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Anais Simpósio Filosofia Unioeste 2013 PDF
Anais Simpósio Filosofia Unioeste 2013 PDF
Toledo – PR
2013
http://www.unioeste.br/filosofia/
Comitê Científico:
Epistemologia:
Andre Leclerc (UFPB)
Douglas Antonio Bassani (UNIOESTE)
Marcelo do Amaral Penna-Forte (UNIOESTE)
Remi Schorn (UNIOESTE)
Estética:
Olímpio José Pimenta Neto (UFOP)
Pedro Costa Rego (UFRJ)
Wilson Antonio Frezzatti Jr (UNIOESTE)
Ensino de Filosofia:
Altair Fávero (UPF)
Ana Miriam Wuensch (UnB)
Célia Machado Benvenho (UNIOESTE)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Filosofia da Mente:
Marcos Rodrigues da Silva (UEL)
Luiz Henrique Dutra (UFSC)
Metafísica:
Alberto Marcos Onate (UNIOESTE)
Alexandre Tadeu Guimarâes de Soares (UFU)
Clademir Luís Araldi (UFPel)
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (UNIOESTE)
César Augusto Battisti (UNIOESTE)
Cristiano Perius (UEM)
Eder Soares Santos (UEL)
Eneias Junior Forlin (UNICAMP)
Erico Andrade Marques de Oliveira (UFPE)
Libanio Cardoso (UNIOESTE)
Filosofia Política:
Aylton Barbieri Durão (UFSC)
Carlo Gabriel Pancera (UFMG)
Cláudio Boeira Garcia (UNIJUÍ)
Delamar José Volpato Dutra (UFSC)
Jadir Antunes (UNIOESTE)
José Luiz Ames (UNIOESTE)
Luis Portela (UNIOESTE)
Marciano Adilio Spica (UNICENTRO)
Tarcílio Ciotta (UNIOESTE)
Rosalvo Schütz (UNIOESTE)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC-CAMPINAS)
APRESENTAÇÃO
SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................................................................6
* A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores.
Programação Geral
Segunda-feira: 21/10/2013
Manhã: Miniauditório do Campus
08:30 – 09:15 Abertura
09:30 – 11:30 Conferência: Andrea Díaz Genis (Universidad de la República del
Uruguay): “La biografía y la ausencia de Sujeto en la Filosofía del Nietzsche
póstumo”.
Tarde: Salas de aula
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
Noite: Miniauditório do Campus
19:10 – 20:40 Conferência: Eduardo Ferreira Chagas (UFC): “A ética em Marx e seus
pressupostos críticos às éticas de Kant, Hegel e Feuerbach”.
21:00 – 22:30 Conferência: Ronai Pires da Rocha (UFSM): “Iris Murdoch, ética e
linguagem”.
Terça-feira: 22/10/2013
Manhã: Salas de aula
08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e
primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da
Alteridade”.
Tarde: Salas de aula
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
Noite: Miniauditório do Campus
19:10 – 20:40 Conferência: Luiz Antonio Alves Eva (UFPR): “Questões céticas em
Montaigne”.
21:00 – 22:30 Conferência: Maria Cristina Theobaldo (UFMT): “Conversação à “maneira”
de Montaigne”.
Quarta-feira: 23/10/2013
Manhã: Salas de aula
08:30 – 11:40 Minicursos: “A noção de Filosofia na Alemanha do século XIX”; “Origens e
primeiros desenvolvimentos do copernicanismo”; “Ceticismo e Montaigne”; “Figuras da
Alteridade”.
Tarde: Salas de aual
13:30 – 17:00 Comunicações e mesas redondas
Programação Comunicações
Evânio Márlon CAN YOU SEE THE REAL ME, DOCTOR? APROXIMAÇÕES
Guerrezi ENTRE QUADROPHENIA E O RIZOMA DE DELEUZE E
(Coordenador de GUATTARI
mesa)
Paulo Roberto ÉTICA E LITERATURA: A NOÇÃO DE LEI A PARTIR DO
Schneider AGENCIAMENTO FILOSÓFICO-LITERÁRIO KAFKA,
DELEUZE E GUATTARI
Rafael Saragoça PROUST E DELEUZE: REFERENCIAIS PARA OFICINAS DE
Ortolan ESCRILEITURAS
Lucas Henrique DELEUZE, O TEATRO E A PRODUÇÃO DE UMA POLÍTICA
Nunes Batista MENOR
mesa)
Francisco Luna A HISTÓRIA DA EJA, A ALFABETIZAÇÃO E A FILOSOFIA
Pereira
Mignoni NIETZSCHE
(Coordenador da
mesa)
André Vinícius DIFERENÇA E PENSAMENTO SELETIVO NA CONCEPÇÃO
Nascimento Araújo DELEUZIANA DO ETERNO RETORNO
Pereira
Odair Salazar da A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA:
Silva UMA ABORDAGEM RICOEURIANA
RESUMOS EXPANDIDOS*
* A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores.
Anderson Lucas
UNIOESTE
Lukas_andi@hotmail.com
Gilmar Henrique Conceição
sua crença com razão humanas. Na resposta à segunda objeção o ensaísta argumenta que se
os argumentos de Sebond são insuficientes, seus críticos também não têm nada melhor
para opor-lhe, visto que a razão é incapaz de fundamentar qualquer coisa. Villey acrescenta
a isto o fato de que na Apologia encontramos a crítica da vanidade do homem, da vanidade
da ciência e da vanidade da razão (instrumento da ciência). Vale a pena salientar que a
crítica à ―vaidade‖, ainda que reverbere dos Eclesiastes, o argumento de Montaigne trava-se
na esfera da pura razão humana. Trata-se de uma ―vanidade‖ porque com a razão
defendemos qualquer ideia. A toda afirmação pode-se opor outras afirmações. O núcleo da
argumentação montaigniana está em apontar que o ser humano se distingue pela
arrogância. Ainda que possa fazer com a razão tudo o que quisermos, dado que se trata de
algo maleável, a ciência é muito útil e importante. É este o sentido da própria abertura da
Apologia:
(A) na verdade, a ciência é uma coisa muito útil e grande; os que a menosprezam
dão prova bastante de tolice; mas nem por isso estimo seu valor até essa medida extrema
que alguns lhe atribuem, como o filósofo Herilo, que colocava nela o soberano bem e
afirmava que estava em seu poder tornar-nos sábios e contentes; não creio nisso, nem no
que disseram outros; que a ciência é mãe de toda virtude e todo vício é produzido pela
ignorância. Se isto for verdade, está sujeito a uma longa interpretação (II, 12, p. 160).
Na realidade, Montaigne critica não só a capacidade da razão como também a
razão antropocêntrica no contexto do Renascimento. Critica a ―dignidade humana‖ e a
―miséria humana‖. Não estamos nem acima nem abaixo dos animais. Porém, se pudermos
sintetizar a Apologia em um único enfoque temos: trata-se, aí, de uma crítica radical a toda
forma de dogmatismo. Constata-se que o esforço desta crítica aponta para a tese de que a
razão é incapaz de validar qualquer objeto ou se apresentar como verdade inquestionável.
A partir deste diagnóstico arrola comparações entre animais e homens. Os partidos dos
filósofos são conflitantes e discordantes. As ciências que são os principais produtos da
razão, são contraditórias. Temos, assim, a concordância montaigniana com a questão da
―diaphonia‖ elaborada pela tradição do ceticismo pirrônico. Por isso mesmo a razão não
pode conduzir o domínio da vontade contra as paixões; ao contrário, as paixões podem
ameaçar a teórica ―constância da alma‖, pois a razão inclina-se para diferentes lados porque
é defeituosa e cega: (...) ela é tão defeituosa e tão cega que não há nenhuma facilidade tão
clara que lhe seja suficientemente clara; que o fácil e o difícil lhe são semelhantes; que todos
os assuntos por igual e a natureza em geral renegam sua jurisdição e intermediação (II, 12,
p. 176).
Referências Bibliográficas:
BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007.
CARDOSO, Sérgio . Villey e Starobinski: duas interpretações exemplares sobre a gênese
dos Ensaios. Kriterion, Belo Horizonte, v. 33, n. 86, p. 9-28, 1992.
MONTAIGNE, Michel de, Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. – (Paideia).
Nesta investigação sem fim, ele se desfaz das máscaras e se retrata como puro aparecer. De
modo que, talvez, o ato da morte seja nossa última máscara: ―(...) e por baixo veremos
muito simplesmente a morte‖ (I, 20, p. 55). Os Ensaios vão revelando, em cada capítulo, um
Montaigne desnudo e forte na construção de uma interpretação do homem e do mundo.
Não obstante, em Montaigne encontramos mais o paradoxo e menos o repouso. Ele
elabora seu pensamento para um fim que não tem fim; todavia há certa alegria na procura:
―(B) Meu andar é rápido e firme; e não sei qual dos dois, o espírito ou o corpo, tenho mais
dificuldade em deter no mesmo lugar‖ (III, 13, p. 484). Há um movimento visceral na sua
escrita pirrônica: ―(...) Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem
artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus
defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral,pelo menos enquanto
permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda na
doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria
por inteiro e nu... (Ao Leitor, 2002, p. 03). Em seu célebre ensaio intitulado ―Dos Canibais‖ o
ensaísta descreve o ―outro‖, o bárbaro. Sua abordagem crítica nos leva a questionar nossa
posição cultural diante daquele que se nos apresenta como ―desconhecido‖. Ao comparar
os europeus aos tupinambás, Montaigne avalia que os verdadeiros selvagens são os
primeiros, pois estavam promovendo atrocidades não apenas em suas conquistas por toda
América como também nas guerras de religião. Ou seja, em seu movimento argumentativo
mostra que atribuímos ao termo ―bárbaro‖ tudo aquilo que não conhecemos. Assim
aqueles selvagens são apresentados por Montaigne, na realidade, como seres naturais ou
integrados e ―intactos‖, ou seja sem a intervenção (ou colonização) de outros povos, ditos
evoluídos. Neste ponto do Ensaio surge outra questão relevante para nosso entendimento,
a partir da inversão argumentativa de que chamamos de barbárie aquilo que não é de nosso
costume: ―(...) Podemos, portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas
ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em
toda sorte de barbaridades‖ (I, 31, p. 107). Estabelecendo esses parâmetros levantados pelo
filosofo fica evidente sua intenção em dizer que natural e selvagem são sinônimos no caso
dos povos indígenas do Brasil por ele abordado. Avança ainda dizendo ser uma espécie de
preconceito (palavra não dita por ele, mas cabível neste caso), pois se trata de uma violência
aplicada a estes povos. Para ele os bárbaros são deveras os ditos europeus abastardados,
por sua corrupção interna e de natureza corruptiva, ou seja, corruptor de outros. A
propósito disto Montaigne cita em seguida Propércio: ―A hera cresce ainda melhor sem
cuidados; o medronheiro nunca se apresenta mais belo como nos antros solitários e o canto
dos pássaros é assim tão suave porque natural‖ (I, 31, p. 105). Neste momento do texto
fica claro a sua intenção de clarificar o conceito do que seja o ―outro‖, bem como de se
posicionar, avaliando o povo indígena como admirável e sábio, e não desprezível e
ignorante como quer significar a própria palavra empregada como ―bárbaros‖, ao contrário.
Em razão disso cita Sêneca: ―(...) São homens que saem das mãos dos deuses‖ (I, 31,
p.106). Finalmente, não é na solidão, ou na pura volta a si que Montaigne encontra a
solidez de uma vida verdadeira, a real existência de si mesmo, mas numa relação
paradigmática com o outro. O filósofo propõe uma abertura para além do senso comum,
ou seja, leva o leitor, juntamente com ele, a repensar essa questão do diferente e que não
esteja determinada por nossos usos e costumes. Montaigne alerta para o ―império dos
costumes‖ do qual ninguém escapa: ―(...) E é natural, porque só podemos julgar da verdade
e de razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que
vivemos‖ (I, 31, p. 105) Aprofundando tais questões ele indaga: o que são os outros, os
desconhecidos, aqueles os quais ignoramos? Nossos usos e costumes, porém, não podem
ser considerados como supostamente superiores aos de outros povos. Assim, ele também
parece problematizar essa ideia, ao apontar para o fato de que, em quase todos os homens,
há um defeito generalizado de ver e seguir apenas o que se praticou desde o berço, e que
isso frequentemente é tomado como a única ―verdade‖. De modo que os usos e costumes
de outros povos e de outros tempos são vistos como bárbaros e selvagens porque tais
povos não se vestem como nós e não têm hábitos como os nossos. Reconhecendo o limite
da razão e a diversidade dos costumes humanos, o filósofo aponta as atitudes dogmáticas
dos que se pretendem portadores da verdade, do certo e do errado. Faz necessária a prática
de reconhecer a diversidade de cada cultura e nela a parcialidade da verdade, sempre situada
em seu contexto próprio. Nesse caminho do conhecer, dúvidas cortantes perpassam toda
sua obra. O limite do sujeito que conhece circunscreve cada capítulo, a constatação de que
quando afirmamos algo de um objeto, não é da verdade desse objeto que falamos, mas da
maneira de como nós o percebemos. E são essas impressões e percepções que
comunicamos. Do mesmo modo ao falarmos de valores, não falamos em valores da coisa,
mas da maneira subjetiva, como reflexos do juízo do sujeito que pensa. Mas, o sujeito não é
puro pensamento, nem constitui a identidade do eu. Tudo são fenômenos, inclusive a nós
mesmos somos fenômenos a nós. Para Montaigne tudo serve como objeto de reflexão e de
aprendizagem, pessoas, livros, acontecimentos, etc. Todavia, o estudo de si mesmo
constitui seu núcleo dinâmico: ―Estudo a mim mais do que a outro assunto. Essa é minha
física, essa é minha metafísica‖ (III, 13, p. 434). Tendo claro que o examinar-se primorosa e
Referências Bibliográficas:
MONTAIGNE, Michel de, Os Ensaios. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. – (Paideia).
SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o inglês de R. G. Bury.
Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000.
BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2007.
Referências Bibliográficas
BERKELEY, George. Tratado sobre os Princípios do Entendimento Humano. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
___________. ―De Motu‖. Scientiae Studia, São Paulo, v.4, p.115-37, 2006. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ss/v4n1/v4n1a05.pdf (último acesso: 30/9/2013).
COPLESTON, Frederic. A History of Philosophy, vol. V – Hobbes to Hume. New York: An
Image Book, 1985.
GALILEU, Galilei. O Ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores,
vol. XII.)
LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian,
1999, vol.1.
MARICONDA, Pablo R. ―Notas ao Diálogo‖ In: GALILEU, Galilei. Diálogo sobre os dois
máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae
Studia: Editora 34, 2011 (pp.539-872).
POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Brasília: Ed. UnB, 1982.
___________. A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1989.
___________. Realism and the Aim of Science. (Ed. W.W. Bartley III) New York: Routledge,
2011.
Referências Bibliográficas:
Referências Bibliográficas:
Danilo Persch
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT
E-mail: dan.persch@bol.com.br
pulmonar. Os sete dias transformaram-se então em meses e anos (também sete), período
esse em que Hans Castorp vai se afastando pouco a pouco da vida que levava ―na planície‖.
Não é necessário ler várias páginas da Montanha Mágica para encontrar referências
ao tempo. Estas se encontram já no prefácio/propósito (Vorsatz) quando Thomas Mann
discorre sobre tempo medido (objetivo) e tempo sentido (subjetivo). Por exemplo, na
passagem em que ele diz que a história de Hans Castorps será contada ―... minuciosamente,
com exatidão e pormenorizada...‖ (MANN, 2004, p. 10), e pergunta: ―... quando foi que o
agradável ou o maçante de uma história dependeram do espaço e do tempo, a qual ela
recorre?‖ (MANN, 2004, p. 10), percebe-se claramente o confronto entre o tempo objetivo
e o tempo subjetivo. As palavras alemãs Kurzweilig (cativante, agradável, divertido, de
curta duração) e Langweilig (aborrecido, maçante, de longa duração) se prestam muito bem
para expressar o paradoxo que pode ocorrer em relação a essa bipolaridade temporal. Um
determinado espaço de tempo, a princípio, cronologicamente longo, pode parecer
subjetivamente curto, se estiver recheado de muitos pormenores interessantes. E o
contrário também acontece. Mann soube trabalhar isso de forma genial na Montanha Mágica.
A história de Hans Castorps que ele ali narra nos mínimos detalhes não é apenas a história
de um personagem. Trata-se também do espaço em que esse personagem viveu sua história
(anos anteriores à Primeira Guerra Mundial), bem como o tempo que ele mesmo, como
autor, levou para escrever essa história.
Mais especificamente em relação ao espaço e ao tempo em que a história de Hans
Castorps se desenrolou, o autor, no segundo capítulo, faz a seguinte descrição: ―O homem
não vive sua vida pessoal apenas como um ser isolado, mas, consciente ou inconsciente,
também a de sua época ou contemporaneidade‖ (MANN, 2004, p. 49). Trata-se aqui,
repetindo, da época pré-guerra (Primeira Guerra Mundial). Nesse contexto a vida doentia e
de tédio que os integrantes da comunidade internacional do sanatório suíço de Davos Platz
levavam pode ser concebida como um retrato da condição psíquico-espiritual da sociedade
europeia dessa época pré-guerra, sobretudo a classe mais abastada economicamente que,
por isso, estava liberta das preocupações materiais e de subsistência.
Vale lembrar que todos os personagens (habitantes da Montanha Mágica) eram
oriundos de famílias com condições econômicas no mínimo razoáveis. O próprio Hans
Castorps era recém-formado engenheiro naval. Estava, portanto, apto a entrar no mercado
de trabalho e fazer parte desse grupo mais bem situado em termos econômicos. Mas essa
condição não libertava as pessoas do sofrimento, que na obra é retratado de duas formas: o
sofrimento com e sem causa orgânica.
Referências Bibliográficas:
Referências Bibliográficas:
do Diálogos (1632) já aparece sua decisão por defender o heliocentrismo não como uma
descrição apenas melhor do que a anterior, mas sim, como uma descrição verdadeira do
Universo. O comprometimento teórico é muito maior neste último caso, porque aponta
para descrições verdadeiras do Universo e para a existência dos inobserváveis apontados
pela teoria. O anti-realista não acredita em tal comprometimento e, mais do que isso, não o
adere. Isso apenas para citar um caso.
Aderir a uma dessas concepções não significa defendê-la para todo o sempre. Um
exemplo claro é a concepção de Einstein. No início de suas principais publicações aparece
claramente uma concepção anti-realista em filosofia da ciência, porém, revelando seu
realismo mais tarde. Há uma reclamação explícita de um empirista moderno (Percy
Bridgman 1882-1961) de que Einstein teria abandonado a concepção anti-realista adotada
no princípio da relatividade restrita de 1905, por uma concepção realista em 1916 quando
da publicação da teoria da relatividade geral. Na teoria de 1905, Einstein criticou duramente
as concepções de espaço e tempo absolutos da teoria de Newton, por este ter adotado
conceitos que seriam supostamente ―metafísicos‖ longe da possibilidade de experienciação.
Einstein teria exigido a substituição por conceitos que fossem experienciáveis, como
espaço e tempo relativos, ao invés destes conceitos serem concebidos como ―absolutos‖
como aparece em Newton. Já na teoria da relatividade geral há uma tentativa teórica de
forçar os dados empíricos, uma característica do realismo em filosofia da ciência. Essa
tentativa passou pela noção de curvatura espaço-temporal da teoria da relatividade,
publicada e defendida por Einstein em 1916, sem que uma experiência de algum tipo viesse
acompanhada. A demonstração do que estava propondo Einstein na teoria da relatividade
veio apenas mais tarde, em 1919, com a demonstração telescópica num eclipse solar de que
espaço-tempo realmente eram curvos, corroborando a teoria de Einstein. As principais
chapas fotográficas dessa demonstração foram feitas no Brasil, na cidade de Sobral-CE.
A crítica do empirismo moderno de Bridgman revelou não ser tão radical,
considerando que o próprio Bridgman eliminou o excessivo empirismo de sua concepção
para aderir a uma não exigência de que todos os conceitos teóricos devam ter um
correspondente empírico. Assim:
―Inerente aos requerimentos do próprio modelo , parece não ser necessário que todas as
operações matemáticas devam corresponder a processos reconhecíveis no sistema físico.
Também não há nenhuma razão porque todos os símbolos que aparecem nas equações
matemáticas fundamentais devam ter correspondentes físicos, nem razão para excluir a
introdução de quantidades auxiliares puramente matemáticas criadas para facilitar as
Referências Bibliográficas:
BRIDGMAN, P. W.: The Nature of Physical Theory. Princeton: Princeton University Press,
1936.
___________. Einstein‘s Theories and the Operational Point of View. In Library of Living
Philosophers, v. VII, Evaston, p. 335-354, 1949.
EINSTEIN, A., LORENTZ, H., WEYL, H. & MINKOWSKI, H.: Os Fundamentos da
Teoria da Relatividade Geral. In: O Princípio da Relatividade. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, p. 141-215, (1916) 1978.
CAMPOS, I; JIMÉNEZ, J. L.; DEL VALLE, G.; Operacionalismo: confusión entre
significado y medición. Em: Revista Contactos 42, p. 65-68, 2001.
POPPER, K. R. ―Três pontos de vista sobre o conhecimento humano‖ In: Conjecturas e
Refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília, Ed. UNB, 1994.
Referências Bibliográficas:
CAVALCANTI, Anna Hartmann. Nietzsche e a História. O que nos faz pensar – Cadernos do
Departamento de Filosofia da PUC – Rio. Rio de Janeiro, nº 1, 29-36, junho de 1989.
___________. Arte da Experimentação: Política, Cultura e Natureza no Primeiro
Nietzsche. In: Trans/Form/Ação. São Paulo, nº 30 (2), 2007, p.115-133.
CHAVES, Ernani. Cultura e política: o jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt, cadernos
Nietzsche, São Paulo, 9, p. 41-66, 2000.
KOFMAN, Sarah. Os Conceitos de Cultura nas Extemporâneas ou a dupla dissimulação.
Nietzsche Hoje. São Paulo: Brasiliense, 1986.
A RESPONSABILIDADE DO CIENTISTA
Estevão Bocalon
UNIOESTE/Fundação Araucária
estevaonod@gmail.com
Wilson A. Frezzatti Jr.
este saber, apesar de aparentar uma concepção metafísica, não pode ser considerado,
segundo o filósofo, enquanto tal: a vontade de potência é unidade enquanto multiplicidade,
deve ser entendida imersa em uma totalidade caótica, sempre mutável, como movimento
contínuo. Portanto, o ente não é fixo, é um processo. O espírito livre é capaz de
desconstruir a metafísica, nesse sentido:
O mundo de que fala Nietzsche revela-se como um jogo e contrajogo de forças ou de
vontades de potência. Se ponderarmos, de início, que essas aglomerações de quanta de
poder ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades
continuamente mutáveis, não, porém, da unidade. Unidade é sempre apenas organização,
sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de potência dominantes. (MULLER-
LAUTTER, 1997, p. 75. Tradução modificada)
O divisor de águas que esta noção representa nos mostra que o pensamento de
Nietzsche é inevitavelmente parte ativa na história da metafísica. Com isso, o pensador traz
uma desconstrução útil ao saber como um todo, de acordo com seu próprio pensamento, e
de acordo com a figura do espírito livre.
Referências Bibliográficas:
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
MULLER-LAUTER, W. A Doutrina da vontade de poder. São Paulo: Annablume, 1997.
Referências Bibliográficas:
Referências Bibliográficas:
SCRIBANO, Emanuele. Guia para leitura das Meditações metafísicas de Descartes. São Paulo:
Loyola, 2007.
continuamente revivida o conflito não pode, ou não deve, ser neutralizado pois é
justamente aí que se dá a liberdade na vida política segundo Maquiavel.
Referências Bibliográficas:
port. p. 463). Nesse sentido, mostrar-se-á que a liberdade consiste em agir, não segundo as
leis da causalidade natural, mas segundo as leis da causalidade inteligível com absoluta
independência de toda e qualquer influência sensível, o que constitui a base de toda a
filosofia prática de Kant.
que ficou conhecido historicamente como Risorgimento. Gramsci entendia que a unificação
política da Itália não era suficiente para dar uma identidade ao povo italiano que não
possuía uma cultura homogênea. A linguagem se apresentava como principal elemento
desagregador da cultura, um problema a ser superado.
Nos QC Gramsci fez a distinção entre os conceitos de língua e linguagem. Ele
concebia a língua como o modo de falar e se expressar de um determinado grupo social.
Isto é, Gramsci considerava a língua um produto social a expressão cultural de um povo
determinado (QC 6, § 71). A linguagem, por sua vez, era a expressão mais ampla da cultura,
caracterizando-se como a própria filosofia, como expressou Gramsci no QC 10-II, § 44 ao
afirmar que a linguagem é uma multiplicidade de fatos mais ou menos coerentes,
organizados de maneira orgânica e coordenada.
A indicação de que a linguagem remete aos fatos foi retomada por Gramsci no
QC 11 § 12, mediante a afirmação de que a linguagem contém em si os elementos de uma
concepção de mundo e se caracterizar como um conjunto de noções e conceitos
determinados (QC 11, § 12).
Demonstrando que todos são filósofos, a seu modo, que não existem homem
normal e sadio intelectualmente que não participe de uma determinada concepção de
mundo, ainda que inconscientemente, porque toda linguagem é uma filosofia, passe ao
segundo momento, ao momento da crítica e da consciência (QC 8, § 204, p. 1063).
Gramsci considerava que o domínio da linguagem estava diretamente atrelado a
capacidade de filosofar e fazer a crítica à concepção de mundo hegemônica. Do mesmo
modo, afirmava que era possível estabelecer a complexidade da concepção de mundo de
um individuo a julgar pela complexidade de sua linguagem (QC 11, § 12). A relação entre a
linguagem e a concepção de mundo, apresentada por Gramsci, conferia a linguagem uma
historicidade, por meio da qual ela se desenvolve e representa a realidade.
(...) Toda língua é uma concepção de mundo integral, e não só uma veste que sirva
indiferentemente como forma a qualquer conteúdo. Mas, e então? Não significaria isto que
estavam em luta duas concepções de mundo: uma, burguês-popular que se expressava no
vulgar, e outra, aristocrático-feudal que se expressava em latim e se referia à antiguidade
romana? E que esta luta, e não a serena criação de uma cultura triunfante, é que caracteriza
o renascimento? (QC 5, § 131, p. 645).
Os Cadernos do Cárcere foram citados a partir da Edição Italiana organizada por Valentino
Gerratana em 1975, indicada PELA abreviatura QC, o numero do caderno, do parágrafo e
da página da edição consultada. EX: QC 1, § 1, p. 1.
Referências Bibliográficas:
1Na poesia encontramos uma forma mais direta: ―são caboclos querendo ser ingleses‖ (Cazuza, Burguesia).
2 Esta avaliação se fundamenta na observação do comportamento social da população brasileira (quiçá
americana), desde as grades curriculares de cursos acadêmicos até constatações fáticas como as
exemplificadas, que são visíveis e notórias a qualquer observador, sem muito – ou nenhum – esforço teórico.
Vejamos o tanto que as escolas ensinam sobre a Revolução Francesa e o tanto que ensinam sobre a
Revolução Zapatista. Vejamos o tanto que conhecemos de religião católica e o tanto que conhecemos da
religião xamã. Vejamos o tanto que sabemos de Aquiles (personagem grego) e o tanto que sabemos de
Maculelê ou Nhanderú (personagens indígenas, latino-americanos). A fonte para o parágrafo de afirmações é
o conhecimento geral, senão, a observação social.
3 É preciso frisar aqui que a pergunta ―o que é o ente?‖, que deve perpassar a reflexão filosófica como um
todo, segundo muitos autores, deverá ser respondida por Descartes no âmbito de sua metafísica, mas não
como análoga à resposta da tradição e sim como questão fundamental de sua teoria do conhecimento como
fica implícito, principalmente, no transcurso da investigação de suas Meditações Metafísicas.
4 É claro que devemos levar em consideração afirmações como as de Husserl que considera as Meditações
Metafísicas como tendo um sentido único dentro da história da filosofia pelo fato de sua volta radical ao
puro ego cogito. (Conf. HUSSERL, 1996: 40). Isto, no entanto, não encerra a questão; o sujeito que emerge
da reflexão cartesiana apresenta ainda, implícita em sua natureza, a noção de substância, por exemplo.
de tentar entender, primeiramente, sua natureza a partir dessa consciência pura que parece
ser o centro para onde gravitam o conhecimento e o ―mundo‖ e, em segundo lugar, tentar
apontar, no que concerne à noção de subjetividade, em que consiste sua originalidade
baseada na noção de consciência de si.
Referências Bibliográficas:
transformação e sua salvaguarda. Maquiavel não pretende oferecer receitas prontas para o
sucesso, e sim convidar o ator político a recriar, segundo as circunstâncias concretas em
que a ação se desenvolve, as condições de êxito desta. Por outro lado, porém, entende que
a leitura dos acontecimentos passados e presentes será capaz de fornecer referências para
uma ação segura, desde que o ator político saiba adaptar sua personalidade à ―qualidade dos
tempos‖.
Sugeriria com isso que circunstâncias semelhantes se reproduzem na história
tornando possível a imitação do modelo de ação política? O que levanta este problema é
uma situação antitética: por um lado, a afirmação da possibilidade da imitação fundada
sobre a identidade dos tempos e, por outro, a relativização desta identidade. Pensar a
imitação sob o prisma da invenção ou da criação de modos de ação, situa a ação política na
esfera da verità effettuale. Ao estabelecer esta como objetivo, o discurso maquiaveliano
constitui-se numa recusa do modelo de príncipe moral em proveito de outro capaz de dizer
―coisa útil a quem a entende‖. Com isso, Maquiavel declara sua ruptura com uma tradição à
qual acusa de ocupar-se de governos imaginários e, consequentemente, de coisas inúteis
proclamando-se ele próprio o descobridor da verdade política. Em que consiste esta
verdade? Nas palavras de Maquiavel, a verdade política de uma ação pode ser captada
unicamente por meio de seus efeitos (isto é, a verdade é effettuale) e não pelas motivações:
quer dizer, ela se situa nas consequências, nas repercussões - sejam elas afortunadas ou
infelizes - no sistema complexo das condições a partir das quais a ação se desenrola.
A concepção de verità effettuale proposta por Maquiavel permite pensar que a realidade
se esgota completamente na aparência, não porque somente trapaceando o príncipe seria
capaz de satisfazer suas ambições, e sim porque é o único modo de aceder ao vivere politico.
Em outras palavras, a vida política se desenvolve na esfera da aparência: a verdade da
política é possível de ser captada tão somente pelos efeitos (resultados ou consequências)
das ações. É nisto que consiste a conhecida ruptura maquiaveliana com a ética e a
instituição da política como um domínio autônomo, pensado a partir dele mesmo.
Josué do Nascimento
Unioeste – 1º ano de filosofia noturno
josuemensagem@hotmail.com
(...) aquele que quiser ser feliz deve considerar três pontos: em
primeiro lugar, o que são as coisas em si mesmas? Depois, que
disposições devemos ter em relação a elas? Finalmente, o que nos
resultará dessas disposições? As coisas não têm diferença entre si,
e são igualmente incertas e indiscerníveis. Por isso, nossas
sensações e nossos juízos não nos ensinam o verdadeiro nem o
falso. Por conseguinte não devemos nos fiar nos sentidos nem na
razão, mas permanecer sem opinião, sem nos inclinarmos para um
lado ou para o outro, impassíveis. Qualquer que seja a coisa de
que se trata, diremos que não se deve mais afirmá-la do que negá-
Ao analisamos esses seis pontos – as três questões levantadas por Pirro e suas
respectivas respostas –, tendo como pano de fundo o contexto no qual são enunciados, o
período helênico, temos aqui reunidos, de um lado, o que haveria de se tornar o mais
convencional no discurso filosófico do período, mas, de outro, nos deparamos com alguns
elementos que nos parecem sem precedentes na história da Filosofia. O pensamento de
Pirro desdobra-se explicitamente em função do ético: é àquele que quer ser feliz que seu
discurso se dirige. Conduzir aquele que busca a felicidade, à compreensão de que, para
alcançá-la, se faz necessário um tipo de conhecimento da ―natureza das coisas‖, de si
mesmo, de sua ―medida‖ e conveniência, de seu lugar na ordem geral das coisas, para
poder, então, saber como dispor-se perante a elas, também é algo que dita a rotina do
discurso moral helênico. O que faz de Pirro uma voz destoante desse contexto, o que há de
inédito em seu pensamento, não é, pois, propriamente a estrutura de seu discurso (sua
forma), ou as questões que ele enuncia, mas, como veremos a seguir, as respostas por ele
elaboradas para estas questões.
O que são as coisas em si mesmas? Para Pirro, o que há para saber acerca da natureza
das coisas é o fato de não haver natureza alguma, bem entendido, nenhuma ―ideia‖,
―essência‖ ou ―substância‖ (mesmo material), que permaneça como ponto de estabilidade.
E, neste sentido, não há ser. Mas apenas aparência.
O conhecimento quer o ser, a essência, a forma... Mas se não há ser, essência, forma, ou
qualquer outro termo que represente uma dimensão estável e, mais do estável, eterna do
real; o que há, pois, para se conhecer (cientificamente)? A esse respeito, lembremos a
definição do objeto do conhecimento científico apresentada por Aristóteles, no livro Ética à
Nicômaco:
que todos os atos humanos são determinados pelos hábitos e pelas convenções, pois cada
coisa não é mais isso que aquilo.
Referências Bibliográficas:
Schelling na oitava carta das Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (1795)
desenvolve sua concepção de intuição intelectual partindo da noção de intuição de si
mesmo, tal como ensinara Fichte em sua Doutrina da Ciência de 1794. Ao fazer isso, afirma
que a intuição de si mesmo se apresenta como base da intuição intelectual do Absoluto.
Intuição intelectual do Absoluto significa aqui os dois modos de intuição, tanto a intuição
de si mesmo, quanto a assim chamada intuição objetivada – termo utilizado por Schelling
para referir-se à concepção espinosana da intuição intelectual da substância ou de Deus.
Contudo, a intuição em si mesmo se apresenta como tendo primazia em relação à
intuição objetivada pelo fato de constituir-se como o ponto de partida da passagem do
finito ao infinito, na medida em que, possuí a mesma estrutura desta, ao passo que a
intuição objetivada se mostra como desdobramento da intuição de si mesmo, sem elevar-se
à consciência disso.
Ao afirmar a intuição de si mesmo como base da intuição intelectual do
Absoluto5, Schelling apresenta uma crítica à filosofia de Espinosa pelo fato deste ter
entendido a intuição intelectual enquanto intuição objetivada. Não obstante, ao fazer tal
crítica alega que mesmo objetivando a intuição intelectual, Espinosa teve que pressupor a
intuição de si mesmo, na medida em que a intuição objetivada se desdobra da primeira da
própria intuição de si mesmo. Assim, sobre a intuição intelectual, entendida desse modo,
Schelling nos diz que:
5 Este trabalho de constituí em duas partes distintas, mas respectivamente coordenadas. Na primeira, tratou-
se da intuição de si mesmo como base da intuição intelectual do absoluto. Na segunda parte, tal como
exposta aqui, trata-se do problema da intuição objetivada, mas especificamente, da crítica de Schelling à
Espinosa quanto ao procedimento da intuição intelectual enquanto intuição objetivada.
―Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser objetos para nós
mesmos e quando, retirado a si mesmo, o eu que intuí é idêntico ao intuído. Nesse
momento da intuição, desaparecem para nós tempo e duração: não somos nós que estamos
perdidos no tempo, mas o tempo – ou antes, não ele, mas a pura eternidade absoluta – que
está em nós. Não somos nós que estamos perdidos na intuição do mundo objetivo, mas é
este que está perdido em nossa intuição‖ (SCHELLING, 198, 1973).
Assim, há uma intuição de um eu (Selbst) que intuí a si mesmo e ao fazer isso
deve-se considerar que o Absoluto não é um mero objeto, ―ele se encontra em nós e é
acessível, por esse motivo, apenas por meio da contemplação de si‖ (PUENTE, 1997, P.
30). Quando há uma autointuição há a unificação do eu e do não-eu. Deste modo, a
posição schellinguiana de intuição intelectual afirma que o eu que intui torna-se, de modo
imediato, idêntico ao absoluto e, por conseguinte, esta se introduz quando deixamos de ser
objetos para nós mesmo, na pura eternidade absoluta. Neste momento da intuição, o
mundo objetivo se perde nessa intuição. Com efeito, segundo Schelling:
Foi essa intuição de si mesmo que Espinosa objetivou. Enquanto intuía em si o
intelectual, o Absoluto não era mais, para ele, um objeto. Isso era uma experiência que
permitia duas interpretações: ou ele se havia tornado idêntico ao Absoluto, ou o Absoluto a
ele. Neste último caso a intuição intelectual era intuição de si mesmo; no primeiro, intuição
de um objeto absoluto. Espinosa preferiu esta última. Acreditou que ele mesmo era
idêntico ao objeto absoluto e que estava perdido em sua infinitude (SCHELLING, 1973, p.
198).
No entanto, Espinosa se iludia ao acreditar nisso, pois na intuição intelectual do
Absoluto, é o mundo objetivo, isto é, o objeto que se dissolve na intuição, não
inversamente. Não era ele, Espinosa, que desaparecia nessa intuição. Dessa forma, deve-se
considerar que ―o sujeito, como tal, não pode aniquilar-se a si mesmo; já que, para poder se
autoaniquilar, ele teria de sobreviver à sua própria aniquilação‖ (PUENTE, 1997, p. 31).
Ressalta-se assim, a diferença da filosofia crítica que poderia alegar à filosofia dogmática6:
―Não te forces por te aproximar da Divindade, mas sim deixa que ela te conduza ao
Infinito7―.
6 O objetivo das Cartas é uma tentativa de mediação entre o criticismo (tendo como expoente Fichte) e o
dogmatismo (apresentado por Espinosa). Em carta a Hegel de 4 de fevereiro de 1795, Schelling alega que ―a
diferença essencial entre a filosofia crítica e a filosofia dogmática parece residir em que a primeira tem como
ponto de partida o eu absoluto que ainda não é condicionado por nenhum objeto, a segunda parte do objeto
absoluto ou não-eu‖.
7 Schelling apud Puente, 1997, p. 31.
intuição, se não de sua intuição de si mesmo‖? (SCHELLING, 1973, p. 198), pois esta está
pressuposta na objetivação e, tendo a mesma estrutura da primeira por se desdobrar dela,
mesmo Espinosa objetivando tal intuição, fazia uso da intuição de si mesmo, sem o saber,
para produzir conhecimento da Substância infinita. Logo, a base da intuição intelectual do
Absoluto é a intuição de si mesmo.
Referências bibliográficas:
perecer inutilmente nas mãos do apropriador. 3ª) Para Macpherson (1979, p. 213), a
terceira limitação seria a quantidade que cada pessoa pode obter mediante seu trabalho.
Essas limitações ao direito de propriedade podem ser transcendidas. A invenção
do dinheiro e o acordo tácito de atribuir-lhe um valor possibilitaram um direito a posses
maiores.
Das limitações, a do desperdício pareceu obviamente transcendida pela criação do
dinheiro. O desejo de ter mais do que o necessário ao consumo era um desejo de acumular
terra e dinheiro como capital.
Quanto à limitação da suficiência, não é absoluta, mas sim derivada do direito
natural de cada homem à subsistência. Perceba-se que Locke fala em subsistência e não em
direito à vida. A Constituição Federal do Brasil fala em direito à vida e, para os juristas,
trata-se de um direito à vida digna. Mas Locke fala em subsistência ou autoconservação.
O direito à subsistência ou autopreservação só pode ser atendido de duas
maneiras. Uma é determinar que todos tenham acesso à apropriação da terra, enquanto
existir muita terra não apropriada. Mas a outra maneira, viável quando já não houver terras
livres, é garantir aos despossuídos o direito de trabalhar para os proprietários.
O fim principal para a união dos homens em sociedade política e submissão a um
governo é a preservação da sua propriedade. Às vezes Locke refere-se a propriedade em
sentido lato (vida, liberdade e bens), mas às vezes apenas a bens e fortuna. Dessa
ambiguidade resulta que os despossuídos podem ou não estar dentro da sociedade civil.
Para Macpherson (1979, p. 260), todos são membros da sociedade civil, tendo ou
não propriedade, e nela estão incluídos como interessados na preservação das próprias
vidas e liberdades. Ao mesmo tempo, somente os proprietários podem ter plena cidadania,
pois apenas eles têm interesse na preservação da propriedade e apenas eles são capazes de
vida racional. A ambiguidade com relação a quem é membro da sociedade civil permite que
Locke considere que todos são membros para efeito de serem governados, mas apenas os
proprietários é que devem governar. Vale lembrar que, na Constituição do Império do
Brasil, o direito de ser votado era baseado na propriedade e na renda.
Nenhuma sociedade civil pode existir sem ter os meios necessários para preservar
a propriedade e, para tanto, punir os culpados de delitos contra a propriedade. A sociedade
política implica a renúncia ao poder natural de punir de acordo com o juízo particular de
cada um.
O fim do governo é o bem da humanidade, mas se o povo estiver exposto à
vontade ilimitada da tirania, esse é o exercício do poder visando ao interesse próprio do
governante e não ao bem comum. O Estado foi criado para garantir o direito à propriedade
e, quando deixa de cumprir esse fim ao qual foi destinado, torna-se ilegal e degenera em
tirania. Com a violação do direito à propriedade, Locke reconhece ao povo o direito de
resistência, mediante o recurso à força para a deposição do governo rebelde
Referências Bibliográficas:
O que é a mente?
O que são possibilidades?
O que é a vida?
O que é a morte?
O que é o valor?
Poderíamos dizer: ―- Bem, só porque meus alunos me fazem perguntas que eu
não sei responder isto não os tornam filósofos‖. Com certeza eles não sabem que estão
formulando perguntas metafísicas!
Podem não saber, mas não é isso o que importa. O que se tem que levar em conta
é que as crianças, com sua necessidade de totalidade e globalidade, juntamente com sua
ingenuidade e falta de informação, tentam alcançar respostas completas. Para elas, é tudo
ou nada; não querem saber apenas como isso ou aquilo começou, mas como tudo
começou. Não apenas o que é melhor ou pior, mas o que é ser perfeito. (LIPMAN, 1994,
p.63)
A criança tem esta admiração do mundo, este espanto com as coisas que estão ao
seu redor. Uma das coisas mais maravilhosas da filosofia é que as pessoas de qualquer idade
podem refletir sobre os temas filosóficos e discuti-los de um modo proveitoso. As crianças
ficam fascinadas quando os adultos com noções como amizade ou imparcialidade, e tanto
as crianças quanto os adultos podem reconhecer que ninguém ainda disse a ultima palavra
sobre esses temas. O fato de adultos e crianças, conjuntamente, explorarem as
possibilidades filosóficas, é uma das consequências mais agradáveis e estimulantes da
filosofia na escola de 1° grau.
Na perspectiva de Lipman o ato educacional encerra esta energia humana, capaz
de manter e estimular a capacidade natural de espanto da criança para que esta sinta a
necessidade e o desejo de continuar a se espantar e perguntar ao todo: por quê?
E, mais importante: Lipman acusa o sistema educacional de cultivar a síndrome
do avestruz.
Um visitante de outro planeta cujos habitantes fossem absolutamente racionais
ficaria muito espantado com nosso sistema educacional. Não pelo fato de ignorarmos a
ineficiência do sistema, mas sim pelo método com que combatemos essa ineficiência.
Procuramos, sistematicamente, remedia-lo em vez de reformá-lo para remedia-lo. Quando
o conserto se mostra ineficiente, surgem abordagens compensatórias para remedia-lo.
A origem fundamental do fracasso do sistema em efetivamente distribuir
educação – a imperfeição do seu modelo básico- continua sem serem examinadas, e
enormes quantias vão sendo investidas em inúteis tentativas de como pensar tanto a
ineficiência do sistema quanto a dos esforços compensatórios e assim sucessivamente.
(Lipman, Sharp e Oscanyan, 1980, A Filosofia e as Crianças p.19).
Para Lipman, as crianças têm as mesmas características dos adultos, mas são
dotadas do pensar bem, ele acredita que uma criança é capaz de analisar ou compreender
um elemento filosófico quanto um adulto, ele afirma também que no programa existe
somente uma diferença entre a criança e o adulto, o programa não pretende modificar o
pensamento infantil, mas explorá-lo naquilo que ele é. Na visão do programa lipmaniano a
criança é um conjunto das aprendizagens essenciais ao desenvolvimento individual e a uma
integração social de qualidade. Portanto, a filosofia graças à reflexão comum, ajuda o jovem
a compreender sua educação e a sua realidade existêncial. Neste sentido á uma educação do
julgamento e do agir que torna ela uma educação moral.
Referencias Bibliográficas:
LIPMAN, Matthew A filosofia na sala de aula/ Matthew Lipman. Ann Margaret Sharp.
Frderick S. Oscanyan: tradução Ana Luiza Fernandes Falcone – São Paulo: nova
Alexandria. 1994.
DANIEL, Marie. France A Filosofia e as Crianças/ Marie – France Daniel; tradução de
Luciano Vieira machado; prefaciação de Matthew Lipman. São Paulo, SP – Nova
Alexandria, 2000.
Referências bibliográficas:
COX, Gary. Sartre and fiction. London; New York: Continuum, 2009.
NOUDELMANN, François. Huis clos et Les mouches de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard,
1993.
O‘DONOHOE, Benedict. Sartre‟s theatre: acts for life. Modern French Identities, 34. Bern:
Peter Lang, 2005.
SARTRE, Jean-Paul. A prostituta respeitosa. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus,
1992.
___________. As moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005
___________. Entre quatro paredes. Trad. Alcione Araújo e Pedro Hussak. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
___________. La responsabilité de lʼécrivain. Lagrasse: Verdier, 1998
___________. L‟être et le néant. Essai d‘ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard,
1943.
___________. Qu´est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 2008.
___________. Un théâtre de situations. Paris : Gallimard, 1973.
8―Por razón de esta conexión general de la libertad política con la libertad de pensamiento, la filosofía sólo
aparece en la historia allí donde y en la medida en que se crean constituciones libres (…)‖
9 ―(...) cuando un pueblo quiere ser libre, lo que hace es supeditar sus apetitos a la ley general, mientras que
antes lo por él querido era solamente algo particular.‖.
10 ―(...) aquí la voluntad no se ha liberado todavía de lo finito, sólo se puede concebir negativamente: y este
sentimiento de la negación, de que algo no podrá hacer frente a lo que se opone, es precisamente el medo
(…)‖.
11 ―(...) en el Oriente sólo es libre un individuo, el déspota; en Grecia, son libres algunos individuos; en el
Referências Bibliográficas:
O presente artigo tem como objetivo reunir alguns elementos que nos possibilite
entender como Rousseau resolve o problema da ilegitimidade do poder político, através
dos princípios de liberdade e igualdade presentes no modelo de ordenamento político
apresentado por ele na obra Do contrato social.
As questões da liberdade e da igualdade sempre estiveram presentes nas
investigações de Rousseau, na obra do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens, onde ele descreve a história hipotética da humanidade para demonstrar
como os homens saíram do estado de natureza para ingressaram na sociedade civil,
podemos encontrar uma série de argumentos que mostram que a liberdade e a igualdade
são princípios que fazem parte da vida nesse no estado. Princípios esses que foram
desaparecendo à medida que os homens foram se afastando de sua condição primitiva e
tornando dependentes uns dos outros.
A desigualdade existente entre os homens no momento da instituição da sociedade
civil fez com que o pacto social, proposto como alternativa de instituir ―regulamentos de
justiça e paz‖ (ROUSSEAU, 1989. P. 99), não cumprisse a sua função. Os homens ao
pactuarem em condições de desigualdades ao invés de resolver os problemas existentes na
sociedade, ―destruíram de maneira irremediável a liberdade natural, fixaram para sempre a
lei da propriedade e da desigualdade (...) sujeitaram daí em diante todo o gênero humano ao
trabalho, à servidão e à miséria (ROUSSEAU, 1989. P. 100)‖.
Para Rousseau a condição humana de miséria e servidão vivida pela maioria das
pessoas só tende a piorar se não forem mudado os modelos de ordenamento existentes até
o Século XVIII. A desigualdade política ou moral observada nas sociedades é algo
maléfico, ela priva os homens do exercício da liberdade. Sendo assim, se não for criado um
modelo de ordenamento legítimo e seguro que garanta o exercício da liberdade e a
igualdade entre os homens os poderes políticos chegarão ao mais alto grau de degeneração
que é a tirania. Para evitar que as coisas cheguem a esse ponto e por acreditar que existe um
caminho que pode reconduzir os homens a condição de liberdade, Rousseau propõe na
obra Do contrato social um pacto que ―parte de um consentimento unânime‖, onde ocorre
―a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos à comunidade toda‖
(ROUSSEAU, 1987. p 32). O grande diferencial desse modelo de ordenamento dos
existentes, é que nele não existe um superior comum porque cada um ―põe em comum sua
pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral‖ (ROUSSEAU, 1987. p.
33).
Segundo Rousseau, esse deve ser o caminho para recobrar a liberdade perdida nos
descaminhos tomados pela sociedade, um tipo de ordenamento político onde os indivíduos
livremente limitam sua liberdade natural e passam a obedecer á vontade geral da sociedade
a fim de proteger sua pessoa e os seus bens. A ideia é estar submetido às leis expressa pela
vontade geral e não a nenhum particular. Os indivíduos após esse pacto se encontram
comprometidos em uma dupla relação com o corpo coletivo. Enquanto membro do
soberano que cria as leis e enquanto súdito que obedece às leis que ele mesmo ajudou a
criar.
Um modelo de poder político assim constituído resulta em uma soberania:
absoluta, inalienável, indivisível e infalível. Quando qualquer uma dessas características é
ferida a soberania deixa de ser da vontade geral e o poder legitimamente constituído se
torna ameaçado, e, se nenhuma medida for tomada corre o risco desse poder se degenerar,
por isso, Rousseau depois de estabelecer os princípios do direito político segue suas
análises mostrando uma série de cuidados que devem ser tomados para que o poder
político legitimamente constituído não se degenere em poder ilegítimo.
Referências Bibliográficas:
_________. Do contrata social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4ª. Ed. São Paulo:
Nova Cultural, 1987. (Coleção os Pensadores).
Maurício Smiderle
Unioeste/PET Filosofia
mauricio-smiderle@hotmail.com
Wilson Antonio Frezzatti Junior
atual possui as suas vantagens. Com isto, crescerá o sentimento de dever e culpa conforme
cresce as vantagens da comunidade, encerrando por divinizar os antepassados. Haverá um
sentimento de culpa e dever para com os antigos por causa da impossibilidade de efetuar o
pagamento da dívida ou, até mesmo, de realizar o castigo. Desta forma, o sentimento de
culpa irá penetrar no indivíduo no qual a má consciência já se encontra presente,
provocando um agravamento na situação dessa doença.
Para o filósofo alemão, a má consciência surgiu quando uma população de
conquistadores e senhores dominaram seres nômades. Os senhores expressavam os seus
impulsos básicos nos fracos, fazendo com que estes reprimissem os instintos, criando a má
consciência. Esta não foi criada nos conquistadores, mas foi preciso deles para que ela
surgisse nos demais indivíduos. Com a má consciência, que foi gerada pela sociedade, o
homem passou a torturar e violentar a si mesmo, pois não era possível realizar isto
exteriormente. A má consciência se caracteriza por realizar uma inversão na direção da
expressão impulsional: antes os instintos eram descarregados para fora, agora os instintos
possuem como alvo o próprio indivíduo. Deste modo, a má consciência é ―a profunda
doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que
viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito
da sociedade e da paz‖ (NIETZSCHE, 2009, p.67). O sentimento de culpa apenas piorou a
gravidade dessa doença, porque o sentimento de estar em débito foi utilizado pelo homem
como justificativa para violentar a si mesmo. ―O que revolta no sofrimento não é o
sofrimento em si, mas a sua falta de sentido‖ (Idem, p.53). Com a má consciência e o
sentimento de culpa, o ser humano tortura a si pelo prazer de causar o sofrer.
A má consciência, segundo o filósofo, se mostra extremamente necessária para a
existência da civilização (Civilisation). Esta não possui como significado o melhoramento do
animal homem, mas o seu enfraquecimento. ―Nietzsche, portanto, considera a civilização
como um esquema que distorce e reprime as capacidades propriamente humanas‖
(FREZZATTI, 2006, p. 91). Ela amansa e doma o indivíduo, procurando transformar o ser
humano em um ser doente. A civilização é vista como o alastramento da doença da má
consciência, convertendo todos os indivíduos em seres fisiologicamente decadentes.
Assim, segundo Nietzsche, a interiorização dos instintos se mostra necessária para
o processo civilizatório. Com a má consciência, o ser humano consegue obter as ―virtudes‖
para a vida na civilização. Isto não representou uma melhora da humanidade, mas
transformou o animal homem em um animal doente.
Referências Bibliográficas:
instante trágico que segundo Nietzsche passa por meio de uma esfera antropológica, como
vontade de superação ética do próprio destino da existência, fazendo com que o Sobre-
Homem (Übermensch), afirme integralmente a vida em sua máxima e corpórea-vital
expressividade artística. Pois, para Nietzsche é somente a arte que em última instância,
confere pleno significado incondicional a própria vida. Em suma, partir da cultura grega
artística e filosófica significa recomeçar o caminho experiencial (empeiria), de aceitação do
destino, em seu aspecto trágico, porém, normal e alegremente a existência humana, cuja
vontade de potência reforça no Sobre-Homem, a superação do sofrimento, como
possibilidade de crescimento humano, que adquire constantemente, no pensamento trágico
do eterno retorno-do-mesmo, uma hipó-tese, cosmológica-ética, de justificação est-ética da
existência.
As objeções publicadas por Jacobi no posfácio ao seu diálogo David Hume sobre a
crença ou Idealismo e Realismo, de 1787, representa um momento decisivo para a assimilação
histórica do pensamento de Kant. Com suas críticas, Jacobi pretende localizar o ponto
preciso do mal entendido kantiano, bem como o caminho da real concretização do
idealismo transcendental. Segundo ele, Kant se afasta do espírito de seu sistema quando
admite que objetos afetam a sensibilidade humana. Isso porque admite que espaço e
tempo, com tudo o que contêm, em nada dizem respeito às coisas mesmas e, com isso,
limita todo conhecimento humano à experiência subjetiva. Contudo, pressupondo uma
afecção sensível, Kant implicitamente aceitaria coisas em si como causa das impressões
recebidas, o que seria contrario à sua própria filosofia. É essa a razão pela qual Jacobi
afirma que Kant deveria deixar de lado a admissão de um objeto que afeta a sensibilidade e,
sendo coerente, reduzir inteiramente a natureza ao sujeito. A realização do idealismo
transcendental seria, segundo ele, a assunção de seu inevitável egoísmo especulativo.
Essa compreensão que Jacobi faz da filosofia crítica alcança grande repercussão na
Alemanha de fins do século XVIII e início do XIX, exercendo influência direta sobre o
desenvolvimento de perspectivas que, ainda que profundamente divergentes, se encontram
todas estreitamente ligadas a interpretações da filosofia de Kant, como por exemplo, o
pensamento de Hegel e o de Schopenhauer. O célebre ―dilema de Jacobi‖, como ficou
tradicionalmente conhecido, possui tal importância no devir histórico das diversas
compreensões do pensamento kantiano que ainda hoje é encarado muitas vezes como um
obstáculo e um desafio necessários de se ultrapassar e combater, se se quer estabelecer a
coerência interna da filosofia crítica.
Por isso, pretendemos aqui investigar os fundamentos dessas objeções a partir do
pensamento do próprio Jacobi. Essa tarefa, necessária para a compreensão do estatuto
homem que, querendo se assenhorear de sua própria vida, transforma a natureza num nada
criado por ele próprio. Criticando a Kant, Jacobi pretende restituir-lhe o inevitável egoísmo
especulativo implícito na presunção de sua época. Apenas no coração de um homem vazio
pode a natureza toda converter-se numa forma também vazia e o idealismo transcendental
apenas reflete a morte da crença reveladora em favor de um saber sem objeto.
Referências Bibliográficas:
Ricardo Niquetti
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/CNPq
ricardoniquetti@hotmail.com
Temos cada vez mais nos afastado das teorias políticas clássicas, não porque elas se
tornaram obsoletas, mas porque elas não são as únicas maneiras de se viver, pensar em
política. Deste modo, a proposta do trabalho não é cartografar os inúmeros e criativos
modos singulares de se experimentar política, nem propor um reformismo ou engajamento
nas instituições que quiçá se proclamam representantes sociais.
O estudo pretende-se como dispositivo que insiste na afirmação de um pensamento
político outro, não no sentido dialético formal (um/outro), mas como promotor de uma
proliferação intensa de bons encontros ao mesmo tempo em que assume o ponto de vista a
favor de uma singular ética vitalista. É inegável que esta pretensa discussão salienta a
importância do exercício do pensamento político, porém reivindica a porosidade de outras
vozes nesse campo do conhecimento.
Deleuze propõe, nesse sentido, uma filosofia política, que ele chamará de menor, que
tem sua marca na inseparabilidade entre filosofia, política e produção de vida. Essa
inseparabilidade que trata da integralidade da vida humana pode ser vista em toda sua obra,
entretanto nos concentraremos em três conceitos que a meu ver são fundamentais para
pensarmos os modos de se estar nos verbos da vida, a saber, micropolítica, criação e n-1,
ideias essas que procuraremos esclarecer nas suas conectividades e em seus afastamentos.
Assim, por exemplo, no ensaio que dedica à obra de Carmelo Bene ―Um manifesto
de menos‖, Deleuze estabelece duas operações opostas que nos ajudam a entrar em seu
intenso pensamento político filosófico:
deleuzeano, não é uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação,
oriunda da experimentação, que não proclama uma verdade universal, apenas estratégias
singulares não totalizáveis. E mais, constroem desta forma políticas a espreita das alianças,
das suas conectividades, complicações, vizinhanças, afastamentos...
Assim a pergunta recorrente de Lênin ―O que fazer?‖, ganha em Deleuze uma dimensão
nova, pois o que pulsa na experiência intensiva dos encontros implica que não há solução política
que não passe pela criação. Criar em política, na esteira da experimentação e do devir, é lutar a favor
das micropotências inovadoras do pensar, essas que se agitam em certos entretempos da filosofia,
das artes, das ciências e, de outro lado, potencializar linhas de fuga e de resistência que modulam
agenciamentos do desejo como larvas de uma ―cólera contra a época‖, contra o ―intolerável‖ e a
favor da invenção de modos mais suaves de coexistência entre os entes (DELEUZE, 2006, p.7).
O primeiro ato político, para esta filosofia imanente, consiste em desfazer em nós aquilo
pelo que vivemos sob controle, contribuindo para que o afecto político novamente seja possível, e
que desta maneira possamos desdobrar todas as nossas forças em favor de um mundo sempre por
vir, ou seja, não há verbo que não esteja à disposição das subversões de um intenso processo de
minoração e de alianças.
Referencias Bibliográficas:
12Lessa, Renato. Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política/ Renato Lessa – Belo Horizonte:
Editora UFMG (Coleção Origem).
finalmente, ceticismo porque só assim seria possível observar que a configuração (no caso,
Política) do mundo não passa de uma angustiante, porém, revigorante disputa entre mundos
sociais possíveis (metáfora lessa-borgeana).
Partindo de duas premissas epistemológicas acerca do mundo fenomenológico -
como amálgama e confronto de mundos semânticos possíveis e que tem na História o
lugar de reverberação dos conceitos filosóficos enunciados como se fossem de validade
universal -, pretendo analisar filosoficamente o episódio histórico conhecido como
Revolução Americana sob a luz do arsenal conceitual de dois pensadores fundamentais:
Hannah Arendt e David Hume.
A escolha por um evento histórico não é aleatória, pelo contrário. Trata-se, antes,
de uma crença filosoficamente fundamentada: a de que conceitos e assertivas filosóficos só
ganham consistência e movimento quando historicamente exercidos. De outro modo,
exercem uma função muito próxima a da Literatura: serem imaginados enquanto não são
vividos; em suspenso nas prateleiras da biblioteca dos mundos possíveis.
Além disso, episódios históricos onde muitas coisas estão em jogo, tal como
acontece nas revoluções, parecem ser aqueles momentos nos quais a agonia se manifesta da
maneira mais intensa e quando as apostas não podem ser mais adiadas. Momentos em que
não é possível adotar a postura cética de observar de cima da montanha. Momentos nos
quais a História deixa de ser a ―ciência‖ do passado e se apresenta como o tempo de agir
em algum lugar indeterminado entre o passado e o futuro, como bem nos lembra Hannah
Arendt.
O tempo-dilema é quando os homens ordinários se fazem filósofos matando o
inimigo ou escrevendo constituições; quando se veem entre a hesitação da Vida Comum e
a excitação de criar algo novo, ambos os sentimentos fundamentais para que os homens
possam sobreviver na guerra entre mundos. Por vezes, o camponês que decapita o rei é
produtor mais eficaz de novas vivencias ontológicas do que o asceta que apenas quer
descrever.
Partindo da análise que Hannah Arendt faz do conceito de Revolução, primeiro
como desejo de retorno a um ponto de origem (à vida como ela era antes) e depois como a
dolorosa descoberta de que o retorno não é possível, pois agir é produzir algo novo;
primeiro como desejo de imitação e depois como necessidade de invenção, pretendo
sugerir que em nenhum dos dois momentos o homem deixa de ser um animal que crê,
como nos aponta a antropologia humeana. Contudo, mesmo sem deixar de ser um crente,
é nos momentos de tempo-dilema que o homem pode observar o caráter efêmero de
qualquer crença que seja, mas não sem agonia e sem poder abrir mão de apostar. O
homem, animal que tem prazer na previsibilidade da imitação, por vezes tem de inventar.
A agonia fica evidente quando nos fica claro que o mundo em que vivemos é uma
possibilidade. Piora quando nos damos conta de que não se trata apenas de uma
possibilidade, mas de um frágil conjugado de possibilidades e dói ter de escolher. Com isso,
pretendo fazer uma breve apresentação dos revolucionários americanos como que
esmagados entre uma Vida Comum que já não mais podia ser e a necessidade de ter lidar
com a incerteza do vir a ser. Entre David Hume e Hannah Arendt. Entre a agonia e a
aposta.
