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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

Gota d’água: tragédia do povo brasileiro

Relatório de pesquisa realizado


para o Projeto Liberdade em cena:
peças que transformaram o teatro e a
dramaturgia brasileira do Observatório
de Comunicação, Liberdade de
Expressão e Censura (OBCOM/ECA-
USP) em parceria com o Centro de
Pesquisa e Formação do SESC-SP e
com a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP).

São Paulo

2018

1
Deixe em paz meu coração,

Que ele é um pote até aqui de mágoa!

E qualquer desatenção, faça não

Pode ser a Gota d’água!1

Gota D’água é uma história de pobres e macumbeiros.2

1
BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. 1981, p. 22

2
Idem, p. 03

2
SUMÁRIO

RESUMO -------------------------------------------------------------------------------------- 04

INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------ 05

TRAGÉDIA MODERNA BRASILEIRA ----------------------------------------------- 10

MEDÉIA DE EURÍPIDES: CONTEXTO E BREVE ANÁLISE ------------------ 15


O TEATRO MUSICAL NO BRASIL --------------------------------------------------- 22

GOTA D’ÁGUA: TRAGÉDIA BRASILEIRA ---------------------------------------- 27

PRIMEIRA MONTAGEM DE GOTA D’ÁGUA: 1975 ----------------------------- 34

CHICO BUARQUE ------------------------------------------------------------------------- 43

PAULO PONTES --------------------------------------------------------------------------- 44

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -------------------------------------------------- 49

3
RESUMO

Este estudo busca examinar o teatro de Chico Buarque, especificamente a


peça em parceria com Paulo Pontes, Gota d’água (1975). Assim como
entender a construção dramatúrgica em diálogo com o contexto histórico,
estético e político da época; O intertexto com o mito grego, a tragédia de
Eurípides, Medéia (431 a.C.) e a adaptação de Oduvaldo Vianna Filho.

Acompanhar a recepção crítica do texto e da montagem, assim como


catalogar parte dos estudos feitos a esse respeito (teses e artigos)
Desenhando a trajetória da peça na década de 1970, assim como a
montagem do primeiro elenco, as impressões dos atores e atrizes,
produtores, diretor , cenógrafo e sua recepção crítica. Nesse sentido,
também traçaremos o panorama das conflituosas relações entre os artistas,
cuja função social e estética requer a liberdade como princípio e fim, e os
homens da Ditadura militar brasileira, que usavam da censura e da
repressão, oficial ou extraoficial, como forma de silenciar as artes.

Por fim será examinado os legados artísticos dessa obra tão importante para
o teatro brasileiro, seja pela questão do tema e da estrutura dramatúrgica
proposta pelos autores e encenadores. Assim como pelas peças e musicais
contemporâneos que se basearam em Gota d’água como fonte de intertexto
e inspiração.

PALAVRAS-CHAVE

Gota d’água, Chico Buarque, Paulo Pontes, Oduvaldo Vianna Filho;


Eurípedes; Medeia, Tragédia, Nacional-popular, Dramaturgia brasileira, Arte
e política.

4
1. INTRODUÇÃO

Este trabalho surge durante o Programa de Bolsa Unificada da USP, com

pesquisas realizadas no Arquivo Miroel Silveira, junto ao Observatório da de

Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP, sob orientação da

Profa. Dra. Maria Cristina Costa. Sendo esse relatório parte do projeto iniciado

em meados de 2017, denominado Liberdade em cena: as peças que

transformaram o teatro e a dramaturgia brasileira, coordenado pela profa. Dra.

Cristina Costa, o diretor teatral Roberto Ascar e a dramaturga Renata Pallottini.

Feito em parceria com o CPF-SESC SP, que fomentará a leitura dramática e os

debates sobre as peças estudadas.

O projeto Liberdade em cena visa dar continuidades a quinze anos de pesquisa

sobre liberdade de expressão e censura desenvolvida em torno do Arquivo

Miroel Silveira da ECA-USP – conjunto de 6137 processos de censura prévia

ao teatro de 1930 a 1970, no Estado de São Paulo, sob guarda da Escola de

Comunicações e Artes da USP.

Após realizar o projeto Censura em Cena (2015-2017), com a análise e leitura

pública de mais de 12 peças vetadas, entre 1932 e 1966, doze autores

diferentes, partilhando com o grande público e pesquisadores as razões das

interdições, assim como a repercussão que tais textos e autores tiveram na

sociedade de sua época. Pretende-se, nesse momento, estudar as peças que,

embora tenham passado pela censura, marcaram o cenário do teatro brasileiro.

5
Pretendemos, com esse estudo e divulgação das peças e debates ao grande

público, fazer um resgate histórico das obras escolhidas, avaliando suas

consequências para a Arte da Cena no Brasil.

É nossa intenção, agora, abordar as Histórias, obras e autores que

configuraram a cena Teatral brasileira a partir do século XX, com um recorte de

14 peças e 14 dramaturgos diferentes. Estabelecendo uma perspectiva

histórica e estética para essas obras, procurando demonstrar que a matéria de

uma obra é relevante quando posta em jogo com as relações formais e seu

contexto de produção, ambos agindo entre si de maneira dialética.

As peças escolhidas abrem espaço para debates sobre aquilo que Antonio

Candido chama de “arte coletiva”, pois nelas podemos identificar às aspirações

e valores de seu tempo, revelando também possibilidades de leitura na

atualidade e seus impactos nas criações brasileiras.

O presente projeto visa trazer ao público essas obras, analisá-las na conjuntura

em que foram criadas e estudar as repercussões havidas na mídia e no meio

teatral durante esse período. Finalmente, pretendemos estudar esses textos,

elaborarmos uma leitura dramática pública e aberta aos interessados com

discussão sobre sua mensagem e conteúdo. Assim como averiguar a

importância que eles têm hoje e as razões para a sua marcante presença nos

palcos brasileiros.

O período delimitado do corpus percorre o século XX e suas transformações

dramatúrgicas, abrangendo diversas questões nacionais e variações de forma

dramatúrgica e da cena. Momento determinante para a emergência de uma

6
nova forma de encenar, onde as vozes femininas, dos afrodescendentes e

grupos marginalizados vão ecoar de maneira mais protuberante na produção

simbólica nacional. Nesse sentido a difícil seleção das 14 obras pautou-se

pelos critérios de importância histórica e artística e campo de influência da obra

em outros artistas e linguagens.

Sendo assim, nosso corpus é composto por autores(as) brasileiros(as), com

peças destinadas à encenação no Brasil e no mundo. Nossas pesquisas

demonstram que esses foram os (as) principais autores(as) que, no século XX,

abriram espaço para a Dramaturgia e encenações nacionais, contribuindo para

constituição de linguagens para cena contemporânea:

 Vestido de noiva, Nelson Rodrigues (1943)

 A moratória, Jorge Andrade (1954)

 O auto da Compadecida, Ariano Suassuna (1955)

 Morte e vida Severina, João C. de Melo Neto, adaptado por Chico

Buarque (1955/1966)

 O pagador de promessas, Dias Gomes (1960)

 O crime da cabra, Renata Pallottini (1965)

 Dois perdidos numa noite suja, Plínio Marcos (1966)

 Fala baixo, senão eu grito, Leilah Assunção (1969)

 Um grito parado no ar, Gianfrancesco Guarnieri (1973)

7
 Rasga coração, Oduvaldo Vianna (1974)

 Gota d’água, Chico Buarque e Paulo Pontes (1975)

 Sinal de vida, Lauro Cesar Muniz (1979)

No presente relatório faremos um estudo sobre a peça Gota d’água, escrito por

Paulo Pontes e Chico Buarque em 1975. Para tanto, debruçamos sobre

estudos das obras pelas quais Gota D’água possuía influência, como a tragédia

grega Medéia de Eurípedes (431 a.C.) – cuja peça brasileira realiza a

adaptação – além da teledramaturgia Medéia de Oduvaldo Vianna Filho (de

1972),falta desenvolver estudos comparativos para a Medeia de Agostinho

Olavo, adaptação de 1957.

