto ao comportamento mesquinho,
desumano e tirano das presas militantes comunistas em pleno reino de terror
que era o campo de concentração nazista.
Diretor da Cadernos Brasileiros, Afrânio Coutinho, Stefan Baciu, redator-chefe; Arino Peres, secretário.
Adonias Filho, Anísio Teixeira, Cassiano Ricardo, Celso Cunha, Eduardo Portela, Elmano Cardim, Erico
Verissimo, Eugênio Gomes, Evaristo de Moraes Filho, Gilberto Freyre, J. Garrido Torres, Levi Carneiro e
Manuel Bandeira formavam o Conselho Consultivo.
261
Existe uma tardia tradução brasileira do trabalho de Buber-Neumann feito pela Editora Guanabara, com
o título de Milena, e que data de 1987. Embora sensível, o livro é limitado em termos de qualidade literária.
262
Embora o termo tenha surgido por volta de meados dos anos 20 com o advento do fascismo italiano, e utilizado
pelos próprios fascistas, seu uso foi generalizado apenas após a Segunda Grande Guerra. Primeiramente a
concepção mais intelectualizada de totalitarismo foi dada pelo filósofo italiano Gentile, que destacava a ênfase
no estatismo, no caráter religioso do fascismo e na assertiva de que o espírito totalitário do fascismo renovaria a
Itália, penetrando todas as esferas da vida humana. Havia, no totalitarismo, uma aposta no caráter inovador e não
reacionário do regime, uma vez que as mudanças radicais eram seu ponto de partida, e a aposta em um futuro
utópico e de transformação das classes em um todo uno, seu ponto de chegada. Neste sentido, um ativismo
de Estado, o fim da sociedade civil, o emprego da coerção e da violência e a disseminação de mitos sociais
eram seus pressupostos. Pontos de partida que foram retomados na década de 1930 pelo filósofo alemão Carl
Schmitt, o chamado jurista do nazismo, que de forma bastante elaborada adotara o princípio “decisionista”, cuja
explicação de mundo reside na vontade política que a gera. Cf.: GLEASON, Abbot. Totalitarism: The Inner
History of The Cold War, especialmente o Primeiro Capítulo. Posteriormente, os trabalhos mais relevantes foram
o de Hannah Arendt (As origens do totalitarismo, 1951); de Carl J. Fridrich (A ditadura totalitária, 1957) e
Zbigniw K. Brzezinski (The Permanent Purge: Politics in Soviet Totalitarianism, 1956). Cf.: BOBBIO, Norbert,
MATEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfrancesco. Dicionário de Política.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 111

O pequeno trecho do livro publicado pela Cadernos Brasileiros seguia


esta linha e apregoava a coincidência totalitária entre as duas posturas: a
nazista e a comunista, ambas, atestadamente, indignas. Ambas representativas
de dois regimes coincidentes263.
O relato testemunhal de Buber-Neumann quanto ao comportamento das
prisioneiras que hostilizavam Milena e ela própria, Margarete, era apresentado
de forma a mostrar como se construía uma espécie de amálgama perversa entre
política e verdade ou, melhor, de uma concepção de negação da política (para
usarmos uma construção próxima do entendimento de exercício democrático
da política, como colocado por Hannah Arendt), já que não havia aí qualquer
espaço para a dúvida e já que a verdade adquirira uma espécie de estatuto
divino, incontestável, inclusive de vontade. Esta adoção de um discurso político
fundamentalista e inequívoco, a exemplo dos discursos religiosos fundamentalistas
que se transformam em dogma, era mostrada como eminentemente excludente,
impossibilitado de qualquer interação com a diversidade, e sustentado por um
profetismo milenarista264. Enfim, um mundo sustentado no fanatismo.265
A crítica de Buber-Neumann, assim como a de outros escritos de
lideranças do Congresso pela Liberdade da Cultura – e Raymond Aron era
um deles com presença constante na Cadernos Brasileiros –, firmava-se no
incessante juízo à tolerância de crimes dos regimes soviético e nazista e na crença
de ambos no dogma, ou do ópio, como gostava de enfatizar Aron.266 Segundo
Aron, o profetismo marxista, típico do profetismo judeu-cristão, “esboça uma
imagem do que deve ser e será, e escolhe um indivíduo ou um grupo para
transpor o espaço que separa o presente indigno do futuro grandioso”. 267
É interessante notar que esta percepção que os escritos políticos
traziam sobre a total inflexibilidade e sobre a presença de certezas absolutas
que cercavam o discurso e a ação totalitárias, dentro ou fora dos campos de
concentração, também estava presente na própria necessidade de construção
do testemunho.
Como o horror havia ficado sem registro, e este registro deveria e
poderia ser dado pelo testemunho e porque o que foi visto era indizível,
263
Arendt se refere a duas formas autênticas de domínio totalitário. Entretanto, no período anterior ao
término da Segunda Guerra, especialmente na década de 1930, era comum o emprego do termo totalitário
como equivalente positivo de experiências em regimes que negavam radicalmente os princípios do
liberalismo, inclusive com remissões à experiência soviética. Vide a este respeito inclusive os intelectuais
brasileiros como Francisco Campos.
264
ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais. p. 222.
265
Idem, ibidem. Vide, especialmente, a Introdução do livro.
266
Essa era uma das tônicas de O ópio dos intelectuais, de Aron, publicado na França em 1955, com
tradução na língua inglesa em 1957.
267
ARON, Raymond. Op. cit., p. 220.
112 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

partia do testemunho a tentativa de dar um estatuto de verdade à ação do


terror. Eram narrativas autobiográficas comprometidas com o passado, com
a ética e com a necessidade de explicar e dar um sentido ao inexplicável,
buscavam, por assim dizer, incessantemente, o ánthropos. Se questo è un
uomo? – a pergunta que Primo Levi fazia e que dava o título a seu livro –
mostrava o tom de perplexidade dos que haviam enfrentado aqueles anos de
sofreguidão, medo, desespero e morte.268
Nestes registros do pós-guerra, são incontáveis as passagens que
narram a perplexidade das testemunhas frente ao que elas diagnosticavam
como o ódio que movia e alimentava a rejeição dos agora seus inimigos.
O texto de Margarete Buber-Neumann na Cadernos Brasileiros
questionava esta rejeição e trazia o questionamento em forma de
posicionamento ético:
Milena Jesenká foi, depois de 1930, durante alguns anos,
membro do Partido Comunista da Tchecoslováquia, mas
entrou em conflito com a linha do partido (“Parteilinie”)
o que, devido à sua independência, não podia ficar
excluído (sic), sendo expulsa do P.C. Como redatora de
uma revista civil de esquerda, ela desenvolvia uma crítica
apaixonada contra os métodos terroristas dos comunistas.
Apesar disso (sic) as mulheres comunistas do campo de
concentração começaram imediatamente a incomodar-
se. E quando souberam da amizade de Milena comigo,
elas lhe impuseram um ultimato, isto é, ela teria que se
decidir entre a comunidade KZ tcheca e a “trotskista”
Buber-Neumann. E Milena encontrou a sua decisão,
cujas consequências ela sabia bem quais eram. Foi
perseguida pelas prisioneiras comunistas com o mesmo
ódio fanático que eu. Ameaçando-nos a ambas de, no
final da guerra, após a libertação pelo Exército Vermelho,
nos fuzilar”.269

Dizia Buber-Neumann que as detentas comunistas tinham todas as


qualidades requeridas para o trabalho de escravas.270
O ódio e o fanatismo eram recordados e denunciados como comuns
tanto ao nazismo quanto ao comunismo, responsáveis, em última análise, pela
era de escuridão (darkness) do sombrio século XX. Deste paralelismo entre
268
A publicação italiana é de 1947.
269
BUBER-NEUMANN, Margarete. Milena em Ravensbruck: recordações da companheira de Franz
Kafka. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano II, número 1, janeiro-março de 1960. pp. 53-57.
270
BUBER-NEUMANN, Margarete. Milena. p. 236.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 113

nazismo e comunismo se fixou também o conceito/adjetivo de totalitarismo


para ambos. Nele, o questionamento era o da perda total da dimensão humana
e de sua substituição por códigos brutais de ação baseados na crença de que
sistemas políticos pudessem libertar o homem.
O contraponto desta crença fundamentalista era recorrentemente
salvaguardado nos testemunhos: vinha acompanhado da perplexidade em
relação à desumanidade e na dupla de uma espécie de antípodas que se
apresentava sistematicamente: do amor que se contrapunha ao ódio (amor/
ódio); e da dignidade que se contrapunha à tirania (dignidade/indignidade).
Denunciavam-se dois regimes que, pressupostamente, eram faltantes em
relação à ética do outro.
Os relatos de testemunho, entretanto, e o texto de Buber-Neumann
é um exemplo, dificilmente percebiam que estes regimes possuíam uma
profunda consistência lógica, o que dificultou sobremaneira a tarefa de
encontrar algum sentido no terror. A perplexidade desconcertante percebida
na literatura de testemunho revelava inconformismo e incompreensão relativa
a concepções de mundo cuja lógica (e, insistimos, sua consistência) não
estava absolutamente centrada na ética do outro, mas muito além dela. Nos
sistemas totalitários, tratava-se da ética de si mesmo; uma representação que
não é do outro, mas de si, que parte da lógica de si mesmo e que, portanto,
não elege o outro como estranho, unheimlich: o outro sequer é outro.271
Sendo assim, a pergunta de Primo Levi – É isto um homem? – nunca poderia
ser respondida pelo regime; ela não cabe como pergunta: não há outro.
De uma forma geral, e o texto de Buber-Neumann é emblemático,
os relatos de testemunho se concentravam na questão do ódio desmesurado
demonstrado pelos opressores, quase como uma espécie de capricho tirânico.
Os diversos aspectos dogmáticos nos quais se baseava a consistência
lógica dos regimes totalitários eram deixados de lado. De fato, os relatos
dificilmente se davam conta de que não era o ódio a matriz da ação na
disseminação do terror. Ter ódio, de uma certa forma, seria admitir o outro e
manter com ele um princípio de igualdade. Ter ódio estaria fadado a dar ao
outro uma dimensão de humanidade, pois o ódio, cujo lugar é o das paixões
humanas, está circunscrito juntamente ao humano; portanto, passível de
questionamento, de dúvida, de erro, de falibilidade. Ter ódio seria dar ao
outro o direito à dúvida e, por intermédio dela, poder admitir a injustiça ou o
271
São instigantes as colocações de Alain Badiou a respeito desta inversão da ética do outro para a ética de
si mesmo. Cf.: BADIOU, Alain. La ética: ensayo sobre la conciencia del mal (texto completo). Disponível
em www.tematika.com. Acesso em 19 de maio de 2006.
114 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

capricho tirânico. Portanto, o ódio seria incompatível com o dogma, porque


contestável, reprovável, factível de injustiça.
A profunda consistência lógica do totalitarismo, entretanto, não estava
assentada no ódio, mas, de acordo com seu radicalismo dogmático, na ira. A
relação de verdade mundana com designo divino era um dos pontos-chave
que dava consistência ao discurso totalitário. Daí a busca de verdades com
sentido ético incontestável. Não seria por acaso que a alusão direta a Deus
está registrada por mais de meia centena de vezes no livro de Hitler, Mein
Kampf. Mesmo agnóstico, Hitler postulava que tudo que fugisse das verdades
incontestáveis que estavam sendo apresentadas ao povo alemão estava vindo
de encontro à vontade do Criador. E, portanto, era objeto de sua ira.
A recorrência a uma dimensão religiosa que legitimasse a ira conferia
a um ardoroso desejo de Deus o reconhecimento de absoluta soberania. Até
porque, podia-se dizer que na própria Bíblia estava postulado que “fora do
evangelho só há lugar para a Ira de Deus”:272
A. Os gentios e os judeus sob a ira de Deus
Os gentios, objeto da ira de Deus – (18) Manifesta-se,
com efeito, a ira de Deus, do alto do céu, contra toda a
impiedade e injustiça dos homens que mantêm a verdade
prisioneira da injustiça. Porque o que se pode conhecer
de Deus é manifesto entre eles, pois Deus lho revelou.273

A um povo injustiçado, como era lida naquele tempo a realidade da


Alemanha, restava a justeza divina do levante pela Ira. Ao contrário do ódio,
pertencente à esfera das paixões humanas, a Ira possui outra magnitude,
aquela capaz de tudo justificar pela sua justeza e pela sua infalibilidade. Seja
em nome do Deus da religião, seja em nome do deus do Estado.
Estar de acordo com a vontade do Onipotente criador conferia um lugar
de justiça. Era a Ira a expressão que designava o ardoroso desejo de Deus pelo
reconhecimento de sua absoluta soberania. Já nos dois últimos parágrafos do
segundo capítulo de Mein Kampf, Adolf Hitler pontifica com imensa clareza
a ética e a construção da consistência lógica que guiou o nazismo: a procura
da dignidade perdida do povo alemão. Esses trechos são fundamentais para se
entender esta dinâmica. Ei-los:
Se os judeus, com a ajuda de seu credo marxista,
triunfarem sobre a população mundial, sua coroação
272
Cf.: A Bíblia de Jerusalém. p. 2120.
273
Idem, ibidem. Romanos 1.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 115

será a coroa funerária da raça humana, e este planeta


seguirá novamente sua órbita em direção à eternidade
sem nenhuma vida humana em sua superfície, como há
milhões de anos atrás.

Assim eu acredito hoje que minha conduta está de acordo


com a vontade Onipotente do Criador. Em posição de guarda
contra os judeus, estou defendendo a obra de Deus.274

Embora estas sombrias previsões nos soem como patéticas, o discurso


nazista se alimentou desta estruturada consistência lógica partindo da ética
de si mesmo. Este trecho, usado como um pequeno exemplo, já que eles são
inumeráveis, é precedido de um outro que, ao se referir ao “despertar” do
próprio Hitler, mostra como é possível, pela autorreferência, o encontro com
a verdade de si:
Um arrepio gelado correu minha espinha quando percebi
pela primeira vez que era o mesmo tipo de sangue-frio,
pele grossa e descarado judeu que mostrava sua contumaz
destreza em conduzir a revoltante exploração da ralé da
grande cidade. Foi então que peguei fogo de ira.

Agora eu não hesitava mais em trazer o problema judeu à


luz. E em todos seus detalhes. Não. Daqui para frente eu
estava determinado a assim proceder. Mas como aprendi
a seguir os judeus nas mais diversas esferas da vida
cultural e artística, e nas várias manifestações da vida,
repentinamente eu os vi em uma posição em que menos
os esperava encontrar. Eu compreendi que os judeus
eram os líderes da Social Democracia. Em face desta
revelação, as dimensões caíram sob meus olhos. Minha
longa luta interior tinha chegado a um fim.275
274
HITLER, Mein Kampf. Project Gutenberg of Australia eBook, Translated into English by James Murphy.
Disponível em www.promo.net/pg/. Acesso em 2 de julho de 2006. Constante do segundo capítulo do
Primeiro Volume: Years of Suffering in Vienna. No original em inglês: Should the Jew, with the aid of his
Marxist creed, triumph over the people of this world, his Crown will be the funeral wreath of mankind,
and this planet will once again follow its orbit through ether, without any human life on its surface, as it
did millions of years ago. And so I believe to-day that my conduct is in accordance with the will of the
Almighty Creator. In standing guard against the Jew I am defending the handiwork of the Lord.
275
Idem, ibidem. No original em inglês: A cold shiver ran down my spine when I first ascertained that it
was the same kind of cold-blooded, thick-skinned and shameless Jew who showed his consummate skill
in conducting that revolting exploitation of the dregs of the big city. Then I became fired with wrath. I had
now no more hesitation about bringing the Jewish problem to light in all its details. No. Henceforth I was
determined to do so. But as I learned to track down the Jew in all the different spheres of cultural and artistic
life, and in the various manifestations of this life everywhere, I suddenly came upon him in a position where
I had least expected to find him. I now realized that the Jews were the leaders of Social Democracy. In face
of that revelation the scales fell from my eyes. My long inner struggle was at an end.
116 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Todo o que se postasse fora de si mesmo estava pronto para a diabolização.


Hannah Arendt entendeu perfeitamente a consistência lógica
totalitária, na medida em que sintetiza como “mal radical” o horror. Mesmo
no livro As origens do totalitarismo, mas muito mais consistentemente em
Eichmann em Jerusalém, aparece esta onipotência (in)humana, quase divina,
que transforma as vidas humanas em supérfluas, em função da total destruição
da esfera pública e de seus pressupostos de verdade. É interessante como os
dois livros de Arendt tecem a análise a partir de seu achado de que existe
uma consistência lógica276 nesses regimes e que esta consistência parte de
premissas incontestáveis (para o caso do marxismo, sua transformação em
doutrina comunista),277 que permitem que a discriminação se transforme em
argumento político, e, através dele, se legitime. Uma crença total nos meios
e fins. Uma crença total nas razões de Estado e uma completa aceitação dos
crimes contra a humanidade instigados pelas razões de Estado.
É ainda justamente este mal radical, associado à vulgaridade travestida
de coragem, que torna possível a onipresença do discurso fundado na Ira e
que faz com que seja tão difícil, quase impossível, a literatura de testemunho
apreender que o eixo da questão da destruição do outro não está em atribuir à
existência do ódio desmesurado e monstruoso – como se pretendeu atribuir a
Eichmann (1906-1962) e foi denunciado por Arendt – ou do capricho tirânico
ensandecido – como se quer atribuir a Hitler e a Stalin – o horror. Mas que esta
ira fundamentada em uma lógica de justiça (com ou sem origem divina) é que
dá sentido ao sem sentido.
De qualquer forma, a questão dos testemunhos ocupou um lugar
fundamental no debate do pós-guerra sobre o sentido ético da humanidade
e os regimes totalitários. Neste acerto de contas e busca de um sentido
para – repetimos – o sem sentido, a importância dos testemunhos não era
absolutamente jurídica, mas, como afirmara Michel de Boüard, “quando os
sobreviventes da deportação tiverem desaparecido, talvez os pesquisadores
do futuro tenham em mãos papéis hoje escondidos; mas não mais disporão da
fonte principal, ou seja, da memória viva das testemunhas”278, da evidência
narrativa de que houve a disseminação dos crimes contra a humanidade, do
inconformismo em relação à perplexidade.
276
YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por amor ao mundo. p. 264.
277
Esta assertiva diz respeito ao marxismo transformado em doutrina. Ou seja, quando se incute “opinião,
ponto de vista ou princípio sectário; inculcar em alguém uma crença ou atitude particular, com o objetivo
que não aceite qualquer outra”. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. p. 1081.
278
BOÜARD, Michel de Mauthausen. In: Reveu de Deuxième Guerre Mondiale, 15-16, julho-setembro,
1954, 41-80. Apud: VIDAL-NAQUET, Pierre. O revisionismo da História: os assassinos da memória. p. 29
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 117

O acerto de contas fora trazido através da postura que não se furtava em


buscar os pontos de encontro entre o stalinismo e o nacional-socialismo. É claro
que a crítica que apontava em direção à aproximação dos dois regimes vinha
sendo apropriada sistematicamente pela extrema direita anticomunista, em
especial pelos McCarthystas, pelo sionismo279 e por ex-comunistas que haviam
trocado Stalin pela CIA, como no caso de alguns membros fundadores do CCF.280
A partir desta apropriação, o termo totalitarismo passou a ser especialmente
criticado pelos neomarxistas e pelos adeptos da “teoria dos jogos”.
O que acontecera depois que Hannah Arendt publicara seu Eichmann
em Jerusalém, em 1961, entretanto, é que se criara um divisor de águas sobre
a reconstrução do Holocausto que havia nascido da própria literatura de
testemunho. Uma questão se tornara evidente: Arendt destruía a tessitura da
construção de um totalitarismo que se assentava na diabolização quase religiosa
do outro, até mesmo como consequência da mudança em suas preocupações que
peregrinaram da natureza da ação política para as faculdades de pensar e julgar.
De certa forma pode-se dizer que falar do mal radical era aceitar que
no totalitarismo não havia outro, tudo se constituía a partir de si mesmo:
simplesmente o mau radical está assentado na verdade de que não existe o
outro, só o mesmo. Daí a observação de Hannah Arendt de que Eichmann
estava “fechado” às palavras e à presença de terceiros, e, portanto, à
realidade como tal. Além disso, a postura de Arendt em não poupar de crítica
a colaboração das lideranças judaicas na máquina de extermínio negava, a
priori, qualquer papel de vitimização, como ela mesma postula no livro:
o julgamento de Jerusalém falhou em expor aos olhos do
mundo, nas suas verdadeiras dimensões, o que pretendia,
porque oferece a mais polêmica visão da totalidade
moral que os nazistas causaram à respeitável sociedade
europeia – não somente na Alemanha, mas em quase
todos os países, não somente aos perseguidores mas
também às vítimas.281

Não por um acaso, as primeiras observações de Hannah Arendt em


sua publicação sobre Eichmann são contra o julgamento/espetáculo, bem
como trazem uma ácida crítica ao Estado de Israel e às razões de Estado de
Ben-Gurion (1886-1973)282. As críticas corresponderiam ao que, em verdade,

279
Especialmente pela instrumentalização do Holocausto pela política de direita israelense.
280
Sidney Hook e Silone, por exemplo.
281
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. p. 139.
282
Idem, ibidem, p. 21.
118 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

deveria se lutar contra: a diabolização, a perda total de sensibilidade e a falta


de capacidade de julgar. Ironicamente, críticas que colocavam em questão
a existência da passividade e o próprio significado do holocausto (ato de
sacrifício praticado pelos antigos hebreus, ato de abnegar, de renúncia).
O depoimento dado por Arendt, quando questionada por Hans
Morgenthau (1904-1980) sobre seu apego à crítica, no outono de 1972, talvez
exemplifique, de forma mais clara, como eram incômodas suas questões:
- O que é você? Uma conservadora? Uma liberal? Qual é
sua posição dentro das possibilidades contemporâneas?

Arendt: Não sei. Eu realmente não sei nem nunca soube.


E suponho que nunca tive qualquer posição assim. Você
sabe que a esquerda pensa que sou conservadora, e os
conservadores às vezes pensam que sou de esquerda,
ou dissidente de Deus-sabe-o-quê. Devo dizer que
não poderia preocupar-me menos. Não penso que as
verdadeiras questões deste século receberão qualquer
espécie de esclarecimento dessa maneira.283

Este apego irrestrito de Arendt à crítica e sua busca constante por


perguntas teriam um preço alto: houve forte reação a sua tese de que não era
o ódio aos judeus o motor de ação de Eichmann. As questões que envolviam
o horror eram muito mais profundas e precisavam ser buscadas de outra
maneira, sem escamotear os fatos e sem recorrer à fácil saída da diabolização.
Onde então estava assentada a “banalidade do mal”?
A revista Cadernos Brasileiros, que doze anos antes desta entrevista de
Hannah Arendt havia publicado o pequeno trecho do livro de Margarete Buber-
Neumann, arriscamos, não estava, como Arendt, preocupada em construir o
apego à crítica. Naquele momento, a Cadernos Brasileiros, como as outras
revistas financiadas pelo CCF com os auspícios da CIA, radicalizava a crítica
ao totalitarismo para identificá-lo com o pensamento de esquerda de uma forma
mais geral. Provavelmente esta era a razão pela qual costumava amenizar
de maneira tão radical a biografia de seus colaboradores, como o fizera com
Margarete Buber-Neumann, e se punha sob a confortável sombra da vitimização.
Uma especulação, provavelmente legítima, sobre o descompromisso
da Revista com o apego à crítica pode ser observada pelo fato de que vários
de seus colaboradores e responsáveis editoriais ofereceram suporte no mundo
todo a governos ditatoriais que pudessem empreender o que se chamou, a
283
YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Op. cit., p. 393.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 119

partir de meados da década de 1950, de “desenvolvimento necessário”.