Rodrigo Wenceslau
(PPGFIL-Unioeste-CAPES)
melville_too@hotmail.com
Prof. Dr. César Augusto Battisti
transcendental? Aonde ele surge? - torna-se palpável-; se o próprio autor também diz que o
sujeito não pode estar no mundo. Se não há valor nos fatos (mundo); o valor, que pode
gerar algo agradável, tem de estar fora do mundo dos fatos, e a decisão ética, pelo valor,
deve alterar algo que não é mundo, deve então segundo o filósofo alterar os limites do
mundo. Assim o mundo se tornará outro mundo, logo o que deve mudar é a visão mundo,
já que mundo mesmo não pode mudar. Mas a pergunta que surge profundamente e como
um eco no vazio dentro do leitor mais atento é: Como faço para ver meu mundo diferente?
Como faço para ter uma visão de mundo feliz e não uma visão de mundo infeliz? A
resposta de Wittgenstein – acreditamos – seria algo como: estudando lógica.
Isto explica em parte porque um livro que trata de lógica e tem na lógica o tema
com a maior parte de texto dedicada poderia ser um livro de ética. A lógica é proposta no
livro como hermenêutica para a felicidade segundo entendemos. Ela fornece o caminho de
reconhecimento, de descoberta do mundo entendido como contingente, que implica fatos
que poderiam ser totalmente diferentes sem mudar a estrutura de mundo. O estudo da
lógica, tomada no modelo tractariano, leva o homem, que lida com os fatos, deseja fatos,
tem frustrada sua vontade e enxerga a infelicidade para um lugar em que pode se colocar
nos limites do mundo e enxergar um mundo diferente, um mundo do feliz. Para mostrar
este ―caminhar‖ pelo livro, este subir a escada, foca-se atenção sobre o conceito de mundo,
que inicia o livro e permanece até próximo do final, sendo entendido como o mais
importante na mudança de visão, já que esta mudança opera-se sobre ele. Um cuidado e
uma dificuldade que este trabalho enfrenta é o aviso do autor de que seu livro não deve ser
entendido como um manual, dificuldade que se pretende superar em favor da coesão no
entendimento da obra.
Referências Bibliográficas:
Pois assim estaria passando do que se é (Clínias não-sábaio) para o não-ser (Clínias sábio),
ocorrendo a morte de Clínias.
Esse argumento, entre muitos outros do diálogo, é considerado sofístico. Iglésias,
nos mostra o que é chamado de ―problema da predicação‖, em que conciliar o predicado
universal com a pluralidade de coisas atribuídas ao sujeito se torna problemático. Mais
especificamente nesse último argumento de Dionisodoro, da passagem do Clínias não sábio
para sábio, está sendo apresentada a dificuldade de apreender uma coisa por meio de suas
mudanças. Na fala dos eristas, transparece que a predicação de algo é sempre essencial.
Destarte, se há a passagem de Clínias não sábio para sábio, o mesmo perde o que faz com
que ele seja o que é.
Durante o diálogo Eutidemo, inúmeros outros argumentos sofísticos são
apresentados. Ao que parece, o que caracteriza a erística é o uso desses argumentos para
vencer qualquer debate. Todavia, sempre que um erista está em contradição, o outro vem
em cobertura e defesa para salvaguardar aquele que está a perder o debate. Dialogo, para a
erística, é sempre uma luta entre opostos em busca de vitória, mesmo que o conteúdo da
conversa não tenha nenhuma conexão com o que há no kósmos. Esse caráter de dupla
defesa da erística permite que comentadores como Claudia Mársico e Hernán Inverso,
comparem os irmãos erísticos com a Hidra e o Caranguejo do mito de Héracles. A erística
tem uma forma característica monstruosa (como a da Hidra e do Caranguejo), porque visa
apenas a vitória discursiva.
Referências Bibliográficas:
PLATÓN. Eutidemo. Trad. Claudia Mársico e Hernán Inverso. 1ª Ed. Buenos Aires: Losda,
2012.
organismo afetado pela doença e pela dor, por constituição, isto é, por fundamento
fisiológico, possuir a grande saúde. Ela é a capacidade de aceitação da própria condição e do
modo que se interage com o mundo; em outras palavras, a aceitação da efetividade, do
―vir-a-ser‖. Aplica-se, assim, o critério da vida para avaliar as expressões fisiológicas: a
filosofia de Nietzsche deve afirmar a vida em oposição à tradição filosófica. A filosofia
nietzschiana é expressão de uma vivência saudável e afirmativa.
A perspectiva da filosofia enquanto vivência não é exclusiva do período em que
Nietzsche desenvolve a doutrina da vontade de potência. Em sua produção filosófica
inicial, a vivência inscreve-se em outro contexto, na condição trágica da existência. Em O
nascimento da tragédia (1871), Nietzsche afirma que a fonte da Tragédia como obra artística
provém de dois impulsos cósmicos e artísticos diferentes em essência e metas: o impulso
apolíneo e o impulso dionisíaco. O espectador trágico vivencia experiências que propiciam
uma sabedoria sobre sua condição no mundo por meio desses impulsos. O impulso
apolíneo (o discurso e o drama, o mito trágico) transfigura por meio do principium
individuationis e promove a redenção do pessimismo através da aparência. O impulso
dionisíaco (a música dissonante do coro) rompe a ilusão da individuação e abre caminho
para o conhecimento imediato do fluxo ininterrupto de criação e destruição de formas. O
mito trágico fala através de símiles, de representações, sobre o conhecimento dionisíaco: é a
transposição da sabedoria dionisíaca (a vida eterna da totalidade não é tocada pelo
aniquilamento do indivíduo) para a linguagem das imagens. A figuração da sabedoria
dionisíaca realizada pelo mito trágico através dos meios artísticos apolíneos leva ao limite o
mundo da aparência, o que provoca a auto-negação e a busca das coisas verdadeiras: o
eterno movimento do Uno-Primordial. Enquanto arte, o mito trágico transfigura o mundo
fenomênico de sofrimento no sentimento de que mesmo o feio e o desarmônico são um
jogo artístico que o Uno-Primordial joga consigo mesmo. Em outras palavras, nessa
transfiguração atinge-se o objetivo máximo da metafísica da arte de Nietzsche: a existência
e o mundo são justificados apenas como fenômeno estético.
ARTIGOS COMPLETOS*
* A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores.
O risco que corremos diante de tamanhos inventos resultados do mau uso das
tecnologias percebidos na atualidade são assustadores. Criamos meios mais rápidos e
eficientes para produzir, mas que também se tornam mais eficientes para destruir a
natureza como, por exemplo, bombas atômicas, transgênicos, mecanismos de
desmatamento enfim, estruturas que são prejudicais para o desenvolvimento natural do
meio em que vivemos. A preocupação com a natureza figura, por isto, na obra de Jonas,
como um dos termos chaves na compreensão do panorama ético contemporâneo, no qual
a tecnologia muniu o homem de uma capacidade de intervenção e destruição sem igual a
ponto de podermos destruir por completo grande parte da vida no planeta. Por isto,
preocuparmo-nos com a natureza e com tudo o que habita nosso planeta é essencial para
termos um futuro, ou para novas gerações terem ambientes apropriados para viver. Essas
preocupações são encontradas na obra Princípio Responsabilidade na qual, se preocupando
com o todo, Jonas elabora uma ética a qual visa à integridade do planeta.
A vida humana é repleta de transformações as quais foram se evidenciando ao
longo da história, desde as primeiras civilizações até o século XX. Natureza e ser humano
passaram por diversas mudanças e muitas delas prejudiciais para o seu desenvolvimento e
permanência. Meio ambiente e homem estão sendo modificados com a chamada evolução
tecnológica, na qual o grande causador é compreendido como: progresso desenfreado.
Percebemos que ao longo da história o planeta sofreu alterações, tanto na sua
estrutura física como na sua organização natural. Consequentemente o agir humano
também se modificou. Além disto, a própria condição humana, sempre em busca do ―ser
mais‖, com a infinita capacidade de criar e recriar coisas no mundo, não permite que o ser
humano seja definido como um ser estático ou, então, determinado sobremaneira por seus
instintos, como parece ser o caso da maioria dos animais. Podemos pensar que a principal
característica identificada, segundo Jonas, no homem, é a resultante de um ser inacabado
frente ao mundo. Este não acredita que o mundo o satisfaça plenamente, na maneira como
ele é. Isto na modernidade se traduziu numa crença exacerbada no progresso, ou seja, o ser
humano, principalmente o ocidental, desacredita que o mundo sem o progresso possa
trazer algum bem para sua vida. O homem parece ter atitudes visando apenas o progresso e
este parece ter, por sua vez, se tornado um fim em si mesmo. O progresso transformado
em ―fim em si mesmo‖ degradou tudo mais em mero instrumento. Neste sentido, pode-se
afirmar que o homem procura fazer da natureza e dos seres extra-humanos instrumentos
do seu desejo de dominar o mundo.
Jonas nos apresenta em seu Princípio Responsabilidade a teoria da elevação do homem
sobre a natureza. Para que entendamos esta questão é necessário compreendermos a
técnica, justo porque, antes de tudo é preferível rever as características passadas do agir
humano para as tomarmos como comparativos ao estado atual das coisas, pois segundo
Jonas, depois da técnica o mundo sofrera alterações significativas. Não podemos dizer que
a tecnologia que encontramos seja ruim em si mesma, pelo contrário, ela pode ser muito
boa. No entanto, podemos nos transformar em seus objetos, passando a ser meras
extensões dela. A tecnologia pode ofuscar nossos olhos diante da percepção de nossas
próprias ações. Diante dessa problemática se faz necessário, segundo Jonas, uma ética que
se preocupa com o todo, uma ética que defenda a vida na sua totalidade e que abranja seres
humanos, animais, meio ambiente e tudo o que tem vida na esfera total do planeta; essa
nova ética proposta por Jonas é chamada de ética da responsabilidade.
Para Jonas a vulnerabilidade da natureza não será reconhecida até não se conhecer
os danos a ela já produzidos. Ou seja, antes que o homem, detentor da técnica, não
perceber que suas ações estão afetando todos os ciclos de vida, a natureza permanece
simples e exclusivamente a sua disposição. Os estudos relacionados ao meio ambiente
levaram ao que conhecemos por ecologia, ou a ciência do meio ambiente. Achávamos que
a natureza era infinita, ou inesgotável, que jamais a afetaríamos com nossas ações e
técnicas. Hoje, percebemos que muitas pessoas já estão fazendo acontecer, salvando
florestas, lutando por uma produção limpa e um consumo consciente. No entanto,
estruturalmente ainda continuamos tendo uma postura destrutiva em relação ao meio
ambiente.
A proposta do Princípio Responsabilidade é a de possibilitar uma reflexão do homem
frente a suas ações objetivando modificar nossa postura ética diante do que nos cerca. Há
uma necessidade de superarmos a mentalidade do consumismo, grande causador de
conflitos. Segundo Jonas, o que o mundo necessita é de um novo pensamento, que vise o
bem estar do todo, sustentado por uma ética da responsabilidade a qual possamos recriar a
partir do que temos para melhor conviver e deixar de herança para as gerações vindouras a
possibilidade de construir suas perspectivas e melhorias. Para Jonas o futuro é aquele que
possibilita a condição da continuidade da humanidade e de todas as outras formas de vida.
Jonas (2006. p. 229) se preocupa com o futuro da humanidade e admite que o dever
precisa vir em primeiro lugar no nosso comportamento, ao passo que a civilização
tecnológica está se tornando cada vez mais ―poderosa‖ quando nos referimos ao seu
potencial de destruição. O futuro da humanidade obviamente coloca em cheque o futuro
da natureza e vice-versa. Deve ser levado em consideração que o homem está se tornando
cada dia mais perigoso e ameaçador não só perante ele mesmo, mas diante de toda a
biosfera. Segundo Jonas, o interesse do homem coincide com o dever diante de toda forma
de vida, afinal a terra é sua ―pátria‖, não se deve reduzir nossa concepção ao
antropocentrismo. Para Jonas esse dever está estritamente ligado à biosfera total do planeta,
é um dever diante do humano e do extra-humano. Deve-se deixar a vida prevalecer,
preservar e proteger o direito de existir das futuras gerações.
Jonas propõe que nos utilizemos do medo para compreendermos o que podemos
sofrer no futuro, ou seja, nosso filósofo se utiliza do temor diante de projeções de grandes
probabilidades de catástrofe para alertar os seres humanos diante das suas atitudes frente
ao meio ambiente e todas as formas de vida. Faz-se necessário atermos aos dados atuais
que a própria modernidade nos oferece para compreender antecipadamente algumas
consequências, caso nós humanos não alteremos nosso modo de agir diante do ―outro‖
estaremos afetando gravemente todas as formas de vida. A heurística do medo, segundo
Jonas (2006, p. 353) pode nos auxiliar a entendermos as reais probabilidades do perigo
como também fazer com que respeitemos todos os seres que possam existir.
Referências Bibliográficas:
SANTOS, Robinson dos. O problema da técnica e à crítica a tradição na ética de Hans Jonas. In:
___________. Ética para a civilização tecnológica: em diálogos com Hans Honas. 1. ed. São
Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2011. 21-40.
13Professordo Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Paraná, IFPR, campus
Umuarama. Pesquisador do Observatória Nacional de Educação/Projeto Escrileituras/CAPES/INEP.
Mestrado em andamento em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, Brasil.
Príncipe para os escritos do Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio representa mais
precisamente o pensamento político maquiaveliano.
Maquiavel trabalha com essas duas formas de governo visto ser essa a principal
condição política em análise em suas obras, mas a questão que lhe é cara é a governança.
As obras Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e O Príncipe representam uma mudança
radical na forma de pensar a política porque têm como ponto de partida a realidade, ao
contrário da República de Platão, que tem um modelo de estado ideal cuja experiência nunca
veio a ser realizada.
Vendo, por outro lado, que as virtuosíssimas ações que a história nos
mostra, ações realizadas por reinos e repúblicas antigas, por reis,
comandantes, cidadãos, legisladores e outros que se afadigaram pela
pátria são mais admiradas que imitadas; vendo, aliás, que tais ações, em
suas mínimas coisas, todos fogem, e que daquela antiga virtú não nos
ficou nenhum sinal; em vista de tudo isso, não posso deixar de admirar-
me e condoer-me ao mesmo tempo. (...) No entanto, na ordenação das
repúblicas, na manutenção dos estados, no governo dos reinos, na
ordenação das milícias, na condução da guerra, no julgamento dos
súditos, na ampliação dos impérios, não se vê príncipe ou república que
recorra aos exemplos dos antigos. (MAQUIAVEL, 2007, p.6).
Está presente no Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio a noção de realismo
histórico e político. Maquiavel entende a política no campo dos fatos históricos,
desvinculada da providência divina, essa história intra-mundana feita pelos homens, ou seja,
para Maquiavel a história não tem um ―telos” e, portanto, a vida política é construção, um
jogo de interesses entre os homens. Maquiavel faz uso dessa concepção de história com
finalidade prática, de maneira a estabelecer por meio de ideias correlatas, os critérios para
não incorrer nos erros do passado.
Acredito que, para criar uma república que durasse muito tempo, seria
necessário ordená-la internamente como Esparta ou como Veneza, situá-
la em lugar fortificado, e com tal poder que ninguém acreditasse capaz de
subjugá-la em pouco tempo; por outro lado, não deveria ser tão grande
que infundisse terror nos vizinhos, e assim poderia gozar por longo
tempo de seu estado. É por duas razões que se trava guerra contra uma
república: uma é querer assenhorear-se dela: outra é ter medo de ser
dominado per ela. (MAQUIAVEL, 2007, p.31).
Referências Bibliográficas:
AMES, José Luiz. Liberdade e conflito: o confronto dos desejos como fundamento da
ideia de liberdade em Maquiavel. In: Kriterion. Belo Horizonte, nº119, pp. 179-196, jun.
2009.
___________. Republicanismo conflitual e agonismo democrático pluralista: Um diálogo
entre Maquiavel e Chantal Mouffe. In: Princípios. Rio Grande do Norte, nº31, pp. 209-234,
jun/jun. 2012.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução de MF. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
___________. O Príncipe. 2ªed. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
homem quando vive em sociedade, cujas aprendizagens não são menosprezadas. O ato de
saber tocar um instrumento musical, ou ser um hábil marceneiro, é tão importante quanto
saber se relacionar com os outros indivíduos.
A obra Emílio nos remete à reflexão sobre a atenção que se deve ter em relação a
infância, pois o homem que conhecemos nasce na sociedade e nela deve viver. Possuímos
dificuldades e desafios no processo de humanização. Quando o homem nasce suas
principais necessidades são as do corpo e aquelas que brotam do amor de si. Chegará o dia
em que esse homem terá que conviver com os outros; e o tempo é rápido, tanto que
quando menos se espera, no menor descuido, este infante poderá estar dando ordens ao
adulto.
O sentimento propriamente humano é o amor de si, que quer tudo para si, que
busca superar as necessidades, sendo indiferente aos outros; em primeiro lugar está o ―Eu‖,
o indivíduo. Rousseau afirma ―O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o
seu primeiro cuidado, o de sua conservação‖ (ROUSSEAU, 2009, p.61.). Esse sentimento
que parece ser individualista, não é um sentimento errado ou ruim, pois é um instinto de
sobrevivência; visar o provimento das próprias necessidades não é um ato que deve ser
ajuizado pela moral.
Para colocar o amor de si sob freios, o homem precisa ser educado. Um indivíduo
que está em desenvolvimento e sendo acompanhado pelo preceptor, vai estar muito mais
ligado ao físico e a si mesmo, sem condições morais, até mesmo para chorar pela morte de
outro homem. Não conhecendo o que é a dor, a não ser a sua própria dor, o homem não
tem experiência da dor do seu semelhante. O indivíduo está tão preocupado consigo que
nada está além de suas necessidades.
Rousseau preocupa-se com a educação que inicia na infância porque percebe que a
sociedade de sua época quer tratar a criança como um adulto, e isso é um problema, pois a
constituição do ser deve reconhecer a ordem da natureza. Um infante não possui condições
de resolver sobre questões políticas. Rousseau ressalta que as discussões políticas não
podem ser a pauta de círculos infantis, por isso justamente se faz necessária a educação do
indivíduo, que sai das ―mãos da natureza‖ e um dia irá ser adulto.
A educação proposta por Rousseau em sua obra Emílio salienta os seguintes pontos:
que a educação segundo a natureza oferece as condições para que os infantes desenvolvam,
livremente, suas faculdades e disposições físicas e morais; no Livro I do Emílio, Rousseau
(2004), afirma que ―antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabê-lo, e não há
moralidade em nossas ações, embora às vezes ela exista no sentimento das ações de outrem
que se relacionam conosco‖ (p.56). A educação de Emílio deve prepará-lo, tanto para ser
homem, quanto para viver em sociedade, pois o homem não nasce homem, nem nasce
preparado para a vida civil, sendo um ser amoral. Desde seu nascimento até a juventude, os
indivíduos devem ser acompanhados, cuidados e protegidos pelo preceptor para que
possam desenvolver suas capacidades físicas e intelectuais respeitando etapas e evitando
que sejam influenciadas pelos preconceitos e vícios sociais estabelecidos.
A educação promovida pela sociedade, com base na razão, quer adiantar e prevenir
o homem, não o deixando fazer experiências próprias antes, e assim cria hábitos que
atrapalham seu desenvolvimento. Por exemplo, querer que a criança aprenda por meio de
sequências lógicas e abstratas um determinado conhecimento que o adulto demorou
décadas para construir.
Caso o adulto não deixe a criança fazer suas próprias experiências, e não a
proporcione experiências, ele estará criando hábitos com base em seus gostos e
conhecimentos, exigindo que a criança entenda e haja conforme informações recebidas em
vez de ela mesma realizar a sistematização. Rousseau diz que a natureza fez o homem
criança antes de ser adulto. Não temos autoridade para mudar esta ordem, e se assim
quisermos estaremos pervertendo a ordem e as corrompendo e facilmente os motivos
secretos tomaram o lugar dos verdadeiros motivos.
Não há como querer instruir uma criança pensando e decidindo tudo por ela, ou
querer realizar raciocínios que não envolvem os sentidos, mas podemos ensinar a criança a
ser criança, para que na vida adulta, quando a razão aos poucos tomará o lugar dos
sentidos, possamos o formar como homem. Não cabe ao preceptor suprimir reações
causadas pelo próprio aluno, pois senão ele não aprenderá com os sentidos os resultados,
por exemplo, de uma mentira.
No Livro IV, Rousseau (2004) define que o homem possui um segundo
nascimento, que é o nascimento para a vida moral, e a partir daí a educação deverá se
preocupar em controlar as paixões para que não se corrompam, por meio da razão
consciente que está tomando forma.
Rousseau (2004) salienta que seria loucura, e até mesmo impossibilidade e
insensatez por parte de alguém querer impedir o nascimento das paixões, pois elas são
naturais e necessárias para a nossa conservação e desenvolvimento; ao mesmo tempo
esclarece que o preceptor deve continuar presente, problematizando e provocando o
raciocínio do aluno para que ele não se deixe afetar pelos ―mil riachos estranhos que são
somadas as águas da fonte natural. A paixão natural é aquela que brota do íntimo e que é
necessidades dos outros. Quem ama muito a si mesmo não consegue viver com os outros,
pois sempre o eu virá em primeira instância.
Conforme Rousseau (2004), a amizade será o primeiro sentimento de
reconhecimento e valorização do outro. Dos sentimentos de amizade poderá brotar o
amor, que é uma superação do sentimento de amor de si. Desta relação com os outros
resultará o amor-próprio, que é corrupto em si mesmo, mas pode ser superado com o
tempero da compaixão.
Para Rousseau (2004) os homens devem se resolver por si mesmo, e nada está
garantido neste mundo das relações. A educação dos homens, não é garantida previamente
por nenhuma instituição. A educação do homem, mesmo proporcionada com grande
maestria por outro homem, não está garantida. Pode corrompê-lo ou torná-lo virtuoso. Há
educação dos homens cabe ―instruir o jovem mais pela experiência dos outros do que peça
sua própria‖ (Ibid., p.326).
A educação do homem a partir do estudo das relações que os homens possuem
entre si na sociedade, é desafiantes, segundo Rousseau (2004), pois o mundo está cheio de
grandes espetáculos e seus atores vestem belas máscaras. E nesta educação não basta
mostrar a sociedade e afirmar que ali está o exemplo a ser seguido, mas justamente deve-se
alertar e proporcionar ao aluno um exame mais cuidadoso sobre as relações sociais, afim de
que perpasse o verniz superficial e generalista. Rousseau (2004) no Livro V realiza uma
confissão para o seu aluno dizendo:
A criança deve ser iniciada na vida social, mas afastada das opiniões prontas e
fechadas que não permitem a formação da autonomia. Ela precisa observar as relações
sociais não para julgar, mas para conhecê-las e escolher as mais adequadas; pois a opinião
não pode resultar em opção, mas a opção deve ser racional e independente de qualquer
instituição e autoridade. A única autoridade válida para o homem deve ser sua própria
razão.
―A sociabilidade não é, portanto, uma inclinação natural, ela foi instituída pelos
próprios homens. Tal é a conclusão à qual Rousseau tinha chegado no Discurso sobre a
desigualdade‖ (DERATHÉ, 2009, p.224).
A leitura que Derathé (2009) faz sobre a sociabilidade proposta por Rousseau, é a
de que ela é um sentimento inato, que só existe ―em potência‖ no homem natural,
desenvolvendo-se somente com a troca entre semelhantes.
A sociabilidade é a condição que o homem deve alcançar por meio do
entendimento interior, baseado no livre arbítrio, de que não se pode somente agir com base
no amor-próprio. Não é por meio dos raciocínios de outrem que o homem consegue
raciocinar. Mas também ninguém consegue viver bem em uma sociedade se somente
pensar em si mesmo, e achar de que tudo e todos vivem para satisfazer suas vontades.
Em resumo: a educação deve oferecer condições para que a criança quando se
torne adulta faça bom uso de suas capacidades de julgamento e de escolha; a educação
segundo a natureza destaca e relaciona, pois, a dimensão da formação do indivíduo,
(infante que chega ao mundo), com a sociedade na qual será integrado quando adulto,
exercendo seus deveres de cidadão.
Para Rousseau todo o caminho educacional proposto em sua obra Emílio visa
formar o homem para viver na sociedade. Quando Rousseau fala em sociedade, se refere a
esta palavra como sendo de cunho local, no sentindo do indivíduo viver sua vida em um
determinado espaço e tempo (caracterizado com patriota), mas possuir sentimentos
cosmopolitas, ou seja, de um cidadão global, que saiba ―ler‖ e interpretar o mundo em que
vive. Embora segundo Garcia (2010):
outros e as coisas; então percebemos que para viver na sociedade o homem deve ser acima
de tudo educado para ser homem.
Rousseau propõe uma educação do homem natural com o objetivo de fazer com
que este desenvolva suas faculdades individuais livremente; então pensa a educação para
seu aluno imaginário de uma maneira que primeiramente respeite a liberdade física, pois
não há como ir contra a natureza humana; posteriormente seria a vez da educação moral.
A condição humana para Rousseau está no próprio humano, pois de que vale a
educação se não considerar o homem enquanto tal na sua única condição humana que é
viver na sociedade? ―Aquele que, na ordem civil, quer conservar o primado dos
sentimentos da natureza não sabe o que quer. Sempre em contradição consigo mesmo,
sempre assando das inclinações para os deveres, jamais será nem homem, nem cidadão;
não será bom nem para si mesmo, nem para os outros‖ (ROUSSEAU, 2004, p.12).
Com o desenvolvimento físico, a educação moral reforça as premissas diretamente
ligadas à razão autônoma do indivíduo, que fará com que este viva sem se deixar influenciar
pelas opiniões sociais ou individuais.
Referências Bibliográficas:
Em sua obra ―A Condição Humana‖ Hannah Arendt nos sugere o que seja
condição humana propriamente dita e quais são os elementos que a constituem. Segundo a
referida autora a condição humana diz respeito aos modos sistemáticos de vida, seja ele o
natural (a vida dada ao homem na terra em seu estágio mais elementar) ou o
convencionado (onde os seres humanos em conjunto deliberam e criam paradigmas
regulamentadores do modo de vida da sociedade como um todo). A condição humana nos
remete diretamente ao conceito de vita activa, que para a autora consiste em três atividades
fundamentais, a saber: Labor, Trabalho e Ação. Quando a pensadora analisa a condição
humana, observa que essas atividades não podem ser de forma alguma dispensadas
enquanto a condição humana não mudar. Façamos uma breve analise da cada atividade e
suas personagens humanas correspondentes.
Faz-se sabido que dentre todas as atividades o Labor é a primeira, justamente por
ser esse movimento fundamental e garantidor da vida e de manutenção da espécie, ou seja,
é um processo que corresponde ao âmbito dos mecanismos biológicos e fisiológicos da
vida, é necessariamente uma labuta da dimensão orgânica. Sendo que o processo vital não é
ligado a liberdade, pois possui sua própria necessidade que é a vida, só podemos falar em
liberdade no âmbito do labor na medida em que ele é um processo que acontece de forma
livre, mas não como um desígnio apolítico da política, ele constitui um fenômeno de
margem, que estabelece limites ao qual o governo não deve transpor, pois podem pôr em
jogo a própria vida e seus interesses imediatos, que constituem a labuta orgânica. A
condição humana do Labor é a própria vida, ele corresponde às atividades de manutenção,
tudo o que visa à manutenção seja do próprio corpo ou de objetos é Labor. Tomar banho,
fazer comida, lavar roupa, as atividades de manutenção de uma ponte, enfim todas essas
atividades em conjunto com os processos biológicos pertencem ao Labor.
O produto gerado por ele é consumido quase tão rapidamente quanto o esforço é
despendido, justamente por ser de caráter incessante, ou seja, enquanto houver vida deve
necessariamente existir o labor.
A personagem humana do labor corresponde ao animal laborans, sendo este que
ganha à vida, mas está enredado fundamentalmente em mantê-la. Visto que esta é de
caráter urgente uma vez que este é um movimento primordial, ou seja, é a partícula que
garante a vida enquanto tal e, portanto não pode sofrer influência das duas outras
atividades. A saber: Fabricação e Ação (política).
A segunda atividade da condição humana é o Trabalho ou Fabricação, que
corresponde a um movimento por meio do qual o homem transforma a natureza, e é capaz
de trazer coisas novas ao mundo, trata-se da ação transformadora do homem sobre a
matéria natural. Natureza aqui tomada como algo não modificado pela forca de trabalho
exercida pela mão do homem, aquilo que se mantem intocado desde os primórdios do
mundo.
A personagem humana do trabalho, a saber, é o Homo Faber, aquele que fabrica que
cria, e com suas próprias mãos age e transforma a matéria em objetos claramente distintos
das coisas naturais. Diferente do labor o trabalho gera produtos utilizáveis (ex: Carros,
estradas, prédios, pontes, cadeira, etc.) e dotados de durabilidade, ou seja, transcendem a
existência de seus criadores. A atividade da fabricação tem início e fim.
A condição humana do Trabalho é a própria mundanidade, e o seu resultado é o
mundo, sendo que este é essencialmente diferente da natureza, e portanto, concernente ao
artefato humano como produto das mãos do homem.
A terceira atividade é a ação ou política que se configura como o nosso principal
objeto de estudo, a partir deste ponto explicitaremos a sua relação com os conceitos de
poder e liberdade. Partiremos de uma máxima que se infere a partir do pensamento político
de Aristóteles e que nos diz o seguinte: ―a razão de ser da política é a liberdade‖.
Mas o que é a política para Hannah Arendt?
Essa diz respeito aos modos que os homens se relacionam sem violência, a fim de
sanar necessidades e problemas em comum. Porém para poder exercer a política os
Não existe nessa atividade intermédio das coisas ou matéria, pois por habitarem
juntos o mundo, os homens são capazes de colocar a si mesmos mediante a ação e o
discurso. A Ação remete a condição humana que se revela quando os seres-humanos em
sua pluralidade se reúnem em espaços públicos, e para além dos interesses individuais
decidem livremente. É a única atividade humana que não pode ser pensada fora do âmbito
de uma sociedade de homens, uma vez que a condição humana da ação é a própria
pluralidade. Seu tipo humano de Ação denominaremos de “Homo Politicus” (mesmo
sabendo que esse termo não aparece na obra). É como vemos na própria obra:
Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela
utilidade como o trabalho, pode ser estimulada, mas nunca condicionada,
pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto
ocorre do começo que vem ao mundo quando nascemos e ao qual
respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa. Agir,
no sentido mais geral do termo significa tomar iniciativa (ARENDT,
2007, p.190).
Hannah Arendt não considera o homem de ação um ―Animal‖ que apenas labora
em prol da manutenção da vida e muito menos uma espécie de ―fabricante‖ que cria um
mundo a partir de objetos, mas a Ação é a atividade política por excelência, e a política é a
expressão por excelência da liberdade possível quando indivíduos plurais se juntam em
espaços públicos e por meio de ações e palavras iniciam algo novo. A pluralidade humana é
esse fator que comporta duplo aspecto, igualdade e diferença, se não possuíssemos
estruturas e alguns pressupostos iguais, seriamos incapazes de nos entendermos entre nós,
ou de elencarmos metas ou planos que prevejam as necessidades das futuras gerações, por
outro lado, se os homens fossem todos iguais e não diferissem em relação a qualquer outro
que existe, existiu ou vai existir, não seria necessários a ação e o discurso para se fazerem
entender. Podemos perceber a importância e o duplo aspecto contido na pluralidade no
próprio texto:
Referências Bibliográficas:
paradigmas já estabelecidos, e tendo como preceito, sobre esse assunto não estar resolvido,
isso abre um leque de ideias a serem discutidas.
É comum termos na história da filosofia autores que negam a possibilidade de
conhecer plenamente qualquer objeto da natureza, sendo esse o ponto de partida desse
trabalho. Segundo David Hume, por mais que estejamos acostumados com vários
acontecimentos naturais, como o aparecer do Sol, não temos como ter a certeza que o
mesmo aparecerá no próximo dia; Kant já deixa claro que não vem ao caso estudar o
objeto em si, mas sim sua representação; ambos creditam à razão, a responsável de
estabelecer verdades. Alguns racionalistas conseguem ―provar‖ a existência de uma
Substância necessária através de argumentos lógicos e nada mais disso, negligenciando a
experimentação. De certa forma, os exemplos dados acima, nos mostram que nossa
capacidade intelectual não dá conta de explicar o mundo, seja ele por ser infinito, ou por
nossa limitação cognitiva. Minha defesa, a partir desses escritos, é em prol à segunda opção,
entendendo que estamos ―atrasados‖ em relação à expansão do universo.
Façamos o seguinte exercício mental: há mais de dez bilhões de anos, segundo a
teoria do ―Big Bang‖, houve a tal explosão que se desenvolveu - e continua desenvolvendo
– no que temos hoje por universo. Ou seja, todo ele estava condensado em algo
extremamente minúsculo. Com o passar do tempo foi crescendo e ganhando forma. Tenho
como válido imaginar o universo, pouco tempo após seu surgimento, ter o tamanho de
uma maçã, algum tempo depois de uma melancia, e por conseguinte, o universo todo tendo
o tamanho do planeta Terra. Agora, levemos em consideração o mais avançado e potente
telescópio e imaginemos logo o seu limite; de fato, esse instrumento não tem a devida
capacidade de alcançar o possível limite do universo, e boa parte da ciência acredita estar
―infinitamente‖ longe dessa façanha. Logo, se relacionarmos nossas capacidades cognitivas
e instrumentais de hoje, com a hipótese acima, do universo ainda muito pequeno – do
tamanho da Terra -, saberíamos pelo menos seu tamanho. Minha intenção é a defesa de
que há muito tempo o universo está em expansão e nós, seres humanos, habitamo-lo -
enquanto homo erectus14 segundo o livro ―O homem pré-histórico‖ de principal autoria de
Clarck Howell – há pouco mais de 500 mil anos. Também devemos levar em consideração
o fato de duas espécies de homo-sapiens terem sido extintas, o que pode ter deixado mais
lenta a evolução humana. Ou seja, é muito tempo de expansão para pouco tempo de
14O homo-erectus foi o primeiro homem de nosso gênero, seus traços físicos estão muito próximos do homem
atual; foi a primeira espécie a fazer uso do fogo.
conhecimento! Há pouco menos de mil anos, a crença ainda era na teoria geocêntrica e
nosso universo não passava - ideologicamente – de nosso sistema solar, com sérias
desavenças com a teoria atual; e não pensemos através disso, que os paradigmas da época
não foram importantes, pelo contrário, tais bases foram necessárias para a nossa concepção
atual. É precoce deliberarmos a ideia de um universo infinito, ou já nos colocarmos
incapazes de compreendê-lo.
Caracterizado por Alexandre Koyré, por ―espalhar o ceticismo e a perplexidade‖
(1979, p. 38), Copérnico revoluciona a ciência não só pela ideia de mudar o local de visão
das orbes, isto é, de simular sua visão como se fosse estar na posição do Sol para tentar
entender melhor os movimentos celestes15 - e a partir daí, sendo o grande autor da teoria
heliocêntrica -, mas, tendo em sua teoria um detalhe crucial, a afirmação de um universo
finito, em um espaço ilimitado .
Enquanto a teoria ptolomaica era sustentada, advinda da teoria aristotélica de
mundo, Copérnico, tem a ideia inovadora, sendo para muitos, a mais importante revolução
científica de todos os tempos. Para entendermos melhor, devemos ter conhecimento de
como era a descrição ordenária cosmológica do medieval:
15 Tendo também a crença e a confortabilidade de que é muito mais aceitável a condição de estar em repouso
- também considerando nobre e divino - do que a idéia de mudança, dessa forma, a estaticidade do universo
se encontra no Sol; atribuindo movimento à terra.
16 A necessidade de explicação matemática do universo vem à tona, sua medição é de 200.000.000 de
quilômetros.
que tal afirmação, da não compreensão desse espaço, se dá por nossas limitações. No
entanto, deixa brechas para discutir o que viria além dessa última esfera e curiosamente tal
assunto é colocado como filosófico por ser imensurável17. Remete-se o pensamento
copernicano, ao que foi colocado acima: essa é uma oportunidade de levantar hipóteses.
Trazendo em cheque a interpretação por Koyré de Copérnico que ―o infinito, na
verdade, não pode ser movido ou atravessado‖ (1979, p.40), temos pois, a prova lógica e
ideológica de que o universo não pode possuir qualquer estrutura infinita. Se compreendo
algo e constato esse mesmo como finito, não tenho como somar extensões desse mesmo
com a intenção de obter o infinito; pois de partes finitas não se faz infinito; não há
também, como repartir o infinito – duas ―metades‖do mesmo:
(...) inter finitum et infinitum non est porportio18. Não nos aproximamos do
universo infinito aumentando as dimensões de nosso mundo. Podemos
torná-lo tão grande quanto quisermos; isto não nos situa em nada perto
da infinitude. (KOYRÉ, 1979, p.42).
É claro que se tem como premissa a compreensão de algo, e sendo assim, posso
evoluir à partir do mesmo. No entanto, podemos nos lançar em emaranhados céticos
declarando que nada se pode conhecer pela possível estrutura infinita da natureza em geral.
A questão é: se todos os objetos possuem tais infinitudes, ou nossa mente é possuidora de
estruturas infinitas – capaz de entender o objeto - ou nada que dizemos – por entender – é
verdadeiro.
A segunda opção não é de descartar, pois a própria ciência não trabalha com
verdades, mas sim, aproximações, ―verdades momentâneas‖, e basta uma teoria que
comprove que a atual esteja errada, para que tenhamos o possível início de uma crise
científica, necessitando de novos paradigmas. Me parece mais válido, crer na finitude do
universo – e mais confortável.
Mesmo nesse ―conforto‖, Copérnico foi também capaz de despertar um
desconforto maior. Levando em consideração a constante expansão do universo - de
Hubble -, e esse mesmo, finito – de Copérnico -, nos cabe pensar: para onde tudo isso está
indo? Segundo Copérnico, o mundo é finito, distribuído em um espaço ilimitado; nesse
caso, há uma segunda questão a se preocupar – como se a discussão da finitude ou
infinitude do universo fosse estar resolvida – para onde segue tal expansão, ou em que se
17 Fica claro que Copérnico não se coloca como filósofo, estando à disposição de discorrer apenas o
mensurável; o oposto é puramente de caráter filosófico.
18 Pode-se traduzir como ―Não há proporção entre o finito e o infinito‖.
sustenta? Algo que podemos constatar é que, já existia esse ―espaço ilimitado‖ antes do Big
Bang. O que muda aqui é apenas o alvo da discussão, no entanto, caímos no mesmo
problema – pois o que pode se entender de ilimitado, senão infinito?
É de se concluir que, se quisermos ―resolver‖ tal questão, deve ser em usos lógicos
racionais. Pode-se levantar a hipótese advinda de Nicolau de Cusa, em sua obra De Docta
Ignorantia (1440), que a incompreensibilidade do universo tem como base seu estado infinito
e proporções inacabadas; o mesmo é afirmado em relação à incompreensão da natureza de
Deus, por Ele mesmo possuir estado infinito. Logo, se ligarmos essa ideia de Deus e
universo à noção de espaço ilimitado de Copérnico, podemos afirmar que o mundo se
distribui no próprio Deus – o Espaço Ilimitado. Confesso um devido desconforto na
limitação de não poder afirmar outra coisa senão a colocação dessa ―Substância primeira‖
como um dos resultados desse trabalho; no entanto, é tudo que temos.
A crença que coloco, de que algum dia, algum ser racional possa compreender o
universo, seja o ser humano ou outra espécie que possivelmente habitaria em nosso lugar –
ou talvez outra espécie que já dê conta de resolver tal assunto – nos remete à uma outra
colocação, talvez utópica: seguindo o raciocínio tido no decorrer desse trabalho – na
colocação de um universo limitado, em constante progressão e de que ainda não
encontramos limites para nossa mente - basta que ―alcancemos‖ o desenvolvimento do
universo para compreendê-lo.
Referências Bibliográficas:
HAWKING, Stephen. Uma nova história do tempo. Rio de janeiro: Ediouro, 2005.
HOWELL, F. Clark. O homem pré-histórico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969.
HUME, David. Uma investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: UNESP, 2003.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
KOYRÉ, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. São Paulo: Forence-universitária,
1979.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: Uma abordagem Evolucionária. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1902.
Pretende-se neste trabalho apresentar algumas reflexões acerca deste tema que a
muitos inquieta e contudo, a outros é objeto de indiferença. Primeiramente serão
apresentadas algumas referências de Kant a este tema, as quais utilizaremos como princípio
de nossas reflexões, para então refletir com Kant a respeito deste tema, trazendo à
discussão, apontamentos de comentadores de Jung.
Logo de início nos defrontamos com a dificuldade em se precisar o conceito de
misticismo para Kant, pois não encontramos uma definição kantiana clara para essa corrente
filosófico-religiosa. Como veremos mais adiante, a crítica de Kant ao misticismo se refere
ao modo como se utiliza do intuitivo. Se utilizado corretamente, este, o intuitivo, será um
ótimo aliado na tarefa por vezes árdua do conhecimento. Porém, se mal utilizado, pode
seduzir e levar ao desvario. Conforme se dá esse processo de associação ou relação entre o
material intuitivo (sensibilidade) e o conceitual (entendimento) é que se pode distinguir o
gênio e desvario.
Antes de adentrarmos mais profundamente no tema proposto, são necessárias
algumas considerações sobre um conceito que permeia nossa discussão: a intuição. Como
veremos mais adiante, segundo referências de J.J.Clarke, Jung parece ter sido um grande
expoente do simbolismo e do intuicionismo contemporâneo e, por isso, julgamos pertinente
trazê-lo à discussão. No entanto, a compreensão deste conceito não é algo pacífico na
história da filosofia. A intuição perpassa a escolástica, o neoplatonismo e o aristotelismo
medieval até atingir, no senso comum, um sentido de insight.
Além do conceito de intuição temos outro conceito relacionado que parece
permear a discussão do tema proposto e que Jung dera especial atenção: o conceito de
visão-de-mundo.
As formulações kantianas acerca da intuição parecem abrir margem para duas
interpretações do termo alemão Anschauung, ora compreendido em um aspecto meramente
negativo e arbitrário, em sentido de ―algo ainda não conceitual‖ e, portanto, ainda não
passível de ser considerado um conhecimento em sentido superior, ou, sob outro ponto de
vista, algo análogo a uma faculdade de conhecimento, porém restrita à sensibilidade.
A dificuldade que se apresenta a essa última perspectiva parece consistir justamente
em se admitir a imediaticidade no conhecimento, ou seja, a não mediação do entendimento
discursivo, e também na relação entre sujeito e objeto, tendo-se em vista as objeções de
Kant à Intuição Intelectual. Kant compreendia que o conhecimento humano se encontra
limitado fenômenos, mera aparência dos objetos, e, disso se segue que não podemos
conhecer as coisas em si mesmas. Kant afirmava:
A distinção kantiana entre uma intuição arquetípica (intelectual) e uma intuição sensível
parece se fundamentar justamente em um conceito limite que pressupõe a existência de um
ser originário e um ser derivado, e, nisso parece residir a herança medieval do conceito
kantiano de intuição. Enquanto o ser supremo cria seus objetos pela intuição arquetípica, o
ser humano pode somente ter acesso aos objetos de modo reprodutivo, de modo a ter
somente uma representação do objeto sendo a ele impossibilitado um acesso à sua
realidade intrínseca.
Ora, a intuição, a partir da segunda perspectiva anteriormente apresentada, ou seja,
abrindo a possibilidade de se pensar em uma faculdade de intuição como um modo de
relação imediato entre sujeito e objeto, se poderia então, compreender a intuição em um
sentido de visão, contemplação, algo que não parece ser absurdo de se conceber ao se
estabelecer contato com as observações de Kant acerca do sentido da visão contidas em
sua Antropologia. No entanto, não se deve esquecer que já aí, segundo Kant, poderia haver
uma contradição, pois não se poderia estabelecer a relação imediata entre sujeito e objeto se
somente podemos conhecer nos limites de nossa faculdade de representação (fenomênica)
e dos nossos sentidos. Acerca do sentido da visão Kant afirma:
Para os leitores mais familiarizados com o rigoroso pensamento kantiano logo pode
se recordar do desenvolvimento do conceito de intuição de acordo com sua estética
transcendental, onde Kant chega à conclusão de que são o espaço e o tempo, exemplos
genuínos de intuições puras. Obviamente, isto se fundamenta em uma concepção marcante
em seu tempo, a visão newtoniana e euclidiana de espaço e tempo, tidos por Kant como
um caminho seguro para fundamentar uma possível nova Metafísica.
regra da reflexão sobre aquela intuição a um objeto totalmente diverso, do qual o primeiro
é somente um símbolo.‖ (KANT, 2002, p.196).
Mas poderia se questionar, afinal, e, que tem a ver intuição com o misticismo? O
quê Kant diria a este respeito?
Conceber introvisões em espécies de revelações divinas ou visões de espíritos seria
um pouco estranho para se pensar, pois parece fugir do âmbito de realidade, isto é, do
ponto de vista materialista. Que dizer então da clarividência e da adivinhação? A primeira,
considerada por alguns místicos uma faculdade de conhecimento, supostamente permite ao
sujeito contemplar certos fenômenos impossíveis e imperceptíveis a humanos não dotados
da mesma, como por exemplo, ver um fenômeno natural ocorrer a uma distância
inconcebível para a visão humana.20
Para que em uma narrativa ou relato se encontre material que se possa considerar
como digno do status de conhecimento, e essa é uma condição epistemológica
indispensável em Kant, são necessários dois elementos harmoniosamente associados:
intuição e conceito. Certas ideias da razão não podem encontrar uma correspondência na
intuição, daí decorre a necessidade de se recorrer a analogias com certas intuições para, no
máximo se pensar determinados objetos. Ora, essa abordagem kantiana parece ficar mais
atraente quando indica um problema de fundo: o inconsciente. Embora Kant não admitisse
explicitamente a existência um campo ou instância da mente a que se poderia chamar de
inconsciente, demonstrava certa inquietação acerca desse campo de representações. Cito
Kant:
Que seja imenso o campo das nossas sensações e intuições sensíveis, isto
é, das representações obscuras no ser humano de que não somos
conscientes ainda que possamos concluir indubitavelmente que as temos;
(...) que, por assim dizer, no grande mapa de nosso espírito só haja
poucos lugares iluminados, isso pode nos causar espanto com relação ao
nosso próprio ser; pois bastaria apenas que um poder superior
esclamasse: ―faça-se a luz!‖, que, mesmo sem o acréscimo de quase
nada,(...) meio mundo, por assim dizer, se abriria diante de nós. (KANT,
1982, §5, p.35).
20 Teria chegado a Kant relatos acerca de um místico sueco chamado Emmanuel Swedenborg ao qual era
atribuído o dom da clarividência. Obviamente tais relatos inquietaram o filósofo o levando a investigar a
fundo a possibilidade de tais fenômenos.
conceitos. Todo conteúdo recebido pelo sujeito mediante as experiências, formam uma
espécie de ―arquivo intuitivo‖ que pode ser acessado pelo entendimento e pela consciência
sempre se constate a necessidade.
Carl Gustav Jung, considerado um herdeiro da doutrina crítica kantiana, adota
como ferramentas para sua obra filosófica, concepções kantianas, sobretudo os conceitos
de arquétipo, símbolo, representação e fenômeno. No entanto, procura superar o mestre
desenvolvendo seu conceito de representações obscuras ou inconscientes sobre um
panorama muito mais abrangente e complexo.
Segundo o psicólogo, a crise espiritual do homem contemporâneo, e isso se
constata empiricamente em seu trabalho, se dá devido a uma separação entre homem,
tradição, religião e de modo geral no enfraquecimento do aspecto simbólico do homem.
Isso se constitui em um perigo enorme para a humanidade, pois, uma vez ignorados estes
aspectos primitivos e inerentes à natureza humana, estes conteúdos inconscientes podem
emergir de modo catastrófico. Segundo Marco Heleno Barreto, o conceito de visão-de-mundo
para Jung constitui um elevado grau de importância, sobretudo no que tange o contexto do
resgate do simbolismo como uma preocupação que ocupou o mente não só de Jung, mas de
uma geração de filósofos.
Referências Bibliográficas:
Cleriston Petry
Universidade de Passo Fundo (UPF)/PROSUP-CAPES
cleripetry@hotmail.com
RESUMO: Para pensar questões relativas à formação do indivíduo e sua relação com o
―outro‖, o artigo se propõe a analisar os conceitos de vergonha, culpa e estigma social a
partir dos estudos realizados pela filósofa Martha Nussbaum. Nesse sentido, analisam-se as
21 Nussbaum cita os poemas de Wordsworth como um dos fatores que contribuiu no desenvolvimento de
John Stuart Mill, o qual se valeu da leitura da obra do poeta como parte integrante do cultivo de si mesmo. A
referência ao filósofo ocorre para respaldar sua tese da importância de uma educação que inclua a poesia e
cultive o prazer no mundo interior.
Introdução
A partir daí, os homens sentem vergonha de sua condição. Tal emoção aparece
relacionada com o vestígio de uma onipotência original, que se imbrica com a
incompletude, debilidade e fragilidade no que é ser humano. Agora o ser humano se sente
desamparado, como a criança que ao nascer toma consciência de si e dos outros, bem
como de suas necessidades. Ela é um ser frágil, débil, necessitado, mas ao mesmo tempo,
conserva o ímpeto de ser onipotente, completa. A relação entre a vergonha e a onipotência
pode conduzir ao encobrimento das fragilidades, a fuga do outro que ―me olha‖ e vê
―minhas imperfeições‖.
A ―vergonha primitiva‖, portanto, refere-se: a) a uma emoção dolorosa por não
alcançar um estado ideal. A vergonha é uma emoção mais ou menos realista, pois constata
que somos frágeis, por exemplo, sem a tentativa de negar essa condição. ―Nesse sentido,
não é inerentemente autoenganadora, nem expressa sempre o desejo de ser quem não é.
Em consequência, nos diz a verdade (...)‖ (NUSBAUM, 2006, p.244). Veremos adiante que
em determinadas circunstâncias, a vergonha pode impulsionar o indivíduo a negar-se a si
mesmo, a construir uma auto-imagem enganosa que evite aqueles elementos que causam
vergonha, ou seja, o que o lembra de sua humanidade. b) Ocorre pela consciência de
necessidade e vulnerabilidade. Desde o nascimento, quando o bebê espera o alimento e ele
não chega, percebe-se como vulnerável, apesar dos pensamentos característicos do
sentimento de vergonha não aparecerem tão cedo. Esses sentimentos dizem respeito ao, c)
sentido de inadequação em relação ao que é adequado; que promove uma d) reação de
esconder-se dos olhos de quem pode ver a deficiência e, por seu turno, a ―vergonha
primitiva‖ e) é vinculada a falta de perfeição.
O narcisismo estabelece uma relação com a ―vergonha primitiva‖ quando o
primeiro é ―derrotado‖, quando se veem como humanos, vulneráveis, necessitados e
débeis, frente ao desejo de ser o centro na vida de outras pessoas que, por sua vez, nem
sempre estarão dispostas a sê-lo. Assim, o tipo de vergonha aqui analisado é particularmente
punitivo, substituindo o narcisismo primário. Para Nussbaum, ―a vergonha primitiva que
está relacionada com a onipotência infantil e com o fracasso narcisista (inevitável), anda
23 Um conceito estrito de consciência como, por exemplo, a consciência moral, implica afirmar que ela
―supõe acrescentar ao simples ‗saber algo‘ ou ‗saber fazer algo‘ a duplicação desses saberes: um ‗saber que se
sabe‘‖ (PUIG, 1998, p.79). Ter consciência de sua vulnerabilidade, ao contrário da vergonha primitiva que
parte de uma noção ―verdadeira‖ do que se é, a consciência de um ‗saber que se sabe‘ implica uma postura
diferente daquela de rejeição de sua condição. A autonomia, portanto, diz repeito a não deixar se determinar
por essas fragilidades, debilidades e incompletudes, mas muito menos, em torná-las ―vergonhosas‖ a ponto
de se esconder dos outros ou culpá-los por essas condições. Significa, por seu turno, ―tornar-se melhor‖
dentro dessas possibilidades, fazendo escolhas a partir da vontade própria e por razões fundamentadas e,
quiçá, passíveis de universalização.
quando negou a si mesmo, enquanto um ser humano. No caso do Paciente B, ―os sinais de
humanidade foram excluídos por parte da mãe que, devido a sua própria ansiedade, só
estava contente com um bebê calado, perfeito‖ (NUSSBAUM, 2006, p.225), portanto, não
houve autonomia, mas heteronomia, pois o que determinou o self do Paciente B foi a
conduta de sua mãe, não sua própria.
A ―vergonha primitiva‖, que demanda a perfeição, é autopunitiva no sentido de que
o indivíduo não se aceita como ser humano e tenta esconder dos outros aquilo que ele é.
Deste modo, está relacionada com a onipotência infantil e com o narcisismo. Para
Nussbaum, esse estágio da vergonha que se estende na vida adulta pode ser um perigo para
a vida social e moral, pois verá o ―outro‖ como uma ameaça, que pode ver o que está
escondido na imagem de perfeição (conduzindo o indivíduo ao isolamento e a fuga de
relações mais ―profundas‖ com os outros), ou que é o causador da vergonha.
Winnicott e Nussbaum defendem que a família e a sociedade são cruciais para o
desenvolvimento da vergonha, seja qual for o tipo. Para superar a ―vergonha primitiva‖ e
evitar seus efeitos nocivos para o indivíduo e a sociedade, a autora retoma a prescrição de
Winnicott em que essa vergonha é superada ou transformada numa ―vergonha construtiva‖
com a adoção de uma ―forma de vida que os pais vejam e se apresentem como imperfeitos,
e encorajem na criança o sentido de deleite do tipo de ‗interação sutil‘ que podem ter as
figuras igualmente incompletas‖ (2006, p.228).
Essa ‗interação sutil‘ ocorre com o concomitante desenvolvimento da confiança.
Na medida em que a criança ―sai‖ cada vez mais ao mundo, experimenta quem é e quem
são os outros, sem precisar dos cuidados constantes do cuidador ou adulto. Confiança esta
que é depositada na criança por ele. A criança passa a desenvolver um sentimento de si
mesma, a partir das experiências que faz com o mundo e consigo própria. Lembra a autora,
ainda, que a estabilidade no cuidado, adequadamente sensível, conduz a criança à crença de
que pode confiar no outro, pois esse também é imperfeito e a aceita e se aceita como tal.
Assim, a criança deixará sua onipotência, pois perceberá que pode confiar nos demais.
Além do desenvolvimento da confiança e interdependência, Nussbaum afirma que
a origem do amor e da criatividade humana, a ser desenvolvida a partir da superação do
estágio da ―vergonha primitiva‖, ocorre quando a criança começa a perceber que a
demanda por ser o centro do mundo causa um dano aos outros (culpa). ―Agora começa a
fazer coisas pelos outros, mostrando que reconhece que outras pessoas também tem o
direito de viver e ter seus próprios planos‖ (2006, p.223). O amor que surge aí difere
daquele narcisista, baseado na necessidade de ser atendido nos desejos e necessidades, no
produzida pela culpa, a que se vincula à vergonha busca culpar alguém pela própria
condição. No caso das crianças, sua inadequação volta-se ao cuidador, que é o mais
próximo de si. Se esse tipo de emoção não for superado, na vida adulta é possível se
deparar com eventos que marcam a relação entre a vergonha primitiva e a ira, como se
observou na Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial, em que existia a necessidade da
imagem de um homem que não pudera ser envergonhado. ―A meta, como vimos, era ser
duro, um homem de aço e metal, capaz de qualquer coisa, insensível a tudo‖
(NUSSBAUM, 2006, p.247). Isso significa que os alemães se reconhecem enquanto débeis,
frágeis, vulneráveis e incompletos (obrigados a se submeter a condições humilhantes pelos
vencedores24), mas presos ao imperativo da perfeição que, quando vinculado à ira, tende a
escolher um ―outro‖ como fonte de frustração, para se autoafirmar. As fontes de
frustrações são conhecidas: judeus, comunistas, pobres, mulheres, etc.
24 Segundo Hobsbawm, ―impôs-se à Alemanha uma paz punitiva, justificada pelo argumento de que o Estado
era o único responsável pela guerra e todas as suas consequências (...),para mantê-la permanentemente
enfraquecida. Isso foi conseguido não tanto por perdas territoriais, embora a Alsácia-Lorena voltasse à França
e uma substancial região Leste à Polônia restaurada (...), além de ajustes menores nas fronteiras alemãs; essa
paz punitiva foi, na realidade, assegurada privando-se a Alemanha de uma marinha e uma força aérea efetivas;
limitando-se seu exército a 100 mil homens; impondo-se ‗reparações‘ (pagamentos dos custos da guerra
incorridos pelos vitoriosos) teoricamente infinitas; pela ocupação militar de parte da Alemanha Ocidental; e,
não menos, privando-se a Alemanha de todas as antigas colônias ultramar‖ (2010, p.41).
que o mais apropriado é que tal motivação emerja do interior do indivíduo, gerada pela sua
própria conscientização. Faz ainda uma interessante distinção entre o apontamento externo
de distanciamento dos ideais a partir dos níveis de identidade e comportamento. No
primeiro, pode ser criada uma situação de atrito a partir da interpretação de que se está
sugerindo a existência de um defeito na pessoa; no segundo, evita-se a personalização da
crítica, indicando ser melhor centrar-se em atos específicos, ainda que estes estejam
estruturados em padrões geralmente defeituosos.
Nussbaum alerta também para a repercussão do sentimento de vergonha na pessoa
atingida; esta pode ser estimulante ou limitante. No primeiro caso, cita como exemplo a
vergonha pelo padrão de baixo desempenho em atividade de equipe, o que pode resultar
construtivo e motivar o aumento da dedicação e do esforço - particularmente se tal
incitação à vergonha parte do indivíduo mesmo. No segundo, a vergonha sentida pode ser
paralisante se vier a ser estimulada por sugestão de outrem, e pode vir a minar a confiança
em si mesmo, piorando ainda mais as coisas.
Relativamente às crianças Nussbaum dá ênfase aos perigos inerentes a estimulação
da vergonha centrada em ideais, especialmente se a ação provier dos pais:
25 MILL, John Stuart (1806,1873), autor de obras como O Utilitarismo e Sobre a Liberdade, entre outras.
Poderia estar nesta constatação paradoxal um dos elementos motivadores que levaram
Hitler a primeiro criar os guetos para depois lançar-se à loucura do holocausto?
Na sequência desta avaliação acerca da emoção da vergonha com gênese nas
interações sociais, onde determinados grupos consideram-se superiores a outros - seja por
características físicas e/ou de forma de vida -, esboça sua tese:
Fechando esta instância de seu trabalho, Nussbaum aponta para o que considera
um aspecto central da operação geradora de estigma social: a ação de desumanização da
vítima, seja esta situada e concretizada em um sujeito em particular, seja representada por
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, Ulisses Ferreira de. Contos de escola: a vergonha como um regulador moral. São
Paulo: Moderna; Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1999.
LA TAILLE, Yves de. O sentimento de vergonha e suas relações com a moralidade.
Psicologia: Reflexão e crítica. 2002, 15(1), p.13-25.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 2.ed. São Paulo: Cia
das Letras, 2010.
NUSSBAUM, Martha C. El ocultamiento de lo humano: repugnancia, vergüenza y ley. Buenos
Aires: Katz Editores. 2006.
PUIG, Joseph Maria. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998.
Introdução
Filosofia. Esse fato tem dificultado a elaboração de argumentos mediados por conceitos
filosóficos e, assim, impedido que o pensamento do aluno atinja níveis mais teóricos.
Diante disso, é lícito questionar se os momentos de interação dialógica entre alunos
e entre eles e o professor podem ser transformados em um princípio educativo para as
aulas de Filosofia, e, em caso afirmativo, em como essa transformação pode se efetivar. No
presente artigo, buscaremos analisar – ainda que de modo bastante breve – uma experiência
―didático-dialógica‖ que nos permite enfrentar às questões formuladas.
26 A pesquisa de mestrado foi realizada pelo professor Cleder Mariano Belieri, sob a orientação da professora
Dra. Marta Sueli de Faria Sforni, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de
Maringá. Ela está disponível em http://www.ppe.uem.br/dissertacoes.html.
27 O experimento didático ―(...) caracteriza-se pela intervenção ativa do pesquisador nos processos mentais
que ele estuda. Neste sentido, ele difere essencialmente do experimento de constatação, que somente enfoca
o estado já formado e presente de uma formação mental. A realização do experimento formativo pressupõe a
projeção e modelação do conteúdo das formações mentais novas a serem formadas, dos meios psicológicos e
pedagógicos e das vias de sua formação (...) plasma uma combinação (unidade) entre a investigação do
desenvolvimento mental das crianças e a educação e ensino destas mesmas crianças‖ (DAVIDOV, 1988, p.
196)
professor atuou como pesquisador, organizando uma atividade de ensino na qual alguns
dados foram coletados.
Optou-se por trabalhar o conceito de alienação, por ser um conteúdo presente no
programa da disciplina para o semestre no qual o experimento foi realizado. Pretendia-se
que os alunos internalizassem o núcleo conceitual, ou seja, o princípio geral básico que dá
unidade ao sistema conceitual que constitui o conceito de alienação. Os estudos para a
organização do experimento haviam revelado que o princípio geral que uniria as diferentes
representações sobre alienação estaria relacionado a perder o ser; perder o que o faz ser; perder a
humanidade; perder o que o faz ser o que é; enfim, perder a essência do que define o homem como tal.
Desse modo, a alienação seria, de um modo geral, a perda do ser. Assim, o homem estaria
alienado quando perdesse o que o define como homem. Devido às poucas horas possíveis
para a realização do experimento, optamos por focar o ensino na produção de apenas um
autor. Foi trabalhado, então, o conceito de alienação no pensamento de Sartre.
Inicialmente organizamos uma atividade em grupo para a leitura de uma narrativa
que culminava com uma situação-problema a ser revolvida coletivamente, com o objetivo
de reconstruir os traços essenciais que compõem o conceito de alienação. Pretendíamos
que a chave para a resolução dessa situação-problema seria o uso do conceito de alienação.
Não pretendíamos um ensino que viesse apenas aumentar o vocabulário dos alunos, mas
que possibilitasse a eles um maior nível de consciência da realidade. E o meio para isso,
segundo Vigotski (2003), é a internalização dos conceitos sistematizados.
A quantidade de estudantes por grupo ficou estabelecida em no máximo 5, sendo
esse o único critério que utilizamos para o primeiro momento do experimento. Esse
número nos pareceu adequado, pois permitia desencadear uma reflexão coletiva em que os
alunos tentariam em conjunto responder ao problema apresentado na narrativa. Para
viabilizar o trabalho, solicitamos à turma que nenhum aluno permanecesse fora dos grupos.
Os alunos, como já esperávamos, agruparam-se de acordo com os laços de amizade já
existentes na turma.