Tal investigação contou com a análise da obra e seu contexto histórico e

estético, assim como estudos da Medeia de Eurípides e do gênero tragédia.

Para isso foi necessário pesquisar documentos e a fortuna crítica de Gota

d’água e do teatro musical brasileiro da década de 1960-70.

A peça foi objeto de algumas teses, destaco alguns estudos que colaboraram,

em especial, com esse relatório. Na Universidade de São Paulo (USP), temos

exemplos de uso da peça em teses de mestrado e doutorado. Em 1998,

Adriano de Paula Rabelo produziu uma dissertação que traça o caminho

dramatúrgico de Chico Buarque através da análise de suas cinco peças, entre

elas Gota d’água. Em 2006, Agnaldo Rodrigues da Silva incluiu a Gota d’água

na pesquisa sobre o mito na construção histórica do homem.

8
Também em 1998, Elisabete Sanches Rocha apresenta uma dissertação na

Universidade Estadual Paulista (Unesp) em destaca o papel da palavra e dos

versos, dentre outros signos significativos da peça. Em 2005, Dolores Puga

Alves de Sousa, da Universidade Federal de Uberlândia, publicou trabalho com

uma perspectiva sócio-política de Gota d’água. Cecília Silivia Furquim Marinho

publica seus estudos em 2013, pela Universidade de São Paulo, mesclando o

mito e os seus reflexos na sociedade brasileira quando re-significado. Em

2014, Sandra Siebra Alencar, da UNIRIO, escreveu trabalhos muito relevantes

sobre a censura nas peças de Chico Buarque. Alguns nomes e pesquisas que

colaboraram para uma visão mais ampla da obra de Chico Buarque e Paulo

Pontes.

O trabalho buscou refletir o como a tragédia e suas mudanças, da antiguidade

clássica – e as influências da mitologia neste período histórico – aparecem na

adaptação do Chico Buarque e Paulo Pontes no Brasil de 1975. Há a

consciência da necessidade de continuar alimentando o relatório com mais

leituras, documentos e entrevistas. Nesse momento o seu papel é de tecer um

panorama dessa peça tão importante do teatro musical e político brasileiro.

9
2. TRAGÉDIA MODERNA BRASILEIRA

A palavra tragédia tem origem grega trágos + odé , que significa canto do bode

ou canto para o bode. Há a hipótese de que tal manifestação resultou das

antigas festas religiosas a Dioniso (deus grego do vinho e da alegria, tal como

Baco entre os Romanos), longe da polis urbana, onde as pessoas se vestiam

com pele de cabra e sacrificavam um bode (tragos) ao som de canções ( odé )

executadas por um corifeu (elemento destacado do coro, que pode cantar

sozinho) acompanhado por um coro3.

Segundo Pavis,4 a história da tragédia no contexto Ocidental floresce em três

momentos específicos: a Grécia clássica do século V, a Inglaterra elizabetana

e a França do século XVII (1640-1660). Após esse período, segundo

Vasconcellos, “a tragédia cede lugar ao drama, embora tentativas de resgates

do gênero tenham ocorrido nos movimentos românticos e realistas.”5

A leitura para tais noções de tragédia passa sobretudo pela análise poética

aristotélica, cujos estudos, em meados do século VII (após toda manifestação

dos festivais trágicos na Grécia) influenciou comentadores e poetas dos

séculos posteriores, tais como Horácio e Boileau, por exemplo. Traçando

parâmetros fundamentais da sistematização e análise literária.

3
BRANDÃO, 1985, p. 12

4
PAVIS, 2011, p.416

5
VASCONCELLOS, 2001,p.208

10
Para Aristóteles6, o gênero poético tragédia é imitação (mímesis) estilizada do

trajeto do herói, esse sofre uma reviravolta, passando, de maneira geral, da

fortuna para a desdita, através da punição divina aplicada em função de uma

falta grave (hamartía). Os sofrimentos do herói causa no espectador a

purificação (kátharsis) das suas emoções através da identificação que nele é

provocada pela associação de terror e piedade diante da dor, do sofrimento do

herói (pathos).

Desta forma, as peças trágicas, como as demais manifestações artísticas,

passam por modificações conforme as perspectivas e demandas estéticas,

políticas e sociais de determinado contexto. Mesmo sendo uma releitura de

uma peça grega, já apresentada há mais de dois mil anos. Sobre essa questão

Raymond Williams considera que:

Entre muitos motivos, pela simples e boa razão de que

textos teatrais nem sequer fazem sentido se a sua leitura

não assumir o pressuposto óbvio de que foram escritos

para encenação em condições físicas, culturais e

políticas determinadas; só em seu contexto é possível

atinar com a sua linguagem, tanto no sentido estritamente

físico (emissão vocal, ênfases e demais tópicos dos quais

se ocupa a retórica) quanto no sentido gestual (o plano

das relações entre personagens e entre estas e sua

circunstância). Com isso, fica estabelecido que a leitura

do texto descontextualizado é falha, ou unilateral, para

6
ARISTÓTELES, 2002, p. 55

11
ser gentil mesmo que a ilusão de produtividade possa ser

cultivada quando se trata de poesia ou romance.7

Para Aristóteles e seus seguidores a tragédia calcava-se na relação entre o

homem e os deuses, deveria ser retratada de maneira fiel e como “pura poesia”

para sua plateia. O que da para as palavras um lugar de destaque dentro da

construção das cenas, a rubrica perde o seu lugar de destaque, passando a ser

observada implicitamente dentro dos diálogos e, quando explícita, reduzida ao

posto de indicação da entrada e saída das personagens.

Nessa perspectiva, tal poética trágica se tornar um guia atemporal para

aqueles que queiram produzir, como o foi para muitos dramaturgos e críticos

de Arte. Cujo objetivo seria atingir o público e trazendo eternos ensinamentos

sobre o homem.

Muitos escritores de teatro, através dos séculos, buscaram na poética

aristotélica uma fórmula de se fazer tragédia, sem pensar no contexto histórico

e estético de tais reflexões. O classicismo francês, por exemplo, bebeu

diretamente dessa fonte para suas construções dramatúrgicas.

Certamente, essa referência dos dramas gregos pode ser notada no caso de

Vianinha, Chico Buarque e Paulo Pontes, uma vez que elegeram como “grande

texto dramático” a Medéia clássica, transformando-a no foco para a sua

adaptação e posterior re-elaboração com Gota D’água.

7
WILLIAMS, 2002, p. 09

12
A Medeia de 1972, de Vianinha, assim como a Joana de 1975, simbolizam uma

tentativa na busca de um ato social e político de justiça. Diferente da Medéia de

Eurípides que busca apenas a vingança em relação a perspectiva dos deuses.

A estrutura da linguagem em Gota d’água, mesclando versos e fala popular,

demonstra a preocupação dos autores em beber da fonte popular, da prosódia

das ruas cariocas de seu tempo e pelo debate sobre a possibilidade de

significados acerca do “povo brasileiro”.

A partir do ponto de partida estético que se estabelece na influência das

mudanças nas concepções sobre o nacional-popular, inicialmente assinaladas

por Vianinha em sua participação efetiva no Teatro de Arena e no Centro

Popular de Cultura (CPC) – momento em que fez amizade com Paulo Pontes –

e por sua posterior re-elaboração nos conceitos, enxergando a multiplicidade

na Tanto na re-elaboração de Vianinha quanto na re-significação de Chico

Buarque e Paulo Pontes:

O Prólogo do texto de Vianinha, dada a própria

transposição, difere do que se apresenta na tragédia

de Eurípides [...]. Ao invés das falas da Ama e do

Preceptor, que caracterizam Medéia e sua ira em

comparação a uma leoa [...] ou da narração dos

propósitos de Jasão, temos a ação in presentia.