Chegaram a ponto de aceitar a criminalidade de regimes políticos como
forma de organização necessária para promover o rápido desenvolvimento
industrial. No caso do Brasil, vários desses intelectuais acabaram por se
engajar ao IPES284 e dar forte apoio ao golpe militar de 1964, como veremos
mais adiante.
Ironicamente, estes regimes que deveriam promover o rápido
desenvolvimento industrial – como única forma de se chegar à democracia
– viriam a ser denunciados por uma nova era de relatos testemunhais sobre o
indizível. Publicava-se uma nova literatura de testemunho: a sobre os “anos
de chumbo”, especialmente os das ditaduras militares da América do Sul,285
que havia chegado, em sua maioria, argumentando que deveriam modernizar
os países para democratizar, livres das ameaças de esquerda.
A nova onda de violência de Estado que se seguiu, quando ainda a
humanidade nem se recuperara das chagas abertas pelos regimes totalitários e
pela Segunda Guerra Mundial, denunciava a presença constante da tolerância
ao extermínio e da negação do outro no transcorrer de todo o século XX. Uma
realidade desconcertante se pensarmos no que Adam Smith (1723-1790) já
escrevera em 1759:
E se considerarmos todas as diferentes paixões da natureza
humana, descobriremos que são consideradas decentes ou
indecentes na medida apenas em que os homens estejam
mais ou menos dispostos em relação a elas. 286
284
O IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, foi criado em 29 de novembro de 1961 e declarado
de utilidade pública pelo Dec. 40.131, de 23 de maio de 1962. Iniciou suas atividades, no Rio de Janeiro
e em São Paulo, por grupos com enfoques diferentes, e expandiu-se por Porto Alegre, Santos, Belo
Horizonte, etc. Formado basicamente por empresários e intelectuais, foi um importante foco de oposição e
de conspiração contra o governo de João Goulart. Dirigido pelo Comitê Nacional Conjunto, um Conselho
Orientador e um Comitê Executivo. Os dois documentos básicos de formação do IPES foram a Ata para a
Aliança para o Progresso, conhecida como Declaração de Punta Del Este, de agosto de 1961, e a Encíclica
Mater et Magistra. Segundo a documentação de René Dreifuss, a editora Saraiva estava ligada ao programa
editorial do IPES, de cujo Grupo de Publicações/Editorial faziam parte, entre outros, Augusto Frederico
Schmidt, Odylon Costa Filho, Raquel de Queiroz e Nélida Piñon. O Grupo era supervisionado por um dos
líderes do IPES, José Rubem Fonseca. Arquivo Histórico Nacional, Fundo Paulo de Assis Ribeiro, QL/
SPD025 (1961-1971) e docs. “Definição de Atitudes”, de 20 de novembro de 1963; De Garrido Torres
para Comitê Diretor, de 29 de maio de 1962; e de Garrido Torres para General Herrera, de 9 de agosto de
1963. Arquivos do CPDOC. Disponível em www.fgv-cpdoc.fgv.br; DREIFUSS, René Armand. 1964: A
conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe.
285
Vide a respeito das origens da expressão o interessante artigo A literatura de testemunho e a violência
de Estado, de Valéria de Marco, publicado em 2004 pela revista Lua Nova. Disponível em www.scielo.br/
pdf/ln/n62/a04n62.pdf, acesso em 5 de junho de 2007.
286
SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 29 e 30. “And if
we consider all the different passions of human nature, we shall find that they are regarded or indecent,
just in proportion as mankind are more os less disposed with them”. SMITH, Adam. The Theory of Moral
Sentiments. N.Y: Prometheus Books, 2000. p. 32.
A crise dos alienados
e o revival da intolerância
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 121

E m 4 de abril de 1948, a edição de domingo do New York


Times Magazine publicava um longo artigo de Arthur Schlesinger Jr., cujo
subtítulo dizia que a esperança do futuro estava fundada no alargamento e
aprofundamento da democracia de centro. Era o que o historiador cunharia
de “Vital Center”, uma espécie de chamamento à união da esquerda não
comunista, do centro e da direita não fascista, com vistas à liberdade e à
democracia. O artigo era praticamente o resumo das principais ideias que
Schlesinger defenderia em seu livro The Vital Center, de 1949. O título do
artigo: Not Right, Not Left, But a Vital Center.287
Ambos os textos, o livro e o artigo, apareciam sob a forma de ensaio
e continham a própria essência das propostas políticas que o intelectual e
“ativista democrático” defendia desde os desafios políticos impostos durante
e após a Segunda Grande Guerra.
Arthur Schlesinger, um eminente professor de Harvard, nascido em
1917, havia obtido o prêmio Pulitzer em 1945 pelo livro The Age of Jackson.
Pertencente aos círculos da elite intelectual norte-americana de WASPs
(White Anglo-Saxon Protestant) envolvido com os serviços de inteligência na
Guerra, Schlesinger havia servido no Office of War Information (1942-1943)
e no Office of Strategic Services (1943-1945), antes de ingressar em Harvard
como professor de História, em 1946.
A posição de Schlesinger era a de que não cabia mais o uso da distinção
entre esquerda e direita, devido à complexidade que a vida política tomara com
o advento das propostas totalitárias. Ambas as concepções, de direita e esquerda,
dizia ele, eram lineares e uma “terceira força” (Third Force) – que “acreditasse na
liberdade política e no controle democrático da vida econômica, na coalizão que
afirmasse a fé nos métodos democráticos e constitucionais contra qualquer forma
de terror e ditadura”288 – era a grande aposta para a construção de um mundo de
combate ao totalitarismo e às ditaduras, que, enfim, constituísse esse Vital Center,
responsável pela manutenção de uma sociedade unida (holds society together).
Arthur Schlesinger chegava a afirmar neste artigo que no interior dos
círculos do Departamento de Estado – ao qual estava ligado desde os tempos
da Guerra – a importância da esquerda não comunista já estava sedimentada.
Criara-se até uma sigla (NCL – Non-Communist Left) para designar esta força
antitotalitária que deveria se juntar ao esforço democrático.
287
SCHLESINGER JR., Arthur M. Not right, Not Left, But a Vital Center: The Hope of the Future in the
Widening and Deepening of The Democratic Middle Ground. New York Times Magazine, Sunday, April 4, 1948
(sec. 6). In: www.writing.upenn.edu/~afilreis/50s/schlesinger-notrightleft.html, acesso em 10 de agosto de 2006.
288
Idem, ibidem, p. 4.
122 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Um passo definitivo para a existência desta terceira força fora


finalmente dado, segundo o autor, com a formação, logo após o final da Segunda
Grande Guerra, do Americans for Democratic Action.289 Este grupo, formado
em 1947 pelo próprio Schlesinger e personalidades como Eleonor Roosevelt
(1884-1962), Hubert H. Humphrey (1911-1978) e John Kenneth Galbraith
(1908-2006), tornar-se-ia uma espécie de pilar de ativismo liberal do Partido
Democrata. De uma certa forma, era também um prelúdio na política interna
democrata norte-americana do que viria a ser, a partir de 1950, o Congress For
Cultural Freedom (CCF) na política externa, no que diz respeito à formação
de uma “terceira força” contra as opções totalitárias.
Nesta nova aposta política – e este fora um ponto-chave para a criação do
CCF em Berlim – a releitura do conceito de totalitarismo, antes mesmo do final
da Segunda Guerra Mundial, tornava-se fundamental. Embora criticado como
sendo muito mais uma adjetivação do que um conceito, o termo totalitarismo se
transformou figurativamente em uma espécie de símbolo político e intelectual que
comparava os regimes nazista e comunista da União Soviética, fundamentalmente,
embora houvesse também uma tendência, tendo em vista a própria história de
criação do conceito, que o estendia aos regimes fascistas e autoritários, tão em
voga no mundo inteiro, especialmente a partir dos anos de 1930.
Além da literatura específica da área de humanidades que daria
ênfase à questão do totalitarismo, especialmente à estrutura de Estado, a
análise sobre o horror que este novo Estado – fundamentalmente antiliberal
– havia engendrado, vinha acompanhada de uma severa crítica política
e ética, à perda de liberdade do homem e ao extermínio em massa. Os
trabalhos de Hannah Arendt, As origens do totalitarismo, de 1951; de Carl
J. Friedrich (1901-1984), A ditadura totalitária, de 1957); e de Zbigniew K.
Brzezinski (1928), The Permanent Purge: Politics in Soviet Totalitarianism,
de 1956, levavam a marca e repercutiram como exemplo de pensadores que
não se alinhavam com a direita, mas que eram extremamente críticos sobre
a realidade soviética e não hesitaram em utilizar o termo totalitário ao se
referirem ao regime de Stalin.
Na articulação feita quando da criação do Congress for Cultural
Freedom, tanto na arregimentação de intelectuais como na estratégia de fazer
do Congresso uma das principais armas da Guerra Cultural (Cultural War)
estruturada pela CIA nos anos de Guerra Fria, e não deve ser esquecido que
Arthur Schlesinger era um importante articulador do CCF, a grande preocupação
estava assentada no alinhamento de uma “terceira força”. As denúncias feitas
289
Fundado em 1947, até o presente é um dos braços de suporte do Partido Democrata.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 123

por ocasião da inauguração do CCF em Berlim sobre a existência dos campos de


concentração na URSS e na Alemanha, bem como na Espanha de Franco (1892-
1975), tomaram grande parte do espaço de discussão política e intelectual.
Como um dos pontos altos no Congresso, os relatos sobre o horror
na Alemanha nazista e na União Soviética enfatizavam a importância de
ser dada voz ao que pessoalmente evidenciavam os abusos contra a vida
e os direitos humanos impetrados pelos regimes totalitários. Os livros
de Margarete Buber-Neumann, David Rousset, Primo Levi, Germaine
Tiller, Vasily Grossman e Romain Gary, por exemplo, iam ao encontro
desta realidade para a qual o testemunho prestava sustentação para um
alinhamento contra a intolerância, a violência, o abuso e a opressão
institucionalizadas de dois regimes tidos agora como partícipes de um
mesmo eixo: aquele que criava a política como dogma e realizava a
amálgama perversa entre política e verdade.
Derrotado o nazismo pela força das armas em 1945, os testemunhos,
assim como os julgamentos dos crimes de Guerra, faziam esforço no sentido
de que só relembrando seria possível sepultar o horror e a ira totalitária para
sempre. Mas a permanência de outros regimes que tinham na intolerância, no
dogma, na opressão e no sepultamento da esfera pública os pontos-chave do
sustentáculo de organização social e de Estado desacreditava esta possibilidade.
Enquanto o Departamento de Estado norte-americano tratava de
colaborar de maneira efetiva financiando secretamente intelectuais, revistas,
encontros, intercâmbios que punham em evidência a aproximação efetiva
do regime soviético com o totalitarismo, especialmente através do CCF,
a União Soviética se espelhava em uma estratégia similar, denunciando
a intolerância da democracia norte-americana, perversa, desumana e
abusiva ao negar aos negros os direitos civis e de enriquecer à custa da
miséria absoluta das nações sob sua área de influência, especialmente dos
países da América Central e do Sul. Uma das principais armas de ataque
contra os Estados Unidos era a organização dos Congressos pela Paz
Mundial (World Peace Congress), cujo primeiro encontro pós-guerra foi
realizado em Paris, no mês de abril de 1949290. Foi para este Congresso que
a pomba branca desenhada por Pablo Picasso (1881-1973), presente em
Paris, tornou-se mundialmente conhecida como símbolo da paz. A tônica
do Congresso permaneceu, e dele derivaram a realização de inúmeros
outros Congressos pela Paz Mundial e outras organizações específicas,
sempre sob o manto pacifista.
290
Entre os dias 20 e 29 de abril.
124 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

O segundo Congresso Pela Paz do pós-guerra seria em


Sheffield, Inglaterra, no ano de 1950, mas foi transferido e realizado
em novembro de 1950, em Varsóvia. Viena foi a sede do Congresso
em 1952, e assim numa longa rede de acontecimentos. Na verdade,
o Congresso pela Paz Mundial era uma tradição do movimento
comunista no mundo, continuamente a enfatizar a luta pacifista, desde
a década de 1920.
Neste embate, a luta contra o engajamento marxista era uma
das principais estratégias da Guerra Cultural desenvolvida pelos
vários governos norte-americanos, mesmo que as ênfases dadas
por democratas e republicanos fossem extremamente diferentes,
conflitadas e mesmo antagônicas. De qualquer forma, a estratégia
contra o engajamento intelectual ao marxismo se concentrava nos
aspectos totalitários. Tanto o livro de Arthur Schlesinger, The Vital
Center, como o do pensador francês Raymond Aron, O Ópio dos
intelectuais, de 1955, alinhavam-se nesta luta. Dizia Aron no prefácio
de seu volume:
Ao tentar explicar a atitude dos intelectuais, implacáveis com as
faltas das democracias, indulgentes para com os maiores crimes desde
que cometidos em nome de boas doutrinas, encontrei, em primeiro
lugar, as palavras sagradas: esquerda, revolução, proletariado.291
A crítica apontava para a legitimação de uma espécie de
anticomunismo não totalitário, avesso, portanto, aos regimes de direita
inclinados ao totalitarismo, ou, no que se refere aos anos 1950, às ideias
radicais do McCarthysmo. Esta crítica estava associada, a partir de meados
dos anos 1950, à própria ideia do fim da ideologia, título, aliás, do livro de
Daniel Bell (1919), The End of Ideology, publicado em 1960, que suscitara
a discussão de quem seria a autoria da expressão “fim da ideologia”.
Dividiam a paternidade do termo Daniel Bell e Raymond Aron, Edward
Shils (1911-1995) e Michael Polanyi (1891-1976), todos eles ligados ao
Congresso pela Liberdade da Cultura e todos eles engajados na nova etapa
que o Congresso inauguraria depois do encontro em Milão, no ano de
1955,292 e cujo fechamento seria feito em Berlim, cinco anos depois.
291
ARON, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. p. 15. Aron, dentre tantos outros livros, também publicou
Démocratie et totalitarism, em 1965.
292
Após Milão, foi organizada uma série de conferências periféricas, divididas em seis temas centrais:
as mudanças na sociedade soviética; o desenvolvimento das sociedades insuficientemente desenvolvidas
tecnologicamente; África, Ásia e o Ocidente; as instituições nourricieres e as garantias de liberdade; a
sociedade de massas; ideias, propaganda e relações culturais. Cf.: GRÉMION, Pierre. Op. cit., p 319.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 125

De fato, este anticomunismo estava vinculado irremediavelmente


à ideia de crise e de alienação (da esquerda, é claro), mas de uma crise
que, ao contrário da própria etimologia da palavra, tinha sérios entraves
à ação ou faculdade de discernir, escolher, julgar, decidir. Não era,
pois, amplamente propositiva, embora partisse do ponto de que vários
países haviam encontrado o equilíbrio através de um modo de governar
democrático, de uma economia mista e da renúncia à dominação
colonial293. Aliás, da crítica ao totalitarismo partia-se agora para a ideia
de que este equilíbrio seria a forma de manutenção democrática.294 A
problemática sobre a falta de liberdade vinha acompanhada de um forte
apelo ao desenvolvimentismo.
Nesta mesma conferência de Berlim, Schlesinger falaria sobre
democracia e liderança heroica – e não seria por acaso que ele se tornaria
assessor especial de John Kennedy na presidência dos Estados Unidos,
responsável pelo acompanhamento e implementação do programa na
América da Aliança para o Progresso. Arthur Schlesinger dava a esta
liderança heroica a caracterização de anomalia política, pois era incapaz
de fazer frente às realidades da sociedade industrial moderna.295 O
líder heroico, uma vez que profético, seria mítico, instável e irracional.
Schlesinger também argumentava que, ao contrário das previsões de
Marx, seria nos países subdesenvolvidos que o comunismo exerceria
atração mais pronunciada. E cita exemplos: Castro,296 Mao,297 Nasser,298
Kemal,299 Diem,300 Soekarno,301 Ayub,302 Bourguiba,303 Magsaysay,304
Munoz.305 Partidos fortes, como o PRI Mexicano e o Partido do Congresso
da Índia, seriam igualmente uma decorrência de governos fracos.
O desafio da terceira força era justamente realizar esta modernização
e suprimir igualmente os pontos nevrálgicos e suscetíveis da democracia
293
Segundo Aron, estes países seriam: Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo,
Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Grã-Bretanha e Estados Unidos.
294
Ideias semelhantes às de O ópio dos intelectuais já haviam sido desenvolvidas por Aron em L’homme
contre les tyrans.
295
Cf. DUARTE, Jarbas. O debate de Berlim sobre a crise da democracia. In: Cadernos Brasileiros, Rio de
Janeiro, Ano IV, n. 3, Julho de 1962. pp. 84 e 85.
296
Cuba.
297
China.
298
Egito.
299
Turquia.
300
Vietnã.
301
Indonésia.
302
Paquistão.
303
Tunísia.
304
Filipinas.
305
Porto Rico.
126 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

norte-americana: a questão dos direitos civis em nível interno306 e a questão


da miséria dos países sob influência norte-americana. Republicanos e
democratas divergiam quanto à forma de realizar esta política. No que diz
respeito ao desenvolvimentismo, plano traçado no Departamento de Estado,
como os republicanos preconizavam o investimento de capitais apenas
através da iniciativa privada, sem intervenção do Estado, ao contrário dos
democratas, a política de escolha de alianças e lideranças internas e de
incentivos culturais e econômicos em cada país era diferente para ambos os
partidos políticos quando no poder.
Com a eleição de Kennedy à presidência dos Estados Unidos,
estabeleceu-se uma política mais agressiva para o desenvolvimentismo e para
as alianças internas de cada país, privilegiando-se políticas de investimento
de capitais que associavam a iniciativa privada à intervenção estatal. O grupo
New Frontier tinha papel relevante no estabelecimento das políticas de
governo e era constituído por um conjunto de pensadores e intelectuais, os
brain trust, que trabalhavam com John F. Kennedy e haviam anexado o slogan
“Nova Fronteira” usado pelo novo Presidente, tanto em sua campanha quanto
em seu governo para a definição de políticas307:
We stand at the edge of a New Frontier – the frontier of
unfulfilled hopes and dreams. It will deal with unsolved
problems of peace and war, unconquered pockets of
ignorance and prejudice, unanswered questions of
poverty and surplus.308

O slogan incorporava os valores norte-americanos de expansão da


fronteira, muito ao gosto de Jackson Turner (1861-1932)309 e dos desafios
de oportunidades econômicas em aberto. Encontrou, entretanto, forte
reação dos democratas conservadores do sul dos Estados Unidos e dos
republicanos. Em sua maioria, os cerca de 200 homens que compunham
o grupo de Kennedy eram intelectuais de elite e haviam combatido na
306
A este respeito, vide: CIZEL, Annick. Contre la propagande soviétique: l´intégration raciale, instrument
de la Guerre Froide. In: ROUGE, Jean-Robert et ANTOINE, Michel (org.). L´anticommunisme aux États-
Unis de 1946 à 1954.
307
SCHLESINGER JR., Arthur M. Mil dias: John F. Kennedy na Casa Branca.
308
Discurso de John Kennedy, em 1960, quando foi aceito como candidato pelo Partido Democrata na
Convenção de Los Angeles.
309
Frederick Jackson Turner, em um paper entregue à American Historical Association, em 1893, já
afirmava que a excepcionalidade norte-americana estaria no fato de que a vitalidade do país estava ligada
à fronteira, região entre o urbano, o civilizado e o selvagem. É esta fronteira que criaria a liberdade. Usando
um modelo evolucionista ligado à geografia e à história, bem a gosto de seu tempo, Turner dizia que cada
geração que se movia mais em direção ao oeste se tornava mais americana, e esses novos assentados mais
democráticos e menos tolerantes à hierarquia.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 127

Segunda Grande Guerra. Eles haviam reativado bandeiras do reformismo


social que Franklin D. Roosevelt lançara nos anos 1930, numa espécie
de retomada do espírito do New Deal310. Estas bandeiras de reformismo
diziam respeito à política interna e externa dos Estados Unidos. Arthur
Schlesinger pertencia a este grupo de elite.
Entre 1961 e 1963, Schlesinger foi Assistente Especial de Kennedy
para Assuntos Latino-Americanos. Arthur Schlesinger definia-se como
progressista pragmático, uma espécie de esquerda norte-americana diversa da
dos progressistas utópicos. Segundo ele, existiam duas correntes relacionadas,
mas distintas no progressismo norte-americano: a pragmática “aceita, sem
aprovar, a atual estrutura da sociedade, suas raízes, procurando modificá-la
por dentro. A outra pode ser chamada utópica: rejeita a atual estrutura, suas
raízes e seus ramos, e procura modificá-la do exterior”. A primeira seria
prática, a segunda ética e mística. Da primeira teria emergido a obra mais
significativa da esquerda norte-americana: a luta pelos direitos civis, outro
importante ponto de programa da New Frontier.311
Teria sido justamente nesta perspectiva de pragmatismo, que, em princípios
de 1961, um grupo de trabalho liderado por Adolf Berle (1895-1971), Lincoln
Gordon (1913) e outros brain trusts apresentou um relatório com as diretrizes
a serem seguidas doravante pela política norte-americana em relação à América
Latina. Em linhas gerais, este documento preconizava as seguintes medidas:
4. Os Estados Unidos deveriam liderar um processo de transformação
social na América Latina, desvinculando-se das oligarquias reacionárias.
Era necessário reduzir as iniquidades sociais existentes na América
Latina, as quais forneciam um poderoso argumento aos marxistas que
atacavam os Estados Unidos.
5. Os Estados Unidos não deveriam apostar exclusivamente nos méritos da
repressão, mas sim empenhar-se num projeto de mudanças que empolgasse
os povos latino-americanos, afastando-os da tentação revolucionária.
6. Por último, o novo governo deveria estimular alianças com setores
moderadamente reformistas e populares existentes nos círculos
latino-americanos, marginalizando os direitistas. Este ambicioso
projeto implicava que os Estados Unidos se comprometessem,
inclusive, com a política de reforma agrária, para neutralizar a
insatisfação camponesa.