Tendo em vista os limites impostos pela extensão do presente texto, não nos é
possível apresentar todo o experimento didático, assim, optamos por destacar apenas uma
das situações de diálogo ocorridas durante a leitura da narrativa, ocorrido no primeiro
momento do experimento. O episódio descrito a seguir evidencia o papel do diálogo na
Problema: Mas a que fim estava voltada a minha opção em continuar varrendo, a um fim meu, próprio,
interno (a minha vontade), ou a um fim determinado exteriormente? Estaria de fato deixando de ser
humana caso continuasse a varrer todos os dias aquelas ruas? Não estaria submetida a essa condição por
ter como maior valor a possibilidade de poder viver? A que fim e o que justificava o modo de agir dos goim,
dos jundenrat e do prefeito? A atitude dos goim, dos jundenrat e do prefeito também consiste em abrir mão
da sua humanidade? Estariam os goim os jundenrat e o prefeito em uma condição semelhante a minha?
Por quê? Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma condição de
alienação?
Kal: Ela fez o que ela queria, ela fez a vontade dela, foi uma opção dela.
Adriá: Por que naquela época mesmo que os nazistas vissem a pessoa varrendo ou não fazendo nada eles
matavam. Eles achavam que tinham que matar e já matavam. Eles matavam também para mostrar o
poder...
Lídia Então ela preferia a vida e não ligava em perder a liberdade dela, mas preferia continuar vivendo.
Lídia: Eles (os jundenrat) eram judeus também?
Kal: Sim.
Professor: E a resposta à questão: “Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo?
Estaríamos em uma condição de Alienação?” Como ficou?
Grupo: Sim! Sim! Sim!
Professor: Por quê?
28A reflexão ―(...) consiste na descoberta, por parte do sujeito, das razões de suas ações e de sua
correspondência com as condições do problema‖ (SEMENOVA, 1996, p. 166). Pelo fato de a narrativa
apresentar condições para a solução do problema do experimento didático, ela subsidiaria os alunos para que
estes pudessem encontrar a razão da sua ação, que nesse caso seria encontrar a generalização conceitual
substancial (DAVIDOV, 1988), o conceito de alienação. Assim, durante a realização do experimento caberia
ao professor estar atento ―(...) ao plano intrapsíquico, à presença e à qualidade das negociações entre os
alunos e destes com o professor acerca dos critérios utilizados na resolução das tarefas‖ (SFORNI, 2004, p.
117), ou seja, o professor deveria estar atento aos mecanismos utilizados pelo aluno na tentativa de responder
ao problema. Portanto, era fundamental criarmos momentos e situações em que os alunos verbalizassem o
seu pensamento. Nesse sentido, as discussões em pequenos grupos e a socialização das ideias de cada grupo
foram previstas no experimento.
29 Para garantir o anonimato dos sujeitos envolvidos nessa pesquisa foram utilizados nomes fictícios.
Kal: porque era uma coisa obrigada, imposta pelo prefeito dela também, pelo líder, pela ditadura...
Adriá: Ela foi induzida a fazer aquilo...
Kal: É, ela foi induzida.
Kal: Se não ela (Léa) agisse assim ela morreria então ela teria que fazer.
Adriá: tem pessoas que estão alienadas sem perceber. Mas ela está alienada impondo aquilo a ela.
Kal: O prefeito também estava em condição de Alienação. Por que se ele se opusesse a esse regime ele
morreria. Então ele estava na mesma situação que ela.
Adriá: Quando aconteceu o Nazismo eles colocavam o poder... por exemplo... eles foram lá mataram as
crianças, os filhos, para mostrar que ele poderiam fazer aquilo com todos.
Maya: Eles tinham o poder!
Adriá: É, eles tinham o poder e esse poder era baseado na força que eles tinham, eles demonstravam para
as pessoas para amedrontar. Eles estão em situação de alienação não só pelo o que está acontecendo, pelos
acontecimentos, mas pelo medo, pelo... Para conservar a vida! É claro que eles não tinham liberdade, mas
eles se apegavam naquilo para preservar a vida. Ela mesma se apegou varrer as ruas como uma ultima
esperança... É o que dá para entender... Ela queria viver.
Adriá: Por que naquela época mesmo que os nazistas vissem a pessoa varrendo ou
não fazendo nada eles matavam. Eles achavam que tinham que matar e já matavam.
Eles matavam também para mostrar o poder... Lídia: Então ela preferia a vida e
não ligava em perder a liberdade dela, mas preferia continuar vivendo.
Por meio da observação atenta do diálogo nos grupos, foi possível ao professor
verificar que o nível do pensamento dos alunos em relação ao conceito filosófico não era o
esperado. Isso levou o professor a intervir por meio dos seguintes questionamentos: E a
resposta à questão: “Que condição traduz a minha atitude de continuar varrendo? Estaríamos em uma
condição de Alienação?” Como ficou? Por quê?
Grupo: Sim! Sim! Sim! Kal: porque era uma coisa obrigada, imposta pelo prefeito
dela também, pelo líder, pela ditadura... Adriá: Ela foi induzida a fazer aquilo...
Kal: É, ela foi induzida. Kal: Se não ela (Léa) agisse assim ela morreria então ela
teria que fazer. Adriá: tem pessoas que estão alienadas sem perceber. Mas ela está
alienada impondo aquilo a ela. Kal: O prefeito também estava em condição de
Alienação. Por que se ele se opusesse a esse regime ele morreria. Então ele estava na
mesma situação que ela.
Com isso, podemos afirmar que a intervenção do professor mediada pelo conceito
filosófico, após a identificação do nível do pensamento dos alunos em relação ao conteúdo
de ensino, permitiu-lhe reencaminhar suas ações para que a atenção dos alunos fosse
dirigida para o conceito de alienação e não se desviasse para outros aspectos não essenciais
do conceito.
Após termos mobilizado a atenção dos alunos por meio diálogo promovido pela
tentativa de responder a situação-problema presente na narrativa, foi apresentado aos
alunos conceitos de alienação de diferentes dicionários (incluindo dicionário filosófico),
comparando-os à situação existencial das personagens da narrativa a fim de que saíssem da
situação particular apresentada no texto e percebessem nela traços de um fenômeno geral,
ou seja, que caminhassem em direção à elaboração de uma síntese geral relativa ao conceito
de alienação. Não esperávamos, nesse momento, que os alunos chegassem ao conceito, já
que eles não tinham ao seu dispor reflexão proveniente dos clássicos da Filosofia, apenas
elementos do seu cotidiano, somados às definições dos dicionários; nossa intenção era a de
que tentassem elaborar uma síntese provisória que seria ampliada ou modificada à medida que
tivessem contato com o pensamento filosófico. Ao chegarem ao pensamento de Sartre, que
ocorreu no terceiro momento do nosso experimento, os alunos já estariam mentalmente
ativos com o conceito em pauta.
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
Partindo para os fatos concretos: é possível afirmar que Lukács escreveu uma
grande obra sobre a categoria do ser social: mesmo que sobre os ombros de Karl Marx, ele
sistematizou de tal forma a categoria que sem sombra de dúvidas se tornou um estudo
muito organizado. Para esta abordagem, selecionou-se dois dos diversos momentos do
desenvolvimento do ser social conforme estudos de Lukács: a ontologia e a teleologia. Não
se entrará em detalhes dos outros momentos em razão do espaço e do momento, que aqui
são apenas propícios aos escolhidos. Assim organizado, entende-se que a categoria do ―ser
social‖ será melhor entendida desde que, analisando-se a tese e a antítese se realize uma
síntese dialética concreta sobre a categoria em estudo.
2 1
30Ontologia: ―on.to.lo.gi.a sf (onto+logo +ia ) 1 Ciência do ser em geral. 2 Filos Parte da metafísica que estuda
o ser em geral e suas propriedades transcendentais (…)‖ (DICIONÁRIO MICHAELLIS).
Conforme Lukács (2010, p. 59), nas decisões teleológicas desparece o fato de que
os atos derivados da consciência, que muitas vezes parecem funcionar como única fonte de
alternativa de atividade do ser humano pudessem também constituir ontologicamente, de
modo isolado, o fundamento real da práxis e da existência humana. Essa aparência é um
elemento no ser social que não deve ser negligenciado.
―Mas, o que vem a representar em Lukács a palavra teleológico?‖ Para Lukács a
teleologia não tem o sentido comum de finalidade, objetivo ou meta. No domínio do ser
social o processo genético já é em si um processo teleológico. Isto tem como consequência
que o seu produto só mais tarde ganharia uma forma fenomênica de produto definido e
acabado, fazendo desaparecer sua própria gênese, quando o resultado alcança sua finalidade
(LUKÁCS, 2007, p. 79-80).
As formas de objetividade do ser social desenvolvem-se no rastro da emergência e
do desenvolvimento da práxis a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais social.
Esse desenvolvimento é um processo dialético, que começa com um salto com o ―pôr
teleológico‖ do trabalho sem o qual não pode ocorrer analogia alguma na natureza. O salto
ontológico não pode ser revogado pelo fato de que na realidade se trata de um processo de
longo alcance e com múltiplas formas de transição. Com o ato da posição teleológica do
trabalho temos em si o ser social (LUKÁCS, 2007, p. 71). Sobre o ato da posição de
trabalho, Marx deixa claro em Para a Crítica da Economia Política do capital que: ―(...) o
trabalho de um se torna o trabalho do outro, ou seja, os respectivos trabalhos de ambos se
tornam um modo de ser social‖ (MARX, 1996, p. 62).
Explicado o sentido da palavra ―teleológico‖ em Lukács, é necessário esclarecer a
expressão ―pôr teleológico‖. Para Lukács (2010, p. 61) não é um fim posto, mas um fim
consciente que separa as formas biológicas antigas do novo ser social. É a linha primária de
separação que mostra o ilimitado desenvolvimento da adaptação ativa do ser social. O ―pôr
teleológico‖ distingue ontologicamente as formas antigas de adaptação passivas fundadas
apenas no biológico. É essa necessidade de adquirir forma humana que, quando
relativamente estática, é o elemento de importância decisiva para a humanização do ser
humano em seu processo de socialização.
―Teleologia. Doutrina que considera a finalidade como princípio explicativo da realidade‖ (DICIONÁRIO
31
Lukács (2010, p. 71) entende que a ontologia crítica de Marx não é só crítica, não se
limitando apenas a controlar, mas é criativa e reveladora de novos processos dialéticos.
Desde o começo essa crítica partia dos princípios mais profundos do ser social e da
prioridade ontológica da práxis em contraposição a simples contemplação da realidade
efetiva por mais enérgica que se orientasse para o ser. A crítica de Marx é uma crítica
ontológica: ela se origina do fato do ser social ser uma adaptação ativa do homem ao seu
ambiente, repousando irrevogavelmente na práxis.
Todas as características reais relevantes do ser social só podem ser compreendidas a
partir dessa práxis e do exame ontológico das premissas de sua essência em sua verdadeira
constituição. No capítulo ―Crítica da Economia Política‖ em Para uma ontologia do ser social,
vol. 1, Lukács deixa expresso:
32 Ser-propriamente-assim: conceito de Lukács para designar a essência do ser antes de se tornar ser social.
33A generidade é uma teoria que auxilia a entender os momentos evolutivos do ser social.
Diante desse amplo espectro, só uma análise do novo ser social perante a natureza
pode avançar no sentido da verdadeira existência do ser (Seinsbestand). Lukács percebe que a
―concepção coisificada do ser‖ passa a ser substituída pela ―prioridade ontológica do ser‖ e
descreve:
precisamente é aquele âmbito que foi denominado investigação dos meios‖ (LUKÁCS,
2004, p. 73)35.
Ensina Lukács (2010, p. 339) que a formação do ser social advinda dos processos
ontológicos da espécie humana, que no início eram analogicamente tomadas, e o crescente
domínio prático e teórico que o fundamenta mostram por toda parte um recuo das
representações objetivas transcendentes36 e teleológicas.
No posfácio de Prolegômenos Para uma Ontologia do Ser Social, Tertulian (2010, p. 390),
mostra que, para a religião, a necessidade é onipotente, transcendente e funcional às
determinações do real, derivando conexões, mudando premissas e o curso dos fenômenos.
Para Lessa (1992, p. 46), mesmo na questão da fé religiosa a unidade essencial do espírito
só poderá ser postulada num plano que transcenda a bipartição do mundo imediato. Ensina
Lessa (2007, p. 45), como ensina Lukács, que a relação entre o projetar a forma ideal e
prévia da finalidade de uma ação (teleologia) corresponde à essência do trabalho,
permitindo compreender claramente sua ontologia.
Relevante para Lukács (2010, p. 349), se trata daquilo que se torna qualitativamente
novo. No qualitativamente novo não se deve ignorar que essas reações no ser social, por
vezes, não são puramente espontâneas e materiais. Elas são desencadeadoras de novos
tipos de pores teleológicos que respondem de maneira consciente com novos pores
teleológicos. Isso não apenas às próprias modificações, mas, principalmente, às
constelações por elas provocadas: as necessidades e tarefas decorrentes.
Lukács (2010, p. 358) exige serem objetivamente corretos os postulados da
efetividade dos pores teleológicos que surgem durante o curso do metabolismo do novo.
E tal exigência só pode ser efetivada em dimensão, conteúdo e formas no modo e ao ponto
em que permitir a respectiva constituição econômica e ideológica daquela etapa do
desenvolvimento do ser social em que tem lugar o metabolismo concreto.
Em relação a teleologia e a ontologia é preciso dar destaque a categoria trabalho.
Lukács (2010, p. 347-348) é categórico afirmando que o ponto ontológico da gênese do ser
social é o trabalho. Isso expressa uma adaptação ativa dos modos de vida socializado,
fazendo surgir novas determinações para novos modos de ação em que os processos
35 Gyorgy Lukács. Ontologia del ser social: el trabajo. ―El punto, pues, en que el trabajo se relaciona, desde el
punto de vista de la ontología del ser social, con el surgimiento del pensamiento científico y la evolución de
este, es precisamente que aquel ámbito que fue denominado investigación de los medios‖ (2004, p. 73).
36 Transcendente: (…) 2 que transcende a natureza física das coisas; metafísico. Ex.: entidades t.; 4 que está
acima das ideias e conhecimentos ordinários. Ex.: <simbolismo t.> <verdades t.> (...) (DICIONÁRIOS
HOUAISS, 2009, p. 736).
ontológicos precedentes não puderam revelar o momento decisivo do ser e sua relação
com a casualidade normal: o ―pôr teleológico‖, onde não menos importante para a
ontologia do ser social são as consequências subjetivas deste ―pôr‖ e o fato de que ele seja
caracterizado pela objetivação do processo de trabalho. E neste caso, para encerrar a
questão da ontologia, muito propriamente Lukács cita Marx e seu famoso exemplo:
Certamente ontologia e teleologia são partes de uma teoria da generidade que opera
quanto a forma e conteúdo pelo trabalho, expressando a problemática do ser social. Em
Lessa (1992, p. 43), os indivíduos desenvolvem personalidades autênticas em
individualidades cada vez mais socializadas mediadas por categorias sociais cada vez mais
genéricas e as formações sociais adquirem formas materiais e espirituais genéricas cada vez
mais desenvolvidas. Esta generalidade não é mera abstração, mas universalização realizada
pelo real e pela história. A esta universalidade concreta Lukács denominou generidade.
Para Carli (2009, p. 20-21) quanto menos se desenvolve uma sociedade, quanto
menos é intrínseca a retração dos limites naturais, menor é a variedade de questões postas
para seus membros e sua diferenciação resulta do desenvolvimento social. À proporção que
a sociedade avança, a sociabilidade e a natureza cede espaço à intervenção das categorias
sociais, o homem alcança níveis maiores de humanização e individualidade da mesma
maneira que a generalidade ganha em complexos.
Em Tertulian (2010, p. 384), a ontologia compreendida nos Prolegômenos, culmina
efetivamente numa teoria do gênero humano, distinguindo entre generidade em-si e
generidade para-si: esta problemática é resolvida por meio da Ética.
Em conclusão: a compreensão do ser social passa pela compreensão de sua
ontologia e teleologia originária como prevê nossa hipótese, resolvendo-se a questão de
como ambas contribuiriam para a visibilidade do ser social. Ontologia e teleologia mostram
os momentos bem definidos do desenvolvimento dos ser, antes de atingir a humanização
transformadora, através de saltos qualitativos ontológicos e teleológico que se mostra por
pores teleológicos dentro de um movimento finalístico de transformação do não ser em
ser, do inorgânico em orgânico, do orgânico em animal e, por fim, neste salto qualitativo se
mostra também o movimento de transformação do ser animal em ser social.
Referências Bibliográficas:
Nessa citação, Gramsci mostra que o trabalho como atividade teórica (conceito) e
prática (fato) permite ao processo educativo uma formação histórico-dialética do mundo.
Segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2013) esse duplo sentido do trabalho também está
expresso no pensamento de Lukács, o qual aborda o trabalho pela dimensão ontológica e
histórica. A dimensão ontológica do trabalho revela que por meio dele o ser humano se
humaniza, cria, produz conhecimento e se aperfeiçoa. Pela dimensão histórica, o trabalho
permite compreender sua utilização como força produtiva e sua consequência de trabalho
explorado. Para Saviani (2007) em uma concepção ontológico-histórico do vínculo entre
educação e trabalho, o homem torna-se homem, porque trabalha e educa.
Os autores Frigotto, Ciavatta e Ramos (2013) alertam ainda que na relação
educação e trabalho é preciso não ser inocente e reconhecer que esta relação é parte da luta
hegemônica entre capital e trabalho. É preciso admitir que o trabalho não é
necessariamente educativo. Então, como entender esta relação? Para estes autores: ―o
trabalho, no sentido ontológico, é princípio e organiza a base unitária do ensino médio‖.
Assumir esta postura significa também assumir o trabalho como princípio éticopolítico, ou
seja, uma educação emancipatória que reconhece a dimensão criativa do trabalho na
produção existência humana e social.
Segundo Ramos (2003) é importante notar que historicamente o Ensino Médio
esteve predominantemente centrado na formação para o mercado de trabalho. Isso
significa que é preciso deslocar o foco de seus objetivos para a pessoa humana. Ainda,
afirma que a finalidade do Ensino Médio deve ser o sujeito e o conhecimento, ou seja,
garantir o direito ao conhecimento historicamente construído em uma base unitária em que
o sujeito tenha uma formação que sintetiza humanismo e tecnologia. Assumir o trabalho
como princípio educativo implica defender um projeto unitário de educação que supere a
dualidade histórica entre a formação básica e a formação profissional.
Outro importante pensador que trabalha a dimensão ontológica da relação
educação e trabalho é Álvaro Vieira Pinto37. Segundo Pinto (2003, p. 20) ―a educação é
parte do trabalho social‖, pois é por meio do trabalho que o homem expressa e define sua
37 Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) é considerado um filósofo marxista e chamado por Paulo Freire de
―mestre brasileiro‖. Cito uma de suas principais obras: O Conceito de Tecnologia (em 2 volumes). Através de seu
enfoque da filosofia da técnica vinculava, em plena ditadura militar, a relação filosofia, antropologia e história
em um projeto emancipador para países em dependência tecnológica. Este autor é utilizado como referência
teórica em documentos dos Institutos Federais, daí a importância de uma análise mais profunda desta
referência teórica para a educação tecnológica.
emancipação? O autor afirma que os teóricos da teoria crítica já mostraram sua visão cética
da possibilidade de emancipação da tecnologia. Assim expressa um dos teóricos:
Diante do paradoxo dos autores expostos uma questão surge: nessa sociedade
tecnológica, onde os indivíduos têm maiores espaços para expressarem suas subjetividades,
também estaríamos formando trabalhadores com maiores condições de emancipação
social? Precisamos investigar se a formação que a nossa escola proporciona está
problematizando esta relação entre trabalho, tecnologias e emancipação. Outra questão
ainda se pode colocar: essa subjetividade que o trabalho flexível exige está funcionando a
partir de que lógica, como adaptação ou autonomia?
Retomando o conceito de capital humano a partir da visão de Foucault, percebe-se
a construção de uma subjetividade38 para atender os interesses econômicos. A formação de
competências visa formar um indivíduo com capital humano para o mercado de trabalho.
38 A subjetividade, para Foucault, se refere às práticas por meio das quais o indivíduo constrói uma verdade
sobre si. Em suas palavras, define subjetividade como: ―a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si
mesmo num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo‖ (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p.
85). Abordar o tema da subjetividade na perspectiva foucaultiana significa tratar dos modos de subjetivação,
ou seja, os modos – as práticas, as técnicas, os exercícios – colocados em ação em um determinado espaço
institucionalizado, no qual o sujeito se constrói nas relações de saber-poder e na produção de verdade.
Entender como os indivíduos através de práticas que os relacionam a si mesmo, se produzem e se
transformam. E como isso, buscam a afirmação de uma subjetividade autônoma, como meio de superação
das práticas de subjetivação (dominação do sujeito).
indivíduo direciona sua vida para escolhas e desejos que ele não fez, já foram estabelecidos
por outros.
Este cenário demonstra que estamos diante da construção de uma subjetividade
submetida. Ideia também defendida por Viegas (2010, p. 186), o qual aponta que ao mesmo
tempo em que há uma liberação da subjetividade do trabalhador, há também, uma
submissão dela aos objetivos da produtividade.
Retomando a relação educacional, Jean-Claude Forquin (1993, p. 20) ao tratar da
educação na modernidade defende que não podemos nos satisfazer com um discurso
pedagógico instrumentalista, que faz da tarefa da educação como único alvo a formação de
espíritos ágeis, adaptáveis, flexíveis para estarem preparados para as eventualidades.
Segundo Lukács (1969) nesta sociedade em que se tem ênfase o desenvolvimento
das capacidades se tem na verdade uma alienação da personalidade humana, pois ela
assume um caráter coercitivo em sua própria produção. Para superar esta coerção e buscar
a autonomia se faz necessário designar o homem pelo trabalho como um ser que dá
respostas. Pode-se ainda complementar afirmando que o homem só responde, porque há
perguntas, problemas. E nisso a dimensão filosófica tem papel indispensável, como
veremos a seguir.
Desta maneira, retomemos a questão: como construir uma subjetividade
emancipadora em meio a uma sociedade de consumo passivo de tecnologias e informação
para adequar-se as necessidades do capital? A resposta pode estar na problematização da
estrutura que sustenta a complexidade desta realidade: a informação/o conhecimento.
Nesta sociedade tecnológica em que se exige do trabalhador cada vez mais domínio
dos mais variados conjuntos de informação, dificilmente se está formando um sujeito capaz
de produção de conhecimento, mas apenas como instrumento de reprodução do capital.
―Nenhuma outra criação humana tornou-se instrumento mais valioso na atualidade do que
o conhecimento capaz de fazer com que o capital se reproduza‖ (BAIBICH;
MENEGHETTI, 2008, p. 90). Ainda, segundo Baibich e Meneghetti (2008, p. 93) tal como
a postura da dialética negativa de Adorno é preciso questionar os próprios pressupostos
racionais que constroem a ciência.
Já para Saviani (2007) o conhecimento deve ser o objeto do processo de ensino,
pois compreender sua construção é indispensável para uma visão crítica do processo
produtivo. ―O papel fundamental da escola de nível médio será, então, o de recuperar essa
relação entre o conhecimento e a prática do trabalho‖ (SAVIANI, 2007, p. 160)39.
Para tal empreendimento, entende-se como indispensável a postura teórica
assumida por Gilles Deleuze e Félix Guattari na definição de filosofia. Para esses autores, a
tarefa da filosofia é o de criar conceitos, atitude que só é possível pela problematização.
Referências Bibliográficas:
39 Em uma primeira análise se percebe que os currículos dos cursos técnicos do IFPR não têm a disciplina de
filosofia como componente curricular. Isso seria imprescindível para que o aluno tenha uma visão crítica do
processo de construção do conhecimento e da ciência. Geralmente os cursos tem a disciplina de ética, a qual
não abarca essa temática.
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar as relações entre o tempo, tal
como concebido por Hegel na sua Naturphilosophie, e a finitude da matéria, que é
determinada por sua própria natureza múltipla e dispersa, cujo estilhaçamento é exposto
pela divisão entre o antes e o depois. Buscar-se-á também fazer alguns apontamentos sobre
a tríade tempo, duração e eternidade e suas relações com a finitude das coisas expostas no
tempo, inclusive no que concerne ao indivíduo vivo e a alterabilidade que lhe é inerente.
Palavras-chave: Morte; tempo; Filosofia da Natureza; Hegel.
40 ―Não pode entender-se como se o espaço e o tempo fossem formas apenas subjetivas. A tais formas Kant
queria reduzir o espaço e o tempo. Contudo, em verdade, as coisas mesmas são espaciais e temporais; essa
dupla forma do ‗fora-um-do-outro‘ não lhes é introduzida unilateralmente por nossa intuição; mas já lhes é
fornecida originariamente pelo espírito infinito essente em si, pela ideia eterna criadora‖. Cf. HEGEL,
G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A filosofia do espírito, 1995, p. 231, (§ 448 A).
41 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 55, (§ 258 A).
42 Kronos é o deus do tempo na mitologia grega, tendo em Saturno seu correspondente na mitologia romana.
Por ter medo de ser destronado, comia todos os seus filhos quando nasciam. Devorou todos, menos Zeus,
que conseguiu escapar e se vingar de seu pai. Não dá para deixar de mencionar a famosa obra de Francisco
Goya (1746-1828), um dos mestres na representação do sofrimento humano, Saturno devorando seu filho (1819-
Todo o finito está submetido à força do tempo e sucumbe no mesmo, assim como
também se torna temporal por meio do tempo46. Traz consigo a sua temporalidade, porque
tem em si a contradição da finitude e do ser natural, a sua unilateralidade no processo, que
toma o negativo como essência, mas não em sua totalidade; a sua temporalidade, assim, é a
forma na qual a contradição aparece nele. Já no conceito a contradição resolve-se, o finito
não tem lugar nele e o tempo não consegue impor sua potência sobre ele: o conceito está
fora do tempo, visto que a temporalidade é a forma da exterioridade do próprio conceito.
1823). Amargurado pela surdez e pela turbulência de sua época, no fim da vida (curiosamente!) Goya criou
várias obras sombrias e perturbadoras. Algumas das mais notáveis fazem parte das Pinturas negras (entre elas a
mencionada acima) – assim chamadas por causa das cores escuras e do clima sóbrio – que ele começou a
pintar em 1820, na Quinta del Sordo, sua casa nos arredores de Madrid. Cf. FARTHING, Stephen (org.). 501
grandes artistas. 2009, pp. 164-167.
43 MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito, 2003, pp. 176-180.
44 ―O tempo é o modo geral do nascimento e da morte, vistos no grau do ser outro e da exterioridade. O fato
de tudo nascer e morrer ―no tempo‖ é muito conhecido, mas não é a verdade do tempo, pois o tempo não é
qualquer coisa de diferente desse nascer e morrer: se se lhe removesse o conteúdo que nele nasce e morre
nem por isso careceria do devir‖. Cf. HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão, 1983, p. 574.
45 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 56, (§ 258 A).
46 ―A cada instante do tempo o ser finito, enquanto efetivamente existente, é (existe), mas, por depender de
condições por ele não controladas para existir, pode por igual não-ser (deixar de existir): ele não é capaz de
eliminar a possibilidade de sua própria dissolução‖. LUFT, Eduardo. As sementes da dúvida, 2001, p. 180.
Ora, quando lidamos com o finito estamos já no tempo, pois só o ser finito parece
comportar uma separação entre um antes e um depois. A possibilidade de tal dissociação em
geral deve, pois, encontrar-se no seio do ser finito: aquilo que constitui a definição das
coisas finitas, aquilo que as torna corruptíveis e mortais é a diferença que apresentam entre
o conceito e a realidade, onde corpo e alma se cindem. A finitude das coisas, como já foi
observado, inscreve-se sobre o plano de fundo desta divisão originária (Urteil). Que o finito
desapareça não é consequência de uma mera contingência. Ele volta-se à desaparição por
sua própria natureza múltipla e dispersa, cujo estilhaçamento é exposto pela divisão entre o
antes e o depois47.
No tocante ao que até agora foi abordado, cabe fazer alguns apontamentos sobre a
tríade tempo, duração e eternidade e suas relações com a finitude das coisas expostas no
tempo. Que se permita a longa citação da Filosofia da natureza:
O agora tem um enorme direito – ele é nada como o agora singular; mas
este excludente em seu pavonear-se é dissolvido, liquefeito, pulverizado
enquanto eu o (digo ou) pronuncio. A duração é o universal deste agora
e daquele agora, é o ser-suprassumido deste processo das coisas, que não
duram. Porém as coisas finitas são todas temporais, pois estão sujeitas à
alteração por pouco ou por longo (tempo); sua duração, com isto é
relativa. A intemporabilidade absoluta é diferente da duração; é a
eternidade que é sem o tempo natural. A eternidade não será, nem foi,
mas ela é. A duração é apenas um relativo suprassumir do tempo; mas a
eternidade é duração infinita. O que não está no tempo é o sem-
processo; o péssimo e o mais perfeito (isto) não está no tempo, dura.
Mas a duração não é vantagem. O duradouro é mais altamente cotado do
que o (breve) transitório; mas toda florescência, toda bela vitalidade tem
morte cedo48.
47 ―O entendimento visa a essência passageira e temporal do finito, mas não consegue concebe-la, ainda mais
por mostrar-se incapaz de captar o finito como um nada e o ser deste como um ser que tem apenas o valor e
a significação do não ser. Tal é a impotência do entendimento, justamente aquela que está na origem do
destino que põe o entendimento à mercê da oni-potência do tempo‖. Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel –
a ordem do tempo, 1981, pp. 73-80.
48 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, pp. 56-57, (§ 258 A).
Mas isso não quer dizer que durar seja algo vantajoso para a coisa. Por exemplo, ―a
terra aparece como um produto morto. Ela dura. Os membros da terra por isso
permanecem, e isto não é nenhuma vantagem; o ser vivo, ao contrário, tem o privilégio de
surgir e desaparecer49―. Algo como o Sol, a natureza inorgânica e até as pirâmides50 do
Egito duram; mas esta sua ―durabilidade‖ não lhes dá o certificado de serem superiores ao
transitório ou efêmero: Hegel assume que é exatamente o inferior que têm uma duração
especialmente longa, como é o caso, por exemplo, do inorgânico em relação ao orgânico,
de figuras medíocres comparadas com indivíduos que pertencem à história mundial51.
Como nos aponta Hosle, um nível de ―maior complexidade oferece mais ocasião de ataque:
um organismo unicelular, justamente por ser tão simples e exercer tão poucas funções,
corre menos perigo que o de um vertebrado‖52. Porém as coisas finitas estão todas no
tempo e mais dia, menos dia, também terão seu desaparecimento, pois estão envoltas na
mudança, pelas alterações que se dão através do próprio tempo.
Quanto à eternidade53 (Ewigkeit), se deve fazer diferença entre ela e a temporalidade.
A eternidade, ainda que possa se apresentar como duração infinita, não está no tempo.
Hegel não compreende a eternidade como algo além, que viesse após o tempo, pois desse
modo ―a eternidade seria transformada no futuro, em um momento do tempo‖54. Hegel
sugere que a eternidade é anterior ao próprio tempo e isto tem consequências no
pensamento do alemão no que tange à imortalidade. A imortalidade genuína requer uma
suas ações, isto é, o mundo por ele suscitado‖. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da
natureza, 1997, p, 57, (§ 258 A).
52 HOSLE, Vittorio. O sistema de Hegel, 2007, pp. 345-346.
53 Sobre o entrelaçamento das dimensões do tempo em Hegel: ―No sentido positivo do tempo pode-se pois
dizer: só o presente é, o antes e depois não é; mas o presente concreto é o resultado do passado, e está prenhe
do futuro. O verdadeiro presente é assim a eternidade‖. Cf. HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas.
– Filosofia da natureza, 1997, p. 60, (§ 259 A). Uma explicação: ―Ora, pode-se dizer, então, que as dimensões do
tempo não apresentam entre si nenhuma diferença efetiva. Só o entendimento no que lhe é peculiar, ou seja,
na sua capacidade de separar e distinguir, pode hipostasiar cada dimensão do tempo e permitir assim a cada
uma corresponder ao seu conceito. Passado é presente que já não é, o futuro é presente que não é ainda, e o
presente esmo sempre se esfuma num e noutro, quando tentamos surpreendê-lo‖. Cf. MORAES, Alfredo de
Oliveira. A metafísica do conceito, 2003, p. 179.
54 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 56, (§ 258). ―A eternidade
não é antes nem depois do tempo, não antes da criação do mundo nem quando ele se acaba; mas a eternidade
é presente absoluto, o agora, sem antes nem depois. O finito é temporal, tem um antes e um depois; e quando
se tem o finito diante de si se está no tempo. Seu tempo começa com ele e o tempo é só do finito. A filosofia
é compreensão intemporal também do tempo e de todas as coisas em geral, segundo sua determinação eterna.
O tempo infinito é só uma representação, um ir-além que permanece no negativo‖. Idem, Ibidem, p. 28, (§
247 A).
constância no tempo; logo o conceito e o espírito55, que são eternos, não podem ser
imortais, pois estão desvinculados do tempo.
55 Em Hegel, temporalidade e finitude são co-extensivos; as coisas finitas são mortais e contingentes, isto é,
estão no tempo – sua potência – porque se definem pela separação de seu conceito e de seu ser; em
contrapartida, somente o espírito, que está no elemento do universal, evolui no elemento da eternidade.
56 INWOOD, Michael. Dicionário Hegel, 1997, pp. 228-230.
57 ―Conforme sua crítica ao mau infinito, que permanece um finito justamente como algo do além, na medida
em que tem algo em face de si, Hegel rejeita a concepção segundo a qual a alma existiria independente do
corpo. De fato Hegel parece simpatizar com a concepção aristotelizante-averroísta, segundo a qual apenas a
razão supra-individual é imortal – ela é, afinal, a essência do mundo. Segundo consta, quando sua mulher uma
vez o interrogou sobre isso (a imortalidade da alma), ele teria, ‗sem gastar uma só palavra, apontado com o
dedo para a Bíblia‖. Cf. HOSLE, Vittorio. O sistema de Hegel, 2007, p. 393.
58 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, 2010, pp. 392-418 (B 454 – B 489 ).
59Kant define o que é um postulado da razão prática pura: ―Uma proposição teórica mas indemonstrável
enquanto tal, na medida em que ele é inseparavelmente inerente a uma lei prática que vale incondicionalmente
a priori‖. Cf. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática, 2003, pp. 425 – 477. Para se aproximar da santidade,
requerida como prática de toda razão, e que só pode se espraiar num progresso ao infinito, este (progresso ao
infinito) só é alcançável através da postulação da imortalidade: uma existência do ente racional que perdure ao
infinito. Para uma crítica de Hegel aos postulados da razão prática, cf. MULLER, Marcos Lutz. A crítica de
Hegel aos postulados da razâo prática como deslocamentos dissimuladores. IN:_ Veritas, Porto Alegre, Vol. 43, Nº 4,
1998 , pp. 927-960.
Desta forma, a filosofia prática, tema da segunda crítica de Kant, podia tornar-se
concretizada dentro desta vida e não exigia a interminável tarefa implícita no postulado da
imortalidade da alma, por exemplo. Quanto a isso, Hegel assim se expressa:
De resto, se pode fazer uma contraposição a esta crítica de Hegel, no que Kant
expõe no seu opúsculo O fim de todas as coisas (1794). Nele, como explica Artur Morão, Kant
busca transformar a teologia em antropologia, a religião em moralidade, retirando todos os
elementos místicos da fé histórica e transmudando-os para uma fé moral, onde ―tudo o que é
histórico e sobrenatural se circunscreve à medida do homem com a sua razão e se subordina à sua realização
moral61―. A imortalidade, que se apresenta como uma espécie de vida eterna nas doutrinas
religiosas (principalmente no catolicismo) é criticada por Kant, pois ela teria a característica
de ser uma passagem do homem, ao morrer, no tempo para a eternidade, o que, segundo
Kant, é um erro se por eternidade for entendido um tempo que se estende até ao infinito, o
que resultaria também numa má infinitude. Nesse sentido, Kant e Hegel parecem convergir
na mesma perspectiva da impossibilidade de uma genuína imortalidade das coisas e até
mesmo do próprio espírito.
Mas como se dá a relação do tempo com o indivíduo imerso no mundo natural?
60 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A ciência da lógica, 1995, pp. 189-190, (§ 94).
61 Cf. KANT, Immanuel. O fim de todas as coisas. In: Biblioteca online de Filosofia e cultura. Disponível em: <
http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_fim_de_todas_as_coisas.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2013. Continua
Morão: ―(Neste texto) aborda-se tão-só a doutrina que, tradicionalmente, se refere aos Novíssimos (morte,
juízo, inferno e paraíso). Respeitoso para com o cristianismo (que, no entanto, empobrece e desfigura),
coerente consigo mesmo, Kant expurga o tema do Juízo de todos os resquícios míticos e reduz a sua
substância à exigência e ao veredicto da razão moral‖. Segundo Kant: ―É uma expressão corrente, sobretudo
na linguagem religiosa, aplicar a um homem que está a morrer a expressão de que ele passa do tempo à
eternidade. Esta expressão nada diria se por eternidade se entendesse aqui um tempo que se estende até ao
infinito; porque assim o homem nunca sairia do tempo, antes passaria constantemente de um a outro. Deve,
pois, entender-se por ela um fim de todo o tempo, com a ininterrupta duração do homem. Mas tal duração
(olhada a sua existência como grandeza) considerar-se-á, todavia, como uma grandeza de todo incomparável
(duração noúmenon) com o tempo, da qual não podemos fazer conceito algum (excepto apenas negativo)‖.
Idem, Ibidem,, p. 1.
Esta contradição, que envolve todo o ser-aí (ser vivo), de ser em si o gênero, apesar
de existir como indivíduo, e só ganhar sua verdade de singular no espírito, onde a
universalidade (gênero) é para si, e desta forma, a morte animal não sendo conduzida a um
mau infinito de vidas e mortes sem significação, é o que ganha sentido na morte do
indivíduo e força do gênero, ponto mais alto da natureza em sua exteriorização.
Referências Bibliográficas:
ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel – a ordem do tempo. São Paulo: Editora Polis, 1981.
FARTHING, Stephen (org.). 501 grandes artistas. Rio de Janeiro: Sextante, 2009.
HARTMANN, N. A filosofia do Idealismo alemão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. A Ciência da lógica. São Paulo: Edições
Loyola, 1995.
62 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – Filosofia da natureza, 1997, p. 57, (§ 258 A).
63 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas. – A ciência da lógica, 1995, p. 189, (§ 92 A).
--------------------- Enciclopédia das ciências filosóficas. Filosofia da natureza. São Paulo: Edições
Loyola, 1997.
-------------------- Enciclopédia das ciências filosóficas. A Filosofia do espírito. São Paulo: Edições
Loyola, 1995.
HÖSLE, V. O Sistema de Hegel. São Paulo: Loyola, 2007.
INWOOD, M. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010.
----------------------- Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
---------------------- O fim de todas as coisas. In: Biblioteca online de Filosofia e cultura.
Disponível em: < http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_fim_de_todas_as_coisas.pdf>.
Acesso em: 10 jul. 2013
MORAES, Alfredo de Oliveira. A metafísica do conceito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
MULLER, Marcos Lutz. A crítica de Hegel aos postulados da razâo prática como deslocamentos
dissimuladores. IN:_ Veritas, Porto Alegre, Vol. 43, Nº 4, 1998.
Todos os Estados para serem erigidos com segurança, e assim manter-se, devem
possuir em sua base dois sólidos elementos: boas armas e boas leis. Para Nicolau Maquiavel
são esses os fundamentos de todo e qualquer organismo político. Este postulado aproxima-
se de uma verdade axiomática para o Secretário. A existência dos Estados está sujeita ao
modo como essas duas esferas são constituídas e articuladas no interior do aparelho estatal.
Esta é uma lei universal e imutável da política: um exército forte e a capacidade governativa
são as duas pilastras sobre as quais se apoia qualquer Estado. Considerando a importância
que a teoria maquiaveliana atribuiu a essas duas esferas, o trabalho aqui apresentado possui
um duplo propósito: por um lado, a partir de uma breve análise das obras do Secretário
florentino, situar o modo pelo qual essa tese alcançou proeminência e se fixou como uma
verdade inquestionável; por outro lado, indicar a dinâmica de complementaridade que leis e
armas desempenham no interior de um Estado, dedicando particular atenção ao aspecto de
superioridade que a esfera militar granjeia.
Nos Primi scritti politici64 de Maquiavel a ideia de que boas armas e boas leis eram os
fundamentos dos Estados já estava fortemente presente. Esse conjunto de textos, redigidos
enquanto servia a segunda Chancelaria de Florença, possuem em estágio embrionário
algumas das concepções políticas que serão desenvolvidas com maior rigor e acuidade em
suas obras clássicas. De modo particular, o posicionamento acerca dos fundamentos do
Estado é algo enunciado por Maquiavel nesses escritos de forma acabada, atravessando
posteriormente todas as obras ―maduras‖ do Secretário, escritas no isolamento das
atividades práticas da política em Sant‘Andrea in Percussina. Dessa forma, armas e leis são
os alicerces da política: essa é uma assunção teórica que não apresenta a oportunidade de
ser reformulada ou sequer questionada.
A constatação do papel decisivo desempenhado pela força aliada às leis no interior
do Estado é apresentada pela primeira vez nas Parole da dirle sopra la provisione del danaio, facto
un poco di proemio et di scusa65, texto de 1503 composto para solucionar um problema muito
específico e prático da República de Florença: a carência de armas e a resistência da classe
governativa em aprovar novas taxas para armar a cidade. Assim, diz Maquiavel com o
intuito de persuadir as esferas governativas a abandonaram sua postura irresoluta e aprovar
as indispensáveis taxas, que ―Todos os Estados (città) que em um momento determinado
(...) tenha sido governado por um príncipe absoluto, por optimates ou pelo povo (...) tem
contado como base de sua defesa com a força unida à prudência‖. Essa interação decorre de
que a prudência ―sozinha não basta‖, e a força ―ou não chega a resolver os assuntos, ou, se
os resolve, não consegue torná-los duradouros‖. Assim, essas duas esferas ―são o nervo de
todos os Estados (signorie) que foram ou serão no mundo‖ (Parole, p. 12).
Consequentemente, a privação de um desses âmbitos é a razão do esfacelamento
dos corpos políticos. Nesse sentido, afirma o Secretário florentino, a mutação dos reinos, a
ruína das províncias e das cidades não é nada além ―do que a carência de armas ou de
sentido comum (senno)‖. (Parole, p. 12). E o fim desses Estados é essencialmente desastroso,
fatidicamente ocorrendo ou ―pela destruição ou pela servidão‖ (Parole, p. 13).
No entanto, apesar da dramaticidade com que Maquiavel realiza essas afirmações,
em um texto voltado exatamente para alertar os florentinos da carência dessas armas, como
64 Seguimos a designação dada por J. J. Marchand na edição de 1975, Niccolò Machiavelli. I primi scritti politici
(1499-1512). Pádua: Antenore.
65 Doravante, Parole. Todas as passagens que porventura utilizarmos são de nossa tradução.
era o caso das Parole, o mais relevante para nosso propósito é observar a dimensão que a
tese alcança: força e prudência não são princípios diretivos que apenas Florença deveria
providenciar, mas algo que todos os corpos políticos deveriam prezar. Assim, do caso
particular florentino emana uma norma geral que preanuncia fortemente O Príncipe, os
Discursos e aqui também a Arte da Guerra: ―todo Estado, para manter-se, deve estar bem
armado; a força, e a força somente, é aquela que induz os outros ao respeito nas relações
entre Estados‖ (CHABOD, 1964, p. 325).
Com o mesmo teor universalista Maquiavel reapresentava sua tese em um
documento de 1506 que serviria de base para uma futura lei sobre as ordenanças
florentinas, o La cagione della‟ordinanza, dove la si truovi et quel che bisogni fare.66 Assim, como
uma verdade claramente manifesta, afirma que ―todos sabem que quem diz império, reino,
principado, república, quem diz homens que comandam (...), está dizendo justiça e armas‖
(La cagione, p. 26). Certamente, isto fica ainda mais explícito na própria lei que
regulamentava e institucionalizava as milícias em Florença, a Provisione della Ordinanza67,
escrita (tanto a lei quanto o projeto) pelo então Secretário florentino. O texto é aberto com
termos similares aos apresentados anteriormente. Assim, considerando todas as repúblicas
―que em tempos passados se mantiveram e engrandeceram, contaram sempre com duas
coisas como seu principal fundamento, isto é: a justiça e as armas‖ (Provisione, p. 31).
Nos escritos políticos clássicos essa posição ecoa claramente as Parole, a La cagione e
a Provisione. Nos capítulos voltados aos assuntos militares do Príncipe, Maquiavel afirmava
em termos análogos que ―os principais fundamentos de todos os estados, tanto dos novos
como dos velhos ou dos mistos, são boas leis e boas armas‖. Mas acrescenta uma
importante observação – que analisaremos posteriormente – de que ―não se podem ter
boas leis onde não existem boas armas, e onde são boas as armas costumas ser boas as leis‖
(O Príncipe, XII, p. 57). Essa passagem parece ser recordada por Maquiavel, quando nos
Discursos escreve que ―embora doutra vez já tenha dito que o fundamento de todos estados
é a boa milícia, e que onde ela não existe não pode haver boas leis nem coisa alguma que
seja boa, não me parece supérfluo repeti-lo‖ (Discursos, III, 31, p. 416-7).
do discurso, tratar das armas e deixar sobre o fundo as leis‖ (SASSO, 1980, p. 343). A
insistência maquiaveliana sobre este ponto não nos autoriza a resolver o problema desta
maneira. Com efeito, apesar de compartilharem a mesma condição, a de base do corpo
político, Maquiavel entrelaça estruturalmente esses termos de maneira que a eficácia das leis
acaba, de certo modo, condicionada à realidade das boas armas.
A relativa diferença das posições ocupadas pela estrutura militar e pela estrutura
política pode ser explicada se compreendermos que a qualidade bélica do corpo político
mantém uma estreita relação com a qualidade de sua organização política e constitucional.
Um aparato militar razoável pressupõe que as leis que o regulamentaram também sejam
favoráveis, uma vez que possibilitaram o estabelecimento dessa estrutura. Todavia, isso
ainda não esgota a questão da superioridade das armas sobre as leis. Por certo, prover a
cidade de um exército só é algo possível se a própria organização política também sofrer
significativas alterações. É nesse sentido que Maquiavel afirma que onde são boas as armas
também as leis costumam ser boas: ali, o conjunto legal sofreu modificações – para melhor,
é lícito supormos – que permitiram a inclusão dessa estrutura no corpo político, algo que
só é possível se algumas condições políticas bem determinadas também forem observadas.
Além disso, a questão da prioridade das armas é permeada pela necessidade da
sobrevivência do próprio organismo estatal. Nesse sentido, a exigência de um bom governo
é determinada por um motivo maior: a existência do próprio Estado. Armar os súditos ou
cidadãos, no entanto, só se torna uma realidade possível se existir uma estreita relação de
fidelidade68 entre os indivíduos e o Estado ao qual pertencem. Favorecer essa ligação, através
das leis, é uma das principais circunstâncias – quiçá a principal – para que a defesa dos
interesses políticos estatais seja feita através dos seus próprios meios. Em suma, boas leis
são necessárias para que haja essa maior identificação entre cidadãos e Estado. E a razão
essencial que impele a essa identificação é a imprescindibilidade do corpo armado para
garantir a autonomia do corpo político. Do mesmo modo, compreendemos, no encalço de
Frosini (2004, p. 16), que existe aqui um problema de consenso, uma vez que é ingenuidade
pretender ―fidelidade e lealdade se não existe uma base de reciprocidade dada pelo bom
governo e pelos direitos‖. Ao faltar o bom governo, a fidelidade entra em processo de
colapso, expondo o Estado a qualquer potência disposta a dominá-la. Existe assim, destaca
o comentador italiano, ―uma prioridade lógica da guerra sobre a política, pela qual a guerra
68Era justamente a falta dessa fidelidade em Florença que Maquiavel denunciava com veemência nas Parole
(Cf. p. 13).
Referências Bibliográficas:
69A política entre Estados só é possível se escorada em um eficaz regimento militar, pois se "entre os homens
privados são as leis, os escritos e os pactos o que fazem observar a fé", "entre os senhores somente as armas a
mantém" (Parole, p. 14)
______. Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. Trad. de MF. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
______. O Príncipe. 2ª ed. Trad. de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
Douglas Meneghatti
UNIOESTE/Campus de Toledo
douglas_meneghatti@hotmail.com
Espíritos livres
um espírito livre é precedida por um estado de tensão, o resultado da ação ocorre de modo
inusitado, somente a partir dele os princípios universais construídos pelo estado e pela
religião são dilacerados. O conhecimento revela o seu poder criador e repentino, as velhas
certezas pautadas sobre princípios lógicos e verdades dogmáticas cedem lugar à gratuidade
e à desmedida da experiência sempre singular e aberta a novas interpretações. Referindo-se
a eles, Nietzsche descreve:
Além de espírito livre, Sócrates é também lembrado por se preocupar com as coisas
próximas e, portanto, humanas. Outras passagens, como, por exemplo, o § 72 de WS/AS,
ressalta a alegria da ironia ática como auxiliar inerente à missão socrática, o que corrobora
com a passagem de JGB/BM § 191, em que Sócrates é descrito como: ―(...) grande irônico
rico em mistérios‖, enfim, para respondermos a questão: por que Sócrates é citado como
espírito livre? Devemos levar em consideração, dentre outras coisas, o professor apolínio e
a atitude irônica.
Tais testemunhos sobre Sócrates revelam as nuances do pensamento nietzschiano,
que vai se construindo em meio à diversidade de personagens e conflitos que o próprio
Nietzsche vai estabelecendo no decorrer dos seus livros. Numa perspectiva deleuziana,
para a qual, ―(...) Cada personagem tem vários traços, que podem dar lugar a outros
personagens, sobre o mesmo plano ou sobre um outro: há uma proliferação de
personagens conceituais‖ (DELEUZE; GUATARI, 1992, p. 100). Sócrates teria sido um
dos mais intrigantes e dinâmicos personagens conceituais retratados por Nietzsche,
destarte, desde já, compete ressaltar, que embora personalidades como Sócrates e Voltaire 70
sejam, nesse momento do pensamento nietzschiano, retratados como ―espíritos livres‖,
posteriormente o mesmo inverte sua concepção, concluindo que não existem e nunca
existiram ―espíritos livres‖. A este respeito é conveniente citar uma passagem do prólogo
da obra em discussão acrescido na primavera de 1886:
70 No § 221 de MA I/HH I, Nietzsche destaca que Voltaire foi o ultimo grande escritor que no tratamento da
prosa oratória teve ouvido grego, consciência artística grega e simplicidade e graça gregas, além de reunir em
si a suprema liberdade do espírito e uma mentalidade decididamente não revolucionária, sem ser covarde ou
inconsequente.
Considerações finais
Referências bibliográficas:
71José Saramago nasceu em 1922 na província do Ribatejo, Portugal. Filho de agricultores, foi serralheiro,
desenhista, funcionário público, tradutor e jornalista. Romancista, poeta e teatrólogo, ganhou o prêmio Nobel
da literatura, em 1988. Morreu em 18 de junho de 2010.
imaginemos seres humanos que desde que nasceram, vivem em uma caverna, acorrentados
de forma que só podem ver o que há diante deles. Nessa caverna há uma entrada para a luz
que chega de uma fogueira acessa numa colina detrás deles; entre a fogueira e os
prisioneiros, passa uma estrada, e ao longo da mesma passam homens com os mais
variados objetos. Esses sujeitos nada vêem além de sombras projetadas na parede da
caverna pelo fogo e tomam como objetos reais as sombras. Considerando que um dos
prisioneiros se liberte e é ―curado‖ de sua ignorância:
No Ensaio sobre a cegueira temos uma história alegórica que não se passa em nenhum
lugar e com pessoas sem nome, é uma história universal e os personagens se distinguem
por características como: ―o médico‖, ―a mulher do médico‖, ―a rapariga de óculos‖, ―o
velho de venda preta‖, entre outros. Nome, endereço, profissão são rótulos os quais nos
reconhecemos e somos conhecidos, mas são irrelevantes quando todos se fazem cegos.
A história começa com carros em um semáforo a espera do sinal verde, e quando
há condições de seguir, o primeiro da fila permanece parado; os outros motoristas buzinam
e uma situação estressante se desenvolve - o barulho estrondoso e pessoas batendo nos
vidros - até que alguém consegue abrir uma porta e o motorista diz: ―Estou cego‖. A
cegueira é descrita ―como se nadasse naquilo a que chamara mar de leite‖ (SARAMAGO,
2008, p.14). A ―treva branca‖ que assalta esse primeiro cego vai se espalhar pela cidade e
haverá uma única pessoa que não será afetada: ―a mulher do médico‖. A epidemia de
cegueira ocorre sem se saber a causa, a solução encontrada pelas autoridades é a
quarentena; os homens numa situação dessa passam a agir de forma mesquinha, egoísta e
injusta; todos os valores morais e hierárquicos são negligenciados.
É uma historia com caráter abstrato mostrando a importância e a responsabilidade
de ter olhos quando todas as outras pessoas os perderam; mesmo com os olhos
perfeitamente ―normais‖ não se tem garantia de enxergar. Ter olhos não é uma garantia de
ver, pois vivemos em um mundo de cegos que se encontram no pior estado - são os cegos
que não querem ver.
72A descrição do próprio autor na apresentação do livro: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu
quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro
brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de
constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem
para reconhecer isso.".
cegueira metafórica - um olhar sem ver. Estamos vivendo em uma sociedade com a visão
distorcida da realidade e acreditamos nas coisas que aprendemos através da cultura.
Saramago faz uma colocação que vem a esclarecer:
Referências Bibliográficas:
O que é um rizoma?
relaciona. É interessante notar como os autores dão grande importância para a relação que
o livro estabelece para além de seus próprios limites: ―não se perguntará nunca o que um
livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro,
perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar
intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que
corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora‖
(DELEUZE, 1995, p. 18). O livro nesse sentido não é onipotente, não possui sentido
algum em si mesmo, mas tão somente na potência que possui de estabelecer relações com
aquilo que lhe é externo.
Tendo apresentado essa concepção de livro, os autores procedem pela exposição de
três ―modelos‖ distintos de livro – e que podemos estender a toda forma de criação e
manifestação de modos de vida –, dos quais o rizoma se apresentará como um deles.
Inicialmente nos apresentam duas formas de ―livro raiz‖. O primeiro sendo a raiz
propriamente dita e o segundo afirmado como radícula. Esses dois modelos estão
associados à figura da árvore, por procederem por meio de um fluxo linear raiz-caule-
folhas, ou seja, há uma linearidade necessária para a compreensão do livro. Assim como no
sistema cartesiano, deve-se partir do fundamento-raiz, atravessar o caule e somente então
acessar os galhos e as folhagens. O sistema-raiz é tomado por Deleuze e Guattari como o
modelo do livro clássico e se configura já como uma imagem do pensamento. Esse sistema
é movido pela existência de um Uno, de um centro, do qual o múltiplo, se existente, está
necessariamente ligado ao centro. Há toda uma relação de necessidade para com a
identidade em um sistema-raiz. ―Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu
a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para
chegar a duas, segundo um método espiritual. E do lado do objeto, segundo o método
natural, pode-se sem dúvida passar diretamente do Uno a três, quatro ou cinco, mas
sempre com a condição de dispor de uma forte unidade principal, a do pivô, que suporta as
raízes secundárias‖ (DELEUZE, 1995, p. 19). A hierarquia é pressuposta nesse modelo de
sistema e os livros que deles surgem expressam a grande dívida para o com seu
fundamento.
Quanto ao sistema-radícula, ou raiz fasciculada, vemos que Deleuze e Guattari o
expõem como o sistema que abortou sua raiz principal e em seu lugar fez surgir uma
multiplicidade de raízes secundárias. Essa alteração, no entanto, pouco modifica a relação
do sistema-radícula para com a unidade pressuposta. Há ainda uma hierarquia subjacente.
Ela, todavia, não se encontra de maneira imediata no pensamento, mas é compreendida
como passada ou como por vir. O livro ou a imagem do pensamento, nesse sentido, dá
sinais de um aspecto fragmentário e múltiplo, mas ainda possui uma unidade que aparece
como seu fundamento ou sua finalidade.
A esses dois modelos de livro, os quais já podemos afirmar que são como modelos
de pensamento em geral, e que por sua vezes exigem a presença de uma unidade tida como
superior, Deleuze e Guattari irão contrapor outra forma de pensamento, o rizoma. Mas o
que é um rizoma? Biologicamente, trata-se de uma espécie de caule, geralmente
subterrâneo, e que tem a capacidade de se ramificar em qualquer direção, sem estabelecer
pontos centrais. Essa noção será de grande utilidade para Deleuze e Guattari, já que
diferentemente dos sistemas árvore-raiz apresentados até então, o rizoma não será tomado
como um modelo de pensamento. Antes, é a própria reversão do modelo, outra
compreensão do cosmos que se agita contra as figuras de unidade superior. ―O que conta é
que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como
modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro
age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que
constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico‖
(DELEUZE, 1995, p. 42). O rizoma, tomado como conceito filosófico faz valer, ao
contrário dos modelos árvore-raiz, a força da multiplicidade e para tanto não possui
elemento superior, na medida em que todas as multiplicidades são exaltadas. Não se trata
aqui de operar por pontos de definição e identidade. Existem somente linhas de
movimento em contrapartida aos pontos. Linhas essas que parecem ser sempre inseguras,
sempre devir infinito. Temos aqui uma grande diferença do pensamento que opera por
imagem da árvore-raiz para aquele que opera por rizoma. Em uma ciência, arte ou filosofia
que demande de uma criação por pontos, temos sempre a força da unidade que opera por
meio de raiz superior. Passa-se de uma raiz à outra, mas somente com o prejuízo de quem
interrompe o movimento para apreender uma segunda unidade derivada de um
fundamento superior. Quanto à criação por linhas, diremos que essa não procede por
unidade, mas por processos, que não encontram nunca seu início e muito menos o seu fim.
O rizoma ―não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças.
Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda‖
(DELEUZE, 1995, p. 43).
Desse modo, acreditamos que nosso excêntrico personagem Jimmy, que será
apresentado adiante, procede por rizoma, que tem na sua própria vida a forma rizomática
de ser. Jimmy é processo e mais n processos. A linha ao invés do ponto.
O que é “Quadrophenia”?
Referências Bibliográficas:
RESUMO: Este estudo apresenta como ponto inicial a alfabetização arraigada num Brasil
Colônia, onde a Igreja Católica ocupava papel preponderante nas questões educacionais.
Nesta perspectiva, busca-se compreender o processo de educação para jovens e adultos a
partir da história. Os cursos de capacitação e as especializações são espaços em que o
debate, a leitura corroboram com o aprofundamento desta temática em pauta. Destaca-se,
dentro deste panorama, o livro: A Ação Cultural para a Liberdade de Paulo Freire que serve
como fundamentação teórica. Enseja-se, desta forma, apresentar um pouco das inúmeras
reflexões referentes à alfabetização de jovens e adultos. Objetiva-se que esta pesquisa
contribua para que a EJA seja uma ferramenta em favor dos jovens e adultos para que
saibam ler, escrever, interpretar e atuar de modo filosófico na sociedade do capital.
Palavras-chave: Sujeito crítico. Alfabetização. Educação. EJA. Emancipação.
Introdução
Mas o homem que vive hoje em dia mergulhado na sociedade de consumo não entende as
coisas claramente‖ (1982, p. 24). Desvela-se, deste modo, o compromisso técnico e político
que o docente precisa ter ao trabalhar na Eja. Com uma formação filosófica sólida terá
condições de decodificar juntamente com os estudantes da Eja os mecanismos que regem a
sociedade.
No desenvolvimento deste trabalho, primeiramente, será realizada uma breve
abordagem da História da EJA no Brasil, como foi seu surgimento e as várias etapas e
transformações que houve desde o colonialismo passando pelo o império até chegar aos
dias de hoje. Registram-se as dificuldades da época colonial onde quem promovia a
Educação de Jovens e Adultos era a Igreja Católica. Mais tarde, no período imperial era
premente o preconceito contra o analfabeto que, por sua vez, era desconsiderado por
todos. No séc. XX, com influências tecnicistas, os cursos de Supletivos de várias formas
pedagógicas foram instituídos e perduraram até os anos 90, aonde é substituído pela
instauração da Educação de Jovens e Adultos (Eja) que perdura na atualidade.
Num segundo momento é apresentada a problematização da educação na Eja,
colocando em mostra as dificuldades dos professores com estes alunos que precisam de um
ensinamento específico. Nesta parte, analisa-se a relevância da alfabetização e da formação
filosófica do estudante da Eja para a sua participação na sociedade.
A Eja é uma modalidade de ensino, amparada por lei e voltada para pessoas que
não tiveram acesso ao ensino regular, na idade apropriada, de acordo com o consenso
estabelecido pela sociedade. No entanto, suas origens remontam à colonização do Brasil e
o trabalho jesuítico:
A alfabetização e a filosofia
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de; LEAL, Telma Ferraz, MORAES, Artur
Gomes de. Alfabetizar Letrando Na EJA: fundamentos teóricos e formas didáticas /organização. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
BELLO, José Luiz de Paiva. Educação no Brasil: a História das rupturas. Site: <
HTTP://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb14.htm > Acesso em 11/03/2013. Ano 2001.
FERNANDES, Hélio Clemente. Algumas considerações sobre a educação de jovens e adultos. In:
Simpósio de Pesquisa Estado e Poder, III. :2011: Marechal Cândido Rondon. Processos de
Construção de hegemonia no Brasil contemporâneo: Anais. Cascavel, PR: Edunioeste,
2012.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural Para A Liberdade E Outros Escritos. Rio de Janeiro: Paz E
Terra S/A, 1976.
___________. Educação E Mudança. Tradução Moacir Gadotti e lillam Lopes Martins.Rio
de Janeiro: Paz E Terra,1979.
___________. Trabalho e Mercadoria, São Paulo: Editora Loyola, 1982.
LIMA, Lauro de Oliveira. Estórias da educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro:
Brasília, 1969.
PINTO, Álvaro Vieira. Sete Lições Sobre Educação de Adultos. Introdução e entrevista de
Demerval Saviani e Betty Antunes de Oliveira: versão final revista pelo autor. São Paulo:
Cortez, 1997.
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez,
1980.
ser humano prover a sua existência física, bem como o aporte de instrumentos para a
realização de sua atividade vital.
Todavia, em um trabalho onde o produto do trabalho objetivado não retorna ao
trabalhador, dá-se a alienação em relação à natureza e em relação a sua atividade vital
produtiva. Já, se interpõe outra mediação em face à atividade produtiva enquanto
responsável pela intermediação entre o homem e a natureza, e o homem em relação aos
outros homens. Por conseguinte, se dará a alienação do homem enquanto parte da
natureza, de si próprio e enquanto homem entre os outros homens.