Excluído o prólogo e a entrada do coro, de natureza

narrativa e a favor da explicação dos eventos que se

sucederão, no novo texto, essas explicações têm

que estar postas para leitor/espectador logo de

13
imediato, para não prejudicar o

desenvolvimento/entendimento do novo enredo. A

Ama que nos punha em contato com o que

acontecia dentro da casa e descrevia o estado de

espírito de sua senhora, que gritava sua dor, agora,

tornada Dolores [a vizinha de Medéia], também é

espectadora silenciosa do desespero da

protagonista que se desenrola em cena aberta,

diante do público nacional8.

Assim se apresenta o sentido nas tragédias de Vianinha e de Chico Buarque e

Paulo Pontes. Para este último, “[...] em cada época há uma transcendência do

homem.[...] Os gregos viam essa transcendência nos deuses, os românticos no

destino [...]. No caso de ‘Gota D’água’ o que transcende os personagens é a

engrenagem social que os encurralou”9.

Nesse sentido, ao se pensar a tragédia do século XX, no contexto do teatro

brasileiro, é preciso pensar nas apropriações e ressignificações de sentido. Os

contextos históricos e estéticos são capazes de nos dizer muito sobre a

perspectiva artística dos autores. Pois não é possível fazer referência à

8
MACIEL, Diógenes André Vieira. Das naus argivas ao subúrbio carioca – percursos
de um mito grego da Medéia (1972) à Gota D’água (1975). Fênix – Revista de História e
Estudos Culturais, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 11-12, out./ nov./ dez. 2004. Disponível
em:<http://www.revistafenix.pro.br>. Acesso em: 13 jan. 2018.

9
PONTES, Paulo. Subúrbio e Poesia. Movimento, São Paulo, n. 31, 2 fev. 1976. In:
PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaços. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 282.

14
tradição trágica e às respectivas releituras da Medéia de Eurípides – como a

teledramaturgia de Vianinha e a peça de Chico Buarque e Paulo Pontes – se

não partimos da ideia de que as representações artísticas são construídas sob

as influências de cada tempo, o que expandirá as noções de tragédia.

2.1 MEDÉIA DE EURÍPIDES: CONTEXTO E BREVE ANÁLISE

Teatro e democracia possuem alguns elementos em comum: dizem que ambos

nasceram em berço grego; também nos dois há uma tradição (dita já

ultrapassada) em excluir as mulheres; assim como tornar a matéria trágica

elemento de divulgação de preceitos sociais e políticos.

Como destacado por Seba10 as mulheres e sua história se confundem com a

caracterização das suas personagens. Pois tal caracterização impõe uma

maneira de ser e estar no mundo, muitas vezes não contado por elas, mas

idealizado ou demonizado, desde muito tempo, majoritariamente, por

poetas/publicitários Homens. Criando um padrão do simbólico das

representações femininas que reverbera ainda hoje nas mídias.

Entender o feminino pelo intertexto e possibilidades de leitura dos dramas e

documentos históricos existentes é intenção maior em minhas pesquisas. Não

inteiramente neste artigo, cuja função (mais modesta) é dialogar com Medeia

de Eurípides, traçando hipóteses, diálogos e confronto poético.

10
SEBA, 2006, p.21 e 95.

15
11
Nicole Loraux demonstra em seus estudos sobre a tragédia que a pólis era

uma estrutura de exclusão, sendo o direito a participação política restrito a uma

minoria, homens livres, chamados cidadãos. No entanto, os festivais trágicos

organizados em Atenas eram abertos para todos, até mesmo as mulheres,

escravos e estrangeiros assistiam as representações. Nesse sentido as

encenações traziam temas políticos, como também questões que pudessem

interessar os que não tinham a cidadania grega.

431 antes de Cristo, a primeira Medéia do teatro emerge na cena. Nessa obra

Eurípides faz eclodir a ação trágica das paixões que habita o peito humano.

Medeia: transgressora, feiticeira, bárbara, assassina, estrangeira, infanticida,

mulher. Influenciará estudiosos, dramaturgos e artistas, em especial os

processos teatrais brasileiros.

Inicialmente vítima do abandono de Jasão, forja, no decorrer das ações,

maneira de executar sua vingança. Há entre ela e o argonauta um choque

cultural, sendo ela representante do universo arcaico, repleto de sacralidade e

Jasão representa um mundo mais pragmático e racional: “Dissipou-se a fé nos

juramentos teus” diz Medeia ao marido nos versos 556-557.

Alimentada pelo páthos, inclinada ao desvio da virtude, Medeia usa da palavra

como principal arma-ação-vingança. Manipula seus interlocutores falando-lhes

o que esses queriam ouvir para concluir seu percurso sanguinário. Persuade-

se a matar os próprios filhos.

O masculino temerário à força bárbara de Medeia tem representantes em

Creonte e Jasão: “É inútil alinhar pretextos: é por medo. Temo que faças mal a

11
LORAUX, 2013, p. 45
16
minha filha”, diz Creonte nos versos 321-2. Já o argonauta declara a

insubmissão da feiticeira como pretexto do rompimento matrimonial: “Até

poderia continuar vivendo aqui por toda vida, neste país e nesta casa, se

aceitasses submissa às decisões dos mais fortes que tu.” (v.506-8)

Atenta a isso Medeia dissimula submissão com doces palavras: se apropria do

esperado à mulher grega e, de maneira calculada, tece sua vingança. Ao

convencer Creonte, rei de Corinto, a deixa-la ficar mais um dia, não apenas

ganhou tempo para seus planos, como desnudou o caráter do governante fraco

e que se deixa manipular pelo discurso: “Tenho noção agora de que erro, mas

apesar de tudo serás atendida” declara Creonte (v.395-6).

Na primeira interação entre Jasão e Medeia, no segundo episódio da tragédia,

ocorre uma disputa de ideias (agon grego), onde cada qual tenta persuadir o

outro sobre seu ponto de vista. Porém a briga com palavras termina como troca

de ofensas, sem qualquer conclusão. É no quarto episódio, quando seu plano

mórbido está delineado que Medeia sucumbe o páthos para dar espaço ao

logos, “Quando chegar [Jasão], falar-lhe-ei suavemente, direi que suas

decisões são acertadas e concordo com elas” (v.884-5) relata ao coro.

Medeia percebe que as palavras no mundo dos homens não possuem valor,

podendo ser manipuladas conforme os interesses. E, nesse sentido, quando

dissimula para Creonte e Jasão, apenas usa as armas do mundo racional e

civilizado o qual estes pertencem, como afirma a feiticeira: “Terá de ser assim.

Deste momento em diante quaisquer palavras passarão a ser supérfluas.” (v.

938-9)

17
A aparição de Egeu, tão criticada por Aristóteles em sua Poética, marca o asilo

de Medeia e a peripécia necessária para concretizar sua vingança.

O surgimento do rei de Atenas possibilita que Eurípides exalte a cidade-estado

na figura nobre do governante que cumpre sua palavra e esmera uma prole. O

coro se refere elogioso a Egeu e sua terra, no fim do terceiro episódio: “Que

teus desejos sejam alcançados, Egeu, pois te mostrastes generoso” (v.868-9);

Assim com no início do terceiro estásimo, onde canta as qualidades de Atenas

(v.944-976). O que não é aleatório, pois em 431 a.c., época da encenação da

peça, Atenas estava entrando na guerra do Peloponeso, sendo, dessa forma, a

inserção de Egeu também um elemento de divulgação política e exaltação da

polis ateniense.

Essa hipótese ganha corpo nas palavras de A. Lesky sobre Eurípides:

É certo – e aí está uma das muitas contradições da obra

de Eurípides – que justamente nele encontramos, num

número bem maior que em outros trágicos, trechos

condicionados pelos sucessos históricos de seu tempo e,

nos anos de luta com Esparta, amiúde elevou a voz

contra ela. 12

A presença do governante de Atenas também ressalta um tema maior, a

importância da prole para o universo masculino da peça: tanto Egeu, quanto

Jasão e Creonte dão enorme valor à procriação de filhos.