310
Programa do Partido Democrático para a recuperação e reforma econômica dos Estados Unidos durante
a Grande Depressão, implementado entre os anos 1933-1937.
311
Cf.: SCHLESINGER JR., Arthur M. Op. cit.
128 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

A primeira referência à Aliança Para o Progresso (Alliance for


Progress) foi feita a 18 de outubro de 1960, durante a Campanha de Kennedy
à presidência dos Estados Unidos, em Tampa na Flórida. Seu lançamento
oficial acabou acontecendo em 13 de março de 1961 em uma grande
recepção a embaixadores da América Latina na Casa Branca. A Voz da
América transmitiu o discurso de Kennedy em espanhol, português, francês
e inglês. Em agosto daquele mesmo ano, na Conferência Interamericana
de Punta Del Este, no Uruguai, o acordo foi selado com os países da assim
chamada América Latina, com exceção de Cuba. Estabeleceu-se como meta
para a Aliança um aumento de 2,5% na renda per capita, reforma agrária,
distribuição de renda e comprometimento com a instalação de governos
democráticos. Quanto aos Estados Unidos, o acordo selava investimentos
de $20 bilhões de dólares num prazo 10 anos, além de ajuda militar e
policial para conter o comunismo no continente. Logo após o envolvimento
dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, os investimentos financeiros,
entretanto, não foram honrados e a Organization of American States acabou
substituindo o comitê da Aliança, em 1973.
Em função dos acordos de ajuda militar e policial, a Aliança para
o Progresso acabou por respaldar a invasão da Guatemala, em 1962, e
posteriormente a intervenção na República Dominicana e no Haiti. Além
disso, frequentemente a Aliança para o Progresso servia como fachada
para atividades da CIA (Central Inteligence Agency), algo não muito
surpreendente, na medida em que a Aliança para o Progresso nascera muito
em função do impacto da Revolução Cubana, e não como incorporação das
ideias da Operação Pan-Americana (OPA) de Adolfo Frederico Schmidt
(1906-1965)312, como quer fazer pensar grande parte da historiografia
brasileira, embora Kennedy houvesse criado-a para combater o comunismo
no continente, usando recursos mais sofisticados do que a simples
repressão: uma espécie de terceira via, que foi definitivamente abandonada
quando Lyndon Johnson assumiu a presidência dos Estados Unidos após o
assassinato de Kennedy.
312
Schmitt teria sido o ideólogo do programa de Juscelino Kubitschek, lançado em 1958. A sustentação da
proposta da Operação era a de que somente a eliminação da miséria no continente americano poderia conter o
comunismo e expandir a democracia. A maneira de alcançar estes objetivos seria a cooperação internacional,
via capital norte-americano. Como demonstra a documentação do Departamento de Estado e os próprios
escritos da intelligentsia norte-americana, as ideias de Schmitt e Juscelino se adequavam perfeitamente
aos princípios do desenvolvimentismo do Departamento de Estado norte-americano. Vide, por exemplo, o
relatório de Alberto Leras sobre a Aliança para O Progresso, de 1963. In: http://www.fordham.edu/halsall/
mod/modsbook.htm, acesso em 7 de outubro de 2006. Esta versão de que a ideia original da Aliança seria
baseada na sugestão do governo Juscelino de criação de OPA está disseminada e aceita, mesmo que a
conveniência da versão seja tão apropriada ao Departamento de Estado norte-americano.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 129

Gradualmente a questão do desenvolvimentismo vinha ganhando espaço


no espectro das políticas da terceira força, em detrimento da questão totalitária.
Até porque havia existido uma banalização da problemática totalitária, na
medida em que, como bem denunciara Hannah Arendt em seu Eichmann em
Jerusalém, ao criticar Ben Gourion313, a questão totalitária, no caso nazista,
era paulatinamente convertida em questão judaica. Findo o nazismo, o inimigo
político da democracia e dos direitos do Homem era o regime Soviético, porque,
de uma forma geral, criara-se na crítica anticomunista uma certa tipologia para
a caracterização do que poderia ser chamado de totalitário:
1. Os regimes que davam a um partido o monopólio da atividade política
e reconheciam apenas uma autoridade absoluta.
2. O partido que se apresentava como detentor de uma autoridade absoluta
e defensor da verdade oficial do Estado.
3. O Estado tido como inseparável da ideologia.
4. O Estado que se outorgasse o monopólio do uso da força e dos meios
de propaganda.
5. A subordinação da maior parte das atividades econômicas e profissionais.314

Livres da caracterização de totalitários, na maior parte das vezes por


possuírem uma estrutura partidária com mais de um partido, vários outros
regimes de força poderiam agora ser politicamente aceitáveis, uma vez que
não se caracterizavam como totalitários.
O apelo ao desenvolvimentismo deslocava a questão da supressão da
liberdade e do esvaziamento da esfera pública, que fora o eixo da problemática
totalitária315, para a solução da questão social através da superação dos índices
de miséria, natalidade, educação e modernização. O enfoque era o de que o
desenvolvimento econômico e industrial levaria invariavelmente os sistemas
políticos ao encontro da liberdade, mesmo que para isso tivessem que passar por
regimes de força que impulsionassem, com mão de ferro, o desenvolvimento
econômico. A ênfase na resolução da questão social, tese que perpassava tanto as
análises de Raymond Aron como os princípios de desenvolvimento defendidos
pelos teóricos da CEPAL, ou das assim chamadas esquerdas modernizantes,
313
Especialmente no primeiro capítulo. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a
banalidade do mal.
314
Vide a este respeito: ARON, Raymond. Démocratie e Totalitarisme.
315
São fundamentais as apreciações de Hannah Arendt sobre o esvaziamento da esfera pública no
totalitarismo, embora ela própria preconizasse a existência, por suas características, de apenas dois regimes
totalitários. Cf.: ARENDT. Hannah. O sistema totalitário.
130 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

por exemplo, pretendia sepultar para sempre as críticas de cunho político sobre
o esvaziamento da esfera pública. No que diz respeito aos Estados Unidos,
e aos embates da Guerra Fria, a ênfase desenvolvimentista não era apenas
economicamente lucrativa, mas cômoda, pois, no que se refere à população
negra norte-americana, garantia que os direitos civis seriam conquistados
na medida em que o acesso à riqueza fosse conseguido.316 Quanto ao que se
chamaria agora de “terceiro mundo”, tudo poderia ser justificado na medida em
que houvesse investimento econômico, técnico e assistencial.
Em visita ao país por cerca de um mês no ano de 1964, logo após o
golpe militar de março, David Rousset preparava uma série de artigos para
a revista Preuves e o jornal Le Figaro. Escreveria também um artigo para a
revista Cadernos Brasileiros, fazendo uma análise da situação do Brasil.
Personalidade conhecida no mundo intelectual e político, Rousset
estava associado à rede de intelectuais que construíram o CCF desde antes
de sua criação em Berlim, embora tivesse forte ligação com Jean Paul Sartre
(1905-1980), especialmente no final dos anos 1940.317 David Rousset, nascido
na França em 1918, havia se formado em filosofia e literatura na Sorbonne
e se ligado à juventude socialista na década de 30. Esteve ainda muito
próximo a Trotsky, tornando-se, em 1936, um dos fundadores do Partido
Obreiro Internacional, engajando-se na luta contra o colonialismo na Argélia
e no Marrocos. Preso em 1943 por suas atividades políticas clandestinas, foi
confinado em Buchenwald e Neuengamm. Logo em seguida à Libertação,
escreveria um dos primeiros ensaios sobre os campos nazistas, L’Univers
concentrationnaire (Pavois, 1946), e o romance Les Jours de notre mort.
Inicialmente ligado à esquerda, Rousset foi paulatinamente associando-se à
“terceira força” e concentrou-se na luta contra o colonialismo e na oposição ao
regime soviético e seus campos de trabalho, especialmente depois da publicação
do livro de Victor Kravchenko, I Choose Freedom, em 1946 (traduzido o livro
para o francês, em 1947). Como Kravchenko fizera em 48, Rousset também
processaria a revista Les Lettres Française, num igualmente rumoroso caso
de difamação,318 em 1950, ano em que criou a Comissão Internacional Contra
o Regime Concentracionário. Rousset foi ainda candidato a presidente da
França em 1965 e, posteriormente, eleito deputado.
316
É deste enfoque que nascem as políticas de cotas.
317
Ambos criaram, em 1948, o Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDF), mais um movimento
do que um partido político, que nunca atingiu sucesso, mas que pretendia uma espécie de socialismo
revolucionário e democrático, rejeitando fortemente o stalinismo e o reformismo social-democrata. Era
uma terceira via à esquerda. Vide ainda: ARON, Raymond. Memórias. p. 446 e segs.
318
Tanto Rousset como Kravchenko venceram os processos contra a revista que os acusava de mentir sobre
a situação dos campos soviéticos.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 131

Neste artigo da Cadernos, embora ainda ativista da causa Argelina


e opositor de De Gaulle, Rousset curiosamente aderiria ao princípio da
modernização pelo desenvolvimentismo e abandonaria os princípios de
liberdade que haviam notabilizado o grupo de intelectuais em torno do CFF e
de sua ácida crítica aos regimes de força.
A ênfase do artigo de Rousset, O Brasil na Muda, é que o país estaria na
vanguarda da operação de mudança industrial. A revolução brasileira seria esta
revolução, liderada “pela facção dos oficiais formados pela Escola Superior de
Guerra (a chamada Sorbonne)”, que, ao mesmo tempo em que estaria “sacudindo
as estruturas agrárias tradicionais ou arcaicas do continente brasileiro”, rompia
com os modelos das “nacionalizações socializantes de esquerda e das estatizações
à maneira nasseriana”. Rousset pensava também que a esquerda brasileira,
“bastante isolada do proletariado”, em razão da aceleração extraordinária que
tivera a formação deste proletariado no Brasil, “caiu sem luta no aventurismo
político, na medida em que sustentou não um só programa, mas uma ação social
cujos meios não possuía, que não soube nem pôde controlar, acabando, assim,
na anarquia”. O processo industrial tornara-se irreversível depois dos governos
de Getúlio Vargas (1882-1954) e Juscelino Kubitscheck (1902-1976). “A
corrupção e a inflação foram os processos escolhidos no Brasil como estimulantes
necessários ao desenvolvimento das forças produtivas”, mas elas prepararam
a classe média contra o regime, acelerando sua radicalização. Cabia agora à
“Sorbonne” expandir o mercado interno, a partir do triângulo Rio-São Paulo-Belo
Horizonte, transformando o camponês em consumidor. Daí a retomada do grupo
dos militares das bandeiras de reforma de base, do voto do analfabeto, da reforma
fiscal e da reforma agrária. Quanto a Quadros (1917-1992) e Goulart (1919-1976),
eles teriam ocupado a presidência sem dominar o poder, concentrando-se ambos
na luta pelo poder, agente possante de dissolução da política no Brasil319.
A análise de Rousset partia de um ponto de vista estrutural. Na
linguagem de esquerda, do desenvolvimento das forças produtivas e da
potencialidade em relação à modernização que as mudanças poderiam trazer.
De uma certa forma, a simpatia demonstrada por Rousset para com o golpe
de Estado no Brasil poderia parecer irônica, na medida mesma em que ele,
um dos primeiros escritores que prestou testemunho ao indizível – o horror
nazista –, apostava no regime militar brasileiro. Regime que fazia parte do
circuito de ditaduras e da supressão de liberdades. De fato, a simpatia estava
alinhada aos projetos de democratização via modernização.
319
ROUSSET, David. O Brasil na Muda. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano VI, N. 5, set.-out.
196. p. 64 e segs.
132 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Segundo o que escrevera Aron, também na Cadernos Brasileiros, “em


começos do século a modernidade se definia pela liberdade política e pelo
parlamentarismo; hoje se define pela industrialização e pelo planejamento”. A
escolha do regime a ser adotado, dizia Aron, passaria a depender da posição
geográfica e das condições ideológicas dos revolucionários, assim como os fatores
de bases demográficas ou econômicas ou as exigências de desenvolvimento.
Para Raymond Aron, o desenvolvimento é o elemento comum entre esquerda
e direita. Não seria, pois, por acaso, que o tema da reunião de comemoração
de dez anos de fundação do Congresso pela Liberdade da Cultura, em 1960,
também realizado em Berlim fosse: Tradição e mudança: tradição, progresso
técnico e democrático.320 Ou melhor, a estabilidade democrática no pós-guerra,
segundo os debates em Berlim, só havia sido atingida por países industrializados
e modernos e o desastre do parlamentarismo francês estava dando a medida
“das dificuldades suscitadas pelo transplante de instituições representativas para
áreas sem passado democrático”.321 Ditaduras que estavam incumbidas de salvar
a democracia, “um mal necessário”, pululavam pelo mundo inteiro.
Somente a modernidade poderia dar condições para o funcionamento
democrático. Para isso, era necessário livrar o mundo da cegueira dos alienados:
os que professavam as ideologias de esquerda. Como entrave à democracia,
estava justificada agora esta nova forma de intolerância, em nome, é claro, de
uma modernidade, sem esquerda nem direita, por uma terceira via, sem ideologia,
quem sabe, por uma mítica, como seria deixado bem claro por Roberto de Oliveira
Campos (1917-2001), quando embaixador do Brasil nos Estados Unidos.
Em 1963, ainda durante o governo João Goulart, Campos em
discurso realizado durante a Conferência Nacional sobre o Desenvolvimento
Internacional Social e Econômico em Palmer House, Chicago, dizia:
O maior problema da Aliança é talvez que lhe falta uma
mística (prefiro falar de mística, a falar de ideologia,
porque esta palavra tem muitas vezes tomado tonalidades
de facciosismo e intolerância). Com efeito, a Aliança
não é uma experiência a fazer-se em vácuo político.
É uma obra de construção social, que requer ardente
engajamento por parte do povo. Deste ponto de vista,
tem de agir como antídoto à ideologia comunista que,
a despeito de sua selvagem grosseria, tem conseguido

320
ROUGEMONT, Denis de. Reflexos do progresso sobre as liberdades. In: Cadernos Brasileiros, Rio de
Janeiro, Ano II, n.4, out.-dez., 1960. p. 4.
321
Discurso de Raymond Aron durante o Congresso, citado por: DUARTE, Jarbas. O debate de Berlim sobre
a crise da democracia. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 3, julho de 1962. pp. 84 e 85.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 133

levar às massas mais desatinadas a convicção de que lhes


cabe cooperar na construção da nova sociedade. (...) Não
é que falte à Aliança os ingredientes para uma mística.
Tem-nos no desenvolvimento econômico, na liberdade
democrática, na reparação das injustiças sociais. (...) O
nacionalismo ainda pode contribuir com um impulso
valioso para o esforço nacional e tornar-se um elemento
vital na corrida para a modernização.322

Não por acaso, quase 20 anos depois, em 1982, José Guilherme


Melchior (1941-1991),323 um dos mais importantes intelectuais brasileiros do
grupo dos liberais conservadores, amigo de Roberto Campos e seguidor das
ideias de Raymond Aron diria:
Eu acho que esse tipo de conceituação está em grande parte
esvaziado pelo uso demasiado sloganesco que dele tem
sido feito. O problema da direita versus esquerda, usado na
base do clichê, tem levado realmente a muito pouca análise.
É o caso típico em que a discussão produz mais calor do
que luz. Trata-se de palavras dotadas de uma grande carga
emocional e que são usadas para fins puramente polêmicos
na vida política e no combate ideológico. Eu hoje sou um
cético em relação ao uso dessas categorias.324

Era também esta mesma posição que fundamentaria a atuação de


intelectuais no IPES e do IBAD325, ainda na década de 1960, na linha de
frente de preparação do golpe militar de 1964. Provavelmente uma releitura
da epígrafe do texto de Arthur Schlesinger no New York Times de 1948: “The
hope of the future lies in the widening and deepening of the democratic middle
ground”.326 Era esta a aposta na “Sorbonne” do General Golbery do Couto e
Silva que, através de uma ditadura, deveria desenvolver o país e atender as
questões sociais. O declínio do homem público, para usar a feliz expressão de
Richard Sennet, e o esvaziamento da esfera pública deveriam seguir uma nova
trajetória, livre dos “alienados”.
322
CAMPOS, Roberto de Oliveira. Reflexões incômodas sobre a Aliança para o Progresso. In: Cadernos
Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano V, 1963, janeiro-fevereiro. pp. 10-21.
323
José Guilherme Melquior, diplomata brasileiro e ensaísta (1941-1991), foi um dos mais produtivos
intelectuais brasileiros do assim chamado grupo dos “liberais conservadores”. Membro da Academia
Brasileira de Letras, sofreu enorme influência de Raymond Aron quando fez seu doutorado na França.
Amigo próximo de Roberto Campos, havia sido seu Conselheiro na Embaixada em Londres.
324
Entrevista de José Guilherme Melquior a José Mário Pereira realizada em 13 de novembro de 1982. In:
Pereira, José Mário. O fenômeno Melchior (nov. de 2001), www.olavodecarvalho.org/convidados/0122.
htm, acesso em 7 de dezembro de 2006.
325
Instituto Brasileiro de Ação Democrática, criado em 1959 para combater o comunismo.
326
SCHLESINGER JR., Arthur M. Jr. Op. cit.
Mal-estar de civilização:
a democracia e o negro
no Brasil
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 135

F ruto de um trabalho de pesquisa que vinha sendo desenvolvido


por um conjunto maior de pesquisadores, a tese de Cardoso327 somava-se ao
trabalho de outro orientando de Florestan Fernandes, Otávio Ianni (1926-2004),
cuja dissertação (Raça e mobilidade social em Florianópolis) e tese (O negro da
sociedade de castas) foram defendidas em 1956 e 1961. Ianni e Cardoso seguiam
os passos e a orientação de Florestan Fernandes, que havia publicado, juntamente
com Roger Bastide, Brancos e negros em São Paulo, no ano de 1958.
Os estudos de todos eles eram resultantes das pesquisas do que
coube à Universidade de São Paulo desenvolver sobre as relações raciais no
Brasil, especificamente nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e
Rio Grande do Sul. Projeto financiado pela Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), nos anos de 1951 e 1952,328 a
fração sob a responsabilidade da USP329 foi coordenada justamente por Roger
Bastide (1898-1974) e Florestan Fernandes.330
O estudo de Fernando Henrique Cardoso fazia parte de uma série de
trabalhos,331 inclusive o que desenvolvera conjuntamente com Otávio Ianni
(Cor e Mobilidade Social em Florianópolis: aspectos das relações entre
negros e brancos numa comunidade do Brasil meridional), publicado em
1960332, e cujo prefácio Florestan Fernandes concluíra em dezembro de 1959.
Como diria Otávio Ianni, todos eles pressupunham que “o preconceito racial
no Brasil é um dado fundamental das relações sociais”.333
Nesta trilha que se seguiria a desmistificar a democracia racial
brasileira, o trabalho de Fernando Henrique, Capitalismo e escravidão no
327
Em 1961, sob orientação de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso defendeu sua tese de
doutorado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP).
* Foi Carlos Henrique Romão de Siqueira, quando ainda fazia sua tese A alegoria patriarcal: escravidão,
raça e nação nos Estados Unidos e no Brasil, defendida na UnB, em 2007, quem chamou minha atenção
para a aproximação de Gilberto Freyre com os Agrarians, como teremos oportunidade de ver a seguir. A
Carlos Henrique devo meus agradecimentos.
328
O projeto foi idealizado por Arthur Ramos, quando este era Diretor do Departamento de Ciências
Sociais da Unesco, em 1949. Teve sua aprovação em junho de 1950, na 5ª sessão da Conferência Geral da
Unesco, realizada em Florença, de acordo com as preocupações do pós-guerra com os problemas relativos
à pobreza e às questões raciais. Cf.: MAIO, Marcos Chor. O projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais
no Brasil nos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 14, n. 41. São Paulo, out. 1999.
www.sieco/br.ph?pid, em 13 de junho de 2007.
329
Além de São Paulo, equipes de três outros estados realizaram pesquisas sobre o tema: Rio de Janeiro
(Costa Pinto, 1920-2002), Pernambuco (Gilberto Freyre) e Bahia (Thales de Azevedo, 1904-1995).
330
Rev. Antropol. v. 46 n. 2 São Paulo, 2003. Pessoa e instituição – entrevista com João Baptista Borges
Pereira. In: www.scielo.br/scielo.php, em 12 de junho de 2007.
331
Deve-se distinguir os de Oracy Nogueira (1917-1996), Virgínia Leone Bicudo (1915-2003) e Aniela
Ginsberg (1902-1986).
332
Neste estudo o INEP e a Capes também participaram do financiamento de pesquisa.
333
IANNI, Otávio. Otávio Ianni: o preconceito racial no Brasil (entrevista). Estudos Avançados. vol. 18 n.
50. São Paulo, 2004, disponível em www.scielo.br/scielo.php, acesso em 14 de junho de 2007.
136 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul,


procurava, como ele próprio alega, contrapor-se à “mistificação sociológica
que abrandava os efeitos negativos do patriarcalismo escravista e insistia na
existência (...) de uma democracia racial”.334 Em outras palavras, contrapunha-
se às interpretações ao estilo das de Gilberto Freyre sobre a história, a cultura,
a evolução e as propostas de Brasil das quais o intelectual pernambucano
se tornaria o maior expoente. Teses que Freyre expunha sistematicamente
em seu livros, cujo maior sucesso seria Casa-Grande e Senzala, publicado,
pela primeira vez, em 1933, e já em sua quinquagésima edição no ano de
2005, desta vez com uma apresentação do próprio Cardoso,335 passaram a ser
sistematicamente refutadas pelo grupo da USP.
Os núcleos centrais do trabalho de Fernando Henrique Cardoso – para
as finalidades que aqui nos interessam – podem ser assim resumidos:
1. a escravidão foi um processo que produziu a dupla alienação: a de
senhores e a de escravos;
2. os padrões estruturais garantem a compreensão da assimetria das
posições dos grupos raciais;336
3. foram relações de produção que se caracterizaram como “relações de
violência e de alienação mantida(s) pelos efeitos da violência” que
estavam presentes na escravidão;337
4. houve “impraticabilidade de o capitalismo expandir-se além de certos
limites através da escravidão”;338
5. os efeitos sobre “o comportamento do negro livre exercidos pela
escravidão e pelas representações dos brancos sobre os escravos
(a socialização parcial do escravo, as expectativas assimétricas
nas relações entre brancos e negros etc., resultando na anomia e na
desmoralização do grupo negro)” levaram apenas a uma espécie de
“consciência possível” do negro;339
6. a tese da democracia racial está baseada em uma reconstrução idílica
do passado;340
334
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do rio Grande do Sul. Prefácio à quinta edição, p. 10.
335
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal.
336
Idem, ibidem. Cap. II, p. 107.
337
Idem, ibidem. Introdução, p. 41.
338
Idem, ibidem, p. 43.
339
Idem, ibidem, p. 44.
340
Idem, ibidem, p. 108.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 137

7. a escravidão foi um sistema autocrático pervertido, de apelo ao arbítrio


e à força bruta;341
8. “a imagem do escravo como objeto e a heteronímia na ação que os
dominadores impõem aos dominados no regime escravocrata são
obtidas pela coação aberta e contínua e pela socialização do escravo
para suportar o exercício da violência”;342
9. “o escravo torna-se um ser parcial, capaz apenas de executar as formas
mais rudes de trabalho”, e enquanto os senhores os representavam apenas
como instrumentos de produção, os escravos “autorrepresentavam-se
como seres incapazes de comportar-se como homens livres”;343
10. Após a escravidão, “a massa dos ex-escravos despreparada socialmente e
culturalmente (...) à qualidade de cidadão” (...) ajustou-se passivamente”344
e aceitou a “existência de desigualdades sociais, expressas sob a forma de
desigualdades naturais. A maior parte dos negros ratificou essa situação
pela aceitação do “ideal de branqueamento”. Já os escravos ligados ao
artesanato urbano ou à escravidão doméstica que puderam beneficiar-se
de melhores condições materiais e morais de existência, formularam uma
“ideologia da negritude”;345 um “racismo antirracista.346

Estes pontos-chave, encontrados em Capitalismo e escravidão no


Brasil meridional, estavam assentados nas premissas do trabalho de Florestan
Fernandes que procurava fusionar uma perspectiva histórica a uma perspectiva
estrutural-funcional347, no que ele chamava de uma sociedade de classes em
formação. Esta “sociedade emergente”, “competitiva”, parte da “civilização
industrial”, lançava “suas raízes no anterior sistema de castas e estamentos”,
mas esta modernização não possuía bastante força para expurgar-lhe os
hábitos, padrões de comportamento e funções sociais institucionalizadas”.348
Neste período de pós Segunda Guerra Mundial, quando se realizou
a pesquisa da Unesco, bastante abalados com as críticas de esquerda a uma
sociedade – ou civilização – que se dizia democrática, mas que conservava
várias formas de racismo, inclusive a segregação, os Estados Unidos investiam
pesadamente nos estudos sobre os problemas raciais.349 O ponto central era
341
Idem, ibidem, p. 109.
342
Idem, ibidem, p. 351.
343
Idem, ibidem, p. 351.
344
Idem, ibidem, p. 353.
345
Idem, ibidem, p. 354.
346
Idem, ibidem, p. 332.
347
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. p. 7.
348
FERNANDES, Florestan. Idem, ibidem, p. 7 e segs.
349
Em 1947, o presidente dos Estados Unidos, Truman, instaurou o President’s Committee on Civil Rights,
como veremos mais adiante.
138 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

demonstrar que, mesmo assumindo que a questão racial nos Estados Unidos
era complexa e que existia discriminação e segregação, o sistema democrático
possibilitava a resolução de problemas. Do ponto de vista interno, acreditava-
se que superar a questão racial era fundamental para enfrentar a luta contra o
comunismo e suas armas de propaganda.350
Já em 1949, quando Arthur Schlesinger lançava seu livro, The Vital Center,
o historiador fazia sérias recomendações acerca das “técnicas de liberdade”:351
A sociedade livre não pode sobreviver sem que derrote os
problemas da estagnação econômica e do colapso. Mas o
sucesso econômico pode apenas criar as condições para
a sobrevivência da liberdade; ela não pode dar garantias.
A preservação da liberdade requer um comprometimento
contínuo e positivo. Especificamente a manutenção dos
Estados Unidos como uma sociedade livre desafia o
povo americano à imediata responsabilidade em duas
áreas: os direitos civis e as liberdades civis.352