Referências Bibliográficas:
Gilmar Derengoski
Graduado em Administração
dj_kiko_rock@hotmail.com
A Mercadoria
Valor de Uso
O valor de uso de uma mercadoria é apenas efetivado quando a mesma pode ser
usada ou consumida: ―os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer
que seja a forma social desta‖ (Idem, p. 114). Em primeira analise, o valor de uso de uma
mercadoria não possui uma relação imediata com o trabalho humano despendido sobre a
produção da mesma; todavia, na forma social capitalista, o valor de uso sempre estará
presente no conteúdo material da mercadoria.
Nesse sentido, quando retirada a utilidade de uma mercadoria, esta perde o seu
valor de uso e, portanto, seu valor como mercadoria; uma vez que, sem o seu caráter útil a
mercadoria se transforma em uma simples abstração pura: ―nenhuma coisa pode ser valor
sem ser objeto de uso. Se ela é inútil, também o é o trabalho nela contido, não conta como
trabalho e não cria por isso, nenhum valor‖ (Idem, p. 119).
Segundo Marx, enquanto valor de uso, as mercadorias possuem uma grande
diversidade. No entanto, tomadas enquanto valores, as mercadorias possuem uma
igualdade qualitativa, diferenciando-se apenas na quantidade. Tal característica implica que
a mercadoria tomada enquanto valor é divisível, entretanto, enquanto objeto físico, não o é;
ou seja, enquanto valor, as mercadorias não se diferenciam de outras mercadorias que
possuem o mesmo valor. Assim sendo, a troca de mercadorias existe justamente pela
diversidade de necessidades do homem.
Isso significa que a criação oriunda do homem implica uma transformação continua
da realidade dada para uma realidade cada vez mais social.
Valor de Troca
Isso significa que esse ponto comum referido anteriormente pode ser entendido
como a utilidade que é dada para a mercadoria pelo valor de uso. É por tal motivo que as
mercadorias são de variadas qualidades. Por sua vez, o valor de troca é concebido por Marx
como uma equação ―sendo efetuada através da identidade dos objetos trocados (...) Marx
concebe a troca como uma equação, expressando os valores de troca uma ‗igualdade de
propriedade das coisas trocadas (identidade de seus tempos de trabalho)‖ (HIRST, 1980, p.
17-19). Não obstante, nenhuma mercadoria possui valor em si-mesma ou de forma isolada,
o valor lhe é conferido pelo valor de uso através da troca de mercadorias.
Dessa maneira, as mercadorias possuem um valor objetivo somente quando
expressam uma mesma unidade social, isto é, um mesmo dispêndio de trabalho humano.
Uma vez que, ―sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela
só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias‖ (MARX, 2013, p. 125).
De forma geral, Marx objetiva chegar na gênese do que ele denomina como forma-
dinheiro. Para tanto, ele busca desvelar todo o desenvolvimento do que denomina-se valor
na relação valorativa das mercadorias; os dois polos do que ele denomina como expressão
valor, quais sejam: forma de valor relativa e forma de valor equivalente.
mercadorias distintas. Sendo que, essa forma é a mais simples expressão do que dr
denomina como valor. No entanto, para um total entendimento do conceito valor, é
preciso que descubramos sua origem, seja ela, etimológica ou conceitual; e para descobrir
como a ―expressão simples do valor de uma mercadoria está contida na relação de valor
entre duas mercadorias é preciso, inicialmente, considerar essa relação de modo totalmente
independente de seu aspecto quantitativo‖ (Idem, p. 126).
De modo geral, o valor de uso de uma mercadoria obtém-se quando tal mercadoria
posta-se na relação de mercadorias de valores equivalentes. Uma vez que, uma mercadoria
tomada isoladamente prova somente que seu valor se encontra na relação valorativa obtida
na comparação entre duas mercadorias distintas. Pois, o valor do casaco apenas ampara-se
no casaco tomado como simples objeto, mas, o casaco em-si-mesmo, não altera qualquer
aspecto que não seja inteligível previamente; ―somente a expressão de equivalência de
diferentes tipos de mercadorias evidencia o caráter especifico do trabalho criador de valor,
ao reduzir os diversos trabalhos contidos nas diversas mercadorias àquilo que lhes é
comum: o trabalho humano em geral‖ (Idem, p. 128).
O Fetiche da Mercadoria
Referências Bibliográficas:
CARCANHOLO, Marcelo Dias. A importância da categoria Valor de Uso na teoria de Marx. São
Paulo: Pesquisa & Debate, 1998.
HIRST, Paul et alii em O capital de Marx e o capitalismo de hoje. Vol. I. RJ: Zahar Editores,
1980.
MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital.
Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
___________. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da
economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
MIRANDA, Flávio. A colonização da produção pelo capital: uma síntese do argumento de Marx.
Rio de Janeiro: IE/UERJ, 2009.
TROTTA, Wellington. Mercadoria, valor e trabalho como relações necessárias em O Capital. Rio de
Janeiro: Edições Siciliano, 1991.
VÁSQUES, Adolfo Sánchez. A filosofia da Práxis. São Paulo: Paz e Terra, 1968.
RESUMO: O ser da realidade humana consiste numa presença a um ser que ela não é.
Como presença, pressupõe separação, distância, negação – caso contrário, a distância se
anularia e recairia na identidade dos termos presentes. Pretende-se, neste escrito, abordar o
surgimento do Para-si de modo a explicitar a ruptura no ser pleno e sua fundamental
implicação: o movimento perpétuo de uma ausência ideal que constitui o próprio sentido
de ser do Para-si.
Palavras-chave: Falta. Para-si. Projeto. Valor.
ausente. Estas duas estruturas complementam-se na explicação do ato pelo qual o Em-si se
perde de seu ser e dá origem ao Para-si. Inicialmente fuga de sua plenitude de ser através da
negação de seu ser, sempre o mantendo à vista como aquilo que permanece sendo o
sentido de seu movimento originário, o ser negado é, ao mesmo tempo, seu alvo, o ―para
onde‖ o olhar se dirige por ser apenas o que o olhar conhece. Arrancado bruscamente do
passado como aquilo de que se foge, é lançado ao futuro, torna-se a ausência, o ser negado
de si mesmo que permite que o movimento de descompressão de ser permaneça e não se
recaia novamente no puro ser.
O ser perdido em negação, sempre presente enquanto ausência, o si-mesmo tão
familiar que liga o ser e o não ser através da negação, permanece sendo a saudade do ser.
Esta saudade é a busca, a tentativa de recuperação daquilo que havia de pleno; mas não só.
Se fosse simplesmente desejo de ser o que é, o movimento se extinguiria na reabsorção no
ser, a nadificação fundamental da existência cessaria e tudo deixaria de existir, porque não
haveria mais a testemunha do ser, não haveria não-ser; tudo apenas seria, de volta em plena
positividade empastada de si.
O desejo, a tendência original do ser que busca aquilo mesmo que nega em seu
coração é expressão duma união impossível entre ser e saber que se é. O Para-si, fruto
deste movimento ontológico, é o ser que se arranca de si mesmo para fugir à indiferença de
ser e apenas ser, ser o que se é, mas que não pode se desvencilhar do ser do qual foge: este
permanece na partida e na chegada, o que deve ser negado, mas também o que é
perseguido, porque é só o que o Para-si conhece: o Em-si que lhe falta, seu ser desfigurado,
perdido quando de seu nascimento.
Esta é a paixão fundamental do homem: o desejo de ser seu ser perdido. Não lhe
basta ser esta plenitude, ser este ideal positivo que ele vislumbra separado de si e que o
motiva em seu próprio seio a ser movimento. O Para-si não quer perder a ciência de si que
conquistou, não quer retornar ao puro ser. Ele quer se saber enquanto este ser, quer trazer
para si tanto a plenitude de existência daquilo que é o que é, quanto o afastamento que lhe
permita saber-se este ser. Negando o puro ser do qual proveio, não admitindo também ser
puro nada, isto é, ser somente a negação de ser tão indiferenciada quanto o próprio ser que
nega, o Para-si visa a comunhão destes dois modos de ser excludentes por princípio, visa
ser a totalidade ideal Em-si-Para-si daquele ser que perdeu em seu surgimento mesmo.
Pode-se entender a frase emblemática de Sartre, como fecho desconcertante de sua
grande obra: ―O homem é uma paixão inútil.‖ (SARTRE, 2009, p. 750). O homem não é
um fruto alheio do movimento descrito, ignorante de sua condição. O homem vive esta
estrutura transcendental, vive seu fracasso fundamental em cada uma de suas ações,
podendo vislumbrar sua condição, refletidamente, através da angústia, experiência de fundo
transcendental e sempre possível na vida humana.
O valor, acima citado, é esta totalidade ideal que o Para-si tem em vistas e que lhe é,
por princípio, inalcançável. Constitui-se como um faltado, um todo desejado, o ideal de ser
que o Para-si seria se pudesse coincidir consigo mesmo – o que seria se ―absorvesse‖ seu
faltante, aquilo que lhe falta para ser-todo: seu si-mesmo, o ser singular que o Para-si
nadifica enquanto pessoa, aquilo que ele é ao modo de não sê-lo, sua maneira singular de
negar o ser – o que lhe confere individualidade. ―A ausência de ser não aparece
diretamente, mas através do ser que é ausente. Assim, toda aparição remete a um ser que
não aparece, mas que enquanto totalidade que a consciência deve ser, condiciona a aparição
atual.‖ (SOUZA, 2009, p. 84).
Esta totalidade ideal visada pelo Para-si tem seu sentido próprio determinado pelo
projeto singular que constitui a individualidade, a pessoa particular que é cada homem-no-
mundo. A realidade humana, se não possui a substancialidade do ser, se não pode ser
definida segundo uma natureza fixa e imutável, deve, entretanto, poder ser explicada a
partir de uma estrutura que lhe confira sua singularidade; caso contrário, sequer se poderia
falar duma realidade-humana. Há algo que confere ao homem sua particularidade em
relação aos entes em geral, algo que, aliás, confere até certa primazia ao homem: ―Como se
explica então que, dentre todos os entes, o homem ocupe uma posição tão privilegiada? É
que ele é o único ente para o qual algo como existir pode ter um sentido.‖ (BEAUFRET,
1976, p. 15).
Se é negada ao homem a consistência do ser, é porque seu modo de existência é
ultrapassagem de si mesmo rumo a algo que ele não é. ―O ser-no-mundo, longe de ter a
existência inalterável da coisa, é essencialmente um poder-ser. Por isso, pertence à sua
essência revelar-se a si mesmo no impulso ou na ultrapassagem do projeto.‖ (BEAUFRET,
1976, p. 21). Perpétuo lançamento de si para o futuro, desgarramento de si em direção a
uma ausência, o homem se defini por um perpétuo fazer através do qual escolhe seu ser. A
ação se confunde com a essência humana. Por sua própria estrutura, toda ação desdobra-se
em projeto de ser, de alcançar algo que ainda não se é. ―Agir é modificar a figura do
mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um complexo instrumental e
organizado (...). Com efeito, convém observar, antes de tudo, que uma ação é por princípio
intencional.‖ (SARTRE, 2009, p. 536). Ou seja, uma ação implica dupla nadificação: 1) a que
se efetua quando posicionamos um estado ideal em relação ao qual captamos o estado
presente concreto enquanto faltante ou insuficiente, sendo que este estado ideal está
presente enquanto uma ausência, e 2) a nadificação de meu estado concreto, que não é o
valor, aquilo que viso.
Os fins que o Para-si visa determinam o modo como ele recorta o mundo em
busca de motivos para a ação. É o ser que lhe falta que o motiva em seu ser a constituir o
sentido do mundo: sua instrumentalidade, seus empecilhos, suas comodidades. Essas
características que se atribui ao mundo só fazem sentido como horizonte de um projeto
singular e fundamental que é o próprio homem. Sendo constituído a partir da negação de si
pela nadificação do ser, o homem mantém-se no ser enquanto busca perpétua do ser que
ele nega a si. Este ser ausente, que fornece sentido ao fazer humano, é o Para-si enquanto
projeto fundamental de ser.
Ou seja, a partir da apreensão desta totalidade que orienta toda ação de um homem
e o torna determinado homem, este e não aquele, não se pode explicar o porquê de o projeto
ser assim e não de outro modo. Percebe-se, neste ponto da investigação, a estrutura
fundamental da consciência que substitui, funcionalmente, a figura do Ego tal como
afirmada pela tradição73. A individualidade da consciência, a pessoalidade própria a um
homem provém de seu projeto fundamental de ser, que ele realiza existindo, sendo
homem-no-mundo.
O sentido da existência, isto é, a própria constituição do mundo; a projeção do
conjunto de possibilidades que o homem é; a relação com o Outro com o qual partilho a
condição de ser-lançado-ao-mundo. Em suma, todos os aspectos constitutivos da vida
duma consciência estão ancorados neste projeto inicial que é a escolha que o Para-si faz do
modo como se relaciona com o ser que ele nadifica e, num segundo momento, idealiza74
73 Faz-se referência aqui especialmente a Kant e Husserl, interlocutores privilegiados de Sartre na obra A
transcendência do Ego, na qual expõe sua teoria acerca do ego transcendente que existe como objeto para a
consciência e não como princípio de unidade e individuação.
74 ―Talvez esta seja a origem do idealismo sartriano, visto que essa totalidade (o valor) é que vai, em última
instância, determinar todos os fenômenos particulares; até mesmo a relação do Para-si com o Em-si da
facticidade.‖ (SOUZA, p. 84 - Nota de rodapé 59).
como alvo de seu desejo. E esta decisão fundamental do sentido particular do ser-no-
mundo expressa-se em toda ação, manifesta-se na vida empírica do sujeito.
Referências bibliográficas:
SOUZA, Luiz Henrique Alves de. O estatuto da reflexão em Sartre. 2009. Tese de doutorado.
UFSCar. São Carlos.
Por sua vez, o argumento daqueles que defendem o bacharelado é para valorizar a
Filosofia enquanto pertencente à academia, aos ―doutos‖. Nem todos estão prontos para
filosofar e desmitificar os mecanismos que regem o mundo. Entende-se que a difusão da
filosofia nos setores populares (em específico os que vivem no campo) tem em si o perigo
da superficialidade.
Certamente o risco da banalização existe. Interpretações equivocadas são possíveis,
mas isso não pode servir de argumentação para tolher o direito de todos os setores da
sociedade de entrarem em contato com tudo aquilo que foi produzido pela tradição
filosófica. Todos possuem direito a uma educação de qualidade. E a materialização deste
ideário representa uma contradição na sociedade capitalista, pois:
divulgação e preocupação para que haja o correto entendimento advindo pelo processo
pedagógico do ensino e aprendizagem. O saber filosófico precisa ir onde os sujeitos
históricos estão. O conhecimento é um bem inalienável e necessita ser socializado entre
todos os seres humanos. Quer vivam na cidade, quer vivam no campo.
A Filosofia trabalha com o conceito. O filósofo (no sentido lato) é todo aquele que
se esforça para compreender a realidade na qual se encontra inserido. Filósofo, no sentido
abrangente da palavra é todo ser racional que faz perguntas, que deseja conhecer, amante
do saber. Por isso, o homem e a mulher do campo que se questionam constantemente são
filósofos. E por falar em questionamento, importa enfatizar as indagações propostas pelos
Cadernos Pedagógicos preparados para fundamentar o Seminário de Educação no Campo
campo é peculiar e demanda uma reflexão filosófica que contribua com o fortalecimento de
sua identidade.
Destaca-se, entre os trabalhadores da educação vinculados ao campo, a importância
da base teórica pautado nas categorias de contradição e totalidade. Por isso, o engajamento
social e político, a filosofia da práxis, serem partes essenciais neste processo de luta por
uma escola no campo com qualidade:
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
OLIVEIRA, Liliana Souza de. O Ensino de Filosofia na Escola Básica: Uma leitura foucaultiana.
In: IX Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul (ANPEDSUL), 2012.
ORSO, Paulino José. As Possibilidades e os Limites da Educação. In: A Comuna de Paris de
1871: História e Atualidade. Paulino José Orso, Fidel Lerner e Paulo Barsotti (Orgs). São
Paulo: Ícone, 2002.
TESSER, Gelson João; HORN, Geraldo Balduíno; JUNKES, Delcio. A Filosofia e seu ensino
a partir de uma perspectiva da teoria crítica. In: Educar em Revista, Curitiva, Brasil, n. 46,
out./dez. 2012. Editora UFPR.
Hélio da Siqueira
Unioeste
CAPES
helio.siq@hotmail.com
Orientador: Jadir Antunes
entendermos a causa dessa inquitude do homem hobbesiano e saber porque ele deseja algo
que não tem. O que podemos dizer é que tem uma explicação mecânica para essa
instabilidade.
Hobbes descarta a possibilidade de que o homem viva em estado de indiferença
quanto aos objetos externos, ou de que possa atingir a perpétua tranquilidade de espírito.
Porque a vida é movimento, porque estar vivo é estar em movimento, enquanto vivermos
estaremos reagindo à ação dos objetos externos: pois não existe uma perpétua tranquilidade
de espirito enquanto vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais
pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação. Não
existe o estado absoluto de indiferença ou de tranquilidade porque de acordo com os
Elementos da Lei, 2010, p. 29 ―todas as concepções que temos imediatemente pela sensação
ou são de prazer, ou de dor, ou de apetite, ou de medo‖. Há uma explicação mecânica para
isso, os corpos sofrem a ação de outros corpos, e essa ação, que é movimento, gera
movimento. Portanto, enquanto houver sensação, haverá desejo. Se não há reação, a um
determinado objeto, é porque estamos sob a efeito da ação de um corpo fisíco mais
potente ou porque estamos mortos.
O homem é um ser racional e não procura apenas o bem presente, mas também é
capaz de projetar o bem futuro, ele deseja ter poder não apenas para satisfazer o desejo de
agora, mas também para continuar em movimento e garantir a satisfação de desejos
futuros. A expectativa de um bem ou de um prazer futuro envolve a concepção do nosso
próprio poder para alcançá-lo. Diante da insegurança gerada pela possibilidade constante
de que alguém venha a impedir a satisfação de seus desejos, o homem busca sempre
aumentar o seu poder, isto é, munir-se cada vez mais de novos meios para realizar seus fins
(HOBBES, 2008, p. 75).
A felicidade não consiste na posse de um bem soberano, mas na persistência segura
da vida enquanto movimento; ser feliz não é ter prosperado, mas prosperar: o sucesso
contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, quer
dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens chamam felicidade. A vida é
movimento, e todo o movimento tende a perscistir.
A instituição do poder absoluto é a única solução para a guerra, por ser ao mesmo
tempo restrição e reordenação do movimento humano, restrições e reordenações das
paixões humanas, as quais permitem a continuidade do movimento com mais seguraça e
permanência.
O que o homem deseja primeiramente é a obtenção daquilo que julga benéfico para
si mesmo. Por natureza, não tende necessariamente a se reunir com os outros, mas tão
somente a procurar o que julga ser benéfico. A aplicação da teoria mecânica do movimento
na investigação do comportamento humano resulta no estabelecimento daquilo que é
vantajoso para o homem e na negação do princípio aristotélico de zoon politikon.
Se a sociedade política chegou a se constituir foi porque cada membro reconheceu
os meios mais eficazes para obtenção de benefícios permanentes e isso em virtude das
circunstâncias externas particulares vividas por eles no estado de natureza. Assim, a
sociedade não é um produto natural da atividade humana, mas um meio artificial para a
obetenção do que de fato é natural no homem, ou seja, o desejo de preservar sua existênia.
Por fim, Hobbes não concorda com Aristóteles de que sendo o fim da cidade o
sumo bem do homem, a cidade é natural, já que o homem tende naturalmente para o seu
bem. Em primeiro lugar a finalidade da cidade não é o sumo bem, por que não a há nada
nesse mundo que seja um sumo bem, todo o bem é sempre meio para que possamos
atingir um outro bem mais distante. Em segundo lugar, os homens se movem
continuamente na direção daquilo que consideram ser um bem para si mesmos, e não para
atualização do que eles são potencialmente. A cidade não é, portanto, um fim em si mesma,
mas o meio mais eficaz para que possamos garantir a nossa segurança e o nosso conforto.
(FRATESCHI, 2008, p. 84).
Referência Bibliográfica:
Henrique Zanelato
UNIOESTE
henriquezanelatoii@hotmail.com
Gilmar Henrique da Conceição
76 BROCHARD, 2009.
77 LAÊRTIOS, 2008, p. 267.
Apesar de várias obras atribuídas a ele e algumas especulações sobre o que teria
sido tratado em algumas obras perdidas, o ceticismo em Tímon parece ter sido, ―como em
Pirro, mais uma reação contra as pretensões da antiga filosofia, uma renúncia a toda
filosofia sábia e ao aparato dialético do qual ela se cerca. Como seu mestre, é a prática, a
maneira de viver que ele tinha sobretudo em vista‖79.
Desse modo, o ceticismo de antigo, ainda não tão exigido pelo debate, não
ultrapassa os limites da ética teleológica antiga, ficando simplesmente preocupado com a
coerência entre a doutrina e a vida prática para alcançar a felicidade. Mas, conforme o
desenvolvimento das críticas ao ceticismo faz-se necessária uma espécie de elaboração,
requerido pelo aprofundamento dos debates filosóficos com os dogmáticos e com os
acadêmicos. Nessa perspectiva, metodologicamente não levaremos em conta aqui, o
ceticismo acadêmico, restringindo-nos ao estudo apenas do chamado pirronismo.
não poderíamos chegar a uma conclusão satisfatória, visto que um objeto causaria
diferentes impressões mesmo aos seres humanos. E isso não só em relação ao corpo
(sentidos) por alguns, como diz Diógenes Laércio, sentirem frio ao sol e se esquentarem na
sombra, mas também na alma, quanto as diferentes disposições, onde ―um busca a
medicina, outro, a agricultura e um terceiro, o comércio‖.
O terceiro é sobre a diversidade dos sentidos: ora, mesmo que seja admitido a
algum homem julgar sobre um objeto, não há como saber quais qualidades ele tenha
realmente, pois o objeto se lhe apresenta com diversas qualidades aos seus diferentes
sentidos. O mel, por exemplo, ―produz a impressão de ser pálido para os olhos, doce para
o paladar e aromático para o olfato‖. E da mesma forma para um único sentido, por
apresentar diferentes figuras quando vista por perspectivas ou em condições diferentes.
Segue-se daí que é impossível dizer com acerto o que é um objeto, pois ele pode possuir
uma só qualidade, em oposição ao modo em que aparece, ou possuir mais qualidade do que
as captadas pelos nossos sentidos.
O quarto tropo é dito acerca das diferentes circunstâncias em que podem se
encontrar os seres humanos: vista a impossibilidade de algum homem encontrar-se fora de
qualquer condição que seja ele é afetado de formas diferentes por um objeto quando em
uma e em outra dessas condições. O alimento aparece de uma forma para o indivíduo
saudável, e de forma diferente para o homem doente; as coisas aparecem, também, de
forma diferente para quem está sóbrio e para quem está embriagado. Assim como os
tropos anteriores, concluímos que se deve suspender o juízo.
Este é um dos que diferem na ordem entre os dois autores: enquanto é apresentado
em quinto por Sexto Empírico, no texto de Diógenes Laércio ele nos aparece como o
sétimo dos tropos. Ele é referido às situações, distâncias e lugares: um objeto pode ser
grande quando visto de perto, mas pequeno quando visto de certa distância; uma torre
quadrada pode ser considerada redonda caso vista de longe; um remo parece quebrado
quando dentro da água, mas reto fora. Da mesma forma que alguém não pode perceber
algo sem estar disposto em certas condições e circunstâncias, também não se pode isolar o
objeto das condições nas quais está inserido.
O sexto tropo diz respeito às misturas: não percebemos nada sem que o que é
percebido esteja separado do ambiente que o cerca. A luz, o ar, o calor, a umidade, o
movimento sempre vão interferir na nossa percepção: os objetos não tem a mesma
aparência quando expostos à luz do sol ou de uma lâmpada; uma pedra é leve e pode ser
facilmente levantada dentro da água, mas fora dela não.
O sétimo também não se encontra na mesma posição nos dois textos: na obra de
Diógenes, ele se encontra como o oitavo. Este é desenvolvido para discorrer sobre as
quantidades ou composições dos objetos: também as quantidades das coisas nos causam
reações diversas. O vinho, por exemplo, nos fortalece caso ingerido moderadamente, mas,
se bebido em excesso, nos debilita; o alimento, da mesma forma; um grão de areia,
analisado separadamente, parece áspero, mas liso quando em montes.
O oitavo tropo é o último da ordem de Diógenes e diz respeito à relação: nada é
em si, mas sempre em relação ao outro: ninguém é pai, ou está à direita, ou é menor,
melhor, mais quente por natureza, mas sempre em relação a algo ao qual é comparado.
Ninguém é pai sem um filho; nada está à direita sem algo à sua esquerda para referência; e
assim com tudo o resto.
O nono é sobre a frequência ou raridade de acontecimentos: os terremotos causam
espanto maior aos que nunca o experimentaram ou que não o experimentam com
frequência, mas nem tanto aos que já se acostumaram com ele; o fato do sol aparecer todos
os dias é normal, mas se algum dia ele não aparecesse seria estranho.
O décimo tem relação com os costumes, leis e opiniões, e é o quinto da ordem de
Diógenes: este argumento mostra que em diferentes lugares as crenças morais são
diferentes. Entre alguns povos, os corpos dos mortos são queimados, enquanto em outros
lugares eles são enterrados ou atirados no pântano; alguns permitem a poligamia, e outros
não; as religiões e os governos também diferem de país para país.
Logo depois da exposição, Sexto Empírico diz ser possível agrupar esses dez tropos
em três grupos maiores, chamados por ele de espécies: os primeiros quatro tropos podem
ser subordinados a um único, baseado no sujeito que julga; o sétimo e o décimo podem ser
agrupados em outro, que se baseia no objeto julgado; e por último, os demais – quinto,
sexto, oitavo e nono – podem ser dispostos na espécie que se baseia em ambos (sujeito que
julga e objeto). E esses três podem, ainda, serem agrupados em um gênero, maior,
chamado de modo, ou tropo, de relação, que se encontra mais elevado.
Nessa hierarquia, então, todos os dez tropos agrupados formam o gênero de
relação; logo após, estão as três espécies: a do sujeito que julga, seja ele homem ou animal,
do objeto julgado, e o de ambos; e os dez, se tomados isoladamente, são classificados como
sub-espécies. Porém, antes de fazer essa classificação, Sexto Empírico deixa bem claro que
esta lista pode ser maior, e que a ordem é adotada sem prejuízo82.
Mas há um aspecto principal para o qual devemos chamar a atenção: assim como
em Pirro, os tropos de Enesidemo devem culminar na suspensão do juízo, a epoché. Sexto
destaca muito bem esse ponto no capítulo intitulado Dos Modos gerais que conduzem à suspensão
do juízo (Of the general Modes leading to suspension of judgement) dizendo que sua próxima tarefa
será mostrar como se alcança esta suspensão83, e então, no capítulo seguinte introduz aos
tropos. Segundo Sexto, entre os antigos céticos, como vimos acima, os modos que levam à
epoché são dez, mas logo após a descrição dos dez modos, ele84 e também Diógenes
Laércio85 inserem outros cinco modos, atribuídos aos céticos mais recentes: o primeiro
sobre o desacordo; o segundo sobre o regresso ao infinito; o terceiro sobre a relatividade; o
quarto sobre as hipóteses; o quinto sobre a reciprocidade.
Pirro se nega a tomar qualquer partido, a afirmar qualquer coisa dogmaticamente,
visto a equipolência, ou igualdade dos discursos, para alcançar a tranquilidade, ou seja, da
epoché segue a ataraxia. Posteriormente, se mostra como os céticos que procederam do
mestre para mostrar com maiores exemplos que, no fim das contas, tudo deve levar à
epoché.
Referências bibliográficas:
BROCHARD, Victor. Os céticos gregos. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo: Odysseus
Editora, 2009.
GAZZINELLI, Gabriela. A vida cética de Pirro. São Paulo – São Paulo: Edições Loyola,
2009.
REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o inglês de R. G. Bury.
Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000.
LESSA, Renato. Veneno pirrônico – ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora: 1997.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução Mário da Gama.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
83 Idem, p. 23.
84 Idem, p. 95.
85 LAÊRTIOS, 2008, p. 274.
Jean Tonin
Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO)
Jean.fls@hotmail.com
Orientador: Manuel Moreira da Silva
Heidegger parte da compreensão do ser como presença, pois o ser como presença é
um traço que perpassa todo o pensamento ocidental, somos levados a crer que ser se
determina pelo tempo. Já que presença é a ―característica do tempo junto com o passado e
o futuro‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 253), ser como presença pressupõe uma determinação
pelo tempo, que por sua vez, sempre permanece. Assim, de algum modo, o tempo deve
determinar-se pelo ser.
Ser não se confunde com o ente, sua determinação pelo tempo não é como a de
um ente em um determinado curso temporal. Tempo não é temporal, o que é temporal
passa junto com o tempo, como faz o ente, contudo, tempo não pode ser pensado como
um ente qualquer. Do tempo sabemos que ele passa, e assim, em seu passar permanecendo,
possui presença. Assim sendo, tempo deve ser de alguma forma determinado pelo ser. Para
esclarecer essa relação, torna-se necessário saber o que é próprio de Ser e tempo.
86 Embora os textos-base utilizados sejam os traduzidos em Língua portuguesa por E. Stein, que verte Ereignis
– a partir do francês evénement-appropriation – por acontecimento-apropriação, optou-se por utilizar o termo
acontecimento-apropriativo.
87 Comum-pertencer traduz Zusammengehören. Expressão que busca acentuar o caráter recíproco de pensar e
ser ou, mais propriamente, a comunidade de homem e ser, sendo assim grafada, com destaque no pertencer
para mostrar que a comunidade em questão é determinada a partir do pertencer (Cf. HEIDEGGER, 1996, p.
175).
Heidegger compreende que a relação entre ser e tempo só existe por uma
justaposição entre ambas, é uma relação que surge a partir das coisas mesmas que por elas
são nomeadas. Nessa compreensão, o filósofo pretende refletir acerca do que é próprio de
tempo e ser. Ser e tempo não são compreendidos como coisas, como um ente. Isso
porque, no dizer de Heidegger: ―Do ente dizemos: ele é. No concernente à questão ‗ser‘ e
no que diz respeito a questão ‗tempo‘, permanecemos cautelosos. Não dizemos: ser é,
tempo é: mas dá-se ser e dá-se tempo‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 254). A partir desse modo
de pronunciar as questões, Heidegger procura conduzir o pensamento para tornar evidente
o dar se que resultam ser e tempo, ao passo que busca o esclarecimento do que é próprio
de cada questão.
Para Heidegger o dar do ser não está no ente, mas em si mesmo, esse dar a si
mesmo é chamado por ele de destinar. O ser acontece de forma historialmente
determinada nesse destinar. Desse modo, em cada época o ser faz um apelo, que
imediatamente se subtrai em si mesmo, nesse sentido, todas as doutrinas metafísicas são
respostas a esse apelo, e não meras palavras produzidas ao acaso (HEIDEGGER, 1996, p.
257). Na tradição do destino do ser, ele mesmo recebe sua determinação pelo seu dar-se. O
dar é compreendido então como um destinar.
Para Heidegger o homem situa-se no interior da abordagem pela presença, pois, o
presentar se direciona a ele, que por sua vez recebe como dom o dá-Se do ser. Essa é a
relação que faz o homem ser aquilo que ele é. Contudo, não é apenas o presente imediato
que nos alcança, o ausentar, do não-mais-presente e do ainda-não-presente, se presenta a
nós, não da mesma forma, mas de um modo próprio. A partir desse pensamento,
Heidegger afirma que o presente, passado e futuro são em si um alcançar, uma unidade do
caráter temporal que assim nos alcança.
O filósofo caracteriza a unidade do recíproco alcançar-se como pré-espacial,
podendo então, doar espaço de tempo, ou seja, ―dar‖ tempo. No alcançar iluminador de
passado presente e futuro, dá o espaço de tempo, e nesse, repousa a chamada dimensão.
Nesse sentido, o tempo que se dá pelo alcançar iluminador que é compreendido como
tridimensional, passado, presente e futuro. Contudo, essa unificação das três dimensões
deve ser determinada de algum modo.
Para Heidegger, aquilo que sustenta e conserva a questão de ser e tempo em sua
unidade, e que assim determina o lugar de ambos, é o acontecimento-apropriativo
(Ereignis). O filósofo não diz que ser e tempo sejam constituintes do acontecimento-
apropriativo, o que ocorre é que ambos acontecem no interior do que lhes é próprio, ou
seja, acontece e apropria. O acontecimento-apropriativo acontece e apropriar tempo e ser,
se oculta no destino do ser e no alcançar iluminador do tempo (HEIDEGGER, 1996, p.
267).
Nesse acontecer e nesse apropriar que, à diferença da tradição, consiste para
Heidegger o comum-pertencer de pensar e ser ou de homem e ser, deve-se enfatizar a última
palavra; ―pertencer‖, no sentido que ela determina à primeira: ―comum‖, que representa a
comunidade. Ou seja, só é possível a comunidade entre Ser e homem por que eles se
determinam e se pertencem. Deve-se experimentar essa comunidade a partir do seu mutuo
pertencer. Para tanto, será necessário esclarecer o ―recíproco-acontecer‖, de ser e homem,
tal como o autor nos indica.
Nesse trecho, Heidegger apresenta a relação entre ser e homem. No que foi dito,
ser é presença, e como tal, necessita do aberto da clareira, ou seja, sempre está entregue ao
ser humano, que constitui sua morada nesse aberto. Isso não quer dizer que ser precise do
homem para existir, ele somente torna-se claro ao entregar-se na clareira do homem. O
homem também é compreendido, em sua plenitude, por esta relação de correspondência.
somente com a recusa do que não é mais presente do passado, com a retenção do ainda
não presente do futuro, o presente se pre-sentifica. Tanto em ser como em tempo, há um
subtrair-se. Como o destino do ser e o alcançar revelador do tempo residem no Ereignis,
Heidegger afirma, que o acontecimento-apropriativo retém sua propriedade em uma
subtração sem limites.
Desse modo, Heidegger nos diz que o que é mais próprio do acontecimento-
apropriativo permanece ocultado por ele mesmo. Ou seja, em seu próprio sentido ele se
desapropria. ―Do Ereignis enquanto tal faz parte a Enteignis, o não-acontecer
desapropriador. Através deste último o Ereignis não se abandona, mas guarda sua
propriedade‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 267). Desse modo, Heidegger diz que o
acontecimento-apropriativo retém sua propriedade.
Tempo e ser determinam-se mutuamente no acontecimento-apropriativo, o homem
por situar-se no aberto da clareira esta em um comum-apropriar-se com o ser, e, por
conseguinte, constitui sua morada no acontecimento-apropriativo. Assim, Heidegger
assinala algo importante: ―de nunca sermos capazes de colocar o Ereignis diante de nós,
nem como algo que se opõe a nós, nem como algo que a tudo abarca‖ (HEIDEGGER,
1996, p. 267). Assim, não há como representarmos ou fundamentarmos o acontecimento-
apropriativo, fazer isso seria tratá-lo como um ente, mas ele não ―é‖ nem mesmo ―se dá‖,
desse modo, sobre ele, não podemos nada enunciar. ―Que resta dizer? Apenas isso: o
Ereignis acontece-apropria‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 268).
Em fim, apresentou-se a tentativa heideggeriana de pensar o ser no que lhe é
próprio, sem sua relação com o ente, ou seja, sem a metafísica. A partir do que é próprio de
tempo e ser, pelo modo que estes se dão, compreende-se que ambos se determinam
mutuamente, o que prepara o caminho para aceder-se ao interior do acontecimento-
apropriativo. Este não pode ser questionado, nem conhecido; dele só se pode ter
experiência; no dizer de Heidegger (1966, p. 252), ―não se trata de ouvir uma série de frases
que enunciam algo; o que importa é acompanhar a marcha de um mostrar‖. Não se trata
portanto de buscar um modo de dizer o Ereignis, pois dele só se pode dizer que acontece e
apropria.
Referências Bibliográficas:
___________. Conferencias e escritos filosóficos. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Abril
Cultural, 1996.
___________. Identidad y Diferencia. Traducción de Helena Cortés y Arturo Leyte.
Anthropos, Barcelona, 1988.
STEIN, Ernildo. Nas Proximidades da Antropologia: Ensaios e conferências filosóficas. Ujuí:
Unijuí-RS, 2003.
Jonece Beltrame
Doutorando UFPB / Bolsista Capes
beltrame25@gmail.com
Referências bibliográficas:
103O modelo psicanalítico deixará de ser adequado para desenvolver uma teoria da emancipação, Habermas, a
partir de 1970, estabelece os fundamentos de uma teoria da comunicação, concebida como aliança entre uma
teoria da sociedade e uma teoria da linguagem (DUPEYRIX, 2012, p. 47).
NOVO HOMEM
Josete Rockenbach
joseterock@hotmail.com
RESUMO: O tema ‗o novo homem‘ trata do fluxo eterno de humanos, tendo em vista
que a todo o momento novos homens vêm ao mundo e outros desaparecem, indo para
lugar nenhum. Arendt (2004) apresenta a natalidade como perspectiva desse novo domínio,
em que a pluralidade é aparente na história dos humanos, e estabelece uma perspectiva
distinta sobre o homem, suspendendo a lógica argumentativa que trata das essências e do
universal, apresentando a perspectiva da aparência e permanência, que diz respeito ao
domínio dos assuntos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade, política, humanidade, natalidade.
Por sua vez, a concepção científica diz que o homem tem sua origem na matéria
inorgânica. Se a origem da vida é a matéria inorgânica, poderíamos supor que os cientistas
conseguissem comprovar sua existência, mas tal afirmação carece de provas. Se a origem da
vida está vinculada à evolução da vida humana na Terra a partir da vida animal, isso não
justifica o novo, que sempre acontece à revelia da certeza estatística e probabilística da
ciência. O novo é sempre algo inesperado, incalculável e, por fim, inexplicável em sua
causa.
Diante disso, resta-nos observar que elas não passam de crenças para conceber a
natureza do homem. Para definirem a natureza humana, tais concepções consideram ‗o
homem‘ como ser único e permanente, idêntico e igual. É como se os homens fossem
repetições intermináveis de um modelo, todos com a mesma natureza, e assim, tudo seria
previsível105, tudo estaria determinado.
Isso porque há necessidade de colocar uma ordem, estabelecer a origem e as
propriedades comuns a todos os homens. A propensão de encontrar um modelo universal,
a partir da essência primordial, da ideia, do modelo universal de homem, representa uma
verdade infalível. Revela mais a percepção interior do que a exterior, entidade separada do
particular, superior à realidade, que jamais se extingue, nunca muda. Ou seja, a Ideia é
imutável, eterna e estática, e é apreendida pela razão. Determina a essência do homem e
apresenta um modelo universal de homem.
Se o homem aparece e desaparece, nasce e morre se suas relações estão em
constante mudança, em processo interminável de transformações, podemos concluir que
cada homem é diferente de qualquer homem que tenha existido. Diante do argumentado,
consideramos que o nascimento expressa o novo que vem ao mundo, elimina a
continuação e repetição de um modelo, revela a pluralidade. Cada ser humano difere de
todos os que existiram, existem ou virão a existir.106 As atividades do homem demonstram
que cada homem é diferente do outro. Por isso o homem necessita da fala para
compreender o outro. O sentido de igualdade está relacionado à liberdade que todo
homem tem para expressar essa alteridade (capacidade de distinguir-se e exprimir a sua
diferença perante o outro) e, apesar disso, poder planejar e prever as necessidades das
gerações vindouras.
ativamente sentida e ouvida a sua presença pelos outros homens. Isso quer dizer que,
enquanto viver, a sua história estará inacabada, isso permite um começar de novo.
Pela história da humanidade podemos entender que cada recém-chegado incide em
uma teia de relações humanas já existentes e inicia um novo processo que vai afetar as
histórias de todos com os quais convive. É por meio da História sem começo e sem fim
que se estabelece a condição humana da ação. O que é produzido pela ação é o que
permanece no mundo, é do mundo.
fim, característica diferente de um ser eterno. Todos os homens nascem e ao nascer são
como um novo começo, novos homens.
Referências Bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer.
10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
___________. A vida do espírito: pensar. Trad. de João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget,
1999. (Volume 1).
___________. A vida do espírito: querer. Trad. de João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto Piaget,
2000. (Volume 2).
Este texto tem como objetivo realizar uma breve análise sobre o tema do jovem116
que comete algum tipo de infração e, portanto, encontra-se segundo a ciência jurídica, em
Conflito com a Lei. Pautaremos esta pesquisa bibliográfica, nos pressupostos teórico-
filosóficos do Existencialismo Moderno, de Jean Paul Sartre, bem como, teceremos
algumas considerações a partir de sua obra intitulada Saint Genet – Ator e Mártir (1950), não
cabe, aqui, uma análise da obra, mas sim, um recorte, do fenômeno violência, vivenciado
por Genet em uma época específica, bem como, um olhar geral para o mesmo fenômeno,
hoje na sociedade em que estamos inseridos.
Antes de iniciarmos a análise sobre o tema proposto, destacaremos o que o próprio
Sartre, escreveu sobre a intenção de sua obra:
116Neste texto, os conceitos de jovem e adolescente, não sofrerão nenhuma distinção conceitual, iremos nos
referir a eles como sinônimos.
Sartre teceu uma análise existencialista da vida de Genet, aquele que, durante
muitos anos experimentou o abandono pessoal e social como uma forma de existir, “apenas
com sua existência, ele já perturba a ordem natural e a ordem social” (Sartre, 2002, p.20). Para
Schneider (2008), Sartre mostra em sua obra, uma compreensão existencialista do processo
de constituição da personalização de Genet, enquanto alguém que está situado em um
contexto sócio-histórico.
Quem foi Jean Genet? Ainda bebê, fora abandonado por sua mãe e confiado à
Assistência Pública, aos sete anos, fora adotado por um casal de camponeses do interior da
França e recebera desta família uma educação pautada em valores religiosos tradicionais e
rígidos.
Aos dez anos de idade, Genet passa a existir para o Outro, para a sociedade local,
para os demais meninos de sua idade, com uma nova identidade, a de ladrão.
De acordo com Schneider (1977), para Sartre, Genet escolhe-se ladrão. Para
compreendermos tal afirmativa, precisamos entender a concepção sartriana de homem e
aqui fundamentar-se-á novamente nos escritos de Schneider (1977) que diz, Sartre apoia-se
na visão antropológica de que o homem só pode ser compreendido a partir de sua história
individual, levando-se em consideração as questões sociais e culturais de sua época. Desta
forma, podemos dizer que o homem se faz e é feito nesta relação com o mundo, numa
Uma voz tímida ainda protesta nele, não reconhece a sua intenção. Mas logo a
voz se cala. O ato é tão luminoso, tão nitidamente definido, que é impossível
enganar-se sobre a sua natureza. Tenta voltar atrás, compreender; mas é tarde
demais, ele não consegue. Esse presente de uma clareza meridiana confere ao
passado a sua significação. Genet se lembra agora de que, cinicamente, decidiu
roubar. O que aconteceu? Afinal, quase nada: uma ação impensada, concebida e
executada na intimidade secreta e silenciosa, onde ele muitas vezes se refugia,
acaba de passar para a objetividade. Genet fica sabendo o que ele é,
objetivamente. É essa passagem que vai determinar a sua vida inteira. (SARTRE,
2002, p. 29-30).
Aceitar ou negar a condição de exclusão, aceitar ou negar que se tem vontade de ter, mas
não poder-se ter.
O homem opta pelo projeto que vai realizar, pois a liberdade se afirma no realizar,
no fazer, ou seja, a liberdade é responsabilidade, que é a capacidade de decidir, de querer,
de afirmar ou negar, de aceitar ou rejeitar, é pessoal e intransferível.
A liberdade não é uma qualidade que se acrescente às qualidades que já possuía
como homem; segundo Angerami (1993) a liberdade é o que precisamente me estrutura
como homem, porque é uma designação específica da própria qualidade de ser consciente,
de poder negar, de transcender.
De acordo com Pimenta (1981) o homem está em constante processo de escolha,
na medida em que seu futuro torna-se presente e o seu presente torna-se passado, sendo
que ambos sempre contam em função do presente, sendo assim o tempo é a existência,
compreendendo que a decisão deste sujeito é considerada como temporalidade um
constante se ver como presente, significando o seu passado em relação ao seu futuro,
permitindo sempre novas possibilidades de vir-a-ser a partir do que é.
Diante do exposto, deve-se pensar que quando o jovem comete algum tipo de
infração, este não é apenas vítima de uma sociedade corrupta e capitalista, mas é também
um indivíduo livre que pode, por meio de uma consciência mais reflexiva, escolher de
forma autônoma e ainda, poder responsabilizar-se por estas escolhas, afinal, ao intervir
diretamente sobre a situação sócio-histórica e econômica em que ele, o jovem, se encontra,
estará de fato agindo enquanto um ser livre, que age em prol de transformação.
Diante do exposto, pode-se pensar que da mesma forma que Genet, muitos são os
jovens responsabilizados apenas individualmente por sintomas sociais e pelo mal-estar em
que vivemos na contemporaneidade.
Interessa, portanto compreender, que ao mesmo tempo em que são considerados
pela sociedade e que se consideram vítimas da escassez econômica, cultural e educacional é
fato que trazem em seus atos, não apenas uma forma de abandono de ordem social, mas
também de ordem emocional, quando não conseguem assumir para si, tampouco para o
mundo, que são livres para escolher dentre as opções que se apresentam, não
necessariamente a pior, mas muitos destes jovens, escolhem a pior e por meio de suas
justificativas, acreditam que não têm outra, senão aquela escolha.
Assim, ele escolhe o pior; não tinha outra escolha. Sua vida está traçada:
será a viagem no país do desespero. Mais tarde, escreverá: ―Decidi ser o
que crime fez de mim‖. Já que não pode escapar à fatalidade, ele será a
sua própria fatalidade; já que lhe tornam a vida inviável, viverá essa
impossibilidade de viver como se a tivesse criado propositalmente para si
mesmo, provocação particular só a ele reservada. (SARTRE, 2002, p.
61).
Referências Bibliográficas:
Kátia R. Salomão117
UNIVEL
salomao@univel.br
117A autora é mestre em filosofia pela Unesp/Marília. Professora de filosofia da Univel— União Educacional
de Cascavel. Esse artigo é fruto das discussões do grupo de pesquisa Habermas: direitos fundamentais e
emancipação social coordenado pela profº Kátia R. Salomão.
118Apesar de comumente tomadas como idênticas, o Iluminismo refere-se ao movimento francês e Aufklärung,
ao esclarecimento alemão, que tem a ver, por sua vez, com o idealismo alemão, o que traz certa especificidade
e diferenciação em relação ao francês, portanto, mesmo Habermas não fazendo as devidas distinções, não é
correto conceber como iguais. Cf. McCARTHY, 1992, p.86.
119Na filosofia da consciência, a relação sujeito versus objeto se reproduz de maneira objetivante, de controle
teórico e prático do primeiro sobre o segundo. Nesse modelo é a razão subjetiva quem regulamenta as
relações fundamentais (representação e ação) que o sujeito estabelece com os objetos. Essas suas funções
estão intimamente imbricadas. Pois, por um lado a possibilidade de conhecimento de estado de coisas está
diretamente direcionada com a capacidade do sujeito de intervir no mundo. Por outro lado, o sucesso da ação
está relacionado com seu nexo causal. Em função dessa interconexão entre o conhecimento e a ação,
Habermas define essa razão como subjetiva e instrumental: subjetiva porque privilegia a autoconsciência
epistêmica do sujeito cognoscente, em detrimento do objeto cognoscível; instrumental, porque sobre o objeto
conhecido o que importa é o controle teórico ou prático. Cf. Aragão, 1997.
humano consciente e integrado a uma nova fase da modernidade, cujo intento é projetar o
esclarecimento. Esclarecimento esse que repousa suas bases na Aufklärung kantiana, mas
almeja uma ambição menor à capacidade racional humana e ainda foge do paradigma do
sujeito e objeto. Posto que a teorização habermasiana não alimenta a preocupação com a
fundamentação última da razão, esteja ela voltada para os moldes subjetivos da filosofia da
consciência, como estabelece Hegel, ou no modelo da relação epistemológica do sujeito e
do objeto originário do purismo da razão kantiana. A respeito deste último, conforme
Terra (1998, p. 26):
120A Sociologia surge como ciência da sociedade burguesa. A ela compete a tarefa de explicar o decurso e as
formas de manifestações anômicas da modernização capitalista nas sociedades pré-burguesas (TAC, 1992,
v.1, p. 21).
A sociedade é apresentada como uma práxis, na qual a razão está incorporada. Essa
práxis é realizada historicamente e é dela que emana a racionalidade comunicativa.
Habermas, nesse sentido, assimilou o conceito de práxis social de Marx, no qual promove
uma releitura do conceito de trabalho em que o relaciona diretamente com o conceito de
interação. Para Habermas, foi Hegel quem inicialmente desenvolveu uma conexão dialética
entre trabalho e interação121, mas que num exame mais atento reconhece que a filosofia de
121 A relação entre trabalho e interação pode ser observada na relação do reconhecimento unilateral do senhor
pelo escravo, mas que na Fenomelogia do Espírito acabou ocupando uma posição inferior e somente recebe
atenção na Enciclopédia, no qual a ―linguagem, o trabalho e a ação baseada na reciprocidade não só eram
etapas do processo de formação do espírito, mas princípios de sua própria formação‖. Essa relação ―(...)
constroem-se agora só como relações reais subordinadas: a linguagem surge mencionada na filosofia do
espírito subjetivo, na transição da imaginação para a memória numa nota bastante ampla (§459), ao passo que
o trabalho desaparece enquanto ação instrumental em geral e, em vez disso, caracteriza como trabalho social,
sob o titulo de sistema das necessidades, uma importante na evolução do espírito objetivo‖. Apud. Habermas,
J. Trabalho e Interacção. In:Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Ed. 70, 1987a, p. 35, 42-43.
Hegel não esclareceu a relação entre trabalho e interação satisfatoriamente. Habermas, por
meio do posicionamento dos conceitos de trabalho e interação na práxis social, está
novamente se opondo a situação da razão instrumental totalizadora presente na primeira
teoria crítica, em que a natureza interna é instrumentalizada simultaneamente com a
instrumentalização da natureza exterior. Amparando a razão comunicativa na leitura de
uma práxis que incorpora a razão por ela se manifestar no tempo histórico, mesmo a ação
sendo instrumental, objetiva, voltada para o mundo do trabalho, é possível, mediante essa
compreensão dessa práxis social na qual a razão está situada, a interação entre a natureza
subjetiva (interna) de casa indivíduo, na busca pela supressão de suas necessidades de
sobrevivência, com uma natureza objetiva (externa) do trabalho. ―Essa práxis social é o
lugar em que a razão historicamente situada, corporalmente encarnada com a natureza
exterior faz a mediação concreta com o seu outro‖ (DFM, 2000, p.424).
O modelo da relação sujeito e objeto só permite pensar o aspecto cognitivo
instrumental, e o processo comunicativo possui em si mesmo outros aspectos que devem
ser considerados. No intuito de estabelecer respaldo a esses conteúdos, seja de ordem
normativa ou estético-expressiva, Habermas (TAC, 1992), toma de J. L. Austin a ideia de
que todo emprego do agir comunicativo, ocorre por meio de um ato ilocucionário. Austin
demonstrou que ao proferirmos alguma coisa, simultaneamente fazemos alguma coisa. E,
Habermas, procura provar que, como locutores, ao pronunciarmos sentenças variadas,
apresentamos um núcleo universal a elas, a saber, as situamos como sequências de
símbolos linguísticos que constituem, num sistema de pretensões de validades (verdade,
inteligibilidade, retidão/correção, veracidade/autenticidade), nosso fazer/agir
comunicativo. Consequentemente, cada indivíduo busca pretensões de validade
(Geltungsansprüche) com relação a proposições dispersas na tríplice dimensão do mundo
objetivo, social e subjetivo: o elemento proposicional para expor o estado das coisas diante
do mundo objetivo; o elemento ilocucionário para contrair relações interpessoais no
mundo social, normativo; finalmente, os componentes linguísticos que expressam as
intenções dos falantes no mundo das vivências e emoções:
122(...) la utilización comunicativa de saber proposicional en actos de habla, estamos tomando una predecisión
en favor de un concepto de racionalidad más amplio que enlaza con la vieja idea de logos. Este concepto de
racionalidad comunicativa posee connotaciones que en última instancia se remontan a la experiencia central
de la capacidad de aunar sin coacciones y de generar consenso que tiene un habla argumentativa en que
diversos participantes superan la subjetividad inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a una
comunidad de convicciones racionalmente motivada se aseguran a la vez de la unidad del mundo objetivo y
de la intersubjetividad del contexto en que desarrollan sus vidas (TAC, 1992, v.1, p. 27).
meios, que são mediadas linguisticamente e em que a comunicação se torna um meio como
outro qualquer de manipulação para se alcançar o comportamento desejado, isto é, o êxito
da ação. Portanto, o resultado da ação também depende de outros atores, na qual cada um
luta pelo êxito de sua pretensão de validade, e esses participantes da argumentação, só se
comportam cooperativamente se identificarem suas pretensões, logicamente umas com as
outras. Diante disso, os participantes devem estar preparados cognitivamente, porque não
somente irão lidar com o mundo dos objetos físicos, como também com outros agentes no
mundo da vida. Já a racionalidade instrumental se identifica pelas ações, que têm em vista a
troca de poder entre os participantes que orientam seu êxito particular, e leva em conta a
dinâmica racional do mercado e as relações de dominação ou de poder político voltadas ao
controle, nas quais se estabelecem como médium o dinheiro ou o próprio poder. Diante da
noção de ação estratégica e instrumental, e das suas diferenciações, é possível perceber uma
interlocução entre trabalho e interação ou mesmo, uma associação direta das formas de
racionalidade que derivam dessas dimensões. Ao passo que na racionalidade teleológica
diferenciada em aspectos estratégicos, é promovida a invasão das outras esferas da
sociedade, em que deveria preponderar a interação ou ação comunicativa, mas que conduz
para um tipo de colonização do mundo da vida que compromete o entendimento
recíproco.
123 Un hablante hace valer una pretensión de validez susceptible de crítica entablando con su manifestación
una relación por lo menos con un «mundo» y haciendo uso de la circunstancia de que esa relación entre actor
y mundo es en principio accesible a un enjuiciamiento objetivo para invitar a su oponente a una toma de
postura racionalmente motivada. El concepto de acción comunicativa presupone el lenguaje como un médio
dentro del cual tiene lugar un tipo de procesos de entendimiento en cuyo transcurso los participantes, al
relacionarse con um mundo, se presentan unos frente a otros con pretensiones de validez que pueden ser
reconocidas o puestas en cuestión (TAC, 1992, v.1, p. 136). Ver também p.126-127.
124 Nuestras consideraciones pueden resumirse diciendo que la racionalidad puede entenderse como una
disposición de los sujetos capaces de lenguaje y de acción. Se manifiesta en formas de comportamiento para
las que existen en cada caso buenas razones. Esto significa que las emisiones o manifestaciones racionales son
accesibles a un enjuiciamiento objetivo. Lo cual es válido para todas las manifestaciones simbólicas que, a lo
menos implícitamente, vayan vinculadas a pretensiones de validez (o a pretensiones que guarden una relación
interna con una pretensión de validez susceptible de crítica). Todo examen explícito de pretensiones de
validez controvertidas requiere una forma más exigente de comunicación, que satisfaga los presupuestos
propios de la argumentación (TAC, 1992, v.1, p. 41-42).
Referências Bibliográficas:
RESUMO: O presente artigo análise as relações de poder nas fronteiras transnacionais que
separa o Sul do Brasil do Norte Grande Argentino da Argentina. A partir de um
comparativo, busca-se compreender as construções históricas das fronteiras externas entre
os países em questão, uma vez que a apropriação dos territórios e a construção dos espaços
sociais não se limitaram ao marco geográfico, mas mobilizaram, entre conflitos, disputas,
tensões, ameaças entre sujeitos sociais e a ação de agentes políticos e econômicos, ações em
busca do fortalecimento de relações de poder em vista em vista da construção da soberania
nacional. Além de analisar os conflitos nas fronteiras externas, a discussão das disputas
territoriais nas fronteiras internas de ambos os países merecerá atenção especial, tendo
como referência o estudo dos conflitos que ocorreram na região Sul do Brasil, nos Estados
do Paraná e Santa Catarina, e na Região da Patagônia nas Pronvincias de La Pampa e Rio
Negro.
Palavras-chave: Relações de Poder. Argentina. Brasil.
ainda pouco explorados pelos historiadores que se dedicam ao estudo das fronteiras entre
Argentina e Brasil.
A construção das fronteiras externas125 entre países e as fronteiras internas126 entre
Estados e municípios são processos complexos associados a conflitos de natureza diversa,
tanto na sua expressão político-diplomática, quanto em relação à disputa dos territórios. A
fronteira envolve conflitos possessórios, políticos, econômicos, sociais e culturais. A
formação das fronteiras externas comporta, em geral, a intervenção estatal, ou militar, na
apropriação e legitimação dos territórios. A atuação desses aparelhos foi historicamente
decisiva para desequilibrar a disputa pela posse das regiões de fronteiras, especialmente nas
regiões transnacionais situadas na curta linha de fronteira externas entre a região do Sul do
Brasil e a Região do Norte Grande Argentino da Argentina.
Na era pós-colonial e de construção dos Estados-Nação na América Latina, a
construção/delimitação da fronteira territorial segue este padrão geral. Ligia Osório Silva
(2003), entende que nos Estados Unidos a fronteira teria promovido o desenvolvimento da
democracia social e política, uma vez que a existência de ―terras livres‖ a oeste e uma
legislação que disponibilizava o acesso a elas aos imigrantes evitara o conflito social,
característico das sociedades europeias do século XIX.
Na Argentina e no Brasil, cuja fronteira terreste foi delimitada entre 1857 a 1895, a
construção de fronteiras externas e internas não foram exceção a democracia, aos conflitos
125 Neste estudo o conceito de fronteiras externas, tem como referência empírica os territórios argentino e
brasileiro, que não se limitaram ao marco geográfico, mas mobilizaram, entre ameaças conflitos e tensões,
sujeitos sociais e agentes políticos e econômicos em busca de novas oportunidades, quer para fortalecer as
relações de poder, quer para a construção de territórios que facultassem espaços de vivências para a recriação
de identidades. Cf. SCHALLENBERGER, Erneldo. Fronteiras em movimento e Território em construção:
O caso do Paraná. In. COLOGNESE, Silvio Antonio. (Org.) Fronteiras e Identidades Regionais. Cascavel:
Coluna do Saber, 2008.
126 Procuramos mostrar como noção de fronteira interna a demarcação territorial de municípios, de estados e
mesmo de fazendas e/ou entre fazendeiros e sítios. Muitos pesquisadores não deram muita atenção ao tema,
que na ótica de Motta e Machado (2008), talvez seja resultado de um processo de naturalização dos marcos
territorial, ou ainda, como fruto de uma política de produção de amnésia social. Sendo, dessa maneira,
encobridora dos conflitos de terra que gestaram ou consolidaram (como natural), um determinado lugar,
território, ou espaço, em uma área de um recorte espacial maior: ―o país”.
127 Cf. SILVA, Ligia Osório. Fronteira e Identidade Nacional. Anais do V Congresso Brasileiro de História
diplomáticos em relação a posse. É este processo social que constitui o objeto central desta
tese.
Procuramos aqui analisar em uma ―região transnacional‖ os conflitos agrários entre
Argentina e Brasil. Nessa curta linha de fronteira que separa o Sul do Brasil do Norte
Grande Argentino da Argentina. Procuramos desenvolver um estudo comparativos dos
conflitos que aconteceram nas fronteiras externas internas de ambos os países, na região
Sul do Brasil, nos Estados do Paraná e Santa Catarina e na Região da Patagônia nas
Pronvincias de La Pampa e Rio Negro.
Partindo da análise de Ligia Osório da Silva, que a experiência da fronteira como
responsável pela formação destas sociedades não penetrou com a mesma força as análises
dos historiadores e cientistas sociais latino-americanos. Ao contrário de algumas teses
algumas apresentadas pela historiografia argentina e brasileira, consideram a experiência das
fronteiras como responsável para formação da identidade nacional e das suas instituições.
Sabemos que a experiência histórica da construção desta fronteira nacional foi marcada por
prolongadas negociações diplomáticas, por tensões e conflitos militares.128
Dispomos de muita informação e análises sobre este processo quando visto de
cima; pouco dele conhecemos quando queremos apreender a sua incidência no dia da dia
das populações residentes nos territórios de fronteira, aferir a sua interação com os poderes
e as instituições neles projetados ou constituidos, bem como as relações que se constroem
entre as populações estabelecidas e as adventícias.
A construção das fronteiras externas e internas entre a Argentina e o Brasil é
contemporânea e envolveu embates entre o homem branco, índios, militares, colonos,
posseiros e grileiros. Demonstra o imenso terreno que pode ser percorrido por
historiadores quando se tem como referência a problemática de estudo a fronteira. Para
José de Souza Martins (1997, p.13), ―ela é fronteira de muitas e diferentes coisas, como
fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial,
128 Vários autores apresentaram esta temática, a exemplo de Reidy e Murray, Conferencias de 1915, (1916);
Santiago Arcos, La Plata (1865). Antônio Augusto Cançado Trindade, Repertório da prática brasileira do Direito
Internacional Público (Período 1889-1898); Coronel J. S. Torres Homem, Annaes das Guerras do Brazil com os
Estados do Prata e Paraguay (1911); Synésio Sampaio Goes, Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas: Aspectos da
descoberta do continente da penetração do território brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amazônia
(1991); Nelson Wernack Sodré, O que se deve ler para conhecer o Brasil (1988); Domingos Nascimentos, Pela
Fronteira (1903); Domingo Faustino Sarmiento, Campaña del ejército grande (1852), Conflicto y armonía de las razas
en América (1883), Facundo o civilización y barbárie (1952); Esteban Echeverria, El Matadero (2010); José
Hernández, La Vuelta de Martín Fierro (2010); Horácio Quiroga, Cuentos (2004).
Referências Bibliográficas:
WELSKOPP, Thomas: Comparative History, in: Europäische Geschichte Online (EGO), hg.
vom Institut für Europäische Geschichte (IEG), Mainz European History Online (EGO),
published by the Institute of European History (IEG), Mainz 2010-12-03.
