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3 2 | d e ze mb ro 2016
CALAR É UMA NARRATIVA
Christian Tarting
Para Anne Cauquelin
silêncio acontecimento
experiência
Um dia a música interrompeu-se. Precisa. Por tempo calibrado estrito. Uma suspensão de quatro minu-
tos e 33 segundos.
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Não estamos na Carolina do Norte, não estamos o que ocorre – quase nada. O ponto está no qua-
no Black Mountain College – mas a obra é um se, intersticial (o que não é pouca coisa). Excelente
paradigma perfeito do espírito ambiente. definição da interpretação. A música. David Tudor
instala-se ao piano, abre sua tampa, imediata-
Em 29 de agosto de 1952 ela revira tudo, faz tudo
mente a fecha: aparentemente nenhuma nota.
revirar. Não se trata de performance. Não neces-
Trinta segundos se passam. Abertura e fechamen-
sariamente (necessariamente não) de um gesto
to da tampa e dois minutos e 23 segundos se
dadá. Mas de música. Primeiro. Neste lapso de
passam, durante os quais, cronometradamente,
tempo de estrita radicalidade: 4’33”.
Tudor vira as páginas da partitura da obra: nenhu-
No final de agosto de 1952, a vida criativa de ma nota, aparentemente. Abertura e fechamento
Cage já é bastante consistente. O piano tempe- imediato ainda – um minuto e 40 segundos se
rado fora “inventado” (nele não nos deteremos), passam, páginas sempre viradas, tempo sempre
sua obra-manifesto, as “Sonates et Interludes”, apreendido por um fio, nenhum relaxamento da
executada integralmente por Maro Ajemian no atenção, notas ausentes ao que parece. À última
Carnegie Hall de Nova York em 12 e 13 de janei- página virada a tampa é reaberta, o músico se le-
ro de 1949. Untitled Event, o primeiro happening vanta: três movimentos, cujos comprimentos fo-
(assim ainda não designado – para o surgimen- ram decididos, graças ao I Ching, mas também
to do termo será necessário esperar 1958 e Allan ao tarô, ao acaso – “4’33””. Duração global, ela
Kaprow), ocorreu graças a sua instigação, dessa também decidida ao acaso. Uma obra para pia-
vez justamente no Black Mountain College: em 16 no? Em todo caso, nessa primeira vez, tocada ao
de agosto de 1952. Seu catálogo já é abundante; piano.4 O que está longe de ser anedótico. (Não
o I Ching – graças a Christian Wolff que o fez se pode deixar de pensar na clássica sonata hayd-
descobrir – está em curso na dinâmica compo- niana para piano em três movimentos.)
sicional faz um ano (Music of Changes). Cage,
Quase nada? Sala rapidamente animada (o auditó-
que conhece as atividades do College desde seus
rio é integralmente composto de mecenas bastante
anos de formação, lá intervém, diversas vezes,
engajados na defesa da arte contemporânea):5 irri-
mas de modo determinante em 1948 e 1952.
tação, agitação, não necessariamente escândalo no
Merce Cunningham, conhecido em 1939, torna-se
sentido hernaniano: estamos nos Estados Unidos,
o amigo principal, sempre a seu lado. (No verão
numa noite de verão, não no teatro do Champs
de 1953, sempre no College, Cage se tornará na-
Elysées em 1913. “4’33”” não é exatamente Le
turalmente o diretor musical de sua companhia,
Sacre du printemps… (precisamente). Mas o au-
finalmente criada).
ditório movimenta-se. Precisamente. E de acordo
Mas eis que, em 29 de agosto de 1952 – sem com o desejo do compositor a porta da sala de
dúvida ainda faz bom tempo em Woodstock, na concerto ficou aberta, dando para a floresta, du-
noite um pouco úmida do Maverick Concert Hall, rante toda a duração da obra. Mal-estar, tosses,
a tempestade de calor não está longe, o verão in- agitação, cadeiras rangendo, incômodo, rumores,
diano se anuncia, o concerto começou às 20h15,3 partidas durante a execução (“ninguém riu”, dirá
há risco de a chuva o acompanhar em parte, tal- Cage). E o vento se foi… (No fim.) Este vento, in-
vez de convidar-se em seu momento crucial –, eis flado de importância (Ponge nos lembrará bem
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disso…). O piano não dispensa, no sentido tradi-
cional, nenhuma nota, mas nada é silencioso. Esse
nada, esse quase é particularmente carregado.