Desde que haviam sido publicadas as Resoluções do Comintern


para a questão Negra (Comintern Resolutions on the Negro Question), em
1928 e 1930, dizia-se que os African-Americans perfaziam uma espécie
de cinto negro (Black Belt), formador de uma nação oprimida e à parte
no interior dos Estados Unidos, e que esta nação deveria ter o direito
de desmembrar-se e autodeterminar-se.353 A opressão negra teria sido
causada pela condição de expropriação e semiescravidão a que tinham
sido relegados os negros, pela ainda inconclusa questão agrária do Sul,
agravada pelo terror da Ku Klux Klan.
Era o mesmo Arthur Schlesinger quem dizia que “como a mais
apelativa injustiça social no país”, o problema do negro havia atraído o
interesse do Partido Comunista desde seu início354.
A posição do Partido Comunista dos Estados Unidos era a de que
“a grande maioria dos negros nos distritos rurais do sul não era ‘reserva da
reação capitalista’, mas aliada em potencial do proletariado. Sua situação
objetiva facilitava sua transformação em uma força revolucionária, que, sob a
liderança do proletariado, será capaz de participar na luta conjunta com todos

350
Cf.: DUDZIAK, Mary. Cold War Civil Rights: Race and the Image of American Democracy.
351
SCHLESINGER JR, Arthur M. The Vital Center. The Politics of Freedom. A passagem está no capítulo
IX (The Techniques of Freedom) do livro de Schlesinger.
352
SCHLESINGER JR, Arthur M. Op. cit., p. 189.
353
Esta tese foi definitivamente abandonada em 1959, embora já bastante enfraquecida desde 1944.
354
SCHLESINGER JR, Arthur M. Op. cit. p, 189.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 139

os demais trabalhadores contra a exploração capitalista (...) É dever de todos


os trabalhadores negros organizar através da mobilização das grandes massas
da população negra e luta dos trabalhadores e arrendatários do campo contra
as formas de opressão semifeudal. (...) a questão negra precisa fazer parte e
participar de toda e qualquer campanha conduzida pelo Partido”.355
A postura do Comintern afetava a política norte-america interna e
externamente, pois orientava o Partido Comunista dos Estados Unidos e os
demais, no mundo todo, a tomar a causa negra como frente de lutas anti-
imperialistas e antiamericana.
Em 1950, a própria USIA (United States Information Agency), que
a partir de 1953 consolidaria, no exterior, a maior parte das atividades de
informação do Departamento de Estado, havia publicado o panfleto The
Negro in American Life. Esta agência estava encarregada de explicar a
política externa norte-americana e mostrar ao restante do mundo as faces
de sua vida e de sua cultura, especialmente em respeito aos direitos e
às liberdades dos indivíduos. A tarefa da USIA era complexa na medida
em que o problema do negro foi evocado constantemente como prova da
falta de liberdade interna e da selvageria do sistema capitalista. A Agência
reconhecia agora, especialmente depois dos acontecimentos em Little Rock,
que os problemas raciais e a violência em relação a eles existiam, mas
providenciava informações sobre os avanços dos negros norte-americanos,
especialmente na educação, na política e na economia.356
Estas investidas das políticas de governo vinham sendo intensificadas
antes mesmo de Little Rock, quando então foram realizadas pesquisas
de opinião para verificar o quanto as relações raciais afetavam a imagem
norte-americana no exterior. As conclusões foram que, universalmente, os
estrangeiros possuíam uma imagem negativa do tratamento dispensado aos
355
The 1928 and 1930 Comintern Resolutions on The Black National Question In The United States. Do
original em inglês: “The great majority of Negroes in the rural districts of the south are not “reserves of
capitalist reaction,” but potential allies of the revolutionary proletariat. Their objective position facilitates
their transformation into a revolutionary force, which, under the leadership of the proletariat, will be able to
participate in the joint struggle with all other workers against capitalist exploitation (...). It is the duty of the
Negro workers to organize through the mobilization of the broad masses of the Negro population the struggle
of the agricultural laborers and tenant farmers against all forms of semi-feudal oppression.(…) The Negro
problem must be part and parcel of all and every campaign conducted by the Party (1928). www.marx2mao.
com/Other/CR75.html, acesso em 3 de julho de 2007.
356
Na década de 1950, houve importante investimento da USIA na produção de filmes que mostrassem ao
mundo os astros negros, desde que eles não professassem nenhum tipo de ideia radical, como era o caso de
Paul Robeson (1898-1976), Lorraine Hansberry (1930-1965) e Malcolm X (1925-1965). Em 1957, Louis
Armstrong (1901-1971), muito mais cordato, teve suspensa sua turnê na URSS, financiada pelos EUA,
quando criticou duramente a condução de Eisenhower (1890-1969) em Little Rock. Cf.: SCHWENK,
Melinda M. Negro Star and the USIA’S Portrait of Democracy. www.aejmc.org/_events/convention/
abstracts/1999/viscom.php , acesso em 19 de junho de 2007.
140 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

negros nos Estados Unidos, mesmo nos países mais simpáticos aos Estados
Unidos, como a Grã-Bretanha, a Alemanha Ocidental e a Noruega. Little Rock
teria apenas confirmado a imagem que se fazia.357
Não seria por acaso, portanto, que a iniciativa da Unesco em financiar
uma pesquisa sobre relações inter-raciais no Brasil havia provocado certa
surpresa, especialmente porque se considerava que, no âmbito mundial, o
Brasil era um país que não apresentava problemas urgentes desta natureza.358
Mas a Unesco estava oficialmente mobilizada em uma campanha contra a
discriminação e o preconceito raciais.359 A escolha havia sido feita, dizia
Alfred Metraux (1902-1963), então chefe da Division for the Study of Race
Problems da organização, justamente porque
Os raros exemplos de relações raciais harmoniosas
não têm, contudo, recebido a mesma atenção tanto
de cientistas como do público em geral. Mesmo que a
existência de países onde as diferentes raças vivam em
harmonia seja por si só um fato importante capaz de
exercer uma forte influência na questão racial em geral.

Um dos dogmas básicos do racialismo (racialism) é que


os homens de diferentes raças não podem misturar-se
sem condenar-se à decadência moral e física. (...)

Se pudermos mostrar, por um ou mais exemplos


concretos, que este argumento, ou mais precisamente este
credo, é falso, as injustiças e sofrimentos que as políticas
de segregação infligem aos membros das assim chamadas
raças “inferiores” não poderão mais se justificar.360

Metraux afirmava ainda que o Brasil é um dos raros países que alcançou
a democracia racial. Chamou a atenção para o fato de que a atitude dos países
ibéricos em relação à escravidão se diferenciou muito da de outras potências
coloniais, assim como cláusulas favoráveis a escravos teriam sempre existido
nas leis portuguesas e espanholas, reflexo da vontade da Igreja que, desde o
século XVII, reconhecia os indígenas e os negros como seres humanos. Além
disso, não poderia ser negada a contribuição do negro à tradição religiosa,
357
HEGER, Kenneth W. Race Relations in the United States and American Cultural and Informational
Programs in Ghana, 1957-1966. www.archives.gov/publications/prologue/1999/winter/us-and-ghana-
1957-1966-acesso em 16 de junho de 2007.
358
Cf.: METRAUX, Alfred. A Report on Race Relations in Brazil. Unesco Courier, vol. V, 8/9, 1952, p. 6.
http://unesdoc.unesco.org/images/0007/000711/071135. acesso de 19 de junho de 2007.
359
Idem, ibidem.
360
Idem, ibidem.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 141

social e artística num país que estava demonstrando sua originalidade e o


surgimento de uma nova civilização, onde brancos e negros teriam trabalhado
conjuntamente para criar um novo ambiente social.
O grande perigo, afirmava o chefe da Divisão da Unesco, era o papel que
transformações econômicas poderiam representar na formação do preconceito
racial. A rápida urbanização que tomou lugar no Brasil acirrou as relações
entre bancos e negros em determinadas cidades e provocou conflitos sérios. O
nascimento de uma classe trabalhadora rural, acompanhada de uma crescente
competição entre imigrantes, com um grande número de pessoas de cor que estava
se mudando para os centros industriais, poderia destruir esta democracia racial.361
De um modo geral, as justificativas para realizar a pesquisa da Unesco
no Brasil acompanhavam as linhas-mestras de pensamento de Gilberto Freyre
em seus estudos. Era interessante ver o predomínio de uma visão sobre o Brasil,
especialmente em sua fase histórica embrionária, em que o autor, consagrado
especialmente por Casa-Grande e Senzala,362 enfatiza a sensibilidade de uma
cultura sustentada na bondade humana ou no humanismo, advinda de uma
perspectiva nordestina, especialmente a de Pernambuco.
Esta perspectiva foi uma espécie de criação de identidade cujo polo de
sustentação era a referência a seu contrário (de oposição ou contraste). Ela seria,
portanto, inversamente relativa aos valores que se encontrariam no Sul do Brasil.
Para tomarmos uma dimensão mais universal, poderíamos dizer que estas teses
aventadas no projeto da Unesco por Alfred Metraux, se contrapunham àquilo que,
já chamamos atenção em capítulo anterior, Alexis de Tocqueville (1805-1859)
deu ênfase em sua visão de exaltação, nos Estados Unidos, quando escreveria, em
1835, seu clássico livro A democracia na América. Tocqueville exaltou justamente
os valores do Norte puritano, em oposição aos valores das demais regiões do
continente, fadadas, segundo ele, à desordem e alheias ao trabalho e à riqueza.363
Seguindo os preceitos de Freyre, nessa interpretação inversa ao
consagrado escrito de Alexis de Tocqueville, o pragmatismo utilitarista do
protestantismo era incompatível com as premissas que haviam facultado
361
Idem, ibidem.
362
Em 1950, Casa-Grande & Senzala já estava em sua sexta edição no Brasil. Em 1942, fora publicado na
Argentina; em 1946, nos Estados Unidos; em 1947, na Inglaterra; em 1952, na França; e , em 1957, em
Portugal. Em 1957, Freyre foi laureado nos Estados Unidos com o prêmio Anisfield-Wolf, destinado ao
melhor trabalho no mundo sobre relações entre raças.
363
Destacamos aqui duas passagens. Ambas retiradas de edição brasileira. A primeira, na página 263: “Ficamos
espantados ao perceber as novas nações da América do Sul se agitarem, há um quarto de século (...) Mas quem
pode afirmar que as revoluções não são, em nosso tempo, o estado mais natural dos espanhóis da América
do Sul?”; a segunda, na página 360: “Mas em que porção do mundo encontram-se ermos mais férteis, rios
maiores, riquezas mais intactas e mais inesgotáveis do que na América do Sul? No entanto, a América do
Sul não pode suportar a democracia”. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América: leis e costumes.
142 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

construir esta civilização diferenciada que era o Brasil. Gilberto Freyre


pressupunha que “a cultura católica era mais plástica, mais flexível, com maior
capacidade de assimilação, ao passo que a cultura protestante, mais dura, mais
rigorosa, mais intransigente, era menos receptiva à diversidade e menos rica
em termos estéticos”.364 Esta plasticidade e imensa capacidade de assimilação
estariam presentes sempre que esta cultura católica tivesse obtido espaço de
penetração, o que teria ocorrido de forma exemplar no Nordeste brasileiro.
Por isso, o verdadeiro espírito brasileiro estaria no Nordeste.
Freyre centralizaria toda esta procura de identidade no passado e
na construção de uma memória. Colocou-se, portanto, em contraste com
projeções de futuro, especialmente as projeções de futuro que repousavam em
um tipo de modernidade apregoada no Sul do Brasil, especialmente em São
Paulo. Para Freyre, a aposta de modernidade e de civilização advindas do Sul
do país seria uma espécie de modelo intrusivo sobre a tradição, extemporânea
àquela identidade cultural diferenciada apregoada por ele, e por sua busca
constante da tradição. Gilberto Freyre propunha, assim, um modelo bastante
diferenciado de civilização, distante e antagônico, portanto, do modelo
protestante de desenvolvimento do capitalismo.
Fernando Henrique Cardoso continuaria a criticar esta posição de
Freyre ainda em 2005, quando de sua Apresentação para a quinquagésima
edição de Casa-Grande e Senzala pela Editora Global. Dizia ele que “Gilberto
Freyre contrapunha a tradição patriarcal a todos os elementos que pudessem
ser constitutivos do capitalismo e da democracia: o puritanismo calvinista,
a moral vitoriana, a modernização política do Estado a partir de um projeto
liberal e tudo o que fundamentara o Estado de Direito (o individualismo, o
contrato, a regra geral), numa palavra, a modernidade”.365
Esta postura de Freyre no que diz respeito à proposta de outro tipo
de civilização, é importante ser dito, não se consubstanciava como postura
solitária. Como o francês Tocqueville, que usara os Estados Unidos para pensar
a realidade de seu próprio país, a França, Freyre, um século depois, também
se inspirara nos norte-americanos para repensar o Brasil, mas utilizava uma
espécie de troca de sinais em relação ao trabalho de Tocqueville. Lá, onde o
francês viu positividade, Freyre via negatividade. Sua proposta de civilização
seria diversa. Freyre a estava compartilhando com um movimento que vinha
tomando corpo especialmente no Sul dos Estados Unidos.
364
SIEPIERSKI, Paulo D. Protestantismo versus brasilidade nos artigos de jornal do aprendiz Gilberto
Freyre. In: http://revcom2.portcom.intercom.org.br, acesso em 20 de março de 2007.
365
Freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. p. 27.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 143

AO SUL
Em 1918, Gilberto Freyre chegara para estudar em Waco, no Texas, na
Baylor University, uma tradicional instituição Batista de ensino superior 366.
Dois anos depois, desenvolveria severa crítica ao protestantismo e se voltaria
não só para o catolicismo como para o iberismo.367
Naquela época, vivia-se intensa agitação intelectual no Sul. Um de seus
movimentos era o chamado The New Poetry. Ele adentrara o Sul dos Estados
Unidos e procurava humanizar a poesia, fazendo uso de uma linguagem mais
fresca e original, fugindo completamente dos tipos tradicionais de versos, o
que viria a diferenciá-lo das formas estabelecidas pela literatura do século
XIX. Era a procura de novas plasticidades. Freyre foi tocado por esta forma
de fazer uso da palavra e da poesia.
Havia também uma intensa movimentação intelectual que
criticava a exaltação da segregação calcada na tentativa de conservar os
ideais do velho sul (Old South), de uma história feita por “senhoras” e
por remanescentes confederados, especialmente no que diz respeito ao
que esta velha escola tinha em relação às concepções de raça e política
e às hierarquias de classe368. Os admiradores deste renascer sulista
(Southern Renaissance) se posicionavam abertamente contra as doutrinas
de segregação que se haviam acirrado na década de 1880 e que haviam
encontrado eco de sustentação na exaltação do Old South e no restante da
nação, especialmente depois de 1915, quando do estrondoso sucesso do
filme The Birth of a Nation, de D. W. Griffith (1845-1948). O filme, que
veiculava imagens sobre a “selvagem sexualidade negra”, dava um retrato
negativo do período de Reconstrução sulista, quando se abrira um pequeno
espaço de cidadania ao negro 369.
Esta Renascença sulista estava imersa na tentativa de repensar a
História, muito embora, como assinalaria o historiador James Cobb, em 2007,
tenha acabado por contornar a “delicada questão da escravidão, pagando tributo
366
O pai de Freyre era um entusiasta da religião Batista. Foi em colégio batista que Freyre realizou seus
estudos no Recife e acabou sendo batizado naquela religião, em 1917, ano anterior a sua ida aos Estados
Unidos para estudar na maior universidade Batista do mundo. Cf.: SIEPIERSKI, Paulo D. Op. cit., acesso
em 20 de março de 2007.
367
Vide especialmente os trabalhos de Elide Rugai Bastos. Uma síntese desta questão pode ser encontrada
em: BASTOS, Elide Rugai. Brasil: um outro ocidente? Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira.
In: http://www.fundaj.gov.br/clacso/paper10.doc, acesso em 5 de julho de 2007.
368
COBB, James. A Way Down South: A History of Southern Identity. Veja a este respeito o que pondera o
autor quanto aos esforços de industrialização e modernização após o período de Reconstruction (1865-77),
especialmente na página 68.
369
Idem, ibidem, pp. 87 e 88.
144 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

ao charme e à cordialidade da classe dos senhores, mas, ao fim, esquivando-se


de enfrentar o devastador impacto humano e econômico da instituição que deu
suporte à escravidão”370.
Este repensar intelectual se fez acompanhar de uma profissionalização
do “fazer histórico”, que vinha dar suporte a esta reação aos valores
conservadores do Old South e fazia com que, por volta de 1920, já houvesse
cerca de 30 ou 40 cursos de História sobre o Sul sendo oferecidos nas
universidades norte-americanas.
Gilberto Freyre encontrou este instigante ambiente intelectual nos
Estados Unidos, seja em Waco, onde viveu entre 1918 e 1920, ou no período
que esteve em Nova Iorque, na Universidade de Columbia, entre 1920 e
1922, ou mesmo de seu retorno aos Estados Unidos, em 1926, quando visitou
Maryland e Virginia.
Sobre a New Poetry, Gilberto Freyre registra em seu diário,
supostamente, em Waco, no ano de 1920, a favor da chamada New Poetry, do
New Criticism e da New History:
São três movimentos renovadores que fazem da literatura
– ou da cultura – dos Estados Unidos de agora uma das
mais vibrantes no mundo moderno.371

Segundo o próprio Freyre, em 1921, teria começado seu contato com


Henry L. Mencken (1880-1956), o que lhe marcaria profundamente372. Intelectual
atuante nesse repensar da vida do Sul dos Estados Unidos, Mencken, um dos
maiores críticos norte-americanos do século XX, repensava a cultura norte-
americana, especialmente a sulista373, defendendo radicalmente os direitos civis,
a liberdade de pensamento, e posicionando-se contrariamente ao puritanismo
e ao fundamentalismo cristãos. Colunista famoso e influente, antes mesmo de
fundar e editar, juntamente com o futuro amigo íntimo de Freyre, o editor Alfred
Knopf (1892-1984), a revista American Mercury, em janeiro de 1924, Mencken
foi ainda um dos grandes incentivadores literários do Harlem Renaissance.
370
Idem, ibidem, p. 104.
371
Diz-se que o registro é supostamente feito em 1920, porque, como esclarece Maria Lúcia G. Palhares-
Burke, “(...) fica claro que o texto foi escrito e reescrito ao longo dos anos, houvesse ou não um núcleo
original de entradas feitas na própria época dos eventos que descreve”. Cf.: PALHARES-BURKE, Maria
Lúcia G. Um livro marcante ou uma autobiografia à prestação. In: FREYRE, Gilberto. Tempo morto e
outros tempos. Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade (1915-1930). p. 13.
372
O contato teria sido por correspondência, segundo informação de Maria L. G. Palhares-Burke, e,
possivelmente, com impacto unilateral em Freyre. Cf.: PALHARES-BURKE, M. L. Gilberto Freyre, um
vitoriano nos trópicos. São Paulo, Editora Unesp, 2005, especialmente nas páginas 24, 34 e 162-3. Ainda
segundo a autora, Mencken foi um dos maiores líderes de Freyre, “implacável na denúncia dos males da
modernidade e no apelo a uma aristocracia intelectual”. Cf.: Idem, p. 204.
373
Ele nasceu em Baltimore.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 145

Este movimento que agitou a vida de Nova Iorque, como do restante


dos Estados Unidos logo após a Primeira Guerra Mundial, florescera no
Harlem, em Manhattan, revelando um número crescente de negros norte-
americanos que se destacou nas artes, na música, na literatura e na dança374. O
Harlem Renaissance propunha a “edificação” da raça negra, através de uma
celebração de grande variedade cultural de elementos que mixavam a alta e
a baixa cultura com a experimentação de novas formas que se notabilizaram
especialmente na literatura, na poesia e na jazz poetry, numa espécie de
exaltação a uma cultura híbrida.
A posição de Henry L. Mencken, de um modo geral, seguia a tônica
de uma aguda crítica ao protestantismo e ao puritanismo. Cada grupo humano,
pensava ele, seria capaz de produzir um pequeno número de pessoas claramente
superiores que perfaziam uma elite, uma aristocracia. Esta elite, que poderia ser
achada entre brancos ou negros, estava, naquele início de século, sendo substituída
pela ascensão social de uma massa de brancos ignorantes que vinha tomando
conta do Sul dos Estados Unidos e acabando, consequentemente, com a erudição
e a cordialidade que faziam parte de um modo de vida, de uma civilização.375
Havia, neste novo ambiente sulista pós-primeira Guerra Mundial, uma
profunda reflexão sobre os males que haviam sido trazidos pela Guerra de Secessão.
O abandono da população negra com o final da escravidão era visto, escrito e lido
acompanhado de uma aguda crítica à sociedade industrial, sua economia e sua
cultura. Havia um sentido de orgulho em reviver uma forma de vida em que, nesta
compreensão, valores divergentes de civilização questionavam o utilitarismo e
o pragmatismo que haviam tomado conta dos Estados Unidos. Chegara a hora,
como sugeriam os poetas e os professores do movimento The Fugitives,376 que
se formara na Universidade de Vanderbilt, igualmente por volta de 1915 (em que
pese as divergências que viriam a ter com Mencken), de provocar uma reação que
seria ainda mais radicalizada: este grupo foi a origem dos Agrarians.377
Em 1930, ano em que Freyre iniciava suas pesquisas para Casa-
Grande e Senzala, um grupo de doze intelectuais, ligados de alguma forma à
Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee, publicou o manifesto
I´ll Take My Stand: The South and The Agrarian Tradition.378 I´ll Take My
374
Especial atenção deve ser dada ao movimento de migração interna de negros que sai do sul dos Estados
Unidos para se estabelecer no Norte após a Guerra Civil. Há uma concentração especial deles no Harlem.
375
COBB, James. Op. cit. p. 108.
376
Nome dado à revista do Grupo. Cf.: CONKIN, Paul K. The Southern Agrarians. p. 1.
377
Este grupo deu origem, ainda, ao New Criticism. Entre os mais notáveis Fugitives estavam John C.
Ransom, Allen Tate, Merril Moore, Donald Davidson, Randal Jarrel e Robert Penn Warren. Já por volta de
1930, vários componentes do grupo criticavam as posições.
378
O grupo era composto por John Crowe Ransom, Donald Davidson, Frank Lawrence Owsley, John Gould
146 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Stand era um conjunto de doze trabalhos que atacava a civilização industrial da


sociedade norte-americana moderna e apregoava a preservação dos costumes
e cultura do Sul rural como alternativa de civilização. O manifesto nascera sob
a inspiração de dois professores de inglês e poetas e de um estudante poeta,
John Crowen Ramson (1888-1974), cujo pai foi missionário no Brasil,379
Donald Davidson (1893-1968) e Allen Tate (1899-1979).380 De modo geral, os
Agrarians estavam preocupados com o modernismo cultural e buscavam uma
reconciliação entre tradição e progresso, apostando tanto na defesa da cultura
e da herança cultural como nos valores religiosos do humanismo cristão e,
por conseguinte, na reafirmação de uma filosofia antiliberal, especialmente
importantes para uma cultura que teria construído um senso profundo de
comunidade, identidade e laços familiares.381
Não param por aí as similitudes e coincidências do trabalho de Freyre
com estes sulistas382. Assim como há uma leitura idílica do Brasil do séc. XIX
em Casa-Grande e Senzala383, o poder argumentativo dos ensaios do grupo
Agrarians reside justamente na força de suas metáforas poéticas, que, na
defesa de um Sul romantizado, transformou-se em uma afirmativa de valores
universais384; a industrialização, em última instância, seria inimiga da religião,
das artes e de todos os componentes da “boa vida”: do ócio, da hospitalidade e
da conversação. Esta era uma visão plenamente corroborada por Freyre, como
podemos ver: “Havia lazer, havia fausto, havia escravos e havia maneiras”. 385
Na época, como se observava entre alguns dos Agrarians,
especialmente Allen Tate, a crítica ao protestantismo levou muitos
intelectuais a um enorme interesse pelo Revival Católico386. O movimento,
Fletcher, Lyle H. Lanier, Allen Tate, Herman Clarence Nixon, Andrew Nelson Lytle, Robert Penn Warren,
John Donald Wade, Henry Blue Kline e Stark Young.
379
O pai de John C. Ransom, John James Ransom, veio para o Brasil em 1876 e por dez anos estruturou a
fixação da Igreja Metodista no Brasil, a partir do Rio de Janeiro.
380
MURPHY, Paul V. The Rebuke of History: the Southern Agrarians and American Conservative Thought. p. I.
381
Idem, ibidem. p. 14.
382
Stella Bresciani observa que a estrutura dos capítulos de Casa-Grande e Senzala, instigantemente,
corresponde ao modelo de uma história para o Brasil feita por Martius, em 1844, mas jamais citado por
Freyre. Cf.: BRESCIANI, Maria Stella M. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira
Vianna entre interpretes do Brasil. p. 121. Da mesma forma, embora as coincidências de pensamento sejam
chocantes, o repensar do Sul dos Estados aparece apenas como que acidentalmente na obra de Freyre.
383
Fernando Henrique Cardoso dirá que: “Os críticos sempre mostraram as contradições, o conservadorismo,
o gosto pela palavra sufocando o rigor científico, suas idealizações e tudo o que, contrariando seus
argumentos, era simplesmente esquecido”. CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene. In:
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. Apresentação, p. 20.
384
MURPHY, Paul V. Op. cit. p. 2.
385
Diário de Pernambuco, 13/03/1921. In: LARRETA, Enrique Rodríguez e GIUCCI, Guilhermo. Op.
Cit. p. 110.
386
A lista inclui ainda uma série de literatos notáveis: Gordon, Katherine Anne Porter, Ernest Hermigway,
Dorothy Day, Thomas Merton, Clare Booth Luce, Jean Stafford, Robert Lowell, Tennessee Williams,
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 147