12
LESKY, 2010, p.189

18
Egeu é encontrado por Medeia em busca de uma resposta dos deuses que o

ajude a procriar, como o próprio ressalta no terceiro episódio. Creonte expulsa

a esposa rejeitada de Jasão de suas terras por medo que sua filha, Glauce,

seja ferida pela feiticeira. E Jasão usa os filhos como perpetuação do futuro,

argumenta que esse é o único motivo para se relacionar com as mulheres: “Se

se pudesse ter outra maneira os filhos não mais seriam necessárias as

mulheres e os homens estariam livres dessa praga!” (v. 658-60)

De maneira primorosa Medeia usa desse entendimento sobre o universo

masculino para enriquecer seus argumentos a tais interlocutores e convencê-

los a agirem conforme seus desígnios:

No primeiro episódio, no confronto com Creonte, a fim de convencê-lo a deixa-

la mais um dia em suas terras, recorre à paternidade do rei de Corinto para,

com a empatia do mesmo, persuadi-lo: “Um dia só! Deixa-me aqui apenas hoje

para que eu pense no lugar de nosso exílio e nos recursos para sustentar meus

filhos, já que o pai deles não está cuidando disto. Tem piedade deles! Tu é pai

também; é natural que sejas mais benevolente.” (v.385-90)

O mesmo se dá em relação ao rei Egeu, no terceiro episódio, onde o asilo a

Medeia em Atenas ocorre em troca da feiticeira dar-lhe filhos, valendo-se de

seus conhecimentos mágicos: “Dá-me acolhida em teu país, em tua casa! Em

retribuição deem-te os deuses filhos, como desejas, para que morras feliz.”

(v.809-11)

Jasão usa os filhos como principal argumento de seu casamento com Glauce,

“para que os filhos meus fossem irmãos de reis e para dar à minha casa

19
solidez” (v.691-2); É a morte das crianças uma forma de vingança para Medéia,

“Matando-os, firo mais o coração do pai.” (v.936) E são os filhos instrumento da

ação da mãe, são eles que levam o véu envenenado para noiva de Jasão,

selando assim sua vingança: “por intermédio deles [os filhos], a armadilha atroz

em que ela morrerá levando o pai à morte.”(v.893-4)

Por outro lado, quando se pronunciam as vozes das

mulheres acerca do cotidiano feminino e, em

especial, a maternidade, há, em Medéia e no coro,

predominância de argumentos negativos quanto à

procriação. Diz Medéia no primeiro episódio: “Inda

dizem que a casa é nossa vida, livre de perigos,

enquanto eles guerreiam. Tola afirmação! Melhor

seria estar três vezes em combates, com escudo e

tudo, que parir uma só vez!” (v. 279-284). No quinto

estásimo o coro, após saber dos planos de Medeia

em matar os filhos, faz um canto argumentando os

bene Ainda que tenham amontoado bastantes bens e

que seus filhos cheguem à juventude e tenham boa

índole, se for da vontade do destino à morte os rouba

logo e leva deste mundo. Que benefício advém ,então,

aos homens se para ter a descendência arriscam-se a

receber, mandado pelos deuses além de tantos outros

sofrimentos, esse castigo mais cruel de todos? (v.1254-

63)

20
A hipótese, que necessita de mais adensamento e pesquisa, é que tal

arranjamento argumentativo da tragédia se dá, dentre outros motivos, por conta

da proximidade da guerra do Peloponeso. Onde as mães e esposas ficavam

em casa e, muitas vezes, perdiam seus rebentos. A tragédia, nesse sentido,

falario alto às mulheres.

Medeia, apesar de estrangeira, possui o apoio do coro de mulheres coríntias a

todo momento: elas entendem o desejo de vingança da bárbara. E mesmo o

coro expressando descontentamento com a decisão da infanticida em matar os

filhos, quando a feiticeira dá cabo a essa ação, mesmo ouvindo os gritos das

crianças, as mulheres do coro nada fazem, apenas lamentam. Nas palavras do

corifeu: “Ah! Leito nupcial, fecundo em sofrimentos para as mulheres, quantos

males já causastes!” (v. 1472-3).

A própria Medeia titubeia mais de uma vez antes de concretizar a morte dos

filhos: “Ai! Que farei? Sinto faltar-me o ânimo, mulheres, vendo a face radiante

deles... Não! Não posso! Adeus meus desígnios de há pouco!” (v.1187-90) Só

consegue executar o dolorido proposito quando se convence que se os filhos

não morrerem em suas mãos, morrerão nas mãos de seus inimigos, “Não volto

atrás em minhas decisões, amigas; sem perder tempo matarei minhas crianças

e fugirei daqui. Não quero demorando oferecer meus filhos aos golpes

mortíferos de mãos ainda mais hostis.” (v.1411-16)

O êxodo da tragédia finda de modo emblemático, se pensado o percurso

retórico de Medeia: após longa discussão com Jasão sobre o amor aos filhos,

tendo as crianças mortas nos braços e cumprido todo seu trajeto vingativos

arremata - “Não é possível; são palavras vãs” (v.1601). Ou seja, frente aos
21
horrores vivenciados qualquer dizer é pífio e vazio de sentido – muito provável

seja o sentimento das mães e pais que perdiam os filhos nas guerras.

Fecha-se com a fala do Corifeu fazendo uma reflexão sobre o acaso da vida,

“os deuses nos deixam atônitos na realização de seus desígnios. Não se

concretiza a expectativa e vemos afinal o acaso. Assim termina o drama.”

(v.1612-17) Como a maioria das tragédias a conclusão é triste, porém, nesse

caso abrange profundamente o contexto histórico dos espectadores, trazendo,

ao mesmo tempo, reflexões maiores sobre a humanidade e suas relações com

o inesperado.

Quando os desígnios humanos passam da ordem divina para ordem do acaso,

como descrito pelo corifeu, fica nítida diferença temática de Eurípides em

relação aos outros escritores de sua época. Apesar de continuar a inspiração

mítica, há um maior peso da humanidade em detrimento ao apelo religioso.

3. O TEATRO MUSICAL NO BRASIL

A relação entre teatro e música sempre foi presente no Brasil, no século XIX

houve um maior adensamento de tal junção por conta da proliferação dos cafés

musicais e os chamados Vaudevilles. Essas atrações, com forte influência

francesa, deram espaço para o Teatro de Revista, com abrangência popular. O

que culminou com a nacionalização dos temas e das formas teatrais no Brasil:

O teatro, por aqui, só apareceu realmente no século XIX,

pois o teatro de catequese e algumas manifestações que

surgiram antes foram tão inexpressivos que nem podem


22
ser considerados. E foi, justamente, no século XIX, que

aqui aportou essa revista francesa vinda de Portugal,

para conquistar o Rio de Janeiro13.

Nomes como Chiquinha Gonzaga, Carlos Gomes e Arthur Azevedo

influenciaram nessa passagem das operetas (restritas a um público elitizado)

para um teatro musical popular. Com tal popularização, o gênero torna-se

também um propagador de valores morais, modismos e determinadas

perspectivas políticas.

Eles praticaram a opereta (ou a paródia de

operetas européias, como Orfeu na roça, que

decalca peça de Offenbach), a burleta (“comédia

de costumes curta e musicada”) e a revista (O

tribofe, de Arthur, é bom exemplo). Ou, ainda,

gêneros híbridos como a “comédia-opereta”,

expressão com que Arthur Azevedo define sua A

capital federal, de 1897, peça programaticamente

revisitada pelo diretor Flávio Rangel em 197214.

O gênero revista seria um meio para trazer ao palco questões sócias e políticas

ocorridas imediatamente precedentes, por isso o nome. Desse gênero outras

manifestações se subdividirão, entre elas a revista carnavalesca, nas primeiras

décadas do século XX, cujos ritmos privilegiados eram os maxixes, sambas e

13
VENEZIANO, 2007, P.72

14
FILHO, 2006, p. 16

23
marchas populares.15 Também, o contraponto internacional, a revista feérica,

baseada em modelos franceses e norte americanos, era apoiada no luxo e no

requinte visual e sonoro, chegando ao fim dado o alto custo das montagens.

O Teatro de Revista sempre foi considerado pela crítica

do chamado “teatro sério” um gênero menor, cuja única

função era entreter o público mais humilde e “inculto”.

Para esses críticos as Burletas, Comédias Musicais e

Revistas eram compostas apenas por “vulgaridades”,

“palavreado chulo” e piadas de duplo sentido, além de

músicas, rit- mos e danças de “mau gosto”. O público não

deu muita atenção a essas advertências e a partir do

início do século passado começou a lotar os teatros que

se concentravam na Praça Tiradentes e adjacências, no

Rio de Janeiro. Logo a Revista conquistaria todo o

Brasil.16

Em meados da década de 1950 o teatro brasileiro passa por uma série de

transformações, tanto no plano da forma, quanto do conteúdo. Antonio Candido

afirma que ao final do mandato de Getúlio Vargas, em 1954, o nacionalismo

adquiriu novos contornos influenciando as manifestações artísticas:

Há um sentimento de defesa contra a infiltração política e

cultural, que segue quase sempre a dominação

econômica norte americana. (...)De tal modo que a direita

passa a ser antinacionalista, e nacionalistas as


15
Idem, p. 22

16
TORRES, 2004, p.13

24
tendências radicais [... que] incorporam a valorização dos

traços locais, a procura do genuíno brasileiro, com

valorização nunca vista antes nesta escala da cultura

popular, das componentes africanas, e uma espécie de

relação contra fórmulas manipuladas de fora17.

Essa será a geração artística (autores, diretores e interpretes) que evocará um

proposito nacional e político – Brecht será uma inspiração estética, tendo por

isso a narratividade e a canção um especial espaço nas manifestações teatrais.

Os primeiros musicais nessa linha seriam Revolução na

América do Sul, de Augusto Boal, dirigido por José

Renato em 1960, no Rio de Janeiro (e logo depois em

São Paulo), e A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de

Oduvaldo Vianna Filho, encenado por Francisco de Assis

no mesmo ano, outra vez no Rio. Criado em 1961 sob o

impulso de A mais-valia, o Centro Popular de Cultura da

União Nacional dos Estudantes trabalharia também com

musicais, de que um exemplo é Brasil – versão brasileira,

de Vianinha, mostrado em diversas cidades do país

durante viagem da UNE Volante, em 1962.18

Após o golpe de 1964 houve na classe artística uma comoção, como destaca

Yan Michalski, “o teatro estava sob pressão”. Possivelmente por esse motivo

que os artistas de teatro foram os que alavancaram reações coletivas contra o

17
CANDIDO, 2004, P.233

18
Filho, 2006, p. 26

25
golpe19. Teríamos um teatro político com fins populares, em 1964 estreia

Opinião de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes, com direção de Augusto

Boal. O espetáculo revelaria nomes da MPB como Maria Bethânia e traria

músicas e textos de artistas fora do eixo Rio- São Paulo. Desse espetáculo

surge o Grupo Opinião de teatro, que montou outras peças com o cunho

musical e político, com dramaturgia de autores como Vianinha, Paulo Pontes,

Armando Costa, Augusto Boal e Dias Gomes.

Segundo Freitas Filho20 a eclosão dos musicais brasileiros se deu entre 1964 a

1979 na vertente não-realista do teatro político. O seu desenvolvimento não

está em textos realistas como Black-tie ou Chapetuba Futebol Clube (de

Vianinha), mas em textos teatralistas, fantasistas, não- miméticos, caso de

Revolução na América do Sul e de A mais-valia, ambas de 196021.

Sobretudo o teatro musical a partir da década de 1960 tem uma estética


embebida nas perspectivas épicas, isto é, narrativas, de Brecht. A maneira
como a música se insere na história, os diálogos versificados são formas de se
expressar o distanciamento político e gerar o efeito crítico no público.

Nessa proposta de associar teatro, música e versos operando no contexto das

classes desfavorecidas, no caso a favela, surge Gota d’água. Isso marcou a

apropriação de formas populares na realização estética de uma peça com

elementos da cultura erudita. Tal associação da música com o teatro, bem

como o uso de formas populares, seria também adotada em suas peças pelos

19
Idem,p. 27

20
VENEZIANO, 2006, p. 49

21
Idem

26
grupos Teatro de Arena, Centro Popular de Cultura (CPC) e depois Opinião,

como recurso para aproximar a classe intelectual do povo, na busca pela sua

conscientização enquanto classe explorada.

4. GOTA D’ÁGUA: TRAGÉDIA BRASILEIRA

Gota d’água foi escrita em 1975 por Chico Buarque e Paulo Pontes a partir de
22
uma adaptação que Oduvaldo Vianna Filho havia feito para a televisão em

1972. A peça recria a tragédia Medéia (431 a.C.) de Eurípides (480 ou 484 a.

C. a 406 a. C.), no contexto de um conjunto habitacional suburbano do Rio de

Janeiro. habitacional suburbano do Rio de Janeiro. É considerado um dos

textos mais importantes da dramaturgia brasileira, sendo ainda muito encenado

e adaptado.

Antes do Gota d’água de 1975, Oduvaldo Vianna e Paulo Pontes eram


parceiros, colaboravam com o Grupo Opinião de teatro e compartilhavam a
visão de arte e compromisso político e social. Pontes quem indicou Vianinha
para a TV Tupi e depois para a Rede Globo. Possuíam um projeto de
transpor para os palcos a Medeia televisiva, porém Vianinha morreria
prematuramente, em 1974, e Paulo deu continuidade ao projeto fazendo
modificações ao mesmo:

Sua versão da Medeia, Gota d’água, seria escrita em


versos e teria números musicais, assumindo a
associação promissora – e já testada em Orfeu da
Conceição, por exemplo – de poesia, teatro e música,

22
Na Rede Globo Oduvaldo Vianna desenvolveu o projeto “Caso Especial” em que Medeia
seria uma mulher pobre da favela, inconformada pela traição, lançado em 1972 com atuação
de Fernanda Montenegro no papel de Medeia.

27
além da crítica política que havia sido incorporada.
Paulo convidou Chico Buarque, que além de ter
conquistado um espaço como compositor em discos e
shows, já havia se destacado como talentoso
23
compositor de músicas para teatro.

Em Gota d’água, Chico Buarque faz uma parceria com Pontes compondo
as músicas da peça e dando um “polimento poético ao texto que ele
[Paulo] ia escrever”24. O autor comentou a parceria em entrevistas:

O Paulo Pontes resolveu levar adiante o projeto


e me procurou para um trabalho a quatro mãos.
É claro que estou apaixonado pela peça, ficou
pronta agora há pouco. Mas como ninguém
conhece ainda, não fica bem eu elogiar o
trabalho. Só posso dizer que deu uma
tremenda mão de obra, tudo rimado e
metrificado como manda o figurino, quatro mil
versos e dez canções. Os versos podem até
ser ruins, mas quatro mil é um número que
impressiona, não é mesmo?

Com Gota d'Água [...] o Paulinho escreveu


primeiro e eu fiz, depois, as alterações que
achava convenientes.25

O texto foi escrito e encenado na época do regime militar, tecendo uma forte

crítica ao capitalismo e às transformações políticas e econômicas que estavam

ocorrendo na sociedade brasileira naquele momento, em prejuízo da classe


23
MARINHO, 2013, p.18

24
Entrevista de Chico Buarque à Revista 365 de 1976. Disponível em:
<www.chicobuarque.com.br>, acesso em 06/01/2018

25
Entrevista de Chico Buarque à Revista 365 de 1976. Disponível em:
<www.chicobuarque.com.br>, acesso em 06/01/2018

28
trabalhadora. Na sua estreia, ganhou o Prêmio Molière, porém os autores não

compareceram à cerimônia de premiação, em protesto contra a censura.

Gota d’água possui como subtítulo “uma tragédia carioca”. Carioca é uma

palavra indígena e significa "casa de branco"26, mas o termo é também a

denominação dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, onde ocorre a peça.

Além disso há o uso da palavra “tragédia” na realidade urbana brasileira da

década de 70, que ocorre de modo peculiar: a linguagem, embora em versos,

usa a forma popular de linguagem; todas as personagens são pessoas do

povo, até mesmo Creonte e sua filha Alma, apesar de abastados, possuem um

comportamento popular

No prefácio do livro os autores descrevem os motivos de terem escrito essa


adaptação: “preocupações fundamentais que nossa peça procura refletir” 27.
Tais preocupações se referem a três aspectos do país: político, cultural e
formal.

O enredo apresenta as dificuldades enfrentadas pelos moradores do conjunto

habitacional para pagarem suas dívidas com Creonte, o proprietário. É

importante ressaltar que em meados de 1970 o sistema financeiro da habitação

no Brasil (SFH) estava em pleno fracasso, mesmo tendo sido exibido pelos

representantes do regime militar como uma realização bem sucedida da

ditadura. Apontando como uma das preocupações da peça, Gota d’água

26
COELHO, 2008, P. 02

27
BUARQUE e PONTES, 1981, p. 11

29
convida à discussão da política habitacional do governo brasileiro em vigor

naquele momento28.

A trama passional está calcada no drama de Joana, mulher de meia idade que

viveu durante dez anos na Vila do Meio-dia com o compositor e intérprete de

sambas Jasão de Oliveira, com quem teve dois filhos. Estourando nas paradas

com o sucesso “Gota d’água”, seduzido pela juventude e a leveza de Alma e

cooptado pelo pai desta, Creonte, Jasão abandona Joana, os filhos e a Vila,

indo morar na mansão do novo sogro. Humilhada, Joana passa a nutrir um ódio

brutal contra o ex-marido, tornando-se sedenta de vingança contra ele, Creonte

e Alma.

A linguagem de Gota d’água é coloquial, popular e, em certos momentos,

vulgar, opondo-se à expressão nobre e elevada da tragédia clássica. Os

personagens de Gota d’água são gente comum e popularesca (Jasão:

sambista; Joana: dona de casa e macumbeira; Egeu: técnico em eletrônica;

Creonte: empresário), ao passo que os personagens de Medéia são nobres

(Jasão: rei de Iolco e guerreiro; Medéia: princesa e maga; Egeu: um dos reis

míticos de Atenas; Creonte: rei de Corinto). O coro em Gota d’água é exercido

pelos vizinhos de Joana, que comentam o desenvolvimento da trama numa

rede fofocas, diferentemente do coro em Medéia, formado por um bloco de

mulheres coríntias que dialogam em conjunto com os protagonistas,

comentando e criticando suas atitudes.

28
MARINHO, 2003, p.26

30
Gota d’água se passa num subúrbio de uma metrópole moderna de país

subdesenvolvido, e Medéia tem seus acontecimentos numa das mais

prósperas cidades-estado da Grécia antiga. Os mitos, em Gota d’água,

aparecem pela indústria cultural de massas, enquanto em Medéia são

elementos essenciais da religiosidade grega.29 A vingança de Joana é destruir-

se a si mesma, bem como a sua descendência, para expor, aos olhos de todos,

a sordidez da ação das classes hegemônicas em sua relação com o povo; já a

vingança de Medéia é destruir de fato seus inimigos e a descendência de

Jasão, para deixá-lo absolutamente só e despojado, chegando a assistir à

desgraça do ex-marido e a conversar com ele soberbamente, antes de partir

gloriosamente para reiniciar a vida em outro lugar:

Sem condições e perspectivas de melhoria, alguns vêem,

no exemplo do sambista cujas canções são tocadas no

rádio, a ilusória via do sucesso como possibilidade de

ascensão. A gota d’água do espetáculo é o samba de

Jasão; é também a condição de Joana, mulher

apaixonada que, no seu abandono, é capaz de atitudes

extremas; mas é também, e sobretudo, a condição de um

povo sem casa, sem chances, sem a voz que lhe reste30

A peça, diferente da tragédia de Eurípides, é constituída por dois atos. O

primeiro mostra a repercussão do abandono de Joana por Jasão, assim como

as dificuldades financeiras enfrentadas pelos habitantes da Vila do Meio-dia em

29
Idem, p. 50

30
BARROS, 2005, sp

31
decorrência dos juros das prestações dos apartamentos. Já o segundo mostra

a vida de Jasão ao lado da nova esposa e os compromissos com o genro rico,

Creonte. Também ocorre o embate entre Joana e Creonte, a vingança da

mesma e o desfecho violento.

O uso de elementos de ritos e mitos afro-brasileiros, manifestações comuns

das favelas cariocas31, aproxima e contextualiza a construção temática das

manifestações trágicas da Grécia Antiga, cuja proximidade com os deuses,

Oráculos e mitos eram matéria prima desse gênero dramático. Nesse sentido

o samba e a macumba são adicionados ao mito por meio da releitura 32,

destacando-se: “música, dança, coreografia, iluminação, além do rádio e do

jornal, combinam-se para efetuar essa transformação no texto grego. ”

Gota d’água retoma uma perspectiva nacional-popular, alguns de seus

estudiosos e críticos da época apontam a peça de populismo, isso por conta

da ausência de consciência de classe das personagens. Como os mesmos

pesquisadores admitem, o texto é exemplar poeticamente e retrata uma

metáfora bem articulada do Brasil do milagre.

31
ROSENFELD, 2013, p 52

32
Autores como Vinícius de Moraes em seu Orfeu da Conceição (1942) e Abdias do
Nascimento com a peça Sortilégio (1957). Também tivemos a peça Além do rio – Medea
(1957), peça de Agostinho Olavo, que faz uma releitura do mito de Medéia no contexto afro
brasileiro. Esse texto nunca foi encenado por conta da Censura que vetou sua apresentação
em 1966. Curiosamente as peças citadas foram publicadas em 1961, no livro Dramas para
negros e prólogo para brancos – antologia do teatro brasileiro e fizeram parte do projeto teatral
e político do Teatro Experimental do Negro (TEN).

32
Pode-se dizer que o ponto alto do drama é o estilístico, na precisão dos versos

metrificados e rimados, capazes de incorporar a gíria e o termo chulo, ao lado

de imagens especialmente expressivas ou inusitadas. Nesse aspecto, o da

composição literária, Gota d’água atinge o nível mais alto entre as peças

musicais naquelas décadas, acompanhada de perto por Se correr o bicho

pega, com sua leveza cômica (nem todas os espetáculos cantados nessa fase,

ressalve-se, foram escritos com propósitos estilísticos similares). A qualidade

dos versos se faz acrescentar de estrutura dramaticamente consistente.

Quanto ao gênero da peça, é necessário destacar que, apesar de predominantemente

dramática (no sentido usado em Szondi e Rosenfeld) e não épica, embora incorporem

elementos narrativos, bebe fontes do teatro de revista33 . A crítica dos autores à

ordem econômica é, no entanto, claríssima. O texto descarta a ingenuidade, mas não

dispensa a postura crítica.

Assim é notável que para essa geração de dramaturgos e pessoas do teatro a

Arte do palco era uma forma de analisar e denunciar a realidade brasileira.

Para tanto se fez necessário inovações formais, muitos dos quais retirados da

análise da realidade popular e das classes menos favorecidas, seus problemas

sócio econômicos. Tal qual a força com que os nordestinos pobres

responderam à seca, ao cerco das elites com o cordel, o repente, o

mamulengo. Também como os moradores das periferias das grandes cidades

fizeram, da miséria nacional, sambas ambiguamente belos. Ou seja, conteúdo

gerava a forma nova – tão certo quanto, “sem forma revolucionária, não há

conteúdo revolucionário”, para lembrarmos o bordão maiakovskiano.

33
Idem, p. 245

33
Nesse contexto temos, nas palavras de Freitas Filho, por parte da classe

artística um desejo de “...conscientizar politicamente as classes pobres

converte-se na busca – ainda que tantas vezes desajeitada – de aprender com

elas.”34 Para alimentar tais ideias estéticas circulava no período a influencia de

autores como Bertold Brecht e Georg Lukács, por exemplo.

5. PRIMEIRA MONTAGEM DE GOTA D’ÁGUA: 1975

Tanto a dramaturgia, quanto a peça surgem num contexto social e político do

Brasil pós AI-5, fazendo com que se revelasse indiretamente “características

centrais da realidade social brasileira da década de 197035”. Assim como

buscam uma integralidade do sujeito a partir das relações míticas:

Independentemente da censura, a recuperação do mito seria

uma das respostas da modernidade à dificuldade de refletir os

impasses de uma sociedade de aparências e discursos

civilizatórios, surpreendida e desmoralizada pela barbárie das

grandes guerras e totalitarismos à esquerda e à direita que

marcaram o século XX.36

Na década de 1970 outras manifestações artísticas partiram da influência

mítica clássica para tecer críticas ao sistema, como destaca Marinho:

Houve uma produção marcante no contexto internacional

também envolveu a recuperação do mito da princesa da

34
FILHO, 2006, p. 87

35
MARINHO, 2013, p. 12

36
Idem, p. 34

34
Cólquida: o belo filme de Pier Paolo Pasolini, Medeia, com Maria

Callas no papel título. Nessa produção, o mito também é

retomado a partir de uma perspectiva de luta de classes, embora

de um ponto de vista marxista não convencional, mais como luta

de culturas do que propriamente de classes37.

Em sua estreia, dezembro de 1975, a peça Gota d’água contou com o seguinte

elenco, entre parênteses o respectivo personagem: Bibi Ferreira (Joana),

Oswaldo Loureiro (Creonte), Luiz Linhares (Egeu), Roberto Bonfim (Jasão),

Bete Mendes (Alma), Sonia Oiticica (Corina), Carlos Leite (Cacetão), Isolda

Cresta (Nenê), Norma Sueli (Estela), Selma Lopes (Zaíra), Maria Alves (Maria),

Roberto Rônei (Boca Pequena), Isaac Bardavi (Amorim), Geraldo Rosas (Xulé),

Angelito Melo (Galego).Com coreografia de Luciano Luciani, cenário e figurino

de Walter Bacci, direção musical de Dory Caymmi, produção Casa grande e

direção geral de Gianni Ratto.

Nesse contexto, Chico e Paulo Pontes foram acusados de estarem fazendo um

teatro populista, que resgatava as maneiras do teatro do Centro Popular de

Cultura da UNE. O que posteriormente foi questionado, visto o teor dialético

presente no texto e a elaboração estética dos versos.

A montagem, que carregava grande nomes do teatro, teve um extraordinário

sucesso de público. Um texto de Maria Lucia Rangel, do Jornal do Brasil, dá

conta de que, nos primeiros seis meses da temporada carioca da peça, quase

37
Idem, p. 10

35
duzentos mil espectadores haviam assistido a Gota d’água, sendo que cada

sessão do espetáculo levava à platéia uma média de 1.250 pessoas38.

FOTO – Programa da peça Gota d’água, 1975

A iluminação e o cenário do espetáculo estavam a serviço da dramaturgia, a

luz tinha a função de iluminar e estabelecer a tensão dramática. Recortando as

cenas e destacando determinada ponto da cena. Durante a discussão das

vizinhas sobre a trama, todo o restante do cenário está em blecaute. De forma

semelhante à fotografia, o espetáculo pode utilizar a iluminação como efeito de

foco, intensificando onde o diretor busca enfatizar o interesse. Segundo Edwin

Wilson:

Um exemplo positivo da utilização de focos se dá quando, num palco

dividido, duas ações diferentes se passam em pontos opostos.

38
Maria Lucia Rangel em “Um público mais próximo de Jasão e da correção
monetária”. In: Jornal do Brasil (Caderno B), Rio de Janeiro, 30/06/1976, p. 2

36
Neste caso, é a iluminação que guia a atenção da platéia de um lado

para o outro, à medida que a luz se reduz de um lado e aumenta de

outro.39

A interpretação de Bibi Ferreira na personagem principal está registrada em

disco40 e, ouvindo-a, temos acesso a aspectos do espetáculo, que terá sido em

boa parte monitorado pela atuação simultaneamente visceral e técnica da

estrela.

No conjunto da crítica ao espetáculo, notam-se algumas constantes. Há uma

unanimidade quanto à atuação de Bibi Ferreira no papel de Joana, que teria

sido soberba. Carlos Cordeiro, da revista Vida das Artes, dá um significativo

depoimento:

Defendendo um papel dificílimo, exaustivo, complexo,

praticamente sem pausas, ela atinge com a sua Joana o

ponto mais alto do espetáculo e se coloca num nível

raramente alcançado em nossos palcos. Desde o

primeiro momento de sua aparição em cena até o ato

final, Bibi consegue nos manter presos a sua

impressionante figura, mergulhada no desespero e na

humilhação, alimentando-se unicamente do ódio que lhe

brilha nos olhos. O público em vários momentos não

WILSON, Edwin. Iluminação. Cadernos de teatro. Rio de Janeiro, n. 85, abr./mai/jun.


1980, p. 2.

40
FERREIRA, Bibi. Álbum Principais faixas Gota D’água, 1975. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=Kk3xgfehxN4, acessado 13 de janeiro de 2018.

37
contém a carga dramática que ela transmite e explode

em aplausos em cena aberta. É a sua maneira de

solidarizar-se com o personagem.41

Sábato Magaldi, no Jornal da Tarde, também não poupa louvores ao trabalho

da atriz principal da peça:

A Medéia de Bibi Ferreira permanece uma criação

privilegiada. Bibi sugere ter reunido todas as suas

reservas para oferecê-las nesse desempenho tenso, uno,

sem fissuras. Da máscara trágica à voz poderosa, Bibi

vive sempre o clímax, sem desfalecimento. Uma

identificação total à personagem, que explode com o

vigor de fera enjaulada. A atuação de Bibi coloca o

espetáculo na altitude do texto de Chico Buarque e Paulo

Pontes.42

O projeto de cenário e figurinos da montagem de 1975, como demonstram

algumas fotos abaixo, é simples. Há uma preocupação em valorizar o ator e o

enredo contado em cena. Deste modo a atenção do público foca-se na

mensagem que estão passando, o que causa emoção e identificação.

41
Carlos Cordeiro em “Gota d’água: renasce a dramaturgia brasileira”. In: Vida das
Artes, Janeiro/ Fevereiro de 1976, pp. 42 e 43

42
Sábato Magaldi em “O universal brasileiro”. In: Jornal da Tarde. São Paulo,
27/05/1977, p. 20.

38
Um exemplo positivo da utilização de focos se dá quando, num palco dividido,

duas ações diferentes se passam em pontos opostos.: “Neste caso, é a

iluminação que guia a atenção da platéia de um lado para o outro, à medida

que a luz se reduz de um lado e aumenta de outro”.43

Nesse quesito houveram algumas críticas:

...o bom texto é sufocado, quase inutilizado pela encenação.No

espetáculo a idéia de um conjunto interligado de fatos

desaparece no tratamento homogêneo das cenas. Sem vida

própria, tratadas como blocos, as cenas se transformam em

mera sucessão: o espetáculo atomiza a reação que deveria

existir entre os acontecimentos. Há uma preocupação genérica

de limpar, agrupar, desbastar, disciplinar que acaba funcionando

como uma vaga contrária ao dinamismo do texto. (...) É difícil

compreender os compartimentos

criados por uma cenografia pesadamente construída, embora se

encaixe na linha do espetáculo.44

Críticas semelhantes foram feitas pelo jornalista Carlos Alberto Godoy:

43
WILSON, Edwin. Iluminação. Cadernos de teatro. Rio de Janeiro, n. 85, abr./mai/jun.
1980, p. 2. Para consultar mais sobre iluminação teatral, Cf. também NELMS, H. Iluminação.
Caderno de teatro, Rio de Janeiro, n. 36, out./nov./dez. 1966; e MOSTAÇO, Edelço. Aspectos
da iluminação no teatro – eixo Rio/São Paulo. Folhetim – teatro do pequeno gesto. Rio de
Janeiro, n. 25, jan.-jun. 2007.

44
S/a. “Gota d’água, um grande texto mal encenado”. In: O Estado de São Paulo. São
Paulo, 1977.

39
A encenação (...) fica muito aquém da palavra, pela

cenografia pouco inspirada; à concepção estática do

cenário soma-se uma marcação nem sempre funcional e

de pouco rendimento cênico; tudo é amplo demais para o

exíguo dos gestos, da movimentação, das cenas. A

disposição central da sala do trono de Creonte, se por um

lado reafirma seu poderio como núcleo econômico da

ação, por outro soa artificial como um adereço. Além

disso, os números musicais não se entrosam com a

fluência do entrecho, deslocados muitas vezes como

“quadros” à parte.45

FOTO – Fonte: Folha de São Paulo – 12 jan. 1976 – Espetáculo no Rio de


janeiro. (Isaac Bardavid como Amorim, Roberto Bonfim como Jasão, Roberto
Rônei como Boca Pequena, Carlos Leite como Cacetão, Angelito Melo como
Galego e Norma Sueli como Estela)

45
Carlos Ernesto de Godoy em “Texto forte”. In: Visão. São Paulo, 06/07/1977

40
Fonte: Arquivo Centro Cultural São Paulo – Espetáculo de 1977 em São Paulo.

FOTO – Fonte: Arquivo Centro Cultural São Paulo – Espetáculo de 1977 em São Paulo.

41
Gota d’água, tendo escapado da censura parcialmente46, foi apontada como o

melhor texto teatral de 1975, recebendo o Prêmio Molière. Chico e Paulo

Pontes, no entanto, recusaram o prêmio, protestando contra a intervenção

governamental nas artes e argumentando que outros textos que deveriam

receber montagem naquele ano, como Rasga coração, de Oduvaldo Vianna

Filho, e Abajur lilás, de Plínio Marcos, que estavam vetados, mereceriam o

reconhecimento de melhor texto teatral de 75.

6. CHICO BUARQUE

O meu pai era paulista / Meu avô, pernambucano / O meu bisavô,

mineiro / Meu tataravô, baiano.47

Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Autor,

cantor e compositor, escreveu peças que marcaram o teatro brasileiro, como

Roda Viva, Gota d'Água, Ópera do Malandro, e compôs músicas e trilhas de

muitos espetáculos. Filho do historiador e diplomata Sérgio Buarque de

Hollanda e de Maria Amélia Cesário Alvim, Chico viveu rodeado por poetas,

músicos e artistas, o que influenciou seu gosto pela arte da escrita e dos

palcos.

46
A peça sofreu alguns cortes do censor José do Carmo Andrade e teve que ser
classificada para maiores de 18 anos.

42
Escreveu seu primeiro sucesso aos 22 anos, a música A banda foi destaque do

Festival de Música Popular Brasileira em 1966. É um dos maiores nomes da

música popular brasileira e da composição de canções. Sua discografia conta

com aproximadamente oitenta discos, entre eles discos-solo, em parceria com

outros músicos e compactos.

A carreira de Chico Buarque nas artes começou no mesmo ano do golpe militar

de 1964. Sua obra produzida durante o regime ditatorial, especialmente seu

teatro, dialogou a todo momento com seu tempo. Uma análise dessa produção

é também, de certo modo, um esboço de biografia de uma geração. A primeira

imersão de Chico Buarque no teatro se dá em 196548, quando ele tinha apenas

20 para 21 anos. Compôs a música para o espetáculo Morte e vida severina,

poema dramático de João Cabral de Melo Neto, montado em São Paulo pelo

Teatro da Universidade Católica (TUCA), dirigido por Silnei Siqueira. Esse

espetáculo foi saudado enfaticamente no Brasil e no exterior. Na França, em

1966, recebeu o prêmio de crítica e público no IV Festival de Teatro

Universitário de Nancy.

Em 1991 Chico inicia sua carreira literária, lança seu primeiro romance,

Estorvo, publicado pela Companhia das Letras, com o qual ganha o "Prêmio

Jabuti de Literatura". Segue na literatura com outros romances, Benjamim,

Budapeste, Leite Derramado e O irmão Alemão.

48
HOLLANDA, B. Chico. “Paratodos”, composto por Chico Burque de Hollanda, álbum
Paratodos, 1993.

43
6.1 PAULO PONTES

Vicente de Paula Holanda Pontes (Paraíba, 1940 - Rio de Janeiro, 1976) foi.

dramaturgo, produtor de rádio e teatro, jornalista e tradutor. Nasceu numa

família humilde do interior da Paraíba, aos quatro anos sua família mudou-se

para João Pessoa, onde passou boa parte de sua criação.

Autodidata e assíduo frequentador de bibliotecas públicas Paulo Pontes

aprendeu sua profissão de jornalista e produtor entre os bancos da biblioteca e

os auditórios da Rádio Tabajara. Já na mocidade começa a colaborar para o

jornal “A União” e atuar como produtor de rádio.

Como ator e autor de teatro começou no Teatro do Estudante da Paraíba

encenando a peça Os Inimigos Não Mandam Flores, de Pedro Bloch, em 1952.

Em 1956, faz uma pequena participação como ator na peça Apenas uma

Cadeira Vazia, de Hermílo Borba Filho

Aos 19 anos muda-se para o Rio de Janeiro, onde contava com uma bola do

Museu Histórico e Geográfico Nacional para se manter na cidade. Com o fim

da bolsa, Pontes vê a necessidade de retornar para João Pessoa, onde

começa a trabalhar como produtor e locutor na Rádio Tabajara. Também

colaborou com a campanha de alfabetização popular promovida pelo governo

paraibano.

Em 1962 conhece o dramaturgo Odulvado Vianna Filho, que se encanta com o

programa radiofônico e a destreza como redator de Paulo Pontes. Vianna o

convida para juntar-se ao CPC no Rio de Janeiro. Apesar do convite Pontes só

irá para o Rio em 1964, lá conhece pessoalmente os membros do CPC. Chega

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à cidade momentos antes dos militares tomarem o poder e vê a sede da UNE

(União Nacional dos Estudantes) ser metralhada e incendiada.

Nesse clima de repressão política e ideológica colabora com os artistas que

produzem o show Opinião. Integra o Grupo Opinião, espaço criado em seguida,

em que a intelectualidade de esquerda pode manter acesos seus ideais de

resistência. Vítima da censura, o Opinião passa por dificuldades e, em 1967,

parte de sua equipe, entre eles Paulo Pontes, despede-se do grupo.

Pontes retorna à Paraíba e volta a trabalhar na rádio. O trabalho com o Opinião

o estimula a escrever sua primeira peça, Para-í-bê-a-bá (1967). A convite de

Almeida Castro, diretor artístico da TV Tupi, retorna ao Rio de Janeiro em

1968, contratado como membro da equipe de criação do canal. Em

colaboração com Vianna Filho, Pontes realiza o programa Bibi – Série Especial

apresentado pela atriz Bibi Ferreira (1922), com quem se casa. No início da

década de 1970, passa a escrever regularmente para o teatro. Surgem, entre

outras peças, Um Edifício Chamado 200 (1971), e Check-Up (1972), pela qual

recebe o Prêmio Governo do Estado da Guanabara. Em 1975, em parceria

com o compositor Chico Buarque (1944), escreve Gota d’Água, sua última

peça.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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2001. Disponível em: <www.revistamirabilia.com/Numeros/Num1/medeia.html>.

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PONTES, Paulo e HOLANDA, Chico Buarque de. Gota d'água. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1975.

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