Leandro Nunes
Graduado em Filosofia
leandrotiao_lu@hotmail.com
Brendha Evaristo
brendhhaa@hotmail.com
RESUMO: O presente texto trata dos estudos desenvolvidos pelos filósofos Gilles
Deleuze e Félix Guatarri acerca do papel da filosofia e das características inerentes a
atividade filosófica. Segundo os referidos autores, o objetivo primeiro da filosofia é a
criação de conceitos; sendo que, o filósofo é aquele que se envereda pelo mundo, aquele
que experimenta o mundo e seus contágios. Assim sendo, neste trabalho – assim como
Deleuze e Guatarri – nos enveredamos por diversos territórios buscando entender alguns
conceitos por eles propostos, tais como o conceito de Ritornelo – importante para
estabelecer a relação entre território e desterritorialização. Para tal intento, trataremos do
que D&G designam como Geografia do conceito, e por conseguinte, do que eles
denominam como Linhas de fuga. Sempre procurando evidenciar o caráter criativo da
atividade filosófica.
Palavras-chave: Geografia-do-conceito. Ritornelo. Desterritorialização. Linhas-de-fuga.
Geografia do conceito
Para Bedin (2010), o mundo real é a morada do homem, mas ela só serve para ser
abandonada. E a filosofia é o que propícia essa fuga; uma vez que, tal morada é móvel,
pois, a criação de conceitos deve ser contínua e ininterrupta. Isso significa que o filósofo
deve transpassar a reflexão passiva, pôr-se em movimento e adentrar no mundo.
Os conceitos são migratórios, mas podem habitar solos, nos quais possam produzir
alguma interferência com outros conceitos; já que, os conceitos não possuem estruturas
únicas, ―fechadas‖; pelo contrário, eles possuem componentes que estabelecem relação
entre si – e é exatamente nesse ponto que o filósofo age: nos territórios habitados pelos
conceitos.
Um conceito não pode ser entendido como uma estrutura monocelular. Uma vez
que, não existe conceito simples. Todo conceito é composto. Do mesmo modo que
nenhum conceito existe de maneira isolada, ou seja, todo conceito possui uma ligação com
outros conceitos, com a tradição filosófica.
O conceito é uma incisão minuciosa nas cordas vocais da filosofia; uma operação
que ressoa nos mais diversos territórios e que provoca o surgimento de uma variedade
incontável de linhas de fuga.
O Ritornelo
operado, uma vez que, é um ponto comum, e por tal motivo está totalmente ligado a saída
ou entrada de um território.
Desse modo, esse é o primeiro aspecto do ritornelo: a busca de direção, de um
ponto; para que então se possa traçar um território ao redor desse ponto, algo inseguro,
quase que incerto. Para que assim, após esta busca por direção passe-se a procurar por um
espaço dimensional que possa ser habitado ao redor desse ponto.
O ritornelo é um ciclo assim como a vida, sempre em relação territorial. É um
território que circunda um determinado ponto.
Tem a ver com conceitos de terra, território, caos, cosmos, (...) com o
eterno retorno (...) Tem a ver com o canto dos pássaros para demarcar
limites territoriais, com a criança cantarolando no escuro para se acalmar
e com a música que escutamos para nos dar força nas tarefas diárias
(BEDIN, 2010, p. 3).
O Ritornelo pode ser comparado com uma ―lógica da existência‖, ou seja, o existir
passa a ser em ciclos, o que pode implicar em um aspecto ou outro, ou os dois, etc.; ―o
ritornelo se define pela estrita coexistência ou contemporaneidade de três dinamismos
implicados uns nos outros. Ele forma um sistema completo do desejo, uma lógica da
existência‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 50), mesmo que seja uma lógica extrema e sem
racionalidade alguma.
Nesse sentido, Zourabichvili afirma que o Ritornelo se mostra em duas tríades
ligeiramente distintas entre si:
É das pontas territoriais que se evade; pois, as linhas de fuga são os processos
criativos que saem do padrão imposto, que criam, que inventam e reinventam novas
possibilidades de vida. Transformando assim, a vida em uma obra de arte.
A operação das linhas é que estabelece o território como algo provisório,
transitório, ou, como D&G denominam: componentes de passagem. Desse modo, o
Considerações finais
O ritornelo deve ser entendido sobre dois principais aspectos que estão
intimamente ligados ao seu nome: ―em primeiro lugar, como traçado que retorna sobre si,
se retoma, se repete; depois, como circularidade dos três dinamismos (procurar um
território para si = procurar alcançá-lo)‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 51). Desse modo,
começar é retornar, todavia, trata-se de uma reterritorialização, pois não trata-se de um
retorno ao mesmo ponto, ao mesmo território.
Referências Bibliográficas:
BEDIN, Luciano. O Ritornelo em Deleuze-Guatarri e as três éticas possíveis. Rio Grande do Sul:
UFRGS, 2010.
DELEUZE, Gilles, FÉLIX, Guatarri. O que é a Filosofia. Trad. Bento Prado Jr, e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992).
___________. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo:
Ed.34, 1997.
MELLO, Lidía Aparecida Rodrigues Silva. La Jetée: um E outro. Rio Grande do Sul:
UFRGS, 2012.
ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro,
2004.
RESUMO: O presente trabalho visa explorar as conexões entre as ideias propostas pelo
psicanalista Donald Woods Winnicott e o filósofo Maurice Merleau-Ponty no que se refere
ao tema da alteridade infantil. Embora não existam evidências de que os dois autores
tenham mantido algum tipo de contato pessoal ou mesmo através de suas obras, ambos
parecem apresentar alguns pontos de convergência e complementaridade principalmente
no que se refere aos conceitos de “espaço transicional” e “campo fenomenal”. Tanto para o
psicanalista quanto para o filósofo esses conceitos se apresentam enquanto eixos
fundamentais para a compreensão das relações construídas pelos indivíduos com os
objetos da cultura e com os outros indivíduos.
Palavras-chave: Winnicott. Merleau-Ponty. Alteridade. Criança.
Ora, a função materna quando ―suficientemente boa‖ parece atuar como fundo
afetivo sobre o qual emerge um indivíduo capaz de perceber e relacionar-se intimamente
com o mundo e com o outro, de maneira a modificar e ser modificado por essa relação.
Nesse contexto, o cuidador exerce o papel de ―ego auxiliar‖ ao ego do bebê auxiliando-o,
principalmente, a produzir significados tanto para os objetos de seu mundo externo quanto
para suas próprias sensações e percepções internas. Aos olhos de Winnicott, as sensações
produzidas ao bebê através do contato com o corpo materno, além de uma percepção
puramente corporal, produzem um importante equivalente psíquico. Com isso, o bebê que
é manipulado e segurado de uma maneira adequada tem a percepção de que, não somente
seu corpo, mas também sua estrutura psíquica encontra-se integrada e protegida.
Herdeiro da tradição fenomenológica e apoiando-se nos trabalhos da Psicologia da
Forma e da própria Psicanálise, Merleau-Ponty, por sua vez, dedica-se à compreensão da
percepção, introduzindo o conceito de corporeidade. O filósofo mostra, em primeiro lugar,
que há uma distinção entre o ―corpo objetivo‖, que tem o modo de ser de uma ―coisa‖ e o
―corpo fenomenal‖ ou ―corpo próprio‖ que coloca o sujeito em relação de intimidade com
o mundo, onde interioridade e exterioridade relacionam-se mutuamente, de modo que ―ser
corpo (...) é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no
espaço: ele é no espaço‖ (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205). Como nota Dupond, ―o
sujeito aparece para si próprio fazendo aparecer o mundo‖ (DUPOND, 2010, p. 12). Essa
ideia é ilustrada por Merleau-Ponty quando se refere à percepção infantil do corpo do
outro possibilitando-lhe, consequentemente, a percepção do próprio corpo. Merleau-Ponty
observa o comportamento do bebê no momento em que
(...) abre a boca se por brincadeira ponho um de seus dedos entre meus
dentes e faço menção de mordê-lo. E, todavia, ele quase não olhou seu
rosto em um espelho, seus dentes não se parecem com os meus. Isso
ocorre porque sua própria boca e seus dentes, tais como ele os sente do
interior, são para ele imediatamente aparelhos para morder, e porque
minha mandíbula, tal como ele a vê do exterior, é para ele imediatamente
capaz das mesmas intenções. A ―mordida‖ tem para ele imediatamente
(...) um verdadeiro tocar o tocar, quando minha mão direita toca minha
mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o ‗sujeito que toca‘ passa ao
nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio
do mundo e como nelas (MERLEAU-PONTY, 2012, p.130).
Ou seja, quando a mão direita toca a mão esquerda há aí, certa reversibilidade no
ato de tocar, de modo que não se é possível dizer qual das mãos é a que toca e qual é a
tocada. É essa mesma relação que permeia o contato do homem com o mundo e com os
seus semelhantes.
A noção de ―carne‖ surge para descrever a interioridade sensível ―o quiasma,
entrelaço ou entrecruzamento reversível do mundo‖ (Chauí, 2002, p. 57) buscando traduzir
o sentido de conaturalidade do homem com o mundo. É o que Marilena Chauí descreve:
Pode-se então supor que esta relação ―carnal‖ aqui ilustrada por Merleau-Ponty
exemplifica a relação que Winnicott descreve entre a ―mãe suficientemente boa‖ e seu
bebê. Sob esse contexto, é que se pode também aproximar o caráter daquilo que Merleau-
Ponty denomina de verticalidade, isto é, a ideia de que sujeito e mundo encontram-se como
que entrelaçados, numa espécie de relação onde não há sobreposições entre um e outro.
Do mesmo modo, a alteridade se desenvolve através desse tecido vertical onde as
subjetividades ao mesmo tempo em que participam de um mesmo terreno comum, podem
se diferenciar.
Neste sentido, podemos supor que essa ideia encontra certa ressonância com a obra
de Winnicott, especialmente quando este se refere à relação mãe-bebê, e à capacidade
materna de compreender as necessidades de seu filho que são expressas primeiramente
através do choro, do olhar e das manifestações corporais.
Quando, por exemplo, a mãe apresenta o peito ao bebê que chora de fome, está
auxiliando-o a produzir um significado acerca desta sensação. Embora estejamos diante de
uma relação que se estabelece entre um sujeito capaz de separar o eu dos objetos externos e
um bebê que ainda não atingiu tal nível de maturidade, podemos conjecturar que a
identificação materna dessa comunicação primitiva do bebê só é possível porque se
encontram os dois, enlaçados e fundidos ao tecido de um mundo que é comum a ambos.
Para Winnicott:
Winnicott mostra também que através do contato corporal com a mãe, produz-se
no bebê uma memória sensorial que está relacionada com a interpretação afetiva que o
mesmo produz sobre a maneira como seu corpo é segurado e manuseado. O olhar do
outro sobre o bebê também apresenta aqui, importância fundamental. Ora, se em sua
forma mais primitiva de existência, o bebê percebe a si mesmo como um ser fundido ao
mundo, então, é possível supor que o bebê não atribui relações entre aquilo que é sentido e
o órgão receptor, dado que ele é também, enquanto sente, o próprio sentido. Portanto, para
um bebê, será possível escutar, tatear, olhar com o corpo todo, pois que, como ser ainda
não diferenciado, ele é também aquilo que escuta, ele é aquilo que vê e aquilo que toca. Na
perspectiva do bebê, ele é a própria linguagem encarnada. Há aí um elo, uma
promiscuidade e possibilidade infinita de sentidos entre ele e o mundo, intermediado pela
figura materna.
O que faz com que este fenômeno se revele é a abertura desse novo campo ou
horizonte entre o real e o imaginário que o psicanalista denomina espaço transicional e o
filósofo concebe como um campo fenomenal. Muito embora o sujeito posteriormente venha a
fazer essa diferenciação entre o eu e o não-eu, a questão da transicionalidade permanecerá
como algo nunca inteiramente solucionado pelo indivíduo.
Para Merleau-Ponty, é essa ―carnalidade‖ que se faz presente na experiência do
sujeito com o mundo, numa verticalidade onde ambos se ―abraçam‖ e se criam um ao
outro sem sobreposições. Como mostra Dupond, em sentido merleau-pontyano, a carne
visa ―não a diferença entre o corpo-sujeito e o corpo-objeto, mas antes, inversamente, a
matéria comum do corpo vidente e do mundo visível, pensados como inseparáveis,
nascendo um do outro, um para o outro, de uma ‗deiscência‘ que é a abertura do mundo‖
(DUPOND, 2010, p. 9).
Ora, é essa zona de entrelaçamento entre objeto e sujeito que o fenomenólogo
passa a descrever como campo fenomenal. Ou seja, aquilo que retrata o espaço que sedia a
vivência compartilhada entre os indivíduos e de onde brota toda produção artística e
cultural humanas. Trata-se, pois, de uma relação íntima do sujeito com o mundo ou, ainda,
da possibilidade de fundir-se a ele e de diferenciar-se que torna também possível ao homem
a produção de sentidos. Neste contexto, o que se manifesta é a possibilidade infinita de
interpretações resultantes do enlace entre uma subjetividade e a objetividade do mundo
perceptível. É o que permite, por exemplo, que o conteúdo de uma obra literária extrapole
seu caráter mais concreto e meramente informativo para conduzir o seu leitor a um estágio
mais ―carnal‖ oferecendo-lhe uma possibilidade para o devaneio.
Merleau-Ponty destaca o aparecimento de uma ―linguagem viva‖ onde o sentido se
manifesta para o indivíduo na medida em que este se engaja na linguagem. Um importante
atributo da linguagem é a sua atuação enquanto elo entre um indivíduo e seus semelhantes,
como demonstra Silva ―há, aí, uma vida expressiva na linguagem, ou seja, um ‗valor
existencial‘ intersubjetivamente encarnado‖ (SILVA, 2009, p.99).
Tanto no caso da linguagem quanto no da obra de arte em geral, Merleau-Ponty
restitui um sentido próprio da intersubjetividade. As relações entre eu e outrem são
perpassadas pela ideia de que não há mais limite, ou seja, há um sentido de unidade carnal
que os entrelaça. Esse entrelaçamento só se torna possível porque ocorre num mesmo
campo de experiência, um campo fenomenal que não se confunde com um espaço
objetivo. Como atesta o filósofo:
Referências Bibliográficas:
Luana A. de Oliveira
luanatuba@hotmail.com
emancipação dos indivíduos. Tendo a escola como função política problematizar e não
aceitar como válidos os valores egoístas, competitivos e consumistas, próprios da sociedade
capitalista. Emancipação para Adorno é conscientização, sendo que o sentido de
conscientização refere-se à capacidade de fazer experiências, portanto ―(...) a educação para
a experiência é idêntica à educação para a emancipação.‖ (ADORNO, 1995, p. 151.).
A experiência formativa tem como pressuposto a recusa em aceitar somente o mero
repasse de conhecimentos no processo formativo, trata-se do processo formativo levar em
conta também a transformação do sujeito no contato com o objeto. A repressão do não-
idêntico também se opõe à experiência formativa em defesa de uma sociedade homogênea,
pois ele revela-se como possibilidade de mudança, ou seja, o não-idêntico é a permissão da
tematização do diferente, é o novo que possibilita percepções diferentes.
Sobre o não-idêntico, Adorno afirma que a filosofia idealista de Hegel equivocou-se
ao ser fundada no princípio da identidade em que o conhecimento no âmbito da razão
expressa a correspondência entre ser e pensar, trazendo o pressuposto de que os conceitos
representam o real enquanto tal. Para Adorno os conceitos não traduzem a coisa em si em
sua plenitude, já que o conteúdo da coisa em si traz também o não idêntico a si mesmo.
Assim, considerando que os conceitos não relatam a totalidade da realidade, pois não
abarcam o não idêntico, pode-se dizer que há uma tensão entre pensamento e objeto, a
qual impossibilita a exatidão da equiparação entre os mesmo. Portanto, o pensamento não
representa fielmente o objeto, pois não dá conta de teorizar o que não pode ser
conceitualizado.
Ao contrário de Hegel que atribuía primazia ao sujeito cognoscente e que
pressuponha alcançar a verdade através de uma elaboração linear de argumentos, a
primazia do objeto é o motor da dialética negativa de Adorno. Esta reconhece a
impossibilidade de se chegar à verdade absoluta, mas isso também não significa que a
verdade se encontre no objeto. A dialética negativa não tem como pretensão o
endeusamento de uma verdade, e por isso acaba por impedir ações autoritárias.
Para Adorno, um conceito isolado não representa fielmente o objeto, no entanto, se
aliado a outros conceitos, de modo a formar uma constelação, torna-se então mais próximo
da verdade. Porém, como já é suposto, de forma alguma essa constelação conceitual
pretende absolutizar uma verdade, pois ela não carrega consigo a estaticidade, a fixidez e a
imutabilidade, e sim a constante transformação na qual os conceitos estão interligados, isto
é, relacionados entre si em um movimento dinâmico, num processo em devir. Assim, cada
conceito é um fragmento que irá compor uma verdade e que juntos iluminam a
compreensão da realidade.
A primazia do objeto instiga o sujeito a refletir sobre aquilo que não é apreendido
conceitualmente, mesmo sabendo que não se pode absolutizar uma verdade, existe a
possibilidade do pensamento se aproximar mais da verdade do objeto, desta forma, ocorre
uma reflexão contínua sobre o próprio pensar. Isto é, uma auto-reflexão da razão. Esta não
acomodação do pensamento leva à persistência do pensamento crítico, possibilitando
assim, a autonomia do sujeito.
É importante destacar que para Adorno, embora haja a primazia do objeto, o
sujeito não é colocado de lado, sua importância ainda é reconhecida. Acontece que nesta
relação o sujeito tem consciência de sua limitação, sabendo que não é capaz de dominar
por completo o objeto, sabendo de que não conseguirá ter acesso direto a ele, e por isso a
auto-reflexão sobre o não idêntico não se torna estática, está sim em constante movimento.
No entanto, a exclusão do não idêntico em privilégio do sempre igual gera um
obstáculo na experiência formativa do sujeito, este obstáculo é o fenômeno da
semiformação. A semiformação é uma deformação, uma falsa consciência. Porém, ela não
se limita ao aspecto intelectual, a semiformação se amplia para o empobrecimento geral do
ser humano, em todas as suas formas de ser, sendo a escola uma das agências que reforça a
semiformação.
Outro exemplo de disseminação da semiformação é a indústria cultural, termo
criado por Adorno e Max Horkheimer que se trata da reificação da cultura, isto é, da
cultura que o modo de produção capitalista transforma em cultura de massa. Esta é
produzida em moldes padronizados e ofertada como sendo um objeto de mercadoria e,
desta forma a máquina capitalista acaba por aniquilar com o seu caráter crítico. A
verdadeira arte, aquela que não é criada conforme padrões próprios da indústria cultural,
acaba sendo fraudada ao ser vendida como um produto já adaptado para o consumo das
massas. Este produto é desprovido de valor crítico, e por isso impede a real experiência
estética.
Conforme Adorno, a indústria cultural age com o objetivo de servir interesses
político-econômicos, embutindo de maneira apelativa (supostas) necessidades de consumo,
é pressuposto que ela tende a enfraquecer as possibilidades de uma postura crítica, sem a
qual não há a contestação do status quo. Por isso a importância de uma formação
educacional comprometida com um projeto político que priorize a auto-reflexão crítica, já
que ela é elemento fundamental no processo de superação indústria cultural, sendo este um
dos obstáculos que impede a emancipação do sujeito.
Isto é, adaptação porque ela nos dá preparo para vivermos em sociedade, nos
repassando conhecimentos e toda bagagem cultural por meio do processo de ensino-
aprendizagem. Mas a educação não pode ficar somente na adaptação, senão haveria a
padronização de comportamentos e uma progressiva perda da individualidade, de tal forma
que ninguém conseguiria viver a seu próprio modo, assim como haveria a tendência a nos
conformarmos e em absorvermos o já estabelecido, resultando num comportamento
passivo e omisso diante da barbárie.
Por isso a educação que se volta para o objetivo da emancipação necessita ser
ambas: adaptação e resistência. Mas destaco aqui importância de a ação pedagógica se
voltar mais à resistência, de modo a priorizar espaços favoráveis à reflexão crítica, tendo a
escola uma postura crítica diante do ensino tradicional, o qual muitas vezes trabalha em
direção à formar pessoas de consciência ingênua para que assim se resignem frente às
situações decisivas:
competências necessárias para atuar no mercado de trabalho, sendo esta uma maneira de
manter as relações de produção dentro do molde capitalista.
No entanto, a função social do sistema escolar deve ser, segundo Adorno, de
enfatizar a necessidade da luta contra a adaptação do discurso vigente, de modo a
promover constantemente um confronto com a manutenção deste discurso. Desta forma, a
educação precisa se opor a uma existência determinada pela lógica do capitalismo,
contribuindo na construção de subjetividades com a razão e a sensibilidade emancipadas,
de modo a não serem compatíveis com este sistema.
Opor-se a isto tudo que o mundo de hoje nos oferece e que, no presente
momento, não admite vislumbrar qualquer outra possibilidade de
resistência mais ampla, é competência da escola. É por essa razão que
(...) é tão essencialmente importante que ela cumpra sua missão.
(ADORNO, 1995. p.79.)
existência dominante apresenta a sua vista e ainda por cima lhes inculca à força como se
aquilo que existe precisasse existir dessa forma.‖ (ADORNO, 1995. p. 178)
A função política da educação trata-se então, de superar a carência da razão
emancipatória, e de se deixar ser instrumento de luta e de resistência contra a adaptação à
condição social imposta pelo capitalismo. Por fim, a educação voltada para a emancipação
se ampara em uma postura crítica diante de tudo que condiciona o ser à alienação, isto
decorre como exigência de seu caráter político, assim como a necessidade de ser formadora
de consciência verdadeira.
Referências Bibliográficas
A ideia de razão clássica parece ser a motivação mais vital do bergsonismo, uma vez que
sem um rompimento dessa razão o filósofo não poderá atingir seus objetivos. Deleuze
adverte que são três o número de teses sobre o movimento da filosofia bergsoniana. A
primeira tese consiste em separar o movimento do espaço percorrido, afirmando que tal
espaço é divisível, já o movimento se divide apenas mudando de natureza. Na segunda tese
o problema dos mistos mal analisados exigirá do filósofo o cuidado com as ilusões que o
impedem de ver, com distinção, a verdadeira natureza existente entre as coisas. Por fim, a
terceira tese, nos dá o sentido primordial da intuição: pensar intuitivamente é pensar como
duração. Pode-se dizer que nestes três momentos o espírito pode conhecer, por intermédio
da intuição, a duração de cada ser, ou seja, o modo como cada indivíduo atravessa o tempo.
Palavras-chave: 1.Intuição 2.Razão Clássica 3.Bergsonismo
―sendo o cérebro uma ―imagem‖ entre outras imagens, ou sendo o que assegura certos
movimentos entre outros movimentos, não pode haver diferença de natureza entre a
faculdade do cérebro dita perceptiva e as funções reflexas da medula‖ (Idem, 1999, p.16).
Bergson conclui, que o cérebro apenas complica a relação entre um movimento recolhido e
um movimento executado. Contudo, o cérebro coloca um intervalo entre os dois, podendo
ser pelo fato de dividir ao infinito o movimento recebido, devido o mesmo prolongar
numa pluralidade de reações possíveis.
Devido ao efeito do intervalo que o cérebro estabelece entre o movimento
recolhido e o movimento recebido chamado ―intervalo cerebral‖ um ser pode captar de um
objeto material apenas aquilo que lhe interessa. Deleuze ressalta que não deve existir
diferença de natureza entre a faculdade do cérebro e a função da medula, mas somente
diferença de grau. É necessário se questionar sobre o que preenche um intervalo cerebral.
A resposta de Bergson será tríplice:
Pode-se concluir que aquilo que faz com que o corpo seja distinto de uma
instantaneidade e que lhe dá uma duração no tempo é a memória.
Regra complementar da segunda regra: ―o real não é somente o que se divide
segundo articulações naturais ou diferenças de natureza, mas é também o que se reúne
segundo vias que convergem para um mesmo ponto ideal ou virtual‖ (Idem, 1999, P.20).
Um problema bem colocado tende-se por si só, resolver-se. Deleuze afirma que conforme
o primeiro capítulo de ―Matéria e Memória‖, coloca-se bem o problema da memória.
Como por exemplo: Quando dividimos o misto lembrança-percepção, o mesmo é dividido
em duas direções diferentes e dilatadas, as quais correspondem numa verdadeira diferença
de natureza entre a alma e o corpo, o espírito e a matéria. Contudo, obtemos a solução de
tal problema quando ―apreendemos o ponto original no qual as duas direções divergentes
convergem novamente, o ponto preciso no qual a lembrança se insere na percepção, o
ponto virtual que é como que a reflexão e a razão do ponto de partida‖ (Idem, 1999, P.21).
Todavia este problema, da alma e do corpo, da matéria e do espírito, é resolvido por um
extremo estreitamento, através do qual, Bergson mostra que a linha da objetividade e a da
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo; Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999.
___________. A Imagem-movimento; Tradução de Stella Senra. Paris: Les Éditions de Minuit,
1983.
___________. Nietzsche e a Filosofia;Tradução de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes
Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. São Paulo:
Edusp, 2004.
modo atualiza, em sua criação, aquilo que na obra original é apenas virtual. Para Deleuze, o
mais interessante nos procedimentos de Bene é a fabricação das personagens.
Shakespeare é o alvo preferido do teatro crítico de Bene, de suas peças faz o que
Deleuze chama de uma ―crítica amorosa‖. A fim de darmos evidência ao procedimento de
minoração operado por Bene e a transformação do homem de teatro, apresentaremos
alguns traços característicos de uma das criações de Shakespeare, um dos mais importantes
dramaturgos e escritores de todos os tempos, trata-se da obra Ricardo III, que se passa na
Inglaterra no século XV.
A peça Ricardo III se passa na transição do poder, quando o Duque de Gloucester
ambiciona atingir o reinado. Na peça, o Duque é um homem ganancioso, frio, calculista e
sem nenhum escrúpulo; é apresentado como a personificação do mal, uma pessoa
extremamente ruim, e deformada. A deformidade de seu rosto e corpo eram horríveis, e
estavam dentro e fora dele, como se ele fosse ruim por dentro e ruim por fora. Podemos
perceber isso no começo da peça, quando ele diz em meio ao seu monólogo:
Pois eu, neste ocioso e mole tempo de paz, não tenho outro deleite para
passar o tempo afora a espiar a minha sombra ao sol e cantar a minha
própria deformidade. E assim, já que não posso ser amante que goze
estes dias de práticas suaves, estou decidido a ser ruim vilão e odiar os
prazeres vazios destes dias. Armei conjuras, tramas perigosas, por entre
sonhos, acusações e ébrias profecias, para lançar o meu irmão Clarence e
o Rei um contra o outro, num ódio mortífero, e se o Rei Eduardo for tão
verdadeiro e justo quanto eu sou sutil, falso e traiçoeiro, será Clarence
hoje mesmo encarcerado devido a uma profecia que diz será um ―gê‖ o
assassino dos herdeiros de Eduardo. Mergulhai, pensamentos, fundo,
fundo na minha alma (SHAKESPEARE, 2001, p.6. ).
Ricardo III era um ser tão abominável que até sua mãe Duquesa de York o
desprezava e repugnava suas ações chegando a amaldiçoá-lo e o denomina como ―uma
serpente com a qual o mundo foi presenteado‖ (SHAKESPEARE, 2001, p.60). Ricardo III
se mostra na peça como um homem muito frustrado, lamentando por sua vida e por sua
deformidade e justificando seus atos por causa dessas frustrações. Ele age de forma
traiçoeira e perigosa, não mede escrúpulos para conseguir o que quer, chegando a matar
todos que estavam em seu caminho para o trono, começa por matar Henrique IV e seu
filho, e depois ordena que matem seu irmão Duque de Clarence. Em seguida, ele ordena a
morte de seus próprios sobrinhos, o príncipe de Gales e o Duque de York que eram
herdeiros do trono e que estavam em sua frente na sucessão, por fim, arquiteta seu golpe
de Estado, matando, torturando todos aqueles que se voltassem contra ele.
Quando a população descobre que o Rei Eduardo está morto, ficam todos ansiosos
para saberem quem será o próximo a herdar o trono, Shakespeare mostra a posição do
povo sem alterações, como apenas telespectadores, impotentes, sem voz, sem poder,
apenas como alguém que cumpre o que lhe vem, sem se questionar.
não disseram palavra alguma, mas como estátuas mudas ou pedras que
respiram olharam-se uns aos outros e pálidos de morte se tornaram. Pelo
que eu, nisto vendo, lhes fiz grande reprimenda. E perguntei ao Alcaide o
sentido de tão obstinado silêncio. Sua resposta foi que o povo não era
acostumado a que, afora o arauto, alguém para ele falasse
(SHAKESPEARE, 2001, p.54).
Ricardo III usa de mentiras e dissimulações em conjunto com o medo que ele causa
na população com a intenção de fazer com que o povo lhe siga. Shakespeare não só retrata
o momento histórico de Ricardo, mas compreende que na luta pelo poder o que muda é
apenas o nome do rei, mas o ―grande mecanismo‖ para se chegar ao trono real é o mesmo.
Por fim, na peça, Ricardo III é abandonado por quem estava ao seu lado e os fantasmas
daqueles que ele matou voltam para perturbá-lo. Ele é engolido por sua própria trama,
quando outros também ambicionam sucedê-lo e são capazes de tudo, tal como ele fora,
para conseguir isso. Ricardo III termina em um campo de batalha lutando
desesperadamente por sua vida, ao ponto de trocar seu reino por um cavalo, daí o célebre
clamor: ―Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!‖ (SHAKESPEARE, 2001, .87).
Depois de terem sido evidenciados traços da personagem, pode-se mostrar como
Deleuze evidencia, em Um manifesto de menos (2010), a reconstrução feita por Carmelo Bene
(CB) dessa personagem shakespiriana, bem como, mostrar a atualização do que era virtual
na obra de Shakespeare. Deleuze afirma que isto é feito pelo dramaturgo por meio do
procedimento de subtração ou pelo processo de minoração, quer dizer, ele amputa partes
que na obra original estavam no centro da peça dando lugar a outras secundárias e, a partir
disso, cria uma nova peça. A operação de Bene funciona para Deleuze pensar uma
perspectiva política menor, ou seja, o teatro do italiano é matéria-prima para criação
conceitual do filósofo.
Deleuze dá a ver que no Ricardo III de CB o que é amputado é todo sistema real e
principesco restando apenas Ricardo III e as mulheres, fazendo aparecer na peça o que só
existia virtualmente na tragédia: a relação da mulher com o poder. Na peça de Shakespeare
as mulheres não travam relações com o poder, têm apenas aquele papel formal das
mulheres da realeza, sem influência nas decisões tomadas pelos homens.
Por exemplo, toda a primeira parte da peça de CB é um debate entre Ricardo III e
as mulheres, o qual diz respeito à imbecilidade do homem ao desconsiderar aqueles que
diferem dele, de seus padrões, de seus modos de pensar e agir; nesta parte, Bene ainda faz
uma observação acerca da obscenidade do feminino na história. CB faz aparecer em cena
as mulheres em guerra entrando e saindo, preocupadas com seus filhos que gemem e
choram, também mostra a mulher como objeto de desejo de Ricardo III: em uma das cenas
elas se despem na frente dele deixando claro o desejo deste pelo corpo feminino. Algo que,
não foi visto na peça de Shakespeare, pela formalidade com a qual fazia suas peças. Na
peça, Ricardo III deverá se tornar disforme para poder divertir as crianças e reter suas
mães. Tal procedimento deixa claro o modo como CB faz suas peças, diferente de
Shakespeare não mostra Ricardo III como um ser monstruoso e maligno, na sua versão
Ricardo III tem a capacidade até de cuidar dos filhos das mulheres, como se fosse uma
babá, ele incorpora um suposto papel feminino, algo que naquela época jamais se podia
esperar de um homem, enquanto coloca as mulheres em relação com o poder e com a
guerra. Outros elementos típicos das peças de CB são os gestos vocais dominados pelo
distúrbio na formulação e compreensão da linguagem e sonoridades que atravessam a cena:
murmúrio, sopro e grito.
CB minoriza Ricardo III de Shakespeare trabalhando em seus personagens
problemas contemporâneos próprios das minorias políticas. O Ricardo III beniano seria
uma das únicas tragédias em que as mulheres entram em relações de guerra e falam sobre o
poder, para que isso aconteça, Bene exclui todos os influentes personagens masculinos
retirando sua importância, à exceção do próprio Ricardo III. Este, por sua vez, ambiciona
menos o poder do que quer introduzir ou reinventar uma máquina de guerra, destinada a
destruir o equilíbrio aparente ou a paz do Estado. Operando a subtração dos personagens
do poder de Estado, que no caso seriam os reis, príncipes e Duques, Carmelo Bene vai dar
livre curso à constituição do homem de guerra na cena, ―com suas próteses, suas
Deleuze, a força criadora de possibilidades inauditas das artes – neste caso específico, do
teatro de CB – tem lugar privilegiado, na medida em que exerce uma função política de
produção de saídas coletivas por e para uma minoria – desde que a minoria não represente
nada de regionalista, mas também nada de aristocrático, de estético nem de místico.
Referências Bibliográficas:
BENE, Carmelo. Ricardo III. Buenos Aires: Artes del Sur, 2003._____. Ricardo III.
___________. Ricardo III. In.: http://www.youtube.com/watch?v=UtlKg_zugQM (último
acesso em 22 de maio de 2013).
DELEUZE, Gilles. Um manifesto de menos. In.: ___________. Sobre o teatro; tradução de
Fátima Saad, Ovídio
SHAKESPEARE, Willian. Ricardo III; tradução de Carlos A. Nunes. EbooksBrasil.com,
2001.
NUNES, Silvia Balestreri. Boal e Bene: contaminações para um teatro menor. São Paulo: Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, PUC/SP, 2004 (Tese de doutorado). Disponível
em:www.pucsp.br/.../Textos/TESESilviaBalestreriNunes.pdf, acessada e arquivada em 22
de abril de 2012.
HEUSER, Ester Maria Dreher. Procedimentos de minoração: do teatro de Carmelo Bene à
filosofia de Deleuze. Porto Alegre: Sulina, 2012.
Luciano de Almeida
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – Santo Augusto/RS
lucianoedf@sa.iffarroupilha.edu.br
Paulo Evaldo Fensterseifer
Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – Unijuí – Ijuí/RS
fenster@unijui.edu.br
RESUMO: O objetivo deste texto é encontrar argumentos que nos auxiliem a pensar a
Educação Física para além de seu caráter instrumental (fazer pelo fazer; ―exercitar para‖),
tomando cuidado para não transformá-la em um discurso sobre a cultura corporal de
movimento (BETTI, 1994; BRACHT, 2003). Para isso, recorremos à hermenêutica
filosófica de Gadamer para tentar compreender como a noção de linguagem pode nos dar
indicativos para redimensionar o hiato existente entre o fazer (prático), o saber com esse
fazer (teórico) e as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação
Física (escolar).
Palavras-chave: Linguagem. Se-Movimentar. Educação Física Escolar. Experiência.
132Para Fensterseifer (2001), a ciência moderna nos deixou órfãos em relação às certezas medievais, o que
―foi sem dúvida uma grande conquista. O erro em relação a ela é acreditar que a realidade se esgota nela,
quando de fato ela é apenas uma forma de tentar apreender esta realidade‖ (p. 83).
133 Chamamos a atenção para o fato de que Gadamer é o autor referência para pensarmos essas questões,
porém não fecharemos as portas para outros autores que tomarão parte nesse diálogo.
134 Fensterseifer (2012) nos dá um alento ao afirmar que ―não há linguagem sem ‗restos‘, sempre ‗sobra algo‘,
mas esse algo inominável ou permanece como tal, sem aceder ao mundo humano, ou para ser comunicado
em uma prática pedagógica, por exemplo, precisa aceder a linguagem, e por isso paga um preço‖ (p. 323-324).
135Guardadas as devidas proporções, essa relação (ou analogia) parece válida, tendo em vista que as obras de
arte são representadas em telas, figuras, esculturas... e se perpetuam, em alguns casos, através dos tempos, já o
movimento humano ocorre no plano da ação, na imediatez de uma situação.
Referências Bibliográficas:
BETTI, Mauro. O que a semiótica inspira ao ensino da educação física. Discorpo, São Paulo,
n.3, p.25-45, 1994.
BRACHT, Valter. Educação física & ciência: cenas de um casamento (in)feliz. 2. ed. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Tópicos).
FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. A educação física na crise da modernidade. Ijuí: Ed. Unijuí,
2001.
___________. O que significa aprender no âmbito da cultural corporal de movimento?
Atos de Pesquisa em Educação, Blumenau, v. 7, n. 2, p. 320-328, mai./ago. 2012.
FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. GONZÁLEZ, Fernando Jaime. Educação física
escolar: a difícil e incontornável relação teoria e prática. Motrivivência, Florianópolis, ano
XIX, n. 28, p. 27-37, jul./2007.
RESUMO: Através da análise política proposto por Rousseau em seu segundo Discurso
acerca dos fundamentos das desigualdades e sobre o pacto dos ricos, podemos realizar um
diagnóstico sobre o processo de transição dos acontecimentos sócio-políticos do século
XX ao XXI. A humanidade se encontrava entre dois paradigmas. O paradigma da
competição (da livre concorrência, da competição ou do mercado), que buscou ratificar as
desigualdades civis e econômicas em códigos jurídicos, através das circunstâncias históricas
(pacto dos ricos). E o paradigma da solidariedade, que busca oferecer soluções alternativas
para a preservação da própria humanidade, da natureza e dos pressupostos da sociabilidade
entre os povos. Sobre este tema me proponho a discutir o complexo debate político com o
apoio do pensamento rousseauniano.
Palavras-chave: Pacto dos ricos, desigualdade, livre concorrência.
136Existem algumas correntes interpretativas da filosofia política que contestam a capacidade crítica de
Rousseau ao propor apenas a redução das fortunas. O pressuposto aqui a ser destacado consiste fazer a
devida ressalva ao autor, pois se faz necessário contextualizar historicamente o cenário político de sua época,
pois Rousseau observava a sociedade civil da transição do feudalismo para o surgimento da burguesia do
século XVIII.
Foi a partir da intuição do pacto dos ricos, na qual Rousseau pensou através da
verossimilhança dos acontecimentos históricos, que ocorreu a destruição definitiva da
liberdade natural fixando a lei da propriedade privada e da desigualdade, tornando este
pacto em direito civil e a regra comum entre os cidadãos, nas palavras do genebrino ―de
uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável‖ (ROUSSEAU, 1999, p. 222).
É uma suposição ingênua e contraditória dizer que os governos foram escolhidos
antes da confederação e que os ministros existiram antes das próprias leis. Não é nem
razoável acreditar que um povo tenha alienado seus bens e sua liberdade a um senhor de
forma absoluta, sem condições e nem compensações. Não é nem razoável imaginar que um
povo possa trocar sua liberdade por uma condição de escravidão travestida de uma ilusória
segurança. Difícil demonstrar a validade de um contrato que só obriga uma das partes, na
qual se coloca tudo de um lado e reverte tudo em prejuízo ao outro lado que assumiu seu
compromisso.
Uma das máximas fundamentais do direito político consiste no fato dos povos
aceitaram ter governantes, para que estes lhes defendessem a liberdade e não para que os
escravizassem. Os políticos discursam sobre o apreço à liberdade e a justiça, da mesma
forma que os sofismas falavam sobre o estado de natureza: pelas coisas que vêem, julgam
coisas muito diferentes137.
Os governos se originaram pelo poder arbitrário, que não passa de corrupção,
através de seu termo mais extremo, que acaba por reduzi-los unicamente a lei do mais
forte. A lei do mais forte é um poder ilegítimo que não pode servir de fundamento para os
direitos da sociedade civil, muito menos para a desigualdade de instituição. O povo reunido
através do pacto de associação civil, tendo as suas vontades convergidas em uma só, todos
esses artigos elaborados por esta vontade tornam-se leis fundamentais que obrigam o
Estado, que não podem permitir privilégios e excepcionalidades, que regulamenta inclusive
a escolha dos magistrados encarregados de zelar pelo bem comum. O direito de abdicar
também pode ser fundamentado, pois nenhum contrato na sociedade civil é irrevogável.
Pode se concluir que o progresso do processo das desigualdades se deu através do
estabelecimento da lei e do direito de propriedade privada. Foi assim que o estado do rico e
do pobre foi autorizado pela época. A instituição da magistratura e a mudança do poder
legítimo para o poder arbitrário autorizaram o estado de dominação e escravidão,
tornando-se o extremo grau da desigualdade. As distinções políticas levam necessariamente
às distinções civis. A desigualdade estende-se sem dificuldade entre mentes ambiciosas e
covardes, sempre prontas a correrem os riscos da fortuna.
A comparação entre os indivíduos sem levar em consideração as diferentes práticas
que possuem entre si, levam a desigualdade de crédito e de autoridade entre os particulares.
As principais espécies de desigualdades e distinções pelas quais os indivíduos medem-se na
sociedade civil: riqueza, posição social, poder e mérito pessoal. O desejo universal de
reputação, honrarias e de preferências que pode ser desenvolvido no gênero humano
através do amor-próprio, no qual exercita e compara os talentos e as forças, tornando os
homens concorrentes e rivais.
As consequências da corrupção e das desigualdades extinguem aos poucos os
direitos dos cidadãos e a liberdade, transforma o protesto dos fracos em murmúrios
sediciosos, reduzindo desta forma a atuação política dos três poderes, em um cartel de
mercenários que se dizem zelar pelo povo e a honrar e defender a causa comum, enquanto
que na verdade estão ali para defender interesses privados, que buscam legitimação através
137Assim também como alguns pesquisadores liberais que tentam apelar a natureza para fundamentar a
competição na sociedade civil, é o mesmo que negar sociabilidade e relegar a razão a condição de selvageria e
barbárie.
Referências Bibliográficas:
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos entre a desigualdade entre os
homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. de Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. 2º Edição. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
RESUMO:
A defesa da teoria copernicana de uma Terra móvel está presente em grande parte da obra
do físico e astrônomo italiano Galileu Galilei e nesse sentido este tema não passou
despercebido aos estudiosos da obra deste importante cientista. No trabalho em questão
abordaremos brevemente alguns destes autores e suas respectivas considerações, mas,
sobretudo, buscaremos apontar alguns obstáculos enfrentados por Galileu no seu projeto
de defesa da tese copernicana. Entre estes obstáculos, podemos destacar a importância da
cosmologia e da física aristotélica como base conceitual que sustenta a teoria geocêntrica. É
em razão da importância e necessidade de desmontar tal base conceitual que Galileu não
poupou esforços em duas de suas principais obras (Sidereus Nuncius e Diálogo) na tarefa de
criticar e substituir a filosofia da natureza aristotélica pelo seu projeto copernicano.
Palavras-chave: Filosofia da Natureza. Cosmologia. Teoria heliocêntrica.
Um dos traços mais marcantes da vida do físico e astrônomo Galileu Galilei (1564-
1642) foi o esforço e a sagacidade com que lutou para mostrar a veracidade da posição
copernicana. Algumas de suas principais obras exprimem este esforço. Publicamente, foi
somente no ano 1610, com a edição do Sidereus Nuncius, que Galileu se pronunciou
favorável à teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543). É nesta pequena obra que o
físico e astrônomo pisano anuncia ao mundo as novas descobertas astronômicas realizadas
através do telescópio que havia construído no ano anterior. Para Galileu, as descobertas
dos satélites de Júpiter, o aspecto montanhoso da Lua e as incontáveis estrelas fixas
observadas, eram fortíssimos argumentos contra a cosmologia do filósofo grego Aristóteles
(384-322 a.C.). Entretanto, é em sua obra Diálogo sobre dois máximos sistemas do mundo,
publicada no ano de 1632, que melhor se exprime o espírito combativo e a luta de Galileu
em defesa do copernicanismo.
O rompimento com a cosmologia aristotélica era para Galileu uma necessidade,
como também o era para os demais copernicanos, pois se a Terra deixasse de ocupar o
centro do universo, e passasse a ser apenas mais um planeta como os outros girando ao
redor do Sol, considerá-la essencialmente diferente deles já não faria o menor sentido, isto
é, não haveria mais razão nenhuma em separar o universo em duas regiões
substancialmente distintas. Deve-se ressaltar, além disso, que, ao deslocar o centro das
revoluções planetárias, os copernicanos ―deslocam‖ também o ponto de referência do
cosmos aristotélico, ou seja, a coincidência entre o centro da Terra e o centro do universo.
Neste sentido, o que, à primeira vista, parece simples é demasiado dificultoso para os
copernicanos. Primeiramente porque a teoria heliocêntrica vai à contramão de toda uma
tradição milenar que estava baseada nas doutrinas aristotélicas e, em segundo lugar, porque
a suposição de uma Terra móvel contrariava a própria experiência diária do ―movimento‖
do Sol sobre a abóbada celeste. O desafio dos copernicanos não se encerra no âmbito
estritamente astronômico, ou seja, não era apenas uma substituição entre dois sistemas
astronômicos rivais, mas, além disso, significava reformular toda a filosofia natural pela
qual o sistema ptolomaico estava edificado. Por essa via, o copernicanismo trazia consigo
uma gama de problemas no que diz respeito à filosofia natural que impedia uma maior
aceitação por parte dos setores ligados à astronomia:
por uma nova física ―copernicana‖, é um dos empreendimentos que encontramos na obra
de Galileu.
Apesar das sensíveis diferenças entre as concepções de mundo de Galileu e
Aristóteles, não podemos nos esquecer de alguns pontos não tão opostos entre os dois
autores. Seria difícil conceber, a partir da filosofia aristotélica, um universo em que os seres
que o compõem não possuíssem finalidades pré-determinadas, pois resultaria em uma
concepção caótica de mundo, o que se apresenta claramente oposto à noção hierarquizada
e perfeitamente ordenada de cosmos defendida pelo filósofo grego. A seu modo, Galileu
também concebe que o universo deva ser perfeitamente ordenado, mas não leva esta
exigência a ponto de estabelecer, como Aristóteles, uma hierarquia de substâncias. Ao
contrário, o cosmos galileano é homogêneo, e essa tese será contraposta ao postulado
aristotélico pelas seguintes razões: a) para uma física com pretensões de interpretar a
natureza às luzes da matemática e da geometria, a física qualitativa seria um obstáculo, pois
acaba caracterizando, de certo modo, o movimento como intrínseco e incomensurável; b)
as teses peripatéticas que afirmam a existência de uma hierarquia e de uma dicotomia
cosmológica limitam a aplicação dos postulados da nova física concomitantemente a
fenômenos celestes e terrestres; e c) em consequência de uma homogeneização do
universo, a aceitação de que a Terra possui movimentos de translação análogos aos outros
planetas seria muito mais plausível e aceitável, visto que a tese aristotélica de que os
elementos estão hierarquicamente arranjados não determinaria mais a exclusividade do
movimento circular à região celeste. Em outras palavras, como cada elemento possui uma
única tendência de movimento natural, a concepção copernicana de que a Terra tem dois
movimentos circulares (translação e rotação) fere tanto a concepção aristotélica de que a
Terra, entendida como elemento, possui exclusivamente tendência a movimentar-se pela
linha retilínea, como fere também a noção de que cada elemento deve ter apenas uma
tendência de movimento.
Ainda que não exista um consenso no que diz respeito às consequências das teorias
e descobertas que ocorreram no campo do saber nos séculos XVI e XVII, não podemos
subestimar o alcance e o impacto, por exemplo, das observações telescópicas e/ou das
obras de Galileu Galilei sobre a história do pensamento científico e filosófico posteriores.
Partilhamos do posicionamento139 de Alexandre Koyré (1892-1964), segundo o qual as
139―A dissolução do cosmo, repito-o, eis o que me parece ser a revolução mais profunda realizada ou sofrida
pelo espírito humano depois da invenção do cosmo pelos Gregos. É uma revolução tão profunda, de
consequências tão longínquas, que, durante séculos, os homens – com raras exceções, entre as quais Pascal –
não se aperceberam do seu alcance e sentido; e ainda agora é frequentemente subestimada e mal
compreendida‖. (KOYRÉ, (198-?), p. 19).
Galileu questiona a própria ideia de natureza (physis) concebida pelo filósofo grego. Esta
hipótese é possível em razão de no mundo aristotélico o movimento envolver a natureza
constitutiva do objeto e, por exemplo, por menor que seja o deslocamento (queda de uma
pedra), este terá uma finalidade pré-determinada – o seu lugar natural (no caso da pedra, o
centro do mundo). Assim, questionar as distinções entre os movimentos naturais e
violentos, bem como a própria noção aristotélica de movimento em sentido amplo140 é, por
assim dizer, colocar em xeque a própria ideia de physis do filósofo grego.
Poderíamos dividir a crítica galileana à dicotomia céu-Terra presente na Primeira
Jornada em três momentos ou fases diferentes: 1) crítica à classificação aristotélica dos
movimentos; 2) crítica ao princípio de que as gerações e corrupções, como também
qualquer alteração, pressupõem a ação de contrários em um mesmo substrato; e, por fim,
3) apresentação de algumas observações telescópicas e de críticas ao argumento empírico
apresentado na obra De Caelo (cf. De Caelo, I, 3, 270b 12-16).
Além da crítica à classificação peripatética do movimento local em retilíneos e
circulares, outra noção aristotélica será alvo na Primeira Jornada. As regiões celeste e
terrestre, além de possuírem movimentos diferentes, possuem substâncias diferentes; a
essas diferenças podemos acrescentar mais uma: a região celeste é perfeita e incorruptível,
enquanto a terrestre é imperfeita e corruptível. Aristóteles alcança tais distinções a partir
das diferenças entre os movimentos retilíneos e circulares e, sobretudo, através do princípio
de que somente ocorrem gerações e corrupções onde existe a atuação de contrários em um
mesmo substrato. Tal princípio, se assim podemos chamá-lo, está subordinado às
diferenças entre os movimentos retilíneos e circulares, pois as gerações e corrupções que
acontecem na região sublunar são ocasionadas pelos movimentos retilíneos, ascendentes e
descendentes, que são contrários; e na região supralunar, onde se encontra exclusivamente
o movimento circular, não haveria qualquer tipo de geração ou corrupção, pela ausência,
por assim dizer, de qualquer tipo de movimento contrário ao circular. Sem tal classificação
dos movimentos, o princípio de que as gerações e corrupções ocorrem restritamente entre
movimentos contrários perde sua força como critério que distingue o mundo em duas
regiões opostas. Galileu está consciente de que o cosmos heterogêneo está apoiado sobre a
distinção aristotélica dos movimentos locais em retilíneos e circulares e da correspondência
140O movimento em Aristóteles não é unicamente o deslocamento ou movimento local. Mas, além disso, o
movimento tem papel fundamental na natureza, como princípio operativo do vir-a-ser. Assim, movimento
para o filósofo grego pode significar também: alterações qualitativas, aumentos e diminuições, gerações e
corrupções, além, é claro, do próprio deslocamento.
destes com a natureza específica das substâncias141 que compõem o universo. Por essa
razão, o físico pisano declara, por meio do personagem Salviati, que ―Se de algum modo,
no que foi estabelecido até aqui (conforme a classificação dos movimentos), descobrir-se
uma deficiência, poder-se-á razoavelmente duvidar de todo o restante, que sobre isso for
construído‖. (GALILEU, 2001, p. 98).
Apresentamos brevemente neste texto alguns problemas enfrentados por Galileu
no seu projeto de defesa do copernicanismo. Entre os quais destacamos a importância
basilar que a filosofia da natureza de Aristóteles tinha na sustentação da posição
geocêntrica e a necessidade de Galileu e dos copernicanos em desmontar e substituir tal
filosofia por uma nova física capaz de fundamentar o sistema heliocêntrico.
Referências Bibliográficas:
ARISTÓTELES. Acerca del cielo. Traducción de Miguel Candel. Madrid: Editorial Gredos,
2008.
FANTOLI, A. Galileu – pelo copernicanismo e pela Igreja. Tradução de Sergio Braschi. São
Paulo: Loyola, 2008.
GALILEU, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução,
introdução e notas de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
KOYRÉ, A. Galileu e Platão e Do Mundo do „mais ou menos‟ ao Universo da Precisão. Tradução de
Maria T. B. Curado. Lisboa: Editora Gradiva, (198-?).
SHEA, Willian R. La revolución intelectual de Galileo. Barcelona: Editorial Ariel, 1983.
O termo substância, nesta passagem, faz referência aos elementos (terra, água, ar e fogo) e, juntamente
141
DISCUSSÃO
142Luiz Carlos Frederick fez Mestrado em Educação na Universidade Cidade de São Paulo em 2011,
apresentando a dissertação: ‖Análise do programa de formação continuada do Movimento de Alfabetização
de Jovens e Adultos (MOVA) da Associação dos Voluntários Integrados no Brasil (AVIB): a voz de
educadores populares‖, orientado pela professora Doutora Ângela Maria Martins.
Freire (1987) constata que o analfabetismo aparece numa visão ingênua ou astuta
como a manifestação da incapacidade do povo de sua pouca inteligência. A partir desta
visão, a alfabetização, ―se rende ao ato mecânico de depositar palavras, sílabas e letras nos
alfabetizandos. Este depósito é insuficiente para que os alfabetizandos comecem a afirmar-
se, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sentido mágico‖ (p. 15).
O autor observa que, geralmente os textos das cartilhas de alfabetização nada têm a
ver com a experiência dos alfabetizandos, pois estes adultos são tratados de maneira
paternalista, às vezes infantil, como passivos, receptores das letras.
Os alfabetizandos deverão lidar com outro aprendizado: o de escrever a sua vida,
ler a sua realidade, daí a importância de tomar a história nas mãos para fazer e reescrever os
acontecimentos importantes que marcaram a sua existência. E acrescenta que
A partir desta perspectiva, o analfabeto é colocado como aquele a quem foi negado o
direito de ler, ninguém é analfabeto por escolha, mas como consequência das condições
objetivas em que se encontra.
O processo de alfabetização, assim, deve ser visto como uma ação cultural para a
libertação, em que o educando assume um papel de sujeito em relação ao educador.
Entretanto, para que haja esse processo de alfabetização e para que seja um ato de
conhecimento, é necessário estabelecer uma relação de diálogo autêntico em que os
alfabetizandos ―assumam desde o começo mesmo da ação, o papel de sujeitos criadores,
aprender a ler e escrever já não são, pois memorizar sílabas, palavras ou frases, mas refletir
criticamente sobre o próprio processo de ler, e escrever e sobre o profundo significado da
linguagem‖ (FREIRE, 1987, p. 59).
aponta que havia diversas experiências na cidade de São Paulo e analisa dentre outras, a que
foi implementada por Francisco de Assis Ferreira, presidente fundador do Centro de
Educação da Zona Leste, o que resultou na criação do MOVA.
O próprio Freire (2001) testemunha o surgimento do MOVA, quando afirma que
este se origina a partir de grupos populares que desenvolviam trabalhos de alfabetização e
junto com outros setores, como as Universidades e as Igrejas, criou 2000 núcleos para
atender 60.000 pessoas. Os objetivos eram: reforçar e ampliar o trabalho dos grupos
populares que já trabalhavam com a questão, possibilitar aos educandos uma leitura crítica
da realidade, desenvolver a consciência política e reforçar o incentivo à participação
popular e a luta pelos direitos sociais do cidadão.
Para Carlos Alberto Torres, o surgimento do MOVA/SP é uma experiência muito
interessante, pois possibilitou a parceria entre movimentos sociais que lutaram pela defesa
da mulher, da moradia, da alfabetização de jovens e adultos em conjunção com a Secretaria
de Educação e ―que coisa interessante se passa com a presença simbólica e prática de Paulo
Freire à frente de uma equipe na Secretaria da Educação‖. (GADOTTI, 2001, p. 26).
Observa-se que a criação deste projeto de educação não tinha como objetivo
simplesmente o resgate de suprir as dificuldades da não alfabetização, do ensinar a leitura e
a escrita, mas eram outras questões de cunho social e políticos que estavam colocadas
naquela conjuntura. A educadora Janis Kunrath evidencia que a denominação de
movimento de alfabetização, ―traz em si a noção de mobilização, engajamento dos grupos
organizados da sociedade civil, do constante movimento de participação dos grupos que
desenvolvem alfabetização de jovens e adultos‖. (KUNRATH. 2006 p. 4).
Esta parceria é enaltecida por outro educador ao referir-se a questão do MOVA,
Gadotti (2001) afirma:
144Trata-se de Enrique Dussel, nascido em Mendonza na Argentina em 1934. Tem uma longa história de luta
pela libertação latino-americana, tendo sido inclusive vítima de um atentado à bomba do governo militar
argentino, em 1975 exilou-se no México. É considerado um dos principais nomes da nova filosofia latino
americana, chamada da libertação, que tem as suas origens na década de 80, praticamente no mesmo período
em que emergiu a Teologia da Libertação. Este pensador tem trabalhado e cunhado categorias próprias, no
sentido de resgatar a autonomia e o protagonismo da filosofia ameríndia.
Registre-se que Paulo Freire (1983, p. 39) pensa na mesma direção, ao afirmar que o
aluno, o discípulo, aquele que se coloca numa atitude de alfabetização, deverá praticar
atitudes de resgate do outro, numa postura de seu reconhecimento. Ele destaca que todos
têm direito à pronúncia da palavra e esta pode levar à liberdade e à consciência, quando
afirma:
Corroborando com esta proximidade entre Dussel e Freire, Pazello (2007, p. 18)
afirma que o ouvir o outro, categoria cunhada por Dussel nada mais é do que a
dialogicidade de Freire, que apresenta a educação como prática de dominação como a
imperante no mundo hodierno. Para este autor,
Outra categoria cunhada por Dussel é a pedagógica que também dialoga com
Paulo Freire, pois esta pedagógica é vista ―como parte da filosofia que pensa a relação face-
a-face do pai-filho, mestre-discípulo, médico, psicólogo-doente, filósofo-não filósofo,
político-cidadão‖. (DUSSEL, 1977b, p. 153).
É importante também discutir mesmo que brevemente a ética da libertação em
Dussel, que tem como ponto de partida a participação comunitária na busca de novos
consensos que se dão na relação dialógica entre o educador e educando. Para Pazello
(2007) a ética da libertação em Dussel, ―pauta-se pela validade anti-hegemônica da
comunidade das vítimas‖ (p. 9).
O conceito de ―ser negado‖ de Dussel pode ser utilizado na análise das pessoas
que estão em processo de alfabetização. Aplicado numa perspectiva dialógica, este conceito
sugere que o alfabetizando deve ser ouvido, pois tem o direito à pronúncia da palavra, na
mesma direção apontada por Paulo Freire. Desta maneira, a alfabetização se faz no diálogo
Referências Bibliográficas:
Marcelo Barbosa
barbosa_mondai@hotmail.com
que esse ser, que fala e age, tem a possibilidade de dar início a uma cadeia de novos
acontecimentos que estruturam toda a teia de ralações humanas, assim o discurso e a ação
dão uma postura humana aos acontecimentos e ao mundo.
Sem ação não há nada de novo, e sem o discurso não há como materializar e
memorar as coisas novas. E, sem o poder o espaço da aparência produzido pela ação e pelo
discurso em público se desvanecerá tão rapidamente como o ato vivo e a palavra viva.
Assim a ação esta sempre condicionada à pluralidade, enquanto parte nas relações
humanas ela se torna imprevisível, ou seja, a ação se torna incerta por não possuir um fim
determinado. A busca pela substituição da ação pela fabricação, desde Platão, é de
encontrar nela uma forma de buscar meios práticos de fugir da política, é a noção de que
alguns possuem o direito de comandar e os demais forçados a obedecer, buscando
encontrar um substituto da ação. A fabricação se caracteriza pelo uso da violência e é
limitada, pois parte de um começo e um fim já definido. Em que aquele que toma a
iniciativa não se permite qualquer envolvimento com a ação. Platão via no conceito de
governo o principal instrumento para ordenar e julgar os assuntos humanos sob todos os
aspectos. Na Republica as ideias se convertem em ações; o rei-filosofo aplica as ideias
como o artesão aplica suas regras e padrões. Dessa forma a violência se torna presente
assim como na fabricação, onde todos os meio se tornam admissíveis e justificados para
alcançar alguma coisa que se definiu como um fim. Segundo Arendt, tanto para Platão
como para Aristóteles as questões políticas são tratadas à maneira da fabricação.
Arendt utiliza o exemplo do teatro, este, mostra a arte reveladora da ação e do
discurso e a manifestação implícita do agente e do orador, indicando assim que a
representação teatral é uma imitação da ação, ela nunca acontece com um sujeito isolado. O
ator desse modo nunca é um simples ―agente‖, ele é sempre também paciente, pois toda
estória iniciada por ele causa consequências ilimitadas formando uma reação em cadeia e
causando novos processos. Uma nova ação sempre afeta outros. ―Assim, a ação e a reação
entre os homens jamais se passam em um círculo fechado, e jamais podem ser restringidas
de modo confiável a dois parceiros‖ (ARENDT, 1983, p.238). A ação política é ilimitada,
pois se inter-relaciona entre os homens, uma fronteira sem limites de possibilidades de
novos acontecimentos. ―A ilimitabilidade da ação é apenas o outro lado de sua tremenda
capacidade de estabelecer relações, isto é, de sua produtividade específica‖ (ARENDT,
1983, p. 239), Ela é a virtude política por excelência.
Arendt observa que, para que o cidadão grego pudesse viver de forma livre na polis
ele deveria estar isento da coação do outro e da atividade do trabalho como condição de
suprir suas necessidades vitais. O sentido grego de liberdade, por um lado, ocorria de
forma negativa, isto é, onde o indivíduo não era dominado e nem tinha a intenção de
dominar o outro. Em outro sentido, ela era positiva, pois a liberdade era efetivada na esfera
pública da ágora que só pode ser produzida pelo concurso plural dos cidadãos livres e iguais
que pudessem se relacionar através do diálogo e do convencimento recíproco. Os
acontecimentos humanos estão sempre relacionando por um ―Inter-esse”, ou seja, aquilo que
está entre as pessoas e as relaciona que afinal é o mundo comum, vinculados por um
interesse comum, se estabelecem o que Arendt chama de espaço-entre, que é o resultado de
uma objetividade mundana. Essa objetividade mundana acolhe toda intersubjetividade
humana e todos os interesses que formam a teia de relações humanas.
É essa teia de relações humanas, no espaço-entre que torna a ação imprevisível e
intangível. ―É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras
vontades e intenções conflitantes, que a ação quase nunca atinge seu objetivo‖ (ARENDT,
1983. p. 230). Arendt retoma a ideia da liberdade política na polis grega que não separava o
falar do agir, o próprio falar já é uma forma de ação, ―o autor de grandes feitos também
deve ser sempre, ao mesmo tempo, um orador de grandes palavras‖ (ARENDT, 2011, p.