que se iniciara ao final do século XIX, mas atingira seu auge depois
da Primeira Guerra até o II Conselho do Vaticano, na década de 1960,
tinha forte inspiração de literatos e clérigos que pretendiam integrar a
doutrina católica às tendências do humanismo cristão. Uma crítica à noção
popularizada do Iluminismo de um progresso inevitável da humanidade
juntava-se ao renovado interesse pela escolástica e por Santo Tomás
de Aquino (1225-1274), acompanhada da imagem bastante negativa do
mundo moderno impulsionado pela noção de progresso.
De sua vertente à direita, o Revival Católico teve como principais
representantes a Action Française, liderada por Charles Maurras (1868-1952), de
quem Freyre se aproximou em 1922387, quando de sua estada na França e, mais
tarde, a Opus Dei. É conhecida também a ascendência ideológica de Maurras
sobre o ditador português, Antônio Salazar (1889-1970), de quem Freyre se
aproximaria388. Dentre os próprios Agrarians, alguns de seus membros também
tiveram a reputação abalada no decorrer dos anos 1930, quando acabaram por se
associar ao intelectual fascista norte-americano Seward Collins389.
Aliada à busca de princípios cristãos e humanistas, o grupo dos
Agrarians cultivou uma ácida crítica à sensibilidade vitoriana e ao empecilho
que ela trazia. Ainda como um Fugitive, Allen Tate, inspirado em T. S. Eliot
(1888-1965), dizia que “somente as novas técnicas poéticas poderiam servir
à causa do Sul, que ele veio a admirar; um Sul que um dia incorporou uma
tradição cultural profunda. A literatura da causa perdida, da luz do luar e das
magnólias, ou das cores locais, não era apenas falsa em sua factualidade e
em sua espoliação do Sul, mas era a literatura produzida pelos mercados no
Norte. As velhas técnicas poéticas, atreladas à sensibilidade vitoriana, eram
inadequadas ao desafio de resgatar o verdadeiro Sul”390. Ou melhor, estas
novas técnicas deveriam, em última instância, denunciar a moderna alienação
da humanidade e de seu passado.
A reação intelectual aos valores burgueses e filisteus do Norte parece
ter dado certo. Em 1925, em Vanderbilt, a mais importante e influente
Wallace Stevens e Walker Percy. Cf.: MURPHY, Paul V. Op. cit. p. 36.
387
Segundo Palhares-Burke, a aproximação e o entusiasmo de Freyre por Maurras teriam sido breves.
Cf.: PALHARES-BURKE, M.L. Op. cit., p. 180. A este respeito vide também FREYRE, Gilberto.
Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade (1915-1930,
especialmente pp. 132 e ss.
388
Salazar adotou a noção de tropicalismo lançada por Freyre que, a serviço do ditador, visitou as colônias
portuguesas na África nos anos 1951 e 1952.
389
Rico, dono de dois jornais literários, o The Bookman e o American Review, Collins (1899-1952) era
admirador confesso de Benito Mussolini. Allen Tate, entretanto, publicaria, em 1936, na The New Republic,
uma severa crítica ao fascismo.
390
CONKIN, Paul K. The Southern Agrarians. p. 25.
148 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

universidade do Sul dos Estados Unidos, todos falavam sobre o Sul.391


Plasticamente, abandonavam a sensibilidade vitoriana.
A negação da perspectiva estrutural-funcional da Renaissance sulista
destacava, antes de tudo, a dimensão espiritual que o contato direto com a
natureza e com a religiosidade engendraria para o desenvolvimento e a
preservação de uma série de virtudes, como a honra, a integridade moral,
o sentido de comunidade, uma vida de abundância e, em última análise,
esta espiritualidade, capaz de dar à civilização um sentido de pertença e
de identidade. Resumindo, era a resposta ao mal de civilização do mundo
industrial, cuja vulgarização, ausência de plasticidade e de espiritualidade
punham em suspenso o supremo valor da virtude.
Tanto a literatura como a cultura e a “civilização” do Sul foram assim
construídas assentadas na memória, cuja identidade cultural apontava para
o passado em contraposição a qualquer ideia de futuro. Propunha-se outra
ideia de civilização, de uma forma diversa de estar no mundo. Assentados na
construção e (re)construção da memória, esta civilização trataria de si e das
relações raciais como um modo de vida, não propriamente como uma forma
de relação estrutural de exploração.
A crítica à sensibilidade vitoriana, é bem verdade, já havia sido anunciada
de maneira enfática nos Estados Unidos pelo círculo literário ao qual pertencia
Amy Lowell (1874-1925), de quem Freyre se dizia protegido,392 e que também teria
influenciado profundamente os Agrarians. Em 1912, os Imagistas393 [Ezra Pound
(1885-1972), Hilda Doolittle (1886-1961), Richard Aldington (1892-1962), F. S.
Flint (1885-1960) e Amy Lowell eram alguns dos expoentes], haviam proposto
novos estatutos poéticos que abandonavam, diziam eles, o sentimentalismo
vitoriano e liberavam a expressão de artifícios e obscuridades. Tanto T. S. Eliot
como D. H. Lawrence se deixariam influenciar por esta perspectiva.
Foi em 1920, portanto quatro anos antes de Freyre ajudar a fundar o
Centro Regionalista do Nordeste, no Recife, que o pensador conheceu Amy
Lowell394. Além de promover poetas e intelectuais, Lowell se notabilizara
por seu trabalho e, àquela altura, já havia publicado Patterns (1916), seu
mais bem conhecido poema que, significativamente, protesta contra as
inibições puritanas e as convenções repressivas da sociedade.
391
CONKIN, Paul K. Op. cit. . p 26-32.
392
Vide a este respeito: LARETTA, Enrique Rodriguez e GIUCCI, Guillermo. Gilberto Freyre: uma
biografia cultural. pp. 90 e ss.
393
Maldosamente chamado de Amygistas por Pound, que rompeu com Lowell.
394
Foi num conclave no Campus da Baylor. Além de Amy Lowell, estavam presentes Vachel Lindsay e
William Butler Yates.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 149

(…) In Summer and in Winter I shall walk


Up and down
The patterned garden-paths
In my stiff, brocaded gown.
The squills and daffodils
Will give place to pillared roses, and to asters, and to snow.
I shall go
Up and down,
In my gown.
Gorgeously arrayed,
Boned and stayed.
And the softness of my body will be guarded from embrace
By each button, hook, and lace.
For the man who should loose me is dead,
Fighting with the Duke in Flanders,
In a pattern called a war.
Christ! What are patterns for?395

A criação do Centro Regionalista do Nordeste396 seguiria esta linha


de incorporação de um novo sentido estético, crítico ao século XIX, crítico
da modernidade, fiel, entretanto, às tradições de civilização. No próprio
Manifesto Regionalista, publicação tardia de Freyre, supostamente escrito em
1926,397 ficariam registradas, de forma exemplar, algumas das vigas mestras
das preocupações intelectuais de Freyre:
Procuramos defender esses valores e essas tradições,
isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal
o furor neófito de dirigentes que, entre nós, passam por
adiantados e “progressistas” pelo fato de imitarem cega e
desbragadamente a novidade estrangeira. (...)

A verdade é que não há região no Brasil que exceda o


Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez
de caráter. Vários de seus valores regionais tornaram-
395
Vide poema na íntegra anexado no final do capítulo.
396
Entre outros, além de Freyre, fizeram parte da criação: Carlos Vieira Filho, Júlio Belo, Moraes Coutinho,
Carlos Lyra Filho e Odilon Nestor.
397
É praticamente unânime a tese de que o manifesto teria sido redigido apenas na década de 1950.
Entretanto, vários estudiosos de Freyre, entre eles Elide Rugai Bastos, afirmam que o teor do manifesto
estaria em conformidade não só com o Livro do Nordeste, mas igualmente com artigos daquele período.
BASTOS, Elide Rugai. Brasil, outro ocidente? Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. In:
www.fundaj.gov.br/clacso/paper10.doc, acesso em 27 de agosto de 2007.  
150 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros


menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao
Nordeste durante mais de um século do que pela sedução
moral pela fascinação estética dos mesmos valores.
(...) o Nordeste tem o direito de considerar-se uma região
que já grandemente contribuiu para dar à cultura ou à
civilização brasileira autenticidade e originalidade e não
apenas doçura ou tempero. 398

A obra de Gilberto Freyre vinha ao encontro da perspectiva


renascentista do Sul dos Estados Unidos. As formas narrativas em Casa-
Grande e Senzala tiveram o encantamento de apresentar a harmonização
desta forma de vida, numa perspectiva inclusive plástica com a natureza
e o meio ambiente, que fazia da nostalgia do século XIX e do modo
português de estar no mundo – fraterno, plástico, tolerante, cristão –, um
pano de fundo para o quadro mais geral de integração e presença marcante
do negro em um ideal de civilização. Em tudo isso, Gilberto Freyre via
grande similaridade entre o Sul dos Estados Unidos e o Nordeste do
Brasil,399 não fosse a diferença trazida pelo autor ao introduzir o iberismo
como o grande responsável pela harmonização das raças, o que o levara
a dizer que híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da
América a que se constitui mais harmoniosamente quanto às relações
de raça.400 Não seria de estranhar, como observam Larreta e Gucci, em
recente estudo bibliográfico de Freyre, que o estilo intelectual de Gilberto
Freyre diferisse tanto daquele que mais tarde seria tido como seu mestre:
o professor Franz Boas.401 E se, intelectualmente, os estilos eram bastante
diferentes, cabe ainda lembrar que Freyre nem mesmo fez parte do círculo
restrito de discípulos do mestre.402
Assim como os Agrarians, em Gilberto Freyre este revival
pressupunha a sustentação de uma estrutura de classe através de outro tipo
de arranjo para a modernidade, muito distante de uma ética embasada no
puritanismo calvinista, na moral vitoriana e no individualismo apregoados
pelo liberalismo.
398
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista de 1926. pp. 19 e 20.
399
Como diria Fernando Henrique Cardoso, Gilberto Freyre optaria “por valorizar um ethos que, se garante a
identidade cultural dos senhores, é ele próprio quem compara o patriarcalismo nordestino com o dos americanos
do Sul e os vê próximos”. Cf.: CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene. In: FREYRE, Gilberto. Casa-
Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Apresentação, p. 26
400
Idem, ibidem. p. 26.
401
LARRETA e GIUCCI. Op. cit. pp. 140 e 141.
402
Idem, ibidem. p 141. Note-se ainda que, da banca da tese mestrado de Freyre, defendida na Columbia
University, em 1922 (Social Life in Brazil in the Middle of the 19.th Century), fizeram parte William R.
Shepherd (1871-1934), Clement Haring e Carlton Hayes. Este trabalho de apenas 33 páginas – e que seria
uma espécie de núcleo de pensamento das teses de Freyre – acabou sendo publicado no mesmo ano na The
Hispanic American Historical Review por Sheperd, um especialista em América Latina, que havia sido um
dos fundadores da revista apenas quatro anos antes.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 151

NA USP
Distante da perspectiva freyreana, e especialmente contra ela, a posição
do grupo de pesquisa de Florestan Fernandes e Roger Bastide, que havia sido
contratado em São Paulo pela Unesco, era a de que a essência do modo de vida do
Nordeste brasileiro seria justamente a segregação racial e não esta pseudocivilização
que paga seu tributo à cordialidade, à plasticidade e à miscigenação.
As duas visões se chocavam. Enquanto os agraristas procuravam fugir
da dimensão, da lógica de sistema capitalista e do progresso, o grupo da USP,
em sua perspectiva estrutural-funcional, afirmava categoricamente que a
escravidão era um empecilho estrutural ao desenvolvimento do capitalismo e,
portanto, da inscrição do país na modernidade, como bem enfatizaria Fernando
Henrique Cardoso:
A economia escravista, por um lado, é uma economia de
desperdício pela sua própria natureza, e por outro lado,
funda-se em requisitos sociais de produção que a tornam
obrigatoriamente pouco flexível diante das necessidades
de inovação na técnica de produção. Noutros termos, e
sintetizando, a economia escravocrata, por motivos que
se inscrevem na própria forma de organização social do
trabalho, impõe limites ao processo de racionalização da
produção e à calculabilidade econômica. Isto significa
que, a partir de certo limite, a economia escravocrata
se apresenta como um obstáculo fundamental para a
formação do capitalismo.403

As propostas de Gilberto Freyre provocaram um imenso mal-


estar no Brasil, especialmente no período posterior à Segunda Grande
Guerra. Se, por um lado, sua leitura da realidade brasileira despertava
interesse nos anos de 1950, principalmente em função da valorização da
harmonização social entre brancos e negros, grande problema político
para os Estados Unidos neste período de Guerra Fria, sua descrença no
modelo de industrialização e desenvolvimento do capitalismo, bem como
sua fascinação pelo passado, fazia com que Freyre entrasse em choque
com as propostas de democracia, industrialização e desenvolvimento que
entraram em voga naqueles tempos.
A solução da questão social e a supressão da pobreza e da miséria,
por intermédio da superação dos índices de miséria, natalidade, educação e
403
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. p. 217.
152 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

modernização, fizeram com que o desenvolvimento econômico industrial fosse


tomado como o caminho que levaria invariavelmente os sistemas políticos –
algum dia – ao encontro da liberdade. Tanto as teses de Raymond Aron404
como os princípios de desenvolvimento defendidos pelos teóricos da CEPAL,
ou das assim chamadas esquerdas modernizantes, por exemplo, seguiram por
esta vertente, conforme vimos anteriormente.
Numa perspectiva de futuro e de desenvolvimento industrial, portanto,
o término da escravidão seria um requisito fundamental “para a formação
plena do sistema mercantil-industrial capitalista”,405 em que o preconceito se
torna(ra) um recurso de autodefesa do branco e a espoliação social que ele
deseja(ra) manter justifica(ra)-se “por motivos naturais”.406 É justamente
aí que reside a crítica de Florestan Fernandes: o “velho regime” tratou de
perpetuar a ordenação das relações raciais, mantendo o negro e o mulato numa
situação social desalentadora.407
O mito da democracia racial serviria, então, para perpetuar esta realidade,
já que o negro e o mulato estariam socializados não só para tolerar, mas para
aceitar como normal e até endossar as formas existentes de desigualdade
racial, com os seus componentes dinâmicos – o preconceito racial dissimulado
e a discriminação racial indireta408 –, numa ordem racial que se superpunha
à ordem social da sociedade de classes em expansão.409 Ou, melhor dizendo,
esta herança racista, de dominação estamental, dificultaria a recuperação do que
se perdeu e dos caminhos históricos de integração econômica, sociocultural e
política de uma sociedade cultural e racialmente homogênea.410
O grupo de Fernandes/Bastide insistia na ênfase do desenvolvimento
e da formação da democracia burguesa, baseados na constatação de que o
negro fora alijado do processo de desenvolvimento econômico ainda antes da
Abolição e depois dela.411
Florestan Fernandes dizia que não é só a democracia racial que está
por constituir-se no Brasil. É toda a democracia na esfera econômica, na
esfera social, na esfera jurídica e na esfera política.412
404
Vide a este respeito, por exemplo, O ópio dos intelectuais e suas teses sobre democracia (ARON, Raymond).
405
Idem, ibidem. p. 227.
406
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. p. 320.
407
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe no limiar de uma nova era. p. 1.
408
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. p. 10
409
Idem, ibidem. p. 13.
410
Idem, ibidem. pp. 15-16.
411
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul, especialmente sua Introdução.
412
Idem, ibidem. p. 23.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 153

Os valores patrimonialistas viriam de encontro à necessidade destas


transformações. As críticas feitas pelo grupo de Florestan e Bastide, de que o
patriarcalismo seria o responsável pelo obstáculo para o pleno desenvolvimento
do capital e para a plenitude democrático-burguesa, seriam um problema que,
em última instância, diriam respeito aos países, naquela época, chamados de
subdesenvolvidos. Neles, a mentalidade patriarcal era um empecilho para a adoção
de modelos e valores políticos modernos, em que pese a leitura feita pelos norte-
americanos sobre a existência, no caso específico do Brasil, de uma democracia
racial (evidentemente desacompanhada de uma democracia política).
Ao contrário do grupo da Universidade de São Paulo, a proposição
de Gilberto Freyre – de que era possível haver harmonia social em uma
sociedade desigual – tinha como tônica a tese de que mudanças culturais, ou
das mentalidades – e daí sua aposta na New History – seriam capazes de fazer
a inclusão do negro preservando um sistema de vida sem tocar nas premissas
dos sistemas de exploração e acumulação.
Esta tese, a de uma democracia racial engendrada pelas mentalidades
e pela tradição da cultura encaixava-se parcialmente nas soluções de governo
que seriam encontradas nos Estados Unidos para resolver o problema de
inclusão social das populações negras e dos direitos civis. Num artigo de
1966, publicado no The American Negro Reference Book, o historiador norte-
americano C. Eric Lincoln (1924- 2000)413 pode ser tomado como exemplo
de como os liberais rebatem a leitura das esquerdas e do Partido Comunista
sobre a democracia nos Estados Unidos no que diz respeito à questão racial.
Lincoln dizia que existiam dois grandes paradoxos na experiência
democrática norte-americana: ter a presença da segregação racial em meio a
uma sociedade livre, e ter, embora a segregação fosse um problema entre as
raças, um problema em que as raças não estavam totalmente divididas. Este
unfreedom do racismo e da segregação, dizia ele, seria inconsistente com
os princípios básicos da filosofia política dos Estados Unidos e seu corpo
de ideias e valores, entendidos como American Way of Life ou American
Dream414. Segundo Lincoln, naquela época professor visitante no Darmouth
College e diretor do Institute of Social Relations do Clark College, em
Atlanta, mesmo que a acomodação não significasse aceitação servil, a maior
parte dos negros havia se acomodado aos padrões de segregação em meio a
413
Um dos mais importantes “Afro-americans acadêmicos, Lincoln foi professor de religião e cultura em
várias universidades norte-americanas, tendo falecido como professor aposentado da Duke University
(1993). Seu trabalho mais conhecido é o livro The Black Muslims In America, de 1961.
414
LINCOLN, C. Eric. The American Protest Movement for Negro Rights. In: DAVIS, John P. (ed). The
American Negro Reference Book. p. 458.
154 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

ilhas de protesto. A segregação racial seria mais do que uma questão social
e política, mas moral também.
Um grande passo teria sido dado para a solução do problema, diz Eric
Lincoln, quando se compreendeu que a questão não poderia ser resolvida por
negros, ou brancos, mas por um esforço concentrado do povo norte-americano.
Outro paradoxo levantado por Lincoln é o de que a questão não deveria mais
ser olhada como questão sulista. O preconceito não era a única causa da
segregação; seus aliados estavam escondidos no desemprego, na insegurança
econômica, na ansiedade, no medo e na política415.
Assim, se esta segregação e alienação estavam em choque com os
princípios fundamentais da filosofia política dos Estados Unidos e seu
corpo de ideias e valores, trazendo consequências sociais e políticas,
cabia essencialmente enfrentar o problema através da transformação das
mentalidades racistas. Era fundamentalmente a mentalidade que fazia com
que houvesse consequências sociais no que diz respeito ao acesso ao trabalho,
à educação e à segurança econômica. As mentalidades ou, melhor, a cultura,
portanto, e não o sistema econômico, seriam responsáveis pela marginalização.
Na verdade, tanto a perspectiva freyreana (existência de democracia
racial) quanto a perspectiva defendida pelo grupo da USP (existência
de preconceito racial como resultado da marginalização provocada pela
escravidão e por suas consequências pós-abolição) respondiam às estratégias
de combate ao racismo nos Estados Unidos.
A primeira, como visto, porque apostava em mudanças culturais, o
que, em última análise, impulsionava a construção de políticas que pudessem
transformar as mentalidades racista e segregacionista. Apropriava-se da suposta
constatação de Freyre de que uma democracia racial seria plenamente possível,
sem levar em conta sua fascinação pelo passado e seu profundo desconforto
com os valores e o sistema político e econômico da república norte-americana.
A segunda perspectiva também alimentava a estratégia de combate ao
racismo porque apostava que a democracia seria possível pela consolidação
de uma sociedade de classes que pudesse expurgar os antigos hábitos,
padrões de comportamento e funções sociais institucionalizadas, na qual
estava o comportamento subordinado da população negra, que se adequava
às elites conservadoras, como analisado por Florestan Fernandes. Nesta
visão, aceitava-se o modelo socioeconômico de acumulação ocidental como
o grande engendrador da democracia social e política e, em última instância,
aceitava-se o fato de que existiria um paradoxo na presença de segregação
415
Idem, ibidem. pp. 458 e ss.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 155

racial em meio a uma sociedade de classes plenamente constituída.