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confeccionados com pintura industrial aplica- gesto de interpretação, concordamos sem re-
da com rolo, o terceiro sendo o mais conhe- servas. Eis aí algo extremamente consequente.
cido: três telas iguais, 182,88 x 274,32cm de Trata-se quase, nessa consideração particular da
dimensão. 12
(Três telas… três movimentos?) existência da obra, de pedagogia. Mas Cage não
Virgens – numa acepção simbólica reivindica- poderia permanecer na imediatidade (finalmen-
da pelo artista –, esses quadros são superfícies te…) ensinada.
cambiantes, “aeroportos para a luz, as som-
O ponto fundamental é o seguinte: não o que está
bras e as partículas”,13 constantemente refei-
em jogo em “4’33”” (há, como sabemos, figura-
tas pelas variações luminosas e pelas sombras
ção de jogo – mas também verdadeiramente jogo
dos observadores. Superfícies reflexivas. Mais
pelo rigor de contagem, a absoluta concentração
do que um silêncio representado, um silêncio
necessária, a disciplina infrafina que não encon-
materializado: heterogêneo, metamórfico. Si-
tramos nesse grau senão nas solicitações e con-
lêncio no exterior. “4’33”” “dialetiza”, de al-
cretizações das partituras de Morton Feldman; há
gum modo, essas duas experiências.
deslocamento verificável do musical, como bem
Então, “4’33”” é uma peça silenciosa? Evidente- sabemos…), mas quem toca “4’33””? Tudo está
mente não. É preciso boa dose de ingenuidade (ou lá. A obra não é tanto do despertar do exterior, da
pelo menos leviandade) de um Éric Dufour, que questão plástica, estética, do “exterior” musical,
fala a respeito de silêncio absoluto, para nisso acre- reconstituindo, portanto, se não uma nova nor-
ditar. 14
Diremos sobretudo: silenciosa sim e não. ma, ao menos um novo campo de aceitabilidade
Trata-se de concordar sobre a definição do silêncio. fenomenal (ela o é certamente: permaneceremos
dialéticos), que percussão forte, certamente a
Silêncio: nada aí (nada na ideia cagiana) da or-
mais forte, sobre a questão da experiência, da or-
dem do neutro, a fortiori do substrativo ou do ne-
dem realizada de si: o que ela nos faz tocar, o que
gativo. “4’33”” não se entrega ao silêncio senão
nela nós tocamos?
à condição de escutá-lo como valor cumulativo,
murmurante, sussurrante, “rumorejante”: como “4’33”” desfaz toda ideia de audição, natural-
“tudo o que acontece15” no registro do sonoro, mente de consumação. Ela é, ainda que reivindi-
mistura-se ao que existe e evoca o risco de ser. cando-se da pura delicadeza – Cage: “A obra con-
cretizará uma ideia bem simples que eu desejaria
Eis o exterior: pela porta do Maverick Concert Hall
tão agradável quanto a cor, a forma, o perfume
largamente aberta sobre o rumor do mundo, pelo
de uma flor; ela deveria, por fim, ser da ordem do
bando de passantes noturnos e também pelo inte-
imperceptível…” –, um golpe de bastão zen.
rior surpreso, desestabilizado, reativo, produtivo da
sala. Mas, certamente, é a um outro interior que se A que nos remete o espelho paradoxal da tampa
deve ligar… Esse, plural, incrivelmente plural, que fechada? Nossa própria música: singular, intransi-
ressoa com a frequência fraca do batimento san- tiva. Não derivada (finalmente não derivada) mas
guíneo. E é claro que lá está o essencial de “4’33””. desenrolada, aberta; respirada fora de qualquer
vetorização por um texto pronunciado.