56). A ideia de que, quando se fala entre iguais as palavras podem ser retrucadas, e no
sentido de réplica a ação da fala se desenvolve no convencimento do outro. Destacando
outra liberdade fundamental que é a liberdade de externar opiniões.
Arendt ressalta ainda, que a liberdade pública busca a instauração de um corpo político
novo, exigindo para isso uma constituição que assegure tanto os direitos civis e a liberdade
pública, A respeito do ato constitucional, Arendt escreve que é: ―bastante óbvia a diferença
entre uma constituição elaborada burocraticamente por um governo e uma Constituição
por meio da qual um povo (se envolve) para constituir um governo‖ (ARENDT, 2011, p.
194). A preocupação nas discussões dos fundadores estava voltada para que o poder da
constituição assegurasse a liberdade dos estados constituintes que:
Referências Bibliográficas:
A METAFÍSICA DE SCHOPENHAUER
145 MVR- Sigla para designar a obra: ―O mundo como vontade e como representação‖.
146 BARBOZA, 1997, p.30.
termos empíricos, pois o que está exposto diante do indivíduo passa a ser primeiramente
percebido por eles e, também pelas três formas puras do conhecimento. Essas formas são
o tempo, o espaço e a causalidade: o princípio de razão, através do qual se pode conhecer
as coisas empiricamente. Um objeto específico sempre está situado num dado tempo, num
dado espaço e envolvido numa rede causal.
O mundo constituído pelo princípio de razão está em devir constante, causando
uma ilusão da realidade, trata-se de estar envolto no ―véu de Maia‖ 147. Este véu de Maia é
como o princípio de razão, é comparado a um manto, uma ilusão que vigora para impedir a
visão real das coisas. Assim, o mundo é minha representação ordenada pelas formas puras
de tempo, espaço e causalidade, e essa representação é ilusória por esses dois motivos: por
não dizer a sua essência e por estar em constante fluxo.
Como foi visto, o objeto existe para o sujeito como sua representação. A relação
mútua e subjetiva do tempo e espaço é a sensibilidade pura e essa já pressupõe a matéria. A
matéria ou causalidade é configurada pelo entendimento, a função deste é conhecer a rede
de relações causais. O que está sempre presente no entendimento é a intuição do mundo
efetivo, ou seja, conhecer a causa, o que provocou no tempo e no espaço determinado
efeito. Em consequência, a intuição é intelectual, pois fornece a partir da causalidade os
primeiros dados para o entendimento. Não seria possível alcançar tal intuição se algum tipo
de efeito não fosse conhecido.
Portanto, sem a faculdade do entendimento não haveria intuição empírica: ―(...), ou
seja, puro conhecimento pelo entendimento da causa a partir do efeito‖ (MVR, 2005, p.55).
A intuição depende da lei da causalidade porque o mundo é uma ―conclusão do
entendimento‖ a partir dos dados fornecidos pela sensibilidade. O entendimento, usando o
princípio de razão, faz a relação entre as coisas a partir dos sentidos, e essa relação é
essencial para o acesso ao conhecimento empírico, sendo o corpo o ponto de partida para
o entendimento do mundo. O corpo é um conjunto de sensações fornecido pela
causalidade na qual surge a intuição do mundo e é uma representação. O entendimento
precisa, necessariamente, do corpo para inferir representações do mundo, portanto é uma
função cerebral. O entendimento é a faculdade do intelecto que produz as representações
147Maia é um deus que possui um caráter altamente enganador, à disposição dos demônios hindus e nos
impede de ver a realidade autêntica das coisas. Schopenhauer usa algumas comparações que são encontradas
nas passagens dos Vedas e dos Puranas para definir o véu de Maia, por exemplo, assemelha o véu a um
pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente; a corda pode nos enganar, ou seja, pode ser uma
serpente ao invés de uma simples corda.
nas ações, enquanto indivíduos somos um querer essencial. E é esse querer que o
impulsiona no seu agir e nos movimentos. O corpo é fenômeno da vontade, sendo este o
que há de mais real para o próprio indivíduo. Mesmo o corpo tendo essa referência que é a
vontade, ele continua sendo uma representação, portanto o mundo é minha representação,
e também é minha vontade. Todos os objetos são objetivação da vontade, mas no meu
corpo eu expresso a vontade.
Os fenômenos estão no âmbito da representação e a vontade é a coisa-em-si.
―Coisa-em-si, entretanto, é apenas a vontade (...). Ela é o mais íntimo, o núcleo de cada
particular, bem como do todo. Aparece em cada força da natureza que faz efeito
cegamente, na ação ponderada do ser humano (...)‖ (MVR, 2005, p.168-169). A vontade
encontra-se em toda parte, agindo sem ser percebida. Vontade, em Schopenhauer, é
vontade de vida. É a vontade de vida que impulsiona os seres e objetos, se manifesta no
mundo. O mundo é vontade. Esse conhecimento metafísico só é possível pela Filosofia,
uma vez que a Ciência não decifra a coisa-em-si, pois não vai além dos fenômenos do
mundo, através da ciência não é possível ―(...) penetrar a essência íntima das coisas‖ (MVR,
2005, p.182), ou seja, a vontade, pois a ciência nunca ultrapassa a representação, apenas faz
a ligação entre as representações.
Segundo o filósofo (MVR, 2005, p. 189), a coisa-em-si é totalmente diferente da
representação. A vontade é a coisa-em-si separada de seu fenômeno, permanecendo
exterior ao tempo e espaço e, dessa maneira, a vontade é una enquanto algo alheio à
pluralidade. O conjunto do espaço e tempo é a objetivação da vontade: ―A vontade se
manifesta no todo e completamente tanto em um carvalho quanto em milhões‖ (MVR,
2005, p.190). Portanto, há uma vontade no todo que se manifesta nos objetos e seres
particulares. Diante disso, Schopenhauer define a Ideia para situar a essência una e
indivisível que há no mundo: ―Os diversos gatos da realidade só existem enquanto reflexo
distorcido de uma ideia de gato inalterável. Todos os gatos do mundo não passam da
pluralização de uma única e mesma ideia de gato‖.148 Portanto, há uma ideia de gato, e esta
não muda, não aparece no tempo e espaço. Mesmo que a espécie se extingua, a ideia de
gato é eterna. Do mesmo modo com os outros seres e demais objetos, seja um cavalo ou
uma cadeira, há a ideia eterna de tudo. Também a ideia de humanidade é eterna e
inalterável, mesmo que os indivíduos que a constituam sejam passageiros. Em outras
palavras, as ideias são representações da vontade, porém independentes do princípio de
149 Também ao santo é atribuída essa capacidade, e quanto a este será explicado adiante.
ideia que o artista pretende expor em sua obra. O homem, ao olhar com os olhos do
artista, terá a possibilidade de alcançar a contemplação estética.
A contemplação estética produz, por um curto espaço de tempo, a cessação do
sofrimento. Esse fim do sofrimento, possível pela satisfação, é passageiro devido ao
aparecimento de vários outros desejos que também anseiam por satisfação. O querer é
sofrimento na medida em que pressupõe uma carência, então um novo desejo quer ser
satisfeito e este sendo satisfeito, há ainda vários outros e assim sucessivamente, não há fim.
Essa é a roda de Íxion em que o sujeito do querer está ―preso‖ e que não cessa de girar.
Através da contemplação estética, do conhecimento da ideia, em que o gênio intui o
mundo na sua essência e empresta os olhos para fazermos da mesma maneira, ou seja, para
termos acesso ao belo, nos libertamos por instantes do estado existencial doloroso.
Portanto, ―A obra de arte é simplesmente um meio de facilitação do conhecimento da ideia
(...)‖ (MVR, 2005, p.265) e aqui reside o conhecimento por excelência, sendo a arte
superior à ciência. A ciência é um conhecimento teórico que o entendimento produz
submetido ao princípio de razão e está voltado a conhecer o mundo como representação.
A arte, por sua vez, contempla as ideias e por meio dela é possível aproximar-se do
conhecimento da vontade. O consolo proporcionado pela arte seja através da arquitetura,
jardinagem, pintura, poesia ou música, é o que faz o homem esquecer-se da penúria da
vida. O gênio consegue se destituir do mundo como vontade mais facilmente do que os
demais homens, a estes cabe o esforço de ver através dos olhos do artista, para obter o
conhecimento da ideia, presente no mundo como vontade.
É também atribuído aos santos, através de sua compaixão extremada, o
conhecimento da vontade. O santo rompe uma visão baseado no princípio de individuação
(tempo, espaço e causalidade) e este rompimento ocorre devido a algumas características.
―(...) a perfeita bondade de disposição, o amor desinteressado e o mais generoso auto-
sacrifício pelos outros‖ (MVR, 2005, p.480-481). Tal homem, considerado santo, não está
sob o véu de Maia e é benevolente, há uma compaixão no mais elevado grau ao próximo,
absorve para si as dores alheias, compaixão significa paixão-com. É o colocar-se no lugar
do outro. Um exemplo dessa compaixão extremada foi o amor de Jesus Cristo pela
humanidade, ou de São Francisco de Assis pelos animais. O ser dotado de compaixão se
ausenta do sentimento de egoísmo, pois há uma identificação com o outro na qual não há
diferença entre si e o outro, entre o eu e o não-eu, acabando por anular o eu individual e a
suprimir a individualidade. Os santos se desinteressam pelo seu bem-estar, se colocam no
lugar da humanidade e não ficam somente contemplando o sofrimento alheio, agem para
ajudar, nem que para isso seja necessário o sacrifício. Com isso, rompe-se o princípio de
individuação, ou seja, o princípio de razão.
A compaixão permite ―penetrar‖ no mundo, assim como no caso da ideia exposta
pela arte. O sentimento de ambos, da compaixão e da contemplação estética (a arte),
possibilitam a separação do eu e não-eu, há a negação da vontade. ―O homem, então,
atinge o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade e completa
destituição de vontade‖ (MVR, 2005, p.482). A arte fundamenta a estética, ciência da beleza
e a compaixão fundamenta a moral. Num primeiro momento, o sujeito está no plano da
efetividade regido pelo princípio de razão, e, quando a arte ou compaixão irrompe, visa o
desempenho da espontaneidade da essência do mundo.
Para concluir, a respeito da metafísica de Schopenhauer, pode-se afirmar, em linhas
gerais, que ―(...) este mundo no qual vivemos e existimos, é segundo a sua natureza,
absolutamente vontade e absolutamente representação (...)‖ (MVR, 2005, p.228). A
representação é expressa pelo princípio de razão a partir do sujeito. A representação é
espelho da vontade, pelo qual ela conhece a si mesma. Para tal conhecimento, é preciso
voltar-se à contemplação da arte em que o gênio irá expor a ideia; e a virtude moral dotada
do sentimento de compaixão, esta possível pelos santos, para expor o conhecimento da
vontade, da essência, aqui reside a coisa-em-si do mundo. Tais contemplações, estética e
moral possibilitarão a satisfação e fim do sofrimento e ambas se encontram na unidade
metafísica da vontade.
Referências Bibliográficas:
RESUMO: Em face de um trabalho híbrido, estes traços pretendem tecer os fios entre
temas transversais, compor uma amalgama entre o pensamento filosófico de Friedrich
Nietzsche e a literatura de Julio Cortázar. O objetivo é mostrar que a estrutura e a
narrativa da obra literária O Jogo da Amarelinha, no original Rayuela, são fontes de sensações
capazes de promoverem a criação de conceitos. No caso específico desta pesquisa, se dará
ênfase para o conceito de jogo. Tal conceito foi cunhado também, de um modo especial, na
filosofia de Nietzsche, este será o outro ―novelo‖ a ser utilizado para a composição desta
tessitura. As linhas que se seguem intentarão experimentar a conexão entre a literatura e a
filosofia por meio da complexa noção de jogo.
Palavras-chave: Filosofia. Jogo. Literatura.
―À sua maneira, este livro é muitos livros‖, é com essa frase que somos convidados
a adentrar a obra literária de Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, de 1963. A orientação do
autor que se segue a frase é advertir o leitor sobre duas formas de leitura da obra, a
primeira maneira de lermos o livro é linear: ler os capítulos na ordem da exposição, do
primeiro até o capítulo 56. A segunda maneira, que é indicada, é iniciar a leitura do livro
pelo capítulo 73 e, ao final é apontado o próximo capítulo a ser lido.
A frase que inicia o ―O Tabuleiro de Direção‖ é o roteiro de leitura do livro, aqui
são estabelecidas as regras desse jogo e as suas inerentes possibilidades de interpretação. O
livro, que contém outros livros é dividido em três agrupamentos intitulados: ―Do lado de
lá‖, ―Do lado de cá‖, esses se constituem até o capítulo 56 e o terceiro agrupamento, ―De
outros lados‖ são os chamados ―capítulos prescindíveis‖, os quais só farão sentido na segunda
maneira de leitura, a que o autor indica no tabuleiro de direção.
O Jogo da Amarelinha implica em infinitas possibilidades de interpretação, o
arcabouço organizacional do texto constitui um jogo no sentido real, denotativo da
expressão. A obra do escritor argentino rompe com os modelos da narrativa padronizada,
subverte a ordem forjando a sua própria linguagem, assimilando a arte escrita à própria
dinâmica do jogo. Nesse sentido, o título do livro referente à brincadeira infantil, o jogo da
amarelinha, condiz com a proposta literária do escritor: no livro que se faz jogo, o jogo que
se torna um livro, contém seus participantes, suas regras, seu tabuleiro e, inevitavelmente,
como qualquer jogo, está à mercê do imprevisto, ao capricho de todas as possibilidades. A
própria estrutura do livro é um jogo literário e vital, nele vê-se a vida mesma em exercício,
de sua superfície emergem ressonâncias esquecidas, fragmentações de monstruosas
sutilezas, arrebatamentos, contradições. Em suma, magistralmente Cortázar produz muito
mais que um livro, muito mais do que um jogo. Segundo o escritor Mario Vargas Llosa:
Julio Cortázar, com seu Jogo da Amarelinha, torna-se um literato ímpar na medida
em que elege o leitor como o seu protagonista, o qual se transforma em jogador. O Jogo da
Amarelinha possibilita a produção de uma leitura que é jogo, jogo jogado por um leitor
ativo, que, nesse diálogo, é transformado em jogador; a obra permite ao leitor perceber-se
no jogo; na troca mútua e contínua de cada lance da pedrinha, a obra literária aflora em si
mesma, tornando-se a realização do jogo, a realização da leitura.
150O Clube da Serpente é composto pelas seguintes personagens: Horacio Oliveira, Maga (Lucia),
Rocamadour (filho de Maga), Mmé, Perico, Romero, Ronald, Etienne, Gregorovius, Gaby, Guy, Monod,
Bessie, Osiep, Wong e Léonie.
151 Nunes, no ensaio ―Filosofia e Poesia: uma transa‖, elenca três formas de relação entre a filosofia e a
literatura: disciplinar, supradisciplinar e transacional. Disciplinar é entendida como a filosofia superior a
literatura, supradisciplinar como a literatura superior à filosofia, e por fim, transacional é a compressão de que
ambas as instâncias, podem interagir, sem a perda das suas especificidades, mas em plena comunhão de ideias.
Nesse tempo, já me dera conta que procurar era minha sina, emblema de
todos aqueles que saem à noite sem qualquer finalidade exata, razão de
todos os destruidores de bússolas (CORTÁZAR, 2003, p.16).
continua, em meio ao jogo de Horácio tentando apresentar razões para se jogar pela janela
e Traveler argumentando para que o amigo não faça isso, Horácio diz:
(Horacio) - A questão reside toda nisso, ter uma ideia sobre qualquer
coisa, custe o que custar. Você não é capaz de intuir por um segundo que
as coisas podem não ser assim?
(Traveler) - Supunha que sim. Mas a verdade é que você está aí
debruçado na janela.
(Horacio) - Se você realmente suspeitasse de que isto pode não ser assim,
se realmente conseguisse chegar ao cerne da coisa... Ninguém está lhe
pedindo que negue o que está vendo; mas se você, pelo menos, fosse
capaz de empurrar um pouquinho, compreende, com a ponta do dedo...
(CORTÁZAR, 2013, p. 396-397)
Podemos entender, que Horácio realiza o jogo, que vive a metáfora do jogo da
amarelinha, perpassando o céu, pulando sobre a terra, no seu eterno fluxo, ele completa o
ciclo, rendeu-se, encontrou o kibbutz. Ao final diz:
mesmo que, no fim das contas, algum encontro havia, embora não
pudesse durar mais do que aquele instante terrivelmente doce no qual a
melhor coisa a fazer, sem sombra de dúvida, teria sido inclinar-se um
pouco fora e deixar-se cair, paf, acabou-se. (CORTÁZAR, 2013, p. 402).
Iniciamos o livro com a frase lapidar, ―à sua maneira, este livro é muitos livros‖ e
parafraseando Cortázar, ―à sua maneira, este jogo é muitos jogos” jogos que revelam o que está
intrinsecamente ligado à vida, o que ela é, a vida descrita por Horacio com todos os seus
jogos, a vida descrita por Nietzsche com todos os seus jogos, o seu fluxo, o fogo que
perpetua toda a transformação, vida em constante metamorfosear-se, tornando-se
leitor/jogador da obra/jogo, da obra máxima que os gera, a vida.
Referências Bibliográficas:
RESUMO: Ao longo do último período de sua obra, Nietzsche utiliza-se dos termos
psicologia e fisiologia em vários sentidos. O estudo pretende analisar algumas destas
ocorrências, buscando traçar um perfil do modo como o filósofo passa a elaborar aquele
que, para fins desta pesquisa se considera seu novo conceito de psicologia: uma
fisiopsicologia enquanto ―morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência‖
(Morphologie und Entwicklungslehre dês Wilens zur Macht). O enfoque da pesquisa está centrado
em Além de bem e mal - Jenseits von Gut und Böse,1885/86), contudo, outras obras do terceiro
período de Nietzsche, além dos Fragmentos Póstumos, foram eventualmente consultadas.
Palavras-chave: Fisiopsicologia. Fisiologia. Psicologia. Metafísica.
152 Será adotado neste estudo o padrão de abreviaturas das obras de Nietzsche tal como convencionado pelos
Cadernos Nietzsche a partir da edição crítica das obras completas organizadas por Colli e Montinari (KSA). As
siglas em português sucederão as siglas em alemão visando facilitar a leitura. Para os fragmentos póstumos, os
algarismos arábicos indicam o número do caderno e o fragmento póstumo, seguido do período de
elaboração, de acordo com a edição Kritische Studienausgabe (KSA).
fenômenos até então considerados psíquicos, das manifestações até então consideradas
fisiológicas, às quais se poderia crer por eles desencadeados, não no estudo abstrato da
alma.
Nietzsche se utiliza do termo psicologia num sentido negativo para se referir a
pressupostos falsos, em sua concepção, ligados à interpretação metafísica e às religiões
pessimistas. Trata-se de contextos nos quais se percebe a alma como noção principal dessa
psicologia. Em O Anticristo § 15 declara: ―nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm
algum ponto de contato com a realidade. Nada são senão causas imaginárias (...) esse mundo
de pura ficção (...) falseia, desvaloriza e nega a realidade‖.
Afastar-se da tradicional visada voltada ao interior do homem, conforme
demandara a psicologia tradicional, se faz necessário. O campo investigativo no qual
Nietzsche insere sua nova psicologia começa a delinear-se doravante sob a perspectiva de
uma interpretação que busca um viés científico, desprovido de uma fundamentação moral e
suas implicações, como é possível claramente constatar também no parágrafo 2 do Prólogo
de A Gaia ciência, quando revela:
O filósofo esclarece como dirige sua análise ante a nova psicologia que propõe,
distinguindo-a daquela da qual se utilizavam os psicólogos anteriormente. Ao investigar
como os filósofos procedem mediante as questões mais relevantes da vida, sua observação
está pautada em verificar se suas posturas em relação a ela são de afirmação ou negação.
São as valorações humanas em relação à existência que, expressas fisiologicamente, indicam
a saúde ou a doença, o fortalecimento ou a degeneração de um organismo. É com esse
embasamento que dirá no parágrafo 2 do Prólogo de A Gaia ciência: ―frequentemente me
perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do
corpo e uma má-compreensão do corpo‖.
Sob uma análise superficial poder-se-ia afirmar que Nietzsche claramente
transladara as questões até então tidas como espirituais para o nível corporal. Sua nova
concepção psicológica, no entanto, transcende esse pensamento reducionista, indo além do
conceito de corpo como tradicionalmente é compreendido. A vontade de potência é um
processo relacional de dominação, os impulsos ou forças não são nem corporais, nem
anímicos, efetivando-se como tendência de crescimento de potência. Embora
reconhecendo que cientificamente tais afirmações estão desprovidas de legitimidade,
Nietzsche propõe que sejam tomadas como uma interpretação possível, tanto quanto
aquela que, até então, foi legitimada pela tradição (cf. FW/GC Prólogo § 2).
No fragmento póstumo 14(121) da Primavera de 1888, intitulado ―A vontade de
potência considerada psicologicamente: Concepção unitária da psicologia‖, Nietzsche afirma que
sua tese é: ―que a vontade da psicologia que há havido até agora é uma generalização
injustificada, que essa vontade não existe em absoluto, que em lugar de captar a configuração
de uma única vontade que se há determinado em muitas formas, se há suprimido o caráter da
vontade ao subtrair-lhe o conteúdo, o ponto até o qual se dirige‖. Como vontade única,
entende-se o afeto básico de tendência a crescimento de potência, o ―ponto ao qual se
dirige‖ a vontade. Caso se descuide desta observação, corre-se o risco de compreender
erroneamente as palavras do filósofo, quando alerta para o equívoco advindo do fato de
termos inventado uma falsa compreensão unitária que na verdade não existe (cf. FP 11
(111) Novembro de 1887-Março de 1888).
Com isso, é possível compreender que a psicologia enquanto ―morfologia e teoria do
desenvolvimento da vontade de potência‖ possa ir além da linguagem que ―continua a falar em
oposições onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações‖ (JGB/BM §24). Ou
seja, a psicologia nietzschiana supera o modo metafísico de pensar, que envolve qualidades
absolutas opostas, por meio dos graus de hierarquização e da intensidade de potência dos
impulsos, de caráter quantitativo. Após esse esclarecimento é possível compreender de
maneira mais assertiva as palavras de Nietzsche quando afirma:
É nesse sentido que Nietzsche irá propor uma concepção ―unitária‖ de psicologia,
ou seja, porque parte daquela qualidade originária à qual denomina vontade de potência, da
qual sua nova psicologia estudará o desenvolvimento; uma vez que entende que ―os
últimos e mais pequenos ―indivíduos‖ não são compreensíveis no sentido de um ―indivíduo
metafísico‖ nem de um átomo, que sua esfera de valor se translada constantemente‖ (FP 14
(121) Primavera de 1888). É, portanto, a vontade de potência, enquanto primeira unidade
qualitativa que, não constituindo uma unidade material, tampouco espiritual, possibilita a
Nietzsche propor uma compreensão unitária de psicologia. Unitária no sentido de que se
desenvolve unicamente a partir dessa primeira unidade qualitativa, dessa forma primitiva do
afeto (Affekt), cujo desenvolvimento, no sentido das transformações, das mudanças que
acarreta pode ser investigado a partir do quantum de potência que, em variações sucessivas,
atuam no organismo configurando seu tipo hierárquico.
Nietzsche desvincula a psicologia dos pressupostos metafísicos e religiosos sem,
contudo, enveredar pelos caminhos da ciência. Apesar de sua filosofia sofrer influência
considerável da psicologia científica francesa153, o filósofo acredita que as ciências ainda
estejam, de algum modo, ligadas aos pressupostos metafísicos (cf. FW/GC § 344). Propõe,
153A proposta de uma nova psicologia desatrelada da metafísica e baseada nas ciências naturais era defendida
pela psicologia experimental francesa, da qual Nietzsche era assíduo leitor. Teve como um dos principais
centros irradiadores o filósofo e psicólogo francês Theodule Ribot. Fundador da psicologia científica francesa
e responsável pela sua autonomia (cf. Nicolas, 2002, p. 103-118; Dugas, 1924, p. 16-32). Assim como
Nietzsche, Ribot defendia que a psicologia baseada na fisiologia teria papel relevante na superação da
psicologia tradicional de caráter metafísico. Diferentemente de Nietzsche, no entanto, para quem a fisiologia
está ligada à dinâmica da luta dos impulsos (Triebe) por mais potência (vontade de potência), para o psicólogo
e filósofo francês o termo fisiologia trata dos processos físico-químicos dos organismos. Para maiores
referências quanto à relação de Nietzsche com a psicologia científica francesa cf. ―Nietzsche e Théodule
Ribot: Psicologia e Superação da Metafísica‖ (FREZZATTI, 2010), bem como ―A Recepção de Nietzsche na
França: da Revvue philosophique de la France et de l‟Étranger ao período entreguerras‖ (FREZZATTI, 2012).
porque que é por ela que o filósofo intenta dar conta dos sucessivos processos de alteração
das configurações da vontade de potência e suas concomitantes manifestações que, todavia,
são expressas nos âmbitos tradicionais da psicologia e fisiologia.
Se Nietzsche não separa o fisiológico do psicológico em sua teoria dos impulsos
(Triebe) – uma vez que remete a expressões instintuais, ou seja, a manifestações resultantes
da dinâmica da relação entre os impulsos (Triebe) aquilo que antes constituía um domínio
bem definido de territórios diferenciados –, pode-se compreender que psicologia e
fisiologia coincidam para Nietzsche no sentido de serem manifestações advindas de uma
mesma origem. A nova psicologia, ou fisiopsicologia, enquanto teoria do condicionamento
mútuo dos impulsos (Triebe) (cf. JGB/BM § 23), deverá ser o campo de estudo do novo
psicólogo, que investigará a manifestação das configurações desses impulsos (Triebe) que
condicionam a vida e sua influência na economia global da vida. É assim que o filósofo
almeja garantir outra vez à psicologia o título de ―rainha das ciências‖ (cf. JGB/BM § 23).
Referências Bibliográficas:
Há dois tipos de dependência; a das coisas, que é da natureza, e a dos homens, que
é da sociedade. A dependência das coisas por não conter moralidade não gera vícios, a dos
homens é o seu contrário. O caminho para remediar este mal é substituir o homem pela lei,
ou seja, tornar as vontades particulares em vontades gerais, deste modo as leis das nações
seriam como as leis da natureza, invioláveis.
A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens, por isso
nascem sensíveis e não racionais. ―Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos
temporões (...)‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 91). A criança deve receber lições de suas
experiências. Primeiramente sua educação deve ser negativa, ou seja, não convêm a ela
aprender sobre virtude, verdade ou moralidade, mas sua educação deve preveni - lá ―(...)
contra o vício e o espírito contra o erro‖ (ROUSSEAU, 2004, p. 97). É exercitando seu
corpo, seus sentidos, sua força que se estará educando e não estimulando seus julgamentos
que aprenderá o que é liberdade, moralidade. Ela precisa vivenciar livremente esses
conceitos no decorrer do seu desenvolvimento pois apenas assim os aprenderá
verdadeiramente.
A natureza dispõe de meios naturais para promover o desenvolvimento saudável
do infante. Rousseau é crítico da pedagogia tradicional, pois não entende a necessidade de
educar segundo os preceitos racionais. Para o filósofo a criança é antes um ser sensível que
precisa, primeiramente, desenvolver suas forças e emoções. A natureza é o ambiente
favorável para tal, a melhor maneira de educar é considerando o infante no infante, com
todas as suas particularidades para depois prepará-lo para viver em sociedade e,
consequentemente para o mundo.
considerado que o conhecimento e formação moral têm como fonte a própria experiência
e a experiência do educador. A passagem da liberdade natural para a moral exige do
educando a capacidade de autocontrole do sujeito, o domínio das emoções e paixões.
Segundo Rousseau, a educação moral deve ser amparada ao ensino de regras e ao
desenvolvimento do caráter. Deste modo se manifestará no comportamento expressivo de
virtudes tradicionalmente conhecidas e respeitadas, tais como a honestidade, a coragem, o
controle de si mesmo, a solidariedade e o respeito ao próximo. A maior parte dos
programas tem como objetivo realçar essas virtudes, de modo que se tornassem princípios
internos que orientem o comportamento e as decisões a serem tomadas. Os meios para a
realização de tal objetivo são fundamentalmente, como os de confrontação entre o
comportamento do adolescente e o exemplo dos adultos ou jovens maiores que possuem
virtudes específicas, ilustrando estas virtudes, recompensando a prática e punindo a
omissão das mesmas.
A educação proposta por Rousseau é a da liberdade ou da natureza. Por ela, o
homem adquire a possibilidade de penetrar na sua interioridade, alcançar a liberdade e dar
significado à sua existência, considerar a si e ao outro; perceber o outro como extensão de
si próprio. O principal objetivo da educação é formar o homem livre, capaz de se defender
contra todas as influências negativas advindas da sociedade.
No processo de formação cognitiva a criança tem de ser levada a desenvolver um
modo de decidir e agir de acordo com seus desejos, vontades e limites impostos pela
natureza. Ela deverá por si só reconhecer suas limitações. Ser livre é algo natural ao
homem, mas para o convívio social o respeito e o limite são necessários. A criança não
pode ter tudo o quer e isso gera sentimentos de frustração e raiva. Cabe ao processo de
formação cognitiva equilibrar os sentimentos existentes na consciência moral. Tomar a voz
da natureza como norma das paixões, sentimentos, dos afetos e das ações. Este deve ser o
caminho para que mais tarde haja o desenvolvimento da voz da consciência.
Neste contexto geral a tarefa mais elementar da educação natural em Rousseau
consiste na tensão entre os envolvidos no processo pedagógico, sabendo que ―A formação
humana, quer seja na direção cooperativa/solidária ou individualista/ egoísta, não é uma
determinação somente externa e estranha aos envolvidos, mas depende também das suas
decisões e opções‖ (DALBOSCO, 2011b, p.138).
O objetivo principal da educação moral é ―(...) assegurar a passagem da
dependência para a independência‖ (DALBOSCO, 201b, p.34). Rousseau estabelece
tarefas específicas da passagem da educação natural para a educação moral ensinando ao
jovem que o homem é ―naturalmente bom‖ e deve julgá-lo por si mesmo, também cabe ao
jovem compreender e analisar criticamente a sociedade. Desta forma a maioridade é
apresentada como condição da dignidade humana. Segundo Dalbosco, (p.36, 2011b) ―Tal
concepção remete-nos para a conclusão de que a meta da educação moral é formar um
homem capaz de julgar e agir coerente e autonomamente (...)‖.
A base da educação natural é a liberdade humana ligada à razão, a consciência e a
vontade de si. A natureza humana é à base do direito e da liberdade. A natureza deve ser o
guia da moral. A voz da consciência nos ajuda a decidir por conta própria, ou seja, nos
ajuda a desenvolver a autonomia. Voltar à natureza é ouvir a voz da consciência e controlar
o amor próprio desenvolvendo o amor de si. Somente assim atingimos uma subjetividade
autêntica.
Assim sendo, o papel da educação não se limita simplesmente ao aprimoramento
humano, mas faz com que o educando se compreenda enquanto ser social e reconheça seus
direitos e deveres, pois a moral constitui-se do resultado da sua relação com a sociedade,
tendo papel fundamental na educação social. Portanto, é função da pedagogia natural
desenvolver uma formação racional, autônoma e sensível.
4. Considerações Finais
Referências Bibliográficas:
DALBOSCO, Cláudio. A. Educação Natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados
do adulto. São Paulo: Cortez, 2011a.
CENCI, Ângelo.V. A Formação moral e o papel do educador no livro IV do Emílio. In:
DALBOSCO, C. A. (ORG.). Filosofia e Educação no Emílio de Rousseau: o papel do educador
como governante. São Paulo: Alínea, 2011b. p. 147-167.
KANT, Immanuel. Textos seletos. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
ROUSSEAU, Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
ROUSSEAU, Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Talvez não seja possível ainda entender as manifestações que ocorreram em junho
deste ano no Brasil. Mas certamente é nosso dever ao menos se perguntar o que levou
tantas pessoas em tantos lugares diferentes saírem às ruas para lutar pelos seus interesses.
Afinal, quando muitos imaginavam e escreviam que o povo brasileiro se encontrava
adormecido e acomodado, presenciamos, pelo menos em números, uma das maiores
manifestações que esse país já viu.
O que levou essas pessoas as ruas? Talvez esta seja a única pergunta que possamos
tentar responder nesse momento. Está muito claro que as manifestações de junho de 2013
vão além da revogação do aumento das tarifas de transporte e da insatisfação com a má
aplicação dos recursos em mega eventos como a copa do mundo. É uma revolta também
contra a falta de canais de expressão onde a população possa manifestar suas necessidades.
A sociedade não estava encontrando caminhos para expressar o seu protesto, a sua
insatisfação. É uma revolta pelo direito de se manifestar, pela abertura de canais entre a
sociedade e o sistema político.
Também é necessário dizer que a violenta repressão policial às primeiras
manifestações serviu para motivar ainda mais as pessoas a irem às ruas. Quando aconteceu
a repressão policial, os manifestantes indignados gritavam que além de não conseguir mais
influenciar esse sistema político que se fecha nele mesmo, funciona segundo suas próprias
regras e não presta conta à sociedade, o sistema também envia a polícia para desmobilizá-
los. As ruas ganharam mais manifestantes porque o sistema, além de ferir os indivíduos em
sua dignidade, também resolveu agredir fisicamente.
Não há uma unidade de reivindicações, de foco, a organização é diferente. As
pessoas estão expressando insatisfações de muitos tipos, de muitos níveis. Contudo, parece
inegável que há um traço comum nessas manifestações: existe uma revolta contra o
sistema. Se cada grupo saiu às ruas para lutar pelos seus interesses em particular, todos
também carregavam a bandeira de um movimento apartidário. Em inúmeros lugares no
país podíamos ouvir o grito ‗sem partido‘. Os manifestantes, independente da sua pauta,
sempre deixavam bem claro que se tratava de um movimento que gozava de autonomia em
relação ao governo e a partidos políticos.
Não foi a toa que as manifestações deixaram os nossos representantes políticos
estarrecidos. Não sabiam o que fazer. Em São Paulo foi possível ver o PT e o PSDB darem
as mãos para anunciar a revogação do aumento das passagens. De Brasília vimos a
presidente ir aos meios de comunicação para anunciar que iria ouvir a voz das ruas.
Deputados, vereadores e senadores sumiram dos noticiários, pois não queriam enfrentar as
ruas e se reuniam para entender tudo que estava acontecendo.
Essa revolta, e aqui seguimos os passos de Honneth para nossa análise, é a
manifestação de uma população que se sente desrespeitada e desprezada. Alguns grupos
são desrespeitados quando sofrem maus tratos e violação física, como é o caso dos
homossexuais. Com outros grupos o desrespeito se manifesta por meio da privação de
direitos e exclusão. E, outros ainda, o desrespeito surge nos casos de degradação e ofensa,
onde a ―honra‖ e a dignidade são desrespeitadas.
De acordo com Honneth, o que motiva esses grupos a saírem e lutarem por
melhores condições é a necessidade de ser reconhecido e respeitado. O interessante é que
para esses grupos o desrespeito maior vem daqueles que deveriam representar seus
interesses. Os manifestantes que saíram as ruas com a bandeira ‗sem partido‘ estavam
externando seu sentimento de revolta contra o desprezo manifestado por aqueles que
foram eleitos para ouvi-los.
Na verdade, talvez esses grupos não tenham feito essa leitura ainda, mas a sua luta
é, também, contra um sistema político blindado. De acordo co Marcos Nobre, em nome de
um acordo de governabilidade, vivemos no Brasil um momento em que não há
verdadeiramente uma oposição. Os partidos políticos, através de várias ações, vêm
construindo um sistema político que tem por objetivo a permanência no poder. Um
exemplo clássico do que falamos é o PMDB. Partido que faz acordo com Deus e o Diabo
para permanecer no poder.
No entanto, se enganam aqueles que ainda procuram uma polarização entre
esquerda e direita. Se for possível falar de oposição, essa só pode ser vista entre aqueles que
estão no poder e aqueles que lá gostariam de estar. No Brasil, infelizmente não existe
opinião pública. Ela foi substituída pela opinião da mídia. E a mídia, através de leituras
superficiais e equivocadas, faz a população crer que existe oposição no Brasil.
Essa blindagem do sistema político transformou os partidos e seus representantes
em uma grande geleia. Não é possível identificar projetos políticos. Aquele que ontem era
seu inimigo amanha pode ser seu aliado. Novas regras são aprovadas apenas para proteger
os partidos políticos. Não é a toa que temos o pleito eleitoral mais avançado do planeta. A
população só é ouvida nos pleitos eleitorais e, ainda assim, parcialmente, pois com as regras
de legenda e coeficiente eleitoral não é possível saber se aquele que você escolheu será
eleito.
De acordo com Honneth, o que move uma sociedade é a luta por reconhecimento.
Quando somos feridos e desrespeitados nos organizamos para lutar pela nossa dignidade.
No caso das manifestações de junho de 2013, é muito claro que a população ao não
encontrar canais de expressão política recorreu às manifestações, algumas violentas, para
ver seu grito por reconhecimento ser atendido.
Nesse sentido, é inegável a força e importância que a internet e as redes tiveram
para organizar essas manifestações. Num país onde a imprensa é quem forma a opinião, as
redes são um espaço verdadeiramente democrático. Se for verdade que encontramos muito
lixo na internet, também é verdade que as redes proporcionam um espaço aonde a opinião
vai sendo construída através do diálogo.
Infelizmente, nesse momento, encontramos muitas leituras que tentam neutralizar
essas manifestações. Algumas dizendo que é estratégia da oposição, e aqui se leia PSDB, e
outras que é estratégia da situação. Alguns, ignorando a força das manifestações, afirmam
pejorativamente se tratar do movimento de classe média. Outros ainda chegam a temer que
por se tratar de um movimento sem partido seja uma manobra de apoiadores de uma
ditadura militar. Enfim, leituras que se pretendem definitivas e quem não conseguem
enxergar o verdadeiro potencial dessas manifestações.
A crítica mais comum ouvida durante as manifestações é que não existe uma pauta
unificada por parte dos manifestantes. Isso é dito com o objetivo de neutralizar e
desmobilizar os manifestantes. Contudo, como Honneth nos ajudaria a compreender,
numa sociedade plural e complexa, não existe apenas ‗um‘ interesse. Cada indivíduo luta
para ser respeitado onde foi desprezado e ferido. Mesmo assim, com já dissemos, o traço
comum dessas manifestações é a luta contra esse sistema político blindado.
Nesse sentido, e aqui vamos concluído essa comunicação, o grande potencial dessas
manifestações é perceber que a população está cansada desse sistema político que privilegia
a perpetuação no poder. O grito das ruas é contra um sistema que se fecha cada vez mais e
que permite acordos absurdos, trocas de favores, corrupção e coligações que ignoram as
verdadeiras necessidades da população. Tal qual está, o sistema político e seus partidos se
constituem numa força despolitizadora da sociedade.
Este é o momento para aprofundarmos a democracia em nosso país. Talvez seja
necessário dar autonomia para os municípios e descentralizar os recursos, pois a
centralização dos recursos é um exemplo de um sistema político que se fecha em si mesmo
e que torna os estados e municípios dependentes do governo federal. Também não se pode
barganhar menos desigualdade social por uma cultura política de baixo teor democrático.
O Brasil precisa aprofundar a democracia. Talvez algumas leituras estejam corretas
quando afirmam que essas manifestações são perigosas. Afinal, aprofundar a democracia
sempre traz riscos. Mas não podemos fechar os olhos e ouvidos para o clamor das ruas.
Muitos desses jovens não são capazes de fazer uma leitura de tudo que está acontecendo,
mas esse é o momento de aproveitar para formar novas lideranças e ajudar esses jovens a
compreender que a democracia é uma forma de vida que penetra fundo no nosso
cotidiano.
Referências Bibliográficas:
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Editora 34, 2003.
NOBRE, M. Choque de democracia: Razões da revolta. São Paulo: Companhia das letras,
2013.
Como já mencionado, a Primeira Guerra Mundial fez com que o homem europeu
indagasse se o espírito humano poderia superar o que ele mesmo construiu, ou ainda, se
este espírito poderia reconstruir o que ele mesmo destruiu. Como nota ainda Zilles, na
guerra, o indivíduo faz a dura experiência de que não é segurança para si mesmo, mas que a
verdadeira segurança está no encontro com seres dotados de interioridade (ZILLES, 1995,
p.65-66). A segurança de si está no outro.
Com a experiência da guerra, Marcel descobre que, para além da objetividade, a
pessoa pode tornar-se presença. Tal realidade não se pode constatar de fora. A presença
não se deve pensar como objeto. O ato que me envolve com um ser sempre tem o caráter
correspondente à atividade do pensamento que deve ser concebido como criador. A
presença do tu emerge num contexto existencial quando participo da existência do outro
no ser-com, tornando-se uma presença intersubjetiva, não objetivável. Observa Marcel:
O autor trata do dado mais imediato e indubitável de sua metafísica concreta, que
se apresenta na intimidade mais radical e primária do que podemos chamar de existência,
sendo esse dado a própria encarnação desse homem. Indubitavelmente a encarnação é o
dado de mais alto grau da presença, sustentando todas as nossas afirmações. Ser é
coexistência com outrem, é projetar-se e conviver, é o ser-com. Agora, o princípio
metafísico fundamental não é mais o ―eu penso‖, mas o ―nós somos‖, ou seja, podemos
afirmar que eu existo na medida em que me relaciono com os outros. A intersubjetividade
torna-se participação amorosa como comenta Carmona (CARMONA, 2002, p.145). O eu
somente se pode afirmar eu caso exista um outro, pois para afirmar-se necessita referir-se a
um outro, diferente das teorias idealistas, que o eu é uma mera coincidência de si, ou um
não existente. Vejamos como Marcel ilustra essa referência acerca do outro:
intersubjetiva por excelência e que não tem e não pode ter relação no
mundo dos objetos, que é em seu conjunto um mundo de pura
justaposição. Retomemos o exemplo e suponhamos que a conversação
toma seu caráter mais íntimo. ―Estou encantado de conhecê-lo‖, disse ao
estranho: ―em outro tempo conheci seus pais‖; nesse momento cria-se
um laço e, sobretudo se relaxa a tensão. O jovem deixa de centrar a
atenção em si mesmo como se algo se distendesse em seu interior. Sente-
se transportado além desse aqui e agora ao que, se se me perdoa uma
comparação trivial, seu eu se encontrava pregado como um curativo a
uma ferida. Disse transportado e o curioso é que esse desconhecido o
acompanha nessa espécie de viagem mágica. Estão juntos em outro lugar
que, contudo, apresenta um caráter de misteriosa intimidade. (MARCEL,
2002, p.163)
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
É no aforismo §342 de A Gaia Ciência que pela primeira vez nos deparamos com o
personagem de Zaratustra. Personagem este que permanecerá nas obras publicadas e em
fragmentos póstumos posteriores a esse aforismo. O título do fragmento parece-nos
bastante sugestivo - Incipit tragoedia (A tragédia começa) – uma vez que este mesmo texto
constituirá, ainda que com leves modificações156, o primeiro parágrafo do prólogo de Assim
Falava Zaratustra. A tragédia é iniciada e sem dúvida constitui, no conjunto da obra
nietzschiana, a obra capital do filósofo. Seja pela sua forma conceitual e figurativa, seja pela
importância dada aos principais temas de sua filosofia: além do homem, a morte de Deus, a
vontade de potência e o eterno retorno do mesmo.
Se por um lado, a obra inaugura um novo período na filosofia nietzschiana, – o da
maturidade – por outro seu personagem é o responsável por toda a proposta reconstrutiva
156No prólogo de Assim Falava Zaratustra Nietzsche reproduz quase que literalmente o aforismo 342 da Gaia
Ciência. A diferença é que na Gaia Ciência, além do título Incipit tragoedia, ele traz o ―lago de Urmi‖ que em
Zaratustra será substituído por ―o lago de sua pátria‖, como sendo o local que junto com sua terra é
abandonado por Zaratustra, quanto este vai às montanhas.
do filósofo desse período157. Assim, Zaratustra constitui o grande ícone da filosofia madura
de Nietzsche. Além disso, não é de mero acaso que no Ecce Homo (2007d, p.95) o filósofo
escreva: ―depois de resolvida a parte da minha tarefa que diz Sim (Assim Falava Zaratustra),
era a vez de sua metade que diz Não, que faz o Não: a tresvaloração mesma dos valores
existentes, a grande guerra – a conjuração do dia da decisão‖. É no entorno de Zaratustra
que tal tarefa é levada à cabo. É à sombra de Zaratustra que os principais temas pensados
pelo filósofo são desenvolvidos e experimentados. Ainda no prólogo do Ecce Homo, (2007d,
p. 19) numa referencia à obra (Assim Falava Zaratustra), Nietzsche a designa como sendo
não apenas um ―autêntico livro do ar das alturas‖, mas também o ―mais profundo‖. Nele
não fala nenhum ―profeta‖, nenhum fundador de religião, nenhum fanático, de modo ser
necessário ―ouvir corretamente o som que sai desta boca (...) para não se fazer deplorável
injustiça ao sentido de sua sabedoria‖.
Inserido na filosofia nietzschiana como o personagem encarregado de anunciar o
além-do-homem e ser o mestre do eterno retorno do mesmo, Zaratustra permanece para
além da obra de próprio nome conforma supra-afirmamos. Em algumas ocorrência o
filósofo refere-se à obra propriamente dita, entretanto, em várias outras passagens as
referências são direcionadas ao personagem. Nessas é possível compreender Zaratustra
como sendo o personagem escolhido por Nietzsche para levar a cabo sua filosofia. Não são
poucas as passagens que nos deixam entrever que as idas e vindas do personagem, sugerem
o modo nietzschiano de construir seu pensar.
Além disso, cabe levar em conta ainda o fato de que o personagem costuma
apresentar-se em íntima relação com os demais temas da filosofia nietzschiana. No
Crepúsculo dos Ídolos, em um texto chamado Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar uma
fábula, Nietzsche (2000, p. 32) refere-se ao ―meio dia‖, ao instante da sombra mais curta
enquanto ponto culminante da humanidade e onde Incipit Zaratustra (começa Zaratustra). A
mesma associação entre Zaratustra e o ―grande meio dia‖ ocorre em diversas outras
passagens, sejam elas na própria obra Assim falava Zaratustra, seja nos fragmentos póstumos
e demais obras.
157Em relação à periodização da obra nietzschiana entendemos que a mesma se dá apenas em ambitos
metodológicos e via de regra, seguimos as divisões estabelecidas por Scarlett Marton (1990, p. 19-25). Marton
reconhece três períodos na obra do filósofo. Do primeiro fazem parte os escritos de 1870-1876, dentre eles O
Nascimento da Tragédia e as Considerações Extemporâneas. No segundo de 1876-1882, reconhece-se dentre outras,
Humano Demasiado Humano, Aurora, Gaia Ciência. E por fim, do terceiro período participam Assim Falava
Zaratustra, Para Além de Bem e Mal, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Anticristo.
serpente. Ali aprende sua sabedoria e um dia farto dela decide levá-la aos homens. Na
descida se encontra com um eremita o qual ainda não havia ouvido que Deus morreu. Na
cidade encontra o povo reunido a quem anuncia o Além-do-homem. O anúncio torna-se
um fracasso. Depois de enterrar com suas próprias mãos, um malabarista que morrera ao
se apresentar em praça pública, descobre uma nova verdade: não se deve falar ao povo (cf.
NIETZSCHE, 2007a, p. 47). Ao meio dia, após concluir que não deve tornar-se um pastor
de rebanho nem andar com cadáveres, retira-se novamente à sua montanha e então começa
seu ocaso. É o fim do prólogo.
A primeira parte é dedicada aos discursos de Zaratustra. Nela o tema é a morte de
Deus. Aqui se encontram o discurso das três transmutações, os ataques contra as virtudes
que fazem dormir, contra os trasmundanos, contra os que depreciam o corpo e a alma. No
discurso Da árvore da montanha estão descritas as peregrinações e Zaratustra e diálogos com
que querem converter-se em seus discípulos. Após os capítulos dedicados à amizade, ao
matrimônio e às mulheres, Nietzsche/Zaratustra contrapõe a virtude dadivosa às falsas
virtudes. Por fim despede-se de seus discípulos ordenando para que o reneguem, pois só
assim poderá retornar a eles e então volta para a montanha.
A segunda parte inicia com Zaratustra na montanha esperando que sua semente
frutifique e se impacienta com sua superabundância de sabedoria. Numa manhã tem um
sonho de que sua doutrina está sendo desfigurada, e que precisa ir ao encontro de seus
amigos. O tema base dessa parte é a Vontade de Potência. É em virtude disso que nos
primeiros capítulos encontramos o ataque a quem se opõe a essa vontade: os virtuosos, os
sábios famosos, as tarântulas; a todos aqueles que sentem aversão à vida e encontram-se
dominados pelo espírito de vingança. No capítulo Dos grandes acontecimentos encontramos
mais informações acerca das andanças de Zaratustra. No último capítulo, o pensamento do
eterno retorno emerge como um monstro, Zaratustra grita de terror diante dele (cf.
NIETZSCHE, 2007a, p. 218).
O ponto culminante da obra é sem dúvida a terceira parte. Note-se que o plano
original a obra encerava-se com essas três partes158. Conforme o final da segunda parte já
indica o tema central deste capítulo é o pensamento do eterno retorno. É um saber secreto
158Em relação à quarta parte da obra, cabe ressaltar que Nietzsche finalizara Assim Falava Zaratustra com a
terceira parte. Seu propósito era de que a que hoje constitui a quarta parte desta obra, fosse o primeiro
capítulo de uma obra a ser intitulada Meio dia e eternidade, também composta de três capítulos os quais nunca
vieram à luz. Durante a vida lúcida do filósofo, da quarta parte só foram publicados 40 exemplares. Em 1890,
quando já da demência do filósofo, sua irmã Elizabeth a publicou novamente e manteve a separação. Por fim,
em 1892 ela foi ajuntada às outras três partes e publicada numa versão tal qual a conhecemos hoje sob o título
de Assim falava Zaratustra.
que Zaratustra hesita em falar sobre. Nietzsche/Zaratustra parece ter medo de expressá-lo.
O capítulo Da visão e do enigma talvez concentre o grande foco da obra: a visão de um
enigma. É o sonho que Zaratustra narra aos marinheiros durante a travessia. É espantoso e
inexpressado. É como a serpente atravessada na garganta que o homem só consegue livrar-
se dela após morder-lhe a cabeça, para em seguida rir como nenhum homem riu por sobre
a terra (cf. NIETZSCHE, 2007a, p. 302). Encontram-se nessa parte ainda inúmeros
capítulos líricos ainda que seja constante a presença do peso do eterno retorno do mesmo.
Quando se inicia a quarta parte, muitos anos e muitas luas já passaram por sobre a
alma de Zaratustra. Outra vez em sua caverna, de cabelos brancos e decide fazer uma pesca
estranha: pescar homens nas altas montanhas. Atraídos pelo seu canto de felicidade,
homens superiores vão ao seu encontro. Ao ouvir um grito de socorro a última tentação
acerca-se de Zaratustra. É a tentação de sentir compaixão pelos homens superiores, seria a
último tentação de Zaratustra. Os homens superiores vão aparecendo um a um
(consciencioso do espírito, o mago, o papa jubilado, o mais feio dos homens, o mendigo
voluntário, o viajante e sua sombra). Com eles Zaratustra celebra a Ceia e depois a Festa do
asno. Porém não são estes que ele aguarda, mas sim um sinal que logo chega: o leão
risonho e o bando de pombas. Zaratustra supera a tentação e parte para um destino
desconhecido abandonando sua caverna forte e ardente como o sol matinal.
A questão agora é: onde se encaixa o ―grande meio dia‖ nisso tudo? Pois bem,
mesmo sabendo que são inúmeras as ocorrências do termo em Assim Falava Zaratustra,
sendo que a maior parte delas encontra-se em momento cruciais do enredo, vejamos a que
se refere este tema a partir de outra obra, a qual já foi anteriormente citada. No Crepúsculo
dos Ídolos em um texto intitulado Como o “verdadeiro mundo” acabou por se tornar uma fábula
Nietzsche reconstrói a partir do platonismo, o erro da transposição da moral para o
metafísico. A síntese reconstrutiva de Nietzsche termina com a supressão do mundo
verdadeiro e do mundo aparente. É o momento do ―meio dia‖, é o instante da mais curta
sombra. É o fim do mais longo erro. É o INCIPIT ZARATUSTRA (cf. NIETZSCHE,
2000, p.32). Note-se que o maiúsculo é do próprio Nietzsche, o que não deixa de ser
elucidativo.
A evidente associação do personagem ao tema também se repete em várias outras
passagens da própria obra Assim Falava Zaratustra (cf. NIETZSCHE, 2007a, p. 127, 247,
255, 271, 280, 300, 390). Conforme já explicitamos em outro momento, o fragmento
póstumo (18(15) julho-agosto de 1888) intitulado O grande meio dia associa diretamente a
―grande auto-superação da moral‖ à figura de Zaratustra. Esses são algumas das
ocorrências que demonstram a íntima ligação de Zaratustra com o ―grande meio dia‖ bem
como também ao próprio ―meio dia‖. Ao fim e ao cabo, parece-nos que há a possibilidade
de Zaratustra constituir, mediante o ―grande meio dia‖, o fio condutor e o elo entre os
principais temas nietzschianos a partir da proposta reconstrutiva do filósofo.
Mediante o que já esboçamos acima, nosso questionamento gira em torno do Por
que Zaratustra? Qual o papel que tal personagem desempenha no âmbito da filosofia de
Nietzsche? Ao mesmo tempo em que nos questionamos: Por quê ―grande meio dia‖? Que
significado semelhante tema traz em seu bojo, e de que modo ele se articula para que a
tarefa de Zaratustra possa ser levada à cabo? Que relação há entre eles que permite o
filósofo utilizá-los ao longo de várias obras? Ou ainda posto de outra forma: haja visto que
Zaratustra permanece para além da obra de próprio nome, como ele se articula frente à
filosofia nietzschiana, sobretudo em relação ao ―grande meio-dia‖? Mediante tal
questionamento torna-se imprescindível inquirir acerca das nuances que constituem o
personagem ao longo da obra Assim falava Zaratustra bem como nas demais obras
publicadas e fragmentos póstumos. Além disso, é claro, faz-se necessário também
investigar o significado atribuído por Nietzsche ao ―grande meio dia‖. Cabe ressaltar ainda
que, embora nosso foco seja o ―grande meio dia‖, não nos é de todo clara a distinção deste
com o ―meio dia‖. Nossa hipótese é de que os dois conceitos referem-se a situações
distintas, sendo o ―grande meio dia‖ o conceito mais pontual e decisivo, ainda que por
vezes o filósofo deixe entrever certa aproximação quase sinônima entre eles. Por conta
disso e por dever de ofício, resta-nos assim, investigar a relação existente entre ambos os
conceitos e a destes com o personagem Zaratustra.
Frente a estas elucidações abre-se um horizonte de possibilidades interpretativas.
Nosso pressuposto é o de que Zaratustra constitui um marco na filosofia de Nietzsche.
Assumimos que não há como investigar os temas da maturidade nietzschiana sem referir-se
em algum momento ao personagem e a obra que leva o mesmo nome. Assim, a intenção
deste propósito nada mais é do que tornar visível o fio condutor existente no entorno da
filosofia madura de Nietzsche a partir do qual se possa compreender seu experimentalismo.
Nossa hipótese é de que Zaratustra, enquanto mestre solitário encarrega-se de uma tarefa
que é distinta à do próprio filósofo, haja visto que é ele quem se encarrega de ensinar as
principais doutrinas nietzschianas: morte de Deus, além do homem, vontade de potência e
eterno retorno do mesmo. Compreendemos ainda que a tragédia de Zaratustra, o
movimento de toda a obra com suas figuras e contextos, bem como a própria
personalidade de Zaratustra, nada mais são do que evocações não escritas de uma filosofia
que pretende dar vida ―ao tornar-se aquilo que se é‖; São evocações de uma filosofia que
esbanja arte; evocações de uma filosofia que pretende ir além da própria conceituação, uma
filosofia que se pretende originalmente experimental. São essas as provocações e as
evocações com que pretendemos nos ocupar.
Referências Bibliográficas:
MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas. Seleção de textos de Gerard Lebrun.
Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. Pósfácio de Antônio Cândido. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores).
___________. Kristische Studienausgabe. Editada e publicada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Alemanha: 1999 (obra completa).
___________. Crepúsculo dos Ídolos, ou como filosofar com o martelo. Trad. Marco Antonio Casa
Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
___________. Así hablo Zaratustra. Trad. Andrés Sanchéz Pascual. Espanha, Madrid:
Alianza Editorial, 2007a.
___________. A Gaia Ciência. 4ª Ed. Trad. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007b.
___________. Anticristo: Maldição ao Cristianismo: Ditirambos de Dionísio. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007c.
___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras: 2007d.
RESUMO: O presente trabalho tem por intuito apresentar uma perspectiva de uma
possível ética dionisíaca, que pensamos poder ser encontrada na obra de Nietzsche. O
legado do autor para a ética é fundamental, pois rompe com diversos pensadores da
modernidade e abre novos leques para as interpretações dessa área. No autor de Assim falou
Zaratustra, a ética pode ser pensada não regida a partir de valores que permanecem no
campo da idealização, mas sim daqueles que provém da condição fisiológica do indivíduo.
Nietzsche rompe com a metafísica da ética e permite-nos pensar que não há uma norma ou
regra que o homem deve criar para o agir, mas sim, se colocar em uma nova postura
perante a vida, uma postura afirmativa, e que, desse modo, poderá ter como consequências
ações saudáveis.
Palavras-chave: Dionísio, Fisiologia, Afirmação da Vida.
159 Vale lembrar que escreve uma Tentativa de Autocrítica para o Nascimento da Tragédia.
E ainda, no que diz respeito o que Dionísio oferecia, nota-se uma extrema
diferença entre o que entendemos hoje por divino ou divindade:
que hoje nós entendemos por um agir correto, ou então, pelo menos, podemos dizer que
não é exatamente o bom ideal de ética – que prezaria pela justa medida, que ainda crê na
existência dos valores bem e mal. Quem se ocupa da leitura de Nietzsche bem sabe, tais
valores são, para o filósofo, criações, não existem em si, mas foram inventados, por isso, o
único modo de conceber uma ética dionisíaca é pensar para além desses valores.
Porém, vejamos como isso ocorre primeiramente em O Nascimento da Tragédia. No
texto, Nietzsche trata da arte trágica grega, ele entende que o seu desenvolvimento se dá
pela duplicidade apolíneo e dionisíaco. Apolo é considerado o deus grego da arte plástica,
configurador, do sonho e aquele que engendrou o mundo onírico, ao qual permitiu aos
gregos viver superando os horrores e temores do existir (Cf. NIETZSCHE, 2005, p.36).
Além disso, há o ―(...) caracterizar de Apolo com a esplêndida imagem divina do principium
individuationis‖ (Ibidem, p.30, grifo do autor). O principium individuationis é o que permite aos
gregos a caracterização de seus heróis e deuses, é o que difere os indivíduos – pois ao se
tratar de ideias, é o que estabelece ideais entre os homens. Coube a Dionísio romper esse
principium, os ritos dionisíacos repletos de orgias e êxtase como descrito anteriormente,
unirá o ser humano, mas não a união entre os homens a partir de ideais de direitos iguais,
mas ao obrigar o homem a ser o que comumente é, o dionisíaco destrói a ilusão da
individuação perante ao Uno-Primordial:
instintos, as pulsões e paixões. Porém, apenas posteriormente existirá uma nova concepção
de Dionísio que é afetada por todos os elementos do pensamento tardio de Nietzsche,
principalmente as críticas a moral cristã, sem porém, abandonar algumas ideias vistas no
Nascimento da Tragédia. É então que a divindade grega se coloca como a afirmação da vida e
contra os ensinamentos que negaram o corpo até então.
Por isso, nesse determinado ponto surge uma originalidade, por assim dizer, da
ética de Nietzsche em contraposição aos pensadores da modernidade – que diz respeito a
segunda característica que citamos:
dela, é para nós, então, inacessível –, o que caberia ao homem, por este motivo, é criar
valores sob a ótica da vida (Cf. Ibidem, p.36).
É nesse sentido que o autor não estabelece qualquer elemento último para o agir,
não se tratando de medir as ações a partir desse elemento, mas sim de medir as ações a
partir do valor que o indivíduo cria para si – e que traz consigo marcas da condição
fisiológica do indivíduo160. Condena-se, desse modo, qualquer ética normativa, que
estabeleceria um dever ser:
Consideremos ainda, por fim, que ingenuidade é dizer ‗assim deveria ser o
homem!‘. A realidade nos mostra uma fascinante riqueza de tipos, a
opulência de um pródigo jogo e alternância de formas: e algum pobre e
vadio moralista vem e diz: ‗Não! o ser humano deveria ser outro!‘ (...) O
indivíduo é, de cima a baixo, uma parcela de fatum (fado, destino), uma
lei mais, uma necessidade mais para tudo o que vira e será. Dizer-lhe
‗mude!‘ significa exigir que tudo mude, até mesmo o que ficou para trás.
(Ibidem, p.37, grifo do autor)
160 Nesse aspecto, podemos também entender que o além do homem nietzschiano não se trata de um ―fazer
o que queres‖, mas sim de liberdade para criar valores e aceitar as consequências deles. Quem supera a
decadência da moral, seria capaz da criação de valores e, por isso, valores fortes e afirmativos.
161 “Aniquilar as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupizes e as desagradáveis consequências de sua
estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma ajuda de estupidez‖ (NIETZSCHE, 2010, p.33, grio do
autor).
valores que passam pelo crivo da vida. Nas palavras de Zaratustra, não se oferece um
caminho, pois o caminho não existe (Cf. Idem, 2011, p.186).
Referências Bibliográficas:
Seus contos e novelas revelam a forma do poder judicial no seu tempo e, pelos
personagens, o quanto as pessoas não conhecem ou compreendem o funcionamento do
poder, como afirma Braga (2010, p. 136): ―É a partir da ação do poder sobre o indivíduo
que Kafka constrói suas narrativas, daí o papel especial que os acusados ocupam em sua
obra‖.
No intento crítico de Kafka à justiça do seu tento, situada como uma instituição
enfraquecida, desestruturada e enfadada de burocracia, a lei será uma engrenagem a
fundamentar tal realidade usada pelo sistema de modo a controlar de maneira desigual,
seletivamente e violentamente, privilegiando e permitindo o ingresso em seus espaços para
alguns indivíduos, sendo desconhecida pela maioria, mas conseguindo atingir a todos,
sendo penetrados e marcados pela punição. Não há esperança, nada podendo ser
modificado perante o modelo rígido das relações de domínio do Estado sobre o indivíduo,
conforme retrata no romance póstumo O Processo (1925) e na novela Na Colônia Penal
(1914).