Como chamava atenção Arthur Schlesinger, ao mesmo tempo em que a
industrialização criara uma inimaginável abundância e riqueza, cessara
a ordem social da fé e da irmandade416. Daí a importância da intervenção
governamental ou, melhor, da adoção de políticas em que “a expansão dos
poderes do governo pudessem ser constantemente parte essencial do ataque
da sociedade aos males das vontades e da injustiça”417.
Fundado em 1947 por Arthur Schlesinger, como já vimos, Eleanor
Roosevelt (1884-1962), Walter Reuther (1907-1970), Hubert Humphrey
(1911-1978),418 David Dubinsky (1898-1987) e Chester Bowles (1901-1986),
o Americans for Democratic Action, órgão do Partido Democrata, definiu os
direitos civis como a questão fundamental de sua atuação; política seguida
pelo presidente democrata Harry Truman (1884-1972)419, que estabeleceu a
Presidential Committee for Civil Rights,420 passo fundamental para acabar
com as leis de discriminação, especialmente do Texas, Louisiana, Mississipi,
Alabama, Geórgia, Carolina do Norte, Virginia, Arkansas, Tennessee,
Oklahoma e Kansas.
Naquela época, já circulava, sob forte impacto, a pesquisa financiada
pela Carnegie Corporation sobre relações raciais e realizada pelo economista
sueco Gunnar Myrdal (1898-1987),421 cuja publicação, em 1944, do livro, An
American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy, foi um
estrondoso sucesso.422 O ponto nodal da questão era justamente o enfrentamento
do paradoxo (ou melhor, do dilema) entre a coexistência dos princípios liberais
norte-americanos e a miséria dos negros. Entendia-se que o problema dos negros
era um problema dos brancos. Isto queria dizer que, em essência, estaria na
reação institucionalizada contra as injustiças sociais do racismo e da segregação
416
SCHLESINGER JR., Arthur M. Op. cit.. Cap. XI (Freedom: A Fight Faith). p. 243.
417
No original em inglês: The expansion of the powers of government may often be an essential part of
society`s attack on evils of want and injustice. SCHLESINGER JR., Arthur M. Op. cit. p. 251.
418
Humphrey foi eleito vice-presidente de Lyndon Johnson em 1964.
419
Truman foi presidente dos Estados Unidos de 1945 a 1953.
420
A Comissão era formada por Charles E. Wilson, Sadie T. Alexander, James B. Carey, John S. Dickey,
Morris L. Ernst, rabino Roland B. Gittelsohn, Dr. Frank P. Graham, Reverendo Francis J. Haas, Charles
Luckman, Francis P. Matthews, Franklin D. Roosevelt Jr, reverendo Henry Knox Sherril, Boris Shishkin,
M.E. Tilly e Channing H. Tobias e, em dezembro de 1947, apresentou um relatório sugerindo uma série
de medidas para acabar com a discriminação, inclusive para que fossem criadas comissões permanentes, o
que só foi realizado no governo seguinte. Em 1948, Truman assinou as ordens executivas 9988 e 9981 de
dessegregação na esfera pública federal e nas forças armadas. Em mensagem especial ao Congresso, em
fevereiro de 1948, para a implementação das recomendações da Comissão. Em 1957 Eisenhower aprovou o
Civil Rights Act; em 1960, um novo Civil Rights Act criou a comissão permanente de Civil Rights e a Divisão
de Civil Rights no Departamento de Estado.
421
Prêmio Nobel de Economia, em 1974.
422
Cem mil cópias de 1944 a 1965.
156 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

o cerne das políticas relativas às questões dos direitos e das liberdades civis.423
Daí a implementação das políticas de ação afirmativa, termo usado pela primeira
vez em 1961, por John F. Kennedy (1917-1963), de quem Arthur Schlesinger,
admirador do trabalho de Gunnar Myrdal, seria assessor.424
Aliadas à implementação dessas iniciativas governamentais de
compensação social, as estratégias governamentais incluíam o apoio ao
movimento pelas liberdades civis, quando assentado na premissa da não
violência, de sua vinculação com líderes religiosos e da desobediência civil às
leis de segregação, desde que pactuante do pacifismo.425
Nessa linha política, foram inúmeros os encontros, seminários e
iniciativas que tomaram como tema a questão racial, fortemente pautados
pela agenda de discussões da Guerra Fria e de sua Guerra Cultural, como fica
evidente pela iniciativa do CCF, da American Academy of Arts and Sciences
e da Fundação Ford, em patrocinarem, em setembro de 1965, na cidade de
Copenhagen, o Congresso Race and Color.426
No caso brasileiro, as interpretações conflitantes sobre a questão
racial de Gilberto Freyre e do grupo liderado por Florestan Fernandes, que
apareceram tão fortemente nas pesquisas financiadas pela Unesco, em 1951
e 1952, fizeram parte deste ambiente mundial de discussão e embates sobre
a questão racial tão caro à estratégia norte-americana de respostas às críticas
sobre o sentido de sua democracia política.
Ambas as interpretações foram opostas em termos de modelos de
civilização. Ambas anunciavam certo mal-estar na civilização. Apontavam,
entretanto, e cada uma a seu modo, saídas que respondiam à problemática
do racismo. A saída de Gilberto Freyre estava fortemente sedimentada nos
alicerces de renovação intelectual ocorrida no Sul dos Estados Unidos nas
primeiras três décadas do século XX. A de Florestan Fernandes era uma aposta
na modernização via desenvolvimento; modernização e conscientização da
classe trabalhadora ou, como ele dizia, da consolidação burguesa de um país
em uma sociedade de classes em formação.
Ambas as saídas continuaram a ser tema de embates políticos e
intelectuais, especialmente após a adoção das políticas de ação afirmativa por
instituições públicas brasileiras na década de 1990, embora suas ênfases sobre
423
SCHLESINGER JR., Arthur M. Op. cit.. p. 252.
424
O uso do termo se deu quando da edição da Ordem Executiva 10925, que exigia dos empregadores
federais a adoção de ações afirmativas que assegurassem emprego e tratamento sem discriminação por raça,
credo, cor ou origem.
425
O maior expoente desta corrente de protesto foi Martin Luther King.
426
Estiveram presentes, entre outros, Philip Mason (Grã-Bretanha), Eric Lincoln (Brown University),
Talcott Parson (Harvard), Louis Lomax (Los Angeles), Rarold Isaacs (MIT).
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 157

as razões do abandono da população negra fossem divergentes. Se Gilberto


Freyre se ateve ao abandono provocado pela fria sociedade industrial,
Florestan Fernandes via na herança do patriarcalismo as sementes do racismo
e da marginalização social.
De qualquer forma, seguindo qualquer das orientações, a agenda norte-
americana para a Guerra Fria sobre a questão racial conseguiu ocupar um
lugar central nos debates sociais. Segundo a convicção de Arthur Schlesinger,
sem a já “descabida” distinção política entre esquerda e direita: estavam
todos envolvidos neste debate e prontos, dizia ele, devido à complexidade da
vida política, ao engajar do “ativismo democrático”. Seriam, neste sentido,
relevantes as conclusões do já citado relatório do chefe da Division for the
Study of Race Problems da Unesco, Alfred Metraux: o perigo de se acabar
com a democracia racial no Brasil estaria localizado na rápida urbanização, no
nascimento de uma classe trabalhadora rural, acompanhada de uma crescente
competição entre imigrantes, com um grande número de pessoas de cor que
estava se mudando para os centros industriais. Isto é: o problema se resumiria a
uma questão de inclusão e de mentalidade, e, portanto, como chamava atenção
C. Eric Lincoln, no The American Negro Reference Book, nos paradoxos na
experiência democrática!
Estava assim resguardado o American Way of Life.

ANEXO DO CAPÍTULO

Patterns

Amy Lowell

I walk down the garden paths,


And all the daffodils
Are blowing, and the bright blue squills.
I walk down the patterned garden-paths
In my stiff, brocaded gown.
With my powdered hair and jeweled fan,
I too am a rare
Pattern. As I wander down
The garden paths.
158 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

My dress is richly figured,


And the train
Makes a pink and silver stain
On the gravel, and the thrift
Of the borders.
Just a plate of current fashion,
Tripping by in high-heeled, ribboned shoes.
Not a softness anywhere about me,
Only whale-bone and brocade.
And I sink on a seat in the shade
Of a lime-tree.For my passion
Wars against the stiff brocade.
The daffodils and squills
Flutter in the breeze
As they please.
And I weep;
For the lime-tree is in blossom
And one small flower has dropped upon my bosom.
And the plashing of water drops
In the marble fountain
Comes down the garden-paths.
The dripping never stops.
Underneath my stiffened gown
Is the softness of a woman bathing in a marble basin,
A basin in the midst of hedges grown
So thick, she cannot see her lover hiding.
But she guesses he is near,
And the sliding of the water
Seems the stroking of a dear
Hand upon her.
What is Summer in a fine brocaded gown!
I should like to see it lying in a heap upon the ground.
All the pink and silver crumpled upon the ground.
I would be the pink and silver as I ran along the paths,
And he would stumble after,
Bewildered by my laughter.
I should see the sun flashing from his sword-hilt and the buckles on his shoes.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 159

I would choose
To lead him in a maze along the patterned paths,
A bright and laughing maze for my heavy-booted lover,
Till he caught me in the shade,
And the buttons of his waistcoat bruised my body as he clasped me,
Aching, melting, unafraid.
With the shadows of the leaves and the sun drops,
And the plopping of the water drops,
All about us in the open afternoon -
I am very like to swoon
With the weight of this brocade,
For the sun sifts through the shade.
Underneath the fallen blossom
In my bosom,
Is a letter I have hid.
It was brought to me this morning by a rider from the Duke.
“Madam, we regret to inform you that Lord Hartwell
Died in action Thursday se’nnight.”
As I read it in the white, morning sunlight,
The letters squirmed like snakes.
“Any answer, Madam?” said my footman.
“No,” I told him.
“See that the messenger takes some refreshment.
No, no answer.”
And I walked into the garden,
Up and down the patterned paths,
In my stiff, correct brocade.
The blue and yellow flowers stood up proudly in the sun,
Each one.
I stood upright too,
Held rigid to the pattern
By the stiffness of my gown.
Up and down I walked,
Up and down.
In a month he would have been my husband.
In a month, here, underneath this lime,
We would have broke the pattern;
160 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

He for me, and I for him,


He as Colonel, I as Lady,
On this shady seat.
He had a whim
That sunlight carried blessing.
And I answered, “It shall be as you have said.”
Now he is dead.
In Summer and in Winter I shall walk
Up and down
The patterned garden-paths
In my stiff, brocaded gown.
The squills and daffodils
Will give place to pillared roses, and to asters, and to snow.
I shall go
Up and down,
In my gown.
Gorgeously arrayed,
Boned and stayed.
And the softness of my body will be guarded from embrace
By each button, hook, and lace.
For the man who should loose me is dead,
Fighting with the Duke in Flanders,
In a pattern called a war.
Christ! What are patterns for?
Mal-estar de escrever
162 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas


com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos
estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei,
ainda nos podemos mexer.
Graciliano Ramos

E m 1981, um dos mais importantes críticos literários brasileiros


e também escritor, Silviano Santiago (1936), publicou seu romance Em
liberdade, um pseudodiário de Graciliano Ramos (1892-1953), festejado
autor brasileiro também por seu livro Memórias do Cárcere. Os manuscritos
originais de Em liberdade, explica Silviano Santiago, teriam sido entregues
por Graciliano a um amigo de longa data, em 1946, logo após a renúncia de
Vargas e o final do Estado Novo.
A estratégia do livro de Santiago não é propriamente original. Trata-se
da história de um diário inventado, como o fez, em 1996, alguns anos mais
tarde, o dinamarquês Jostein Gaarder, que supostamente teria achado a carta
original da concubina de Agostinho, Flora Emília, em um sebo de Buenos
Aires.427 A Santiago, teriam sido entregues os originais do livro de Graciliano
por um amigo portador secreto do manuscrito, logo após a morte de Ramos.
Graciliano, arrependido do manuscrito, havia solicitado sua destruição.
Em liberdade segue assim a narrativa de um diário, mas de um
diário ficcionado. Seriam os primeiros dias e as primeiras impressões de
Graciliano Ramos após sua libertação, no Rio de Janeiro, do calvário das
prisões a que fora submetido durante a Era Vargas, vítima, como tantas
outras, da polícia de Getúlio.
Silviano Santiago preenche aqui uma espécie de lacuna deixada pelo
velho Graça, como Graciliano era carinhosamente chamado: discorreu sobre
as sensações de liberdade que tivera logo após ter sido libertado do cárcere,
em 1937. Estas sensações de liberdade seriam justamente o tema que
deveria ter composto o último capítulo dos dois volumes de Memórias do
Cárcere que Graciliano Ramos pretendia escrever, se a morte não o tivesse
encontrado antes.428
É interessante como Silviano Santiago compõe o seu romance.
Ele é uma espécie de (re)escritura em exercício de pentimento: segue à
procura dos vestígios de uma composição que não era a sua, mas que teria

GAARDER, Jostein. Vita Brevis: a carta de Flora Emília para Aurélio Agostinho.
427

Vide a este respeito as considerações sobre o projeto do último capítulo de Memórias do Cárcere dadas
428

por Ricardo Ramos, filho de Graciliano, na Explicação Final. Cf.: RAMOS, Graciliano. Memórias do
Cárcere. p. 317-319.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 163

se tornado visível com o passar do tempo, por debaixo das camadas de


tinta que a história foi encobrindo. Silviano persegue minúcias da vida de
Graciliano Ramos e faz um rememorar quase suave do cárcere, de seus
algozes e de suas vítimas; uma rememoração acobertada pela delicadeza,
imersa por uma atmosfera de necessidade de liberdade que o escritor sentia
na cidade do Rio de Janeiro.
No decorrer das 253 páginas do livro, é uma constante a hesitação
da agora personagem de ficção literária, Graciliano, em falar da prisão. Esta
hesitação que movimenta a personagem é Silviano Santiago quem constrói,
como se fora Graciliano Ramos:
Toda e qualquer política que repousa sobre a prisão
e o ressentimento conduz a nada, no máximo a uma
ideologia de crucificados e mártires, que terminam por
ser os fracassados heróis da causa.

Livrar-me do raciocínio que considera a experiência


como positiva para a luta política não significa cair em
raciocínio oposto: aceitá-la como negativa para a minha
individualidade no campo social. Nem positiva para mim
enquanto homem político, nem negativa para a mim
enquanto cidadão. Qualquer aproveitamento político da
prisão é sinal de imaturidade no plano psicológico e de
fraqueza no campo partidário: nada se constrói sobre os
pilares da perseguição.429

O livro de Silviano Santiago, escrito às vésperas do final da ditadura


militar brasileira, foi uma espécie de desabafo contra a prisão de seu irmão
Haroldo e da letargia da família em mover-se para tirá-lo de lá. Silviano deixa
transparecer sua impotência diante da ditadura militar e se volta para este
exercício de retorno ao tempo para falar de outra ditadura, a de Vargas.
Em 1937, ano em que se ambienta o diário, Graciliano fora finalmente
solto, apesar dos ventos gélidos e ásperos anunciarem a chegada do Estado
Novo. Eram três de janeiro quando as portas do cárcere lhe foram abertas.
Graciliano havia sido preso, em 1936, sem qualquer denúncia formal sobre
sua participação no levante comunista de 1935. Silviano fala agora deste
tempo, através da fabulação de um diário repleto de vestígios de vida e de
hesitação. O que poderia estar rememorando este fictício diário?
Graciliano, além de reconhecido como grande escritor, evidentemente
tornara-se uma espécie de ícone de independência literária. A publicação
429
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade, p 57.
164 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

póstuma de Memórias do Cárcere, mesmo que apenas em 1953,430 publicizou


no Brasil a chaga aberta que as prisões da Era Vargas haviam cravado no
autor e na vida política brasileira. Mas havia-se passado cerca de 16 anos
para que elas pudessem aparecer e, mesmo assim, o livro não fora concluído.
Graciliano morreu antes de (de)escrever o último capítulo. Na verdade, já
desenganado pelos médicos, ele deu prioridade a um novo projeto literário:
registrar suas impressões sobre a viagem que fez à Tchecoslováquia e à União
Soviética, entre abril e junho de 1952.
Viagem, lançado em 1954, jamais alcançaria a repercussão do livro
inacabado. Suas Memórias do Cárcere tornar-se-iam o relato mais dramático
sobre a desumanidade das prisões do regime inaugurado por Vargas em 1930.
Do mesmo Vargas431 que cometeu suicídio um ano e cinco meses após a morte
de Graça, em 20 de março de 1953.
Uma indagação principal aparece no livro de Silviano Santiago sobre
esta fictícia rememoração: seria possível a Graciliano ser novamente um
homem livre depois da experiência da prisão? Seria possível haver libertação?
Silviano Santiago contempla neste diário a dificuldade do autor em
dizer do indizível, em reviver a dor. É sintomático o início do diário com o uso
de uma suposta epígrafe do próprio Graciliano, retirada de seu livro Angústia:
Não sou um rato. Não quero ser um rato.432

Santiago trabalha seu diário em dois tempos: o da ditadura de


Vargas e o da ditadura militar. De ambas traz notícias, e de ambas faz com
que pulule o tempo todo no diário a luta contra este “sentimento de ser
rato”. Aparentemente, trabalha as ditaduras pela rememoração de que elas
são não a obra do diabo, mas a face escancarada e corriqueira da conduta
humana, de sua miséria.
Trata-se de uma tensão aberta pelo livro de Santiago. Graciliano, que
reluta em falar do horror, quer se sentir em liberdade, liberdade inclusive de seu
corpo e de suas memórias.433 Se a cabeça estiver aberta e os músculos soltos,
ele diz no diário ter certeza de que lhe brotaria um novo tipo de inteligência.
“Teria uma concepção mais acurada da realidade e dos homens, porque a
percepção que teria da realidade não traria a marca do ressentimento inspirado
pela carne que não se sente bem no mundo, recobrindo-o de um espesso véu
roxo de infelicidade, como fazem as imagens dos santos na igreja, durante a
430
Caetés era de 1933; São Bernardo, de 1934; Angústia, de 1936; Vidas Secas, de 1938.
431
Getúlio Vargas morreu em 24 de agosto de 1954.
432
SANTIAGO, Silviano. Op. cit. p 17.
433
Idem, ibidem, p. 98.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 165

Semana Santa”.434 Enfim, não faria mais a “análise crítica do homem a partir
da tristeza”. Seria outra pessoa, em paz com o mundo e com os homens. De
cabeça aberta:435 num verdadeiro exercício de libertação.
Torna-se evidente no livro de Santiago a (re)escritura sobre a vacilação
pessoal e política de Graciliano em falar da dor do arbítrio. A recomposição
das minúcias de vida do autor o tempo que levou para deparar-se com a
empreitada de escrever suas Memórias do Cárcere teria levado Graciliano ao
encontro deste triste vacilo: o de relembrar o que se quer esquecer.
Dizendo precisar manter a família, por exemplo, depois de ter
passado aqueles 10 meses e 11 dias de prisão, Graciliano acabaria como
colaborador da revista Cultura Política, órgão oficial do Estado Novo
ligado ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), dirigida por
Almir de Andrade (1911-1991).436
A diretriz da Cultura Política era passar em revista os estudos
brasileiros, especialmente os estudos das transformações socioeconômicas do
país. Como a tônica da questão social, e da miséria, havia tomado os espaços
da política no séc. XX, no Brasil e fora dele437, além dos intelectuais orgânicos
do regime – como o próprio Almir de Andrade, Francisco Campos (1891-
1968), Azevedo Amaral (1881-1942), Lourival Fontes (1899-1967) e Cassiano
Ricardo (1895-1974) – autores ligados a correntes liberais e de esquerda,
inclusive ao Partido Comunista, também participavam como colaboradores
da mais importante publicação intelectual da Era Vargas.
Graciliano Ramos, na companhia de Nelson Werneck Sodré, Marques
Rabelo (1907-1973), Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986), Herberto Sales
(1917-1999), Guerreiros Ramos (1915-1982), Peregrino Junior (1898-1983)
e Gilberto Freyre, tornar-se-ia assíduo colaborador entre 1941 e 1944. A
ênfase de seus escritos: a vida sertaneja. Seu trabalho principal, Quadros e
costumes do Nordeste.438
Vítima do regime e ao mesmo tempo protagonista das preocupações
sociais do mesmo regime, estar agora “em liberdade, na capital da República,
434
Idem, ibidem, p. 188.
435
Idem, ibidem, p. 189.
436
Graciliano Ramos foi nomeado Inspetor Federal do Ensino secundário no Distrito Federal em 1939.
Trabalhava também como jornalista no Correio da Manhã.
437
Vide a respeito dois estudos sobre o sucumbir da esfera pública frente às questões sociais: ARENDT,
Hannah. A condição humana, especialmente o capítulo II; e FOUCAULT. Michel. Governamentalidade.
In: Microfísica do poder, pp. 277-293.
438
RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste II. In: Cultura Política. Ano 1, n.. 2; Quadros
e costumes do Nordeste III. In: Cultura Política. Ano 1, n. 3; Quadros e costumes do Nordeste IV. In:
Cultura Política. Ano 1, n. 4; Quadros e costumes do Nordeste V. In: Cultura Política. Ano 1, n. 5; Quadros
e costumes do Nordeste VI. In: Cultura Política. Ano 1, n. 6; Quadros e costumes do Nordeste VII. In:
166 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

expunha duplamente a vida de Graciliano Ramos. De um lado, o reconhecimento


da existência de uma ditadura e de sua polícia desumanizada, o “nosso
pequenino fascismo tupinambá”, dizia ele439 ; de outro, a crença de que havia um
espaço de justiça a ser buscado: o do reconhecimento de perseguições injustas
(como sempre fora reivindicado pelo próprio Graciliano, já que na época do
encarceramento ele nem mesmo era um comunista, como o acusaram ao ser
preso) e de um regime preocupado com as agruras de um povo nobre e sofrido,
que, de tão miserável, não poderia “ainda” viver em democracia.
Estaria aí, neste debruçar-se sobre a miséria, a tentativa de Graciliano
Ramos de dar sentido ao que não tem sentido; de reparar injustiças, inclusive
as que acontecera com ele próprio?
Esta busca de justiça contínua, impotente, perseverante, sofrida,
praticamente impossível, ressentida, como tanto alude Silviano Santiago,
seria a justificativa pelas vacilações de Graciliano Ramos em finalmente
escrever suas Memórias do Cárcere?
Seria ainda esta busca por justiça a explicação encontrada por
Graciliano para sua colaboração na Cultura e Política? Era ela a razão para a
adesão, em 1945, ao seu Partido Comunista440 ou a justificativa do PC para a
campanha pela manutenção de Getúlio Vargas no poder441 – o Queremismo –,
apesar do arbítrio, da tortura e da morte provocados pelo Regime?
Em sua colaboração para a Cultura Política, Graciliano batia mais
uma vez na tecla da escassez de recursos da vida miserável das populações
nordestinas em um mundo “capitalista periférico”, viciado pela política. A
questão social, portanto, carregava no pincelamento de um mundo que atribuía
uma espécie de glorificação deste homem sertanejo vítima da miséria e dos
vícios políticos. Na apresentação do primeiro e do segundo números de seu

Cultura Política. Ano 1, n. 7; Quadros e costumes do Nordeste VIII. In: Cultura Política. Ano 1, n. 8.
Quadros e costumes do Nordeste X. In: Cultura Política. Ano 1, n. 8; Quadros e costumes do Nordeste XI.
In: Cultura Política. Ano 1, n. 9; Quadros e costumes do Nordeste XII. In: Cultura Política. Ano 1, n. 10.
Quadros e costumes do Nordeste XIII. In: Cultura Política. Ano 1, n. 11. Quadros e costumes do Nordeste
XVI. In: Cultura Política. Ano 2, n. 14. Além deles, Está aberta a sessão do júri. In: Cultura Política.
Ano 3, n. 23; Uma visita inconveniente. In: Cultura Política. Ano 2, n. 20; A viúva Lacerda. In: Cultura
Política. Ano 4, n. 39; A decadência de um senhor de engenho ( Nordeste). In: Cultura Política. Ano 2, n.
17; Recordações duma indústria morta. In: Cultura Política. Ano 1, n. 44; Booker Washington. In:
Cultura Política. Ano 4, n. 40. Cf.: PEÇANHA, Michelle dos Reis et alli. Os intelectuais e o Estado Novo:
um estudo sobre o nacionalismo nas páginas da revista Cultura Política (1941-1945). In: http:\\www.
newtonpaiva.br , acesso em 18 de outubro de 2007.
439
Vide MORAES, Dênis. Graciliano Ramos, literatura e engajamento. In: www.lainsignia.org/2006/
septiembre, acesso em 7 de fevereiro de 2008.
440
A filiação de Ramos ao PC é de 1945.
441
Do slogan “Queremos Getúlio”. Campanha que reivindicava, tendo em vista o esgotamento político
do Estado Novo, o adiamento das eleições presidenciais e a convocação de uma Assembleia Nacional
Constituinte. No caso de serem confirmadas as eleições, queriam Vargas como candidato.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 167

trabalho na Cultura Política, as notas de cabeçalho não hesitam em apresentar


Graciliano Ramos como um dos grandes intelectuais brasileiros engajados na
luta pela inovação civilizadora inaugurada em 1930:
O sistema eleitoral da Primeira República criou, no
interior do Brasil, curiosos tipos de caudilhos. Em
torno deles girava a vida estadual e municipal. Todo
um grupo de interesses pessoais se organiza em redor
dessas figuras, que comandam os negócios sociais. Cada
uma delas podia repetir a frase simbólica de Luiz XIV:
“L‘etat c’est moi”. E era mesmo. Depois de novembro de
1937, as coisas mudaram de rumo. Essas figuras caíram,
se apagaram, se dissolveram na onda revolucionária que
introduziu novos costumes e novos métodos de conduzir
a vida regional. Em sua crônica de hoje, o autor procura
fixar esses tipos, encarado na pessoa de uma mulher.
Era comum as pessoas manipularem tiranicamente os
negócios do Estado. Elas faziam nomeações, derrubavam
prefeitos, elaboravam leis, faziam da administração
pública, uma continuação do seu “boudir”. O
caudilhismo feminino provocava manifestações curiosas
na vida pública do Nordeste Brasileiro. E é a pena segura
de um dos maiores romancistas do Brasil de hoje que nos
vai pintar, em novas palavras, esse quadro tão familiar
aos que conheceram o Nordeste há alguns anos atrás.442