Que haja inversão, que a música seja deportada,
induzida pela ausência de concretização de um “4’33”” é obra para o retorno da música a si. Em si.
texto musical, e, no entanto, a plateia seja puro Uma deglutição – plena força do alimento mental.
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Que cada um possa criar sua própria música, sem Henry Cowell e o pianista e musicólogo Charles
lesar ninguém: eis aqui uma definição satisfatória Rosen (autor, em 1972, do indispensável “Le style
da revolução.16 classique”). O concerto é oferecido em benefício
de um fundo de pensão especificamente
Tradução Inês de Araujo
consagrado aos artistas americanos.
Revisão técnica de Elisa de Magalhães
6 Nascido em 1925, na Carolina do Norte,
jornalista, artista plástico e professor de psicologia
NOTAS clínica na Duke University, Irwin Kremen tornou-
O texto foi publicado originalmente em: se particularmente conhecido por suas colagens
Cometti, Jean-Pierre; Giraud, Éric (ed.). Black abstratas. Aluno de Mary Caroline Richards no
Mountain College, art, démocracie, utopie. Black Mountain College, ele conheceu Cage,
Rennes: Presses Universitaires, 2014: 101-106. Cunningham e Tudor em 1951, em Nova York.
David Tudor indicou, durante uma importante
1 Cage nasceu em 5 de setembro de 1912, e entrevista com Reinhard Oehlschlägel publicada
morreu em 12 de agosto de 1992. no número de abril de 1997 de MuzikTexte (n.
2 Tudor (1926-1996) foi um dos mais próximos 69/70: 69-72), inteiramente consagrado a ele,
companheiros de Cage, paralelamente, no que diz que a obra por ele interpretada no Maverick
respeito aos músicos, a Morton Feldman, Christian Concert Hall lhe fora inicialmente dedicada.
Wolff ou Earle Brown. Executou várias de suas obras 7 Por Peters em Nova York em 1960 (n. 6777
para piano, entre elas, “Music of Changes” (1951) e das edições). Note-se que não se trata do Urtext
o “Concert for Piano and Orchestra” (1957-1958). da obra; essa edição não dá as minutagens
Assumiu a direção musical da Merce Cunningham “corretas” dos três movimentos (ela indica 33”,
Dance Company após a morte de Cage. 2’40” e 1’20” contra aqueles da criação: 30”,
3 No programa antes de “4’33””: obras para 2’23” e 1’40”).
piano e piano temperado de Wolff, Feldman, 8 Ela foi reproduzida em 1993 por Peters (n.
Earle Brown, como também a “Sonata n.1”, de 6777a).
Boulez. Após “4’33’’”: “The Banshee”, de Henry
Cowell, igualmente para piano. Todas as peças 9 O que se pode explicar; aqui, porém, falta
interpretadas por David Tudor. espaço para que isso seja feito com toda a
atenção necessária. Reservemos o exame às
4 Cage indicou desde a sua criação que ela poderia próximas páginas sobre a obra, que se oferece,
ser interpretada por qualquer instrumento ou como poucas, à retomada do comentário, mas
qualquer combinação de instrumentos; ela é, também, “muito simplesmente”, da análise (nesse
aliás, repertoriada exatamente na rubrica “Various sentido explica-se a decisão das visões aritméticas
Solos & Ensembles” de seu catálogo editado por e geométricas). Dito isso, é bom lembrar que a
Peters, não na de peças para piano. posição de Cage flexibilizou-se bastante quanto
5 Ele reúne os membros da Woodstock Artists ao ponto preciso das minutagens. Contava mais
Association, presidida por Emmet Edwards e que para ele, por fim, o recorte em três movimentos
conta, entre outros, em seu comitê diretor, com do que a definição canônica da duração de
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