Em O Processo, usando e abusando da forma metafórica Kafka alude à justiça um
caráter perverso e que leva à desesperança. Não se alcança a justiça, não se pode chegar a
ela, antes, é ela que o alcança por meio de suas engrenagens, suas infinitas portas como a
polícia, o juiz, a lei, o legislador, o Estado, etc.. A natureza do processo resulta, pois da
articulação entre a invisibilidade de um tribunal e o ocultamento de uma Lei, entretanto
avassaladora. (...) A própria Lei governa a aleatoriedade dos procedimentos. Oculta,
comanda a invisibilidade das câmaras que a aplicam. Sua lógica será inacessível ao olhar da
sociedade. Daí, entretanto, declarar sua inexistência será um salto mortal. A lógica da lei
não é menos lógica porque os que comandam não são publicamente nomeáveis (LIMA,
1993, p. 104).
Perante a relação do individuo com a lei, Kafka alude à simplicidade do homem que
acabará conformando-se e tornando-se alvo fácil daquela, sendo que ―faz parte da natureza
desse sistema judicial condenar não apenas réus inocentes, mas réus ignorantes‖
(BENJAMIM, 1994, p. 140), conforme presume na parábola narrada pelo capelão a Joseph
K., o qual é preso sem motivos conhecidos e será sujeitado a longo e incompreensível
processo por um crime que não lhe fora revelado (KAFKA, 1995, pp. 230-232).
A parábola propõe interpretações que sugerem a dificuldade em se compreender e
o quanto a produção do saber jurídico e a interpretação de seus preceitos são reservadas a
poucos e, no caso, não sendo o homem do campo. O homem do campo não tem acesso á
lei por conta da falta de confiança em si mesmo, a sua covardia, o ―medo, a falsa
obediência à autoridade, a passividade submissa‖ (LOWY, 1989, pp. 71-72).
Sendo perceptível o poder do porteiro perante a insignificância do homem do
campo, Kafka parece propositalmente usar tal expressão pois, segundo Politizer (apud
LIMA, 1993, p. 110), homem do campo em hebraico (amhorez) significa: um ignorante na
doutrina, pobre e inculto, que só compreende o que pode apreender pelos sentidos. Não é
possível ao homem do campo compreender ou interpretar o texto da lei, logo muito menos
o conhecimento das regras que vão reger seu cotidiano e, ainda, muito fácil de serem
produzidas por quem queira e/ou saiba facilmente manipulá-la ou colocar-se fora de sua
égide.
Na novela Na Colônia Penal, o conto metafórico traz uma reflexão sobre o poder e a
crença europeia de superioridade perante outros continentes, sobretudo devido o uso de
formas jurídicas e penais modernas consideradas mais suaves e justas. Todavia, a novela
alude a uma relação geopolítica entre a Europa e a colônia penal numa ilha nos trópicos,
num local afastado do grande centro, onde ocorre o uso de uma maquina e suas
engrenagens como instrumento de punição. A distancia tropical assegurava seu uso, já que
―(...) a maquina, de que o oficial era o oficiante, pertencia a um tempo que, do ponto de
vista vigente na Europa, seria um tempo de práticas jurídicas condenáveis‖. (LIMA, 1993,
p.106).
Segundo a novela, neste local quente e isolado uma maquina com um rastelo será o
instrumento cujas agulhas marcam a sentença no corpo do condenado a morrer,
reafirmando assim o poder da lei e o desconhecimento da causa ou do motivo: ―- Ele não
conhece a própria sentença? - Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentar na própria
carne‖ (KAFKA, 1995, p. 40).
Sendo a culpa ―sempre indubitável‖ (KAFKA, 1995, p. 40), conforme a
normatização dada pelo anterior comandante, a punição será exemplar, não havendo
julgamento, e será o oficial que decidirá quem é culpado. Mas essa pratica se torna
comprometida: primeiramente não mais aceita pelos habitantes da colônia que não mais
acompanhavam tal pratica e, com a chegada de um estrangeiro, vindo para avaliar o uso
deste instrumento em comparação às novas formas de justiça aplicadas na metrópole
(consideradas mais justas, brandas e humanas) acabará considerando a forma aplicada na
colônia como injusta e cruel.
A alusão de Kafka na sua novela a um rastelo, sua aplicação no ato de punição, o
detalhamento, assim como sua inscrição no corpo, na opinião de Braga (2010, p. 141),
lembra a punição exemplar dos suplícios (...). A violência impingida pelos suplícios, ainda
que bruta e descomunal, não carecia de racionalidade. Ao contrário, é milimetricamente
calculada, medida quantitativa e qualitativamente, proporcional ao mal cometido e
organizada de forma ritualística, com o fim de assegurar a perpetuação do poder soberano
sobre o indivíduo.
Similarmente, Foucault, no início de Vigiar e Punir, descreve como se dava a
punição exemplar por meio do ato de suplício, cabendo ao culpado levar à luz do dia sua
condenação e a verdade sobre o crime que cometeu. Seu corpo ―mostrado, passeado,
exposto, supliciado, deve ser como o suporte público de um processo que ficara, até então,
na sombra; nele, sobre ele, o ato de justiça deve-se tornar legível para todos (2002, p. 38).
O monarca legitimava tal pratica sustentando seu poder soberano, sem um
processo legal ou garantias ou direitos individuais para o juízo da culpa (FOUCALT, 2002,
pp.115-118 apud BRAGA, 2010, p. 141). A descrição dada por Foucalt faz alusão a um
período anterior ao da existência das prisões, prevalecendo desde a Idade Média até o séc.
XVI, marcada pela pratica dos suplícios, posteriormente com a aplicação das disciplinas até
que com as revoluções do século XVII se desenvolvesse mudanças profundas nas praticas
de justiça.
As práticas judiciárias, porém não são menos problemáticas, como critica
metaforicamente Kafka, considerando-as não como uma forma racional ou pura de
punição ou não violenta. Estas, alocadas num sistema de justiça burocrático e
estagmentado, sem garantias totais de acesso ao processo ou de responder por seus atos,
não são não identificáveis facilmente. Portanto, para Kafka, não há esperanças perante as
engenharias do poder, por meio de uma lei externa às condições do indivíduo e
normatizada absolutamente pela justiça, entendendo a lei como mecanismo que constrói
códigos sobre os corpos, como se buscou caracterizar nas obras supracitadas.
Somente Gilles Deleuze ou em parceria com Felix Guattari, em seus principais
escritos, fazem menção aos contos de Kafka problematizando a temática da lei,
considerada sob uma perspectiva imanente, como um regime de signos criados pela
convenção moral, por isso sem considerá-la como uma forma pura, vazia, transcendente,
sempre relacionada ao âmbito da literatura, a qual considerarão como maquina de
expressão para uma filosofia de ―agressiva recusa da lei e do juízo‖ (CORRÊA, 2011, p.
472), sob influxos de uma sociedade de controle.
A noção de lei em Deleuze se constrói a partir de sua análise a obras de Proust,
Sacher-Masoch, Kafka, Melville, o teatro de Artaud e da filosofia de Platão, Kant e
Nietzsche, sendo que se encontra mais detalhadamente análises sobre a lei nos textos que
cuidaram das literaturas masoquista, como é o caso de Sacher-Masoch: o frio e o Cruel e a
kafkiana, conforme a obra escrita conjuntamente com Guattari, Kafka: para uma literatura
menor, além de o Anti-Édipo. Em ambos os textos transparece a analise feita à lei na cultura
ocidental do período clássico até o período moderno, sob influxo do pensamento
platônico, cristão, e kantiano.
Em Sacher-Masoch: o frio e o Cruel, no capítulo A lei, o humor, a ironia, Deleuze (2009,
p. 81-90) considera como compreende a lei no ocidente desde Platão até o período
moderno, com Immanuel Kant. O filósofo aponta a existência de uma imagem clássica da
lei, com bases platônicas, esta fundamentada sob a ideia do Bem superior; esta permaneceu
e impôs-se ao mundo cristão igualmente.
De acordo com a imagem clássica, a partir do princípio do Bem, a lei é secundaria,
posterior e dependente do que encarna, não se sustentando por si só, não passando de
―(…) representante do Bem‖ (DELEUZE, 2009, p.81) no mundo. Conforme isto,
conhecendo o Bem, não se precisaria da lei entre os homens. Se ocorrer, fundamenta-se
numa necessidade, pela força, o que dependeria de um principio ulterior ainda mais.
No período moderno, com Kant, ocorre a derrocada da imagem clássica da lei.
Kant opera a inversão do paradigma da legalidade. Segundo Deleuze, Kant, na obra Crítica
da Razão Prática, declara que a lei ―não mais depende do Bem, mas, ao contrário, se
procedêssemos a uma visão entremeada na história da filosofia, o Bem é que passa a
depender da lei‖. (DELEUZE, 2009, p. 83 apud CORRÊA, 2011, p. 474).
Para além da compreensão platônica, Kant faz da lei um fundamento em si mesmo,
ou, que a lei, em sua pura forma, não pode ser definida, que não se pode saber o que ela é
de fato. Nisso, similarmente ao exposto em Na Colônia Penal, por Kafka, no plano da
imanência, a lei acontece, age, mas sem ser conhecida ou alcançada. O que se sabe é que, a
exemplo de Édipo, só se é culpado por transgredir os limites do que não se pode conhecer:
―a culpabilidade e o castigo sequer nos fazem saber o que é a lei, deixando-a na
indeterminação, que corresponde à extrema precisão do castigo‖ (DELEUZE, 2009, p. 84).
Em Kafka: para uma literatura menor, Deleuze e Guattari abordam a temática da lei
sob o enfoque kafkaniano compreendendo a lei pós-kantiana como pura forma sem
conteúdo (DELEUZE; GUATTARI, 2003a, p. 80). Daí sendo necessária nas condições
em que se anuncia, e, conforme o conto Na Colônia Penal, só se anuncia no ato do castigo
em que o mecanismo da maquina depende da lei para que suas engrenagens comecem a
afirma e se mantém com potencia e não como mistificado, mesmificado e sem sentido ou
obsoleto.
Neste sentido, o real efeito da literatura se desloca da recepção individual para um
nível coletivo em que os agenciamentos maquínicos são desmontados pela máquina
expressiva da escrita: ―Kafka se propõe a extrair das representações sociais os
agenciamentos de enunciação, e os agenciamentos maquínicos, e a desmontar esses
agenciamentos‖. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 70).
Portanto, em meio aos agenciamentos filosófico-literários Deleuze e Guattari
apontam um estatuto ético cujas características principais justificam-se num movimento de
resistência e reinvenção. É preciso a decodificação das linhas que nos atravessam e nos
codificam a fim de sermos capazes de resistir a elas, como é o caso da lei; e na medida em
que se resiste aos mais variados modos de produção de subjetividade, de tipos codificados,
essa resistência já é uma criação e, neste caso, a ética é também resistência que reinventa
novos modos de existência e novas formas de vida.
Referências Bibliográficas:
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RESUMO: A primeira edição da obra de Gilles Deleuze, Proust e os Signos, orienta nossa
escritura. Nela apresentaremos as considerações deleuzianas acerca dos sentidos que o
conceito de signo ganha em sua filosofia, bem como a tipologia dos signos que ele
estabelece. Deste conceito e tipologia decorre uma concepção de aprendizagem, pois, para
Deleuze, o aprender diz respeito essencialmente aos signos, a sua decifração e
interpretação, uma vez que o aprender implica em, de início, considerar uma matéria, um
objeto, um ser como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Este estudo
está inscrito no âmbito do Projeto interinstitucional Escrileituras: um modo de ler-escrever em
meio à vida, integrante do Observatório da Educação CAPES/INEP.
Palavras-chaves: signos, aprendizado, filosofia.
A primeira edição da obra de Gilles Deleuze, Proust e os Signos (2006), orienta nossa
escritura, assim como as experiências e práticas de escrita e leitura que realizamos com
estudantes da Educação Básica no âmbito de um dos núcleos do
Projeto interinstitucional Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, integrante do
Observatório da Educação CAPES/INEP. Nesta comunicação, apresentaremos as
considerações deleuzianas acerca dos sentidos que o conceito de signo ganha em sua
filosofia, bem como a tipologia dos signos que ele estabelece: os signos mundanos, os
materiais, os amorosos e os artísticos.
Deste conceito e tipologia decorre uma concepção de aprendizagem, pois, para Deleuze, o
aprender diz respeito essencialmente aos signos, a sua decifração e interpretação, uma vez que o
aprender implica em, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser como se emitissem
signos a serem decifrados, interpretados. Consideramos que tal concepção de aprendizagem abre a
possibilidade para a produção de modos de ensinar a partir da emissão de signos, daí,
compreendermos que um professor tem como tarefa ―ensignar‖, a fim de promover o aprendizado
da leitura prazerosa que impele ao desejo de escrever. A tipologia dos signos e a concepção de
aprendizagem desenvolvidas por Deleuze têm funcionado para nós, no Projeto Escrileituras, como
orientação teórica para a produção de oficinas a serem realizadas com estudantes de Ensino Médio,
na disciplina de filosofia, a fim de desenvolver a leitura e a escrita.
O Projeto Interinstitucional Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, integrante do
Observatório da Educação CAPES/INEP busca desenvolver experiências e práticas de escrita e
leitura com estudantes da Educação Básica brasileira de um modo indissociado:
Nesta ocasião o biscoito deixa de ser apenas um biscoito, deixa de ser apenas um objeto,
uma coisa com valor de uso e passa a ser um signo, na medida em que ele evoca, remete a
outras coisas na pessoa afetada. Em poucas palavras, um signo é uma coisa que evoca outra
coisa para alguém, pode ser uma coisa concreta, um objeto, uma expressão do rosto, mas
pode ser também algo abstrato, uma ideia, por exemplo, que evoca algo para alguém. Nesta
perspectiva, quando uma coisa remete outra a alguém, este entra em um movimento
interpretativo que produzirá a aprendizagem. Para Deleuze, passamos a vida interpretando
os signos que nos interpelam e evocam outras coisas para nós. Dessa interpretação, decorre
a aprendizagem de qualquer pessoa.
Para desenvolver e problematizar sua perspectiva de aprendizagem, Deleuze
elabora uma tipologia dos signos; cada tipo, segundo o filósofo, constitui um mundo. O
primeiro deles é o da mundanidade, nele o signo surge como o substituto de uma ação ou
de um pensamento. O signo mundano não remete a nenhuma outra coisa, significação
transcendente ou conteúdo ideal, ele usurpou o suposto valor de seu sentido. Assim, a
mundanidade, do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do
pensamento, é estúpida. Apesar do seu aspecto estereotipado e da sua vacuidade não se
pode concluir, segundo o autor, que esses sejam signos desprezíveis. Pelo contrário, se o
aprendiz não passasse por eles, o aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível,
sendo então esse ―jogo‖ necessário. Dele qualquer um de nós é jogador e, neste jogo, nos
destacaremos se soubermos interpretar tais signos, para tanto é preciso estar todo o tempo
em tensão a fim de conseguirmos fazermo-nos presentes na mundaneidade, a fim de nos
tornarmos capazes de interpretar as expressões emitidas pelas faces e gestos das pessoas
que nos rodeiam.
Já o segundo círculo que constitui outro mundo, é o do amor. Para Deleuze,
apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se
sensível e apreender esses signos. Nesse sentido, ―o pluralismo do amor não diz respeito
apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos
mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos
desconhecidos que permanecem envolvidos no amado‖ (DELEUZE, 2006, p.7).
Acreditamos que é possível usar este tipo de signo também na escola, na medida em que
ele contém uma variedade de mundos desconhecidos a serem desvendados, no entanto, no
processo de aprendizado na escola este amor não, necessariamente, está relacionado com
alguém, mas com a própria matéria a ser aprendida, a qual precisa tocar no aprendiz,
primeiro, a sensibilidade, para atingir as demais faculdades. Não há, contudo, um modo
único, sequer explícito, dado previamente, que toque o aprendiz, nas palavras de Deleuze,
―nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender, que amores tornam alguém bom
em latim‖, contudo, sabemos, por meio de nossos aprendizados, bem como por Proust e
Deleuze, que para aprender é preciso encontrar-se com signos que nos tirem a paz, tal
quando alguém apaixona-se, quando há o encontro com ―a coisa amada‖.
O terceiro mundo, segundo Deleuze, é o dos signos sensíveis, das impressões ou
das qualidades sensíveis. Para ele, uma qualidade sensível é aquela que proporciona uma
estranha alegria e ao mesmo tempo transmite uma espécie de necessidade imprescindível.
Uma vez experimentada, a qualidade não aparece mais como uma propriedade do objeto
que a possui no momento, mas como o signo de um objeto completamente diferente, que
devemos tentar decifrar através de um esforço sempre sujeito ao fracasso. Aqui enquadra-
se a experiência do protagonista de Em busca do tempo perdido com a xícara de chá e a
madeleine. Da experiência sensível degustativa, do encontro do paladar com o chá e o
biscoito, emergiram a cidade onde outrora o herói viveu, suas gentes e lugares, mas nessas
lembranças ele não encontrou a razão para a alegria que sentira, algo faltava naqueles signos
sensíveis. Por essa razão Deleuze compreende que mesmo bem interpretadas, as qualidades
sensíveis ou as impressões não são em si mesmas signos suficientes. Ainda assim, são
signos verídicos, que provocam uma sensação de alegria incomum e, para o autor, são
signos plenos, afirmativos e alegres.
Como se pode perceber, os três tipos de signos, os mundanos, os amorosos e os
sensíveis são materiais, por sua materialidade eles não são suficientes para expressar o que
se passa no espírito, ainda assim, são imprescindíveis para despertar em nós uma força
adormecida, o pensamento. Há, para Deleuze e Proust, apenas um tipo de signo que se
caracteriza como espiritual. Este tipo constitui o quarto mundo que é o artístico; os signos
artísticos são espirituais porque, para Deleuze, encontram seus sentidos numa essência
ideal. Os signos da arte mostram que a busca não tem que ser feita no contato com a
matéria, nem com as reminiscências que tais matérias remetem, mas no contato direto com
o si mesmo, nas palavras de Proust: ―O único modo de apreciá-las melhor, seria tentar
conhecê-las mais completamente lá onde se achavam em mim mesmo, torná-las claras até
suas profundezas‖ (PROUST, 2006, p. 128). Ainda que os signos artísticos brotem de uma
matéria, tal como de um livro, de uma escultura, de um instrumento musical, ela, a matéria,
não passa de uma imagem espacial do signo artístico. Trata-se, pois, de uma matéria
diferenciada, por refratar um mundo original: ela é espiritual. Os signos artísticos não
precisam ser explicados, como os demais, pois ―signo e sentido formam uma unidade
totalmente imaterial, a essência ou a Ideia‖ (Cf. HEUSER, 2010, p. 125).
Sem ignorarmos a complexidade desta teoria dos signos criada por Deleuze, a qual
é imprescindível para a constituição do que, para ele, significa pensar (Cf. HEUSER, 2010),
interessa para nós, a fim de criarmos oficinas de escrileituras capazes de mobilizarem o
pensamento e produzirem experiências de leitura e escrita, a concepção de aprendizagem
que está implicada nesta teoria dos signos deleuziano. O diferencial no pensamento
deleuziano, inspirado em Proust, se dá principalmente no fato de que para ele a busca da
verdade não ocorre naturalmente, ou seja, ninguém busca a verdade por espontaneidade,
ou por boa vontade, mas porque algo o força a buscá-la; este algo é, para Deleuze, sempre
um signo que violenta o pensamento e o põe a criar, em suas palavras: ―Há sempre a
violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz‖ (2006, p.23). Não se
sabe, contudo, quais os signos que nos roubarão a paz, isto porque não se sabe de antemão,
como alguém aprende. Sabe-se, porém, que são necessários elementos exteriores que
provoquem o aprendizado, nas palavras de Deleuze:
Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que
aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela
assimilação de conteúdos objetivos. (...) Nunca se aprende fazendo como
alguém, mas com alguém que não tem relação de semelhança com o que
se aprende. (DELEUZE, 2006, p. 21)
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escrever em meio à vida p.1-48. In. Caderno de Notas 6 (Coleção Escrileituras), 2013. (No
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PROUST, M. Em Busca do Tempo Perdido. (2 nd ed). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
Remi Schorn
UNIOESTE
remirs@hotmail.com
RESUMO: A crítica objetiva somente pode incidir sobre as ideias humanas e, assim, ela é
determinante, em Kant, para mostrar a necessidade das correções na conduta teórica.
Enquanto Hume propõs que a relação causal não pode ser conhecida, sendo, entretanto,
injustificável e, ao mesmo tempo, incontornável na tarefa humana do conhecimento, Kant
e Popper162 a entenderam como injustificável e contornável, para tanto, Kant inflacionou o
a priori e distintamente Popper o deflacionou, concebendo o falibilismo como instância
central de seu racionalismo crítico, segundo o qual, nosso intelecto seguidamente falha ao
tentar impor sua rede de leis à natureza. Assim, tentaram, cada um a seu modo, garantir a
racionalidade do empreendimento científico.
Palavras-chave: Objetividade, Crítica, Falibilismo, Racionalidade
(POPPER, 1963, p. 94). Assim, o papel da filosofia consiste na crítica da razão, sua tarefa é
evitar o doutrinamento acrítico presente nas escolas teóricas e, com isso resgatar o interesse
dos homens, que é conhecer a natureza. A crítica, a filosofia e a ciência coemergem em
uma relação de profunda interdependência (SCHORN, 2012, P. 120). Trata-se de não
pretender progredir com conhecimento puro sem questionar como se estabelecem os seus
conceitos. O dogmatismo consiste na não consciência da condição limitada da razão e
assim incorre em filodoxia163.
A unilateralidade tanto do empirismo como do racionalismo recoloca a Kant o
problema: a análise a priori dos conceitos não nos pode fazer conhecer a realidade; o
conhecimento é síntese ou conexão dos dados que somente a experiência pode fornecer,
mas a síntese é impossível e não pode ter validade objetiva sem elementos racionais. Surge
um novo problema: aprofundar o conceito de experiência para descobrir as condições
independentes dela ou a priori, que tornam possível a própria experiência. A questão não é
mais de saber se existem em nós conhecimentos inatos, a priori, mas se na experiência
existem elementos puros a priori, condições dela, capazes de conferir objetividade ao
conhecimento humano. Portanto, a objetividade do saber é dada pela razão, mas, por outro
lado, como é a sensibilidade que fornece os dados, não há saber sem conteúdo a posteriori,
os quais aplicam aqueles elementos a priori, que o constituem em experiência. Portanto, a
atividade da razão é sintética a priori, pois, os elementos da conexão são próprios da razão e
a ela imanentes. Ao mesmo tempo,
163Atitude de rejeitar o método da crítica e não pretender estabelecer princípios, definir conceitos e buscar
rigor demonstrativo.
conteúdo a posteriori. Põe-se, então, o problema de saber se é possível um juízo que resulte
de um elemento a priori e de um conteúdo a posteriori. Tal juízo é aquele que Kant chama de
juízo sintético a priori. Portanto, para que o conhecimento, seja universal e necessário,
racionalista e, ao mesmo tempo empirista, é preciso indagar se ele é possível como síntese a
priori.
Kant rejeita as ideias inatas do racionalismo, pois sem a experiência não é possível
qualquer conhecimento; por outro lado, no conhecimento nem tudo deriva da experiência,
pois, a própria experiência só é possível graças às relações necessárias e universais, que são
estabelecidas entre fenômenos, na atividade a priori do pensamento. Mas estas relações não
constituem a ordem natural já existente independentemente de nós e que a ciência teria
apena que descobrir. É precisamente aqui que se revela a novidade, de grande relevância,
da filosofia do conhecimento kantiana.
Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha que se regular
pelos objetos; porém, todas as tentativas de mediante conceitos
establecer algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaría nosso
conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver
uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo
que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que
concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a
priori dos objetos que debe establecer algo sobre os mesmos antes de
nos serem dados (KANT 1980, p. 12).
O problema da correspondência entre a ordem das ideias e a ordem das coisas não
existe mais, pois não há uma ordem a descobrir nas coisas e sim há uma ordem que o
pensamento dá para as coisas. Os dois pontos de vista unilaterais da dedução necessária,
mas abstrata, racionalista, e da experiência concreta, mas particular, empirista, são
substituídos por Kant pelo novo conceito de experiência como síntese de um conteúdo a
posteriori de uma forma a priori. O conhecimento é síntese de forma e conteúdo. Assim, se o
a priori necessita de um conteúdo sensível, a metafísica não pode ser entendida como
ciência, já que os objetos da metafísica são supra-sensíveis. O criticismo tem por objeto a
experiência, enquanto o juízo sintético a priori é possível pelas formas da razão e como
crítica da metafísica, enquanto o conceito de síntese põe esta última como limite da própria
razão, dado que os seus objetos são puros, isto é, não misturados a nada que derive da
experiência. As instâncias do criticismo são, portanto, formadas como novos conceitos de
experiência e de síntese: experiência não é acrescentar um sensível a outro sensível, mas é
construir o objeto racional, porque ela é possível para as relações necessárias e universais
estabelecidas entre os sensíveis, os fenômenos, pela atividade a priori do pensamento e,
síntese não significa que a uma forma se acrescente um conteúdo, mas importa a atividade
do sujeito, construtor da experiência. Para Kant, demonstrar que o sujeito humano é capaz
de conhecimentos sintéticos a priori significa demonstrar que são possíveis a matemática e a
física como ciências. Por outro lado, existe uma metafísica que é natural como a existência
humana, espontânea, profunda e abarca o suprassensível. Sejam quais forem os malogros
aos quais essa metafísica possa ir de encontro, mostrar-se-á indestrutível.
O conhecimento que se refere a objetos e que todo pensamento tem em vista como meio é
o que Kant chama intuição. A capacidade de receber representações de modo a serem modificadas
pelos objetos ele chama de sensibilidade. Portanto, os objetos não são dados por meio da
sensibilidade e ela somente nos fornece intuições; mas estas são pensadas pelo intelecto que dele
Karl Popper, herdeiro declarado de Kant, pretendeu corrigir sua filosofia, acabou,
em certa medida, por repeti-la. Ele substituiu a crença na força da razão pela crença na
falibilidade da razão. Alinhando-se a Kant pretendeu transmutar sua filosofia do
conhecimento em filosofia da ciência e constituir um exemplo da importância das ideias,
particularmente, da força de uma filosofia que, enquanto crítica, nega-se à submissão aos
sistemas completos e demonstra a incongruência de propostas que se querem absolutas.
Popper aprendeu com Gödel (1931) que um sistema não pode abarcar a totalidade e ser
consistente: ou há incompletude ou há inconsistência, entretanto, Gödel aprendera com
Kant que a racionalidade apresenta os próprios limites, que ela age criticamente sobre si
mesma. Popper, distintamente, entendeu que mesmo se fosse possível acessar a verdade, o
homem não a reconheceria enquanto tal, assim, todas as teorias científicas não ultrapassam
o status de conjecturas. A questão que nos move agora é buscar saber se o racionalismo
crítico herdade por Popper de Kant, conseguiu contornar as incongruências da
racionalidade.
Assim como em Kant, também em Popper a filosofia se constitui como crítica
racional. Sua auto constituição ocorre pela investigação que a razão faz de seus próprios
limites e que encontra na não-contradição e na incompletude a força vital da crítica, capaz
de instabilizar as mais completas, complexas e criativas respostas que ao longo do tempo a
humanidade produziu. Não obstante, o racionalismo crítico sempre se dedicou a
constituição de uma imagem universal unificada da existência, uma cosmologia, aos moldes
dos antigos pré-socráticos, principalmente Parmênides que pretendeu circunscrever
metafisicamente o pensável de forma não contraditória.
Considerar a crítica racional como sinônimo de filosofia foi o passo decisivo dado
por Popper para criar as condições à sua proposta filosófica própria e buscar fazer uma
segunda revolução copernicana, aos moldes daquela proposta por Kant (1980, p. 12).
Enquanto Kant propôs que nossas ideias não são orientadas pelo mundo, antes, este
orientado por elas, Popper pretendeu aprofundar a conquista ao propor que se o homem
quiser avançar em direção à verdade não deve tentar demonstrar que o mundo se comporta
conforme suas ideias, antes, deve tentar demonstrar que suas ideias são falsificáveis e que
do mundo se pode extrair exemplos da incongruência delas e corrigi-las incansavelmente.
O critério de cientificidade proposto por Popper somente inclui no horizonte científico -
que é o horizonte racional e, por isso, o da filosofia - aquele conjunto de proposições que
são falsificáveis, abertas à interpelação crítica e que correm o risco de denúncia por
falsidade. O critério de demarcação entre ciência e os demais saberes explicita a introdução
da crítica como constitutiva do conhecer e produtora das condições de distinção entre
sistemas de ideias não falsificáveis e aqueles falsificáveis; propõe sistemas teóricos abertos,
que reconhecem a impossibilidade de completude sem contradição e, assim, não desejam
mais do que propor conjecturas científicas coerentes sobre o mundo. Kant, contudo,
jamais aceitou que a razão impusesse leis definitivas e sempre bem sucedidas à natureza,
apesar de sua devoção à Newton. Com ele, compreendeu a origem metafísica das ideias
matemáticas e inferiu o mesmo acerca daquelas sobre o mundo.
Com o estabelecimento do critério de demarcação científica, Popper constituiu a
solução ao problema da indução, considerado uma particularidade do problema da
demarcação e, por isso, resolvido com base na solução daquele. Este critério constituiu-se
em teoria da racionalidade, da qual decorre um conjunto de padrões para teorias científicas.
Diferentemente de um conjunto de regras metodológicas mecânicas que tornem possível
alcançar respostas a problemas, a demarcação é adequada para avaliar, na condição de
hipóteses, as respostas fornecidas previamente. Enquanto a psicologia empírica tem a tarefa
de tentar responder como concebemos nossas ideias, o domínio da lógica da investigação
orienta, normativamente, para apreciação das soluções tentadas. O que Popper fez foi
elaborar uma sugestão com intuito de estabelecer convenções quanto ao que deva contar
como referência para decidirmos tomar uma teoria como científica: quando uma
experiência crucial é concebida contra ela. Igualmente quanto ao que deve contar como
referência para rejeição de uma teoria: quando ela é reprovada em uma experiência crucial.
Segundo Lakatos ―a lógica da descoberta de Popper atribui, pela primeira vez no contexto
de um programa de investigação epistemológica importante, um novo papel à experiência
em ciência: as teorias científicas não se baseiam, não são estabelecidas ou probabilizadas
por fatos, mas antes eliminadas por estes‖ (1974, p. 242).
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ZUBIRI E HEIDEGGER
Tampouco é necessário dizer que todos estes problemas são imensamente importantes de
um ponto de vista de questionamento filosófico.
Porém, ao pensar a relação dos contemporâneos com o passado, emerge o outro
lado da questão, nem sempre muito mencionado. Pois também pertence ao século XX
certa distanciação de temas do presente. Isto é um problema. Não procuro aqui dar
motivos, mas apenas constatar, com certo assombro, que temas que são absolutamente
surpreendentes para a ciência atual – como os paradoxos da física quântica, o fato de uma
partícula se comportar como onda e matéria a uma só vez, a constitutiva identidade entre
matéria e energia, entre outras – muito pouco figuram nas grandes discussões filosóficas do
século passado e atual. Não teriam estas constatações grande impacto sobre a visão de
mundo de nossa época? Os físicos que as descobriram sequer podiam acreditar no que
viam. Planck, Einstein, Schröedinger e Heisenberg chegam varias vezes a declararem-se
atônitos e tender a desacreditar de suas próprias teorias. Algo tão chocante para eles, mas
que não chegou a abalar parâmetros fundamentais do pensamento filosófico, como se
poderia supor. Que passava na filosofia de então? De desconhecimento não se tratava, pois
Heidegger estava em contato com os físicos de sua geração, como podemos constatar
afirmações de seus próprios textos. Tampouco Husserl, ou os descendentes do círculo de
Viena estavam alheios ao que acontecia em seu tempo. Também poderíamos pensar aqui
nas motivações ideológicas de cada uma das escolas de pensamento do início do século
XX, mas isto seria uma discussão infinita e não creio que atingiria nosso alvo.
Mas há um ponto incontroverso que pode nos servir como guia nesta tentativa de
entendimento, e que pertence unicamente ao conteúdo das filosofias em questão. Isto é: o
fato de seu conteúdo ser, sobretudo, a própria filosofia. Os filósofos discutem sobre sua
própria História. Ou melhor, discutem exclusivamente sobre sua própria História. Com
isso ignoram fatos do presente. Levando isto a certo radicalismo, poderíamos dizer que eles
deixam de ser contemporâneos.
Proponho por isto uma breve reflexão acerca do quanto a inspiração heideggeriana
pode ser a razão de tal isolamento. Analiso em alguns parágrafos a possibilidade de que
certa visão do que seja a filosofia – visão que tem origem em Heidegger – nos incita a
ignorar certos aspectos da contemporaneidade.
Comecemos pelo seguinte: todo o pensamento contemporâneo insiste – e
Heidegger mais que ninguém – na realidade fática da vida. Não somos nada de pré-
determinado, a essência e o sujeito racional são construções históricas. Mas no que tange à
filosofia, Heidegger se deixou cair em tentação. Pois a História da filosofia é a História da
ausculta dos pensadores à inspiração do Ser. Dá-se como uma destinação histórica, uma
destinação cuja arché está nos gregos. Tudo o que fizemos desde os gregos foi decair de um
pensamento ontológico atento ao real em sua manifestação e velamento e impor nossas
categorias racionais ao acontecer da realidade. Nada mais correto, por um lado, pois uma
cultura baseada em valores metafísicos e dogmáticos não pode ser outra coisa senão uma
cultura fadada ao declínio. Por outro lado, a solução proposta por Heidegger conta com
certo idealismo e certo abandono, que não solucionam a questão. Isto é, Heidegger tem a
convicção de que se conhece uma origem própria e comum a todos os caminhos da
filosofia, e a certeza de estão todos esgotados. Resta apenas uma via totalmente diferente,
poética - e um pouco mística – de deixar-se tomar pela escuta do Ser que a todo o
momento se dá.
Por essa convicção do esgotamento absoluto, Heidegger não acreditou que a
ciência atual pudesse realmente conter germes de revolução. Pois ela derivava do mesmo. É
o que defende no texto A questão da Técnica. Neste texto, Heidegger enfatiza a relação do
homem com a ciência e a técnica não como uma escolha individual, mas como uma figura
da História, que é para ele, acontecimento do Ser. A noção de História em Heidegger é um
ponto imprescindível desta discussão, uma vez que a ciência, como continuidade de uma
História do Ser que nasceu com os gregos, não poderia configurar a fonte de um
rompimento efetivo com o trajeto da metafísica. Sua conclusão é a de que o modo de
pensar da ciência já está dominado por uma determinação instrumentalizadora que não
alcança o que vige mais profundamente na essência da técnica, que é a poiesis.
A discussão de Heidegger nos centra no problema do que seja a filosofia. Se a
filosofia não pode deixar-se reduzir à determinação instrumentalizadora da técnica, muito
menos poderia a ciência ser um caminho para a superação de todo o pensamento
metafísico conceitual.
Diante disto, temos que perguntar a Heidegger o que fazer com as conclusões
espantosas da física quântica acerca da realidade da natureza. Alguns pontos são discutidos
por ele, como quando fala do uso da probabilidade na mecânica quântica. Fica bastante
claro que não ignora as revoluções da física do século XX, pois no próprio texto citado,
nomeia Heisenberg e fala de seu princípio de incerteza. Mas argumenta que mesmo que a
física se torne totalmente probabilística e incerta, ela nunca poderá renunciar à necessidade
de a natureza fornecer dados, que se possa calcular, e de continuar sendo um sistema
disponível de informações, ainda que a concepção de causalidade esteja sofrendo
modificações efetivas. Heidegger não vai adiante nesta discussão. Apenas deixa o acima
afirmado como ponto de partida para afirmar que a aparência de que a técnica moderna
nada mais é do que a aplicação das ciências modernas da natureza é enganosa. O
argumento serve para defender que homem já realiza todas as suas ações imerso no desafio
e provocação que lhe causa a possibilidade de dispor das coisas através do domínio técnico.
É dessa forma que a essência da técnica moderna põe o homem num destino, aquele que
sempre conduz o Real à disponibilidade e que nos caracteriza desde o estabelecimento do
mundo grego.
Será isso correto? Voltemos ao sentido geral do pensamento de Heidegger, isto é,
de que a filosofia é grega, fala grego e pertence ao modo de agir e ver o mundo que tinham
os gregos. Será que, de fato, seu pressuposto está completo? A forma da pergunta ―o que é
tudo o que é?‖, dando ênfase ao ―Ser‖ como questão, talvez não seja a única forma em que
o perguntar filosófico seja relevante, ou quiçá haja ainda outra mais fundamental, mais
universal. A saber, simplesmente: ―o que é a realidade‖? É o que defende Zubiri. O ponto
chave que nos aporta aqui é a ideia de que realidade e Ser não são o mesmo. Ser é a
realidade em sua dinâmica, dando de si, sendo. Mas é a realidade – e esta é estritamente
física – que está em questão, que importa antes de tudo. Por esse parâmetro, é Heidegger
quem está estreitando o domínio do que pode a filosofia discutir. Zubiri não acredita no
esgotamento da discussão entre a filosofia e a ciência porque não perde de vista que o tema
da filosofia, seja de que época for, continua sendo a perplexidade do homem a respeito da
realidade. Sem nunca ter deixado de estudar, ensinar e escrever sobre a História da filosofia
do ponto de vista de um verdadeiro filósofo, Zubiri entende que a ontologia poderia ser
entendida e reformulada à luz de conhecimentos atuais, ao contrário de se tornar um tema
obsoleto ou apenas o objeto de uma análise da cultura filosófica dos últimos vinte e cinco
séculos.
Neste sentido, creio que a obra de Zubiri da conta de problemas relevantes da
filosofia presente, de maneira inovadora e principalmente, de uma maneira que está de
acordo com o estágio do conhecimento científico de sua época (que não está tão distante
da nossa). Heidegger, com seu afastamento da ciência, deixou de perceber temas realmente
relevantes para a atualidade, e Zubiri, ao escolher o caminho oposto ao de Heidegger, nos
deixa uma filosofia que ainda está aberta ao futuro, e que pode ser um fio condutor
interessante para ler os problemas filosóficos atuais.
O pensamento de Zubiri é uma construção longa e muito ampla, meditada ao longo
de uma vida que foi extensa, sensível e exigente. Neste texto nos restringimos a analisar o
tema da metafísica, que já é suficientemente amplo. Mas e justamente pelo fato de ter
construído uma metafísica em pleno século XX que Zubiri se torna atual e interessante.
Em primeiro lugar, é importante demonstrar que Zubiri propõe um
questionamento radical a respeito do exagero do império da lógica sobre o pensamento,
mas que o problema fundamental não é o de dirigir o pensamento pela racionalidade, senão
que fazê-lo dentro de formas vazias, isto é, que se afastam sempre do real sensível. Pois que
o homem seja inteligência e que esta inteligência possa enfrentar-se ao real por categorias
lógicas, conceituais ou racionais não configura o problemático da metafísica. O
problemático da metafísica é o fato de criar conceitos sobre o vazio, de falar sobre
conceitos inventados, e substantivar coisas inexistentes. E como o faz, desde Parmênides
até Hegel? Esquecendo-se da realidade física, ou fazendo a pergunta a respeito da realidade
já a partir de conceitos e parâmetros que não são em nada relacionados com a realidade
material. Zubiri defende, portanto, sobretudo, uma necessidade da filosofía de voltar-se ao
seu ―objeto‖ mais relevante, que é a realidade.
Temos assim que a preocupação central de Zubiri, que vai tomando diferentes
formas ao longo de sua obra, é sempre a questão da realidade. Podemos notar que, desde a
sua fase inicial, em que se ocupava de Husserl, existe um intento de Zubiri de tornar inserir
certo objetivismo na fenomenologia. Num segundo momento, se esforça por fazer jus à
questão de Heidegger, sem por isso aceitar seu idealismo, em outras palavras, devolvendo o
lugar da realidade material dentro da filosofia, sem negar a liberdade da existência.
São consideradas sua obra madura as publicações a partir de Sobre a Essência, de
1962, onde problematiza e questiona a filosofia tradicional no que diz respeito a suas
concepções de realidade, visando recolocar a investigação filosófica no caminho de uma
realidade efetivamente física. Para isso, Zubiri realiza dois movimentos fundamentais, a
saber, uma análise de uma série de visões tradicionais na filosofia acerca da essência,
começando por Husserl, passando por Hegel e os racionalistas modernos e chegando até
Aristóteles, e um segundo momento, onde defende sua própria ideia de essência como
momento real da coisa, no sentido estrito da realidade física.
Em relação às criticas de Zubiri à tradição metafísica, seria preciso discuti-las uma a
uma, e elas versam sobre muitos filósofos. Há inúmeras formas de idealismo que deram à
palavra essência um uso tão distante do real concreto, ao longo do tempo. Zubiri vai
nomeando cada transformação (das que considera mais relevantes) deste conceito,
começando por Husserl que a transformou em sentido, passando por todos os racionalistas
modernos que a entenderam enquanto conceito, e ficaram com o sério problema de uma
relação artificial entre coisa e conceito, até chegar a Aristóteles, filosofo do qual, na
verdade, se aproxima mais. Zubiri considera que Aristóteles se aproximou de entender o
que seria a essência, porque a viu como uma serie de características que não podiam faltar a
uma realidade para que possamos dizer que ela é o que é. Zubiri mira basicamente no
mesmo alvo, mas traça três críticas importantes para mostrar que Aristóteles não havia
chegado a superar a idealidade em relação à essência que ele mesmo critica em seu mestre
Platão. Vale a pena olhar em detalhe esta crítica, porque ela apresenta os fundamentos da
atualização proposta por Zubiri.
Em última instância, defende Zubiri, em Aristóteles a essência é um momento real
da substância é, um momento físico de especificidade. Aqui convergem o conceito de
essência como correlato real da definição e o conceito de essência como momento real da
substância. Para designar a essência assim entendida, Aristóteles utilizou a palavra eidos.
Esta palavra significou no grego o conjunto unitário de rasgos ou caracteres daquilo que se
vê, a classe de coisa que é a realidade em questão, ou ainda o modo de ser desta realidade.
Para Aristóteles, o princípio substancial de todos estes caracteres é a forma substancial, a
forma conformante ao ser da coisa. Este eidos pode ser dito através da definição, isto é,
através de seus caracteres mais gerais e neste caso não significa o que a coisa fisicamente
manifesta, mas um logos que denuncia o gênero ao qual pertence. Estas duas maneiras de
dizer eidos têm um ponto convergente, pois os caracteres que manifestam o ser da coisa são
os mesmos que denunciam o seu gênero. Em resumo, a essência é o específico, seja como
momento físico, seja como unidade definida. A ambivalência do conceito se deve ao fato
de que Aristóteles, de fato, afronta todas as questões de sua filosofia primeira por duas vias,
pela physis e pelo logos. No nosso caso, há um claro predomínio do logos sobre a physis. Pois
quando tenta apreender positivamente o que é a essência de uma coisa natural o que faz é,
simplesmente voltar-se sobre a coisa natural, ―enquanto natural‖, que são caracteres termos
de uma predicação. Isto enturva o conceito de essência.
Zubiri traça críticas a Aristóteles em três sentidos: Primeiro: no que concerne ao
âmbito do ―essenciável‖, isto é, para Aristóteles, todo o âmbito da natureza. Há uma
confusão que invalida esta ideia de Aristóteles, pois a contraposição entre os princípios da
physis e da téchne tem que valer também como uma dualidade adequada à entidade dos entes
principiados? Um dos pontos em que podemos discutir isso é analisar que ao contrário dos
entes produzidos pela técnica antiga, os entes produzidos pela técnica atual são sim dotados
de ―atividade natural‖.
Segundo: dentro deste mal definido campo da natureza, Aristóteles diz que só as
substâncias têm essência propriamente dita. Aristóteles chega a essa conclusão através da
sua teoria da predicação, da qual emergem as categorias. Mas a primazia que Aristóteles dá
à ousia, para Zubiri não se justifica nem do ponto de vista do logos, nem do ponto de vista
da physis. Do primeiro, porque toda realidade, seja qual for sua índole, pode ser convertida
em sujeito de predicação. Seria um grave erro impor à coisa mesma a estrutura formal do
logos. Por este lado, Aristóteles conduziu a Leibniz e até a Hegel. Ser sujeito enquanto termo
de um logos não significa ser fisicamente uma realidade. Tampouco a via da physis impõe
essa concepção subjetiva da realidade. Uma coisa é que dentro da transformação haja
momentos estruturais persistentes, outra que o persistente seja uma ―coisa-sujeito‖
permanente ―por baixo‖ da transformação. Para evitar as confusões oriundas da teoria
aristotélica e criar uma teoria em que a realidade não esteja identificada com a
subjetualidade, Zubiri utiliza o termo substantividade, que não expressa o próprio ao
sujeito, mas a plenitude de autonomia entitativa. A realidade para Zubiri é primordialmente
entitativa e não substancial. A indistinção entre estes dois momentos torna imprecisa a
noção aristotélica do ente essenciado.
Terceiro: em relação à essência em si mesma. Para Aristóteles é a especificidade da
substância e chega a ela, mais uma vez, através da convergência das duas vias. Mas essa
convergência, ou seja, o momento da especificidade demonstra uma grande preponderância
do logos sobre a physis uma vez que se determina em função da própria definição. Neste
sentido, Aristóteles não chegou, de fato, a superar Platão. A essência é um abstrato e não
dá conta da essência física. Para que tratasse da essência física, seria necessário tomar a ideia
de Aristóteles de características essenciais, mas dentro de um indivíduo determinado.
Esse e o fio condutor que levara Zubiri a defender a ideia de essência como
momento real da coisa mesma. A essência é algo físico, aquilo que faz de uma coisa ―uma‖
bem circunscrita e determinada. A essência não é ―espécie‖, mas constituição substantiva.
Formalmente não é o que responde à definição, assim não a buscamos pela análise
metafísica, e sim na análise das estruturas reais dela, de suas notas e da função que
desempenham no sistema constitucional de sua substantividade individual, tanto estrita
quanto singular. Esta é a essência como momento físico da coisa real. Isso não significa que
seja um ―elemento‖, pois é essência não é uma ―coisa essencial‖ e sim ―o essencial de uma
coisa‖. A essência é o ―momento nuclear‖ de uma coisa real. Esse momento não concerte à
ordem operativa, senão que à entitativa. Não diz respeito às atividades ou passividades de
uma coisa em relação às outras, mas às notas de tipo formal e de caráter constitucional.
Porém, a essência exerce na coisa uma função. A essência como momento físico da coisa
real desempenha uma função física muito precisa dentro da coisa essenciada. É justamente
por essa função que a essência é essência. É uma função em primeiro lugar individual e não
concerne à substancialidade, mas à substantividade.
Zubiri defende que a estrutura da linguagem deixa transluzir sempre de algum
modo certas estruturas conceituais próprias à ―mentalidade‖, ―forma mentis‖, ou seja, a
linguagem sempre deixa transluzir uma estrutura conceitual, o que não significa que seja sua
única função, ou que faça isso primordialmente. Diz ainda que o logos predicativo defendido
pela filosofia clássica tem pelo menos três problemas: a identificação do logos essencial com
a definição, a identificação do logos com o logos predicativo, e a identificação do sujeito do
logos com uma realidade substancial.
Para fugir a este problema, e falar de notas tomando-as como físicas, é preciso não
utilizar a articulação gênero e diferença, por exemplo, não dizer que o homem é animal e
racional, mas ―animo-racional‖, uma unidade metafisicamente determinada por dois
momentos. Além disso, uma proposição essencial tem uma peculiaridade: não são
forçosamente ―acabadas‖. Não contém mais do que uma série de notas constitutivas da
realidade substantiva, deixa sempre aberta a porta a predicados ulteriores. Não pretende ser
conclusa. Assim o esforço por apreender o essencial de cada realidade não tem que ser o
esforço de defini-la.
Esse real é compreendido pela inteligência sentiente, ou seja, a inteligência humana
vista não simplesmente como uma concepção racional, mas uma estrutura una que
compreende sensibilidade e inteligência, que permite que a coisa seja dada enquanto
impressão, sem ser estritamente subjetiva. Não são os sentidos que sentem coisas e depois
a inteligência concebe que são reais, mas no sentir intelectivo se sente já a coisa como real e
a inteligência concipiente concebe como real aquilo que a inteligência sentiente sentiu como
real. O transcendental está dado já na impressão da realidade.
Ela instaura a coisa como algo ―de si‖ e isso é o que chamamos realidade simpliciter.
A essência é transcendentalmente o simpliciter ―de si‖, em outras palavras: a essência é
absolutamente idêntica à realidade. Esta concepção é complementada na obra Estrutura
Dinâmica da Realidade, em que Zubiri explica cuidadosamente sua ideia de realidade como
um dinamismo em que as estruturas estão permanentemente dando de si. Zubiri está muito
de acordo com as novas teorias físicas que entendem o real estruturalmente e não enquanto
substâncias. Um exemplo deixa isto muito claro, que e sua critica a ideia de tempo em
Heidegger: Ao falar sobre a essência do tempo, Zubiri critica algumas visões clássicas, por
Referências Bibliográficas:
RESUMO: O artigo tem como proposta abordar o Estado de Bem Estar Social a partir do
enfoque habermasiano. O Estado é revelado por Habermas como preocupado em
proporcionar aos cidadãos a satisfação de suas necessidades, efetivando seus direitos
humanos, uma vez que, além de cidadãos, são clientes do governo que legitimam. Essa
efetivação de direitos se dá através do controle estatal da economia de mercado e de
políticas públicas, proporcionando a equidade na distribuição de renda. A globalização é
um processo neoliberal que foge ao poder estatal de controle. Como esteio para tal análise,
busca-se uma analogia com as manifestações populares.
Palavras-chave: Estado de bem-estar social. Globalização. Legitimação política.
Manifestações populares.
164 Bacharelando em Direito (UNIVEL); Acadêmico do 2ª ano do Curso de Engenharia Civil (UNIOESTE);
Tecnólogo em Negócios Imobiliários (CESUMAR); Bacharel em Ciências Contábeis (UNIOESTE). Esse
artigo é fruto das discussões do grupo de pesquisa Habermas: direitos fundamentais e emancipação
social coordenado pela profº Kátia R. Salomão.
165 A orientadora é mestre em filosofia pela Unesp/Marília. Professora de filosofia geral e jurídica da
166Talvez isso explique porque o partido proletário mais famoso do Brasil, antigamente considerado de
esquerda, não se encontre mais ali atualmente.
A primeira delas trata de elites políticas que efetivam suas vontades a partir do
cerne do aparelho estatal (ou seja, estas realizações partem de dentro do governo). A
segunda delas trata de um grande número de grupos anônimos e de atores coletivos que,
influenciando uns aos outros, formam coalisões, controlam o acesso aos meios de
produção e comunicação e, por meio do seu poder social, tendem a delimitar a tematização
e a resolução de questões políticas. A terceira delas trata da quantidade indistinta de
indivíduos que são unidos por meio de questões culturais, cuja cultura política é de difícil
determinação, posta a dificuldade de comunicação entre si.167 Contudo, esta última arena,
quando focada através da ajuda da determinação da realidade, realiza as reviravoltas nas
tendências do espírito da época. Portanto, é por meio da última arena, a qual se encontra
em uma posição inferior em relação as outras duas, que o exercício solidário do governo
pode ser efetivado. Afirma Habermas (1987, p. 113) que ―todo projeto que quiser
redirecionar forças em favor do exercício solidário do governo tem de mobilizar a arena
inferior ante as duas de cima. Nesta arena não se luta diretamente por dinheiro ou poder,
mas por definições‖. Ora, são por definições que as manifestações se têm mostrado tão
frequentes e atuantes, mesmo que as demandas dessas manifestações sejam turvas, em
decorrência das suas quantidades.168
Há uma reflexão progressiva a respeito do Estado de Bem Estar Social pela
população que legitima o governo, uma vez que a própria população enxotou os meios de
comunicação e os partidos políticos destas manifestações, restando a denotação de
apartidárias. Danner (2012, p. 79), em Habermas e a retomada da social-democracia, numa
releitura de Habermas, afirma que a crítica em relação à democracia de massas dá-se em
função da ―tendência de uma subversão do espaço público-político, ao emperramento da
participação popular por causa da centralização da esfera política em torno aos partidos
políticos profissionais e à consolidação de um Estado tecnocrático e paternalista‖.
Habermas, então, sugere que a democracia radical seria capaz de retirar os cidadãos de
meros sujeitos passivos da esfera administrativo-partidária, para efetivos participantes da
evolução social do Estado. Tal democracia radical exteriorizar-se-ia em função de
manifestações populares, as quais imprimiriam ―um caráter crítico-reflexivo à práxis
167 O que tem sido mudado frente às influências e participação da massa na utilização de instrumentos
integrativos, como redes sociais virtuais gratuitas. Em Habermas poder-se-ia ainda estabelecer uma analogia
disso com a possibilidade de esferas públicas informais, nas quais a liberdade de expressão é ampliada
denotando a possibilidade de um modelo de vontade geral próxima da noção Rousseauniada.
168 Ainda, pode-se considerá-las como uma opinião pública informal que urge por mudanças radicais no modelo
democrático atual, mesmo que tais mudanças não atinjam o plano prático ou concreto, elas se perfazem no
sentido da vontade geral.
política, exatamente por levar ao exercício efetivo dos direitos políticos pelos cidadãos de
uma maneira geral frente à burocracia administrativo-partidária‖ (DANNER, 2012, p. 79).
Portanto, ao cidadão não lhe é inerente somente o voto, que passa pelo aparato
estatal administrativo-político, para a formação do Estado de Bem Estar Social
(pressupondo o Estado Democrático de Direito), mas a sua participação efetiva numa
esfera apartidária, retirando dos partidos políticos - que possuem ―uma função nefasta de
conquista pura e simples da lealdade das massas‖ (DANNER, 2012, p. 79) - a centralização
da práxis política.
Assim, ficou claro o repúdio das manifestações populares modernas aos partidos
políticos e às mídias de comunicação quando da efetiva reflexão sobre o Estado de Bem
Estar Social. Sob esta perspectiva, Danner (2012, p. 79) ainda afirma que ―os impulsos
provenientes dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs, ao criarem um espaço público
informal, não centralizado em torno da mídia de massas e arredio a ela, permitiria a
superação daquela subversão da esfera público-política‖. Começa-se, então, a sonhar, no
Brasil169, com uma superação desta subversão partidária e midiática, caminhando-se para o
progresso do Estado de Bem Estar Social, apesar de Habermas acreditar que as energias
utópicas acabaram.
Em A constelação pós-nacional, Habermas levanta um estudo histórico sobre o
aprendizado decorrido de catástrofes do século XX. Aqui ele aponta o Estado de Bem
Estar Social como resultado da 2ª Guerra Mundial e da Grande Depressão (crise
econômica de 1929), em que os estados nacionais passam a sofrer interferências
internacionais quanto ao Direito e a atuação de seus governantes em relação aos súditos. A
Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos influenciaram os
Estados a elaborarem constituições garantistas em relação aos direitos e liberdades do
homem. Por isto, e pela qualidade própria da cidadania dos súditos, como clientes das
políticas públicas, o Estado nacional deve promover o bem estar social, abrangendo desde
políticas de mercado, quanto de efetivação da justiça social por meio da distribuição
equitativa de renda (dentro da igualdade substancial), bem como de saúde, educação,
família, proteção da natureza, entre outras. Assim afirma Habermas (2001, p. 84):
169 No Brasil ficou famoso o slogan ―O gigante acordou‖, representando as manifestações populares.
Ocorre que atualmente o Estado de Bem Estar Social está em crise, segundo
Habermas, em função da política econômica neoliberal advinda do processo de
globalização, sob o qual o Estado não tem poder regulamentador. No tocante aos direitos,
ele afirma que a globalização, enquanto processo, representa um perigo para a
institucionalização nacional das condições de funcionamento e de legitimação do processo
democrático.170 Afirma Habermas (2001, p. 68):
170Em percepção análoga está a situação da FIFA no Brasil, com suas exigências ―inconstitucionais‖ e
―exploratórias‖ para a realização da Copa do Mundo em 2014.
estados federativos e municípios entram numa competição para receber tais multinacionais,
dando incentivos fiscais para que se instalem em tal cidade ou estado.
Não só, em matéria tributária se vê incentivos a grandes indústrias e empresas para
que mantenham a atividade no país. Ocorre, contudo, que houve grande aumento de
impostos sobre os bens consumíveis (cujo valor é repassado para o consumidor) e sobre a
renda da classe média. Afirma Habermas (2001):
Referências Bibliográficas:
Ricardo Corrêa171
Instituto Federal Farroupilha – campus Santo Augusto.
ricardo.correa@sa.iffarroupilha.edu.br
171 Graduado em Sociologia pela Unijuí/RS. Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí/RS. Professor do
Instituto Federal Farroupilha – campus Santo Augusto.
172 Claro que há diferenças importantes. Tocqueville divide a sociedade em classes sociais – aristocracia, etc.
Já Ortega divide em classes de homens, que não podem coincidir com a hierarquia das classes sociais. Outro
fator importante está na concepção das obras. As de Tocqueville são obras clássicas de sociologia e de
historiografia, com todos os métodos e provas que essas ciências requerem. As obras de Ortega y Gasset são
ensaísticas. Próprias do estilo filosófico. E como o próprio Ortega referiu, o ensaio é a ciência sem prova.
bem e para o mal. Ademais, um fato social novo apresenta, no mais variar das vezes,
aspectos positivos e negativos.
O estado social democrático, segundo o pensamento tocquevilliano, favorece o
aparecimento de um novo tipo de homem, o homem democrático. Mesmo que a palavra
democracia, para nós ocidentais, designe bons sentimentos e valores, pois a ela
relacionamos outros dois termos muito caros à nossa cultura, liberdade e igualdade, para o
pensador francês, este estado social pode trazer consigo alguns malefícios, como o
individualismo, a apatia social e, consequentemente, o despotismo democrático.
Para o pensador espanhol, as sociedades de massa também produzem um novo
tipo de homem, o homem massa. A hiperdemocracia é o fato negativo nas sociedades
democráticas, pois se refere à imposição dos costumes e hábitos das massas. É a ditadura
do homem vulgar – em oposição ao homem nobre.
Analisando mais profundamente as obras de Tocqueville e Ortega, vemos
similaridades e diferenças cruciais. O que Tocqueville entende por estado social
democrático (em oposição ao estado social aristocrático – já adianto que trato dessa
questão em Tocqueville como construções típicas weberianas e não como mera descrição
da realidade) pode fazer surgir um tipo de homem (o homem democrático – mais um tipo
ideal) apático socialmente, individualista e sem interesse pela coisa pública, favorecendo o
aparecimento de um governo despótico173. Para Ortega y Gasset, o fato novo das
aglomerações faz surgir o homem massa, e este quer dominar tudo, da política à arte e ao
teatro, da religião à economia. As massas intervêm em tudo, atropelando tudo o que é
individual, egrégio, seleto, qualificado. As massas só não suportam, aqui vai uma afirmação
característica do estilo orteguiano, o que não é massa174.
Onde um vê apatia política o outro vê ação coletiva violenta. Para Tocqueville, o
indivíduo torna-se um ilha, só lhe interessando seus ganhos pessoais e, no máximo, sua
família. Ortega teme as ações coletivas violentas das massas. Por isso, cabe a questão:
como seria possível um diálogo entre esses dois teóricos? Pensamos no fato característico
dos interesses egoísticos das massas. Parece-nos que as ações coletivas das massas não têm
como primazia o bem público, a pátria, etc., não são ações virtuosas, mas ações que têm
173Um governo despótico, para Tocqueville, contém algumas particularidades, entre elas, e talvez a principal, a
de não retirar da vida dos indivíduos o conforto da vida privada. Para que um governo despótico alcance
êxito, este deve deixar apenas algumas liberdades, como a ―liberdade‖ de consumo, por exemplo, para seus
―cidadãos‖.
174 Claro que Ortega y Gasset não descrê totalmente das massas. Alerta para uma possível catástrofe, porém,
também considera que ― a rebelião das massas pode, com efeito, ser trânsito de uma nova e sem par
organização da humanidade, mas também pode ser catástrofe no destino humano‖ (1971, p. 107).
como fundamento o ganho pessoal. O homem-massa age levando em conta o ganho pessoal.
Daí vê-se, provisoriamente é claro, uma possível complementaridade entre os dois
pensadores. O individualismo, porém, não é necessariamente contrário à ação coletiva
baseada nos apetites das massas. Vejamos.
Ao interpretar a crescente igualização de condições dos povos ocidentais,
Tocqueville apresenta-a como um processo universal, consistindo num movimento quase
irrefreável: os homens entram na era da igualdade. E mais: essa igualdade se torna o fato
decisivo, é ela responsável por toda sorte de mudanças na sociedade, desde a opinião pública
e os hábitos, às leis e aos governos.
É claro, como comenta Barbu (1982, p.17), que, mesmo Tocqueville ―tratando‖ a
democracia como um fait total, ela se manifesta de várias formas, dependendo do contexto
histórico. Assim, o movimento democrático na Inglaterra guarda diferenças com o
movimento democrático na França e nos Estados Unidos, por exemplo. ―Enquanto a
democracia inglesa é a democracia da liberdade, a francesa é a democracia da igualdade‖,
comenta Barbu (idem, p. 18).
Por isso, é preciso reconhecer e distinguir os hábitos democráticos dos hábitos de
cada povo. Por exemplo, a religião puritana é um hábito do povo norte-americano, mas
não é, por sua vez, um hábito democrático. Já o hábito de não reconhecer nenhuma
autoridade intelectual é um hábito democrático.
Por sua vez, a igualdade social de condições, característica imprescindível da
democracia, ao contrário do estado social aristocrático, desenvolve em cada homem o
desejo de julgar tudo por si mesmo (1987, p. 345). A igualdade faz surgir, no espírito
humano, ―(...) muitas ideias que não lhe teriam vindo sem ela, e modifica quase todas as
que já possuía‖ (1987, p. 340).
O homem democrático, então, para Tocqueville, é um homem que não reconhece mais
nenhuma autoridade no mundo terreno. A igualdade faz, cada vez mais, os homens
tornarem-se parecidos. ―A primeira e mais viva das paixões que a igualdade de condições
faz nascer é, não é preciso que o diga, o amor a essa mesma igualdade‖ (1987, p. 383).