Assim como nos discursos de Getúlio Vargas, a ênfase de Graciliano


era procurar um presente e um futuro em que as questões de infraestrutura
material seriam determinantes e livres dos injustos interesses políticos.
No que diz respeito à sensibilidade com os oprimidos e ao empenho
em prol da questão social, especialmente como a mais importante questão
política, estaria Vargas redimido?
Em 26 de novembro de 1945, num inflamado discurso na Cidade de
Recife, Luiz Carlos Prestes (1898-1990), Secretário-Geral do Partido Comunista
442
RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste II. In: Cultura Política. Ano 1, n.. 2, 1941. p.
236. Quanto ao primeiro texto de apresentação que a Cultura Política fez, introduzindo Graciliano Ramos,
sob o título de A vida social no Brasil, podemos ler: “Escritor e romancista consagrado entre os melhores
do Brasil de hoje, tendo enriquecido a nossa literatura de ficção com obras fortes e cheias de personalidade
como ‘São Bernardo’, ‘Vidas Secas’, ‘Caetés’, e com numerosos contos que se publicam incessantemente
nos grandes jornais da capital da República e dos Estados – o autor dessa crônica tomou ao seu encargo
fixar costumes da região do Brasil onde nasceu e viveu mais de trinta anos: o Nordeste. Neste número
inaugural, ele nos dá um flagrante da grande festa popular – o Carnaval – tal como ocorre nas cidades do
interior nordestino. É um pequeno pedaço desse Brasil que ainda foge do ímpeto inovador da civilização
litorânea desse Brasil tão distante e tão grande. Cf.: RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste
II. In: Cultura Política. Ano 1, n.. 1, 1941. p. 236.
168 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

desde 1943, explicava em palanque o espaço de justiça que estava sendo buscado
através do líder do governo, que, na visão do Partido Comunista, ao qual Graciliano
se juntou atendendo a convite do próprio Prestes, havia sido desviado pelos
inimigos do povo. Prestes, já liberto das prisões do Estado Novo, conclamava a
classe trabalhadora a apoiar Getúlio Vargas para mais um termo no poder:
Companheiros! Aproximava-se, no início deste ano, a
olhos vistos, a derrota militar do nazismo, e o Governo
brasileiro, esse mesmo Governo, composto quase dos
mesmos homens que tudo haviam feito para levar o
Brasil ao fascismo, cedia algo mais ao nosso povo, cedia
no caminho da democracia. A liberdade de imprensa foi
reconquistada pelo povo e reconquistado foi o direito
de reunião, o de livre associação política, inclusive,
concidadãos, para o Partido do proletariado, e isto pela
primeira vez em nossa história. Depois de 23 anos de
vida clandestina, o Partido Comunista alcançava a vida
legal e os comunistas enfrentando a calúnia, enfrentando
a difamação de seus adversários, desses homens que
os acusavam de cambalachos com o Governo, que os
acusavam de queremismo, ou continuísmo, ou getulismo,
ou não sei mais o que, os comunistas, sufocando paixões
pessoais, esmagando ressentimentos, colocavam os
interesses de nossa pátria acima de tudo e apoiavam,
com convicção, com orgulho, com audácia também, o
Governo do Sr. Getúlio Vargas porque este cedia ao povo
e marchava para a democracia.
Companheiros! E nesta época, os nossos difamadores,
esses que nos atacavam, eram esses mesmos velhos
políticos que do ano de 1935 ao ano de 1937 dispunham
de uma tribuna parlamentar e nada faziam em defesa
da democracia. Naquela época aqueles senhores todos
cediam ao Sr. Getulio Vargas a lei de segurança; nenhum
protesto contra o fechamento da Aliança Nacional
Libertadora; as emendas inconstitucionais do fim do ano
de 1935; todos os estados de guerra em plena paz; esse
imundo papel Cohen que aceitaram como verdadeiro,
para acabar dissolvendo o Parlamento e a Democracia
e facilitar o golpe de 10 de Novembro. Naquela época,
quando o Sr. Getúlio Vargas marchava para a reação
e de mãos dadas com o integralismo , tudo fazia para
levar o Brasil ao fascismo, aqueles senhores políticos o
apoiavam, tudo lhe davam. Por quê? Porque temiam o
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 169

povo, concidadãos. E agora atacavam Getúlio Vargas. E


se passavam a atacá-lo, a causa era a mesma, era porque
Getúlio Vargas cedia ao povo e esses senhores continuam
temendo o povo.443

Há aí duas dimensões da liderança de Getúlio Vargas que são pontificadas


e reiteradas não só pelos próprios seguidores de Getúlio, como sua filha Alzira
Vargas (1914-1992), por exemplo, mas por aqueles que, poucos anos antes,
haviam sido escolhidos como inimigos de Regime pelo próprio Regime e pela
polícia de Vargas. A primeira dimensão é a de que Getúlio sempre estivera
preocupado com o que se chamaria de povo (a massa), especialmente porque
crítico ferrenho do liberalismo e de seus desvios políticos e sociais e porque
toda sua ênfase de governo fora desviada para a questão social, como tão
bem era de agrado das lideranças comunistas, especialmente no pós-Segunda
Grande Guerra. A segunda dimensão diz respeito justamente ao fato de os
“velhos políticos” terem sido os responsáveis pelos enganos de Vargas. Nesta
dimensão, especificamente, o lado sombrio do regime, representado pela
ação da polícia política e supostamente ignorado pelo Presidente, deveria ser
colocado de lado: sufocando paixões pessoais, esmagando ressentimentos,
colocavam os interesses de nossa pátria acima de tudo, como queria em
discurso Luiz Carlos Prestes. A final de contas, teriam sido de Vargas e de
seus sindicatos corporativos as conquistas da classe trabalhadora!
A imagem que Vargas construíra de si mesmo e a maneira genial com
que lidava com a estrutura do aparato policial, especialmente com a polícia
secreta, contribuíram para atenuar o que poderia aparecer – e não era – uma
aguda contradição. Era esta justamente a imagem que se perpetuaria do
ditador: um grande homem, preocupado com a população, mas traído pela
germanofilia, especialmente de seu chefe de polícia, Filinto Müller (no cargo
entre 1933 e 1942).
Seguindo esta linha de raciocínio e segundo as próprias palavras da
filha de Getúlio, Alzira do Amaral Peixoto, ela teria obtido autorização para
interceder em favor de professores presos por suposta simpatia aos comunistas,
depois da Intentona Comunista em 1935. Getúlio teria então recomendado:
Criem o motivo para que o assunto venha ao meu
conhecimento. Se nada tiverem apurado contra os
443
PRESTES, Luiz Carlos. O Partido Comunista quer, precisa, deseja ser compreendido. Discurso proferido
no Grande Comício “O Nordeste a Luiz Carlos Prestes”, no Parque 13 de Maio, no Recife. Fonte: Problemas
Atuais da Democracia, Editorial Vitória, 1947. Transcrição de HTML: ARAÚJO, Fernando Antônio de
Souza, dezembro 2006. www.marxists.org/portugues/prestes/1945/11/, acesso em 15 de outubro de 2007.
170 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

professores, não há razão para que continuem presos. Mas


nada de precipitações. Há famílias enlutadas por culpa
dos comunistas e há um crime para o país, irreparável444.

A maneira personalizada com que Vargas tratava os problemas de


perseguição política da polícia, controlando-a de forma paralela e autônoma
em relação à lei e dando ao seu chefe445 total autonomia em relação ao
Ministério da Justiça e o dever de reportar-se apenas à Presidência da
República, evidenciavam por si só a importância do aparato policial que era
conferida não só pelo Regime, mas pela persona do ditador. Esta conduta havia
sido oficializada em 10 de janeiro de 1933, quando Vargas colocou o serviço
policial do DF sob a inspeção suprema do Presidente da República e sob a
superintendência do Ministério da Justiça446. Seria o próprio Filinto Müller
(1900-1973), ao reclamar do ministro da Justiça, Macedo Soares (1883-1968),
quem diria: “Somente ao presidente da República devo dar conta de meus atos
no exercício do cargo com que sua confiança me honrou447”.
A Polícia tornar-se-ia organização prioritária na nova estrutura de Estado.
Mas as iniciativas de Vargas, ao contrário do que deixa entrever o
discurso de Prestes em 1945, não eram determinadas por um pendor de cunho
fascista em prol do Eixo atribuído apenas a um grupo específico de pessoas.
Internamente, a dinâmica de perseguições se modificaria paulatinamente
pelo avanço da guerra na Europa. Foi aí que os serviços policiais agregaram
ao temor comunista o perigo da espionagem. É bem verdade que por algum
tempo persistiu o contato internacional entre as polícias para o combate aos
“vermelhos”, mas a cooperação tornara-se mais complexa, e os serviços de
controle não seriam mais feitos fundamentalmente através da polícia. As
forças militares começariam agora a ser a principal instância para a troca de
informações e para a repressão entre as nações. A repressão social e política,
sob a ótica da subversão de esquerda, não seria mais a grande tônica, mas sim
o serviço de contraespionagem e a busca de simpatizantes estrangeiros. O
que, significativamente, coincide com a saída de Filinto Müller da Chefia de
Polícia do DF para o Ministério da Guerra, em 1942, um mês antes de o Brasil
entrar na Guerra ao lado dos aliados. Filinto permaneceria no Ministério,
como Chefe de Gabinete do general Dutra (1883-1974), até julho de 1943.
444
In: Fundação Getulio Vargas (CPDOC). VARGAS, Getúlio. Verbete bibliográfico. http://www.cpdoc.
fgv.br/dhbb/verbetes, acesso em 18 de outubro de 2007.
445
Antes de Müller, a Polícia do DF teve quatro diferentes chefes. Depois dele, até 1945, cinco.
446
Cf.: CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia na Era Vargas. P. 49-50.
447
Arquivo Getúlio Vargas, vol. XXXVI, doc. 65. In: SILVA, Hélio. 1937. Todos os golpes se parecem.
pp. 581 e 582.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 171

Se a saída de Müller da Chefia de Polícia é vista por grande parte


dos historiadores brasileiros como sinal de amenização do regime Vargas,
as investidas contra a população de origem estrangeira (alemães, italianos e
japoneses) durante a Guerra parecem desmentir o fato.
Mesmo a Terceira Reunião de Consulta dos Ministros das Relações
Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada no Rio de Janeiro em
1942448 recomendou que os “Governos americanos controlem a existência de
associações dirigidas e mantidas por elementos de Estados extracontinentais e
mandem fechá-las, se ficar provado que são núcleos de propaganda totalitária”.
Recomendava-se ainda que fossem controlados os estrangeiros perigosos; o
trânsito através das fronteiras nacionais; que fossem evitados atos de agressão
política, tais como propaganda por parte de partidos políticos subversivos; e
que fossem punidos atos de sabotagem e espionagem, etc.”449.
Irônico mesmo seria o fato de Müller ocupar, entre em julho de 1943
e o final do Estado Novo, o cargo de Presidente do Conselho Nacional do
Trabalho, órgão precursor do Tribunal Superior do Trabalho. Ou seja, o
ex-Chefe de Polícia do DF, contra quem pesavam as denúncias sobre a
brutalidade do regime contra as classes trabalhadoras foi então nomeado por
Getúlio Vargas como o mediador mais qualificado da nação para as questões
que diziam respeito justamente aos direitos dos trabalhadores.
De fato, a diretriz política do Partido Comunista, no Brasil, ao
personalizar em Vargas as conquistas das classes trabalhadoras, veio ao
encontro da prática e da lógica “da exaltação hiperbólica” de personagens
conhecidos, como estava na moda entre os dirigentes do Partido Comunista450.
Além disso, encontrava-se atrelada à política de apoio ao desenvolvimento
do capitalismo e à burguesia engajada no processo de transformação social
ou, melhor dizendo, a uma modernização não conservadora que supostamente
poderia minimizar mazelas estruturais e conduzir a nação à independência em
relação, especialmente, aos Estados Unidos e à Inglaterra.

448
A partir desta Reunião no Rio de Janeiro, ainda foi criado o Comitê Consultivo de Emergência para a
Defesa Política, com sede em Montevidéu, que desde abril de 1942 atuava “como centro de coordenação da
defesa das Repúblicas Americanas contra a agressão política iniciada pelo Eixo no Hemisfério Ocidental.
Sob este mesmo prisma, o presidente dos Estados Unidos estabeleceu, extralegalmente, o SIS (Serviço
Especial de Inteligência do FBI), em 24 de junho de 1940. Rapidamente, sob a cobertura de agentes
comerciais de firmas americanas, foram estabelecidos serviços de informação e troca de informações pelos
norte-americanos na Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Cuba e México. O SIS chegou a cooperar com o
DOPS no interrogatório de suspeitos de espionagem, “olhando para o lado” quando os agentes brasileiros
utilizavam a tortura. Cf.: HUGGINS, Martha .Vigilantism and the State in Latin America. pp. 225-227.
449
ANJ, IJ1 1329. Ministério das Relações Exteriores, 21 de fevereiro de 1951.
450
GORENDER, Jacob. Graciliano Ramos: lembranças tangenciais. Estudos Avançados, vol. 9, no. 23, São
Paulo, 1995. In: www.scielo.br/scielo.php?script=sci, acesso em 23 de outubro de 2007.
172 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

Desde que a União Soviética rompera com Hitler, em 1941, o


Partido Comunista procurava apoiar as iniciativas do governo contra o
fascismo europeu. Era o esforço de “união nacional”. Na II Conferência
Nacional do Partido Comunista, em agosto de 1943, a chamada Conferência
da Mantiqueira, a posição oficial era a de que o “governo Vargas não era
um governo fascista e que dele participavam reacionários, sem dúvida,
mas igualmente homens que sinceramente lutavam pela democratização
do país”451. Além disso, a Conferência “soube ainda alertar o nosso povo
para a ação quinta-coluna que, em nome da democracia e da luta contra o
fascismo, tudo fazia para desunir e lançar o povo contra o governo, visando
diminuir nosso esforço de guerra”452.
Em seu diário, Silviano Santiago teria que resolver esta tensão que
emanava dos trabalhos de Graciliano: a necessidade de falar do indizível, do
ser rato e, ao mesmo tempo, de redimir o regime pelo seu apelo à questão
social e, em última instância, compartilhar das diretrizes do Partido Comunista
e de seu apoio a Vargas453.
A tensão se resolveria fundamentalmente por caminhos narrativos: a
reflexão que Silviano tece sobre o ressentimento e a identificação que cria entre
Graciliano Ramos e Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), o inconfidente
mineiro morto na prisão.
Pensar na prisão, quando em liberdade, seria, de certa forma, viver
da possibilidade de alimentar o ressentimento, de viver da dor. Por isso,
Silviano Santiago coloca a sua personagem em uma espécie de crise, já que a
recorrência ao ressentido seria a forma de colocar-se na esteira dos fracassados,
de permanecer sempre neste gozo de vitimização, até porque, como quis fazer
acreditar Santiago sobre Graciliano:
A linguagem do sofrimento é menos original do que
se pensa e por isso é tão abrangente. Todos e cada
um acreditam-se idênticos na miséria, na dor e no
sofrimento, isto é: desgraçados todos, mas quem
narra é sempre o mais desgraçado dos mortais.454

451
CARONE, Edgar. O P.C.B: 1943 a 1964. vol. 2. p. 51.
452
Idem, ibidem, p. 51.
453
São sintomáticas de todo o ambiente que envolvia os intelectuais na década de 1940, as palavras
proferidas por Getúlio Vargas, que, ao ser empossado, em 1943, na Academia Brasileira de Letras,
disse que era chegado o momento de os intelectuais se juntarem ao governo numa campanha tenaz e
vigorosa em prol do levantamento do nível mental e das reservas de patriotismo do povo brasileiro,
colocando as suas aspirações e as suas necessidades no mesmo plano e na direção em que se processa
o engrandecimento da nacionalidade.
454
SANTIAGO, Silviano. Op. cit., p. 24.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 173

Uma severa crítica aos regimes políticos e uma narrativa repleta de


pessimismo e morbidez tomam conta desta suposta rememoração feita por
Santiago, mas esta vai além da armadilha do ressentimento: “Erro para dizer
que a condição de perseguido e massacrado não serve de exemplo. Antes,
atiça mais a sanha dos sádicos algozes.”455
Livrar-se do ressentimento poderia abrir a cabeça e os músculos, como
o quer a personagem Graciliano, mas trazer à tona o pessimismo e a morbidez,
presentes ao longo de toda a fabulação do diário, abre justamente a ferida mais
profunda: a da recorrência e identificação com a miséria da conduta humana,
capaz de ser expressa apenas naquilo que ela tem de corriqueira: seu cotidiano
miserável. Como ele diz:
Se aceito, para safar-me da miséria econômica em que
estou, os encargos que me oferecem alguns amigos e
jornais, aceito também o meu silêncio.456

A mudez acaba sendo, portanto, o lava-mão de Pôncio


Pilatos. É a conivência a meio caminho de um trabalho
feito e de uma expressão calada.457

É na figura de Cláudio Manuel da Costa, sobre quem a personagem


Graciliano de Em Liberdade teria tido um sonho e se assumido como o poeta
na noite de seu suicídio458, que Silviano Santiago pode fazer Graciliano falar
do indizível, daquilo que o romancista insistia em calar. Parece estar aí um
desejo de Silviano sobre o que Graciliano deveria ter falado. Um saber que se
desloca a partir de sua própria angústia pelo fato de sua família tentar ignorar
a prisão de seu irmão Haroldo durante o regime militar.459
Nesta liberação da tensão, Silviano Santiago, primeiramente,
reconhece que Graciliano, quando se lembra de sua prisão, em Maceió, tenta
“adiar a lembrança”.460 Num segundo momento, acaba se dando conta de que
os mártires têm pressa em chegar à morte, para ter sua redenção, não por sabor
de vitória, mas para se ver livre do peso da maldição que recobre sua vida,461
455
In: SANTIAGO, Silviano. Op. cit., p. 197. “Quando o mártir passa a ser exemplo, não é o da pujança
inicial (repito), mas da derrota final”. Idem, ibidem. p. 198.
456
Idem, ibidem, p. 194.
457
Idem, ibidem, p. 195.
458
Até hoje não há consenso sobre a morte de Cláudio Manuel da Costa, ocorrida aos 60 anos: suicídio ou
assassinato na prisão. Há aí também uma alusão à morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas
dependências do DOI-CODI, onde se encontrava preso, em 25 de outubro de 1975.
459
Vide a este respeito entrevista de Silviano Santiago ao CPDOC, em 2 de maio de 2002, concedida a Helena
Bomeny e Lúcia Lippi de Oliveira: www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/336, acesso em 10 de fevereiro de 2008.
460
“O devaneio é a artimanha mais óbvia que o meu espírito pode imaginar para reencontrar Cláudio na sua
cela”. SANTIAGO, Silviano. Op. cit. p. 218.
461
Idem, ibidem, p. 220.
174 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

até porque há no mártir mais devoção a uma causa do que força moral.462
Estaria aí a hesitação de Graciliano em falar do cárcere?
O certo é que o livro sobre a cadeia poderia esperar, como teria
confidenciado a personagem do diário, Graciliano Ramos, a Manuel Bandeira:
“Falei-lhe das preocupações em não escrever um livro de memórias em
cima de minhas recentes experiências na cadeia. Não sei escrever no calor
da hora”.463 Ao invés disso, escreveria sobre Cláudio Manoel da Costa, mas
como se fosse ele próprio. Ficaria perdido nos meandros de Vila Rica, como
se perdeu no porão do Manaus, ou na cela imunda de Ilha Grande.464 Seria
assim que a personagem Graciliano Ramos escreveria algo mais significativo,
enfrentaria o sonho,465 sem martírio e sem traição.466
Como dar sentido ao que não tem sentido? A personagem de Graciliano
criada por Silviano Santiago, estava agora reconciliada pela rememoração
através de Cláudio Manuel da Costa.
De certa forma, o inconfidente fazia com que o dever de Graciliano
em rememorar, em tornar visível o que ficara guardado, escondido, recalcado,
fosse aberto. Na verdade, uma sequência dos fatos, fora da imaginada por
Silviano Santiago, abriria esta possibilidade para Graciliano Ramos tecer
a memória sobre o cárcere: o Partido Comunista acabaria rompendo com
Getúlio Vargas, tendo em vista seu alinhamento com o presidente Dutra e
com os Estados Unidos. Além disso, a cassação do Partido, em 1947, e uma
profunda campanha anticomunista estavam ocorrendo no Brasil. Era aquilo
que o próprio Partido Comunista chamaria de “viragem”.467

Os ares da Guerra Fria sopravam.


São estes ares que fazem, ao mesmo tempo, com que Memórias do
Cárcere seja, enfim, uma possibilidade de rememoração e objeto de adiamento
de sua escrita final: a prioridade de Graciliano Ramos, mesmo desenganado
pelos médicos, foi escrever o seu Viagem. Mais uma vez as Memórias do
Cárcere ficariam para trás.
É certo que viagens de delegações estrangeiras à União Soviética
haviam se transformado em rotina, especialmente depois da Guerra Fria.

462
Idem, ibidem, p. 219.
463
Idem, ibidem, p. 225.
464
Idem, ibidem, p. 226.
465
Idem, ibidem, p. 219.
466
Idem, ibidem, p.227.
467
CARONE, Edgar. Op. cit., p. 80.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 175

Em 28 de abril de 1952,468 vários brasileiros, entre eles Graciliano e


Heloisa Ramos (1910-1999), Sinval (1913?-1993) e Lourdes Palmeira e
Mariuccia Iacovino Estrela (1912) e seu marido, o pianista Arnaldo Estrela
(1908-1980), compadres de Jorge Amado e de Zélia Gatai (1916-2008),
desembarcaram em Moscou. Diz-se que o resultado das impressões de
Graciliano sobre a estada – seu livro Viagem – desgostou profundamente
a direção do Partido, bem como o póstumo Memórias do Cárcere: ambos
não eram suficientemente laudatórios ou sectários. Um, à União Soviética
e a Stalin; o outro, às lideranças aprisionadas durante a ditadura de Vargas,
sobre as quais o escritor chega a evidenciar seu desprezo. Afinal, o relembrar
do Partido deveria estar muito mais direcionado à construção de seus heróis
do que às agruras do regime ou da prisão.
O engajamento de intelectuais brasileiros à causa comunista, antes e
depois das dissidências provocadas pela publicização dos crimes de Stalin
por Kruschev, em 1956, estava bastante assentado nestas iniciativas que
tentavam mostrar ao mundo uma nova maneira de viver, alternativa aos
princípios da exploração capitalista do ocidente e de seu expansionismo
bélico. A presença de intelectuais “progressistas”, por isso, era fundamental.
Em sua faceta alternativa, o Partido Comunista montara uma grande
mobilização em torno do Movimento pela Paz Mundial. A campanha havia
sido inaugurada em agosto de 1948, na Conferência Cultural pela Paz de
Breslau, cuja tese principal era a associação do fascismo à doutrina Truman,
e teve fortes desdobramentos no Brasil.
Homem de seu tempo, Graciliano Ramos havia assinado,
em março de 1949, o Manifesto pela Paz que circulava
no Brasil. O documento era datado do mesmo mês do
encontro de intelectuais realizado no Hotel Waldorf
Astoria de Nova Iorque, cuja briga contra intelectuais
comunistas, instigada por Sidney Hook, tornar-se-
ia famosa, e um mês antes do Congresso Mundial dos
Partidários da Paz, realizado simultaneamente no mês de
abril, em Paris e Praga. Entre os delegados brasileiros do
Congresso (Caio Prado Junior (1907-1990), o professor da
USP Paulo Guimarães da Fonseca, Belfort Mattos (1897-
?), Mario Schenberg (1914-1990), Paulo Rodrigues,
Carlos Scliar (1920-2001), Jacques Danon (1924-1989) e
Luiz Rey.469 Também estavam Jorge Amado e Zélia Gatai,
468 Foram 52 dias no exterior – de abril a junho de 1952. Antes de Moscou, houve breve passagem por
Portugal e pela França.
469
Luiz Rey talvez seja Ricarte Sarandy (1913-2005) e Paulo (Mendes) Rodrigues, o milante do PCdoB que
176 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

que acompanhariam de perto a viagem de Graciliano e


Heloisa Ramos à União Soviética, em 1952.470

Vigilante, o delegado-chefe do Serviço Secreto do DOPS de São


Paulo, Gilberto de Andrade, completava seu estudo em maio daquele
ano identificando, entre os signatários do Manifesto Pela Paz, aqueles que
registravam antecedentes por atividades comunistas em São Paulo e no
Rio de Janeiro. Graciliano Ramos estava lá. Em sua companhia, outros 65
intelectuais471. Neste mesmo ano, o deputado Paulo Cavalcanti (1915-1995),
juntamente com João Saldanha (1917-1990) e Luiza Ramos (1931), filha de
Graciliano, foram feridos quando do enfrentamento com a polícia carioca para
a realização do Congresso Brasileiro dos Partidários da Paz na sede da UNE472.
Mesmo que a construção sobre a memória de Graciliano insista em
ressaltar sempre uma suposta independência literária e intelectual em relação
ao Partido – e como prova estaria o desgosto dos dirigentes em relação
à Viagem e às Memórias –, Graciliano desempenhou o papel de um dos
intelectuais de ponta na movimentação brasileira engajada no enfrentamento
cultural (Cultural War) da Guerra Fria, que, do lado soviético, movimentava
o Congresso pela Paz Mundial e, do lado norte-americano, o Congresso
pela Liberdade da Cultura. Foi ele que assumiu legalmente a propriedade
do jornal Partidários da Paz, tendo sido jurado dos Prêmios da Paz e diretor
da Organização Nacional de Defesa da Paz e da Cultura, participante do
Congresso dos Partidários da Paz, em São Paulo, e delegado do II Congresso
Mundial dos Partidários da Paz, realizado no México, em 1949. Foi ainda
eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores, em 1951, uma
tarefa de seu Partido.
acabou sendo morto na Guerrilha do Araguaia pelas tropas militares, em 1973.
470
Jornal Crítica, 25 de maio de 1949. In: Dossiê de Jorge Amado. Arquivo Histórico do Estado de São
Paulo, Coleção DEOPS, prontuário 5777.
471
No Rio de Janeiro: Mario Schenberg, Sinval Palmeira, Orígenes Lessa, Francisco da Costa Netto, Laura
Austregésilo, Luiz Hildebrando Horta Barbosa, Milton Eloy Vaz, Nauta Berlet James, Paulo Cavalcanti, Pedro
Paulo Sampaio Lacerda, José Mascarenhas Gonçalves, Lia Correa Dutra, Milton Pedrosa, Modesto de Souza,
Neves Manta, Oscar Niemeyer, Pedro Motta Lima, Alice Tibiriçá, Álvaro Moreyra, Aparício Torelli, Astrogildo
Pereira, Brasil Gerson, Candido Portinari, Dalcídio Jurandyr, Dorival Cayme, Egidio Squeff, Evandro Lins e
Silva, Alcedo Coutinho, Aníbal Machado, Afonso Schmidt, Arcelina Mechel, Aydano de Couto Ferraz, Caio
Prado Junior, Dyonélio Machado, Edison Carneiro, Erico Verissimo, Fernando Luiz Lobo Carneiro. Em São
Paulo: Eduardo Guarnieri, Eduardo Kneese de Mello, Anita Contijo, Pedro Neme, José Eduardo Ferraz, Artur
Neves, Augusto Gomes de Mattos, Laura de Andrade, Catulo Branco, Candido Silva, Camargo Guarnieri,
Suzana Rodrigues, Villanova Artigas, Osório César, Alteia Alimonda, Rafael de Barros, Rebolo Gonçalves, José
Maria Gomes, Rivadávia de Mendonça, Celso Pereira da Silva, Ruth Monteiro Lobato, Souza Lima, Mario
Barbosa, Di Cavalcanti, Wilson Cury Rahal. In: Arquivo do Estado de São Paulo. In: Dossiê Jorge Amado.
Arquivo Público do Estado de São Paulo, Coleção DEOPS, prontuário 5777. São Paulo, 25-05-1949.
472
Cf. BUONICORE, Augusto. Os comunistas brasileiros contra a guerra. In: Vermelhoonline: www.
vermelho.org.br, acesso em 09 de março de 2008.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 177

Já doente e internado numa casa de saúde do Rio,


Graciliano, com um cigarro entre os dedos, deu entrevista
ao jornal “Imprensa Popular”, órgão extra-oficial do
PCB. Desmentia notícia de um livro editado em Portugal
sobre mudança de suas convicções. “Quando passei por
Lisboa eu ia a caminho de Moscou, da União Soviética,
realizar um velho sonho. Tudo o que vi reforçou a
minha confiança no socialismo, na causa da paz”, disse.
No mesmo dia em que a entrevista foi publicada, 5 de
março de 1953, Stálin morreu. Graciliano morreria duas
semanas depois, dia 20, aos 60 anos. 473

Conseguira acabar de escrever Viagem. Quanto a Memórias do


Cárcere, faltou justamente o último capítulo: aquele sobre as impressões
que teve ao ser libertado. Mais uma vez a tarefa estava postergada. Coube
a Silviano Santiago, entretanto, fazer-lhe uma dupla homenagem: pensar
este último escrito com reconhecimento profundo àqueles que resistem com
dignidade às ditaduras, mesmo porque, apesar do talento, é penoso, às vezes
mortífero, falar do indizível.

473
MAGALHÃES, Mário. Memórias de um militante stalinista. In: Folha de São Paulo. 09-03-2006. www.
biblioteca.folha.com.br/1/13/2003030902.html, acesso em 09 de março de 2008.
REFERÊNCIAS
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 179

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1985 p 2120.


ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Hernani Donato. São
Paulo: Abril Cultural, 1981.
ANDRADE, Oswald. A marcha das utopias. Rio de Janeiro: Cadernos de Cultura,
Ministério da Educação e Cultura - Serviço de Documentação, 1955 (?). P. 11.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Diagrama & Texto, 1963.
ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1978.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1983.
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de
Janeiro: Relume Dumará/Ed. UFRJ, 1992.
ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília/São Paulo, Editora Universidade
de Brasília/ Ática, 1988.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Diagrama&Texto, 1983.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília, Editora da Universidade de
Brasília, 2001.
ARON, Raymond. Démocratie e Totalitarisme. Folio Essais, Gallimard, 1965.
ARON, Raymond. L’homme contre les tyrans. New York: Editions de la
Maison Française, 1944.
ARON, Raymond. Memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 446 e ss.
ARON, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1980. Arquivos do CPDOC. Disponível em www.fgv-cpdoc.fgv.br.
BACIU, Stefan. Lavradio, 98. Histórias de um jornal de oposição: a Tribuna da
Imprensa ao tempo de Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
BADIOU, Alain. La etica: ensayo sobre la conciencia del mal (texto
completo). Disponível em www.tematika.com. Acesso em 19 de maio de 2006.
BASTOS, Elide Rugai. Brasil: um outro ocidente? Gilberto Freyre e a
formação da sociedade brasileira. In: www.fundaj.gov.br/clacso/paper10.doc,
acesso em 27 de agosto de 2007.
180 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

BASTOS, Elide Rugai. Brasil: um outro ocidente? Gilberto Freyre a formação


da sociedade brasileira. In: http://www.fundaj.gov.br/clacso/paper10.doc,
acesso e 5 de julho de 2007.
BAZZO, Ezio Flávio. Rapsódia a Samuel Rawet. Brasília: Antieditor
Publicadora, 1997.
BENJAMIM, Walter. O narrador: observações sobre a obra de Nikola
Leskow. In: Textos escolhidos: Walter Benjamin, Max Horkheimer,
Theodor Adorno, Jurgen Habermas. (Coleção Os Pensadores) São Paulo,
Abril Cultural, 1978.
BERGHE, Kristine Von. Intectuales y anticomunismo: la revista “Cadernos
Brasileiros” (1959-1970). Leuven, Leuven University Press, 1997.
BIANCO, Francesco. Il Paese del avenire. Edizioni A. Mondari. Roma-
Milano, 1922.
BIOCCA, Mario e Canalli, Mauro. L’informatore: Silone, i coministi e la
Polizia, Milano, Lune Edrice, 2000.
BOBBIO, Norbert, MATEUCCi, Nicola & PASQUINO, Gianfrancesco.
Dicionário de Política. Brasília Editora da Universidade de Brasília, 1992.
BOMFIM, Manoel. América Latina, Males de Origem. Rio de Janeiro: Top
Books, 1993 (4a edição).
BOÜARD, Michel de Mauthausen. In: Reveu de Deuxième Guerre Mondiale,
15-16, julho-setembro, 1954, 41-80. Apud: VIDAL-NAQUED, Pierre. O
revisionismo da História: os assassinos da memória. Campinas: Papirus,
1988. p 29.
BRESCIANI, M. Stella M. O charme da ciência e a sedução da objetividade:
Oliveira Vianna entre interpretes do Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
BRESCIANI, M. Stella M. Oliveira Viana revisitado. Unicamp, mimeo, 2000.
BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia. Memória e (re)sentimento.
Campinas, Editora Unicamp, 2001.
BRIGHTMAN, Carol (org.). Entre amigas: a correspondência entre Hannah
Arendt e Mary McCarthy. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.
BRIGHTMAN, Carol. Entre amigas: a correspondência de Hannah Arendt e
Mary McCarthy (1949- 1975). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
BRIGHTMAN, Carol. Writing Dangerously: Mary McCarthy and Her World.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 181

BUBER-NEUMANN, Margarete. Milena em Ravensbruck: recordações da


companheira de Franz Kafka. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano
II, número 1, janeiro-março de 1960. p. 53-57.
BUONICORE, Augusto. Os comunistas brasileiros contra a guerra. In:
Vermelhoonline: www.vermelho.org.br. acesso em 09 de março de 2008.
BURGUIÈRE, André. Da história evolucionista à história complexa. In:
MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. P. 365.
CADERNOS BRASILEIROS, Ano IV, n. 2, abril-junho de 1962.
CADERNOS BRASILEIROS. Ano II, n. 4, de outubro a dezembro de 1960.
CAMPOS, Roberto de Oliveira. Reflexões incômodas sobre a Aliança para
o Progresso. In: Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano V, 1963, janeiro-
fevereiro. P. 10-21.
CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei (1889-1930). EdUnB,
CANCELLI, Elizabeth. Intelectualidade e poder: inconformidade na Guerra
Fria. In: Revista ArtCultura , n. 9, jul.-dez. de 2004, Uberlândia: Editora UFU.
CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia na Era Vargas.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1994. p. 49-50.
CANCELLI, Elizabeth. Pensando a América: de Thomas More a Hannah
Arendt, em nome da virtude, da política e de Deus. In: DUARTE, André,
LOPREATO, Christina R. e MAGALHÃES, Marion Brepohl. A banalização
da violência: da atualidade ao pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2004.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil
meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2033. Prefácio à quinta edição.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil
meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2033. p. 217.
CARONE, Edgar. O P.C.B: 1943 a 1964. São Paulo: Difel, 1982.
CARVALHO, Elysio. A delinqüência dos estrangeiros. Boletim Policial,
Gabinete de Identificação e Estatística. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
ano VII, junho de 1913, N. 7.
CERVO, Amado Luiz. As relações históricas entre o Brasil e a Itália: o papel
da diplomacia. Brasília, EdUnB; São Paulo, Instituto Italiano di Cultura, 1992.
182 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

CHAUÍ, Marilena e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e


mobilização popular. São Paulo: CEDEC/Paz e Terra, 1978.
CHESTER, Eric Thomas. The Ford Foundation. In: http://www.icdc.
com/~paulwolf/oss/fordfoundation.htm , p. 14. Acesso em 15/12/2007.
CIZEL, Annick. Contrer la propagande soviétique: l´intégration raciale,
instrument de la Guerre froide. In: Rouge, Jean-Robert et Antoine, Michel
(org.). L´anticommunisme aux États-Unis de 1946 à 1954. Paris, Presses de
Lá Université de Paris-Sorbonne, 1995.
COBB, James. A way Down South: A History of Southern Identity. New York/
Oxford: Oxford d University Press, 2007.
COLEMAN, Peter. The Liberal Conspiracy: The Congress for Cultural
Freedom and the Strugle for the Mind of Postwar Europe. New York: The
Free Press; London: Collier
CONKIN, Paul K. The Southern Agrarians. Nashville: Vanderbit University
Press, 2001.
DEFOE, Daniel. Robison Crusoé. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder
e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 5. ed., 1987.
DUARTE, Jarbas. O debate de Berlim sobre a crise da democracia. In:
Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 3, Julho de 1962. pp. 84 e 85.
DUDZIAK, Mary. Cold War Civil Rights: Race and the Image of American
Democracy. Princeton: Princeton University Press, 2000.
ENTREVISTA de José Guilherme Melquior a José Mário Pereira realizada em
13 de novembro de 1982. In: PEREIRA, José Mário. O fenômeno Melchior
(nov. de 2001), www.olavodecarvalho.org/convidados/0122.htm, acesso em 7
de dezembro de 2006.
FAUSTO, Boris. Lembrança da guerra na periferia. Dossiê 50 anos de Final
de Segunda Guerra. Revista da USP. São Paulo, mar.-mai., 1989.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe no
limiar de uma nova era. São Paulo: Dominus Editora, 1965.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo, DIFEL,
1972. p. 7.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo, Difusão
Européia, 1972.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 183

FOUCAULT. Michel. Governamentalidade. In: Microfísica do poder. Rio de


Janeiro: Graal, 1992.
FREUD, Sigmund, The Standart Edition of the Complete Phychological Works
of Sigmund Freud; Translated from the German under the General Editorship
of James Strachey, in Collaboration with Anna Freud. London, The Hogart
Press and The Institute of Phyco-Analysis, 1956. Vol. VII.
FREUD, Sigmund. O mal- estar na cultura (1930[1929]).
FREUD, Sigmund. “O estranho”. In: Obras completas. Vol. XVII. Rio de
Janeiro, Imago, pp. 233-273 .
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Rio de Janeiro, Imago, 1999.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Editora Global, 2005.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Editora Global,
2005 – 50ª edição. P. 27
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Editora Global, 2005.
Apresentação, p. 20.
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista de 1926. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura: Os Cadernos de Cultura, 1955. pp. 19 e 20.
FREYRE, Gilberto. Reinterpretando José de Alencar. Rio de Janeiro:
Cadernos de Cultura. Ministério da Educação e Cultura, 1955.
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diário de
adolescência e primeira mocidade (1915-1930). São Paulo: Global, 2006.
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS (CPDOC). Vargas, Getúlio. Verbete
bibliográfico. http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes, acesso em 18 de
outubro de 2007.
GAARDER, Jostein. Vita Brevis: a carta de Flora Emília para Aurélio
Agostinho. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
GENDZIER, Irene L. Play it Again Sam: The Practice and Apology of
Development. In: SIMPSON, Christopher. University and Empire: Money
and Politics in The Social Sciences During the Cold War. New York: The New
Press, 1998.
GERBII, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900).
São Paulo: Cia das Letras, 1996.
184 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

GLEASON, Abbot. Totalitarism: The Inner History of The Cold War. NY.
Oxford: University Press, 1995.
GORENDER, Jacob. Graciliano Ramos: lembranças tangenciais. Estudos
Avançados, vol. 9, n. 23, São Paulo, 1995. In: www.scielo.br/scielo.
php?script=sci, acesso em 23 de outubro de 2007.
GRÉMION, Pierre. Intelligence de l´anticommunisme: Le Congrès pour la
liberté de la culture à Paris (1950-1975). Paris: Fayard, 1995.
HAMILTON, Ian. Robert Lowell: a Biography. Ny, Ramdom House, 1982.
p. 302.
HEGER, Kenneth W. Race Relations in the United States and American
Cultural and Informational Programs in Ghana, 1957-1966. www.archives.
gov/publications/prologue/1999/winter/us-and-ghana-1957-1966-acesso em
16 de junho de 2007.
HERING, Hubert. A history of Latin America. New York: Alfred A. Knopf, 1969.
HITLER, Mein Kampf. Project Gutenberg of Australia eBook, Translated into
English by James Murphy. Disponível em www.promo.net/pg/. Acesso, 02 de
julho de 2006.
HOMERO. Odisséia. Introdução e notas de Médéric Dufour e Jean Raison;
tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p 1081
http://www.brindin.com/psbarrob.htm.
http://www.kirjasto.sci.fi/rlowell.htm, 18/07/2003.
http://www.poets.org/poets.cfm?45442B7C000C0705, 10/04/2003.
HUGGINS, Martha. Vigilantism and the State in Latin America. New York:
Praeger, 1991.
IANNI, Otávio. Otávio Ianni: o preconceito racial no Brasil (entrevista).
Estudos Avançados. vol. 18, n. 50. São Paulo 2004. www.scielo.br/scielo.php,
acesso em 14 de junho de 2007.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo/Brasília,
Martins Fontes/EDUnB, 1986.
JEFFERSON, Thomas. In: A summary view of the rigths of British America,
1774. The Life and Selected Writings, edição Moddern Lybrary, p 293. Citado
por Arendt Hannah. p. 101.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 185

LARETTA, Enrique Rodriguez e GIUCCI, Guillermo. Gilberto Freyre: uma


biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 90 e ss.
LINCOLN, C. Eric. The American Protest Movement for Negro Rights. In:
DAVIS, John P. (ed.). The American Negro Reference Book. Prentice-Hall,
Inc. Englewood, New Jersey, 1969 (First Edition, 1966).
LIPSET, S. M. & SOLARI, A.E. (compiladores). Elites y desarrollo em
América Latina. Buenos Aires: Paidós, 1971 (2a. ed.), p 10.
LOBATO, Monteiro. América. São Paulo: Brasiliense, 1980.
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1994, 34ª edição.
LOGAN, George M. e ADAMS, Robert M. & MILLER, Clarence H.
More Utopia: Latin TexT and English Translation. Cambridge: Cambridge
University Press, 1995, Macmillan, 1989.
MAGALHÃES, Mário. Memórias de um militante stalinista. In: Folha de São
Paulo. 09-03-2006. biblioteca.folha.com.br/1/13/2003030902.html, acesso
em 09 de março de 2008.
MAIO, Marcos Chor. O projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no
Brasil nos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 14, n. 41.
São Paulo, out. 1999. www.sieco/br.ph?pid, em 13 de junho de 2007.
MARCO, Valéria. A literatura de testemunho e a violência de Estado, In: Lua
Nova. São Paulo, disponível em www.scielo.br/pdf/ln/n62/a04n62.pdf, acesso
em 05 de junho de 2007.
MARIANI, Paul. Lost Puritan: a Life of Robert Lowell. New York/London:
W.W. Norton & Company. 1994.
MARIATEGUI, José Carlos. El alma matinal. In: MORSE, Richard M. O
espelho do próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. p. 105.
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo, T.ª
Queiroz, 1966, vol. V.
MCCARTHY, Kathleen D. From Cold War to Cultural Development: The
International Cultural Activities of the Ford Foundation, 1950-1980. Daedalus,
116/1(1987) pp. 93-105.
MOLINA, Antonio Muñoz. Sefarad. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
MORAES, Dênis. Graciliano Ramos, literatura e engajamento. In: www.
lainsignia.org/2006/septiembre, acesso em 7 de fevereiro de 2008.
186 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

MORAES, Reginaldo C.C. de. Nota sobre a economia do desenvolvimentismo


nos “vinte e cinco gloriosos” do pós-guerra. www3.usal.es, 29 de agosto de 2005.
MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MORSE, Richard M. O espelho do próspero: cultura e idéias nas Américas.
São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
MURDROVCIC, María Eugenia. Mundo Nuevo: Cultura y Guerra Fria en la
década de 60. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1997.
MURPHY, Paul V. The Rebuke of History: the Southern Agrarians and
American Conservative Thought. The University of Southern Carolina Press,
Chapel Hill and London, 2001. p. I.
PALHARES-BURKE, M. L. Gilberto Freyre, um vitoriano nos trópicos. São
Paulo: Editora Unesp, 2005.
PALHARES-BURKE, Maria Lúcia G. Um livro marcante ou uma autobiografia
à prestação. In: FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Trechos
de um diário de adolescência e primeira mocidade (1915-1930). São Paulo:
Editora Global, 2006.
POWERS, Richard Gids. Not Without Honor: The History of American
Anticommunism. Yale, Yale University Press, 1998.
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: Editora Brasiliense,
LTDA., 1958, 2ª edição.
PRADO, Eduardo. Collectaneas. São Paulo: Escola Tipográfica Salesiana, 1904.
PRADO, Lígia. América Latina do século XIX: tramas, telas e textos. São
Paulo: EDUSP; Bauru: EDUSC, 1999.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a pobreza brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
PYBUS, Cassandra. The Devil and James McAuley. Adelaide: University of
Queensland Press, 1999.
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Editora Record,
1987. P. 317-319.
RAMOS, Graciliano. Quadros e costumes do Nordeste II. In: Cultura Política.
Ano 1, n. 2, 1941.
RAWET, Samuel.Contos do imigrante. Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.
Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros 187

REVISTA ANTROPOL. v. 46 n. 2. São Paulo, 2003.


ROUGEMONT, Denis de. Reflexos do progresso sobre as liberdades. In:
Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano II, n. 4, out.-dez., 1960. p .4.
ROUSSET, David. O Brasil na Muda. In: Cadernos Brasileiros, Rio de
Janeiro, Ano VI, N. 5, set.-out. 1996. p. 64 e ss.
SANDES, Noé Freire. A invenção da Nação. Entre a Monarquia e a República.
Goiânia: UFG, 2000.
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p 57.
SAUDERS, Frances. The Cultural War: The CIA and The Word of Arts and
Letters. New York: The New Press, 2000
SAUNDERS, Francis Stornor. Who Paid the Piper? The CIA and the Cultural
Cold War. London, Granta Books, 1999.
SCHLESINGER JR, Arthur M. Not right, Not Left, But a Vital Center: The Hope
of the Future in the Widening and Deepening of The Democratic Middle Ground.
New York Times Magazine, Sunday, April 4, 1948 (sec. 6). In: www.writing.upenn.
edu/~afilreis/50s/schlesinger-notrightleft.html, acesso em 10/08/2006
SCHLESINGER JR, Arthur M. The Vital Center. The Politics of Freedom.
USA, DaCapo, 1988.
SCHLESINGER, JR, Arthur M. Mil dias: John F. Kennedy na Casa Branca.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966.
SCHWARTZMAN, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e o
processo social no início do romance brasileiro. São. Paulo: Duas Cidades, 1977.
SCHWENK, Melinda M. Negro Star and the USIA’S Portrait of Democracy.
www.aejmc.org/_events/convention/abstracts/1999/viscom.php, acesso em
19 de junho de 2007.
SCOTT-SMITH, Giles. The Politics of Apolitical Culture: The Congress for
Cultural Freedom, the CIA and Post-war American Hegemony. London/NY,
Routledge, 2002.
SEYMOUR, M. Lipset & SOLARI, Aldo. Elites in Latin America. Oxford
University Press, 1967.
SHELER, Max. El resentimiento en la moral. Buenos Aires/México: Espasa
- Calpe Argentina S.S., 1944
188 Elizabeth Cancelli - O Brasil e os Outros

SIEPIERSKI, Paulo D. Protestantismo versus brasilidade nos artigos de


jornal do aprendiz Gilberto Freyre. In: http://revcom2.portcom.intercom.org.
br, acesso em 20 de março de 2007.
SILVA BUENO. Grande dicionário etimológico da língua portuguesa. São
Paulo: Saraiva, 1968.
SILVA, Hélio. 1937. Todos os golpes se parecem. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970.
SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SMITH, Adam. The Theory of Moral Sentiments. N.Y: Prometheus Books, 2000.
The 1928 and 1930 Comintern Resolutions on The Black National Question
In The United States. www.marx2mao.com/Other/CR75.html, acesso em 3 de
julho de 2007
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América (leis e costumes). São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P.41 e ss.
VANDEN BERGHE, Kristine. Intelectuales y Aniticomunismo: La revista
Cadernos Brasileiros (1959-1970). Leuven: Leuven University Press, 1997.
YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
ZEA, Leopoldo. América como consciencia. Ciudad de México, UNM, 1972
(Primeira edição de 1953).

Você também pode gostar