E por repudiar as antigas tradições, principalmente as de classe, é que Tocqueville
caracteriza a sociedade democrática, ao contrário da sociedade aristocrática, como uma
sociedade que se ―move‖ de maneira rápida. Nada mais prende o homem democrático. Tudo
pode estar ao seu alcance. ―A igualdade desenvolve em cada homem o desejo de julgar
tudo por si mesmo; dá-lhe, em todas as coisas, o gosto pelo tangível e pelo real, o desdém
pelas tradições e pelas formas‖ (TOCQUEVILLE, 1987, p. 345). O homem volta-se para si
mesmo, para si próprio, não estima a erudição, não lhe interessa o passado, o que se
passava em Roma ou Atenas, só o que exige é o quadro do presente (1987, p. 372).
E essas ameaças, que a igualdade traz consigo, fazem surgir dois novos problemas
sociais: o individualismo e o despotismo democrático.
O individualismo, segundo Tocqueville, é um fenômeno novo, decorrente do
processo de igualdade de condições. Ao contrário do egoísmo, que é intrínseco ao ser
humano, o individualismo só surge nos séculos democráticos. ―O individualismo é um
sentimento refletido e pacífico, que dispõe cada cidadão a isolar-se da massa de seus
semelhantes e a retirar-se para um lado com sua família e seus amigos, de tal sorte que,
após ter criado para si, desta forma, uma pequena sociedade para seu uso, abandona de
bom grado a própria grande sociedade‖ (1987, p. 386).
Diferentemente das sociedades aristocráticas, onde existia uma cadeia de proteção
entre os súditos, na democracia cada um depende única e exclusivamente de seus esforços
pessoais. Não há mais laços entre os indivíduos de uma mesma classe. Nas sociedades
aristocráticas, a riqueza é um privilégio hereditário, os ricos não precisam se preocupar em
obtê-la, é como que natural a condição econômica das classes. Por isso, os aristocratas
podem se preocupar com outros assuntos, como, por exemplo, a vida pública. Com a
―revolução‖ democrática, cai a barreira social que separava ricos e pobres175. E, por não
haver mais laços, os homens se esforçam, cada vez mais, por buscar, pelos seus próprios
esforços individuais, um maior bem-estar. ―Dessa forma, a democracia seria incentivadora
desse isolamento pelo fato de, nela, o indivíduo só contar consigo mesmo e acreditar que é
o seu trabalho, bem como os seus esforços e suas capacidades, que irá conceder-lhe
tranquilidade e bem-estar‖ (QUIRINO, 2001, p.75).
Os homens dos tempos democráticos só desejam tranquilidade e bem-estar. Para o
homem moderno, então, constitui perda de tempo o envolvimento com a coisa pública.
Isso lhe tira o foco do ―essencial‖ – ganhar dinheiro e viver seguramente. O homem
democrático acha inútil a vida pública. ―Como os cidadãos que trabalham não desejam pensar
na coisa pública e não existe mais a classe que poderia encarregar-se desse cuidado para
encher os seus vagares, o lugar do governo fica como que vazio‖ (TOQUEVILLE, 1987,
p. 413).
175―Num povo aristocrático, cada casta tem as suas opiniões, os seus sentimentos, os seus direitos, os seus
costumes, a sua existência à parte. Assim, os homens que a compõem nunca se parecem a todos os outros;
nunca têm a mesma maneira de pensar ou de sentir, e mal chegam a crer que fazem parte da mesma
humanidade‖ (TOQUEVILLE, 1987, p. 427).
bem-estar, podem colocar em perigo as próprias bases desse mundo novo. Quem acredita
que poderemos perder para sempre estradas de rodagens, telégrafos e aspirinas?
O homem-massa está contente consigo mesmo. Não precisa apelar para nada, para
ninguém. Tem em si mesmo tudo para ―tratar‖ com as circunstâncias, ou o mundo. Por
isso, o novo homem escorrega nos deveres históricos – esses deveres, a nosso ver, são
sempre deveres cívicos, ou para com a comunidade e a sociedade.
O individualismo do homem-massa decorre desse fato. Não encontra limitação
alguma, logo, nada é impossível. Unindo a isso o sentimento de que ninguém é superior a
ninguém, o homem-massa entrega-se a si mesmo. Esse entregar-se a si mesmo, porém, não
é ensimesmar-se, ou algo parecido. O homem-massa não se interessa por meditação ou
qualquer coisa que coleque em suspenso suas ―capacidades‖. Entregar-se a si mesmo é
desejar que o mundo curve-se aos seus gostos e interesses.
Individualismo não significa abrir mão do mundo para cuidar da sua própria vida.
Significa o desejar tudo para si. Querer lograr todos os benefícios e gratificações. – ―Se
ninguém é melhor que eu... eu devo decidir‖. É por isso que não podemos falar em apatia
social das massas. Elas intervêm em tudo; e violentamente, muitas vezes.
Para Ortega a ação política é a ação derradeira. Quando nos deparamos com os
fenômenos sociais novos nos salta aos olhos, primeiramente, a ação política. Mal sabemos,
no entanto, que a atividade política é a consequência da atividade moral e intelectual. Em
toda a vida pública, que está além da atividade política, os homens seguem suas aptidões
morais e intelectuais. ―Assim, a indocilidade política não seria grave se não proviesse de
uma indocilidade intelectual e moral‖ (ORTEGA Y GASSET, 1971, p. 98).
A indocilidade das massas está em não aceitar normas e regras. A base de qualquer
cultura passa pela aceitação de normas e regras fundamentais. ―Estas normas são os
princípios da cultura‖ (ORTEGA Y GASSET, 1971, p. 101-102). A civilização subordina-
se à cultura e esta liga-se a regras e normas. Não é possível falar em civilização e cultura –
logo o composto cultura de massas é uma incoerência – sem falar em regras e normas.
A barbárie é a total falta de normas. Salta aos olhos a total falta de normas, ou
melhor, o desprezo pelas normas de argumentação e de veracidade quando o homem-massa
se põe a argumentar. O diálogo, forma superior de existência, segundo Ortega, requer que
os contendores admitam uma razão fora de si e estejam dispostos a mudar de ideia. O
diálogo não é apropriado a seres herméticos.
Opinar, então, é aceitar os supostos e as regras de argumentação. A massa intervém
em toda a vida pública, mas, hermética como é, não aceita o diálogo. Seu modus operandi é a
ação direta. Acaba-se com as discussões. Resta a força da ação direta. Os interesses
medem-se pela força e pela capacidade de imposição dos mesmos.
Para Ortega, a civilização resume-se a trâmites, normas, bons costumes (cortesia,
polidez, afabilidade), justiça e uso da razão. Tudo isto faz possível a convivência, a
comunidade, a cidade: o cidadão. Todos os instrumentos de que se serve o cidadão
resumem-se no desejo de contar com o outro, com os demais cidadãos. As massas, neste
sentido, não aspiram à cidadania, pois agem em grupos separados. Cada qual com seu
agrupamento afim. Há um pulular de agrupamentos humanos separados e hostis. Nenhum
desses agrupamentos se preocupa com o destino da civilização. Ninguém está preocupado
com os demais nem sobre quanto e de como o ―progresso‖ material necessita da
continuidade também da civilização. As massas apenas se preocupam com os ―frutos‖
materiais.
Falta, para Ortega y Gasset, uma ética da responsabilidade, capaz de suscitar no
espírito humano a preocupação com as ações e as consequências destas para com os
outros. Onde a massa enxergue direitos e deveres. Uma moral para a massa, pois moral é,
―(...) por essência, sentimento de submissão a algo, consciência de serviço e obrigação‖
(ORTEGA Y GASSET, 1971, p. 198). O contrário disso, o não submeter-se a norma
nenhuma, chama-se imoralidade ou moral negativa.
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. 3. ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-
Americano, 1971. (Trad. Herrera Filho. Prefácio Pedro Calmon).
___________. Obras Completas. 7. ed. Madrid: Revista de Occidente, 1966.
QUIRINO, Célia Nunes Galvão. Dos infortúnios da igualdade ao gozo da liberdade: uma análise
do pensamento político de Alexis de Tocqueville. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP, 1987. (Trad. e notas Neil Ribeiro da Silva).
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
roberto.mertens@unioeste.br
176 Nascido em Wiesbaden, Alemanha, Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um distinto filósofo, hermeneuta,
historiador, biógrafo, psicólogo e pedagogo. Atuou, sobretudo, no meio acadêmico, o que explica sua baixa
popularidade junto ao grande público. Filho de uma família protestante (a ponto de ter atuado como pastor
sínodo), Dilthey formou-se nos eflúvios da Berlim de pensadores como Franz Bopp (1791-1867), Wilhelm
Ritter (1770-1810) e Carl Philipp von Savigny (1779-1861). Nosso filósofo se tornou notório após uma lúcida
análise sobre o estado das ciências positivas em sua época, seus estudos sobre a fundamentação das ciências
humanas criou condições para o surgimento de uma verdadeira plêiade de análises que – entre as últimas
décadas do século XIX e as primeiras do XX – acabaram até mais conhecidas do que as suas próprias.
Oswald Spengler (1880-1836), Edmund Husserl (1859-1938), Max Scheler (1874-1928), Karl Jaspers (1883-
1969), Martin Heidegger (1889-1976) e Eduard Spranger (1882-1963) são apenas alguns nomes que, na pista
de Dilthey, endossaram a proposição de que as ciências do homem, da sociedade e da história precisariam
enraizar-se em um solo que lhes garantisse adequado embasamento. A dianteira e a influência das ideias
diltheyanas sobre seus pares em parte se explica pelo fato de, desde muito cedo, o filósofo trabalhar em torno
de uma única meta: a fundamentação das ciências humanas. A constituição definitiva da ciência histórica e, por
meio dela, as ciências humanas, foi uma ambição nutrida pelo filósofo desde o ano de 1850 (quando tinha
apenas 17 anos) e variadamente desenvolvida até a data de sua morte.
177Um conhecimento assemelhado a uma enciclopédia das ciências que, sem possuir autonomia, se reduziria
a uma ciência acessória, uma ―serva‖ das ciências positivas.
178Vertente filosófica que nasceu no final do século XIX e atingiu seu ápice na primeira década do XX.
Surgida em reação à tendência formalista de uma aristocracia kantiana prevalecente na filosofia universitária e,
sobretudo, em oposição ao positivismo emergente da época, a filosofia da vida propõe uma volta às
experiências vividas evitando que o pensamento lógico-matemático daquelas tendências (que tocaria apenas
na superfície dos referidos fenômenos) interferisse no conhecimento. Costuma-se vincular a esta corrente de
pensamento autores como Dilthey, Bergson, Nietzsche, Simmel, Eucken e Spengler.
uma área de saber que não preservaria sua articulação com a experiência viva do saber:
significa dizer que as ciências positivas abstrativas não consideram o horizonte do
fenômeno fundado nas vivências. (MAKKREEL, 1984) Consequência disso? Em ciências
como as referidas, a conversão de fenômeno em factum brutum ―desvivifica‖ o
conhecimento. Com isso, Dilthey julga que tal maneira de investigar é reducionista, pois, o
método com o qual se estimava obter resultados claros, certos e legitimados pelo dado
empírico, no fundo, geraria uma pauperização e, ainda, um ―esfacelamento‖ da experiência
que garante o próprio conhecer pela ciência. A relevância deste diagnóstico é garantida a
partir da evidência da afirmação de que qualquer saber possível se assenta em vivências.
Erlebnis, termo que aqui é traduzido por ―vivência‖ (―experiência vivida‖ ou
―experiência viva‖) designa, nesse contexto, a própria vida dos fenômenos, realidade
absoluta resultante da correlação entre psiquismo e mundo que se refere a toda atitude ou
expressão da consciência, garantindo sua ligação com os fenômenos em um contexto
efetivamente histórico. Do ângulo de Dilthey, a vivência é antes de tudo a unidade
estrutural entre formas de atitude e conteúdos; de tal modo, um ato de observação na
relação com o objeto é uma vivência, assim como o meu sentimento de alguma coisa ou o
meu desejar alguma coisa. Vivências, assim, compreendem o mundo vivido, de modo que
toda tentativa de ir aos fenômenos prescindindo do mundo da vida redundaria naquilo que,
usando a terminologia do filósofo, chamamos de ―desvificação‖. (DILTHEY, 2010)
Ora, temos plena clareza de que esta concisa introdução aos termos da crítica
diltheyana ao positivismo não pode se pretender completa. Todavia, mesmo através dessa,
é possível compreender o quanto a doutrina positiva (influente nas ciências naturais) nos
deixa distante do fenômeno, quadro agravado quando em questão estão não as ciências da
natureza, mas a da realidade humana (ciências humanas). Ao perceber que também as ditas
ciências do espírito se servem do modelo vigente nas naturais (atuando também de maneira
abstrativa, empobrecida e desvivificada), Dilthey compreende a emergência de uma
fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história no solo que as vivências
constituem. Tomando, assim, por consideração as vivências, o filósofo se serve do método
hermenêutico para, com ele, reconstituir o laço que as ciências humanas possuem com o
homem. (KAHLMEYER-MERTENS, 2012).
reconhecerem como saberes cujos alicerces se situam (ou deveriam se situar) no âmbito da
vida, ou seja, num campo total de vivências. (KAHLMEYER-MERTENS, 2012).
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
Rosalvo Schütz
UNIOESTE/CNPq
E-mail: rosalvoschutz@hotmail.com
RESUMO: A Filosofia Positiva de Schelling tem em comum com as outras fases o fato de se
preocupar em buscar superar a dualidade entre natureza e espírito herdados da tradição.
Sua especificidade é que procura desenvolver uma concepção de filosofia apropriada para
tal, uma vez que considerava a concepção predominante no contexto moderno incapaz de
realizar essa tarefa. Neste texto, por isso, nos delimitamos à tentativa de reconstruir e
apropriar aquilo que o próprio Schelling apontou como sendo o problema filosófico
específico a ser superado nessa fase no âmbito da própria concepção de filosofia.
Buscaremos, portanto, perceber a seguinte questão orientadora: Por que a filosofia até
então é considerada insuficiente por Schelling?
Palavras-chave: Filosofia puramente racional; Filosofia Positiva; Crítica.
Em sua Filosofia Positiva Schelling busca fundamentar uma filosofia que, sem abrir
mão da noção de sistema, pretende também estar aberta ao inusitado histórico e contribuir
com algo mais do que com a expansão quantitativa do conhecimento. Buscava ele uma
forma de filosofar que não se limitasse a critérios puramente racionais, mas que aceitasse ao
mesmo tempo a religião, a arte, a mitologia e a sensibilidade enquanto manifestações
autônomas e vivas, enquanto possíveis impulsos originais do filosofar. Ser e pensar são
concebidos a partir de suas especificidades e imbricações mútuas, no entanto, há uma
primazia do ser em relação ao pensar, uma vez que nenhum sistema poderá mais se
apresentar como sendo uma explicação última e absoluta da realidade. Ao contrário da
filosofia puramente lógica, sistemática, a qual Schelling passa a chamar de Filosofia Negativa
(incluindo aí a sua própria filosofia desenvolvida até então), esta nova seria uma Filosofia
Positiva. É a tentativa de superar uma filosofia puramente racional (rein rationale Philosophie),
também denominada de filosofia lógica (logische Philosophie), a fim de tematizar a realidade de
forma mais acertada (die richtige Wirklichkeit). Além de Positiva, o autor também chama esta
de Filosofia Histórica (geschichtliche Philosophie).
179 Todas as traduções de citações foram feitas pelo autor desse texto.
que permitisse que a filosofia apontasse para algum sentido sem se tornar
dogmática/fechada.
Entender o que os sistemas filosóficos desenvolvidos até então têm em comum,
isso talvez indique para o que o sistema não pode ser. Ou seja: talvez todos os sistemas
tenham algo em comum, e aquilo que tenham em comum talvez seja o ―o erro básico‖ de
todos. A questão colocada por Schelling (1972, p. 74), portanto, é: ―Qual é o caráter
comum de todos os mais recentes sistemas desde Descartes?‖. Sem delongas aponta para
aquilo que julga ser o equivoco básico: ―(…) o caráter comum de todos estes sistemas é o
caráter somente lógico, ou, de que neles são procuradas apenas relações lógicas‖ (1972, p.
75).
O sistema proposto por Spinoza serve de protótipo para demonstrar esse caráter.
Trata-se de um sistema que, segundo Schelling, tem uma grande atratividade
/encantamento pelo fato de que aceita e pressupõe um ―inter-relação objetiva‖ abrangente
e global do mundo de modo a, aparentemente, satisfazer a exigência de oferecer um
sentido para a vida e afastar o véu encobridor da realidade. Tal sistema, no entanto, não dá
conta de sua promessa e não dá conta por condenar tudo e todos a um determinismo
puramente lógico. Para Spinoza, ―(...) entre Deus, enquanto mais alta substância, e as
coisas, não há outra inter-relação a não ser a lógica. As coisas são apenas emanações lógicas
do ser divino, que advém do mesmo de uma forma eterna‖, segundo Schelling (1972, p.
75). De fato, apesar de Spinoza ter expressado isso de forma logicamente coerente, ele, no
entanto, não o demonstrou. Simplesmente sugere que o aceitemos. Isso, no entanto,
segundo Schelling, não corresponde com a realidade. Quando, por exemplo, alguém crente
afirma que Deus criou livremente o mundo e todas as coisas, não há aí nenhuma relação
lógica pressuposta: ―Aqui é pressuposto um ato real, um fato, é afirmada uma
consequência, uma relação histórica‖ (1972, p. 75). Em Spinoza, as coisas decorrem de
Deus sem ação alguma deste, o que expressa uma negação de toda a forma de ato, de modo
que, ―(…) conforme Spinoza, Deus é a causa de todas as coisas por meio de sua própria
natureza‖ (1972, p. 79).
Assim, ao tematizar a concepção de sistema inerente à teoria de Spinoza, Schelling
conclui que, por meio dos sistemas, ―(…) nos quais na realidade nada acontece, nos quais,
portanto, não se experiencia nada, pode até ser expandido o nosso pensar – (...); mas o
nosso saber, o que nós denominamos saber propriamente dito, não é expandido de forma
alguma‖ (1972, p. 80). Concluindo, afirma que o equívoco fundamental de todos os
sistemas desde Descartes, seja Deus neles compreendido como resultado ou como fim,
consiste no fato de pressuporem que Deus tem apenas uma relação lógica com o mundo.
Ou seja: todos são não-históricos, não admitem o agir livremente, a introdução do novo no
mundo, a inevitável irrupção do previamente indeterminável. Nisso consistiria o limite
básico da concepção de sistema, limite esse que, na medida em que está na base da
concepção filosófica, aponta para mudança necessária na filosofia: ―(...) a verdadeira
reforma da filosofia seria esta que, no lugar de um sistema não histórico, seja capaz de
erigir um sistema verdadeiramente histórico‖ (1972, p. 80).
Esse desafio básico sugerido por Schelling para a filosofia pode ser percebido
também nas preleções de Berlin, oferecidas 10 anos depois (1842) de suas preleções de
Munique. Nelas, no entanto, parece que a contraposição argumentativa não é mais tanto
Spinoza quanto Hegel. Desse modo, pode-se afirmar, sem grandes reservas, que a crítica à
filosofia hegeliana pode ser considerada uma das preocupações centrais do pensamento
tardio de Schelling. Hegel teria radicalizado uma postura já perceptível em alguns aspectos
da filosofia de Kant na medida em que esse, em termos de ciência, reduziu a razão
(Vernunf) a um puro racionalismo (Rationalismus) ―(...) e simplesmente expandiu e aceitou
tacitamente o que tinha demonstrado penas com relação à razão para toda a filosofia‖.
(SCHELLING, 1985, p. 685). A radicalização desse aspecto herdado da postura de Kant
teria levado Hegel a cometer um equívoco básico, qual seja, o de equiparar ser e pensar.
Essa tendência estaria constatável, especialmente, na identificação entre ser e pensar,
geralmente operada à custa da autonomia do ser. Em contraposição a essa postura,
Schelling sugere que deveríamos partir do pressuposto de que existe um ser absolutamente
independente do pensar e no qual se fundaria toda a vitalidade filosófica e dialética. Essa
necessidade de pensar para além de uma filosofia puramente racional seria totalmente
desconhecida pela filosofia hegeliana.
Ao contrário de Hegel, que fez da equiparação entre realidade e racionalidade um
princípio orientador da filosofia (chegando mesmo a ―‗aprisionar‘ o ser dentro do
conceito‖), para Schelling a “(...) razão entende (begreift) o real, mas não a realidade. E isto é
uma grande diferença” (1985, p. 663). Tal postura diferenciada em relação a Hegel seria
fundamental a fim de aceitar que também as experiências (aquilo que não foi previamente
pensado ou não é previamente enquadrável em um princípio) tem importância para a
filosofia. As experiências representariam uma espécie de instância de controle a fim de que
a filosofia não se perca em quimeras e para o reconhecimento autêntico da alteridade do
mundo e do outros: ―Apenas pela experiência (ou seja, pela pura autoridade de nossos
sentidos, e não por meio da razão) nós sabemos que existem coisas fora de nós‖ (1985, p.
774). Há, pois, em Schelling uma primazia do ser em relação ao pensar: há algo anterior à
razão de que a filosofia não pode prescindir. O grande mérito de Hegel seria o fato de ter
demonstrado que todo o conhecimento deve fazer referência a um todo, mas o erro
fundamental residiria em sua pretensão de fazer de sua filosofia um sistema de explicação
positivo da realidade, tornando-a a-histórica, apesar de sua aparente valorização da história.
Hegel teria, pois, inviabilizado a tematização de qualquer aspecto da realidade que não se
deixe subsumir pelo princípio explicativo previamente estabelecido.
Referências Bibliográficas:
Samon Noyama
UNESPAR/UFRJ
snoyama@gmail.com
RESUMO: O presente texto discute dois elementos que, a nosso ver, constituem a visão
de Winckelmann constrói, na segunda metade do século XVIII, sobre a arte da Grécia
antiga. Esses dois elementos são a nostalgia e a metáfora, que talvez expliquem a
singularidade e a paixão com as quais Winckelmann enxergou a arte grega e que, a julgar
pelos caminhos das reflexões estéticas posteriores, de Goethe e Schiller a Nietzsche, foram
de fundamental importância para compreender a influência do helenismo na estética alemã.
Palavras-chave: Winckelmann; Metáfora; Nostalgia; Grécia; Arte.
consequentemente, sobre o mundo grego como um todo. Por isso, já nos acostumamos a
considerar Winckelmann o grande responsável por estabelecer uma história da arte
propriamente dita, sobretudo através das Reflexões sobre a imitação das obras de arte gregas na
pintura e na escultura e da sua já mencionada História da arte da Antiguidade.
O primeiro movimento do autor das Reflexões é privilegiar um determinado período
das produções artísticas gregas, a saber, os séculos V e IV a.C., a fim de delimitar o auge da
produção artística da Antiguidade. Isto é, o período mais brilhante da história da arte
coincide com o período em que os gregos parecem ter vivido sua plenitude intelectual,
cultural, política e, como se costuma dizer, período em que gozaram das melhores
condições possíveis para a realização da obra de arte verdadeiramente bela, em suma, uma
época como jamais voltamos a presenciar. Ao narrar a disponibilidade dos corpos atléticos,
desnudos, em pleno exercício, ele complemente que a presença dos intelectuais fechava o
entorno precioso: ―O sábio e o artista estavam ali: Sócrates a instruir a Cármides, a
Autólico, a Lísis; Fídias a enriquecer sua arte com essas belas criaturas‖.
(WINCKELMANN, 2008, p.82).
―Seguia eu da Academia diretamente para o Liceu pelo caminho que, do lado de
180
fora, corre ao longo da Muralha.‖ (PLATÃO, 1995, p.35) Assim começa Lisis, um dos
diálogos de Platão que Winckelmann cita logo adiante nas Reflexões. Sócrates caminhava em
direção ao Liceu quando foi convidado por Hipótales, filho de Hierônimo, a acompanhá-lo
e aos demais que estavam juntos para uma palestra de Mico, o qual Sócrates julga ser um
sofista de talento. ―É precisamente ali que costumamos passar o tempo‖, diz Hipótales,
―nós e muitos outros belos jovens‖. É a partir de passagens como essa que o autor se vale
para reforçar o que estava ali diante dos olhos dos artistas gregos, para que eles pudessem
imitar as formas mais próximas da perfeição que a natureza já nos ofereceu.
Ora, isto quer dizer que ele não estava cego diante dos seus modelos, pois tinha
ciência dos pormenores dos acontecimentos históricos e da importância da relação entre a
produção artística e as condições das experiências vividas pela humanidade. Portanto, já
sabemos que houve um período específico para o surgimento da arte ideal, com condições
históricas, intelectuais, políticas e climáticas para sua inteira realização. Contudo, apesar de
saber que tais condições vão muito além de vantagens e habilidades específicas, pois na
verdade constituem um todo ideal propício para o surgimento das mais belas produções de
todos os tempos, Winckelmann inicia suas Reflexões afirmando que o bom gosto, tema
cabe aos modernos copiar os conceitos universais para poder dar a mesma qualidade que
tem as obras gregas. Resta apenas compreender, então, como é possível essa imitação da
perfeição. Antes, porém, um breve comentário.
Winckelmann associa beleza suprema e perfeição com unidade e simplicidade, tanto
nas Reflexões quanto na História. Mas é interessante notar como na segunda obra a
justificativa dessa associação, na tentativa de explicar a causa da beleza, passa por uma
formulação do conceito de Deus. Enquanto na primeira obra ele se limita a dizer que quem
oferece a beleza sensível ao artista é a natureza, e isso toca o seu aspecto humano, e quem
propicia a beleza ideal são os rasgos sublimes, por sua vez, o aspecto divino; na História, ele
escreve que ―a beleza suprema reside em Deus‖ (WINCKELMANN, 2008, p.78) 181, e a
perfeição do conceito de beleza humana atinge a perfeição na medida em que concorda
com o conceito de Deus, pois ele é ―nosso conceito de unidade e indivisibilidade‖,
fundamental para separar o conceito da matéria. Por isso, segue ele, o ―conceito de beleza é
como um espírito arrancado da matéria mediante o fogo que trata de engendrar à imagem
da primeira criatura racional projetada pela mente dessa divindade‖. A necessidade de
argumentar e sustentar melhor os seus argumentos levou o autor à concepção de beleza
que está na filosofia de Platão. Não há nisso problema algum, mas explica porque muitos
autores vão considerar as Reflexões uma obra mais inspiradora do que a História, pois talvez
o preciosismo acadêmico tenha reduzido o vigor criativo e poético das Reflexões.
Para chegar à perfeição, que pode ser entendida também como unidade, através da
imitação do belo da natureza, seria necessário ter à disposição uma natureza realmente bela.
Nesse caso, a simples imitação da natureza garantiria o acesso à perfeição, porque se trata
de uma natureza que é bela. Porém, na modernidade, como, no entender de Winckelmann,
a natureza disposta não correspondia ao ideal de beleza, essa tarefa torna-se impossível.
Copiar a natureza, por mais habilidoso que seja o artista, é copiar a imperfeição. Portanto,
os gregos poderiam se permitir fazer cópias da natureza e ainda assim produzir uma obra
de arte bela. Mas este não é o caminho mais fácil, porque depende necessariamente de uma
mediação que é feita pela observação da natureza. Para tornar-se efetivamente perfeita, para
atingir o ideal de beleza, o artista deveria não copiar a beleza da natureza, mas encontrar o
que há de universal na natureza. A observação cotidiana da beleza fez com que os gregos
chegassem a uma noção universal do belo, que se tornou então a meta de toda produção
artística. Na seguinte passagem das Reflexões, ele sintetiza a ideia:
ambas as posições para, mais uma vez, parir outro ponto de vista. Herder e Goethe
também reconheceram a importância e a riqueza de reflexões que ela poderia gerar, e além
deles, Schiller também fez um comentário sobre a peça nas Cartas de um viajante dinamarquês,
em 1793, na qual ele concorda com o autor das Reflexões ao julgar que a forma agradável,
apesar do sofrimento, significa o triunfo da beleza sobre o horror.
Polêmicas à parte182, vejamos o que diz Winckelmann: ―Laocoonte foi para os artistas
da antiga Roma precisamente o que é para nós: a regra de Polícleto, uma regra perfeita da
arte‖. (WINCKELMANN, 2008, p.78). A ―regra de Polícleto‖183 é uma forma de exprimir
toda a proporção de cada parte do corpo humano que teve como obra exemplar o
Laocoonte, e se ele já havia afirmado que primeiro os escultores estabeleceram as proporções
do corpo humano e, posteriormente, a pintura se apropriou desse padrão, podemos
concluir que se trata de uma obra que foi modelo não apenas para os demais escultores,
mas também para todos os artistas. É nesse sentido que surge a crítica a Virgílio184, que
teria descaracterizado a expressão do rosto do sacerdote ao interpretar o seu suspiro diante
da morte inevitável como um grito amedrontador. A escultura, que segundo Winckelmann,
expressa um suspiro, deveria ser modelo para a poesia, que jamais poderia ter exagerado na
expressão de sofrimento, fazendo a face do sacerdote revelar um desespero
desproporcional para quem estaria, na verdade, afirmando o sofrimento com um semblante
mais agradável e menos desfigurado. Muito ao contrário, a escultura mostra a grandeza da
alma apesar de todo o sofrimento, e essa grandeza só pode ser transmitida por uma
expressão agradável, justificando sua calma grandeza. Isto é, a grandeza da alma do sacerdote
é tão grande que lhe permite externamente resistir às paixões e dores internas, marcadas
pela iminente morte dos filhos e pelo fim incontornável. Nas Reflexões, ele escreve:
182 A contenda gira em torno da interpretação da frase ut pictura poesis, da Arte poética de Horário, que
estabelecia que tanto a poesia como a escultura se submetessem às mesmas regras.
183 Polícleto de Argos (aproximadamente 460 a.C. e 420-410 a.C.) foi um dos mais importantes escultores da
Grécia antiga. Autor de Doríforo, escultura considerada ideal de beleza masculina, ficou muito famoso
inclusive na Roma antiga por conta de um escrito intitulado Cânone, no qual trata das regras de proporção do
corpo humano. Winckelmann se baseia nele na sua Historia, especialmente na segunda parte.
184 Ver: SUSSEKIND, Pedro. ―O grito de Laocoonte‖. Revista Itaca: Rio de Janeiro, volume 12, 2009, p. 19-
39.
Podemos concluir que, segundo Winckelmann, o Laocoonte cantado por Virgílio não
seria fiel ao nobre caráter que tanto lhe representa. Através de uma ausência de perfeição
estética – o exagero com o grito de Laocoonte – o poeta teria maculado a figura do sacerdote
e revelado seu caráter aquém do merecido. No livro II da Eneida, assim ele narra o
sofrimento do sacerdote e seus dois filhos:
Veremos mais tarde que essa disputa pela representação do caráter da personagem
ganha outra perspectiva na interpretação de Lessing. Não deixa de ficar claro, porém, o
vínculo entre ética e estética na teoria de Winckelmann.
Finalmente, o que caracteriza a sua influência em Schiller e que, de certa forma,
pretendemos apontar neste momento, pode ser resumido em dois elementos: primeiro, a
ideia de que os gregos alcançaram o ápice da produção artística de toda a história da
humanidade, pois suas obras eram ao mesmo tempo a máxima expressão da beleza e da
perfeição, e fielmente irmanadas com seu desenvolvimento político, intelectual e cultural.
Segundo, porque esse ponto culminante representa a totalidade de uma nação, de um povo,
e por isso deve ser o espelho para toda cultura que pretenda alcançar tal dimensão. Afinal, é
nesse sentido a sua pretensão em sistematizar a Grécia e sua influência sobre a cultura
ocidental. Por último, vale ressaltar que, além das condições geografias, climáticas e
naturais que permitiram a intimidade dos gregos com a beleza, a liberdade do povo grego é
outro aspecto fundamental para a plenitude dessa experiência única da história. Liberdade
esta que configurou a relação dos gregos com a natureza, a religiosidade, o
desenvolvimento da polis, da arte e da filosofia. Liberdade esta que vai nortear toda a
trajetória de Schiller enquanto homem, poeta e filósofo.
Referências Bibliográficas:
Relendo a frase final da crônica ―se eu pudesse ter esta opinião‖ temos o
entendimento de que ele gostaria de ser cético, mas não o é, encontrando-se num processo
de aprimoramento. Ao ser acusado de cético, ao melhor estilo de suspensão do juízo, não
diz sim nem não, não afirma nem nega, como quem ainda não tivesse alcançado tal estágio
literário-filosófico.
Machado, em verdade, não se defende da acusação de ser cético, mas acaba por
defender o ceticismo e sua dúvida suspensiva, na medida em que alça o ceticismo àquilo
que gostaria de ser, mas ainda não pode, mantendo-se em uma busca por tal status.
Em seus escritos, Machado mantém relação, em especial, com o ceticismo de
Michel de Montaigne185 (1533-1592) que, em seu trabalho Apologia de Raymond Sebond
colocou em xeque o dogma da superioridade da razão humana sobre a dos demais animais,
pondo em dúvida ideias antropocêntricas. Montaigne coloca em seu escrito o fato de
diversos elementos da fauna demonstrarem possuir o atributo da razão em intensidade até
mesmo superior à humana, estabelecendo a semelhança entre o homem e os demais
animais.
Ao duvidar, sem contudo negar, a exclusividade ou superioridade da razão humana,
Montaigne descreve diversos comportamentos animais que embasam seu questionamento:
185Na visão de José Raimundo Maia Neto, Machado de Assis teria firmado contato com o ceticismo ―através
de Montaigne e Pascal, e possivelmente também através de Erasmo, Voltaire, Plutarco e Luciano‖ (MAIA
NETO, 1987, p. 8).
fracassos, o ornitólogo fica confuso e até atônito por conta do raciocínio incrível da ave,
chegando ao ponto de restar claro ao leitor que o animal é mais esperto que seu dono. A
razão superior da ave acaba por colocar em dúvida a sabedoria do ornitólogo, como
também a forma do homem enxergar a natureza.
Frequentemente, a palavra metafísica é utilizada por Machado para dizer de algo
que apresenta uma aparência de seriedade e conteúdo, mas que não pode demonstrar a
verdade e certeza daquilo que está sendo dito.
Por exemplo, escrevendo sobre o que chamou de ―metafísica política‖, no conto
Teoria do Medalhão, declara que tal ferramenta ―apaixona naturalmente (...) E depois são
obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado,
formulado, rotulado, encaixotado (...)‖. (ASSIS, 1882, p. 42).
Vemos aí sua oposição à possibilidade do homem alcançar um conhecimento certo
e acabado. Como corolário, percebemos um escritor que se opõe ao dogmatismo, o que faz
por meio de críticas ao que chamamos de realidade. Em O Segredo de Bonzo, coloca: ―(...) se
uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir
na opinião, a conclusão é a de que das duas existências a necessária é a opinião, a realidade
é apenas conveniente‖. (ASSIS, 1882, p. 75).
Em alguns de seus trabalhos, Machado eleva os narradores à condição de
narradores e autores simultaneamente, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O recurso
de autor criado por outro autor conota mais um elemento do ceticismo, visto que, dessa
forma, temos em Machado a figura de um observador, alguém que não interfere nos
eventos narrados.
Ainda em Brás Cubas, o narrador, por ser um morto, tem a condição necessária para
afastar o foco de visão dos acontecimentos, não sofrendo o risco de levar-se pelos enganos
dos sentidos. Vemos a personagem rechaçando convicções dogmáticas que o perturbaram
até o dia de sua morte, posto que sua condição de defunto conferiu-lhe o distanciamento
para posicionar-se com imparcialidade, o que seria impossível para qualquer vivente.
Durante o romance, Assim como Montaigne, Machado de Assis utiliza a ironia,
com o objetivo de expressar o oposto do que quer dizer. Dessa forma, evidenciando
contradições, pode manter-se fiel à époké ou suspensão do juízo do método pirrônico.
Segundo José Raimundo Maia Neto, na obra Memorial de Aires, o ceticismo de
Machado de Assis eleva-se com a personagem Conselheiro Aires, homem que evita
julgamentos e controvérsias. O conselheiro intenta, durante toda a narrativa, manter-se em
Lembrando que conforme Sexto Empírico, compilador das ideias de Pirro de Élis,
os céticos estudam a realidade não com o objetivo de emitir opiniões, mas para ―poder
contrapor a cada proposição uma proposição de igual validade, e para obter a serenidade de
espírito‖. (EMPÍRICO, 1993, p. 58).
Ademais, o ceticismo da personagem Aires evidencia-se também por este manter-se
impassível diante das circunstâncias observadas, como quando observa o fato de que
Osório vai a Recife visitar a mãe adoentada:
Dessa forma, vemos que Aires caracteriza-se pela ponderação, simbolizando uma
verdadeira balança cética de Montaigne personificada, sempre pesando suas ações e
palavras e guiando-se por uma moral cética186.
Considerações finais
186 Montaigne, mandou cunhar uma moeda, com a legenda ―Que sais-je?‖ (―Que sei eu?‖) e uma balança
gravada com seus pratos em equilíbrio, simbolizando a suspensão do juízo.
Da leitura das obras citadas, bem como de outras187, concluímos que a filosofia
ceticista encontra-se fortemente presente no trabalho de Machado de Assis. Lembrando
que Machado não intenta escrever filosofia, e sim literatura, percebemos que se mantém
fiel à proposta, na medida em que seu ceticismo não se apresenta de modo explícito, e sim
como que paliado por diversos véus, como a ironia, o pessimismo e as atitudes e
pensamentos de suas personagens. Tal dissimulação, que nos leva a um prazeroso exercício
mental investigativo, também obriga a manter a dúvida por mais tempo, o que,
considerando o brilhantismo do autor, pode constituir-se em artifício para que o leitor, no
exato momento em que lê, assuma uma postura cética, que muito bem pode fazê-lo ampliar
a pergunta para: ―Somos céticos?‖.
Referências Bibliográficas:
RESUMO: Este estudo teve como principal questão demonstrar a relação divergente entre
dois projetos teóricos de Michel Foucault a respeito da cientificidade da psicologia. Trata-se
da análise de sua primeira obra em confronto com um artigo publicado três anos mais
tarde. Propõe-se a demonstrar, principalmente, a mudança e construção de pensamento do
autor: primeiramente em defesa da ciência psicológica, posteriormente acusando a falta de
mérito científico da psicologia. Da mesma forma, expõe as posições adotadas pelo autor
em relação à psicologia nos dois momentos, bem como seus argumentos para sustentar e
desenvolver seus diferentes propósitos, as quais conclusões ele chega e como tais são
divergentes.
Palavras-chave: Arbitrariedade científica da psicologia. Devir da psicologia. Negatividade
humana. Pesquisa científica.
188 Opta-se pelo uso do termo metapatologia entre aspas para manter o uso que o autor faz do conceito. Este
termo, cunhado por Foucault, abrange uma patologia universal e abstrata que reúne a patologia mental à
orgânica sob os mesmos conceitos e métodos.
189 As citações de ―Doença Mental e Personalidade‖ foram traduzidas pelo Prof. Ms. Thiago Ribas, docente
estudo. E é essa alternativa da psicologia ser, por sua própria vontade, científica ou não,
que a afasta das outras ciências e permite o questionamento sobre um existir verdadeiro ou
falso da psicologia.
Considerando essa arbitrariedade científica da psicologia, pode-se perguntar sobre
como se dá esse processo de escolha da racionalidade e como a psicologia dá a si mesma
esse caráter verdadeiro de ciência. Buscando responder a essas questões, Foucault evidencia
uma transformação de seu pensamento em relação à verdade da psicologia desde sua
primeira obra em 1954: ela já não busca mais um solo seguro para que a mesma
desenvolva-se como ciência, mas sim como ela veio a ser aceita como tal em nossa
sociedade.
Não é a ciência que toma a forma de uma pesquisa, mas a pesquisa que, na
entrada do jogo, opta ou não pela ciência. Logo, é da pesquisa que é
preciso uma explicação sobre a ciência; trata-se de encará-la não como
uma pesquisa no espaço de uma ciência, mas como o movimento no qual
se pesquisa uma ciência. (FOUCAULT, 1957, p.3).190
190As citações de ―A Pesquisa Científica e a Psicologia‖ foram traduzidas pelo Prof. Ms. Thiago Ribas,
docente adjunto do curso de filosofia da UFPR.
mesmo tempo em que o primeiro se constrói a partir do segundo. A pesquisa surge aqui
mais como um ato de desvio por meio do qual o conhecimento fundamentado se acha em
colapso e é anulado. Sua nulidade se dá em razão de uma limitação da ciência a seu objeto
por uma desarmonia. Esta última é responsável por fazer da ciência não mais uma esfera
problemática da pesquisa, mas o alvo da sua análise.
Dessa forma, o avanço na pesquisa psicológica não é uma etapa dentro da evolução
da ciência. É uma abolição eterna das formas instituídas do saber, sob o aspecto duplo de
uma desmistificação que evidencia, intrinsecamente, à ciência um procedimento
psicológico, e de uma limitação do saber estabelecido ao objeto que pontua o estudo.
A atividade por meio da qual a pesquisa psicológica caminha de encontro a ela
mesma não expõe o ação epistêmica ou histórica da falha científica, mas é porque não
existe falha, não existe erro na psicologia, e sim ilusões. Assim, a função da pesquisa
psicológica não é ir além do erro, visando um progresso na ciência inserido no princípio
universal da realidade, mas sim de desmistificar as ilusões, afastar o mito através de um
raciocínio claro e efetivo.
Entretanto, nesse aspecto, Foucault alerta para a semelhança com a História: na
pesquisa histórica ―a superação do erro não se realiza somente como a dialética própria do
saber histórico; é assegurada por uma redução para o movimento do objeto histórico em si
mesmo‖. (FOUCAULT, 1957, p.7). Todavia, se a ciência histórica evolui por
desmistificações consecutivas, é por meio de uma captura de consciência constante de sua
condição memorável como cultura, como técnica, e suas capacidades de reforma e agir
reais sobre a História. O julgamento dessa, por ela mesma, tem um intuito de fundamento,
enquanto a crítica da psicologia, a partir da psique, sempre assume uma forma de negação.
O elo entre a verdade psicológica e suas ilusões só pode ser negativo, pois a
psicologia não alcança em seu objeto de estudo, a psique, nada além do elemento de sua
própria crítica. Ademais, a construção da positividade psicológica é cedida pelos insucessos
e fracassos das condutas humanas. Como nos estudos da psicometria, que descendem de
trabalhos sobre o atraso cognitivo ou na criação da ética do amor em contraposição ao
pecado.
Em outras palavras, a psicologia reivindica sua cientificidade através dos fracassos
humanos. Sendo assim, toda a sua positividade só pode derivar de uma oposição ao que se
entende por negativa humana. Por essas razões, Foucault caracteriza a pesquisa psicológica
em sua vocação e origem como ―crítica, negativa e desmistificadora‖. (FOUCAULT, 1957,
p.8).
Referências Bibliográficas:
Vitor L. P. Diogo
Mestrado de Filosofia Unioeste Campus- Toledo/Bolsista CNPQ
vitorel@hotmail.com
Prof. Dr. Remi Schorn
RESUMO: Este artigo aborda a relação entre objetividade e linguagem estabelecida por
Karl Popper. Uma ligeira distinção entre objetividade e subjetividade é apresentada como
antessala para dissertar sobre a linguagem. Mecanismo utilizado por todos os animais: a
linguagem – é compreendida por Popper como um elemento importante no
reconhecimento do mundo e de si. O homem, contudo, transcendeu todos os organismos
vivos no que concerne a comunicação. É justamente na aplicação de uma linguagem com
elementos distintos dos outros animais, que o homem desenvolve a objetividade. Longe de
ser uma lei da natureza por nós obedecida, a objetividade foi, a muito custo, criada e
desenvolvida pela mente humana. Por isso, a objetividade não deve garantir a infalibilidade
do conhecimento, mas antes garantir a possibilidade de seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Objetividade; Linguagem; Interação.
Por mais intenso que seja um sentimento de convicção, ele jamais pode
justificar um enunciado. Assim, posso estar inteiramente convencido da
verdade de um enunciado, estar certo da evidência de minhas
percepções; tomado pela intensidade de minha experiência, toda dúvida
pode parecer-me absurda. Mas estaria aí uma razão qualquer para a
ciência aceitar meu enunciado? (...)A resposta é ―não‖, e qualquer outra
resposta se mostraria incompatível com a ideia de objetividade científica.
(POPPER, 1972, p. 48).
qualquer instância objetiva, deve ser desconsiderado qualquer argumento que não busque
justificar a validade ou falsidade de um enunciado no plano da objetividade.
Popper reconhece como um primeiro passo rumo a distinção entre o
conhecimento objetivo e processos mentais a concepção de linguagem sustentada pelos
Estóicos, afirma Popper que estes compreenderam a diferença ―entre o conteúdo lógico
objetivo do que estamos dizendo e os objetos acerca dos quais estamos falando.‖
(POPPER, 1975, p.154), e é nesta distinção que a realidade do Mundo 3 pode ser
concebida como uma explicação para além do problema corpo-mente. Uma diferenciação
do que se pode considerar conhecimento objetivo do que é subjetivo.
Esses objetos, por sua vez, podem pertencer a qualquer dos três
mundos: podemos falar primeiro acerca do mundo material (...), ou
também acerca de nossos estados mentais subjetivos (...), ou ainda acerca
sua personalidade se efetivam. Essa relação entre os três mundos compõe não somente
uma perspectiva de produção de conhecimento objetivo, isolando o ―eu‖ a uma concepção
pré-formada, isto é, estrutura existente de maneira a priori a qualquer construção cognitiva
do homem. Compreender a influência que o Mundo 3 ou plano do conhecimento objetivo
exerce nos outros mundos é cogitar o ―eu‖ como algo influenciável pelos objetos do
Mundo 3. Os processos mentais não atuam como uma instancia isolada cuja função seja a
de somente produzir os objetos do Mundo 3 sem ser afetado por eles. O interacionismo
em que os três mundos se encontram imersos, partindo das considerações de Popper,
redundam em uma interferência mutua entre todos os mundos. Sendo assim, o ―eu‖ por
estar imerso em uma relação de influências também é influenciado, ou seja, transformado.
Esta mutação garante a capacidade de transformação dos processos mentais e, com isso, do
―eu‖.
A linguagem se configura, desta forma, como o objeto do Mundo 3 de grande
relevância na transformação dos Mundos 1, 2 e nos próprios objetos do Mundo 3. Esta
característica da linguagem, porém, é diferenciada por Popper como uma elaboração
particularmente humana e suas implicações se desenvolvem em um contexto humano. A
fim de compreender de que maneira a linguagem objetiva pertence ao modo do homem
interpretar mundo, Popper distingue a linguagem em quatro diferentes níveis. Os dois
primeiros são: a) linguagem auto expressiva e b) a linguagem sinalizadora, estes dois níveis
da linguagem pertencem a todos os animais indistintamente. Linguagem auto expressiva
funciona de forma automática, como um sintoma que se expressa no próprio sujeito que a
aciona, ou como define Popper, sintomática. A linguagem sinalizadora é compreendida
como um sintoma que provoca resposta em outro organismo. (Cf. POPPER, 1975). Após
a distinção destas duas classes de linguagem, Popper continua, expondo as funções da
linguagem que ele considera pertencentes aos Homens ―As duas funções superiores mais
importantes das linguagens humanas são (3) a função descritiva e (4) a função
argumentativa.‖ (POPPER, 1975, p.121). A distinção apresentada por Popper tem como
finalidade caracterizar o que deve ser concebido como linguagem objetiva, esta que é
produto da mente humana e que tem efeito nos processos mentais e físicos. Popper
reconhece que a linguagem é uma instância de comunicação que se efetiva entre alguns
animais, e que estas mesmas instâncias, denominadas por ele como inferior, pertencem ao
homem, porém, a distinção do homem frente a outras espécies de animais esta na
capacidade de desenvolver uma instância linguística que Popper denomina superior frente a
linguagem auto expressiva e a sinalizadora. São elas: a função descritiva e a função
191 A naturalidade vista como uma determinação biológica é refutada por Popper na 15ª seção da Obra
Conhecimento Objetivo. O Autor toma como conceito antagônico a consequência do Darwinismo que seria um
reflexo- condicionado que possibilitaria a mutação física.
Referências Bibliográficas:
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento Objetivo. Tradução de Milton Amado, São Paulo,
Editora Cultrix, 2ª edição. 1975.
___________. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny
Silveira da Mota. São Paulo-SP. Editora Pensamento-Cultrix LTDA. 1972.
POPPER, Karl Raimund; ECCLES, John C. O Eu e Seu Cérebro. Tradução de Sílvio
Meneses Garcia, Helena Cristina Fontenelle Arantes e Aurélio Osmar Cardoso de Oliveira.
Campinas: Papirus; Brasilia: UnB, 1995.
Wagner Hoffmann
UNIOESTE
wagner_hoffmann@hotmail.com
do prazer‖ (JUNGES, 2003, p. 174). A dor tornou-se uma palavra proibida, a morte tomou
um novo rosto, o cadáver é maquiado para que não apresente traços de dor ou sofrimento.
A artificialidade da vida é tomado como natural.
Em um período anterior, criava-se o produto para atender a necessidade das
pessoas e proporcionar uma melhor condição de vida. Na sociedade hodierna criando
primeiro o produto e depois o consumidor é induzido ao consumo. Adela Cortina afirma
sobre a sociedade hodierna consumista que:
A Bioética surge em contraposição a tudo isto, como uma resposta a toda essa
problemática buscado resgatar o valor e a dignidade da pessoa, um consumo consciente e
responsável, pois a pessoa sendo o centro da Bioética é fortemente atingida por esta crise
de sentido ético presente na cultura de época em que vive.
Foram vários os aspectos que contribuíram para o nascimento da Bioética . Em
primeiro plano nos perguntamos o que é esta expressão ou vocábulo ao qual intitulamos de
Bioética? Ramón Lucas Lucas (2002) vai defini-la como formado de duas palavras de
origem gregas bios que significa vida e éthos que significa costumes, do qual pode-se defini-la
como ética da vida, a ciência que regula a conduta humana no campo da vida e da saúde à
luz dos valores e princípios morais racionais. Este foi um termo cunhado por Van
Rensselaer Potter em 1970.
Segundo Sgreccia, para Potter, a Bioética pode ser como uma ponte que une a ética
e a biologia, os valores éticos e os fatos biológicos para a sobrevivência do ecossistema
todo. A Bioética tem a tarefa de ensinar como usar o conhecimento em âmbito científico-
biológico. (SGRECCIA, 2002).
Darlei Dall‘Agnol (2005), apresenta a definição da primeira Enciclopédia de
Bioética como a mais precisa para definir o neologismo Bioética, que de acordo com sua
primeira edição seria um estudo ordenado da conduta humana no campo de ação das
ciências da vida e da saúde analisados à luz dos valores e princípios morais.
(DALL‘AGNOL, 2005, p. 9).
A Bioética personalista tem forte influencia de uma corrente filosófica chamada
personalismo. Cugini afirma que ―O ‗Personalismo Comunitário‘ tornou-se assim uma
filosofia, fruto de uma longa e atenta reflexão à condição de pessoa no caminho da história,
na escuta constante do ―evento‖ do tempo presente‖. (CUGINI, 2008, p.53).
O modelo personalista está centrado na pessoa humana, diferentemente do modelo
ontológico que tem, como ponto de partida, a felicidade. É diverso, também, dos modelos
deontológico e utilitarista, que tem respectivamente, como ponto de partida, a autonomia e
a democracia. O modelo personalista parte da pessoa como um ser real e concreto.
(DURAND, 2007).
O personalismo reflete sobre a pessoa desde o nascimento até o fim da vida. Sendo
assim, por exemplo a partir da concepção, o embrião gerado já é para a bioética
personalista, uma pessoa humana, e pelo fato de ser pessoa, possui uma dignidade que lhe é
própria e peculiar, conforme estabelece Sgreccia:
A pessoa é um todo é não uma parte. Em toda pessoa está contido um sentido do
universo e, todo o valor da pessoa humana. O ser humano possui uma capacidade
intelectiva que lhe é própria e que lhe possibilita refletir sobre o ambiente em que vive,
sobre a realidade, sendo uma capacidade de refletir sobre si mesmo. Sgreccia destaca que:
A capacidade de reflexão faz com que o homem seja capaz transmitir sua cultura,
de desenvolver-se e modificar o ambiente em que vive, expressando através da linguagem a
realidade do tempo presente e criar mundos através da literatura e da poesia. Muitos seres
possuem vida, tanto no reino animal, como no reino vegetal. Porém, somente o homem
tem a capacidade de dar um sentido ao seu ser e a sua existência.
Sgreccia vê a pessoa não por uma ótica dualista, mas por uma ótica de unitotalidade
pois, para o autor, não existe uma separação entre alma e espírito na pessoa humana.
Esta postura da Bioética Personalista instituída por Elio Sgreccia, está arraigada na
pessoa humana, o que significa dizer, também, que a pessoa é o conceito essencial para a
avaliação e compreensão dos dilemas bioéticos da sociedade hodierna.
A pessoa não pode ser vista apenas por um viés, é uma totalidade, não é somente
racional, é um ser que sente, que reflete, que ama, que possui uma dimensão de
religiosidade, de transcendência. Um ser que tem liberdade mas, uma liberdade com
responsabilidade, por ela mesma por sua individualidade, pelo seu corpo, mas também
responsabilidade pelos outros pelo mundo em que vive, pois, não vive sozinha, mas em
comunidade, na qual influencia e é influenciada por outras pessoas. A esta magnitude que
por mais que encontremos adjetivos para defini-la podem faltar palavra, a esta maravilha
que simplesmente chamamos pessoa.
Por conseguinte, A coisificação da pessoa consiste na mais brutal forma de agressão
à mesma, pois não se trata de uma agressão direta à pessoa no sentido físico, mas uma
agressão ontológica, uma agressão a aquilo que é próprio do ser da pessoa. O ser da pessoa
vem antes do ter, é necessário que antes seja pessoa para que depois tenha algo.
Necessariamente deve-se antes ser para depois ter. Primeiramente es depois tens, precisa-se
existir para ter. Dentro do processo de desumanização ou de coisificação inverte-se o
processo do eu e passa-se a ser aquilo que tens, este é o espírito de época consumista que
gera uma forte crise de sentido os valores da bioética personalista surgem como uma
possível resposta a crise de sentido vivida pela sociedade.
Referências Bibliográficas:
CORTINA, A. Ética na era do consumo. In.: Vários. Bioética em tempo de incertezas. São
Paulo; Universidade São Camilo: Loyola, 2010.
CUGINI, P. PERSONALISMO E PASTORAL: De uma abordagem filosofia à ação pastoral.
In.: VÁRIOS. Revista Eclesiastica Brasileira. Fasc. 269. Janeiro 2008 – Vol. LXVIII.
Petrópolis: Vozes, 2008.
DALL‘AGNOL, D. Bioética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins fontes, 2000.
DURAND, G. Introdução geral à bioética: história conceitos e instrumentos. (tradução) Nicolás
Nyimi Campanário 2 ed. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007.
JUNGUES, J. R. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
LUCAS, R. L. Bioética per tutti. Milano: San Paolo, 2002.
SGRECCIA, E. Manual de Bioética I. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2002a.
___________. A Lógica da Pesquisa Científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny
Silveira da Mota. São Paulo-SP. Editora Pensamento-Cultrix LTDA. 1972.
Manual de Bioética II, 2 ed. São Paulo: Loyola, 2002b.
Zaira Canci192
UPF/FAPERGS
zairacanci@yahoo.com.br
Orientador: Prof. Dr. Cláudio Almir Dalbosco
RESUMO: Este ensaio reconstrói brevemente o texto Kantiano ―Resposta à pergunta: Que
é esclarecimento?‖ com o intuito de analisar as contribuições kantianas ao pensamento do
filósofo Theodor W. Adorno, especialmente à sua concepção de maioridade. A
reconstrução analisa brevemente a ideia de uso público da razão como condição à
maioridade e procura elucidar a compreensão adorniana de maioridade amparada na noção
kantiana como objetivo nuclear da formação com vistas á democracia. Adorno elucida a
necessidade da autonomia, da sapere aude, quando afirma que uma democracia repousa na
vontade de cada um. Deste modo, recupera a maioridade kantiana assumindo o sentido
eminentemente político da educação.
Palavras-chave: Esclarecimento, Maioridade, Sapere Aude, Educação.
discurso, como fazia inicialmente, afirmando que o iluminismo é a saída, mas prescreve. O
que se observa pela própria compreensão do lema. A sapere aude é uma máxima, um
preceito. Nas palavras de Foucault ―(...) uma ordem que é dada aos outros, que é dada a si
mesmo (...)‖ (2010, p. 28). A sapere aude é o núcleo referencial para o sujeito enfrentar sua
própria fragilidade representada pela sua preguiça e covardia.
O filósofo admite que somente o homem é capaz, por si só, de sair do estado de
menoridade. Mesmo que haja indivíduos, por ação própria, supostamente capazes de
libertar os demais do estado de menoridade. Assim afirma ele: ―Pois encontrar-se-ão
sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio (...)‖. (KANT, 1985, p. 102). Tais
indivíduos, por sua vez, se apossariam da direção dos outros e, portanto, não seriam
legitimamente maiores e não conduziriam verdadeiramente a maioridade alguma. ―Ora (...)
esses indivíduos não são capazes na realidade de fazer a humanidade sair da sua
maioridade. (...) precisamente porque eles começaram pondo os outros sob sua própria autoridade
(...)‖. (FOUCAULT, 2010, p. 33, grifos nossos).
Pelos três exemplos (o livro, o diretor de consciência e o médico) Kant propõe uma
análise a respeito do que é propriamente a menoridade. Nesta relação o filósofo trata do
entendimento, especificamente do que fazer como o entendimento, sobre seu uso legítimo
e os seus limites. Essa relação demonstra a preocupação do filósofo a respeito da forma
mais legítima de se empregar a razão. A problemática central gira em torno da questão que
se estabelece entre o uso que se dá da própria razão e a direção dos outros. O ponto
nuclear está na distinção que Kant faz entre uso público e uso privado da razão.
Para saber como é possível a Aufklärung e a maioridade é preciso analisar em
detalhes como a menoridade funciona. E, de acordo com Kant (apud FOUCAULT, 2010,
p. 33) ―(...) o estado de menoridade se caracteriza pela constituição (...) de dois pares
indevidos e ilegítimos: (primeiro) o par obediência e ausência de raciocínio; segundo, o par,
ou pelo menos a confusão entre duas coisas que devem ser distinguidas: o privado e o
público. O emprego público da razão, neste sentido, é condição ao esclarecimento. Ter
coragem – sapere aude – de fazer uso do próprio entendimento nada mais é que fazer uso
público da razão‖.
Para o primeiro par – obediência e ausência de raciocínio – Kant desenvolve três
exemplos. São eles: ―O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama:
não raciocineis: mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (...)‖. (KANT,
1985, p. 104). Pensam que para haver obediência não pode existir raciocínio, porém é
preciso compreender em que sentido a obediência assim como o uso da razão são
legítimos.
No segundo par – do uso privado e do uso público – Kant exige a liberdade como
condição ao uso público da razão. ―Para este esclarecimento (...) nada mais se exige senão
LIBERDADE (...) a de fazer uso público de sua razão em todas as questões‖. (KANT, 1985,
p. 104, grifo do autor). A liberdade é a condição para que o público esclareça a si mesmo,
fazendo uso público da razão.
O uso privado da razão ocorre, por exemplo, quando somos elementos de uma
sociedade ou de um governo. Quando se desempenha qualquer atividade profissional tanto
em cargos privados como em cargos públicos. O uso que se faz das faculdades quando se é
funcionário, quando se pertence a uma instituição, a uma religião ou corpo político é
privado. Conforme Foucault: ―Somos as peças de uma máquina, situados num lugar dado,
(com) certo papel preciso a desempenhar, enquanto há outras peças da máquina que têm
outros papeis a desempenhar‖. (FOUCAULT, 2010, p. 35). Neste caso, é legítimo
obedecer, pois se foi contratado para este fim.
No uso público Kant faz uma distinção maior, introduzindo o conceito de erudito
ou sábio. ―Entendo, contudo, (...) o (...) uso público de sua própria razão aquele que
qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado‖
(1985, p. 104). O uso público da razão se faz quando o sujeito torna-se um sujeito
universal, ou seja, quando, enquanto seres racionais, nos dirigirmos aos demais seres
racionais. Esta atividade é por excelência a atividade desempenhada pelo escritor que se
direciona ao público. Essa dimensão do universal abriga a função do entendimento, que é
de ser de domínio público e simboliza a sapere aude.
O filósofo chama atenção para o fato que não é aconselhável, no uso privado,
desobedecer, ainda mais se as ordens são legítimas, mas que enquanto cidadãos todos são
chamados a fazer, não apenas uso privado, mas principalmente uso público da razão.
Portanto, é preciso que se distingam as situações oportunas para cada uso. Dalbosco
elucida a questão da seguinte forma: ―O ponto decisivo disso tudo é que como cidadão o
indivíduo é exigido emitir juízo crítico e qualificado sobre coisas, inclusive sobre aquelas
que dizem respeito ao uso privado da própria razão‖. (DALBOSCO, 2011, p. 95). Nesse
caso, o que habilita o sábio, o erudito ou o escritor a fazer uso público da razão é a
capacidade de discernir o que é aceitável ou inaceitável em qualquer doutrina, lei ou ordem
política.
4. Considerações finais
respeito do que fazer como o entendimento, sobre seu uso legítimo e seus limites, sobre o
uso privado e público da razão. O filósofo destina tempo, espaço e exemplos em seu ensaio
para elucidar claramente a distinção entre o uso privado e o público da razão, de modo que
se subtende como essencial à compreensão da maioridade a distinção entre os dois usos da
razão.
A maioridade se estabelece na relação entre o uso público e o privado, mais
propriamente no uso público da razão. Adorno pensa em uma educação à democracia e
para isso se ampara no conceito de maioridade de Kant, pois toma a emancipação como
exigência primeira à democracia, entendendo que uma democracia se faz apenas com
homens maiores, ou seja, capazes de pensar e fazer uso do seu próprio entendimento.
Retoma, deste modo, a sapere aude kantiana fazendo alusão direta a necessidade da
autonomia, pois a democracia repousa na formação da vontade de cada sujeito. A sapere
aude que significa coragem de fazer uso do próprio entendimento se expressa no uso
público da razão. Os indivíduos com aptidão e coragem em se servir de seu próprio
entendimento estarão aptos para discutir e refletir criticamente o progresso da comunidade
o que faz referência a ideia de uso público da razão kantiana. Adorno ressalta em seus
debates sobre educação e formação que o objetivo primordial da educação deve residir na
promoção da maioridade e da autonomia, ou seja, na superação da menoridade, pois a
interferência nos assuntos políticos demanda uma consciência da própria maioridade.
Referências Bibliográficas: