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DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Editora Universidade Positivo


Curitiba | Paraná | Brasil
2014
Carlos Alberto Richa ORGANIZADORES
GOVERNADOR Eduardo Faria Silva
José Antônio Peres Gediel
Flávio Arns Silvia Cristina Trauczynski
VICE-GOVERNADOR
Revisão:
Claudiomiro Vieira-Silva
Maria Tereza Uille Gomes
SECRETÁRIA DE ESTADO DA JUSTIÇA, Assistente de Pesquisa e Organização:
CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS Kellyana Bezerra de Lima Veloso

Capa:
Leonildo de Souza Grota
Ana Carolina Gomes
DIRETOR GERAL DA SEJU
Fotos:

Regina Bergamaschi Bley Denis Ferreira Netto

DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE
Diagramação e Editoração:
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA
Agência Experimental Practice | Letícia Corona e Ricardo Macedo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca da Universidade Positivo - Curitiba - PR
José Pio Martins
REITOR DA UNIVERSIDADE POSITIVO D598
Direitos humanos e políticas públicas / organizadores, Eduardo
Arno Antonio Gnoatto Faria Silva, José Antônio Peres Gediel, Silvia Cristina
Trauczynski. Curitiba : Universidade Positivo, 2014.
PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO
432 p. : il.

Márcia Sebastiani ISBN 978-85-8486-037-1


PRÓ-REITORA ACADÊMICA
1. Direitos humanos. 2. Políticas públicas. 3. Sociedade I. Silva,
Roberto Di Benedetto Eduardo Faria. II. Gediel, José Antônio Peres. III. Trauczynski,
Silvia Cristina. IV. Título.
COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO
CDU 342.7
DA UNIVERSIDADE POSITIVO
Sumário

Apresentação - Maria Tereza Uille Gomes

FUNDAMENTOS, UNIVERSALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO NAS FRONTEIRAS DA JUSTIÇA


11 Direitos Humanos: fundamentação transmoderna 207 Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana
Celso Luiz Ludwig Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

37 A Fragmentação da proteção contemporânea dos direitos humanos econômicos, 223 O Projeto de Lei do Senado N° 236/2012 e o Retorno do Direito Penal do Autor:
sociais e culturais: uma análise a partir do cenário estadual crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros
paranaense de proteção Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
Melina Girardi Fachin
245 Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?
51 Direitos Humanos e Arte: diálogos possíveis para uma Episteme Efraín Peña
Leandro Franklin Gorsdorf
263 Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível
67 Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura democrática, Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso
autonomia e ensino jurídico
Eduardo C. B. Bittar 281 O Lugar do Paraná no Fluxo Contemporâneo das Migrações Internacionais
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
85 Educação em Direitos Humanos
295 Porque o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas
Thiago Assunção
Eduardo J. Vior

HORIZONTES DA DEMOCRACIA E DA JUSTIÇA


IDENTIDADE, DIFERENÇA E CIDADANIA
99 A justiça de transição e o Brasil: breve relato
Vera Karam de Chueiri 311 Um Estatuto para a diversidade sexual
Maria Berenice Dias
111 Justiça Restaurativa como Direitos Humanos: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas 331 Estado, Sociedade e as Políticas Públicas para as Mulheres
Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal Regina Bergamaschi Bley

131 Círculos de Diálogo: base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos 351 Igualdade racial e territórios tradicionalmente ocupados por quilombolas
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
Marcelo L. Pelizzoli
371 O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a
153 Os Dois Pratos da Justiça Internacional: vencedores e Vencidos
descolonialidade da justiça nas religiões afrobrasileiras
Larissa Ramina e Moacir Iori Junior
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
173 Breve Análise da Representação Política Face à Implementação da Defensoria
413 Políticas Públicas, Direitos Humanos e Cidadania em Relação à Água: o caso do
Pública do Paraná
Programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional
Ana Zaiczuk Raggio
Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich
191 A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli
Apresentação A natureza das atribuições do DEDIHC requer, assim, um diálogo atento com as
O livro que ora apresentamos resulta do conjunto de atividades desenvolvidas formulações teóricas, que orientam a elaboração de políticas, planos, propostas,
pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos - SEJU, com relatórios e outros documentos oficiais de caráter informativo e prescritivo. É
a finalidade de aprofundar o debate e fomentar a implementação de políticas nesse contexto que o livro ora apresentado, “Direitos Humanos e Políticas
públicas de Direitos Humanos e Cidadania, no Estado do Paraná. Públicas”, vem servir de instrumento de reflexão aprofundada sobre esses temas
e expor as questões mais candentes e as políticas em curso, no Estado do Paraná.
Para a execução dessas atividades esta Secretaria teve sua estrutura alterada,
por meio do Decreto 5.558/2012 e, posteriormente, pelo Decreto 10.714/2014, O livro é produto de um esforço comum de todos os servidores do DEDIHC, que
que definem o campo de atuação desta Pasta e afirmam que a política deve estar em seus afazeres específicos contribuem para dar corpo às políticas públicas, sem
focada no respeito à dignidade humana. descuidar do diálogo com a sociedade civil.

No plano institucional foi criado o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania A obra resulta, também, da relação permanente com as universidades e seus
- DEDIHC, substituindo a Coordenadoria de Direitos da Cidadania (CODIC), pesquisadores, em especial, com a Universidade Federal do Paraná e com
anteriormente responsável pela consecução dessa política. Essa alteração não a Universidade Positivo, que firmaram Termos de Cooperação Técnica com
é banal, pois além de ampliar e reforçar a estrutura administrativa destinada esta Secretaria, para permitir a aproximação e participação de professores e
a formular e tornar efetivos os direitos humanos e os direitos de cidadania, estudantes, nos espaços de formulação de políticas públicas, conferências e
na esfera estatal, retira da invisibilidade essas questões e as coloca em pé de comitês, e o exercício da cidadania entre seus estudantes, possibilitando-lhes
igualdade com as demais atribuições a cargo da SEJU, quais sejam: a gestão do acompanhar detidamente a formulação de instrumentos de defesa de direitos.
sistema penitenciário, a defesa do consumidor e a execução de políticas públicas A Universidade Positivo é partícipe, de maneira especial, com o esforço intelectual
sobre drogas. e organizativo dos professores Roberto Di Benedetto, Coordenador do Curso de
Essa estrutura de políticas públicas específicas articula-se internamente, pois o Direito, e Eduardo Faria Silva, professor titular da disciplina de Política, Estado e
sistema penitenciário requer uma atenção especial no tratamento dos direitos Constituição, esforço esse que se amplia com a participação de outros professores
humanos dos apenados e dos servidores públicos responsáveis pelo seu que se agregam a este projeto de cooperação interinstitucional.
funcionamento, do mesmo modo que, a defesa do consumidor se constitui hoje O apoio da Universidade Positivo encontra na figura do seu Magnífico Reitor,
em um dos aspectos mais relevantes dos direitos do cidadão. José Pio Martins, o entusiasmo e o dinamismo que tornaram possíveis a edição e
Para além das atribuições inerentes à SEJU, o DEDIHC tem o encargo de incentivar, impressão da presente obra.
promover, apoiar e organizar a formulação das políticas públicas de direitos
humanos e cidadania, por meio de um diálogo permanente com a sociedade
civil e suas instâncias de participação democrática organizadas sob as formas
de conselhos, comitês, comissões e grupos de trabalho. Cabe, ainda, ao DEDIHC
organizar e promover as Conferências Estaduais de Direitos referentes às várias
políticas setoriais, e assegurar a participação dos representantes da sociedade
civil e do Estado do Paraná, nas Conferências Nacionais.
A formulação de Planos Estaduais, que detalham e atribuem responsabilidades aos
órgãos estatais, pelas políticas setoriais, também fica a cargo desse Departamento.
Curitiba, 2014.
A par disso, o DEDIHC é responsável e compartilha a responsabilidade com outras
instituições e entidades da sociedade civil pelo funcionamento de Centros de Maria Tereza Uille Gomes
Referência de Direitos. Secretária de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos
Cabe destacar a participação do DEDIHC para a implementação de ferramentas
de gestão de políticas públicas, como a que vem sendo desenvolvida por esta
Secretaria denominado Business Intelligence (BI), que consiste no processo de
coleta, organização, análise, compartilhamento e monitoramento de informações
que oferece suporte à gestão de políticas públicas e permite a interação com a
sociedade.
Celso Luiz Ludwig

FUNDAMENTOS, UNIVERSALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna

Celso Luiz LUDWIG1

Os Direitos Humanos, em especial no aspecto da fundamentação,


ocupam lugar de algum destaque na reflexão filosófica latino-americana,
entre tantos outros temas importantes. A seguir apresento possível
enfoque do tema.
Antes de mais nada, no entanto, cabe perguntar se é possível uma
fundamentação nessa época de perplexidade, de pluralismo e de
fragmentação? Ou então, em tempos de afirmação do multiculturalismo
e da pluralidade das tradições, ou até mesmo de ceticismo mais extremo,
faz sentido investigar a possibilidade e também a necessidade de uma
fundamentação última e pós-metafísica?

1.A delimitação filosófica


O tema será apresentado no contexto teórico da disputa de alguns
dos principais modos do pensamento filosófico atual. A estratégia
argumentativa situa o tema no amplo contexto dos grandes paradigmas
da filosofia ocidental e, também, com as chamadas grandes condições ou
projetos de mundo, para a partir daí enfrentar a questão da fundamentação
dos Direitos Humanos. A proposta arquitetônica do tema será apenas
indicativa porque um tratamento mais analítico ultrapassaria o objetivo
e o limite deste texto.
1.1. Assim, o primeiro critério de demarcação teórica situa o tema no
contexto da análise paradigmática. A classificação vem de Habermas que
menciona o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de
paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas
com o auxílio de ser, consciência e linguagem”2. Providencial e justo
reclamo provém da Filosofia da Libertação, no sentido da inclusão de um
quarto paradigma, denominado por Dussel de paradigma da vida concreta
de cada sujeito como modo de realidade – ou paradigma da vida concreta,
ou ainda, simplesmente paradigma da vida. Com essa inclusão, a divisão
das épocas históricas da filosofia ficaria sugerida com o auxílio de ser,
1
Professor de Filosofia do Direito da UFPR e da Uninter. Procurador do Estado do Paraná.
2
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 21-22.p. citO

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

consciência, linguagem e vida concreta. Metodologicamente, é prudente situações. Portanto, trata-se de uma noção de senso comum, cujo uso é
ter em conta que tal mudança paradigmática deve, no entanto, ser frequente, até mesmo nas situações mais corriqueiras. Não é diferente na
entendida no sentido da suprassunção (Aufhebung) hegeliana3, e não na produção do saber acadêmico ou científico, em especial para mencionar os
ótica de um processo natural de simples extinção das teorias precedentes fundamentos da ciência, das premissas, dos postulados dessa ou daquela
substituídas pelas novas. Nesse quadro da filosofia, a demarcação tese. Ocorre o mesmo quando o assunto está no campo da filosofia. Essa
teórica do nosso tema da fundamentação dos Direitos Humanos indica palavra, noção, categoria ou conceito acompanha, para afirmá-la ou refutá-
uma argumentação que será paradigmática, e a escolha recai sobre o la, de algum modo a história da filosofia desde seu início, com os pré-
paradigma da vida concreta de cada sujeito como modo de realidade. socráticos até nossos dias. Os significados desse uso são os mais diversos;
Ou seja, a reflexão se dará no contexto dos argumentos e categorias do impossível seria inventariá-los, o que seria de todo modo inútil, talvez.
paradigma da vida. No entanto, de maneira geral, com as virtudes e vícios epistemológicos
que daí decorrem, os significados mais recorrentes de fundamento e de
1.2. Por fim, o segundo critério de demarcação teórica leva em
fundamentação podem ser mapeados paradigmaticamente. A finalidade
conta a condição ou o projeto de mundo que está em jogo. Com isso,
seria a de reunir argumentos que possam indicar o estado da arte nesse
queremos significar que ao atual debate, ainda centrado nas fronteiras
particular em tempos atuais, e a partir dessa moldura pensar o sentido
que delimitam a modernidade e a pós-modernidade, são necessárias
do tema, ou então sua falta de sentido, na sugestão dos tempos, que
também orientações que provêm tanto de um projeto pré-moderno (são
talvez não sejam mais tão modernos assim. Acredito que o procedimento
as inúmeras tentativas filosóficas, por exemplo, que tentam reconstruir o
metodológico que segui é um caminho possível - como se vê adiante -,
sistema-mundo desde as premissas da filosofia do ser, inclusive no campo
sem prejuízo de outros tantos. Creio que esse seja um dos aspectos que
do Direito), quanto orientações no sentido de um projeto transmoderno
o tema apresenta.
– particularmente proposto pelo pensamento contra-hegemônico e pelas
filosofias de libertação4. Portanto, no largo contexto invocado, situa-se a 2.2. Fundamentação e fundamentalismo. Antes de enfrentar tal
questão no âmbito do também chamado pensamento do giro descolonial, questão, cabe mencionar outro aspecto de relevo que, se não considerado,
nas diferentes expressões da filosofia da libertação, da filosofia latino- pode gerar equívocos conceituais importantes, bem como compreensões
americana, da filosofia da exterioridade, da filosofia analética, da filosofia distorcidas. Pois, antes de mais nada, o tema da fundamentação em
da alteridade e, também, da, já anunciada, filosofia transmoderna. nossa epocalidade niilista está também relacionado inevitavelmente ao
tema do fundamentalismo. É prudente fazer as distinções conceituais
Enfim, nosso tema será construído tendo em vista o paradigma da vida
para evitar que a ideia de fundamentação reste colada a algum tipo de
concreta e o horizonte da condição transmoderna.
fundamentalismo ou aos fundamentalismos de modo geral. A exigência da
fundamentação não pode ser confundida com a atitude fundamentalista,
2. Em busca de uma fundamentação pós-metafísica pragmática seja esta religiosa, política, econômica, jurídica, ou até mesmo intelectual.
2.1. Fenomenologia de uso dos termos. O uso das palavras fundamento O fundamentalismo na condição de tema contemporâneo ganhou fase
e fundamentação ocorre no dia a dia das pessoas, nas mais diversas nova no mundo da globalização, esta com seus problemas, riscos e até
mesmo com o terrorismo. Os acontecimentos terroristas mais marcantes
3 APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica. Dialética e liberdade. Petrópolis : Vozes, 1993, p. 320.
4 Refiro-me aos grandes projetos da modernidade, da pós-modernidade e datransmodernidade, e mais
- em especial os do século XXI, e em particular a chocante terça-feira de
recentemente da hipermodernidade. Em geral, a polêmica fica reduzida ao projeto da modernidade – que com seu 11 de setembro de 2001, na qual foram destruídos os ícones do império
caráter emancipatório aposta nas grandes utopias e promessas de igualdade, liberdade e paz, e a contrapartida
da pós-modernidade, descrente das grandes narrativas, e que Boaventura de Sousa SANTOS (2000, p. 29 e 37) norte-americano - ainda buscam no fundamentalismo uma das chaves
designa por pós-modernidade reconfortante – por não lançar utopias sugere que se aceite e celebre o existente; explicativas dos fenômenos de terror, de parte a parte, ou seja, tanto
posição que contrasta com a pós-modernidade inquietante ou de oposição, esta sim representativa de uma teoria
crítica, ainda que pós-moderna porque não subsume sequer o caráter emancipatório da modernidade. Enquanto do ocidente quanto do oriente. Porém, embora como atitude e como
isso, o projeto da hipermodernidade, na linha de Gilles Lipovetsky, defende a tese da inexistência da condição pós- tendência o fundamentalismo possa estar presente em todas as religiões
moderna, uma vez que os pilares da modernidade – indivíduo, mercado e tecno-ciência – não teriam desaparecido
em tempos atuais, tendo apenas assumido a forma exacerbada de lógicas do hiper-indivíduo, do hiper-mercado e práticas espirituais, bem como possa ser encontrado em todos os
e da hiper-tecno-ciência. O projeto transmoderno tem como ponto de partida as utopias factíveis criativamente
formuladas pelos dissensos legitimamente obtidos pelas diversas e heterogêneas comunidades das vítimas, e, ao
sistemas, tanto na cultura, na ciência, na política, no direito, na economia,
mesmo tempo, subsume o caráter emancipatório do projeto da modernidade, rejeitando, todavia, seu conteúdo nem por isso a busca de fundamentos necessariamente significa uma
negativo e mítico de justificação de uma práxis irracional e violenta.

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

atitude fundamentalista. Há que se distinguir o que é distinguível. A e é o que mais interessa, compreender o sentido da fundamentação
atitude fundamentalista se apresenta em qualquer sistema na medida na crise peculiar dos tempos atuais. Seria isso? Ou então, a questão da
em que alguém ou uma ação se arvora a condição de portador exclusivo fundamentação deve ser abandonada de vez? E se tanto, não seria este o
da verdade ou da solução única para os problemas. Nesse caso, estamos tempo mais adequado para isso? O desafio do tema se apresenta nesse
diante de atitudes fundamentalistas. Pois, em geral, podemos dizer que vazio da liquidez filosófica que acompanha o derretimento de certezas,
o fundamentalismo não é uma doutrina, mas a forma de conceber uma principalmente as hegemonicamente construídas.
doutrina, a forma de compreendê-la, de interpretá-la e principalmente Assim, as reflexões deste texto pretendem investigar, ainda que
a forma de vivê-la, como verdade única, absoluta, fechada e imutável. indicativamente, a possibilidade ou não (critério de factibilidade) de,
Significa assumir a doutrina e suas normas na letra fria com descuido total no campo da filosofia, tendo em vista o estado da arte neste momento,
da história dinâmica na qual se insere, e que exige sua contínua atualização encontrar uma fundamentação para os Direitos Humanos na perspectiva
semântica, diacrônica e diatópica. Ora, não é disso necessariamente que transmoderna e, enfim, verificar como seriam esses fundamentos, e qual
trata o tema da fundamentação. Leonardo Boff, em palestra proferida seria o sentido dessa fundamentação hoje.
no Planetário do Rio de Janeiro, em novembro de 2001, intitulada
Fundamentalismo – a Globalização e o Futuro da Humanidade, ajuda a 2.4. Breve compreensão paradigmática5 da fundamentação. O que se
compreender a diferença que aqui buscamos: pretende mostrar nesse instante está relacionado diretamente ao núcleo
de cada um dos paradigmas filosóficos com a exclusiva finalidade de
Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter caracterizar o movimento que se realiza no processo de fundamentação,
absoluto ao seu ponto de vista. Não é uma doutrina, mas uma forma de além de evidenciar o elemento que confere base à fundamentação, ou
interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas sem cuidar propriamente revelar seu fundamento. Segue resumida caracterização da
de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da
questão em cada paradigma:
história, que obriga a contínua interpretação e atualizações, exatamente
para manter sua verdade essencial.

Portanto, o problema do fundamento não pode ser confundido


5 A noção de paradigma, amplamente utilizada nas mais diferentes áreas do saber, tornou-se usual também
com o tema do fundamentalismo, como se observa. Diante disso, que na Teoria e Filosofia do Direito. Seu uso, no entanto, não é unívoco. Acepções diferentes surgiram no debate
sentido tem a questão da fundamentação, ou como poderia ela ser jusfilosófico atual. Parece, entretanto, poder destacar dois sentidos recorrente: um primeiro sentido tem caráter
epistêmico, exaustivamente explorado; um segundo, nem tão desenvolvido, diz respeito aos paradigmas societais.
sugerida, hoje, sem cair nas armadilhas fundamentalistas com todas as Empresto tal tipologia de Boaventura de Souza Santos (1977). Enquanto os paradigmas epistêmicos estão
suas consequências? Reflexões para essa questão serão examinadas na ligados à transição entre saberes filosóficos, entre uma ciência e outra e entre um paradigma jurídico e outro,
os paradigmas societais referem-se a diferentes formas básicas de organização e vida em sociedade. Apresento
sequência das discussões aqui propostas. alguns esclarecimentos nesta nota sobre o uso da noção de paradigma neste trabalho em conexão com a noção
de perspectiva também útil na análise do tema da fundamentação que tenho como pano de fundo permanente na
2.3. Fundamentação e niilismo. Outro aspecto a considerar, portanto, e reflexão em desenvolvimento. A noção de paradigma, foi recepcionada pela filosofia, ao ponto de Habermas (1990
p. 21-22) fazer alusão ao costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito de paradigma, oriundo da história
preliminarmente, se refere à própria situação em que se encontra a questão da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e linguagem”. A noção de paradigma,
do fundamento ou da fundamentação em tempos de ceticismo, niilismo, conceitualmente construída por Thomas S. Kuhn (1992), objetiva explicar a transformação do conhecimento
científico através de saltos qualitativos e não de modo cumulativo e contínuo. Afirma que “Um paradigma é aquilo
relativismo, subjetivismo, provisoriedade, tempos de pensamento fraco, que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens
enfim, tempos de pensamento na era pós-moderna, pós-metafísica, que partilham um paradigma” (1992, p. 219). Assim, a ciência apresenta duas fases: a fase da ciência normal e a
fase da ciência revolucionária. Kuhn chama de ciência normal a que se processa enquanto o paradigma é aceito pela
pós-filosófica, como se propaga. Tempos em que a incerteza parece comunidade científica, e, de ciência revolucionária àquela que se processa quando da mudança de paradigma, com
base e nos limites deste novo paradigma. Pode-se dizer que um paradigma consiste num modelo de racionalidade,
ser a única certeza possível. Portanto, a atitude ou a pretensão de se num padrão teórico, hegemônico em determinados momentos da história e aceito pela comunidade que o utiliza
buscar os fundamentos de algo, ainda mais os fundamentos últimos – como fundamento do saber na busca de compreensões e soluções. A aplicação de tal conceito possibilita dizer que
a filosofia desde a Grécia antiga até a atualidade desenvolveu, segundo sugestão de Habermas, os paradigmas do
inultrapassáveis – da vida humana e de toda a realidade, seus primeiros ser, da consciência e da linguagem. O primeiro critério de demarcação anunciado – a questão paradigmática da
ou últimos fundamentos parece tarefa inútil, pretensiosa, temerária, filosofia – levou Habermas (1990, p. 21-22) a mostrar o costume de se “aplicar à história da filosofia o conceito
de paradigma, oriundo da história da ciência, e dividir as épocas históricas com o auxílio de ser, consciência e
quando não insana. É um tempo de quebra de paradigmas, incluídos linguagem”. A Filosofia da Libertação acrescenta um quarto paradigma à essa classificação. Portanto, são quatro
aí também os paradigmas filosóficos. Como compreender o tema da paradigmas. Esse quarto paradigma pode ser denominado de paradigma da vida concreta de cada sujeito como
modo de realidade – ou paradigma da vida concreta. Ou simplesmente paradigma da vida. Ou seja, a divisão das
fundamentação na crise dos paradigmas? Creio que cabe, primeiramente, épocas históricas da filosofia ficaria desenhada com o auxílio de ser, consciência, linguagem e vida. A utilização
dessa noção permite uma reconstrução teórica da compreensão filosófica, especialmente no que tange ao tema da
compreender o sentido no interior de cada paradigma. Para depois, fundamentação. É nesse contexto que o termo será empregado.

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

(a) Paradigma do ser – a fundamentação ontológica É essa a dinâmica do processo de fundamentação neste paradigma, e
que tem como fundamento o próprio ser.
A ideia de fundamentação, em especial de fundamentação do
conhecimento pode ser encontrada em Parmênides. Exame de seu poema6 Tendo em vista os limites e a finalidade deste estudo, o tema não será
revela indícios sobre a necessidade de um conhecimento qualificado, ao apresentado em outros filósofos nele classificados, em geral dependentes
anunciar: “deves saber tudo”, da “verdade bem redonda” e de “opinião de da fonte parmenídica. Essa tese central torna os filósofos da tradição
mortais”. Também indica os caminhos (métodos): quanto aos caminhos grega, em geral, dependentes da fonte parmenídica indicada, o que
de investigação possíveis, há um que conduz à verdade: “diz que o ser é e permite Habermas (1990, p. 22) afirmar, sempre na lógica do ser, que:
que o não-ser não é”7. O outro, indicado no mesmo Fragmento, “que não
é e portanto que é preciso não ser”. Do mesmo modo, apresenta os tipos Apesar de todas as diferenças entre Platão e Aristóteles, a totalidade do
pensamento metafísico obedece a Parmênides e toma como ponto de
de conhecimento (o epistêmico e o dóxico): a deusa diz que este caminho
partida a questão do ser do ente – o que o torna ontológico.
não gera certezas, apenas opiniões. Além disso, uma fundamentação
metafísica do conhecimento, critério último para avaliar determinado Tendo em vista a finalidade deste texto, a conclusão de Habermas
conhecimento, se é verdadeiro ou falso. serve como conclusão para caracterizar o fundamento e o movimento do
processo de fundamentação no paradigma do ser.

Há uma fundamentação metafísica que encontra respaldo no Fragmento


(b) Paradigma da consciência - a fundamentação subjetiva
3 do Poema: “Pensar e ser é o mesmo”. Ao negar a multiplicidade e o
movimento, o filósofo instaura uma forma de compreensão que mede Sob o ponto de vista filosófico, a modernidade se inaugura pela atitude
a experiência pela lógica dos conceitos e não pela lógica dos fatos. crítica de desconstrução do primado do ser sobre o pensamento. Não está
Ao descobrir o conceito de ser, identifica pensar e ser. Portanto, o em crise a necessidade de fundamentação, nem seu sentido, ou então,
conhecimento que gera certezas é fruto de uma operação que é própria da sua finalidade. Apenas expressa o desagrado com a fundamentação até
razão, instaurando um conhecimento racional. E quanto ao fundamento, então elaborada segundo a lógica do paradigma do ser. Portanto, a crise
também será identificado como sendo o Ser, porém não na sua faticidade, relaciona-se à natureza intrínseca da fundamentação até então formulada:
mas enquanto Ideia do Ser. a fundamentação ontológica. No novo procedimento, desde o ponta pé
inicial dado por Descartes ao idealismo alemão, o jogo da fundamentação
Dessa maneira, Parmênides instaura o começo da filosofia como
do pensar tem nova e definida direção: encaminha-se para a consciência
ontologia: “O ser é, o não-ser não é”. O ser é tido como o fundamento dos
do sujeito, ou para o sujeito consciente. Primeiro como razão pura, em
entes. O fundamento do mundo. O que não é ser, não é. É o nada. O ser
Descartes; depois como eu penso em geral, em Kant, para avançar como
não é pensado ou compreendido como um fundamento distante e isolado
interioridade absoluta do eu, em Fichte e alcançar a condição de eu
do mundo. Ao contrário, o ser como fundamento significa que o mundo,
absoluto plenamente acabado, em Schelling; para finalizar como Ideia
os entes, as coisas (tà onta), os úteis (tà prágmata) são vistos, porque
absoluta do processo de totalidade, em Hegel. Nos pensadores centrais
iluminados por ele. Ser e mundo coincidem.
do período, a direção do movimento é sempre a mesma: não mais em
A partir de Parmênides descobriu-se explicitamente a fundamentação direção ao ser, mas em direção à consciência (LUDWIG, 2006, p. 53-54)
ontológica: a compreensão do sentido e da forma dos entes desde o
A menção às concepções de Descartes e Kant, creio, exemplificam
horizonte do ser. O mundo (as coisas-sentido) é concebido nos limites do
teoricamente a mudança de fundamento e, ao mesmo tempo, revelam
ser. O caminho que conduz ao conhecimento verdadeiro conduz ao ser -
a persistência e a nova dinâmica da temática. Algumas características e
lugar epistêmico originário.
breves argumentos mostram o procedimento cartesiano e o kantiano
em torno do assunto. Efetivamente como é sabido, a reflexão cartesiana
6 O poema de Parmênides divide-se em três partes: o prólogo, o caminho da verdade e o caminho da opinião. parte da facticidade e caminha na direção do pensamento. O movimento
O método do conhecimento verdadeiro estende-se do fragmento 2 ao fragmento 8; o caminho do conhecimento rechaça a faticidade, mostrando sua precariedade, no intuito de instituir
dóxico inicia-se a partir do penúltimo parágrafo do frag. 8. Ver BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. 3a.
ed. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 53-63. o pensamento na condição de fundamento: penso, logo existo. Dussel
7 Fragmento n. 2 do Poema SOBRE A NATUREZA.

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

(1976, p. 38-39) sugere que é nesse momento que a modernidade jogou (c) Paradigma da linguagem - a fundamentação intersubjetiva
seu destino definitivo, uma vez que o caminho empreendido já não irá Desde as últimas décadas do século XX, a temática da fundamentação
para o ser que se im-põe, mas para a consciência que põe o ser. Em outas volta a ter papel de destaque. Primeiro, a partir da desconstrução. Exemplo
palavras, a modernidade joga seu destino definitivo em virtude da nova de rejeição do fundamentalismo filosófico foi realizada pelo racionalismo
fundamentação lançada. A nova racionalidade concebida tem em sua crítico (Popper, Albert), como é conhecido. A crítica popperiana à metafísica
base o cogito, que por definição, é ponto de partida e de chegada de tudo. racionalista mostra que toda pretensão de fundamentação última cai
Dessa maneira, a subjetividade se define como fundamento, ponta inevitavelmente no trilema münchausiano. Tal ocorre porque ela leva a
pé inicial para novas formas de fundamentação nos limites do novo um regresso ao infinito; ou conduz ao chamado círculo lógico; ou então, o
paradigma, que passou a ser, desde então, hegemônico. procedimento de fundamentação terá que interromper dogmaticamente
o regresso fundacional. Embora concorde com a crítica popperiana nos
Kant amplia o horizonte da questão ao envolver o mundo das coisas que aspetos indicados, a Teoria do Discurso, em especial nas formulações de
são e das que devem ser. Em nova epistemologia, nega a possibilidade de Apel e Habermas, enfrenta o ceticismo como tal. No entanto, esse debate
identificar o fundamento último como sendo um conhecimento objetivo está marcado pela necessidade da mudança paradigmática. É o momento
e das essências, decidindo pelas “condições de possibilidade” como o da construção. A exigência da elaboração de novo paradigma filosófico no
a priori que viabiliza todo conhecimento objetivo. Para ele, o aparato contexto da chamada crise da modernidade e da filosofia da consciência
instrumental cognitivo, seja nas formas a priori da sensibilidade, seja nas reacendeu a discussão em torno da necessidade e da possibilidade da
categorias a priori do entendimento, é transcendental. Nos respaldamos fundamentação, e até mesmo da fundamentação última na atividade da
nas palavras de Kant (2003, p. 58) diz que: “Denomino transcendental a razão. Esta é uma questão que considero crucial na discussão filosófica
todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do acerca dos Direitos Humanos.
nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a
priori”.. Embora o paradigma em pauta não se esgote nisso, será dado maior
destaque a fundamentação intersubjetiva, tendo em vista sua importância
Assim, a conhecida “revolução copernicana do conhecimento” consiste e atualidade. Primeiro, alguns aspectos gerais, e depois em especial os
em reflexivamente encontrar o eu cognoscente como uma estrutura de argumentos de Karl-Otto Apel sobre o assunto.
condições de possibilidade de todo o conhecimento. A transcendentalidade
desses componentes estruturais funda um conhecimento numa regra que Alguns aspectos gerais auxiliam na caracterização desse novo enfoque.
reside no sujeito. Grosso modo, o discurso argumentativo se constitui em mediação
necessária, em lugar intranscendível e em núcleo pragmático, instância
No campo da moral, ao refutar toda fundamentação heterônoma não última de fundamentação.
coloca em questão a possibilidade ou a necessidade de um fundamento.
Sustenta, entretanto, uma nova ordem: a fundamentação autônoma da Isso quer dizer, em primeiro lugar, que toda a fundamentação, seja
moral. A autonomia consiste no fato de o sujeito dar a si próprio a lei da ela de ordem filosófica ou científica, ou de qualquer outra natureza,
conduta. Ao afastar a fundamentação heterônoma, fundou-a na vontade, deve sempre passar pela mediação do discurso. E por que o discurso
na boa vontade. Kant (2004b, p. 21), assim, afirma: Nem neste mundo desempenharia essa função de meio ou mediação necessária? Porque
nem fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como mesmo em toda crítica cética que tem por objeto a impossibilidade de
bom sem limitação, a não ser uma só coisa: uma boa vontade. fundamentação existem pressupostas condições de validade inarredáveis.
Pois, aquele que formula um juízo (por exemplo, em que objetiva mostrar
Portanto, tanto no campo da razão pura, quanto na esfera da razão que não existe possibilidade de fundamentação) tem a pretensão
prática, estabelece novo fundamento, seja para o conhecer, seja para o de que seu discurso seja válido, de que faça sentido, de que possa ser
agir. compreendido e que indique uma verdade. Se assim não fosse, o juízo
formulado não atingiria sua finalidade, que é a de realizar uma crítica a
toda tentativa de fundamentação definitiva. A não aceitação disso, teria
como consequência inevitável a descaracterização da crítica como uma

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

crítica. Portanto, aquele que formula um juízo pressupõe, pelo menos o conceito tradicional da metafísica devem ser abandonados. Apel
implicitamente, que há pretensões. Pretensões quanto ao sentido, quanto o faz e desde o início enfrenta o desafio a partir da própria questão:
à validade, quanto à compreensão, e quanto à verdade. Assim, por justamente por se tratar de fundamentação última existe a necessidade
exemplo, as proposições semânticas podem ser qualificadas como válidas de uma filosofia pós-metafísica (APEL, 1993, p. 306). A crítica desferida
ou inválidas, verdadeiras ou falsas, porque pressupomos a existência de pelos popperianos à estrutura da fundamentação na linha da metafísica
pretensões de validade em toda linguagem. Essa é a razão pela qual o tradicional revelou a impossibilidade de qualquer tipo de fundamentação
discurso desempenha a função de meio ou mediação de toda pretensão última. Os popperianos, com base nessa impossibilidade, abandonam a
levantada, inclusive aquelas pretensões que objetivam a rejeição de toda ideia de fundamentação última.
e qualquer possibilidade de fundamentação. Na contramão, Apel sustenta não só a possibilidade, mas também a
Agora, por que o discurso seria o lugar intranscendível? Porque as necessidade da fundamentação em tempos atuais. Nem mesmo abandona
condições necessárias para a validade de toda pretensão discursiva não a ideia da fundamentação última. Critica a concepção tradicional da
podem ser ultrapassadas, sob pena de incorrer em autocontradição metafísica ontológica. E conclui pela possibilidade e necessidade de uma
performativa. Toda e qualquer tentativa que implica em negar uma filosofia pós-metafísica de fundamentação última, com a exigência de
ou todas as pretensões de validade entra em contradição, pois para se uma nova filosofia. Apel mostra a necessidade8 e, até mesmo urgência,
realizar necessita da presença das próprias pretensões que tenta refutar. de uma fundamentação filosófica específica em nosso tempo, tanto como
Dessa forma, o discurso não pode ser transcendido, pois nele residem tarefa teórica quanto como tarefa prática. Ilustra a questão com a seguinte
as condições irrefutáveis, sempre pressupostas na efetivação de qualquer situação problema:
enunciado.
Que faria um jovem que, na assim chamada crise da adolescência,
E enfim, o que no discurso é intranscendível? A resposta já está chegou ao ponto de problematizar, por exemplo, como Nietzsche todas
encaminhada nos itens anteriores. Cumpre, no entanto, sublinhar o as tradições morais convencionais e que nesta situação levanta a questão:
papel dos pressupostos transcendentais do discurso argumentativo, “Por que em absoluto terei que agir moralmente?” Com uma resposta que
não fornece uma fundamentação última, mas que de antemão se relativiza
no processo de fundamentação. O fundamento não está e não se como condicionada ou passível de revisão? (APEL, 1993, p. 309)
efetiva na presença empírica do discurso, já que este pode ser válido ou
inválido, com ou sem sentido, verdadeiro ou falso, justo ou injusto. Essas Portanto, o que é possível e necessário é uma fundamentação última
condições só podem, em geral, ser avaliadas em situações concretas. No não-metafísica - a pragmática transcendental. As condições da pragmática
entanto, os pressupostos que tornam possíveis tais discursos, esses são transcendental estão contidas na pretensão de verdade e nas regras do
transcendentais, reconstruídos ou reconstruíveis por estrita autorreflexão, discurso. Quanto à fundamentação última, Apel parte da premissa de que
e com tal representam o critério último, enfim, a fundamentação última. faz todo o sentido a exigência de que todos reconheçam a existência de
A autorreflexão mostra a relação necessária entre a fundamentação algo como pretensão de verdade, como vimos anteriormente. Exigência
e o fundamentado. Portanto, no discurso, o intranscendível, porque inafastável no campo da comunicação, sob penas de torná-la impossível
ineliminável, diz respeito não ao discurso em si, mas às condições que o ou, então, configurar a contradição performativa. As regras, inscritas
tornam possível. E as referidas condições não são de natureza metafisica, na linguagem, passam a ser condições normativas da possibilidade da
mas pragmática. As condições transcendentais são da ordem pragmática discussão acerca das proposições com pretensão de verdade. Pois,
e não mais metafísica. enfim, (1o.) todos os participantes do discurso em princípio são iguais
Karl-Otto Apel está convencido da possibilidade e da necessidade desse (e, portanto, não devem ser excluídos quaisquer argumentos); e (2o.) a
novo fundamento, a partir de uma nova concepção de fundamentação, obrigação de todos em argumentar sem violência (aberta ou oculta –
posição que confronta a opinião filosófica hoje dominante. O tema como por exemplo, ofertas de negociação e/ou ameaças).
consiste em enfrentar o desafio da possibilidade ou não de uma 8 A preocupação em testar os argumentos tem o sentido de prevenir ataques contrários, seja dos céticos, seja
fundamentação última não-metafísica, no contexto da filosofia atual. dos cínicos. Por isso, encontramos a postura em Apel, em Habermas e em Dussel, entre muitos outros. O cuidado
metodológico, portanto, se justifica ante tal possibilidade, motivo que leva a considerar alguns pensamentos nessa
Sabemos que o pensamento da fundamentação última e, assim também, linha, como é o caso dos defensores do princípio do falibilismo sem limites, que não apenas consideram uma
fundamentação filosófica última de princípios de conhecimento impossível, mas também desnecessária. (APEL,
1993, p. 310).

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

Ainda assim, esse novo quadro exige redefinição da concepção de histórica e social, assim como fazem Hegel, Heidegger, Gadamer e todos os
fundamentação até então utilizada. Sem tal medida, o processo de filósofos comunitaristas. Em outras palavras, o princípio está enraizado na
fundamentação seguirá inevitavelmente o caminho que leva ao trilema de faticidade. Portanto, não se origina no ideal ou no transcendental, como
Münchhausen (Hans Albert). Pois, o tradicional conceito de fundamentação na razão comunicativa de Habermas e de Apel, ou na proposta na linha da
se define como “dedução de um algo de outro algo”. Ora, este conceito tradição liberal de um Rawls. De outra parte, ainda metodologicamente,
não pode ser subsumido pela fundamentação pragmático transcendental. nessa dialética não se permanece imerso na tradição como o fazem os
A formulação de Apel (1993, p. 317) consiste no recurso reflexivo sobre comunitaristas. A sistemática negação da exterioridade é o ponto de
as condições de validade da argumentação, e em consequência, a partida. Dessa maneira, sem abandonar o real concreto (a injustiça da
fundamentação não se define como derivação de algo de alguma coisa exclusão do mundo da vida, sentida na corporalidade), a razão histórica
diferente e, com isso, não retrocede em seu proceder ao infinito. Pois, enquanto exterioridade constrói categorias pragmáticas com pretensão
a fundamentação requer apenas a certificação das pressuposições que de universalidade, que se projetam bem além de qualquer télos histórico-
não podem ser refutadas, sob pena de autocontradição performativa. concreto (DUSSEL, 1995, p. 97).
Dessa maneira, Apel (1993, p. 322) reconhece pela reflexão a existência É na e pela categoria da exterioridade que se manifesta o princípio
de pretensões universais de validade que fazem parte do argumentar e, da exclusão como fonte originária instranscendível da possibilidade
ao mesmo tempo, são condições irretrocedíveis (nichthintergehbaren), e e necessidade de afirmação da negação perpetrada pela lógica da
nesta medida, não-contingentes do conhecimento válido do contingente, o totalidade. Ou então, a afirmação do outro enquanto outro, isto é,
que implica na guinada linguística da filosofia, ou filosofia da comunicação. em sua exterioridade e não na semântica da totalidade, é a origem da
O sentido de uma fundamentação pragmática nos interessa sobremodo possibilidade da negação da negação dialética: afirmação analética da
para o tema que estamos enfrentando, qual seja o da fundamentação dos exterioridade. Essa exterioridade analética10 como afirmação (afirmação
Direitos Humanos, que será posteriormente retomado. de sua dignidade, de sua liberdade, de sua cultura, de seus direitos, de
seu trabalho - trabalho vivo, primeiro, e fonte de todo valor) é condição de
possiblidade de mudança. Para exemplificar, pode-se dizer que além da
(d) Paradigma da vida - a fundamentação na alteridade negada totalidade jurídica vigente não haveria direito, a não ser o já admitido pela
Agora a pretensão é apresentar um pequeno esboço de fundamentação lógica do próprio sistema, o que em última análise implica em renovação
no contexto da razão situada para além da lógica da totalidade, no possível apenas segundo critérios autopoiéticos do sistema dominante.
sentido de estar para além da fundamentação ontológica, subjetiva e No caso da fundamentação analética não. Portanto, a questão da
intersubjetiva. Trata-se de uma superação paradigmática no sentido fundamentação dos Direitos Humanos não se encontra esgotada.
filosófico. Como mencionamos em outro texto9, não se trata de lógica Outro exemplo teórico da ideia básica de fundamentação do direito na
maniqueísta na relação entre totalidade e exterioridade, entre centro racionalidade do outro (na concepção filosófica da exterioridade) pode ser
e periferia, entre inclusão e exclusão e assim por diante. Pretende- visto na seguinte moldura: o outro enquanto exterioridade irrompe como
se, pressupostas as idiossincrasias das sociedades e culturas situadas de uma espécie de nada (sem as determinações semânticas da lógica da
além do horizonte dos centros dominantes, esboçar o sentido de uma totalidade dominante), - do infinito, como quer Levinas – o de outro modo
fundamentação na perspectiva da libertação, na dinâmica do horizonte da que ser. O princípio básico é o da libertação da exclusão; libertação da
racionalidade negada, ou no sentido do paradigma da vida, evidenciando miséria e da opressão das lógicas de dominação no plano concreto: este
a dimensão da vida negada. é o fundamento - razão do outro enquanto exterioridade. É a vida como
A partir e para além do paradigma da linguagem é preciso anunciar, no modo de realidade de cada sujeito em comunidade. Positivamente, vida
entanto, o principiuim exclusionis (DUSSEL, 1995, p. 113). Tal princípio tem afirmada. Negativamente, vida negada.
sua referência na vida real, empírica, enfim, concreta das comunidades, em Não é o momento de explicitar cada um dos necessários fundamentos
especial as latino-americanas e caribenhas (e analogicamente, africanas para preservar a condição da vida afirmada, e desenvolver cada um dos
e asiáticas). Metodologicamente, a reflexão parte de uma faticidade
10 “El pueblo, como colectivo histórico, orgânico - não sólo como suma o multitud, sino como sujeto histórico con
9 Ver LUDWIG (2006). memoria e identidad, con estructuras proprias - es igualmente la totalidad de los oprimidos como oprimidos en un
sistema dado (...), pero al mismo tiempo como exterioridad”. DUSSEL (1985, p. 411)
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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

necessários fundamentos para transformar a condição da vida negada. fundamentos é um momento necessário para a afirmação (preservação)
No entanto, em forma de anúncio, a arquitetônica do tema fica apenas da vida, sempre (tempo) e onde (espaço) há vida afirmada, e também um
sugerida. momento necessário para a negação (transformação) da negação da vida,
sempre (tempo) e onde (espaço) há vida negada.
Primeiro, como ideia central o problema da fundamentação é visto
desde uma atitude multifundamental. A complexidade da vida requer Nessa dinâmica, haverá, portanto, a necessidade de uma fundamentação
vários e distintos fundamentos em seu desdobramento e sempre estar positiva e também uma fundamentação negativa, no que diz respeito
aberta para novos fundamentos. ao princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida
humana concreta de cada sujeito em comunidade. E de igual modo, haverá
Segundo, a fundamentação é concebida nos diferentes campos a partir
a possibilidade e necessidade de uma fundamentação positiva e também
de fundamentos que são os pressupostos, condições intrínsecas – porque
uma fundamentação negativa do Direitos Humanos.
operam implicitamente - constitutivas da existência originária dos demais
campos ou mesmo sistemas (como por exemplo, o ético, o político e o
jurídico). Tais princípios orientam a ação em geral, servem como referência. 3. A fundamentação do Direitos Humanos
São necessários com a finalidade de estabelecer marcos estritos, firmes,
O que ocorre com os Direitos Humanos? A atenção a um recorte
bem sólidos para a atividade prática, tanto no que se refere aos fins a
particular desta pergunta implica em dizer que ocorre aos direitos
alcançar como aos meios de luta utilizados, e, por derradeiro, aos modos
humanos – consideradas as épocas históricas específicas – a lógica da
de luta (Luxemburgo 1990, p.118). Trata-se de uma fundamentação
totalidade própria de cada paradigma em jogo, seja ele filosófico (recorte
principiológica, não-metafísica, com fundamentos múltiplos e com níveis
da presente análise), seja ele societal, no atual processo de globalização
de abstração distintos.
e exclusão. Vale dizer que ocorre aos direitos humanos o que ocorre aos
Terceiro, a multifundamentação tem na vida concreta seu critério- seres humanos submetidos ao impacto das lógicas reais produzidas pelo
fonte. Esse critério fonte serve como referência de todo ato, norma, processo que hoje tem a assinatura da globalização e da exclusão. Assim,
estrutura, sistema, subsistema, instituição etc. Trata-se da vida humana falar de direitos humanos significa falar da vida concreta dos sujeitos
em comunidade. É o modo de realidade do sujeito – individual e coletivo em comunidade como modo de realidade. Enquanto vida afirmada,tem
- nas situações concretas do mundo, na idade da globalização e da o sentido do respeito e da efetividade dos direitos humanos. Enquanto
exclusão. Mais concretamente, o que importa é a produção, reprodução vida negada, tem o sentido do desrespeito e da inefetividade dos direitos
e desenvolvimento da vida de cada sujeito. Nessas três determinações humanos. Significa falar da dignidade humana violada ou ameaçada por
centrais, o sujeito humano em comunidade precisa ter objetivamente um sistema mundo que se impõe com sua lógica e suas leis próprias,
satisfeitas certas condições que servem de mediações adequadas para numa espécie de autopoiese, que mundialmente passa por sobre grande
viabilizar sua vida. Condições essas que, se não forem levadas em conta, parte dos seres humanos, produzindo vítimas, em sua maioria talvez não-
acarretam negações a aspectos da vida e, no limite, fatalmente levam à intencionais. Mesmo assim, vítimas – vida negada. A existência maciça
morte (negação do critério fonte e da condição de possibilidade). Trata-se de vítimas exige, em especial para o mundo sul, em relação aos direitos
da originária e genuína vulnerabilidade da vida do sujeito. O critério assim humanos, uma filosofia crítica que ultrapasse o horizonte da totalidade
desdobrado conduz ao princípio geral e crítico: o princípio da obrigação dos paradigmas filosóficos de centro, bem como a autopoiese fechada
de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada da totalidade do debate entre modernidade e pós-modernidade ou, no
sujeito em comunidade. máximo, admitido da hipermodernidade. Portanto, uma filosófica crítica
transmoderna ou descolonial dos direitos humanos.
Quarto, a atitude multifundamental desde o critério-fonte anunciado,
passando pelo princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver
a vida, chega positivamente ao fundamento material, ao fundamento 3.1. A possiblidade e a necessidade de fundamentação transmoderna dos
formal e ao fundamento do factível (possível). E chega negativamente direitos humanos
à crítica do fundamento material, à crítica do fundamento formal e à É conhecida a tese de Bobbio – que enuncio aqui livremente - de
crítica do fundamento do possível - o princípio libertação. Cada um desses que o problema dos direitos humanos não estaria mais na ordem da

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

fundamentação, mas na esfera da aplicação. Ou então, não mais na Portanto, para acentuar, estamos diante de uma realidade global, na
necessidade de sua justificação, mas, precisamente, na urgência de sua qual, enquanto 20% mais abastados da humanidade consome 82% dos
efetivação. Cabe protegê-los, afirma. Enfim, a questão central sobre os bens, os 60% mais pobres consomem 5,8% desses bens.
direitos humanos não estaria na esfera da filosofia, mas na esfera política. Ou ainda, nessa lógica global do mundo, as vítimas, na idade da
Não seria uma questão teórica, mas prática. globalização e da exclusão, alcançam quadros que impressionam
Embora se deva reconhecer que existem sérios problemas relacionados (POCHMANN, 2004, p. 56):
à proteção dos direitos humanos em suas mais diversas dimensões, a
questão filosófica de longe se encontra esgotada. O mundo moderno está longe de ser um lugar onde a pobreza e a exclusão
social estejam sendo vencidas. Na verdade, as antigas regiões pobres
No caso do terceiro mundo, dos países periféricos e semiperiférico, situadas entre os trópicos são as mesmas que hoje apresentam os piores
em especial da América Latina e Caribe, a centralidade da questão – bem indicadores de exclusão social. Aliás, entre os 40 países com os piores
destes valores, 82,0% deles estão na África, 7,5% na América, 7,5% na
como sua problematicidade mais dramática – pode ser conduzida pela Oceania e 2,5% na Ásia.
reflexão na tríplice orientação dos direitos humanos: (a) desde onde se
consideram; (b) para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam.
Os 40 países com os melhores valores no IES11, estão distribuídos
Ellacuria (1990, p. 590), em suas reflexões sobre o tema, adverte que desigualmente pelos cinco continentes (70,0% deles na Europa, 17,5% na
o desde onde, o para quem e o para que devem estar muito claros e Ásia, 5% na América, 5,0% na Oceania e apenas 2,5% na África).
explícitos no processo de fundamentação dos direitos humanos.
Entre os dois extremos, há 95 países que se encontram em posições
Em outros termos, estamos diante da questão do sujeito ou dos intermediárias, com um IES variando de 0,855 a 0,509. Neste bloco, aliás,
sujeitos da reflexão filosófica. Pelo visto até agora, a perspectiva da localiza-se a maioria dos países da América Latina, como por exemplo,
reflexão permite dizer que estamos diante do sujeito ou dos sujeitos da Argentina (57ª. posição), Uruguai (58ª. posição), Chile (68ª. posição), Costa
fundamentação filosófica transmoderna. Quem são esses sujeitos? Rica (69ª. posição), Peru (81ª. posição), Brasil (109ª. posição) e Colômbia
(111ª. posição).
Porém, antes de investigar a determinação específica desse ponto de
partida, cabe estabelecer o seguinte juízo de “fato” com pretensão de Enfim, observando o IES, o que se percebe é a existência de “ilhas” de
verdade: vivemos uma violação massiva e radical da condição humana. inclusão em meio a um “oceano” de exclusão em todo o planeta. Ou,
Enfim, experimentamos uma violação dos direitos humanos, seja na ordem mais propriamente, nas regiões em torno ou abaixo do Trópico de Câncer.
Isso se repete, também, no estudo da maioria dos índices parciais que
nacional, regional ou na ordem internacional nunca antes vista, e essa
compõem o IES.
violação está atualmente na esfera da não satisfação das necessidades
básicas da maior parte da população mundial, particularmente do mundo Ou ainda o mesmo autor diz que:
periférico e semiperiférico.
Dois bilhões e setecentos milhões, cerca de 50,0% da população mundial.
Há muitos e variados estudos estatísticos que indicam o quadro Esse é o número aproximado de pessoas que vivem com menos de dois
mencionado. Apresento um deles para ilustrar um possível enfoque da dólares por dia, consideras aqui miseráveis e pobres.
situação no sentido geral e global:
Dos 40 países com os piores valores no Índice de Pobreza, ou seja, com
Aos 500 anos do começo da Europa Moderna, lemos no Relatório sobre o maior número relativo de miseráveis e pobres, 27 encontram-se na África,
Desenvolvimento Humano 1992 (UNDP, 1992: 35) das Nações Unidas que 8 na Ásia, 3 na Oceania e 2 na América. Nesses países, mais de 80 em cada
os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a Europa Ocidental, os 100 habitantes vivem com até 2 dólares por dia. Zâmbia (175a. posição),
Estdos Unidos e o Japão) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os Nigéria (174a. posição) e Mali (173a. posição) lideram o ranking dos piores
60% mais pobres ( a “periferia” história do “Sistema-Mundial”) consome valores no Índice de Pobreza. Nesses países, especificamente, 90 em cada
5,8% desses bens. Uma concentração jamais observada na história da 100 pessoas vivem com até dois dólares dia.
humanidade!

11 Índice de Exclusão Social (IES)

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

Entre os países do ranking situados em posições intermediarias, encontra- produz em sua lógica e em sua práxis relações sociais e sistêmicas de
se a maioria dos países da América Latina. É lá que está o Brasil, ocupando massiva violação dos direitos humanos. Produz relações de negação da
a 71ª. Posição. De cada 100 brasileiros, cerca de 24 vivem com até 2 mais elementar condição humana. E nas perspectivas das causas, a fonte
dólares dia, ou seja, são miseráveis ou pobres. Outros países latino-
americanos, como Cuba (44ª. posição), Bahamas (46ª. posição), Argentina maior dessas violações, ou seja, aquela que supõe a violação mais grave
(48ª. posição), República Dominicana (57ª. posição), Chile (60ª. posição), e está na raiz das demais violações, é a violência estrutural: a violência
México (73ª. posição), Panamá (74ª. posição) e Jamaica (76ª. posição) da civilização do capital (quiçá moderna) que coloca a imensa maioria
também se situam no bloco intermediário da pobreza. da humanidade em condições biológicas, econômicas, sociais, políticas,
culturais e jurídicas em rigorosa precariedade, em condições desumanas.
Finalmente, dentre os 40 países com os melhores valores no Índice de É essa a violência estrutural fundamental e é dela que decorre uma
Pobreza, 24 estão localizados na Europa, 8 na Ásia, 4 na América e 2 exigência crítica de denúncia constante. Decorre uma exigência ética de
na África. Aliás, entre as primeiras posições no ranking, só há países
europeus: Bélgica (1a. posição), Dinamarca (2a. posição), Finlândia (3a. responsabilidade pelos efeitos negativos gerados pela lógica do capital.
posição), França (4a. posição), Alemanha (5a. posição), Luxemburgo (6a. Decorre dela uma exigência político-jurídica pela violação estrutural dos
posição), Holanda (7a. posição), Noruega (8a. posição), Suécia (9a. posição), direitos humanos.
Suíça (10a. posição). Nesses países, de cada 100 habitantes, apenas 1 vive
com até dois dólares por dia. (POCHMANN, 2004, p. 58) Segundo, mais recentemente, embora já se trate de um processo que
se alonga no tempo, o mundo periférico e semiperiférico, e aqui também
Ou, considerando o critério da desigualdade existente no mundo, cabe a referência especial à América Latina e ao Caribe, experimenta
temos (POCHMANN, 2004, p. 62): os efeitos da estratégia da globalização de forma extrema e radical. O
chamado terceiro mundo é por excelência o lugar da violação dos direitos
A população total residente nos 40 países com os piores valores humanos. Em nenhuma parte há tantas vítimas como no terceiro mundo,
no Índice de Desigualdade soma 841 milhões de pessoas. Essa embora toda a retórica de exaltação dos direitos humanos. Essa é, sem
soma corresponde a quase 14% da população do planeta. Ou seja,
dúvida, uma das estratégias mais visíveis da globalização. Afinal, tudo
de cada 100 pessoas, 14 moram em algum dos 40 países mais
é feito em nome dos direitos humanos, e da proteção da natureza. No
desiguais do mundo. Distribuídos por quatro dos cinco continentes
(24 na África, 2 na Ásia, 1 na Oceania e 13 na América), tais paises entanto, o que o processo de globalização mantém e até mesmo acelera
são liderados pela Namíbia (175a. Posição do ranking), seguida por e intensifica, é a mencionada violência estrutural fundamental, de onde
Lesoto, Honduras, Paraguai, Serra Leoa, Botsuana, Nicarágua, emanam as violações relacionadas à dignidade humana. Na América Latina
República Centro Africana, Brasil, África do Sul e Guiné-Equatorial, em especial, a estratégia da globalização consistiu nos chamados ajustes
respectivamente entre as 174a. e 165a. posições. estruturais relacionados a três dimensões da sociedade (Hinkelammert,
1999, p. 239 e segs). Estas relacionadas com a abertura tendencialmente
É esse o retrato a partir de apenas alguns dados estatísticos. No entanto, ilimitada ao capital financeiro e às mercadorias, à reestruturação do
eles já são suficientes para ilustrar a tese acima mencionada. Estado e imposição da lógica das privatizações, que resultam em nova
Dois aspectos de extrema importância para a ordem de ideias em fonte de acumulação originária, e a flexibilização da força de trabalho, com
consideração merecem ser destacados. as consequências que daí decorrem na ótica da violação de direitos e da
fragilização da organização coletiva das forças sindicais dos trabalhadores.
Primeiro, é imperioso dizer que estamos diante de uma crise de
Essa imposição dos ajustes estruturais vem acompanhada da propagação
realidade. Não se trata de um problema que se coloca na ordem da
da ideologia da competitividade e da eficiência. Instaura-se uma guerra
eficácia ou ineficácia de determinado campo de atuação, seja ele político
econômica. A questão toda está centrada na estratégia da vitória. É isso
ou normativo. Para exemplificar, a dramaticidade do problema não
que interessa. Vence quem consegue eliminar as distorções do mercado.
diz respeito apenas, nem sequer em seu cerne, a eventuais ou reais
Essa é a razão porque a questão das distorções do mercado assume
deficiências de políticas públicas relacionadas à proteção dos direitos
uma importância central: a lógica real do processo de globalização se
humanos - isso também existe -, ou a eventuais ou reais defasagens ou
expressa mais nitidamente em termos de eliminação das distorções do
injustiças na ordem da positivação no campo do direito. O que o ocorre
mercado (HINKELAMMERT, 1999, p. 240). As distorções são fricções que
é que a civilização do capital - para outros a civilização moderna - é que

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DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

devem ser eliminadas. Quanto menos fricções, melhor o funcionamento A resposta não pode ser outra senão a que se orienta para o sujeito ou
da máquina, que autopoieticamente vai se aperfeiçoando. Quanto os sujeitos da fundamentação dos direitos humanos ou, propriamente,
menos fricções, mais perfeito o sistema. As distorções são muitas e há, para os sujeitos dos direitos humanos, que são todos os oprimidos
entre elas, as que dizem respeitos aos direitos humanos. Na estratégia e excluídos; os que têm a sua condição de sujeitos autônomos e livres
da globalização, os direitos humanos, em sua totalidade, são vistos como negada na e pela estratégia da globalização.
distorções do mercado. E, como tal, o aperfeiçoamento da máquina, ou A questão dos direitos humanos, ao lado de todos os importantes
seja, a engrenagem do mercado no processo de globalização vai também debates e posições teóricas, desde o universalismo abstrato, passando
eliminando as fricções que causam a violação dos direitos humanos. No pelo comunitarismo, à posições da razão discursiva habermasiana, aos
entanto, enquanto isso não acontece, ocorre um choque entre os direitos enfoques dos multiculturalismos, - todos com valiosas contribuições -, é
humanos e a lógica do processo de globalização. O choque é evidente. E possível e necessário ir ao cerne do problema, ir à sua raiz, e demarcá-lo
isso acontece exatamente na sociedade de um mundo globalizado que no contexto da vida negada - que de algum modo é contexto de morte
fala dos direitos humanos numa intensidade jamais vista anteriormente. - das maiorias excluídas e oprimidas, e das minorias discriminadas e
Afinal, todos estão preocupados com os direitos humanos. Vencedores perseguidas.
e vencidos. No entanto, a concepção que as pessoas têm dos direitos
humanos certamente não é a mesma. Há uma compreensão, um uso e uma Esses são os sujeitos do filosofar transmoderno ou descolonial. Esses são
práxis ambígua nesse terreno. Tanto vencedores quanto perdedores nesse os sujeitos dos direitos humanos na perspectiva da filosofia transmoderna
processo de globalização falam de direitos humanos. Falam, no entanto, e descolonial. Direitos humanos que se definem desde tais sujeitos, para
de perspectivas distintas. A atual estratégia de globalização compreende tais sujeitos, e para que a vida negada desses sujeitos tenha a esperança
os direitos humanos como direitos do proprietário. Direitos humanos que de se tornar vida afirmada. É esse o ponto de partida da afirmação
têm sua raiz num mundo pensado como mercado e, agora, como mercado histórica dos direitos humanos na ordem da práxis libertadora frente a
globalizado. Direitos formulados desde onde? Desde o mercado. Direitos práxis de opressão e exclusão, na estratégia capitalista de globalização.
formulados para quem? Para o proprietário. Direito formulados para As negatividades (tais como fome, miséria, pobreza, dor, doenças,
quê? Para a relação mercantil, econômica. Ou seja, para o mercado. O analfabetismo, desnutrição, discriminação cultural, social e sexista, étnica,
âmbito da liberdade é o mercado. Ocorre uma extremada redução dos opressão política e ideológica), ou então, toda negatividade é o desde
direitos humanos ao direito de propriedade. Assim, direitos humanos e onde – lugar de fundamentação e legitimidade da exigência dos direitos
direitos de mercado acabam identificados por inteiro. Não se pensam humanos -, é o para quem – subjetividades com a vida negada pelo
direitos humanos para além do mercado. Ou então, menos ainda, direitos mercado globalizado, fonte legitima da exigência dos direitos humanos
humanos contra o mercado. A formulação dos direitos humanos desde e -, e é para quê - necessidade de negação da negatividade, exigência de
nos limites do mercado, para os sujeitos do mercado, e com a finalidade afirmação dos sujeitos, esses sim, fonte dos direitos humanos, antes,
da permanente produção, reprodução e desenvolvimento autopoiético depois e mesmo contra o mercado.
do mercado, exclui de sua lógica a possibilidade e necessidade de uma É tal contexto que exige a ampliação da questão concernente aos
concepção e fundamentação diferente dos direitos humanos. Talvez, por direitos humanos. Não se pode entendê-la nos estreitos limites da esfera
essa razão, a dramaticidade do problema dos direitos humanos esteja da aplicação, ou a um problema de ordem prática, porque alguma coisa
reduzida à dimensão política da necessidade de sua proteção. está desajeitada, desajustada, inadequada; ou mesmo reduzi-la à esfera
Feitas as rápidas observações nesses dois aspectos, é hora de voltar da proteção. Tudo está definido em termos de direitos humanos, só não
para a questão do tríplice aspecto da fundamentação na perspectiva que estão sendo protegidos como deveriam, havendo atritos intrassistêmicos.
aqui interessa. Afinal, em nosso caso, como responder ao problema da Portanto, retomando a ideia aqui defendida, a dramaticidade do
fundamentação dos direitos humanos: (a) desde onde se consideram; (b) problema dos direitos humanos está na ordem da fundamentação e nesta,
para quem se proclamam; e (c) para que se proclamam, numa perspectiva especificamente, no momento da factibilidade.
que não seja a da lógica do mercado na estratégia de globalização atual?

32 33
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna Celso Luiz Ludwig

4. Conclusão Franz Hinkelammert (1999, p. 248) o que podemos, no entanto, afirmar é


que uma ação alternativa só pode consistir de uma ação coletiva. Nesse
A violação massiva dos direitos humanos ocorre porque não são
caso, a exigência de uma ação coletiva contra-hegemônica é a condição
factíveis no mundo do capitalismo, especialmente, agora, com a
de possibilidade necessária para enfrentar aquelas forças que, por sua
globalização e sua específica estratégia. A factibilidade situada na ordem
vez, resultam da supressão da ação coletiva. Tal processo envolve, como
da fundamentação permite examinar criticamente se a aplicação ou a
pondera nosso pensador, a ação solidária. E esta ação coletiva, no entanto,
proteção dos direitos humanos é negligenciada em razão de desajustes,
na estratégia hoje dominante, desemboca também nas dimensões globais,
distorções, fricções intrassistêmicas, ou se a violação é inevitável, porque
sem as quais não pode ser efetiva. É o paradoxo a ser enfrentado.
na totalidade do capital globalizado sua proteção não é possível. Pois,
como já vimos, a concepção e fundamentação dos direitos humanos, no
sentido hegemônico, têm sua origem no mercado e seu destino é o da Referências
preservação do mercado. Resulta daí sua impossibilidade. Na concepção
ALBERT, Hans. Tratado da razão critica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
e fundamentação crítica contra-hegemônica têm sua origem na vida
negada, e seu destino é a vida dos sujeitos antes, depois e mesmo contra APEL, Karl-Otto e outros. Fundamentación de la ética y filosofia de la liberación. México:
Siglo Veintiuno, 1992.
o mercado. Portanto, desde onde, para quem e para que os direitos
humanos devem existir. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 2 v.

Nessa ótica, o modelo dos direitos humanos na concepção da civilização APEL, Karl-Otto y DUSSEL, Enrique. Ética del discurso y ética de la liberación. Madrid:Trotta,
2004.
ocidental, ou seja, como núcleo de legitimidade do ideal prático da
civilização do capital, agora globalizado, tem elementos de falsidade APEL, Karl-Otto. Fundamentação última não-metafísica? In: STEIN, Ernildo e boni, Luis A.
de (org.). Dialética e liberdade. Petrópolis: Vozes, 1993, 305-326.
que deslocam a problematicidade dos direitos humanos apenas para a
dimensão de sua proteção. Assim, o contexto exige a crítica material com ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
o objetivo de reivindicar conteúdos com pretensão de verdade contra- BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de
hegemônica, em especial os das necessidades básicas, sem a satisfação Janeiro: Sextante, 2002.
das quais a vida, nesse seu momento, estará sujeita a negação absoluta. DESCATES, René. Discurso sobre o método. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
É necessária a crítica formal, porque há elementos indicativos de uma DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1984.
injustiça estrutural como nunca antes visto e, portanto, de perda da
DUSSEL, Enrique D. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1976. 292.
legitimidade, agora caracterizada como invalidade dos procedimentos
hegemônicos. E por fim, impõe-se o princípio da factibilidade crítica, eis DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, 1977.
que se o existente não permite estruturalmente a proteção dos direitos DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da libertação latino-americana. São Paulo: Loyola, s.d.
humanos, porque concebido e fundado na lógica do mercado globalizado, 5 v.
o novo factível requer nova concepção e nova fundamentação, que DUSSEL, Enrique D. e outros. Fundamentación de la ética y filosofía de la liberación.
permita a efetividade dos direitos humanos. México: Siglo Veintiuno, 1992.

Cumpre, aqui, esclarecer que se é certo que não se pode cair na ilusão DUSSEL, Enrique D. Hacia uma filosofia política crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001.
filosófica ingênua de que a fundamentação leva espontaneamente à DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação - na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:
realização, também é certo que o exercício filosófico crítico pode mostrar Vozes, 2000.
a falsidade, a ilegitimidade e a impraticabilidade de um projeto que, ELLACURÍA, Ignacio. Historización de los derechos humanos desde los pueblos oprimidos
equivocadamente, pretende se afirmar em nome dos direitos humanos, y las mayorías populares (1989). ECA, 502,1990.
quando a rigor opera a lógica de sua impossibilidade. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
Há que pensar alternativas a partir dessa situação. Com a crise das HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
utopias modernas, e certa descrença pós-moderna nas metanarrativas, HABERMAS, Jürgen.Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:
não sabemos ao certo quais poderiam ser tais alternativas. Segundo Tempo Brasileiro, 1997. 2v.

34 35
DIREITO HUMANOS: fundamentação transmoderna

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36
Melina Girardi Fachin

A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS


DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: uma
análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

Melina Girardi FACHIN1

Introdução
A singela reflexão que ora se erige tem como objetivo analisar as
políticas públicas voltadas aos direitos econômicos sociais e culturais.
Esta análise está sob o foco da concepção contemporânea dos direitos
humanos e com enfoque especial ao cenário estadual paranaense de
proteção.
A premissa da qual o presente artigo parte é de que os direitos
econômicos, sociais e culturais são direitos humanos dotados do mesmo
grau de importância e merecedores de igual tutela jurídica e política que
os direitos civis e políticos. Há entre as diferentes categorias de direitos
relação de interdependência e complementaridade em prol da maior e
melhor proteção da dignidade humana.
O discurso clássico protetivo dos direitos humanos não foi, todavia, apto
para tratar essas diferentes categorias de direitos de modo equânime.
Tradicionalmente, os direitos civis e políticos, ditos de primeira geração
ou dimensão, gozaram de maior proeminência, ao menos no que toca
a sua aplicabilidade, que os direitos econômicos e sociais. A justificativa
para esta discriminação na tutela jurídica repousa nos supostos custos
e padrão de comportamento estatal na aplicação desta categoria
dos cognominados direitos de segunda geração ou dimensão2. Essa
ambivalência impacta, mormente, no papel das políticas públicas voltadas
1 Doutoranda em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo/BR (2010-andamento), sob a orientação da Prof. Dra. Flávia Piovesan. Visiting researcher da Harvard
Law School (Cambridge/USA, janeiro a março de 2011). Mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo/BR (2008), sob a orientação da Prof. Dra. Flávia Piovesan, tendo defendido dissertação acerca
dos fundamentos dos direitos humanos (obra publicada pela ed. Renovar, 2009). Possui aperfeiçoamento em
Direitos Humanos pelo Institut international des droits de lhomme (Strasbourg/FR, 2005) e graduação em Direito
pela Universidade Federal do Paraná/BR (2005). É professora assistente da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), professora assistente voluntária de direitos humanos na Pós-Graduação Stricto Sensu da
PUC/PR e professora convidada no curso de especialização em direito constitucional do IDCC (Londrina/PR). Autora
de diversas obras e artigos na seara do Direito Constitucional Internacional e Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Advogada sócia da banca Fachin Advogados Associados (Curitiba/PR, 2006). Membro da Comissão de
Direitos Humanos da OAB/PR.
2 O presente trabalho não compartilha da classificação geracional ou dimensional – a mudança de signo apazigua,
mas não afasta a noção linear e evolutiva da história dos direitos fundamentais que se pretende repassar com a
análise. Em que pese bastante didática, a classificação reduz complexidades importantes e não espelha a realidade
dos direitos e de sua construção histórica. Os direitos humanos e os direitos fundamentais são processos de luta,
fruto dos muitos avanços e recuos da história. No dizer de Hannah Arendt, “os direitos humanos não são um dado,
mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”. In: ARENDT,
Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
37
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E Melina Girardi Fachin
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

à aplicação dos direitos e da postura estatal comprometida com a sua Assim, consoante nos ensina Flávia Piovesan5, tal como há um direito pré
realização. Novos nichos se abrem em prol da efetivação material desses e pós 48 no âmbito internacional de proteção dos direitos humanos, há
direitos, sobretudo, no campo judicial, por conta das lacunas derivadas da um direito pré e pós 88 no campo protetivo constitucional pátrio e ambos
inércia dos demais poderes constituídos. É esta a reflexão, à luz do cenário os movimentos sofrem influências recíprocas.
contemporâneo de direitos humanos, com maior enfoque no cenário A concepção contemporânea de direitos humanos cedeu, todavia,
judicial paranaense, que segue. espaço a uma visão parcial de direitos, pautada na dicotomia de categorias
jurídicas – de um lado, direitos civis e políticos, e de outro, direitos
2. A Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e econômicos, sociais e culturais – tratadas de modo díspar e ambivalente.
Culturais: a integralidade e interdependência enunciadas Essa desarmonia teve como um primeiro reflexo a adoção, no plano
global, de dois Pactos – o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
A concepção contemporânea dos direitos humanos, inaugurada no âmbito e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – que
internacional no pós-segunda guerra, erige-se como consequência do
sofrimento humano em decorrência das atrocidades perpetradas. Este instauraram regimes jurídicos profundamente diversos às duas espécies
momento, em oposição ao ocorrido antes e durante conflito, reconstrução de direitos. Aos direitos civis e políticos conferiu-se tutela reforçada com
e reafirmação dos direitos humanos, no âmbito nacional e internacional. a obrigação de respeito e realização imediata por parte dos Estados,
As atrocidades perpetradas necessitavam de uma resposta da comunidade posto que supostamente reclamam postura abstêmia do ente estatal sem
internacional, como explica Flávia Piovesan: “Se a segunda guerra significou
a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua
necessidade de empregar recursos financeiros na sua realização. A par
reconstrução”3. dessas obrigações, erigiu-se um aparato forte de controle na realização
desses direitos. Aos direitos sociais, por outro lado, conferiu-se a tutela
Sob as cicatrizes indeléveis da barbárie, tal marco protetivo internacional fraca da realização progressiva, sendo os Estados responsáveis pela sua
da pessoa humana traz consigo, espelhadas na Declaração Universal dos implementação, ao longo do tempo, na medida dos recursos disponíveis,
Direitos Humanos (1948), as insígnias da universalidade e da integralidade. tendo em vista que tais direitos reclamam políticas e ações públicas com
De um lado, a universalidade que pugna a condição humana como único impactos orçamentários. E coerente com a enunciação normativa, há um
fundamento para um conjunto inderrogável de direitos que deveriam ser sistema parco de monitoramento – hodiernamente em consolidação – em
garantidos a todos os indivíduos no globo. De outro lado, a integralidade relação a esses direitos.
que significa uma visão holística dos direitos humanos, apta a congregar
Esse padrão fragmentário e ambíguo prevaleceu e, ainda hoje, prevalece
direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais para
tanto nos demais sistemas de proteção aos direitos humanos6. No âmbito
melhor proteção da pessoa humana.
interno, a interpretação constitucional que se seguiu acerca da eficácia
Rompeu-se com o discurso apartado que ainda dominava o das normas7 também relegou os direitos econômicos, sociais e culturais
constitucionalismo estatal ao aliar as tradições protetivas do Estado de
democrático», possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático”. In: CANOTLHO,
Direito Liberal e do Estado de Direito Social em um único documento, José Joaquim Gomes. O Estado de Direito. Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 31.
submetendo-os ao mesmo regime jurídico. Essa alteração refletiu nos 5 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012.
6 Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos – que se erigem ao lado e em somatório dos demais
planos constitucionais internos e resultou na estruturação contemporânea aparatos existentes – possuem sua tônica na defesa dos direitos civis e políticos, relegando os direitos econômicos,
sociais e culturais a um segundo plano. Isto porque, nos sistemas europeu e interamericano, a possibilidade de
complexa do Estado Democrático de Direito – ou Estado Constitucional, justicialização apenas pode versar, de modo direito e em larga medida, sobre as liberdades negativas. Somente
como quer Canotilho4 – plasmado no nosso plano local na Carta de 1988. o sistema regional africano de proteção dos direitos humanos se afasta desse paradigma, congregando
normativamente as duas categorias de direitos e fixando-as como interdependentes e inter-relacionadas. Todavia,
3 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 117. neste último caso, ainda há de se traçar a ponte da enunciação normativa à vivência fática desses direitos.
4 Na lição do autor: “O Estado constitucional carece da legitimidade do poder político e da legitimação 7 Nesse aspecto, referência deve ser feita à obra de José Afonso da Silva acerca da tripartição das normas
desse mesmo poder. O elemento democrático não foi apenas introduzido para «travar» o poder (to check the constitucionais consoante sua eficácia em normas constitucionais de eficácia plena, de eficácia contida e de
power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder. Se quisermos um Estado eficácia limitada. Em que pese a importância histórica da classificação faz-se mister – no que tange aos direitos
constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (I) uma é fundamentais – lê-la em conjunto com a determinação constitucional do art. 5º, parágrafo 1º, de aplicabilidade
a legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no Estado de direito; (2) outra é imediata dessas normas. Para mais, ver: SILVA, José Afonso da. Eficácia das Normas Constitucionais. São Paulo:
a legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político no Estado democrático. Malheiros. Em revisão à luz da teoria dos direitos fundamentais, anota Virgílio Afonso da Silva a inadequação da
O Estado «impoIítico» do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o aplicabilidade da teoria porque “todos os direitos fundamentais são restringíveis e todos os direitos fundamentais
princípio da soberania popular, segundo o qual «todo o poder vem do povo», assegura e garante o direito à igual são regulamentáveis”. Para mais, ver: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e
participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado. São Paulo, vol. 4, p. 23-51, 2006. Citação à
segundo procedimentos juridicamente regulados serve de «charneira» entre o «Estado de direito» e o «Estado página 47.

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A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E Melina Girardi Fachin
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

ao segundo plano. deve ser razão da promoção de direitos, tomados em sua relação integral
de complementaridade, e não de divisão, subjugação e hierarquização de
Destarte, o projeto da universalidade e integralidade dos direitos
determinadas categorias em face de outras.
humanos não resistiu a esse processo de normatização e aprofundamento
dos padrões mínimos protetivos fixados na arquitetura internacional que O legado da Declaração Universal de Direitos Humanos ainda,
se seguiu. concretamente, não se realizou, sendo a concepção de integralidade,
interdependência, indivisibilidade e universalidade do conteúdo dos
direitos humanos promessa a cumprir, nos planos global, regional e local.
3. A Fragmentação da Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos A ruptura com a interconexão entre esses direitos espelha-se na ênfase
Econômicos, Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência negadas exacerbada nos direitos civis e políticos em detrimento dos direitos
A concepção contemporânea de direitos humanos cedeu espaço a uma econômicos, sociais e culturais. Nas palavras de Cançado Trindade:
visão parcial de direitos, pautada na dicotomia de categorias jurídicas – de “Urge despojar esse tema de toda a retórica e passar a tratar os direitos
um lado, direitos civis e políticos, e de outro, direitos econômicos, sociais econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos que o são”10.
e culturais – tratadas de modo díspar e ambivalente. A fissura provocada na visão integral e inter-relacionada de direitos
Nada obstante, esse norte dicotômico ter prevalecido, desnudou-se a acaba por gerar uma universalidade, paradoxalmente, relativa, no que
falácia desta abordagem partida entre direitos positivos e negativos que, tange à proteção e à promoção desses direitos. O discurso universalista
por questões ideológicas, levaram à discrepância na tratativa dos direitos; assume a desigualdade e a separação operadas, o que, por sua vez, gera
a partir dessa predisposição de ambivalência; formaram-se, consoante preponderância dos direitos civis e políticos em prejuízo dos direitos
acima demonstrado, argumentos que se espraiam – sobretudo pelos econômicos, sociais e culturais.
campos econômico, político e jurídico – que, todavia, não se sustentam8. O discurso hegemônico claudica ao refletir a compreensão dividida dos
Não há como negar que esse divórcio possui conexões e também direitos, com foco nos direitos civis e políticos, tolerando a não realização
consequências políticas. Os direitos econômicos, sociais e culturais, como dos direitos econômicos, sociais e culturais sob a frágil justificativa da
direitos subjetivos à participação do bem-estar social, exigem prestações progressividade e dos recursos disponíveis à sua realização. Esse projeto
sociais e vinculam-se, sem dúvida, a uma melhor distribuição de recursos de proteção mostrou-se parcial e relativo e acabou por consentir com o
financeiros e fiscais dentro de uma sociedade. Isso contribui para o crescimento das desigualdades e da exclusão social no mundo.
desenvolvimento humano na busca de condições mínimas de uma vida
digna9.
4. O Regaste da Proteção Contemporânea dos Direitos Humanos Econômicos,
Obviamente, os direitos humanos são categoria diversa e complexa Sociais e Culturais: a integralidade e interdependência resgatadas
que, por vezes, necessitam de arquétipos diferenciados para sua
Mesmo de modo insuficiente e insatisfatório, pois ainda há um longo
realização. Todavia, sua plena realização apenas será alcançada se
caminho a singrar, a comunidade internacional tem se aberto à proteção
abraçada a heterogeneidade que reside no seu âmbito. A diferenciação
e consecução desses direitos. Tendo em vista a partição normativa e a
8 “Sob essa perspectiva, os direitos civis e políticos se distinguem dos direitos econômicos, sociais e culturais ambivalência de regimes jurídicos, experiências jurisdicionais, em maior
mais em uma questão de grau do que em aspectos substanciais. Pode-se reconhecer que a faceta mais visível dos
direitos econômicos, sociais e culturais sejam as obrigações de fazer e, é por isso, que às vezes são denominados ou menor medida, tem desmitificado e ressignificado a proteção dos
“direitos-prestação”. Contudo, não é difícil descobrir, quando se observa a estrutura desses direitos, a existência
concomitante de obrigações de não fazer: o direito à saúde compreende a obrigação estatal de não prejudicar a
direitos econômicos, sociais e culturais, colocando-os em patamar de
saúde; o direito à educação pressupõe a obrigação de não piorar a educação; o direito à preservação do patrimônio igualdade com aqueles civis e políticos.
cultural implica a obrigação de não destruir esse patrimônio.” In: ABRAMOVICH, Victor. Linhas de trabalho em
direitos econômicos, sociais e culturais: instrumentos e aliados. In: Sur Revista Internacional de Direitos Humanos. Eleva-se, portanto, o Poder Judiciário, nacional e internacional, à
2005, vol.2, no.2, p. 189-223. p. 194. 
9 Nessa direção, colhe-se de Rosas e Eide as seguintes afirmações: “Taking economic, social and cultural rights condição de importante espaço de realização dos direitos, sobretudo,
seriously implies at the same time a commitment to social integration, solidarity and equality, including tackling the dos direitos econômicos, sociais e culturais que ficaram alijados de sua
question of income distribution. Economic, social and cultural rights include a major concern with the protection
of vulnerable groups, such as the poor, the handicapped and indigenous peoples.” In: EIDE, Asbjorn; ROSAS,
Alan. Economic, Social and Cultural Rights: a universal challenge. In: EIDE, Asbjorn; KRAUSE, Catarina; ROSAS, 10 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Legado da Declaração Universal e o Futuro da Proteção Internacional
Alan (Editors). Economic, Social and Cultural Rights: a textbook. 2nd revised edition. Dordrecht: Martinus Nijhoff dos Direitos Humanos. In: AMARAL JUNIOR, Alberto; PERRONE-MOISÉS, Claudia (orgs). O Cinquentenário da
Publishers, 2001. p. 5. Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1998. p. 13-51. p. 40.

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A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E Melina Girardi Fachin
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

universalidade de fato em consequência de seu menor reforço normativo. uma nova separação dos poderes que, em colaboração, atuem para o
A propósito, mencione-se tout court, que há forte contraposição à desenvolvimento constitucional sob as balizas democráticas, técnicas e
justicialização nacional e internacional dos direitos de participação do de proteção dos direitos fundamentais. Outrossim, diante da importância
bem-estar social. Tradicionalmente, essas críticas refletem as frágeis conferida aos direitos fundamentais, deu-se a potencialização da atividade
justificativas, acima já expostas e combatidas de realização dos direitos do Judiciário, que recebeu a competência para salvaguardar e garantir a
sociais. As contraposições focam-se, sobretudo, no princípio da soberania aplicação desses direitos.
estatal, no princípio da separação dos poderes, na ausência de legitimidade A carência de legitimidade democrática é outro argumento que não
democrática do poder judiciário para consecução e políticas públicas e merece prosperar, visto que todos os Poderes retiram sua legitimidade
manejo do orçamento11, dentre outras que se conectam a esse core. para atuação do texto constitucional, no qual a dignidade da pessoa é fim
Emerge, destarte, a necessidade de se revisitar as teorias tradicionais e fundamento. O processo de alargamento da democracia na sociedade
do princípio da separação dos poderes e a teoria democrática, a fim de contemporânea não ocorre apenas por intermédio do aperfeiçoamento
preencher de novos significados tais significantes e de adequar a teoria dos modelos de participação democrática, mas também e, sobretudo, por
do estado à realidade e suas exigências, bem como à atuação do Poder meio da extensão da democratização da arena política à arena econômica
Judiciário das demandas que batem às portas da lei. e social, visto que a democracia real apenas exsurge com a efetiva garantia
(e respectiva realização) de direitos.
A clássica separação de funções de cada um dos poderes do Estado12
não encontra conexão com a realidade hodierna, pois nasce ligada a um A democracia, nessa visão, não dialoga exclusivamente com o
momento histórico em que se pretende a minimização dos poderes do princípio majoritário e ganha outros contornos15. É necessário, portanto,
Estado por influência do pensamento liberal. Além disso, a importância da a adoção de medidas – o que se faz por meio de qualquer dos Poderes
teoria da divisão dos poderes conecta-se à defesa dos direitos individuais instituídos para a defesa da ordem dos direitos fundamentais, sobretudo
como garantia destes frente ao poder absoluto. das minorias16 – que minimizem o arbítrio do Estado e das maiorias
ocasionais que estejam nos postos decisórios das instituições políticas.
Hoje, não há lugar para um rigoroso princípio da separação, se é que
Sobre a necessidade da revisão dessa ordem de ideias, explicita Jurgen
houve mesmo, historicamente, tal secção13, uma vez que as mudanças
Habermas que “o esquema clássico da separação e da interdependência
sociais e a crescente necessidade de intervenção estatal na sociedade
entre os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção, uma
tornaram necessária a reestruturação dos fundamentos do próprio
vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas
Estado, incluso a teoria da separação dos poderes14. Exige-se, assim,
concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal”17.
11 David Bilchitz traz dúvida com relação a este argumento, dizendo que: “It is not in fact true that significant
15 Destaque-se, aqui, a lição de Roberto Gargarella que afirma: “O controle judicial pode ser um instrumento
budgetary implications will invariably follow from orders involving socio-economic rights: the enforcement of
crucial para enriquecer a deliberação pública a respeito dos direitos sociais. Ademais, o ativismo judicial na área
negative duties associated with socio-economic rights—for instance, preventing the state from demolishing houses
dos direitos sociais pode ser especialmente relevante, dada a íntima relação que existe entre direitos sociais e
or evicting persons—will not necessarily attract major budgetary consequences. In relation to positive duties, the
a participação política”. In: GARGARELLA, Roberto. Democracia Deliberativa e o Papel dos Juízes Diante dos
exact nature of the budgetary consequences will depend on the order that is made and the context: the extension
Direitos Sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.(coord.) Direitos Sociais: fundamentos,
of an existing feeding scheme, for instance, may cost less than the creation of a new feeding program. Moreover,
justicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 207-227. p. 219.
it is not clear that there is necessarily a significant difference in all societies between the amount spent on the
16 Acerca dessa importante função do Poder Judiciário em relação às minorias anota David Bilchitz:
positive obligations imposed by civil and political rights as opposed to those imposed by socio-economic rights.”
“Representative institutions take decisions on the basis of a majority vote. As a result, they are well set up to
In: BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights.
reflect the opinions of the majority of citizens. However, there is a clear institutional inclination towards
Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p.129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009,
deciding matters on the basis of the interests of a majority. In relation to matters of fundamental rights, there
doi:10.1093/acprof:oso/9780199552160.001.0001.
is often a delicate balance to be struck between the interests of different individuals. The interests of perpetual
12 Diversos autores são destacados como antecessores e contributos desta divisão funcional do Estado, mas
minorities may simply be ignored by majoritarian institutions, and, even if they are taken into account, they may
foi Montesquieu em sua obra L´Esprit des Lois (1748) que fez emergir a noção de tripartição das funções típicas
be misconstrued through the prejudices of those in the majority. Discrimination and ethnic factors may further
de Estado (executivo, legislativo e judiciário) como “poderes” independentes entre si. Para mais, ver: SALDANHA,
contribute to distorting the judgment of the majority. The sidelining of minorities may not necessarily take place
Nelson. O estado moderno e a separação dos poderes. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2010. p. 78-85.
through deliberate discrimination by majorities; rather, it may be that the interests of minorities are simply not
13 Bonavides destaca que James Madison, nos papeis federalistas, já sublinhava que: “o mais leve vislumbre da
taken into account adequately by the democratic process. Consider most modern democracies in the developed
Constituição Inglesa demonstra que nenhum dos departamentos jurídico, executivo e judiciário estava totalmente
world. Political parties generally appeal to the middle class to be elected, and thus the concerns of the middle class
separado ou distinto entre si”. In: Sobre a temática ver: BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18ª ed. São Paulo:
are dominant. Homeless people may also be voters, but their numbers may be insufficient to have an impact on
Malheiros, 2011. p. 148.
party policies or to warrant serious concern by political parties. Thus, their interests are sidelined and not placed
14 “... enquanto os direitos clássicos do Liberalismo eram direitos à proteção e à limitação jurídica do poder,
firmly on the political agenda. Scant attention can be paid to the homeless as there is little.” In: BILCHITZ, David.
os direitos sociais são direitos à promoção, direitos que apontam à organização da solidariedade. Se no Estado
Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Oxford/New York:
liberal buscava-se fazer valer direitos contra o Poder Público, no Estado Social insurgiram-se direitos ante o Poder
Oxford University Press, 2008. p. 124. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009, doi:10.1093/acprof:
Público”. In: PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade
os o/9780199552160.001.0001.
por omissão e mandado de injunção. 2. ed. rev. atual. amp. São Paulo: RT, 2003. p. 36.
17 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Editora

42 43
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E Melina Girardi Fachin
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

Alçar também o Poder Judiciário, seja no âmbito interno ou direitos sociais à categoria de verdadeiros direitos, intentar traçar a ponte
subsidiariamente na seara internacional, à realização dos direitos da universalização parcial à integralidade da proteção de direitos.
humanos, sobretudo aqueles sociais mais básicos, não é apenas razoável Como recorte metodológico, a análise ater-se-á aos julgados produzidos
como imperativo. Todo o aparelho de Estado é responsável e deve se no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná porque intérprete
somar na realização da dignidade da pessoa humana e é deste princípio privilegiado de nossa realidade local. Em consonância com os frutos
que decorre o mandato das instâncias judiciárias para atuar em relação colhidos na jurisprudência da Corte Suprema Pátria20, o Poder Judiciário
aos direitos humanos18. do Estado do Paraná tem tido papel de proeminência na fixação dos
Na conjuntura pátria torna-se ainda mais importante a participação standards para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais.
ativa e corresponsável das instâncias judiciais como forma de atuar em Sob o pálio dos efeitos irradiadores do entendimento do STF, de um
relação à profunda desigualdade social. O Judiciário não pode quedar modo geral, os entendimentos jurisprudenciais seguem os parâmetros
passivo diante dessa realidade, sendo a participação da jurisdição na da efetivação da proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais.
realização dos direitos um importante mecanismo de democratização e Entretanto, pontue-se que há vozes21, ainda fixadas na postura liberal
fruição da verdadeira cidadania. clássica de ofensa à separação dos poderes posto que não caberia ao
Refutar a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais pela Poder Judiciário a análise da conveniência e oportunidade da alocação
via judicial atende a padrões ideológicos e não técnicos. As garantias dos recursos públicos, com base no argumento da reserva orçamentária.
judiciais são um importante mecanismo para romper com a dicotomia e Cada vez mais, o Poder Judiciário tem assumido seu papel de garante,
ambivalência instauradas de que a categoria dos direitos civis e políticos sobretudo dos direitos sociais. A jurisprudência da Corte de Justiça
merece acatamento e plena realização enquanto os direitos sociais ficam estadual reafirma a legitimidade judiciária de intervir em casos de omissão
à mercê da boa-vontade e caridade estatal. A propósito, eis a precisa lição dos demais poderes na consecução de políticas públicas para efetivação
de David Bilchitz: dos direitos sociais previstos no texto constitucional, afastando, assim, o
frágil argumento da separação dos poderes.
(…) judicial duties in relation to socio-economic rights will not differ greatly
from those they perform in relation to civil and political rights. Courts Ilustra o exposto voto recente da lavra da 4ª Câmara Cível acerca da
are not criticized for ordering the provision of legal representation to the prestação do direito social à saúde pela via judicial. Nas palavras contidas
unrepresented, or for ordering that all are provided with the vote in a
no acórdão:
society: why then should they be criticized for ordering a state to ensure
that people are provided with enough food to avoid malnutrition? The
rationale for this distinction seems to lie in the fact that the critics regard
socio-economic rights as in some way inferior to civil and political rights
and as not warranting equal protection.19 20 A saber: “(...) Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a
prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda
Fluem nesse intuito de levar os direitos econômicos, sociais e culturais que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria
Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem
a sério e, por via de consequência, promover visão holística e universal os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com
dos direitos humanos as experiências jurisprudenciais. Analisar-se-ão, a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE
portanto, sem o intuito de esgotamento, mas a título de ilustração, alguns INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever
casos que demonstram o esforço da jurisdição paranaense em, alçando os de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento
negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno
da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. [...] -
Tempo Brasileiro, 2003. p. 326. Precedentes.” Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,
18 “Num Estado Social, modelo adotado pela Carta Brasileira de 1988, o Poder Judiciário é exigido a estabelecer o julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125.
sentido ou a completar o significado da legislação constitucional e ordinária que já nasce com motivações distintas 21 Sobre esta postura anota Krell: “Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado
às da certeza jurídica, o que lhe dá o papel de “legislador implícito”. Dessa maneira, a agenda da igualdade redefine de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico,
a relação entre os três Poderes, adjudicando ao Poder Judiciário funções de controle dos poderes políticos.” In: ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas
KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição
direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 98. da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais
19 BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of Socio-economic Rights. Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos.” In: KRELL, Andreas
Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p. 129. Published to Oxford Scholarship Online: January 2009, Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional
doi:10.1093/acprof:os o/9780199552160.001.0001. “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 23.

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A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E Melina Girardi Fachin
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA LIMINAR PROFERIDA NOS AUTOS a negar a própria autoridade do texto constitucional. Reforçando esse
DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM QUE FOI DETERMINADO O FORNECIMENTO mesmo posicionamento fixa julgado recente:
DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO DO PARANÁ A PORTADORA DE
FIBROMIALGIA. PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO EM VIRTUDE DE
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR DEFERIDO EM AÇÃO
TER SIDO CONCEDIDA SEM A OITIVA DO REPRESENTANTE DA PESSOA
CIVIL PÚBLICA PARA CONDENAR O MUNICÍPIO DE PITANGA AO
JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO (ART. 2º DA LEI 8.437/92). POSSIBILIDADE.
FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO TEMODAL (TERMOZOLOMIDA)
HIPÓTESE EXCEPCIONAL. NATUREZA E ESSENCIALIDADE DO DIREITO EM
AO SR. LAURIDES CARLOS BOSCHETO, PORTADOR DE TUMOR
QUESTÃO QUE AUTORIZAM A MITIGAÇÃO DA CITADA REGRA. PRELIMINAR
CEREBRAL. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO
AFASTADA. MEDICAMENTO NÃO CONSTANTE NOS PROTOCOLOS CLÍNICOS
DE PITANGA. NÃO ACOLHIMENTO. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS
PARA O TRATAMENTO DA DOENÇA. IRRELEVÂNCIA. DIREITOS À SAÚDE
ENTES DA FEDERAÇÃO NO CUSTEIO E GERENCIAMENTO DO
E À VIDA PROTEGIDOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ELEVADOS
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. A AÇÃO PODE SER PROPOSTA CONTRA
À CATEGORIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. DEVER DO ESTADO EM
QUALQUER DOS ENTES RESPONSAVELMENTE SOLIDÁRIOS.
PROVÊ-LO CONFORME PRECEITUA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART.
EXISTÊNCIA DE CACON CENTRO DE ALTA COMPLEXIDADE EM ONCOLOGIA
5º, II, 6º E 196). PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE
QUE NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. TRATAMENTO
DEVE PREVALECER ACIMA DE QUALQUER REGRA BUROCRÁTICA DE
NÃO REGISTRADO NA TABELA DE PROCEDIMENTOS DO SUS. IRRELEVÂNCIA.
FORNECIMENTO. ATENDIMENTO AOS DITAMES DA RECOMENDAÇÃO
DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. NECESSIDADE DO TRATAMENTO
EDITADA PELO COMITÊ EXECUTIVO DO FÓRUM NACIONAL DO JUDICIÁRIO
DEVIDAMENTE DEMONSTRADA NOS AUTOS. PRINCÍPIO DA RESERVA DO
PARA MONITORAMENTO E RESOLUÇÃO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE VEZ
POSSÍVEL QUE NÃO PODE SERVIR DE OBSTÁCULO À CONCRETIZAÇÃO
QUE OS PRESENTES AUTOS EVIDENCIAM QUE OS MEDICAMENTOS
DE DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL. LIMITE NA GARANTIA DO MÍNIMO
PRETENDIDOS SÃO ESSENCIAIS PARA O TRATAMENTO DA PACIENTE.
EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO DEVIDA PELO ESTADO INDEPENDENTEMENTE
DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NEGADO
DE MEDIAÇÃO LEGISLATIVA OU PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA POR ESTAR
PROVIMENTO.22
INTIMAMENTE LIGADA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
E AO DIREITO À VIDA. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA QUE
A jurisprudência do TJ/PR é unânime em sobrepor a realização das AUTORIZAM A CONCESSÃO DA LIMINAR NOS TERMOS DA DECISÃO
garantias constitucionais em face de discussões burocrático-formalistas. AGRAVADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.24
A saber:
Ainda, dialogando com a jurisprudência do STF25, o TJ/PR também
AÇÃO ORDINÁRIA. PEDIDO DE FORNECIMENTO GRATUITO DE abriga a vedação do retrocesso social como parâmetro para realização
MEDICAMENTO. TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA EM PRIMEIRO dos direitos econômicos, sociais e culturais, como baliza à limitação de
GRAU. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. INOCORRÊNCIA. NEGATIVA
DE FORNECIMENTO CONFIGURADA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. recursos. Leia-se, a propósito, no voto da 7ª Câmara Cível que “o princípio
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO. PRELIMINARES da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais
REJEITADAS. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE. REFLEXOS NA de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. DEVER pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”. E prossegue
DO ESTADO. MEDICAMENTO PRESCRITO POR PROFISSIONAL MÉDICO À
PESSOA IDOSA PORTADORA DE GRAVE DOENÇA (OSTEOPOROSE GRAVE).
o voto: “A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a
AUTORA DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS PARA ARCAR COM O prestações positivas do Estado [...] traduz [...] obstáculo a que os níveis
ALTO CUSTO DO FÁRMACO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.23 de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser

Por igual modo, os argumentos acerca da limitação dos recursos


24 TJPR - 4ª C.Cível - AI 788605-5 - Pitanga - Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - J. 26.06.2012.
disponíveis são recebidos com granus salis pelo Tribunal. Segundo a Grifos nossos.
jurisprudência dominante, a reserva orçamentária não pode contrapor-se 25 “A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO
INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso
à implementação mínima desses direitos, porque são imprescindíveis à impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas
existência digna. Obviamente, não se devem ignorar os laços financeiros pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos
a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública,
que a concretização dos direitos sociais exigem. No entanto, estes v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que
aspectos econômico-financeiros não podem ser manejados de modo os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou
suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos
prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão
22 TJPR - 4ª C.Cível - AI 917988-8 - Umuarama - Rel.: Wellington Emanuel C de Moura - Unânime - J. 23.10.2012. ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos
Grifo nossos. sociais já concretizados”. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda
23 TJPR - 4ª C.Cível - AI 839700-6 - Ponta Grossa - Rel.: Guido Döbeli - Unânime - J. 13.03.2012. Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125.

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A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E Melina Girardi Fachin
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado”26. pela porta jurisdicional, a realização desses direitos como verdadeiros
direitos humanos.
Diversos poderiam ser os julgados aqui colacionados27, porém o objetivo
é somente demonstrar o sentido da proteção aos direitos econômicos, Apenas com a garantia real dos direitos sociais é que a proteção de
sociais e culturais em nosso poder judiciário estadual. Nota-se que o direitos alçará os anseios inaugurados com a concepção contemporânea,
TJ/PR tem atuado para tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e em 1948 e com a Constituição Federal, em 1988. Sem levar os direitos
culturais, na tentativa de, ao menos em seu núcleo mínimo, equipará-los sociais a sério, a própria proteção dos direitos civis e políticos perde seu
ao tratamento jurídico que recebem àqueles civis e políticos. sentido estrutural, convertendo-se em garantia meramente formal posto
que a participação política depende de uma adequada situação e inclusão
A análise, todavia, nos demonstra que ainda há um longo caminho a
econômica e social dos indivíduos.
seguir. Em primeiro plano, as jurisdições são provocadas pela ausência
ou inércia dos demais poderes constituídos que ainda não operam em
tônica próxima dos direitos humanos. Ainda, a jurisdição, em face das Referências
inúmeras violações existentes, é pouco provocada à realização desses
direitos e, quando o é, o foco ainda é a litigância individual que privilegia
alguns direitos, como a saúde e a educação, deixando os outros direitos ABRAMOVICH, Victor. Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais:
econômicos, sociais e culturais à mercê da efetiva universalização. Isso instrumentos e aliados. In: Sur RevistaInternacional de DireitosHumanos. vol.2, nº.2, 2005.
corrobora a ambivalência na realização das diferentes classes de direitos. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
Sobre esta distância a percorrer, anota Flávia Piovesan: BILCHITZ, David. Poverty and Fundamental Rights, The Justification and Enforcement of
Socio-economic Rights. Oxford/New York: Oxford University Press, 2008. p. 129. Published
É necessário, contudo, avançar em estratégias de litigância que otimizem to Oxford Scholarship Online: January 2009.
a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos sociais, como verdadeiros
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
direitos públicos subjetivos, por meio do empowerment da sociedade civil
e de seu ativo e criativo protagonismo. Há de se reinventar a relação com BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO,
o Poder Judiciário, ampliando seus interlocutores e alargando o universo Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011
de demandas, para converter este poder em um locus de afirmação de EMENT VOL-02587-01 PP-00125.
direitos. Há que se fortalecer a perspectiva integral dos direitos humanos,
que tem nos direitos sociais uma dimensão vital e inalienável, aprimorando BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO,
os mecanismos de sua proteção e justiciabilidade, dignificando, assim, a Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011
racionalidade emancipatória dos direitos sociais como direitos humanos, EMENT VOL-02587-01 PP-00125.
nacional e internacionalmente garantidos.28 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Estado de Direito. Cadernos Democráticos. Lisboa:
Gradiva, 1999.
EIDE, Asbjorn; ROSAS, Alan. Economic, Social and Cultural Rights: a universal challenge.
5. Conclusão In: EIDE, Asbjorn; KRAUSE, Catarina; ROSAS, Alan (Editors). Economic, Social and Cultural
Rights: a textbook. 2ndrevisededition. Dordrecht: Martinus NijhoffPublishers, 2001.
Em que pese os esforços jurisdicionais acima narrados, a realização
universal dos direitos tornou-se, ao menos para grande parte da GARGARELLA, Roberto. Democracia Deliberativa e o Papel dos Juízes Diante dos Direitos
população mundial, vivendo na fome e na miséria, um mito em um mundo Sociais. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.(coord.) Direitos Sociais:
fundamentos, justicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
divorciado de direitos. Ainda é necessário dar um passo adiante em 2008.
direção a concepção integral dos direitos humanos, alçando, não apenas
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de
26 TJPR - 7ª C.Cível - AC 874812-3 - Foro Regional de Araucária da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2003.
- Rel.: Luiz Antônio Barry - Unânime - J. 12.06.2012.
27 A título de exemplo: TJPR, AI 840.235-1, 4ª Câmara Cível, rel. Des. Guido Dobeli, 15/06/2012; TJPR, Acórdão KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os
864103-6, 4ª Câmara Cível, rel. Maria Aparecida Blanco de Lima, j. 08/05/2012; TJPR, Acórdão 864103-6, 4ª Câmara
(des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio
Cível, rel. Des. Maria Aparecido Blanco de Lima, j. 08/05/2012; TJPR, Acórdão 869235-3, 4ª Câmara Cível, rel. Des.
Abraham Lincoln Calixto, j. 24/07/2012; TJPR- 691.697-6, 3ª CC, rel. Juiz Convocado Fernando Antonio Prazeres, jul Fabris Editor, 2002.
09/11/2010; Apelação Cível nº 748195-2 - 2ª Câmara Cível - Rel. Dra. Josely Dittrich Ribas.
28 PIOVESAN, Flávia. Proteção e Justiciabilidade dos Direitos nos Planos Global,  Regional e Local. In: Revista PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 917988-8 - Umuarama
da Escola da Magistratura do TRT de São Paulo-SP, 2ª Região. Ano 3, nº 3, setembro de 2008. p. 139-182. p. 182.

48 49
A FRAGMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
CULTURAIS: uma análise a partir do cenário estadual paranaense de proteção

- Rel.: Wellington Emanuel C de Moura - Unânime - J. 23.10.2012. Grifo nossos.


PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 839700-6 - Ponta Grossa
- Rel.: Guido Döbeli - Unânime - J. 13.03.2012.
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 4ª C.Cível - AI 788605-5 - Pitanga - Rel.:
Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime - J. 26.06.2012. Grifos nossos.
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 7ª C.Cível - AC 874812-3 - Foro Regional
de Araucária da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Luiz Antônio Barry -
Unânime - J. 12.06.2012.
PIOVESAN, Flávia. Proteção e Justiciabilidade dos Direitos nos Planos Global, Regional e
Local. In: Revista da Escola da Magistratura do TRT de São Paulo-SP, 2ª Região. Ano 3, nº
3, setembro de 2008.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo:
Saraiva, 2012.
PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2. ed. rev. atual. amp. São
Paulo: RT, 2003.
SALDANHA, Nelson. O estado moderno e a separação dos poderes. 2. ed. São Paulo:
QuartierLatin do Brasil, 2010.
SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das
normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado. São Paulo, vol. 4, p. 23-51, 2006.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Legado da Declaração Universal e o Futuro da
Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: AMARAL JUNIOR, Alberto; PERRONE-
MOISÉS, Claudia (orgs). O Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
São Paulo: Edusp, 1998.

50
Leandro Franklin Gorsdorf

DIREITOS HUMANOS E ARTE: dialógos possíveis para uma


episteme

Leandro Franklin GORSDORF1

Introdução
A sociedade encontra-se em tempos de questionamentos, tempos de
busca por novas perguntas e respostas, tempos de pensar em uma nova
forma de se dizer e fazer os Direitos Humanos.
Atualmente, a sensação que se tem sobre o futuro dos Direitos
Humanos é incerta frente aos índices violência, da desigualdade social,
dos atos de intolerância, das posições de governantes, dos discursos dos
“especialistas” e da desmobilização da sociedade civil.
Outros campos de luta pelos direitos humanos devem ser construídos,
reconstruídos e destruídos (pois, enfim, a morte tem seu potencial
criador), abrindo a novas concepções, novas relações, novos saberes.
A mudança deve ser feita no âmbito teórico, prático e simbólico,
que permita o fortalecimento dos sujeitos na ação política e jurídica
direcionada aos direitos humanos.
Este artigo tenta traçar alguns caminhos que podem ser percorridos
ao entrelaçar Direito, Política e Arte na construção de um novo saber de
Direitos Humanos, para que se torne menos aprisionado pelo discurso
jurídico travestido de “ciência” e mais liberto para um pensamento livre e
plural, de experimentação e sentimento.
O itinerário proposto para este artigo perpassa pela identificação da
colonização dos direitos humanos pelo conhecimento jurídico cientifico e
a possibilidade de passagem para a dimensão política. Porém, a política
vista aqui, sob o olhar da relação entre política e arte.

2. Direitos Humanos e “Ciência Jurídica”: a operação reducionista da


Modernidade
Ao se perguntar sobre o que são os direitos humanos? Pode-se deparar
com a resposta que está indicada na própria pergunta, são direitos. Incorre
1 Professor de Direitos Humanos do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal do Paraná, doutorando
em Direito pela Universidade Federal do Paraná, membro do Observatório de Direitos Humanos, membro do Grupo
de Pesquisa “Direito e Literatura”. Relator Nacional do Direito a Cidade da Plataforma Dhesca Brasil(2012-2014) e
conselheiro da entidade Terra de Direitos.

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DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME Leandro Franklin Gorsdorf

que ao se apegar a esta resposta, pode-se reafirmar o reducionismo dos Neste sentido, o racionalismo propugnou um culto a razão. Ou seja, uma
Direitos Humanos ao mundo jurídico, como se bastasse o direito a ter deformação da interpretação do valor da razão, onde “rigor, cientificidade,
direitos para consecução do fim dos direitos humanos, as necessidades lógica, epistemologia e método são termos suficientemente estéreis para
dos sujeitos. já significarem a falta de porosidade a tudo que pode ser visto como
deslocado destas práticas do racionalismo.” (BITTAR, 2008, p.63).
A teoria dos Direitos Humanos, construída pela doutrina e pelos
teóricos, se referencia em tratados, convenções, leis, decretos, portarias e A concepção de direitos humanos que se alicerça sobre esta ótica,
decisões judiciais para construir as bases da exigibilidade. Por outro lado, busca os, ao mesmo tempo em que é refém dos, fins da ciência moderna,
estas discussões se descolam da realidade, pois partem do “resultado” que é a certeza e segurança. O conhecimento jurídico rigoroso se torna,
para identificar o que são os direitos humanos. Inscrevem os direitos então, refém: do Estado, do capital, da universidade, de um sistema de
humanos no campo jurídico e, tão somente, apartando-os de outras peritos, de um conhecimento profissionalizado, relativamente separado
racionalidades ou saberes. das aspirações, dos anseios e das necessidades do cidadão comum.
Aprisionado por elites dominantes, por classes que tiveram a capacidade
Se os direitos humanos se inserem na seara do conhecimento jurídico
de dominar e de controlar esse poder saber.
para construção de suas bases teóricas, tem-se o entendimento de que
as concepções e ideias do que vem a ser o Direito permeiam e exercem A pretensa objetividade e neutralidade epistêmica foram determinantes
influência nas delimitações dos debates e práticas sobre direitos humanos. para tornar-se estéril, inexpugnável, impassível de ser contaminada pela
dimensão interativa, espontânea e natural humana. (BITTAR, 2008, p.62).
O Direito, desde o século XIX, se entende como ciência, em razão
do “discurso do saber científico que vem organizado a partir de uma A investida dos juristas pelo processo de depuramento do Direito e,
episteme lógico demonstrativo e que seja empiricamente verificável.” por conseguinte, da constituição da ciência exata do direito, se deve pela
(COSTA, 2012). busca de um método e de um sistema. (HESPANHA, 2008, 151). Para o
jurista, o que é central no saber jurídico é o direito que realmente é, e
Esta forma de conhecimento jurídico, assentado na ideia de ciência,
não que o direito não é porque ainda não é, isto é, das pretensões, das
“se fortalece com a instituição do Estado de Direitos no século XIX e
expectativas, previsões, do futuro. (COSTA, 2012).
que ainda permanece nos tempos de hoje. Momento em que a política
deve obedecer aos processos jurídicos, os campos jurídicos e políticos O positivismo jurídico, aplicado aos direitos humanos, reforçou o senso
aparecem largamente sobrepostos, como lugar em que se desenrolam as comum de que a “ciência jurídica seria, acima de tudo, uma ciência lógica
lutas simbólicas pela apropriação da competência de constituir direito.” da interpretação cartesiana de textos racionais e objetivos, em que não
(HESPANHA, 2008, p.180). haveria lugar para as incertezas semânticas, a emocionalidade e até certa
irracionalidade da arte e da estética.” (FRANCO FILHO, 2011, p.18).
O Direito, e, por conseguinte, os direitos humanos, que vem sendo
construídos posteriormente, o são sob a égide deste racionalismo Desta forma, os direitos humanos são capturados por esta lógica de
científico jurídico. O conhecimento jurídico, entendido como ciência, se pensamento dogmático e científico, instaurando um “juridicismo” que
apartou da política, impingindo consequências para as diversas áreas do é “um grande caldeirão de sonoridades que determinam condições
Direito, inclusive dos Direitos Humanos. alienadas de passividade: uma overdose de crenças, verdades reveladas,
valores banalizados, sentidos de posse que destroem os esforços de
Com o Direito sendo compreendido como ciência, a formação do
instauração de uma sociedade autônoma.” (WARAT, 1997, p.49).
conhecimento jurídico sofre algumas implicações, como explicita BITTAR:
Os Direitos Humanos como apreendido pela dogmática tradicional
Para o racionalismo, não se pode crer naquilo que a ciência moderna não se referem a uma realidade conquistada, já alcançada e não um ideal
tenha comprovado e, por isso, a fonte de todo saber é sempre fundada a se conquistar. Isto é, são algo que já temos pelo fato de sermos seres
na plataforma de pesquisa do próprio racionalismo. Se alimentando de si humanos, corroborando ideia jusnaturalista e positivista do Direito.
mesmo, e negando valor a toda pratica de sabedoria que divirja de seus
cânones, a ciência moderna, racionalista e ocidental, se define a si mesma, Estes juristas entendem que “os direitos ‘são os direitos’; quer dizer
a se auto arroga a condição de saber único (...)(BITTAR, 2008, p.64) os direitos humanos se satisfazem tendo direitos.” (HERRERA, 2009,33).

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Novamente esta ideia se traduz numa generalização dos direitos, abstratos A construção dos direitos humanos não pode se assentar na ideia de
e conceituais. Reforça a ideia de um a priori dos direitos humanos. Como puro, pois este somente “se alcança por via negativa, ou seja, despojando-
se a luta pelos direitos humanos fosse tão somente uma luta em termos se o pretendido objeto de conhecimento de todas as suas impurezas e
jurídicos, de direito a ter direitos. negando-lhes sucessivamente os atributos de uma existência em si e por
si” (HERRERA, 2009, p.86). Como expõe OST, o direito deve ser abalado
Para esclarecer, podemos resumir em três falácias que este tipo de
em suas certezas dogmáticas e reconduzido a interrogações essenciais.
pensamento de conhecimento jurídico aliado aos direitos humanos pode
(OST, 2005, p.09).
resultar:
Para avançar os limites impostos a esta racionalidade se propõe trazer
1.Independentizar as condições de produção do conhecimento do
para o campo jurídico, as incertezas da política, da realidade, do mundo
contexto que a tornam impossíveis.
vivido prenhe de suas contradições e paradoxos. Para um novo tempo
2.Invisibilizar as consequências reais que dito conhecimento tem dos direitos humanos é imprescindível engendrar novas práticas sociais e
sobre a própria realidade que se pretende conhecer; novos direitos.
3.Trabalhar teoricamente os direitos humanos deixando de lado a Tal empreendimento deve ser levado a última instância, desde que
função social do conhecimento2. considere os direitos humanos nas suas facetas, a do político e a de um
jurídico não mais mediado pela racionalidade científica da modernidade.
A dimensão de transformação do Direito, em especial dos Direitos
Humanos deve optar pelo caminho das mudanças das concepções Os direitos humanos devem ser entendidos como resultado de lutas
jurídicas, do mundo e da vida, isto é, no campo da episteme. (GAMA, impulsionadas tanto por categorias teóricas como por categorias práticas,
2009). isto é, por elementos conceituais ou materiais. No campo conceitual,
podemos falar em teorias, posição, espaço, valores, narração, instituições.
Para contrapor o aprisionamento que o racionalismo jurídico impõe
No campo material, forças produtivas, disposição, desenvolvimento,
aos direitos humanos, deve-se entender que os direitos humanos,
práticas sociais, historicidade e relações sociais. (HERRERA, 2009, 122).
além de serem direitos “propriamente ditos”, são processos. Processos
políticos, que podem ser amparados por lutas no campo jurídico, mas Essas categorias teóricas e prática devem ser revistas para a construção
que, em última instância, são dinâmicas sociais que tendem a construir de um novo conhecimento acerca dos direitos humanos. A Arte por ter sido
condições materiais e imateriais necessárias para garantir o acesso a bens. a racionalidade menos colonizada pela modernidade, em grande medida
(HERRERA, 2009, p.35). A mudança de perspectiva dos direitos humanos por ter sido marginalizada é a opção para a transformação epistemológica
visa a garantir que se situe a realização dos direitos a partir de um lugar dos direitos humanos. Em oposição se encontra a ciência moderna e a
político na sociedade. arte, pois aquela é negação desta, a certeza em detrimento da incerteza.
Urgente, é a recuperação do político, no qual se romperia com a Por essa razão, ao estreitar laços com a Arte, o saber jurídico positivista
“posição naturalista que concebem os direitos como uma esfera separada “tende a perder o revestimento “cientificista” que o caracterizava,
e prévia à ação política democrática.” (HERRERA, 2009, p.78). renuncia a pretensão de representar hegemonicamente a totalidade do
campo jurídico, converte em problema a ideia da própria capacidade de
A realidade é resultado, produto cultural, visto sempre como categoria
descrever e a de sua objetividade.” (COSTA, 2012).
impura, contaminada de contexto e submetida as relações fáticas de
poder. (HERRERA, 2009, p.79). Por outro lado, no campo da política, “a arte propicia contundentes
indícios para se apreenderem os limites e os paradoxos da política, suas
O caminho para uma teoria/prática de direitos humanos é o
razões e insuficiências esperançam de construção do espaço público e
enfrentamento das purezas e as idealizações de um corpo jurídico imune
frustração com os resultados alcançados” (CHAIA, 2007, p.13). A Política e
as incertezas.
o Direito, dos direitos humanos devem ser repensados nos seus limites a
2 São três as condições mínimas para estabelecer a função social do conhecimento dos direitos humanos: a) não
se pode haver conhecimento critico, se não começarmos pela própria crítica do conhecimento;b)superação das partir da Arte, lhes garantindo uma nova refundação.
abstrações, reconhecendo os sujeitos nos seu fazer e não somente no seu pensar; c) nossa ideia de mundo não
pode recair no déficit de sentido(coisificação do humano) nem no excesso de sentido(idealização do humanos).
(HERRERA,2009, p.109-110)

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A arte pode contribuir para a elaboração de uma teoria/prática de realidade, representando em certos aspectos a condição humana, os
direitos humanos, quando estiver compromissada com três objetivos: mecanismos de poder e da economia, ou a estrutura social no qual o
“1. Desenterrar contínua e permanentemente aquilo que fica esquecido/ artista esta envolvido. (CHAIA, 2007, p. 22).
oculto; 2. estabelecer, de um modo constante, relações e vínculos que b) A situação da politização da arte, que trata-se do artista
foram negados; e 3. apontar recorrentemente cursos alternativos de ação assumidamente engajado que critica, protesta e age publicamente,
social e de reflexão intelectual.” (HERRERA, 2009, p.111). carregado de componentes ideológicos, de influências partidárias
Os próximos passos são identificar os possíveis diálogos entre a política e da circulação de ideias brotadas de manifestos de vanguarda.
e arte e o direito e arte, e como resultante destas inter-relações um novo Existe uma fusão de interesses individuais e institucionais, e por isso
horizonte para os Direitos Humanos. mesmo em alguns casos resultando em propagação difusa de um
projeto político. (CHAIA, 2007, p.24)

3. Política e Arte: interações para autonomia dos Direitos Humanos A partir desta concepção podemos entender que “o artista politiza
a sua arte ao privilegiar seu papel de militante, trazendo para sua
A arte garante um estranhamento frente ao mundo, capaz de indagar obra parâmetros externos a sua subjetividade, dados por programas
sobre o estado das suas convenções e dos lugares comuns. (GAMA, 2009). políticos partidários e estatais que possam justificar ou alimentar a
E por isso a força criativa dos questionamentos dados pela arte, do poder sua ação criativa.” (CHAIA, 2007, p.25)
estabelecido e das normas impostas, seja pelo Estado ou pela sociedade
civil. c) Situação da estetização da política, expressão cunhada por Walter
Benjamin, quando analisa o nazismo e o fascismo, e a atuação do
Dois campos teóricos têm desenvolvido discussões sobre a relação Estado ou de associações partidárias, constituindo-se como fonte
entre arte e política, trazendo fundamentações filosóficas específicas de ingerência externa sobre a produção da arte e tornando-a parte
sobre as múltiplas interações entre estas duas áreas do conhecimento. de um projeto reformador da sociedade. A centralização política,
Dentre aqueles que entendem que “a arte está relacionada às massificação, propaganda e tecnologia soam-se a arte para a
condições externas a ela, ou seja, a obra e o artista encontram-se ligados transformação totalitária da sociedade, eliminando-se a possibilidade
as condições sociais”, temos como origem, Karl Marx, e na mesma esteira, da discussão estética como esfera autônoma. (CHAIA, 2007,26-27)
Theodor Adorno, Guy Debord e Frederic Jameson. (CHAIA, 2007, p.15). Ainda para reforçar esta ideia, esta situação não permite que ela se
Outra corrente compreende “a arte num movimento interno em politize sem perder sua autonomia, pois influencia a ação cidadã de modo
direção ao sujeito, seja ele artista ou usufruidor.” Dentre os pensadores, autoritário, já que é, de certo modo, está presente uma intencionalidade
se destacam Friedrich Nietzsche, Antonin Artaud, Maurice Blanchot e explícita. (BLOTA, 2008)
outros pensadores franceses. E por último, situação da “presença política da obra”, na qual
As bases como essa relação pode ser construída é exemplificada por independentemente ou não da vontade do sujeito e do projeto do
quatro situações, que podem num determinado momento histórico artista, uma obra de arte pode tornar-se um símbolo político que evoca
incorrer simultaneamente, se considerarmos as ações e produções dos um conjunto de ideias ou condições sociais, não representando um fato
artistas, o desenrolar dos movimentos artísticos e as estratégias adotadas histórico, mas sendo um fato. (CHAIA, 2007, p.28)
por instituições políticas. A transformação social, que está no cerne da discussão dos direitos
a) A situação da arte crítica, estabelecida pela consciência crítica humanos, pode ser realizada:
do artista, que propicia a um indivíduo ou a um grupo criar obras
baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços por meio de atitudes contestatórias e ações autônomas – que se
desenvolvem num espaço democrático, aberto, heterogêneo e segmentado.
e pesquisas para o avanço ou a revolução da linguagem. Aparece Neste processo, importa a presença do artista para transgredir e resistir,
como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma seja ele visionário, rebelde ou revolucionário, na luta contra a sujeição
modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a cultural, utilizando-se do esforço individual ou da cooperação coletiva,

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dos meios eletrônicos ou do correio, do conceito ou da materialidade, dos A forma como se articula o conhecimento científico do Direito e a arte
suportes tradicionais ou de novas tecnologias. (CHAIA, 2007, p. 38-39) são distintos, pois
É importante frisar que as situações que se apresentaram, representam a razão científica se apresenta como objetiva racional e universal,
como o artista e sua obra de arte, podem externalizar e aprimorar os relegando a arte ao subjetivo, o emocional/passional e o particular,
espaços existentes na nossa democracia, alterando os modos e formas isto é, não generalizável além do pano de fundo cultural sobre o qual é
tradicionais do debate público, incitando pensar a democracia para além realizado. Ao contrário a razão científica, sempre potencialmente aplicável
dos espaços institucionais. a qualquer contexto e qualquer forma cultural. A imagem do científico é a
flecha; enquanto que a do artístico é a espiral, ascendente e descendente,
A possibilidade da arte e política se aproximarem para repensar os horizontal e vertical (...) (HERRERA FLORES, 2000,248) (tradução do autor).
direitos humanos, pressupõe a autonomia desta arte em relação ao poder
Ainda neste sentido, expondo traços comparativos:
instituído e frente ao capitalismo, propiciando a reflexão em direção a
autenticidade e originalidade. A arte duvida até de si mesma. A ciência analisa, rompe o real para conhecer
Privilegia-se “a dimensão simbólica dos direitos humanos como parte as partes. A arte realiza, nos relaciona com nós mesmos e com o mundo,
sempre em função da presença real do outro. A ciência estabelece uma
constitutiva de um espaço público, que aglutina focos de autonomia dos
autoridade, um meta-nível que potencializa a aparição dos mediadores, de
desejos, experimenta novas relações como saber, a lei e o poder, para representantes da verdade. A arte permite o múltiplo comentário, a dúctil
assegurar, sem garantias, o valor emancipatório da criatividade.” (WARAT, e plural interpretação, a variedade de leituras e recepções. A verdade
1997, p.53). científica pretende afirmar quatro princípios: a de independência com
respeito a existência humana (somente podemos atuar para encontra-la);
A arte elaborada como lugar de resistência e de mudança na sociedade, o da correspondência com a realidade; o de bivalência, cada enunciado
prima pelo fortalecimento do debate, do espaço público, da cidadania, em é verdadeiro ou falso; e o de singularidade, já que somente há uma
confronto com o processo de transformação da arte em produto de fruição completa e verdadeira descrição da realidade. Enquanto a arte, são da
imediatez, o de compromisso pessoal e da responsabilidade. A ciência
individual, produto de consumo de massa. (ADORNO;HORKHEIMER,1985, avança eliminando o que considera erro. Ao contrário, a arte atua como
p. 113-156). memória do humano. (HERRERA FLORES, 2000, p.249) (tradução autor)
Recuperar os direitos humanos na sua concepção crítica, pela arte, Como manifestações culturais que são-mostrando o homem na relação
permite questionar a dominação das ideias e da ação no campo político, com aquilo que o rodeia, arte e direito sempre mantiveram uma grande
da univocidade das discussões, suspendendo as decisões e deliberações proximidade ao longo da história.” (FRANCO FILHO, 2011, p.18).
políticas que se tornam a regra na sociedade, por isso que temos que a
existência da regra na sociedade e implica na dificuldade da expressão Esta relação entre arte e direito, é complementar ou conflituosa,
poética, pois é da regra querer a morte da exceção, onde a arte é exceção. porém sempre estabelecendo uma reflexão ao direito instituído, dado,
(CHAIA, 2007, p.39). em contraponto ao direito construído. Uma vez que “arte e estética- por
conta do seu não-dogmatismo, da sua dinâmica complexidade, da sua
As relações entre Direitos Humanos e Arte podem engendrar novas refinada compreensão do mundo, da sua abertura e da sua criatividade –
estéticas, práticas sociais e novos direitos. tem sempre muito a dizer do direito, mesmo não se valendo da palavra.”
(FRANCO FILHO, 2011, p.22).
Direito e Arte: entre a obra de arte e a experiência artística em Direitos Apesar de se referenciar na literatura, muitas das afirmações de
Humanos OST, pode ser trazida para o âmbito da arte de forma mais ampla,
O senso comum jurídico dos juristas3 está impregnado pelo dogma principalmente quando diz que “a literatura (leia-se arte) libera os
cientificista do direito e é tarefa estabelecer um diálogo com outras possíveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma rede de
formas de conhecimento, para além do científico, para incorporar outras qualificações convencionadas, a encerra num sistema de obrigações e
racionalidades e formas de pensar e sentir os direitos humanos. interdições.” (OST, 2005, p.13).
3 De acordo com WARAT, entende-se por um complexo articulado do imaginário social e cientifico, composto
pela ideologia que surge de um saber acumulado da experiência histórica que não é resultado de uma “atividade
cognoscitiva deliberada”.(WARAT,1995,p.35-36)

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A indisciplina da arte interpela o jurídico, fragilizando os pretensos 4.1. Direito e Obra de arte: linguagem e imaginário
saberes positivos sobre os quais o direito tenta apoiar sua própria No texto de PESSOA, pode-se iniciar a reflexão:
positividade.
A arte pode engendrar novos olhares, novas realidades, inverter os Toda arte é uma forma de literatura, porque toda arte é dizer qualquer
coisa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são
pontos de vistas, criando surpresa, perturbando a paz do sepulcro dos literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que se procurar
ditamos da cientificidade do direito. (OST, 2005, p.15). em toda arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou
o poema, ou o romance, ou o drama. (PESSOA apud FRANCA FILHO, 2011,
Enquanto o direito se rege pelo seu objeto, a lei, abstrata e genérica, a p.13)
arte se relaciona com o concreto e particular.
Pela arte ser traduzível e/ou expressada em literatura/texto, podemos
A função da arte é por em desordem estas convenções, suspender
considerar que toda obra de arte é uma forma de linguagem, a qual é
nossas certezas, liberar os possíveis – desobstruir o espaço ou liberar o
aberta a interpretações. Dessa forma, “arte é texto e, justamente por
tempo das utopias criadoras.
ser texto, pode dar lugar a uma leitura do discurso pictórico, a uma
A abordagem do Direito e Arte, pode se apresentar sob dois formatos, hermenêutica do texto plástico ou mesmo a uma retórica da imagem
um construído teoricamente por juristas que entendem que a arte e artística.” (FRANCA FILHO, 2011, p.15).
direito, são forjados e constituídos pela e como linguagem. Estamos
A obra de arte que se relaciona com o Direito, é constituída por
diante de movimentos como Direito e Literatura, Direito e Cinema, Direito
“conjunto de sinais, através dos quais alguém ou algo diz alguma coisa a
e Iconografia; nos quais todos estabelecem a mediação entre estas formas
alguém.” (COUTINHO, 2003, p.59). Por se constituir por códigos, a obra de
de expressão artística, a partir do conceito de obra de arte e sua relação
arte pode expressar uma determinada compreensão do mundo, da vida,
com o Direito e conhecimento jurídico.
inclusive, do Direito e dos direitos humanos.
Por se tratar de linguagem, a discussão versa sobre significado e
Por diversas vezes, determinadas obras de arte contribuíram para a
significações, e o reflexo seja na arte ou no direito da produção de sentidos
reflexão dos Direitos Humanos, na maioria dos casos, de violações de
e de discursos. Sob três óticas é possível construir esta articulação: Direito
direitos humanos, sendo testemunho de um determinado contexto
na Arte (como o direito é representado nas obras de arte); Direito da Arte
histórico e revelador do exercício de um poder e de um Direito. Apenas
(responsável por estabelecer as normas sobre direito autoral entre outros
para citar um caso: Guernica, painel elaborado por Pablo Picasso, sobre os
temas) e Direito como Arte (onde o Direito é interpretado como uma
horrores da 2ª Guerra Mundial.
narrativa).
A crítica trazida pela obra de arte neste caso, mais contundente, do
Outra forma de abordar a relação entre Direito e Arte, é buscar a
que qualquer discurso político ou decisão judicial, se refere a um “magma
compreensão de como o fazer artístico/experiência artística pode trazer
de significações: um conjunto de significações imaginárias sociais que
sensações, sentidos, sentimentos e outras percepções sobre o Direito,
conferem um sentido específico aos dados da experiência, além de serem
de forma a liberar criativamente pensamentos, mas também ajudar a
literalmente constitutivas das realidades que elas fazem advir ao nomeá-
constituir as subjetividades das pessoas envolvidas com o Direito, neste
las.” (OST, 2005, p.28). A obra de arte nos diz algo ao contexto de tudo
caso, os direitos humanos.
aquilo que temos que compreender.
Nesta seara, muito se produziu a partir do pensamento de WARAT, e
Ao contrário, apesar de dizer muito, pode em muitas situações a
por isso ele é ponto de partida para avançar sobre a própria discussão
obra de arte, ser “caracterizada por ser enigma, onde suspende nossas
sobre a epistemologia da arte e de como pode refletir no Direito, e numa
evidências, desfazendo as certezas, por criar um efeitos de deslocamento
forma de prática em Direitos Humanos, mais humana, no sentido de se
que permite o descerrar do olhar.” (OST, 2005, p.32) É neste ponto a
pensar na totalidade do homem, para além da razão.
fortaleza da arte para os direitos humanos, multiplicar infinitamente as
Nos próximos tópicos abordaremos estas duas correntes de forma a verdades, refutando a “verdade”. (APUD OST, 2005, p.35).
explorar as potencialidades para a (re) construção dos Direitos Humanos.

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A obra de arte é carregada de significação, de um sentido que adquire 4.2. Direito e Arte: a experiência artística e a percepção dos Direitos
forma, sendo expressão da liberdade em ato. Como OST propõe, existe Humanos
ainda a faceta de contracriação: “um desafio ai mundo herdado, à natureza
circundante, à herança cultural, e a aposta de que ainda está por ser dito
A imanência dos efeitos da racionalidade jurídica construída sob os
algo de essencial que irá remodelar toda essa massa para fazer sair dela, auspícios da Modernidade provocou uma cisão entre teoria e prática, entre
enfim um mundo novo.” (STEINER apud OST, 2005, p.32). razão e emoção, retirando dos direitos humanos, a essencialidade dos
sujeitos de direito, a sua integralidade como ser humano, marginalizando
Na relação da obra de arte com o jurista, a primeira relação a qual o corpo e sentimento.
podemos identificar é a com formação do imaginário jurídico, o qual
“alimenta um infra direito, gerador das mais diversas formas de costumes, A negação dos “aspectos densos, imagéticos, simbólicos, sensíveis,
hábitos, práticas e discursos que não cessam de agir, de dentro sobre os passionais, místicos, da experiência vivida foram deixados de lado em
modelos oficiais do direito instituído.” (OST, 2009, p.20). detrimento dos aspectos intelectuais, racionais e científicos.” (GAMA,
2009).
Este entrecruzamento é possível no “complexo momento da
compreensão/interpretação: como objetos culturais, que são, arte e direito Infere-se que a existência humana é complexa, polissêmica e plural, numa
reinventam, recriam, reveem e reinterpretam o mundo constantemente “constante participação mística, sensível, estética, uma correspondência
e só fazem algum sentido se são interpretados/compreendidos por seus sem fim, na qual o exterior e o interior, o visível e o invisível, o material e o
destinatários.” (FRANCO FILHO, 2011, p.83). imaterial se manifestam e se relacionam na vida humana.” (WARAT apud
GAMA, 2009).
A contribuição desta corrente de pensamento é estipular a importância
do destinatário neste processo hermenêutico, na mesma linha HERRERA A subjetividade desaparece com a ciência moderna, sendo entendida
afirma que “como um roupão que se usa apenas em casa, o qual pode, e deve, ser
retirado assim que se vestem os trajes solenes e públicos da ciência.”
A obra artística é um exemplo de que faz falta duas liberdades para construir (COSTA, 2012).
um conhecimento adequado da realidade. A razão cientifica somente
reconhece uma liberdade: a do grupo de especialistas que manejam os
A arte é uma alternativa a esta racionalidade, porque revela amor,
instrumentos cognitivos e materiais necessários para chegar ao resultado sofrimento, inquietude, desejos, ilusões, afirmando integralmente a vida,
da investigação. A arte sempre tem que contar com duas liberdades: a do porque “o homem não é sempre, nem necessariamente, racional nesse
autor e do leitor, e ambos não podem se separar do contexto geral sobre sentido, mas que busca também satisfações simbólicas porque adere a
qual se situa a obra. (HERRERA FLORES, 2000, p.248)(tradução do autor)
‘significações imaginárias instituintes” (OST, 2005, p.45).
Obra de arte com seu papel de mediação, sob os auspícios do Por isso, “as práticas políticas de direitos humanos precisam inaugurar
imaginário entre o substrato da ação histórica e das produções jurídicas, lutas, na ordem do simbólico, transgredindo os efeitos da produção
contribui para estabelecer uma nova ordem de valores, teorias sobre as institucional de um homem negado pelas significações que pretendem
necessidades humanas, resignificando as lutas pelos direitos humanos. A ser a racionalidade geral desta época.’ (WARAT, 1997, p.47).
obra de arte para os direitos humanos inclui os destinatários na produção
do Direito, convidando-os a partilhar o processo hermenêutico e criador. Reafirmando esta mudança de atitude diante dos direitos humanos,
WARAT, reforça que estes precisam “gerar práticas e discursos de
Abre-se o caminho para formação de novos direitos, a partir da preservação do amor, discursos que precisem falar de instâncias
relação passado/presente, instaurando interpretações sobre as práticas libertatórias, que permitam ao homem reencontrar seus vínculos perdidos
instituintes de direitos. com a vida.” (WARAT, 1997, p.11).
Enfim, as práticas políticas dos direitos humanos não podem fugir A proposta de novas práticas em direitos humanos vem alicerçada na
das tarefas de libertação da linguagem como prática de libertação dos ideia que os juristas, operadores do direito, sujeitos de direitos devem
desejos. (WARAT, 1997, p.16). E para esta libertação é preciso pensar o estar aptos para se permitir a experimentar, experienciar e vivenciar a
Direito, e os direitos humanos que ultrapasse a fronteira do racional e da arte.
racionalidade instrumental e utilitarista.

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Retomar na experiência artística, a realidade sensorial, o corpo e de empreendido por meio da ação cultural, que com a sua fonte, seu campo
como esse corpo se relaciona com os outros corpos de indivíduos com e seus instrumentos na produção simbólica de um grupo e as formas
necessidades reais. (BITTAR, 2008, p.64). A proposta não é se tornar artista, imaginárias que a constituem, transforma o estado das coisas, questiona
nem realizar obras de arte, mas permitir se abrir para a transformação de o que existe e o coloca em movimento na direção do não conhecido.
sentidos e de se conhecer. (COELHO, 1989, p.33).
A criação e a investigação em arte pode facilitar aos indivíduos Repensar o direito lhe adjudicando um novo território de sentido, onde
conhecer os direitos humanos, por meio de sua percepção, que vem a se permite o múltiplo e interdita o unívoco, por estar intimamente ligado
ser o significado que atribuímos a alguma informação, quando esta é a uma concepção de direitos humanos que inculcada numa sociedade
recebida através dos sentidos, isto é, na integralidade da sua existência. incerta, heterogênea e conflitiva. A ação deve garantir a autonomia e a
(WOLFE apud PEREIRA, 2011, p.91). Dessa forma nossos sentimentos se criatividade no processo, criando condições para a descoberta de novas
tornam tão concretos, que se torna difícil de encontrar uma linguagem práticas e direitos.
verbal que os traduza.
Nesta seara, o que importa não é somente o produto cultural ou Considerações Finais
artístico, isto é, a obra de arte, mas os componentes do processo cultural
Qualquer que seja a aposta, pela obra de arte ou pela experimentação
artístico, os elementos do pensamento e do corpo que se entregam a uma
artística, para refutar a domesticação dos direitos humanos pela ciência
prática cultural artística. (COELHO, 1989,56).
jurídica moderna e sua verdade unívoca, avançará pelo terreno da teoria
Transmudar a nossa prática em direitos humanos na potencialidade da crítica que almeja novas possibilidades para se pensar o Direito, desde
capacidade expressiva, informativa e lúdica que precisam ter as leituras que voltado aqueles que tem suas necessidades negadas cotidianamente.
do mundo e de nós mesmos. (WARAT, 1997, p.54).
Os direitos humanos entremeados pela arte, prestam-se “para aumentar
Deve ser operada a “experimentação da arte em nossos corpos, investigar nossa potência e nossa capacidade de atuar no mundo”. (HERRERA, 2009,
os nossos sentidos, sensações, e perceber que essa experimentação p.81).
poderia produzir repercussões no campo da compreensão da relação
A arte rompe com os ditames do Direito reificado ao apelar para os
entre Direito e Arte.” (GAMA, 2009). Amplia-se, contudo “espaços de
elementos do mundo da paixão, da valoração, da imaginação, devolvendo
compartilhamento, de trocas, espaços de alteridade, zonas onde circulam
aos direitos humanos, a humanidade que havia perdido.
afetos.” (GAMA, 2009).
O novo conhecimento em direitos humanos, constituído pela Arte não
Ao entrelaçar Arte e direitos humanos privilegia o humano que
é um novo produto, é um novo processo.
habita em cada um, o sensível, o imagético, o mágico, pois ocorre “o
deslocamento para uma racionalidade mais ampla, flexível, inventiva, que
exige uma audácia de pensamento e, sobretudo que possui o sentimento Referências
que é precário, aleatória, submissa ao instante.” (GAMA, 2009).
BITTAR, Eduardo C.B..Razão e afeto, justiça e direitos humanos: dois paralelos cruzados
Esta operação deve ser apenas acionada por algo ou alguém de para a mudança paradigmática. Reflexões frankfurtianas e revolução pelo afeto. (In)
fora, visando garantir a autonomia e a criatividade no processo para a BITTAR, Eduardo C.B.(org.). Educação e Metodologia para os Direitos Humanos. São Paulo:
descoberta de novas práticas e direitos. A busca é para que os indivíduos Quartier Latin,2008.
recuperem a subjetividade perdida, “que se apossem de si mesmas e BLOTTA, Vitor Souza Lima. Metodologias Alternativas para a Educação em Direitos
criem condições para a totalização, de um novo tipo de vida derivado do Humanos :OLaboratório de Arte e Cidadania Ativa. Disponível em :http://unesp.br/
enfrentamento aberto às tensões e conflitos surgidos na prática social observatorio_ses//mostra_arq_multi.php?arquivo=7698. Acessado em 11 de março de
2013.
concreta”. (COELHO, 1989, p.42).
CHAIA, Miguel. Arte e Política (org). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.
O processo da experimentação artística para os direitos humanos, não
deve escolher um caminho seguro, pois o seguro segura e tolhe. Deve ser COELHO, Teixeira. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense, 1989.

64 65
DIREITOS HUMANOS E ARTE: DIALÓGOS POSSÍVEIS PARA UMA EPISTEME

COSTA, Pietro. Discurso Jurídico e Imaginação: Hipoteses para uma Antropologia do Jurista
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HORKHEIMER, Max, ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos.
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66
Eduardo C. B. Bittar

EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS:


cultura democrática, autonomia e ensino jurídico1

Eduardo C. B. BITTAR2

1. Educação: entre treinamento e formação


A polêmica em torno da educação é de fundamental importância para a
constituição de um arsenal de conceitos para basearem o desenvolvimento
das concepções em torno de uma cultura democrática, aberta, pluralista
e voltada para os direitos humanos. O debate sobre o próprio conceito
de educação evoca, portanto, a necessidade de uma devida atenção
ao problema da racionalidade, tendo em vista que é sobre ela que se
estruturam as práticas educativas visando à socialização. Este debate
sobre a razão não se faz sem um recurso direto ao tema da razão herdada
da modernidade3, o que implica na avaliação, através do pensamento
da Escola de Frankfurt, na necessidade de se pensar que parâmetros e
práticas definem o encaminhamento de uma ponderada proposta de
ensino focado em práticas de educação para os direitos humanos.
Desde logo, deve ser desmistificada aquela ideia tradicional de que
tudo o que tem a ver com educação e racionalização tem a ver com
progresso, desenvolvimento e melhoria. O mito de que educar é formar
deve ser desfeito. A educação como Ausbildung (treinamento) deve
1 Este artigo foi produzido para atender a convite da Professora Dra. Rosa Maria Godoy Silveira, e publicado
no livro intitulado “Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos”, organizado por Rosa
Maria Godoy Silveira, Adelaide Alves Dias, Lúcia de Fátima Guerra Ferreira, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer
Feitosa, Maria de Nazaré Tavares Zenaide (SEDH, UFPB, MEC) publicado pela Editora da UFPB, João Pessoa, ps.
313-334, 2007. É por entender que a educação em e para os direitos humanos deve ser debatida, aprofundada
e refletida é que o texto é compartilhado em escala ampliada na web, licenciado pelo CreativeCommons (Este
trabalho está licenciado sob a Licença Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported da CreativeCommons.
Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou envie uma carta
para CreativeCommons, 444 Castro Street, Suite 900, Mountain View, California, 94041, USA.)e através da presente
publicação pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – PR-Curitiba, a pedido do Professor
Doutor José Antônio Peres Gediel, Diretor do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania.
2 Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (DFD - USP). Foi Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (www.andhep.
org.br) no período 2008-2010. É Professor do UniFIEO e Pesquisador N-2 do CNPq.
3 Esta crítica do legado moderno do Iluminismo é compartilhada pelos principais autores que inspiram as teorias
educacionais contemporâneas, entre os quais se encontra Michel Foucault. Aliás, sobre esta proximidade entre
Escola Crítica e Foucault, leia-se: “A questão da emergência e do desenvolvimento das formas de racionalidade
na cultura ocidental e seus efeitos constituem um dos temas cardeais tanto nas pesquisas de Weber, quanto nas
dos frankfurtianos e nas de Foucault. Quando, em uma das teses mais polêmicas de Vigiar e Punir, assevera que
as mesmas Luzes que descobriram as liberdades inventaram as disciplinas, situa-se no mesmo campo de crítica
e reprovação dos autores da primeira geração da Escola de Frankfurt, afinal eles “(...) começaram a expor o que
chamaram de ‘a dialética do Iluminismo’ – o lado sombrio do Iluminismo que fomenta sua própria destruição”
(BERNSTEIN, 1993, p.35-36). Tanto Weber como Adorno e Horkheimer são, ao mesmo tempo, herdeiros do
Iluminismo e seus críticos.” (Margareth Rago; Luiz B. Lacerda Orlandi; Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Imagens de
Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 73-74).

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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

ser diferenciada da educação como Bildung (formação). Desta forma, o educacionais e o que engendram a partir de si mesmas5.
que se percebe é que educar pode significar também a preparação que Mas, se a intenção for a de pesquisar a mais apropriada concepção de
direciona o desenvolvimento destas ou daquelas qualidades, habilidades educação para os direitos humanos, deve-se desde logo dizer que educar
e competências, podendo atrofiar dados importantes da personalidade só tem sentido enquanto preparação para o desafiar. Uma educação
humana, significando apenas treinamento. Se todo projeto educacional que não seja desafiadora, que não se proponha a formar iniciativas,
induz certos valores, e não há educação isenta, desvios podem ocorrer, por que não prepare para a mobilização, que não instrumente a mudança,
exemplo, aqueles que induzam ao fortalecimento de uma ideia de coletivo que não seja emancipatória, é mera fábrica de repetição das formas de
que sufoca a autonomia individual, ou ainda, aqueles que priorizam a ação já conhecidas. Educação é, por essência, incitação à formulação
formação técnico-operacional e reificadora da consciência, quando se de experiência, em prol da diferenciação, da recriação, do colorido da
nega, ao mesmo tempo, a formação ampla, crítica e humanística. diversidade criativa. A partir da educação deve-se ser capaz de ousar. Em
Se a educação pode ser responsável por forjar consciências e moldá- “Educação – para quê?”, Adorno se recorda de Goethe para grifar este
las conforme conveniências políticas, também a educação passa a ser aspecto: “Lembro apenas de que há uma frase de Goethe, referindo-se
responsável politicamente pelos resultados que se tem na articulação da a um artista de quem era amigo, em que diz que – ele se educou para a
vida social. Aqui se torna, ainda uma vez, de fundamental importância originalidade´. Creio que o mesmo vale para o problema do indivíduo”6.
distinguir educação como formação e educação como treinamento. Por 2. Educação, autonomia e emancipação: a formação da cultura democrática
isso, pela leitura de “Educação após Auschwitz” de Theodor W. Adorno,
Vale a pena que, preliminarmente, o conceito de educação seja
se percebe que Himmler não somente não era um indivíduo deseducado,
apresentado, dentro do pensamento adorniano, em “Educação após
mas também que a educação pode ser opressiva e forjadora da
Auschwitz”, nas seguintes palavras: “A educação tem sentido unicamente
consciência opressora, bastando que seja vista como treinamento4. Daí,
como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica”7. É certo que, a partir
o problema herdado pela filosofia da educação de pensar como lidar com
daí, o que se percebe é que a educação é um processo que se afirma
estes problemas, já que se tornou complexo pensar filosoficamente após
na microscopia de ações que valorizam dinâmicas muito singulares de
Auschwitz ignorando Auschwitz, e ignorando a responsabilidade histórica
afirmação de valores e desinculcação de desvalores. Somente assim se é
do educador. Uma cultura para a democracia é antes de tudo uma cultura
capaz de operar verdadeiras revoluções.
preparada para o não-retorno do totalitarismo.
Um projeto de direitos humanos deve, acima de tudo, ser capaz de
Neste sentido, o esforço de compreensão de como a razão pôde conduzir
sensibilizar e humanizar, por sua própria metodologia, muito mais que
aos eventos que marcaram Aushwitz é de fundamental importância,
pelo conteúdo daquilo que se aborda através das disciplinas que possam
e o segundo mito a se desfazer é exatamente aquele que prega que
formar o caleidoscópio de referenciais de estudo e que organizam a
razão é sinônimo de cultura, de progresso, de evolução. No entanto,
abordagem de temas os mais variados que convergem para a finalidade
um exame mais detido do tema faz perceber que a racionalidade está
última do estudo: o ser humano. Sensibilizar e humanizar importam em
profundamente impregnada pelo gérmen de sua própria contradição, de
desconfirmar a presença da opressão permanentemente transmitida
sua própria destruição. Quanto mais especialista, mais ignorante! Quanto
pela própria cultura, esta mesma que constrói um indivíduo consumido
mais racional, menos sentimental! Formação e de-formação podem estar
pela consciência reificada (verdinglichtesBewustsein). Por isso, Paulo
andando lado a lado! Estas forças contraditórias são capazes de produzir
Freire afirma: “Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente,
horrores históricos, morais, políticos, ideológicos, o que motiva por si só
reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica,
que se repense que sentido possuem as práticas científicas, as pedagogias
mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir
4 “Por um lado, eles representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular
massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo 5 Esta leitura da educação vem inspirada do crédito dado pela Escola de Frankfurt à teoria freudiana, segundo
de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos a qual Eros (impulso de vida) e Tanatos (impulso de morte) caminham lado a lado na história. Leia-se: “Entre as
mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização” (Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., intuições de Freud que realmente também alcançam o domínio da cultura e da sociologia, uma das mais profundas,
2003, p. 127). E também este outro trecho: “A educação contra a barbárie”: “Por outro lado, que existam elementos a meu ver, é a de que a civilização engendra por si mesma o anticivilizatório e o reforça progressivamente. As suas
de barbárie, momentos repressivos, e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito obras O mal-estar na civilização e Psicologia de grupo e a análise do ego mereceriam a maior difusão, precisamente
da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que – e isto é Freud puro – justamente em relação a Auschwitz. Se a barbárie está no próprio princípio da civilização, então a luta contra esta tem algo de
esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura” desesperador” (Adorno, Palavras e Sinais, 1995, p. 105).
(Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 157). 6 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 153.
7 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 121.
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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

desta dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre a outra aquela que conscientiza do passado histórico, tornando-o presente, para a
viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inclusão, análise da responsabilidade individual ante os destinos coletivos futuros.
os inscrevem num permanente movimento de busca. Humanização e Por isso, a necessidade de que a educação para os direitos humanos, se
desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, emancipatória, vise, acima de tudo, a produção do enraizamento, porque
são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes se trata de um modelo compromissório. Com Paulo Freire: “Parecia-nos,
de sua inconclusão. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos deste modo, que, das mais enfáticas preocupações de uma educação para
parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, o desenvolvimento e para a democracia, entre nós, haveria de ser a que
mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, oferecesse ao educando instrumentos com que resistisse aos poderes do
na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no “desenraizamento”, de que a civilização industrial a que nos filiamos está
anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação amplamente armada. Mesmo que armada igualmente esteja ela de meios
de sua humanidade roubada”8. com os quais vem crescentemente ampliando as condições de existência
do homem”11.
O modelo de educação que se tem, e as vocações que é capaz de
despertar estão intrinsecamente associados aos modos pelos quais se A subjetividade fragilizada da sociedade pós-moderna, a subjetividade
pratica poder em sociedade. Ademais, a crise da educação, como reflexão que se tem, está profundamente ameaçada em sua capacidade de emergir
de uma crise política maior, é capaz de ser sentida como um desarranjo do anonimato, da inconsciência e da reificação de sua condição pelo
social, cujas demonstrações práticas se dão efetivamente através das consumo, e se acovarda crescentemente ante à própria autonomia. Muito
marcas da própria violência9. Por isso, uma educação voltada para a longe da autonomia e do esclarecimento, como abandono da menoridade,
disseminação de uma cultura de direitos humanos tem de ser capaz, na leitura de Kant, a subjetividade que se tem se vê acossada por um
acima de tudo, de propugnar a construção de uma sociedade preparada forte influxo de heteronomias estrangeiras a si e que determinam como
para o exercício da autonomia, condição fundamental para o exercício da a subjetividade deve ser desde fora. Está-se em uma era da heteronomia
cidadania. e não da autonomia. Ora, a perda da razão emancipatória, ideada pelo
Iluminismo, significa um vácuo na construção de uma parte do ideário
Em “Educação – para quê?”, Adorno traduz esta ideia de que a tarefa
moderno que se perdeu, porque cogitado dentro da reflexão kantiana e
da educação para a democracia é a de conceder capacidade de expansão
anestesiado pelas formas e táticas de atuação do poder.
da autonomia individual. Educação e emancipação estão conceitual e
umbilicalmente comprometidas: “A seguir, e assumido o risco, gostaria Uma sociedade mecanizada e amplamente colonizada, na esfera do
de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente mundo da vida, na leitura de Habermas, pela lógica da razão instrumental
não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o é exatamente o que consente que tudo se desvirtue em ser simplesmente
direito de modelar pessoas a partir do exterior; mas também não a mera produto; o ser humano é produto, a educação é produto, o raciocínio é
transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi produto12t. Ora, a razão instrumental deve existir e persistir, mas manter-
mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. se, como racionalidade do cálculo e da decisão tendo em vista fins
Isso seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido pragmáticos, restrita à dimensão do agir estratégico, especialmente o
dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever econômico. Por isso, a redefinição do cenário de valores que se tem deve
de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda vir instrumentado por uma forte concepção de resgate da identidade
pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada da vida comum pelo simbólico na esfera pública, pela limitação da
enquanto uma sociedade de quem é emancipado”10. colonização sobre ela produzida pela razão instrumental. Daí o papel da
emancipação, da construção da autonomia, o que só é possível de ser
A educação que prepara para a emancipação deve ser sobretudo uma
operada pela educação.
educação que não simplesmente formula, ao nível abstrato, problemas, mas
11 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p. 97.
8 Freire, Pedagogia do oprimido, 1987, p. 30. 12 “As patologias da modernidade, segundo Habermas, resultam da não-percepção dessas esferas distintas de
9 “Tanto a crise da educação, quanto o crescimento da violência no país – e esta á a hipótese deste texto – têm racionalidade ou de ingerências indevidas em domínios alheios. Não se trata de uma simples contraposição de
uma relação específica, ambas as crises retroalimentam-se mutuamente e tornando suas respectivas soluções mais racionalidades, muito menos de uma exclusão recíproca. A racionalidade instrumental deve ficar restrita ao âmbito
problemáticas” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, da integração sistémica. Já a racionalidade comunicativa, que se encontra encarnada nos processos de reprodução
fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 63). simbólica do mundo da vida, deve prevalecer no âmbito da integração social.” (Boufleuer, Pedagogia da ação
10 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 142. comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 16).
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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

Contra este cenário de apatia, deve-se recobrar o sentido das práticas um enraizamento entre conceitos abstratos, aprendidos em disciplinas
educacionais, especialmente quando o tema é o da preparação para isoladas, e tempo histórico-aplicativo.
uma cultura centrada no convívio plural e na aceitação da diversidade, E, quando se trata de enfrentar a necessidade de formação de uma
no respeito à dignidade da pessoa humana e na preocupação com a juventude, que carece observar na história a realidade que a cerca, como
justiça social, e quando se quer acentuar a luta pela conquista de direitos única forma de reação, deve-se também considerar o quanto a memória
humanos, mergulhados que estão na maré da indiferença estatal e da não possui um papel pedagógico fundamental, porque formativo para
ineficácia da legislação. o direcionamento futuro. Paulo Freire, em Educação como prática da
A busca de autonomia, necessária para a cultura democrática, liberdade, valoriza esta ideia: “É fundamental, contudo, partirmos de
demanda também um forte esforço de recuperação da subjetividade. que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no
Historicamente, foi o caso da sociedade alemã pós-holocausto, que mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à
demandava também uma forte reflexão por parte da filosofia da educação. realidade, que o faz ser o ente de relações que é”17. A descolorida apatia
Adorno, em “A educação contra a barbárie” afirma que: “Eu começaria política, a invisibilidade dos problemas sociais, a indiferença social, a
dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie insatisfação sublimada no consumo e a inércia mobilizadora precisam ser
é decisiva para a sobrevivência da humanidade”13. superadas através de um movimento pedagógico que aja na contramão
deste processo.
No contexto presente e na realidade brasileira, a construção da
subjetividade crítica depende sobretudo de um fortalecimento da Por isso, e por outros motivos mais, Auschwitz não pode ser esquecida18.
autonomia do indivíduo, plenamente tragado para dentro das exigências Não se trata de um problema do povo alemão, se trata de um problema da
da sociedade de controle, da sociedade pós-moderna. No lugar de humanidade, especialmente de uma humanidade que está mergulhada na
promover a adaptação, a reação somente pode vir das mentes capazes barbárie do tempo presente, aquela apresentada por Zygmunt Bauman:
de veicularem a resistência14. Por isso, se deve repetir o que se lê em “E o grau de polarização (e, portanto, também da privação relativa)
“Educação – para quê?”: “Eu diria que hoje o indivíduo só sobrevive quebrou, nessas três décadas, todos os recordes registrados e lembrados.
enquanto núcleo impulsionador da resistência”15. Aqui está o gérmen da A quinta parte socialmente mais alta da população mundial era, em 1960,
mudança, somente possível se fundada numa perspectiva semelhante à trinta vezes mais rica do que o quinto mais baixo; em 1991, já era sessenta
incentivada por Michel Foucault, em seus últimos escritos sobre ética, e uma vezes mais rica. Nada aponta para a probabilidade, no futuro
de criação de uma ética da resistência como forma de enfrentamento da previsível, de que essa ampliação da diferença seja reduzida ou detida,
microfísica do poder. quanto mais revertida. O quinto mais alto do mundo desfrutava, em 1991,
de 84,7% do produto mundial bruto, 84,2% do comércio global e 85% do
investimento interno, contra respectivamente 1,4%, 0,9% e 0,9% que era
3. Educação, conscientização e humanização o quinhão do quinto mais baixo. O quinto mais elevado consumia 70%
“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para da energia mundial, 75% dos metais e 85% da madeira. Por outro lado, o
a educação”16. Esta frase abre a reflexão do célebre escrito de Adorno débito dos países economicamente fracos do “terceiro mundo” estava, em
intitulado “Educação após Auschwitz”. O que é Auschwitz para nós 1970, mais ou menos estável em torno de 200 bilhões de dólares. Desde
hoje? Será que a barbárie desapareceu no ventilador da história, ou a então, ele cresceu dez vezes e está hoje, rapidamente se aproximando
poeira foi empurrada para baixo do tapete? Ainda aqui, e mais uma vez, da atordoante cifra de 2.000 bilhões de dólares (ver Programa para o
a consciência da história (presente e passada) deve ser trabalhada com Desenvolvimento, das Nações Unidas, edição de 1994)”19.
afinco nos meios acadêmicos, como modo de fomentar a criação de

13 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 156.


14 Esta reflexão aparece em “Educação – para quê?”, onde se lê: “A educação por meio da família, na medida em 17 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p. 47.
que é consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito 18 “A exigência de que Auschwitz não se repita é primordial em educação. Ela precede tanto a qualquer outra,
mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação.” (Adorno, Educação e emancipação, 3. que acredito não deve nem precise justificá-la. Não consigo entender por que se tem tratado tão pouco disso até
ed., 2003, p. 144). hoje. Justificá-la teria algo de monstruoso ante a monstruosidade do que ocorreu” (Adorno, Palavras e Sinais, 1995,
15 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 154. p. 104).
16 Adorno, Educação e emancipação, 3. ed., 2003, p. 119. 19 Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, 1998, p. 76.

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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

Os educadores devem se perguntar, não importa com qual disciplina conceituada IES brasileira, seja autor de atitudes serenamente guiadas
estejam trabalhando, o que é Auschwitz para um jovem hoje20? Será que pelos mesmos princípios que levaram Rudolf Hess, Hermann Goering,
um jovem de hoje conhece o que foi a realidade dos dias de Auschwitz? Por Rudolf Hoess, Joseph Goebbels, Wilhelm Keitel, Himmler e Eichmann a
isso, Auschwitz não pode ser esquecida, e junto dela: Treblinka, Ditadura cometerem as atrocidades que cometeram à frente da máquina nazista.
Militar, Impeachment do Collor, Ruanda, 11 de setembro, Kosovo, Invasão A visão de gabinete, a compreensão de mundo autocentrada, a ideia de
do Iraque etc. A consciência histórica é aquela que aponta que o passado responsabilidade restrita à dinâmica da responsabilidade do código de
retorna, e que sem consciência do passado se torna impossível agir no ética da categoria, a noção de mundo fixada pela orientação da ordem legal,
presente com vistas à mudança no futuro. a ação no cumprimento do ‘estrito’ dever legal... são rumos e nortes do
agir do profissional bacharelado pelas escolas de direito que conhecemos.
A racionalidade técnica não colabora para a melhoria das condições
A evitação da barbárie depende claramente do modelo de educação que
de análise de nosso tempo. O conhecimento instrutivo e técnico,
se possa habilitar através de projetos conscientes de desenvolvimento de
preparatório para exames simplistas e operatórios (Concursos públicos,
habilidades e competências, aliadas a sensibilidades históricas, sociais e
Provas semestrais mono-disciplinares...), é alienante, se desacompanhado
políticas. Por isso, as práticas educacionais para devem preparar para a
de uma ampliação crescente da capacidade de leitura da realidade
autonomia, que, na leitura de Adorno, seria o único elemento que poderia
histórico-social. A tradição inscreveu nas práticas nacionais de ensino,
se antepor à Auschwitz24.
do fundamental ao superior, inclusive e principalmente o ensino jurídico,
formas de conhecimento que estão completamente descoladas da Autonomia é, fundamentalmente, em seu traçado interior, liberdade.
dinâmica da vida social21. O ensino fundado em raciocínios técnico- Significa a posse de um estado de independência com relação a tudo o que
operativos não consente a formação de habilidades libertadoras, mas, define a personalidade heteronomamente. Isto importa na capacidade
muito pelo contrário, fornece instrumentos para operar dentro do de analisar e distinguir, para o que é necessária a crítica, pois somente
contexto de uma sociedade exacerbadamente competitiva, consumista, ela divisa o errado no aparentemente certo, o injusto no aparentemente
individualista e capitalista selvagem. Quem vive sob este modelo de justo.
educação não “recebe educação”, verdadeiramente, “padece educação”.
A massificação que castra, que anula, que empobrece, que iguala o 4. Práticas pedagógicas e autonomia
desigual cultural e criativamente falando, em verdade, comete o mais
terrível dos erros: “E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, Parece ser vital, para o processo pedagógico, neste contexto de
afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e amorfismo, de apatia diante do real, de perda da consciência de ego
sem fé, domesticando e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro sobre alter, de crescimento do individualismo materialista, de indiferença
objeto. Coisifica-se”22. Em poucas palavras, ela é a linguagem da própria perante tudo e todos, que o colorido do real seja retomado. Por isso, a
dominação, e não condição para sua libertação23. educação desafiada deve, sobretudo, sensibilizar, agindo de modo a ser
mais que instrutiva (somatória de informações acumuladas), enfatizando-
No caso do ensino superior, em especial do ensino jurídico, um bacharel se o seu aspecto formativo (geradora da autonomia do pensar). O que
treinado em Direito, altamente especializado em direito processual civil, quer dizer isto, senão que pretende tocar o espírito humano, quanto às
geralmente, é insuficientemente preparado para a análise de quadros suas aflições, ambiguidades, torpezas, vilezas, virtudes, capacidades, no
de conjuntura social, política e econômica, ou mesmo para pensar a jogo da condição humana? E, para isto, o recurso à história, aos fatos, a
responsabilidade do exercício de sua função dentro do sistema. Nada contextos, a casos, a julgamentos, a episódios morais, a conflitos parecem
impede que um bom operador do direito hoje, formado em uma boa e bem favorecer a recuperação da memória e da consciência.
20 “O exercício da cidadania democrática torna-se dessa forma problemático, pois onde o exercício da liberdade,
é feito sem o concurso da razão, acaba sendo feito através da violência” (Barretto, Educação e violência:reflexões
O abandono de certas práticas pedagógicas corriqueiras é fundamental
preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 70). como método de recuperação do espaço perdido pela educação para a
21 “A influência positivista entronizou a técnica como o principal objetivo do processo educacional quaisquer
vestígios de análise sobre a natureza moral da educação” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in
dinâmica sedutora da sociedade de consumo. Mas, o que é que se encontra
Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 66).
22 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, ps. 51 e 52. 24 “A única força verdadeira contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, se me for permitido empregar a
23 “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade expressão Kantiana; a força para a reflexão, para a autodeterminação, para o não deixar-se levar”(Adorno, Palavras
alienada de si mesma” (Horkheimer/Adorno, Dialética do esclarecimento, 1985, p. 114). e Sinais, 1995, p. 110).

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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

na educação, por parte dos professores, senão: a pressuposição de que A educação que se quer, bem como, o ensino jurídico de que se carece,
o aluno está consciente da importância da disciplina em sua formação deve sensibilizar, tocar, atrair, fomentar, descortinar horizontes, estimular
(o aluno precisa ser convencido); a erudição vazia do discurso (da qual o pensamento. É desta criatividade que se nutre a autonomia. Por isso,
o aluno se sente simplesmente alijado); o distanciamento da realidade os educadores podem encontrar à sua disposição instrumentos para agir
entre ser e dever-ser (o aluno não percebe a conexão entre realidade na berlinda de suas atuais e desafiadas práticas pedagógicas. Se tudo
ideada e realidade vivida); o apelo excessivamente teórico (aluno não fala contra a formação da consciência crítica (a televisão, o consumo,
constrói a ponte com a prática); o amor pela obscuridade da linguagem a internet, o individualismo, a estética...), a consciência histórica deve
técnico-especializada (com a qual o aluno não se identifica). reaparecer como centro das preocupações pedagógicas hodiernas. Pois,
fundamentalmente, a subjetividade pós-moderna é a de um indivíduo
Por isso, as técnicas pedagógicas devem se orientar no sentido de uma
deslocado, sem lugar próprio, e, exatamente por isso, incapaz de
geral recuperação da capacidade de sentir e de pensar. Isto implica uma
independência e autonomia.
prática pedagógica capaz de penetrar pelos sentidos e que, portanto,
deve espelhar a capacidade de tocar os sentidos nas dimensões do Uma pedagogia histórica trabalha sobretudo o resgate, e com quais
ver (uso do filme, da imagem, da foto na prática pedagógica), do fazer instrumentos, senão com aqueles que se tornaram linguagem corrente da
(tornar o aluno produtor, capaz de reagir na prática pedagógica), do sentir sociedade de informação? Cinema, internet, notícias de jornais, imagens,
(vivenciar situações em que se imagina o protagonista ou a vítima da fotojornalismo internacional, literatura animada, imagens, marketing
história), do falar (interação que aproxima a importância de sua opinião), instrutivo... que apropriadas pelo discurso pedagógico se tornam
do ouvir (palavras, músicas, sons, ruídos, efeitos sonoros, que repercutem ferramentas de grande valor para o resgate da ‘consciência situada’, já que
na ênfase de uma informação, de uma análise, de um momento, de uma o enraizar significa o fincar bases, instituir um solo-base, como modo de
situação). Este arcabouço de formas de fomentar a aproximação do sentir se evitar o ser-levado-pela-força-da-maré. Por vezes, a enxurrada conduz
e do pensar crítico se dá pelo fato de penetrar pelos poros, gerando o indivíduo a valas profundas, as quais abeiram a própria banalidade do
angústia, medo, dúvida, revolta, mobilização, reflexão, interação, opiniões mal.
exaltadas, espanto, descoberta, curiosidade, anseios, esperanças...
Quando isto está em movimento, a sala de aula foi tornada um laboratório
5. Por uma pedagogia da ação comunicativa
de experiências significativas, do ponto de vista pedagógico. O educando
precisa, sobretudo, sentir-se tocado em diversas dimensões e de diversas A pedagogia da ação comunicativa, para que seja aceita e praticada
formas, assim como ter despertados os próprios sentidos à percepção num modelo de educação para os direitos humanos já é reveladora de seu
do real, o que permite recuperar a possibilidade de aproximação da próprio objetivo: conscientizar e humanizar pelos métodos de ensino. Trata-
prática educativa, numa correção de rumos, em direção à reconquista da se de opor à tradição da autoridade, a tradição do exercício da liberdade
subjetividade autônoma. pelo diálogo25. Somente o exercício da liberdade permite que se construa
a liberdade, por isso, a liberdade deve ser valorizada como um requisito
Para isto, práticas pedagógicas sincréticas podem colaborar
fundamental para a criação de uma cultura do exercício democrático do
acerbamente para a produção de resultados, humanidades, ou seja,
convívio. Preparar para o exercício democrático significa, acima de tudo,
explorando-se poesia, literatura, pintura, cinema, teatro, aproveitando-se
preparar para o desenvolvimento de habilidades que giram em torno da
o potencial criativo para tornar a sala de aula um laboratório de ideias.
capacidade de convívio, de socialização, de responsabilização na relação
Esta experiência ético-estética reabilita o potencial transformador da
ego-alter. Se as instituições de ensino não estimularem o exercício de uma
educação, e, portanto, do ensino jurídico. A técnicas pedagógicas podem
cultura democrática, ela não nasce espontaneamente, e mesmo tende a
aliar: leitura; fichamento; interações grupais; seminários; grupos de estudo;
acrisolar-se, conforme constatam os estudos de Kohlberg26.
seminários de pesquisa; projetos de responsabilidade social; construção
de casos; discussões de pesquisas; interação social; desenvolvimento de 25 “O diálogo – a sociedade dialogal de Habermas – base da sociedade democrática terminou substituído pelo
diktät autoritário, em sua forma política e pedagógica” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in
inserções comunitárias; leitura de textos; discussões; seminários; filmes; Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, jan.-mar. 1992, p. 65).
26 “Dada la importancia de las actuales experiencias de participación en una comunidad política por qué nos
debates plurais; produção do conhecimento orientada; representações; apoyamos en la escuela secundaria para que ésta las provea?, por qué no se las delega a experiencias espontáneas
discussões; cases; simulações; teatralizações; pesquisa em websites. una vez terminada la escuela secundaria? La respuesta es que, a no ser que una persona deje la escuela secundaria
en un 4º. estádio, con sus intereses y motivaciones correspondientes, es muy improbable que él o ella lleguen

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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

A ausência do desenvolvimento de habilidades relacionadas ao político, mundo, segundo esta consciência do educando formado para pensar em
e o excesso de adestramento nas especialidades, faz da cultura do ensino agir sem o outro, apesar do outro, sobre o outro, deve ser substituída
um ambiente infenso ao desenvolvimento de qualquer tipo de identidade por uma consciência de que agir no mundo é sobretudo inter-agir com
política de grupo27. A identidade política somente pode ser cultivada onde o outro, a partir da consideração do outro31. A condição dialogal da
há estímulo à participação, ao diálogo e à formação da consciência sobre educação é um pressuposto para que o outro seja visto já em sala de aula,
questões e problemas comunitários; educar para uma sociedade mais já nas práticas educativas, já na inserção do estudo aplicado, já nas formas
justa significa acima de tudo desafiar para o convívio social, o que implica pelas quais as dinâmicas pedagógicas privilegiem a interação e o diálogo
uma pedagogia crítico-comunicativa28. voltados para o entendimento32. A razão comunicativa é pressuposto
para uma lógica diversa daquela que se cultiva e se pratica no conjunto das
Para isto, carece de que se vençam múltiplos empecilhos que gravitam
atividades formativas e preparatórias do indivíduo, seja para a vida, seja para
no universo da aura do modelo que se aceita comumente como linguagem
o mercado de trabalho, seja para o exercício de uma profissão, seja para a
comum do ensino transmitido para estudantes, a saber: tradições,
compreensão do mundo.
valores, cultura, práticas ancestrais, concepções e visões de mundo29.
A escola é também um ambinete pleno de regulamentações, regras, Como a produção do consenso não é simples, e não é muito menos
procedimentos, burocracias e reproduz a escala de exigências de uma automática na dialética das relações, exige-se, para sua prática, o
sociedade na formação do indivíduo. A ênfase na abordagem formativa, reconhecimento da correção, da autenticidade e da veracidade dos
e não meramente adestradora, implica na identificação de um projeto discursos em interação33. Por isso, só pode ocorrer se incentivada para
pedagógico cujas distinções façam com que a instituição se distinga por que indivíduos sejam habilitados ao desenvolvimento de habilidades
valorizar aspectos específicos do projeto pedagógico a favor de uma dialogais respeitosas e competências que se afinizem com esta dinâmica
cultura dos direitos humanos para a formação de uma sociedade mais da interação humana, que cobra elevado compromisso intelectual e
justa a partir da transformação da consciência dos indivíduos sobre sua moral. Recuperar a consciência do outro, numa racionalidade alterizada,
inserção no grupo. e numa alteridade racionalizada, em tempos em que o individualismo se
tornou uma marca histórica, é tarefa suficientemente deafiadora para as
Esta leitura se constrói sobre a ideia-base do pensamento habermasiano,
práticas pedagógicas vigentes.
e encontra amparo também nos estudos kohlbergianos, de que se deve
abandonar o paradigma da consciência solipsista para buscar na pluralidade A pedagogia da ação comunicativa reclama uma aproximação da
da interação de sujeitos a construção linguística da verdade30. O agir no dinâmica da vida para dentro das salas de aula, a superação da distância
entre docente e aluno, o desenvolvimento docente de uma identidade
más tarde a tener la capacidad y la motivación necesarias como para alcanzar posiciones de participación y
responsabilidad pública. Ellos, como nuestros estudiantes evitarán esas situaciones o no las buscarán” (Kohlberg, socrática, ou seja, estimuladora do diálogo, a criação de procedimentos
La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 27).
27 “He traducido los argumentos socráticos para la democracia escolar en términos de experiencias participativas
e formas de interação que superem a insinceridade do protocolo, a
para el desarrollo del 4º. estadio con orientación hacia los roles de ciudadano, así como también para desarollar busca da interação criativa com relação ao modelo da intocabilidade da
alguna aproximación a nuestro estadio 5 de los principios de la democracia constitucional. El obstáculo que
debemos enfrentar es que el gobierno burocrático y autoritario de la escuela secundaria, actualmente enseña
autoridade-docente, entre outros fatores. A cultura do antidiálogo deve
la alienación e ignorancia acerca de la sociedad democratica” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: ser substituída pela do diálogo: “O antidiálogo que implica numa relação
educando para una sociedad más justa, 1992, p. 29).
28 “Nuestra conclusión es que una educación cívica para una participación cívica idealmente debería incluir vertical de A sobre B, é o oposto a tudo isso. É desamoroso. É acrítico
dos experiencias: una democracia directa en una pequeña escuela de la comunidad fundada en una escuela e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é humilde.
alternativa, para el desarrollo de los conceptos y las actitudes hacia la comunidad del 4º. estadio; y la experiencia
de participación en una comunidad más amplia gobernada por la democracia participativa y reglementada por la É desesperançoso. Arrogante. Autossuficiente. No antidiálogo quebra-se
burocracia, para transferir dichas actitudes a una actitud participativa en una sociedad más grande” (Kohlberg, La
democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 31).
aquela relação de “simpatia” entre seus polos, que caracteriza o diálogo.
29 “Consequentemente,entendemos por “pedagogia da ação comunicativa” aquela que, da parte de seus
de un estadio superior” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa,
proponentes ou participantes, vem marcada por uma atitude fundamental voltada ao entendimento. Com isso a
1992, p. 56).
clarificação conceituai da categoria de ação comunicativa adquire uma importância significativa para a reflexividade
31 Cf. Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 26.
crítica da prática educativa, mormente para os professores” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma
32 “Torna-se, entretanto, necessário distinguir entre a revolta (o homem revoltado de Albert Camus) e a
leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 85).
violência; a primeira, é a seiva da cultura e a segunda, a sua morte, principalmente porque nega o instrumento
30 Cf. Bolzan, Habermas: razão e racionalização, 2005, p. 81. Em Kohlberg, a cultura do diálogo parece ser
básico da comunicação cultural, que é o diálogo. Vê-se, então, como a porta de entrada da violência na cultura e,
fundamental: “La mejor forma de concebir a la educación moral es como un proceso natural de diálogo entre pares,
em conseqüência na educação, foi a negação do diálogo como fonte de conhecimento e entendimento entre os
más que como un proceso de instrucción didáctica o de exposición. La mejor forma de concebir al docente y el
homens” (Barretto, Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc.
currículo es como facilitadores de este diálogo a través de la presentación de desafiantes dilemas o situaciones de
165, jan.-mar. 1992, p. 68).
exploración de las razones de los estudiantes y de la atención a estas razones y la presentación de un razonamiento
33 Cf. Bolzan, Habermas: razão e racionalização,2005, p. 100.
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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados”34. E o diálogo consenso de fundo a ideia de mundo da vida39.
somente pode ser estimulado se o modo perguntador for desenvolvido Que ética se pensa estar desenvolvendo quando a interação é
como mecanismo de instrumentação da metodologia de ensino, ou seja, desprivilegiada para dar lugar a conceitos abstratos? Que capacidade de
o modo socrático de desenvolver problemas morais35. solução de litígios se está desenvolvendo quando se propugna a litigância
Para o ensino superior voltado para a cultura dos direitos, para o ensino processual como único mecanismo de encaminhamento de controvérsias?
jurídico, esta questão é especialmente importante, tendo em vista que Que tipo de cultura é essa em que a educação privilegia os objetivos
cultiva modos e métodos, práticas pedagógicas e opções metodológicas, pessoais e marginaliza o outro na própria interação escolar? Que tipo
que intensificam o modelo solipsista e auto-didata. Mas, como é possível de relação entre responsabilidade profissional e responsabilidade social,
construir uma visão de sociedade baseada no isolamento atômico dos quando se concebe uma forma de aprendizagem que estimula o aluno
atores do próprio conhecimento? Ora, como é possível uma metodologia ao desenvolvimento de parcas formas de interação e de egocentrismo
de ensino construir valores na base de conceitualizações abstratas que do sucesso profissional como autor-realizador? A reação carece de ser
prescindem de trabalhar sobre evidências extraídas do mundo da vida, instrumentada, portanto, pontuando-se alguns fatores fundamentais a
num verdadeiro desperdício da experiência36? Ainda, como é possível serem combatidos dentro da lógica de funcionamento do próprio sistema
falar em construção da justiça, já que a justiça é um bem alótrio, segundo atual de ensino e dentro destas específicas práticas de cultura. Uma
Aristóteles, que se dá não de si para si, mas de si para o outro, se a cultura democrática carece de incentivos para se desenvolver, enquanto
consciência da interação é atrofiada no modus pedagogicus do modelo prática da liberdade assumida no encontro intersbjetivo de alto nível.
subjetivista37? Uma cultura acadêmica para os direitos humanos implica na formação de
uma consciência alargada sobre as questões comunitárias e sociais que
Está-se acostumado demais a conviver com um modelo subjetivista e
cercam o indivíduo em fase de formação40.
que descarta de imediato a presença do outro como incômoda. É neste
estranhamento do outro que se curtem os azedumes sociais que acabam
por se tornar o empecilho fundamentral para a vida social interativa e 6. Propostas conclusivas
produtiva. Trata-se, portanto, de pensar em meios e métodos capazes de
Qual o método e qual a finalidade da educação e da pesquisa em
valorizarem a condição de aceitação da liberdade como forma irrestrita de
direitos humanos? Qual seria, senão a humanização? Por isso, se torna
contato intersubjetivo38. Onde se acusa esse modelo de ideal, deve-se dizer
extremamente conveniente pensar com e através de Heidegger, quando
que ele se baseia fundamentalmente em práticas concretas, de linguagem
afirma, em sua ÜberdenHumanismus: Briefan Jean Beaufret: “Que outra
e baseadas no quotidiano das interações da vida que pressupõem como
coisa significa isto, a não ser que o homem (homo) se torne humano
(humanus)? Deste modo então, contudo, a humanistas permanece a
34 Freire, Educação como prática da liberdade, 2002, p.116.
35 “Pienso que resulta claro que la sicología que se deduce de las prácticas del efecto Blatt es la sicología
preocupação de um tal pensar; pois humanismo é isto: meditar, e cuidar
de Piaget, por su énfasis en que el diálogo entre estudiantes es lo que suscita un conflicto cognitivo y permite para que o homem seja humano e não des-humano, inumano, isto é
superar el egocentrismo del pensamiento a través de la necesidad de argumentos intersubjetivos y a través de la
exposición a un estadio próximo superior. Llamo a este neosocrático, no sólo porque los profesores tienen el rol de situado fora de sua essência”41.
cuestionador socrático, sino también porque el profesor como Sócrates asume ser un filósofo moral animado por
un interés por una forma de bien y de justicia” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para Uma cultura democrática é aquela que é capaz de incentivar que
una sociedad más justa, 1992, p. 57). “Implícita en la fé de Sócrates por el libre diálogo acerca de la justicia, está su
fé en la democracia ateniense. Aún cuando la democracia ateniense condenó a Sócrates a la muerte por enseñar
indivíduos que estão em processo de formação educacional sejam
la justicia, Sócrates mantuvo su fé en ella y permitió que se ejecutara para el mantenimiento del contrato social” incentivados a pensarem por si mesmos, o que não se faz sem incentivos
(Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 58).
36 Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 44/ 45. 39 “A idealidade, assim definida, constitui uma exigência da vida coletiva e deve ser entendida como a alternativa
37 Baseio esta minha reflexão na preciosa consideração a seguir, de Boufleuer: “Não fica difícil perceber que que se coloca em oposição à desconfiança total e à mentira ininterrupta. É claro que cada um de nós pode resolver
uma concepção de educação baseada no paradigma da consciência, centrada no sujeito, não consegue oferecer enganar ou manipular outros em determinada situação. Mas é impossível que todos ajam continuamente desse
uma solução adequada para as questões relativas à convivência das pessoas, mormente para as que envolvem modo. Facilmente podemos imaginar as dificuldades que um único indivíduo enfrentaria a partir do momento
noções de dever e de justiça. Só o conceito de uma racionalidade comunicativa, centrada na intersubjetividade, em que ninguém mais pudesse acreditar nele. E se ninguém mais pudesse acreditar em ninguém, a vida social
pode dar conta das múltiplas dimensões que fazem parte dos processos educativos” (Boufleuer, Pedagogia da ação simplesmente seria inviável.” (Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001,
comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 33). p. 53).
38 “A partir da teoria da ação comunicativa a relação professor-aluno aparece sob o horizonte da autoconstituição 40 “El objetivo de la educación social es desarrollar una persona con capacidad para realizar una sociedad
da humanidade enquanto humanidade solidária e que implica o reconhecimento mútuo de sujeitos. A liberdade democrática con la habilidad y la motivación como para hacer una sociedad más justa y más comunitaria de lo que
solidária dos comunicantes requer a superação de toda e qualquer forma de opressão que negue o homem.” es ahora” (Kohlberg, La democracia en la escuela secundaria: educando para una sociedad más justa, 1992, p. 39).
(Boufleuer, Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas, 3. ed., 2001, p. 86). 41 Heidegger, Sobre o humanismo: carta a Jean Beaufret, 1973, p. 350.

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EDUCAÇÃO E METODOLOGIA PARA OS DIREITOS HUMANOS: cultura democrática, autonomia e ensino Eduardo C. B. Bittar
jurídico

claros à autonomia, ao desenvolvimento humano e ao esclarecimento. conhecimentos especializados e encerrados sobre si mesmos; incentivar
Pensar a si significa também tomar consciência de si, este que parece o desenvolvimento de habilidades e competências interativas; estimular o
ser o primeiro passo para se responsabilizar pelo outro, na medida em desenvolvimento do agir comunicativo fundador da cidadania, na relação
que ego e alter são inseparáveis na constituição dos processos sociais. A solidária entre escola e sociedade; convocar os educadores e docentes do
prática da liberdade se exerce com incentivos claros ao desenvolvimento ensino jurídico a uma rebelião contra o pensamento compartimentado,
de habilidades e competências capazes de forjar a consciência crítica, fragmentário, unilateral; desincentivar o modelo de ensino pouco-
participativa, tolerante, o que não se faz sem uma consciência sobre a provocativo ou negador da intersubjetividade dialogal; propugnar a
importância das práticas comunicativas e dialogais. Nas palavras de formação humana integral, como retomada da consciência da prática de
Häberle: “A educação para o respeito da dignidade humana constitui uma razão emancipatória; superar o modelo de educação tecnicizante e
um destacado objetivo pedagógico do Estado constitucional: dignidade produtor de subjetividades rasas, na medida em que se define o que se é
humana, para cada um, bem como para o próximo, no sentido dos ´outros´ pelo que o mercado exige que seja tornado o indivíduo.
(como tolerância, solidariedade)”42. O papel de uma educação pautada
por estes critérios é a inclusão e não a exclusão.
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.26. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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formação uni-centrada das antigas disciplinas monolíticas; postular a ________. Pedagogia da autonomia:saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
superação da clausura especializada que determina a autopoiese dos
________. Pedagogia do oprimido.35. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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Thiago Assunção

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Thiago ASSUNÇÃO1

O que são Direitos Humanos?


Esta indagação remete a inúmeras respostas possíveis, que buscam
privilegiar diferentes valores, como a igualdade, a liberdade, e a
solidariedade. Dallari (1998) diz que “esses direitos são considerados
fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir
ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”.
Pode-se dizer, em linhas gerais, que os Direitos Humanos seriam direitos
inerentes a todos os seres humanos, independente de nacionalidade,
sexo, origem, cor, religião, língua ou qualquer outra condição. Não se
pode perder ou renunciar a esses direitos, na mesma medida que não
podemos deixar de sermos seres humanos. Nem o Estado pode negá-los
ou alterá-los, pois eles são hoje cláusulas pétreas, portanto intocáveis, da
nossa Constituição.
Os Direitos Humanos foram considerados indivisíveis (ONU, 1993):
não se pode negar um direito em detrimento de outro, por considerá-
lo “menos importante” ou “não essencial”. Eles seriam também
interdependentes e inter-relacionados: fazem todos parte de um quadro
integrado e complementar. Um direito muitas vezes não faz sentido sem
a garantia de outros direitos. Finalmente, todos os direitos humanos se
relacionam com o fim máximo da dignidade da pessoa humana. Defender
os Direitos Humanos é exigir que a dignidade humana de todos seja
respeitada incondicionalmente.
Por outro lado, os Direitos da Pessoa Humana são tanto princípios
quanto normas de aplicação prática. Tais princípios foram construídos ao
longo da história, baseando-se na visão de um mundo cada vez mais justo
e pacífico, e constituem um conjunto de normas mínimas sobre como os
indivíduos e as instituições de todo o planeta devem tratar as pessoas.
São exemplos de Direitos Humanos: o direito à vida, dignidade,
liberdade (de ir e vir, de expressão, de crença, etc.), igualdade, diferença,
privacidade, educação, saúde, moradia, alimentação, a um meio ambiente
limpo e saudável, a votar e ser votado, entre outros.
1 Mestre em Educação para a Paz: Direitos Humanos, Cooperação Internacional e Políticas da União Europeia
pela Universidade de Roma III. Professor de Direitos Humanos do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
E-mail: thiago_assuncao@hotmail.com

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção

Mas até que surgissem normas escritas para garantir a aplicação de internacional, em resposta às atrocidades e horrores do nazismo, e que
regras basilares de convivência entre os seres humanos, passaram-se eram destinadas a evitar que a catástrofe da guerra se repetisse. Era o
milênios. Segundo COMPARATO (2011), já no período axial da história, novo direito internacional dos Direitos Humanos, cujo marco inaugural é
entre 600 e 480 a.C, pensadores de distintas regiões do globo “enunciaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Finalmente a humanidade
os grandes princípios e se estabeleceram as diretrizes fundamentais de chegava a um consenso sobre quais seriam, afinal, os direitos considerados
vida, em vigor até hoje”. Entre esses pensadores, figuram Buda, Lao-Tsé, essencialmente indispensáveis, em qualquer canto do planeta.
Confúcio, Pitágoras, além de outros. Entre lutas sangrentas e revoluções A partir da Declaração Universal, surgiram inúmeros tratados
gloriosas, a odisseia humana produziu conquistas históricas inegáveis, internacionais para tutelar os direitos civis, políticos, econômicos, sociais,
sempre em nome da emancipação do indivíduo, no seu anseio por culturais e ambientais. Normas internacionais que, não raras vezes,
equidade e justiça. É o caso da Revolução Francesa (1789), que operou servem de referência para a adoção de instrumentos internos de proteção
inovações radicais nos costumes e na cultura da civilização ocidental, com dos direitos da mulher, da infância, das pessoas com deficiência, dos
seu lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, e que deixou como fruto e idosos, da população LGBT, entre outros grupos vulneráveis, bem como
marco histórico a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. para proteger os cidadãos contra a discriminação, a tortura, o flagelo da
Falamos da Revolução Francesa apenas para usar um exemplo pobreza extrema, a degradação ambiental etc.
marcante, já que uma infinidade de fatos cotidianos e de homens Neste processo, é inquestionável a atuação de indivíduos e organizações
comuns, mas muitas vezes grandiosos, fizeram da presença humana na não-governamentais, na estruturação de um verdadeiro movimento
Terra uma luta constante por patamares civilizatórios mais elevados, global pelos Direitos Humanos. Desde Mahatma Gandhi que lutou através
dando origem ao que hoje chamamos de Direitos Humanos. Portanto, da não-violência pela independência da Índia, a Martin Luther King,
tratam-se claramente de direitos históricos, ou seja, “nascidos em certas em sua cruzada pela igualdade racial, passando por Nelson Mandela,
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades que liberou a África do Sul do apartheid, além de organizações como a
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez Anistia Internacional, que reúne voluntários no mundo todo na luta por
e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 2004). esses direitos. Mas, para além de ídolos, sabemos que existem em toda a
De qualquer modo, é principalmente no século XX que os direitos do parte cidadãos e cidadãs anônimos, que lutam com humildade e firmeza,
homem ganham contornos mais nítidos. Como precedentes históricos cotidianamente, para a consecução dos objetivos que possibilitem a
(PIOVESAN, 2010), temos o surgimento, em 1863, da Cruz Vermelha, realização dos Direitos Humanos.
preocupada com as vítimas dos conflitos armados e de onde emerge o Cabe citar, ainda, a criação de sistemas normativos e institucionais de
estabelecimento do Direito Humanitário. Já após a primeira grande guerra proteção dos Direitos Humanos, contra a sua violação pelo próprio Estado.
mundial, aparece a tentativa de se criar uma organização para manter a É o caso do Sistema Global ancorado nas Nações Unidas, bem como os
paz entre os povos. Era a Liga das Nações (1919), a qual deu origem, mais sistemas continentais ou regionais: o Sistema Europeu, Interamericano e
tarde (1945), a atual Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1919 Africano.
constitui-se a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a qual promove
padrões mínimos de tratamento dos trabalhadores em nível global. A No continente americano, o Sistema Interamericano de Direitos
OIT influenciou a criação posterior de outras agências internacionais, Humanos foi estruturado com dois órgãos distintos: a Comissão
especializadas na promoção de temas fundamentais, como a UNESCO Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos
(educação), UNICEF (direitos da criança), OMS (saúde), FAO (alimentação), Humanos, a qual está apta a julgar os Estados quando estes falharem na
ACNUR (refugiados), etc. garantia dos direitos assegurados pelo Pacto de San José da Costa Rica,
assinado e ratificado pelo Brasil.
A expansão e aceitação dos Direitos Humanos ganha impulso definitivo
a partir da Segunda Guerra Mundial. Com mais de 60 milhões de mortos, No âmbito jurídico brasileiro, os Direitos Humanos contam com uma
o conflito é um divisor de águas, tanto em termos históricos, como para proteção irrestrita. A Constituição Federal trata de maneira específica
o próprio direito, que viu nascer um conjunto de normas de caráter (Título II, arts. 5° a 17) dos direitos e garantias fundamentais.

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção

Ademais, leis como o Estatuto do Índio (1973); Código de Defesa do o conjunto de atividades de capacitação e de difusão de informação,
orientadas para criar uma cultura universal na esfera dos direitos
Consumidor (1990); Estatuto da Criança e do Adolescente (1990); Estatuto humanos, mediante a transmissão de conhecimentos, o ensino de técnicas
dos Refugiados (1997); Lei que define os Crimes de Tortura (1997); Lei de e a formação de atitudes, com a finalidade de: (a) fortalecer o respeito
Crimes Ambientais (1998); Estatuto do Idoso (2003); Lei Maria da Penha aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; (b) desenvolver
(2006); Estatuto da Igualdade Racial (2010) são apenas exemplos da plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade do ser
humano; (c) promover a compreensão, a tolerância, a igualdade entre os
legislação infraconstitucional que busca a proteção dos Direitos Humanos
sexos e a amizade entre todas as nações, os povos indígenas e os grupos
no Brasil. Isso sem contar os diversos tratados internacionais sobre o tema, raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos; (d) facilitar a participação
assinados e ratificados pelo Brasil e que integram o nosso ordenamento efetiva de todas as pessoas em uma sociedade livre e democrática, na qual
jurídico, de acordo com a própria Constituição (art. 5°, §§ 2° e 3°). impere o Estado de Direito; (e) fomentar e manter a paz; (f) promover um
modelo de desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça
De qualquer forma, como ressalta Bobbio (2004, p. 9), uma coisa é social. (UNESCO, 2012, p. 4).
proclamar direitos, outra é desfrutá-los efetivamente. E, a implementação
das políticas públicas para efetivação dos direitos, representam o papel A questão central, quando pensamos numa educação voltada para os
fundamental da atuação do Estado em concretizar ações, programas, Direitos Humanos, é que ela possua o objetivo premente de trabalhar
projetos e planos que de alguma de alguma maneira sejam de alcance para reverter a indiferença que toma conta das mentes e corações, em
dos cidadãos relação aos graves problemas que enfrenta a humanidade, estimulando
cada cidadão a buscar incessantemente soluções e alternativas, dentro do
Como afirmou com propriedade a Secretária de Estado da Justiça, seu possível, para reverter o quadro de miséria, intolerância, violência e
Cidadania e Direitos Humanos, Maria Tereza Uille Gomes (2011): poluição que assola a sua comunidade e o planeta como um todo.
Políticas Públicas constituem-se em um processo cíclico que se materializa Por outro lado, quando falamos em se estabelecer uma cultura da
em sucessivas etapas, através de discussão dialética entre os atores que paz, nos referimos à formação de uma cultura de respeito aos direitos
integram o corpo político, em busca de soluções para os problemas sociais, humanos, “tomando como referência o próprio inacabamento do homem,
que deem efetividade plena aos Direitos Humanos em busca de melhores
condições de vida digna para todos.
eterno aprendiz, sujeito de sua própria cultura que se constitui humano
pela própria experiência humana.” (GORCZEVSKI, 2008, p. 71).

Conceituando Educação em Direitos Humanos


Na História
Mas o que seria “Educação em Direitos Humanos?” Educar para os
Em plena ditadura militar, os ministros da Marinha, do Exército e da
Direitos Humanos significa reunir esforços, conhecimentos, recursos e
Aeronáutica instituíram, por meio do Decreto-Lei n° 869/1969, a disciplina
atividades, por meio de iniciativas de todo gênero e através da cooperação
Educação Moral e Cívica nas escolas de todos os graus e modalidades
entre os mais diversos atores e instituições do Estado e da sociedade, com
dos sistemas de ensino no país. Este mesmo Decreto instituiu, ainda, no
o objetivo de disseminar uma cultura de paz, trabalhando para a melhoria
ensino médio a disciplina Organização Social e Política Brasileira (OSPB).
da vida em sociedade e em última análise, buscando a garantia de uma
vida digna a todo ser humano. De acordo com a Organização das Nações A Educação Moral e Cívica, como entendida pelas autoridades militares
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, “a educação em direitos no comando do país, apoiava-se nas “tradições nacionais”, e tinha como
humanos é um processo ao longo da vida que constrói conhecimentos finalidade “a projeção dos valôres [sic] espirituais e éticos da nacionalidade
e habilidades, assim como atitudes e comportamentos para promover e (...); o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições (...); o
apoiar os direitos humanos” (UNESCO, 2012, p. 2). aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e
à comunidade” (BRASIL, 1969).
Segundo o conjunto de instrumentos internacionais (declarações e
tratados) que se referem à educação em direitos humanos, ela pode ser Denota-se, pelo próprio conteúdo que reveste as diretrizes curriculares
definida como: desta disciplina, um forte caráter conservador e nacionalista. De fato,
o ensino da EMC servia ao projeto de poder da ditadura militar, já que

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção

“buscava-se interferir nas formas de pensar e de agir dos indivíduos, de Em relação a essas iniciativas, vamos analisar, ainda que brevemente,
modo a garantir a legitimidade da ditadura” (NUNES e REZENDE, 2008). os últimos e mais importantes instrumentos adotados em relação ao
tema que deram, recentemente, um impulso decisivo para a implantação
A EMC e a OSPB foram extintas pela Lei nº 8.663 de 1993, a qual
gradativa da Educação em Direitos Humanos (EDH) no Brasil.
determina, quanto ao conteúdo dessas matérias, que “seu objetivo
formador de cidadania e de conhecimento da realidade brasileira (...) No âmbito internacional, a EDH está avançando como nunca. É
sejam incorporados às demais disciplinas de ciências humanas e sociais” compreensível que o tema receba cada vez mais atenção por parte da
(BRASIL, 1993). comunidade internacional, já que este tipo de educação trabalha nas
raízes que levam à pobreza, aos conflitos, à discriminação, à intolerância,
Ocorre que desde então, não se criou praticamente nada para o
e à degradação ambiental, entre outras mazelas que são os objetos de
ensino, nas escolas, de noções de direito, cidadania, sustentabilidade
atuação de um sem número de organizações internacionais.
e democracia. Nota-se que o brasileiro está crescendo com uma carga
elevada de conhecimentos, muitas vezes, estéreis para a sua vida Talvez por este motivo, tenha sido adotado pela Organização das Nações
cotidiana e deixando de aprender, de modo claro e estruturado, o seu Unidas e pela UNESCO, em 2005, o Programa Mundial para Educação em
papel enquanto membro da sociedade: o que é a Constituição Federal, Direitos Humanos. A ênfase da primeira fase do Programa Mundial (2005-
para que serve o Estado, por que pagamos impostos, o que acontece se 2009) foi no sistema educacional (educação básica e ensino médio).
violamos a lei, ou o que devemos fazer para mudá-la etc. Não se trata, por A segunda fase (2010-2014) busca se concentrar nos níveis seguintes
óbvio, de reanimar algo nos moldes da Educação Moral e Cívica, que ficou da educação, como no ensino superior (graduação e pós-graduação),
para trás em um contexto histórico obtuso e que nada tem em comum bem como nas instituições que formam “aqueles que possuem grande
com o que ser quer hoje. responsabilidade pelo respeito, proteção e cumprimento dos direitos dos
cidadãos – desde servidores públicos e forças de segurança até mulheres
Mas, com a ascensão do discurso universal da proteção dos Direitos
e homens do serviço militar” (UNESCO, 2012, p. 3).
Humanos, começou-se a debater a necessidade da criação de uma
alternativa que fosse capaz de instrumentalizar processos educativos que Ademais, de grande inovação e importância foi a adoção, por
trabalhassem de alguma forma, conteúdos como: a ética nas relações unanimidade em 16 de fevereiro de 2012, pela Assembleia Geral da
humanas, noções de direitos e deveres do cidadão, a imperatividade da ONU, da “Declaração das Nações Unidas sobre Formação e Educação
sustentabilidade ambiental, a valorização da diversidade cultural, além em Direitos Humanos” (ONU, 2012). A Declaração é um marco no
da importância do respeito para com a diferença, entre outros valores, reconhecimento da essencialidade da EDH, considerando que ela é fruto
princípios e conhecimentos a que chamamos de modo amplo de educação de um longo debate mundial, que remonta à Conferência Mundial sobre
em direitos humanos. Categorias e saberes que, nos parece evidente, se Direitos Humanos de Viena (1993). Nesta ocasião, a EDH foi considerada
tornaram indispensáveis para a construção de uma sociedade inclusiva, essencial para a promoção e respeito dos direitos fundamentais
mais justa, solidária e sustentável. conquistados historicamente pela humanidade (ONU, 1993), já que
apenas o conhecimento e adequada informação a respeito desses
direitos, possibilita sua exigência incondicional e imediata. Portanto, estes
Estágio atual dois instrumentos (o Programa e a Declaração), fundamentam o consenso
Nota-se a existência de um número crescente de iniciativas, seja no internacional em torno do tema, e pavimentam o caminho para a adoção
âmbito global, nacional e regional, que vão no sentido de inserir a da EDH como prioridade a nível global.
Educação em Direitos Humanos (EDH) em todos os níveis da educação. Já em âmbito nacional, o Estado brasileiro adotou em 1996 o seu
Os estabelecimentos de ensino, principalmente a escola, são espaços primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). A segunda
privilegiados de formação humana, por eles passam ou deveriam passar, versão foi publicada em 2002, e a terceira e última versão até o momento,
obrigatoriamente2, cada um dos pequenos cidadãos que irão compor a foi aprovada pelo Decreto n° 7.037 de 2009, alterado pelo Decreto n° 7.177
sociedade em que viveremos amanhã. de 2010. O PNDH 3 resultou de intenso debate nacional, com diversos
2 O ensino fundamental é obrigatório no Brasil, de acordo com a Constituição Federal, art. 205, e a Lei 9.394/1996 atores sociais envolvidos. O fato é que um dos seis eixos orientadores do
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), art. 4, inciso I.

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção

PNDH 3, trata justamente da “Educação e Cultura em Direitos Humanos”. Agora, com diretrizes nacionais válidas para todos os níveis e sistemas
O capítulo traz uma série de diretrizes para se trabalhar a temática, seja de ensino, passa a ser imperativo que as instituições públicas, sejam
no âmbito da educação formal (básica e superior), quanto na educação elas federais, estaduais ou municipais, bem como toda e qualquer
não-formal, bem como na promoção da EDH no serviço público e, ainda, instituição de ensino privada, reconheça e incorpore de modo transversal
se refere à garantia do acesso à informação para a consolidação de e multidimensional os conteúdos de Direitos Humanos nas mais variadas
uma cultura em Direitos Humanos. Assim, o PNDH 3 traz como objetivo atividades de ensino, pesquisa e extensão.
estratégico a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Interessante notar como a maior parte das dúvidas que pairava sobre
Humanos (PNEDH). o ensino das temáticas que se inserem no grande espectro dos Direitos
Humanos, na educação básica, era em relação a se seria preciso ou
Instrumentos de efetivação da Educação em Direitos Humanos não criar uma nova disciplina com este conteúdo específico. Conforme
explicitado na Resolução n° 1/2012 do CNE, optou-se por não criar
A propósito, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos disciplina autônoma de Educação em Direitos Humanos, mas se sugere
(PNEDH), publicado em 2007, é fruto de uma parceria entre a Secretaria que os conhecimentos a que se referem os Direitos Humanos sejam
de Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério da Educação, trabalhados de modo interdisciplinar, tanto de modo transversal entre as
Ministério da Justiça e UNESCO. O PNEDH foi elaborado pelo Comitê disciplinas existentes, quanto de um modo que insiram conceitos, noções
Nacional de Educação em Direitos Humanos, com a participação da e exemplos da temática no conteúdo específico de cada disciplina, como
sociedade civil em diversos encontros estaduais ao longo de 2004-2005, história, geografia, matemática etc4.
sendo atualmente o documento chave no que diz respeito às concepções,
princípios, objetivos, diretrizes e linhas de ação para a construção das Por fim, a resolução do CNE dispõe que a EDH “deverá orientar a
políticas públicas de educação e cultura em Direitos Humanos. Ele possui formação inicial e continuada de todos(as) os(as) profissionais da educação,
cinco grandes eixos de atuação: Educação Básica; Educação Superior; sendo componente curricular obrigatório nos cursos destinados a esses
Educação Não-Formal; Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça profissionais” (MEC, 2012). Ou seja, componente curricular obrigatório
e Segurança Pública e Educação e Mídia (PNEDH, 2007). É lastimável, no nos cursos de pedagogia e licenciaturas.
entanto, que o PNEDH seja ainda pouco conhecido, promovido e utilizado Essa norma também amplia o ensino da EDH para todas as áreas do
pelos diversos atores envolvidos com a educação no Brasil. Além do mais, conhecimento, explicitando que a temática dos Direitos Humanos deve ser
os educadores podem contar hoje com “Conteúdos Referenciais para trabalhada amplamente, na formação inicial e continuada “das diferentes
a Educação em Direitos Humanos”, publicados em 2010 pelo Comitê áreas do conhecimento”. Ainda, ressalta que deve haver um esforço dos
Nacional de Educação em Direitos Humanos, os quais podem servir como sistemas de ensino e instituições de pesquisa para fomentar e divulgar
ponto de partida para o trabalho em sala de aula. estudos e experiências bem sucedidas na área dos Direitos Humanos,
Enfim, o fato é que a Declaração da ONU sobre Formação e Educação bem como a criação de políticas de produção de materiais didáticos e
em Direitos Humanos, de 2012, renovou o debate que já vinha ocorrendo paradidáticos relacionados ao tema.
no Brasil3, onde se pensava como incluir as temáticas concernentes aos Finalmente, a norma estimula as Instituições de Ensino Superior
Direitos Humanos na educação, em seus diversos níveis. a promover ações de extensão voltadas para a proteção dos direitos
O tema foi, então, objeto de estudo pelo Conselho Nacional de Educação humanos, com diálogo e alcance aos mais diversos segmentos sociais,
(CNE), que, em conjunto com diversos órgãos do governo, universidades e principalmente aqueles em situação de exclusão social, bem como
instituições da sociedade civil, publicou um parecer sugerindo “Diretrizes movimentos sociais e órgãos da administração pública (MEC, 2012).
Nacionais para a Educação em Direitos Humanos”, as quais foram
aprovadas e adotadas através da Resolução n° 1 de 2012.
4 Um exemplo seria o estudo, por diversas disciplinas ao mesmo tempo, de uma problemática social localizada
no tempo e no espaço. Tomemos uma enchente em um bairro pobre da periferia de São Paulo, no ano de 2012. A
3 Um dos primeiros artigos que apareceram no Brasil, especificamente, sobre a EDH foi da Professora da situação poderia ser estudada do ponto de vista de quando ocorreu a ocupação da área, pela história; quais são as
Faculdade de Educação da USP, Dra. Maria Victoria Benevides, intitulado “Educação em direitos humanos: de que características topográficas e geológicas do terreno pela geografia; quais as estatísticas de chuvas e ocorrências de
se trata?” (2001). enchente pela matemática e assim por diante.

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção

O Paraná e a Educação em Direitos Humanos o caso do Paraná não é diferente6. A partir de 2011, no entanto, nota-se
uma atuação da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, no
No Estado do Paraná, há, do mesmo modo, uma intensa movimentação
sentido de promover uma profunda mudança e reestruturação do sistema
para a implantação de ações voltadas à Educação em Direitos Humanos.
penitenciário do Estado.
Já em 2007, foi criado o FOPEDH - Fórum Permanente de Educação em
Direitos Humanos do Paraná, uma articulação que busca fomentar o Além de medidas específicas no âmbito da execução penal, como a
debate, a formação e a elaboração de propostas relacionadas à educação construção de novas penitenciárias e a transferência de presos provisórios
em Direitos Humanos, enfatizando o seu papel no fortalecimento do das delegacias para lugares apropriados, o Plano Diretor do Sistema Penal
Estado Democrático de Direito e na construção de uma sociedade mais do Estado do Paraná (2011-2014) prevê um “Programa de Educação em
justa e democrática. O Fórum é composto por entidades, órgãos públicos, Direitos Humanos”, visando instaurar uma cultura de paz nos espaços
movimentos sociais, pesquisadores e estudantes, sendo aberto à prisionais. Esta nova cultura surgiria, principalmente, para transformar
sociedade como um todo (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2011). as penitenciárias em escolas de capacitação profissional, garantindo que
100% dos presos possam trabalhar e/ou estudar.
Mas, foi principalmente a partir de 2011 que a temática começou a
avançar no Estado. Primeiramente, a Secretaria da Justiça e Cidadania A mesma preocupação é evidenciada ainda pelo Plano para o
teve seu nome alterado para Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania Desenvolvimento Integrado – PDI-Cidadania, que prevê a oferta de
e Direitos Humanos. A partir daí, a pasta começou a promover diversas educação pública para a alfabetização, ensino básico e superior aos
ações e estabelecer projetos para o respeito e garantia dos direitos da apenados; a realização de cursos, eventos e palestras relacionadas aos
pessoa humana por parte do poder público. A Escola Penitenciária do Direitos Humanos, destinados aos servidores do Departamento de
Paraná (ESPEN) foi transformada em Escola de Educação em Direitos Execução Penal; a melhoria do atendimento à saúde nas unidades penais
Humanos (ESEDH), passando a formar os servidores do sistema penal já no e, ainda, projetos de capacitação profissional em parceria com outras
paradigma contemporâneo da defesa irrestrita dos direitos fundamentais. instituições públicas e privadas, os quais permitem que o preso passe a
ter oportunidades efetivas de ressocialização.
Foi criado, em 2012, o Departamento de Direitos Humanos e Cidadania
(DEDIHC), que desempenha inúmeras ações de proteção e defesa dos Este tipo de ação deve ser de fato louvada, pois além de caminhar ao
Direitos Humanos e promoção da cidadania. O DEDIHC se coloca como encontro do que exigem os tratados internacionais, assinados e ratificados
um órgão há muito necessário na estrutura do Estado e vem atuando pelo Brasil, bem como o que manda a Constituição Federal e a Lei de
de forma cada vez mais efetiva e integrada para lidar com questões de Execuções Penais, trata-se de “remédio” efetivo para a urgente mudança
Direitos Humanos no Paraná. de mentalidade, necessária em relação aos próprios objetivos da pena
privativa de liberdade no Brasil7.
Este órgão público deve ser, portanto, cada vez mais divulgado e
conhecido pela população, que nele encontra mecanismos de controle de ser inegável que estes fatos, infelizmente, ainda ocorram (vide sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos que condenou o Brasil por violações do Pacto de San José da Costa Rica, no presídio Urso Branco, em
social e espaços para participar ativamente, como por exemplo, os Rondônia). Mas, toda a estrutura carcerária brasileira é alvo de críticas por parte de organizações e especialistas
nacionais e estrangeiros, que denunciam a superlotação, o tratamento muitas vezes desumano, degradante e cruel,
Conselhos de Direitos, em que são debatidas e construídas, de forma a insalubridade nos locais de encarceramento, a alimentação totalmente inadequada e o atendimento precário à
paritária, as políticas públicas setoriais. Por outro lado, um espaço como saúde, a corrupção e falta de controle que permite que grupos criminosos comandem atividades criminosas de
dentro dos presídios. Essas e outras sérias questões assolam inclusive o servidor público, principalmente o agente
este não pode deixar de ser, na medida do possível, ampliado e fortalecido, penitenciário que se vê obrigado a trabalhar em condições difíceis, tendo que suportar todo o stress e pressão
para que possa atender de modo adequado à demanda crescente por decorrente desta situação.
6 Os relatórios preparados periodicamente pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR, que visita
cidadania, participação popular e efetivação dos Direitos Humanos no os estabelecimentos prisionais de todo o Estado, dão conta da situação caótica em que se encontram algumas
Estado. unidades. Mas, o relatório não apenas critica como também contribui, relatando casos de “boas práticas”. Ou seja,
reconhecendo as unidades exemplares e divulgando a sua experiência para que as alternativas que funcionam
nestes locais sejam conhecidas e replicadas em outros.
7 Neste ponto, poderíamos evocar estudos criminológicos mais críticos, que colocam em cheque toda a pretensão
Desafios preventiva e eficácia punitiva da pena privativa de liberdade, o que, no entanto, fugiria do escopo deste trabalho.
Fato é que no Brasil, hoje, o índice de reincidência no crime é altíssimo; e isso se dá em grande medida pelas
Como se sabe, não é de hoje que sistemáticas violações dos Direitos condições da cadeia, que ao invés de ressocializar e oferecer oportunidades de arrependimento e recomeço ao
indivíduo, serve de verdadeira “escola do crime”, já que mistura criminosos perigosos com quem cometeu crimes
Humanos no Brasil acontecem no âmbito do seu sistema penitenciário5. E de menor potencial ofensivo e, por vezes, permite que seres humanos sejam tratados pior do que animais. A
psicologia demonstra que quem deste modo for tratado, não aprenderá outra coisa senão a fazer o mesmo com os
5 Não entendemos com isso, apenas violações perpetradas por agentes públicos em face dos apenados, apesar demais. Mesmo assim, em conversas com o cidadão comum, nota-se uma visão totalmente diferente, distorcida e
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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Thiago Assunção

Por último, é de se notar a criação, também pela Secretaria de Justiça, Referências


Cidadania e Direitos Humanos do Paraná, dos Comitês de Educação em ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, Declaração das Nações Unidas sobre Formação e Educação
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comunidade. Trata-se de uma aposta promissora, pois é justamente o que htm>. Acesso em: 25 jan. 2013.
quer a Educação em Direitos Humanos, ou seja, a prevenção de conflitos, BRASIL. Decreto-Lei Nº 869, de 12 de setembro de 1969. Diário Oficial da União. Brasília, DF,
de modo a trabalhar com o indivíduo em nível de mentalidade, para que 15 set. 1969. Disponível em:<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
ele reflita e se avalie antes de agir, tomando consciência do impacto e actionid=178916&norma=195811>. Acesso em: 25 jan. 2013.
consequências dos seus atos, para si mesmo e em relação ao seu entorno. COMITÊ NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Conteúdos Referenciais para
a Educação em Direitos Humanos. 30 jul. 2010. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/
sedh/edh/CNEDH%20-%20Conte%C3%BAd%20Referenciais%20para%20EDH%20-%20
Conclusão FINAL.pdf> Acesso em 25 jan. 2013.

Frente a existência de um variado arcabouço legal e dada a necessidade COMITÊ NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da
premente de uma educação transformadora, que ajude o indivíduo a Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/
perceber o seu papel no mundo, faz-se necessário que os diversos órgãos sedh/edh/pnedhpor.pdf> Acesso em 25 jan. 2013.
e instituições responsáveis, direta ou indiretamente, pela Educação em
COMPARATO, Fábio Konder. AAfirmação Históricados Direitos Humanos. São Paulo: Editora
Direitos Humanos, se integrem, e que as diferentes iniciativas existentes Saraiva, 2011.
em âmbito federal, estadual e municipal se articulem, buscando uma
DALLARI, Dalmo de A.Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998.
maior efetividade na aplicação das políticas públicas de Direitos Humanos,
na educação formal e não-formal, em todas as etapas de ensino. GOMES, Maria Tereza Uille. Discurso da abertura da “II Conferência Estadual de Políticas
Públicas e Direitos Humanos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT
Assim, é de interesse vital para sociedade investir na Educação em do Paraná”. 06 out. 2011. Curitiba: Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos
Direitos Humanos não como a única, mas como uma importantíssima Humanos, 2011.
ferramenta para se perseguir o bem comum, através do desenvolvimento BRASIL. Presidente (2003-: Lula). Mensagem ao Congresso Nacional. Brasília, DF:
sustentável e socialmente responsável, de uma sociedade pluralista e Presidência da República, 2004. x, 249 p. (Documentos da Presidência da República).
democrática, e da busca de uma maior qualidade de vida para todos. ONU, CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS.Vienna Declaration and
Programme of Action. 25 jun. 1993.Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/law/
vienna.htm> Acesso em 25 jan. 2013.

inculcada pelos meios de comunicação, em que a regra é um suposto clamor emotivo por “justiça”, mas que mais
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São
se aproxima, muitas vezes, de um desejo irrefletido de vingança. Daí mais uma vez, a necessidade de se educar a Paulo: Paz e Terra, 2003.
população para que ela perceba que o respeito aos direitos humanos é para todos, inclusive o detento que perdeu
sua liberdade temporariamente, como punição pelo cometimento de um crime, mas que nem por isso deixou de GORCZEVSKI, Clovis; TAUCHEN, Gionara. Educação em Direitos Humanos: para uma cultura
ser um ser humano. Aliás, sim, os direitos humanos existem também para proteger as vítimas, que se socorrem da paz. Educação, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 66-74, jan./abr. 2008.
do Estado para buscar justiça, a qual se materializa justamente por meio do processo penal, pelo julgamento e
eventual condenação dos culpados. Que o aparato de investigação policial e o sistema judicial precisam ser mais MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução n° 1/2012 do Conselho Nacional de Educação.
céleres e eficientes, o que estamos de acordo, já é outra história. Por último, imperioso se faz reconhecer, para
evitar mal-entendidos, que os direitos humanos se aplicam integralmente também aos funcionários do sistema Diário Oficial da União, Brasília, 31 mai. 2012. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/
penal, que muitas vezes tem seus direitos violados, seja pelos próprios presos, seja pelas condições de trabalho que sedh/edh/pnedhpor.pdf> Acesso em 25 jan. 2013.
frequentemente estão muito longe do ideal.
8 Fundamentados no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007) e no Plano Diretor do Sistema MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. FOPEDH - Fórum Permanente de Educação
Penal do Estado do Paraná (2011-2014). Maiores informações sobre os Comitês de Educação em Direitos Humanos
do Paraná, disponíveis em <http://www.comiteedheculturadapazpr.pro.br>

96 97
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

em Direitos Humanos. 2011. Disponível em: <http://www.direito.caop.mp.pr.gov.br/


modules/conteudo/conteudo.phpconteudo=51> Acesso em 25 jan. 2013.
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Trad. de Maria D. Alexandre e Maria A. S. Dória.
8ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom: São Paulo, 1999.
NUNES, Nataly; REZENDE, Maria José de Rezende. O ensino da Educação Moral e
Cívica durante a ditadura militar. In: III Simpósio Lutas Sociais na América Latina, 2008,
Londrina. Anais Eletrônicos. Disponível em: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/
terceirosimposio/natalynunes.pdf Acesso em: 25 jan. 2013.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4ª ed. São
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SACAVINO, Suzana; CANDAU, Vera Maria (org.). Educação em Direitos Humanos. Temas,
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Tradução: Jussie Rodrigues. Brasília: U NESCO, 2012.

98
Vera Karam de Chueiri

HORIZONTES DA DEMOCRACIA E DA JUSTIÇA

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A justiça de transição e o Brasil: breve relato Vera Karam de Chueiri

A justiça de transição e o Brasil: breve relato

Vera Karam de CHUEIRI1

La razón de ser de la memoria es hacernos cargo de las injusticias pasadas,


aunque sea bajo la forma modesta de proclamar la vigencia de la injusticia.
Sólo en Segundo lugar cabe hablar de recordar para que la barbarie no se
repita, es decir, para que no nos pase a nosotros lo que les pasó a ellos. Lo
que se deriva de uno y otro objetivo es interrumpir la lógica política que ha
producido esas injusticias y esos daños. En la medida en que esa lógica siga
vigente estamos abocados o a ser victimas o a ser verdugos.
Reyes Mate (in Fundamentos de una filosofía de la memoria, p. 35)

What, if any, general lessons can be gleaned about the strategic advisability
of human rights trials in periods of democratic consolidation? Will these
trials hurt democracy or help it? Initially, it may seem that the most general
lesson is that there is no general lesson. Much depends on the specific
nature of the transition.
Carlos Santiago Nino (in Radical Evil on Trial, p. 127)

O Conselho de Segurança da ONU aprovou um relatório em setembro


de 2003, no qual se traçou as linhas da chamada Justiça de Transição ou
Justiça Transicional. Tal iniciativa respondia às demandas dos Estados,
interna e externamente, relativas à consolidação da paz e da democracia
após períodos mais ou menos longos de conflitos. Neste sentido, os Estados
vitimados por tais conflitos, invariavelmente marcados por violações de
direitos humanos, reclamavam sua reestruturação e reconstrução através
da criação de instituições legítimas e, também, de uma administração
legítima da justiça.
Desta forma, o documento das Nações Unidas define Justiça de Transição
como o conjunto de processos e mecanismos associados à tentativa de
uma sociedade lidar com o legado de abusos em larga escala ocorridos
no passado, buscando assegurar accountability, justiça e reconciliação.
A Justiça de Transição consiste em processos e mecanismos judiciais
e não judiciais, incluindo julgamentos individuais, acesso à verdade,
reparações, reformas institucionais e expurgos no serviço público. Seja
qual for a combinação escolhida esta deve estar em conformidade com
os padrões jurídicos internacionais e as obrigações (tradução livre)2. Vale
1 Professora associada de direito constitucional dos programas de graduação e pós-graduação em direito da
UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD/UFPR. Membro da Comissões de
Verdade do Estado do Paraná, da UFPR e da OAB/PR.
2 For the UN system, transitional justice is the full range of processes and mechanisms associated with a society’s

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A justiça de transição e o Brasil: breve relato Vera Karam de Chueiri

dizer, o documento da ONU se baseia, normativamente, na Carta das dificuldades que, ao mesmo tempo, provam que estamos diante de algo
Nações Unidas, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, no Direito novo, e não de uma simples variação da tirania - está o fato de que todos
Penal Internacional e no Direito Internacional dos Refugiados, ou seja, nos os nossos conceitos e definições políticas são insuficientes para uma
padrões normativos internacionais de direitos humanos. compreensão dos fenômenos totalitários, e além disso todas as nossas
categorias de pensamento e critérios de julgamento parecem explodir em
Dentre os mecanismos judiciais de efetivação da Justiça de Transição
nossas mãos no momento em que tentamos aplicá-los a eles. Ou seja, os
tem-se os julgamentos criminais. Estes são importantes na medida
tribunais criados após a experiência do totalitarismo para julgar os crimes
em que submetem os violadores a um processo de responsabilização
contra a humanidade e os sistemas de proteção dos direitos humanos
pelos crimes cometidos e tal processo não só respeita os padrões
erigidos a partir dali redefiniram processos e conteúdos com base em
jurídicos internacionais, mas demonstra que as instituições dos Estados
um novo padrão de moralidade. Retomo Hannah Arendt (1994, p. 739)
democráticos de direito também se aplicam aos violadores de direitos
e sua afirmação de que o horror do totalitarismo transcendeu todas as
humanos. Ainda, há um sentido de justiça reivindicado pelas vítimas
categorias morais e explodiu todos os padrões jurídicos, isto é, foi algo
das violências que se deflui da persecução penal. Neste caso, as vítimas
que os homens não poderiam punir adequadamente nem perdoar.
identificam no processo de responsabilização criminal dos seus algozes a
possibilidade de recuperação da sua dignidade. Para tanto, o sistema de Outro caso emblemático de Justiça de Transição e com reflexos muito
justiça dos Estados deve ser legítimo, eficiente e justo, pois, do contrário, recentes foi o que ocorreu na Espanha após o franquismo. Houve uma
tem-se que recorrer aos tribunais internacionais que podem assumir esta lei de anistia de “mão dupla”, a qual permitiu, de um lado, a liberação
responsabilidade complementar. de diversos acusados pelo regime franquista que ainda estavam presos
sob a acusação de “crimes de sangue” e, de outro, a paralisação de todos
Ainda em relação aos julgamentos, a forma da justiça de transição
os processos contra os envolvidos com o regime. Os arquivos da polícia
remonta ao que sucedeu após a Segunda Grande Guerra relativamente
secreta foram lacrados e não queimados e se determinou uma espécie de
à Alemanha e aos demais Estados envolvidos no conflito. Instalou-se o
política do esquecimento. Neste sentido, é de se destacar o trabalho do
Tribunal de Nuremberg, o qual foi responsável pelo julgamento de vinte
ex-Juiz Baltazar Garzón que, em 2008, declarou que os atos de repressão
e dois oficiais nazistas. Os chamados Estados aliados - Estados Unidos,
cometidos sob o comando de Franco foram crimes contra a humanidade.
Inglaterra e França – condenaram, no total, cinco mil e seis alemães por
crimes de guerra, aplicando, pelo menos, setecentos e noventa e quatro Os casos sulamericanos forneceram à Justiça de Transição novos
penas de morte. elementos. O caso argentino enfatizou a responsabilização penal. Durante
o Governo Alfonsín, logo após o final da ditadura militar, foram elaboradas
Após Nuremberg, a própria Alemanha seguiu processando aqueles
duas leis: a do “Ponto Final” e a da “Obediência Devida”. Tais leis impediram
que cometeram crimes contra a humanidade durante a Segunda Guerra,
a responsabilização daqueles que serviram ou colaboraram com o regime
o que resultou, até 1996, em seis mil, quatrocentos e noventa e quatro
militar argentino exercendo todo tipo de crueldade contra o seu povo. Isto,
condenações transitadas em julgado. Para além da responsabilização
pois, a lei do ponto final (23.492 de 24/12/86) determinou a paralisação
criminal, institui-se um sistema legislativo de compensações financeiras.
dos processos judiciais contra os agentes que realizaram detenções
Vários dos países envolvidos no conflito de 1939-1945 passaram por ilegais, torturas e assassinatos, ou seja, determinou a impunidade dos
processos semelhantes de transição, como o Japão, com o Tribunal responsáveis pelo desaparecimento de milhares de pessoas na Argentina.
Militar Internacional de Tóquio e o Tribunal de Yokohama. O fato é A lei a obediência devida (23.521 de 04/06/87) estabeleceu que os atos
que tais tribunais tinham procedimentos muito específicos em razão cometidos pelos militares durante a ditadura (a que eles chamaram de
do ineditismo da situação, ou como bem disse Hannah Arendt, em um Guerra Suja e Processo de Reorganização Nacional) não eram puníveis
texto de 1953, chamado Humanidade e Terror (2008, p. 325): entre as por terem aqueles agido em virtude de obediência devida e, tal fato, não
grandes dificuldades de entender essa mais nova forma de dominação – admitiria prova em contrário.
attempt to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice Apesar disso, tais leis não constituíram obstáculo para o funcionamento
and achieve reconciliation. It consists of both judicial and non-judicial processes and mechanisms, including
prosecution initiatives, facilitating initiatives in respect of the right to truth, delivering reparations, institutional da Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, a CONADEP,
reform and national consultations. Whatever combination ischosen must be in conformity with international legal
standards and obligations. 
http://www.unrol.org/files/TJ_Guidance_Note_March_2010FINAL.pdf
que produziu uma vasta documentação informando o desaparecimento
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A justiça de transição e o Brasil: breve relato Vera Karam de Chueiri

forçado de cerca de nove mil pessoas, número este que subiria para judiciário restou tímido e muito vinculado às instituições e legislações
vinte mil com o decorrer dos anos e o surgimento de novos documentos. da época do regime militar de forma que, mesmo com a promulgação
Entretanto, tais leis foram declaradas inconstitucionais pela Corte da Constituição de 1988 e a reconstrução da democracia brasileira, os
Suprema em 2005, que reiterou a imprescritibilidade dos crimes contra procedimentos de Justiça de Transição foram implementados (e têm sido
a humanidade. É importante dizer que a incorporação do Pacto de San ainda) a conta gotas e num movimento de avanços e recuos.
José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969) Ainda que as democracias constitucionais sejam significadas pelas
pela reforma constitucional argentina em 1994 foi um grande passo em demandas por direitos e sua efetivação e, ainda que isso se dê de maneira
direção à Justiça de Transição. conflituosa, no que diz respeito à Justiça de Transição e seus mecanismos,
No Chile, o ditador Augusto Pinochet, através do decreto lei 2191 de não é admissível que em um tal regime (democrático e constitucional)
1978, outorgou a anistia (em realidade autoanistia) a todos os responsáveis seja tolerável a composição, o acordo, o pacto. Isto é, quando se trata
pelos crimes cometidos em nome do Estado durante a ditadura. O de um passado de atrocidades, criminoso, cruel o único acordo possível
referido decreto foi julgado constitucional pela Suprema Corte, porém as é o estabelecimento de mecanismos (de justiça) que reparem, perdoem,
investigações sobre os fatos ocorridos seguiram acontecendo em atenção responsabilizem e impeçam, de todas as formas, que o futuro repita o
à determinação do governo Aylwin, tão logo assumiu a transição. Desta passado.
forma, as investigações dos fatos relacionados às violações de direitos O relatório Brasil Nunca Mais3, organizado pela Arquidiocese de São
humanos foram realizadas, mas sem possibilidade de responsabilização Paulo e publicado em 1985, foi fundamental em relação à memória e
penal, em razão da anistia. Houve, portanto, duas comissões: a da verdade relativamente aos fatos ocorridos no período da ditadura militar.
Verdade, no governo Aylwin e a “Comisión Nacional sobre Prisión Política Na minha opinião, foi o primeiro documento fruto de extensa e cuidadosa
y Tortura”, no governo Ricardo Lagos, a qual colheu o depoimento de mais pesquisa que levantou a questão das torturas, das mortes, dos agentes
ou menos trinta e cinco mil pessoas. que as cometeram, das vítimas, enfim, da racionalidade do regime
Em 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu o caso autoritário. Em 1991, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão
Almonacid Arellano y otros vs Chile, no qual declarou a impossibilidade Externa para acompanhar as buscas na vala comum do Cemitério de
de concessão de anistia a crimes contra a humanidade, como também a Perus, em São Paulo, dos possíveis desaparecidos pela ditadura militar
imprescritibilidade destes. Ainda, reforçou a ideia de crime continuado brasileira. A partir de 1992, familiares de vítimas começam a ter acesso
nos casos de desaparecimento forçado e fez com o que o Poder Judiciário aos documentos das DEOPS (Delegacias de Ordem Política e Social) de
chileno revisse sua posição acerca destes. Por fim, o decreto lei 2191 (da diversos estados da federação, entretanto, havia processos com páginas
anistia) acabou sendo revogado. faltando, outros desparecidos, ou seja, a documentação e as respectivas
informações restavam incompletas e não totalmente acessíveis.
O que percebemos é que nos casos argentino e chileno, o direito
interno foi revisto à luz do direito externo, vale dizer, toda legislação de No Governo Fernando Henrique Cardoso, através da Lei 9140/1995,
(auto) anistia que alcançou os violadores de direitos humanos que agiram se reconheceu oficialmente como mortos, para todos os efeitos legais,
em nome ou em colaboração com os Estados ditatoriais foi reinterpretada os desaparecidos políticos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto
a partir do Pacto de San José, isto é, da Convenção Interamericana de de 1979, assim como, se instalou, no âmbito do Ministério da Justiça,
Direitos Humanos. a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (posteriormente,
o caput do art. 1o da Lei 9140/1995 foi alterado pela Lei 10.536/2002
Há outros exemplos de Justiça de Transição relevantes como o da África
estendendo o período até 05 de outubro de 1988). Esta primeira
do Sul e de países do leste europeu. Entretanto, seguirei minha análise,
Comissão governamental investigou e concedeu indenizações em casos
a partir das experiências sul-americanas, em especial, o caso brasileiro.
de desaparecimento de pessoas envolvidas com atividades políticas, bem
No Brasil, os procedimentos de Justiça de Transição foram mais tardios como, produziu um primeiro documento relatando cento e cinquenta
em comparação ao Chile e à Argentina. Isso se deve ao próprio processo casos de desaparecidos políticos em um exercício do direito à memória
de transição e a interpretação de que se tratou de um grande acordo do e à verdade.
regime militar com a sociedade civil brasileira. Neste sentido, o próprio
3 Arns, Paulo Evaristo. Brasil nunca mais. São Paulo: Vozes, 1985.

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A justiça de transição e o Brasil: breve relato Vera Karam de Chueiri

A questão documental tem sido um nó no processo de Justiça de Ou seja, setores militares e civis que apoiaram e serviram ao golpe, desde
Transição no Brasil desde 1985. Vários documentos relativos ao período a feitura da lei, pressionam o Estado brasileiro em relação aos deslindes da
militar foram transferidos da Agência Brasileira de Inteligência para CNV. “Ditabranda”, amplo acordo, reconciliação nacional etc. são alguns
o Arquivo Nacional, sob o comando da Casa Civil da Presidência da dos eufemismos utilizados por tais setores. As tensões internas, visíveis
República. Entretanto, em 2010, noticiou-se que o arquivo vinha sendo no governo desde a discussão sobre a revisão da lei de anistia na ADPF
gerenciado pela Associação Cultural do Arquivo Nacional, formada 153, entre o ministério da defesa e o ministério da justiça e a secretaria
também por militares da época do regime. Neste sentido, a presidente especial de direitos humanos - além de outras -, dizem respeito a setores
Dilma Rousseff, por meio do Decreto 7.430/2011, transferiu o Arquivo do governo e a membros da própria CNV relativamente ao que se entende
Nacional ao Ministério da Justiça. (e se quer) por justiça, transição, memória e verdade, finalmente, por
Justiça de Transição.
Há, ainda, as informações disponibilizadas através do Centro de
Referência das Lutas Políticas no Brasil, referentes ao antigo Conselho Outra questão relevante é o período abrangido (1946-1988), o qual
de Segurança Nacional, à Comissão Geral de Investigações e ao Serviço se mostrou muito extenso para o pouco ou nada extenso período de
Nacional de Informações. trabalho da CNV (a lei 12.528/11, em seu art. 11, fixava como prazo de
funcionamento da CNV o interstício de apenas dois anos, a partir da
Em 2002, o Congresso Nacional regulamentou o art. 8o do Ato das
sua instalação em 16/05/2012). No entanto, a presidente Dilma Roussef
Disposições Constitucionais Transitórias, através da lei 10.559 e, com
prorrogou o período de trabalho da CNV até dezembro de 2014.
ela, foi criada a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. É notável
o trabalho da Comissão, especialmente a partir de 2007, relativamente A CNV é composta por sete membros escolhidos pela Presidente da
aos pedidos de anistia política, como também de reparação moral e República, dentre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética,
econômica. Milhares de requerimentos solicitando o reconhecimento da identificados com o respeito à democracia, à Constituição e aos direitos
condição de perseguido político com ou sem reparação econômica foram humanos (Lei 12.528/11, art. 2o, caput). A questão difícil, ao meu ver, é
apreciados: tanto dos que foram perseguidos e tiveram suas liberdades que os sete membros nomeados, embora profundamente identificados
básicas e sua integridade física e mental violadas, como também dos que com a democracia, a constituição e os direitos humanos, divergem sobre
foram demitidos de seus empregos durante o regime autoritário (e por o sentido e a instrumentalização destes para a realização da Justiça de
causa dele). Transição4.
Pois bem, neste passo, chegou o Estado brasileiro e sua Justiça de O art. 3o da Lei 12.528/2011 fixa os objetivos da CNV. São eles: a)
Transição à necessidade de uma comissão da verdade. Neste sentido, esclarecer as circunstâncias de graves violações de direitos humanos;
foi enviado ao Congresso Nacional, no Governo Lula, o Projeto de Lei b) promover o esclarecimento de crimes graves contra os direitos
7.376/2010, demanda esta estabelecida no Plano Nacional de Direitos humanos (desaparecimento forçado, tortura, mortes e ocultação de
Humanos, o qual foi sancionado pela Presidente Dilma Rousseff, cadáveres), mesmo que ocorridos no exterior e com nomeação dos
transformando-se na Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011. autores; c) identificar e tornar públicas as estruturas, locais, instituições
e circunstâncias vinculadas à prática daqueles crimes; d) encaminhar
A Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV) foi criada no âmbito
aos órgãos públicos informações que possam auxiliar na localização e
da Casa Civil da Presidência da República e tem como objetivo examinar
identificação de corpos e restos mortais; e) auxiliar outros órgãos do poder
e esclarecer graves violações de direitos humanos ocorridas no período
público na apuração da violação de direitos humanos; f) recomendar ações
entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. Ela busca efetivar
que possam prevenir novas violações de direitos humanos, bem como
o direito à memória e à verdade. Entretanto, desde o seu surgimento e da
evitar repetições e assegurar reconciliação; g) promover a reconstrução
sua composição, a CNV está enredada em uma teia de tensões externas
histórica das violações de direitos humanos.
e internas.
As tensões externas, como era de se esperar, dizem respeito aos que 4 Em 10 de maio de 2012, a Presidente Dilma Roussef nomeou os sete membros da Comissão Nacional da
integraram, colaboraram e serviram aos regimes ditatoriais no Brasil, Verdade, quais sejam: José Carlos Dias, Gilson Dipp, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Maria Rita Kehl, Cláudio
Fonteles, José Paulo Cavalcanti Filho e Paulo Sérgio Pinheiro. O comissário Cláudio Fonteles foi substituído, em
notadamente, ao último, que se estabeleceu com o golpe militar de 1964. setembro de 2013, por Pedro Dallari.

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A justiça de transição e o Brasil: breve relato Vera Karam de Chueiri

Ainda que se trate, semanticamente, de uma comissão da verdade, nunca mais”, entre tantos outros.
não há como divorciá-la da busca da justiça. Neste sentido, os trabalhos Se a Justiça de Transição exige reparação às vítimas e definição das
da CNV, para cumprimento dos seus objetivos, podem colaborar com a formas de reparação, ela igualmente exige definição de critérios para a
responsabilização judicial daqueles que violaram os direitos humanos acusação dos perpetradores, como também das formas de punição sejam
cometendo crimes de lesa humanidade. através de sanções penais ou políticas. Em relação à primeira exigência,
De toda maneira, no parágrafo 4o do art. 4o da Lei 12.528/11 determina- o Estado brasileiro tem respondido favoravelmente. Já em relação à
se que os atos da CNV não terão caráter jurisdicional ou persecutório. Daí segunda exigência, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de
que os poderes da CNV, nos termos do referido art. 4o, são os seguintes: Descumprimento de Preceito Fundamental 153, que julgou constitucional
receber testemunhos e depoimentos, inclusive podendo assegurar o o parágrafo 1o, do art. 1o da Lei de Anistia, antecipou um futuro desolador.
sigilo da identidade do depoente; requerer informações e documentos De toda forma, a decisão da Corte Interamericana no caso da guerrilha do
de órgãos públicos, inclusive os que estejam classificados sob sigilo; Araguaia (caso Gomes Lund x Estado brasileiro)5 trouxe-nos um sopro de
convocar pessoas que possam ter relações com as violações; realizar de esperança.
perícias e diligências; realizar audiências públicas; requerer a proteção de A questão agora é agir politicamente para exigir do Estado brasileiro o
depoentes; instituir parcerias com órgãos públicos e privados, nacionais respeito à decisão da CIDH que o condenou pela grave violação de direitos
e internacionais, para o intercâmbio de informações; requerer auxílio de humanos (vida, integridade e liberdade) ocorrida na região do Araguaia,
órgãos públicos. A prerrogativa de recorrer ao judiciário foi prevista para entre 1972 e 1975; pelos desaparecimentos forçados; pela violação ao
o caso de uma determinada informação estar acobertada pela chamada direito às garantias judiciais; pelo descumprimento da obrigação de
cláusula de reserva de jurisdição. adequar seu direito interno à Convenção Americana de Direitos Humanos.
O art. 5o da referida lei institui a publicidade dos atos da CNV e o art. 6o Neste sentido, a CIDH determinou que o Brasil deve conduzir, de maneira
dispõe que observadas as disposições da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), a eficaz, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos e
CNV poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos aplicar as sanções previstas em lei, como também determinar o paradeiro
públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia das vítimas desaparecidas, identificar seus restos mortais e entregá-los às
e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos. Por fim, famílias. Ainda, o Estado brasileiro deve dar publicidade interna e externa
o art. 11 exige que a CNV elabore relatório circunstanciado contendo as sobre sua responsabilização no caso, envidar ações que capacitem seus
atividades realizadas, fatos examinados, conclusões e recomendações, efetivos das Forças Armadas em matéria de direitos humanos e, por fim,
que deverão ser remetidos ao Arquivo Nacional para integrar o projeto prestar contas à esta Corte Interamericana, a partir da sua notificação,
Memórias Reveladas. acerca das medidas adotadas em relação ao cumprimento da sentença
que o condenou.
A Comissão Nacional da Verdade, como também as Comissões de
Anistia e Mortos e Desaparecidos, integram as instituições públicas que O Brasil vem enfrentando o desafio de implementar os mecanismos
vem realizando a Justiça de Transição no Brasil. Há outras instituições, de Justiça de Transição. Como disse anteriormente, desafio que alcança
governamentais e não governamentais, das várias esferas da federação discordâncias morais, políticas e jurídicas no âmbito dos próprios governos
brasileira como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, o Ministério democráticos pós-1988 e, por isso mesmo, o cumprimento da sentença
Público Federal, as Universidades, a Ordem dos Advogados do Brasil, da CIDH no caso Gomes Lund pode significar mais do que isso, ou seja,
Sindicatos, entre outras, que colaboram neste árduo e necessário uma nova e decisiva rodada na consolidação da nossa democracia e do
trabalho. Há comissões de verdade estaduais, como também comissões nosso constitucionalismo.
de verdade institucionais (das universidades, da OAB, da CUT etc.) que
trabalham para auxiliar a CNV, atentas às suas especificidades. Entre as
instituições não governamentais, nacionais e internacionais, que há muito
militam em prol da justiça, memória e verdade no Brasil, há os comitês
para anistia criados desde o final da década de setenta, os grupos “tortura
5 http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf acessado em 29/09/2013

108 109
A justiça de transição e o Brasil: breve relato

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Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal

JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações


éticas do discurso, pedagógicas e jurissociológicas1

Artur Stamford da SILVA2


Virgínia LEAL3

“ninguém nega que o direito possa ser achado no foro. Mas lá não se
acha necessariamente. Basta lembrar que há leis desatualizadas no
conhecimento que informa e, não obstante, continuam a ser aplicadas por
juízes também desatualizados no seu saber.” (SOUTO, Claudio. Natureza,
mente e direito. Para além do usual acadêmico. Coleção Faculdade de
Direito do Recife. Recife: Faculdade de Direito do Recife, 2009, p.171).

1.Introdução
Passados 221 anos da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão (1789) e 62 anos da Declaração Universal
dos Direito Humanos (1948), continuamos a mantendo legitimado o
Estado de Direito. Este definido como a organização social pautada pela
representatividade política (voto e contrato social) e pela divisão de
poderes: 1. Executivo – administrador da vida em sociedade; 2. Legislativo
- a legislação contém a vontade do povo (as leis que regem uma sociedade,
protegendo-a, agora, dos riscos de recaída ao totalitarismo); 3. Judiciário
– poder do Estado com função de nos proteger da justiça com as próprias
mãos, da violência privada.
Ao Estado, cabe o monopólio da violência, porquanto os poderes
legislativo e judiciário respondem, com suas decisões, quais padrões de
comportamento devem ser considerados como guias à conduta dos seres
humanos. Com o estado de direito, legitimamos a ideia de a liberdade
de cada indivíduo e o poder serem, exclusivamente, disciplinados sob a
égide do Estado (WEBER, 1996, p. 34). Com isso, poder, portanto justiça,
é uma questão de capacidade para fazer o outro agir segundo o comando
anunciado (WEBER, 1996, p. 45). Se, historicamente, creditamos toda
confiança na possibilidade de serem resolvidos, por meio de legislação,
1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e
Tecnológico - Brasil.
2 Doutor em Direito pela UFPE, Prof. Associado da Faculdade de Direito do Recife (CCJ-UFPE), Pesquisador PQ2
do CNPq, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE.
3 Doutora em Letras pela USP/Université de Nanterre, Profa. Associada do Depto. de Letras (CAC-UFPE).

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

toda e qualquer questão e todo e qualquer problema da sociedade, hoje, de institutos jurídicos novos. Ainda, exploraremos a justiça restaurativa
mesmo aqueles que desconfiam dessa confiança, ainda, legitimam o como alternativa paralela, concomitante à decisão judicial. Todavia,
monopólio estatal da violência. não observamos a justiça restaurativa como supressão, eliminação,
Isso acontece porque estamos vivendo em uma sociedade em substituição do Judiciário. Isso porque práticas de justiça restaurativa têm
que ao Estado cabe dizer o que devemos ser e fazer. Afinal, mesmo tido lugar junto ao judiciário. Magistrados têm promovido essa prática,
quando desprovido de consciência, concordamos que sem polícia, bem como têm encaminhado casos para ONGs ou grupos da sociedade
sem legislativo, sem executivo e sem judiciário a violência aumentaria. que trabalham com justiça restaurativa para auxiliarem nas soluções de
Acatamos, portanto, a ideia de que somos incapazes de autogerir nosso conflitos sociais. Em todos os estados brasileiros não faltam casos de
comportamento, autoestabelecer nossa ética. Precisamos, portanto, do práticas de justiça restaurativa. Basta uma vista rápida, porém cuidadosa,
direito, da legislação, da decisão judicial para sabermos como podemos e na internet para se comprovar que essa afirmação é verdadeira.
devemos nos comportar. Numa frase: o Estado detém a competência para Nosso objetivo, portanto, é contribuir para reflexões sobre o papel do
ditar e reger nossos padrões éticos. judiciário na produção do direito da sociedade, chamando a atenção para
Acontece que regimes totalitaristas propulsionam desconfianças na que visão de sociedade está presente nas decisões judiciais. Ou seja, o
capacidade de, por meio do estado de direito, vivenciarmos uma sociedade quanto uma decisão de um magistrado efetivamente tem servido para
menos violenta; portanto, com ética, e mais pacífica. Todavia, aprendemos promover paz social. Entendemos que decisões pautadas pelo poder
que, por legislação, é possível se propiciar mais violência, como nos de decidir, sem que os envolvidos tenham noção da dimensão, ou uma
regimes totalitaristas, em ditaduras e nas democracias disfarçadas. compreensão do que e do porquê essa decisão foi tomada, ou seja,
sem uma participação efetiva dos envolvidos no caso, a decisão judicial
Nossas reflexões, aqui, giram em torno do exercício do poder de tenderá a não funcionar como meio para solução do conflito. Esta pode,
decisão do judiciário como organização do direito da sociedade. O poder inclusive, servir para ampliar a violência na sociedade. Não são raros os
do judiciário em ditar o direito em cada caso concreto. As questões são: casos em que o Judiciário é usado pelas partes como instrumento de
que direito resulta de decisões judiciais? Que visão de sociedade está vingança, como meio para adiar e, com isso, acumular mais dinheiro, o
presente em cada decisão proferida pelo judiciário? Decisões proferidas pagamento de dívidas etc. Se direito é o espaço social de construção da
por juízes monocráticos, por exemplo, pautam que justiça, que paz social? justiça, que direito tem sido construído pela decisão jurídica pautada pelo
É suficiente um juiz tomar uma decisão para que os litigantes passem a poder de decisão? Como não temos nenhuma perspectiva para mudar a
conviver pacificamente? maneira como a sociedade atual vive seu direito, ou seja, sair do estado
Ocorre que, na sociedade atual, complexa como é, o monopólio social democrático de direito, dedicamo-nos a oferecer reflexões sobre
estatal da violência (ou seja, a capacidade de o Estado administrar a vida a viabilidade de uma democratização da decisão jurídica por meio de
em sociedade estipulando suas normas), constantemente questionado, aumento da participação das partes no processo decisório. Isso nos leva
criticado, é ainda legitimado. Se não, vejamos. Em relação ao Judiciário, a trabalhar com a hipótese de que se e o quanto a justiça restaurativa
por exemplo, ainda que mantido como Poder competente para ditar envolve essa democratização ou se não passa de mais um instrumento de
quem está com o direito num caso jurídico, não lhe faltam críticas. Críticas poder do estado.
estas voltadas a identificar falhas, problemas e apontar melhorias em Iniciaremos nossas reflexões apresentando observações sobre os
seu funcionamento. Não identificamos, na literatura atual, propostas de institutos alternativos à decisão como resultado de exercício do poder,
supressão, eliminação, substituição do Judiciário por outra via de solução como parecem querer ser a conciliação, a mediação, a arbitragem e a
dos conflitos. justiça restaurativa. Evidente que esses institutos são distintos e, como
É certo que cada vez mais se fala em conciliação. Mas, aqui, também nosso foco é a justiça restaurativa, não nos ocuparemos em trabalhar
legitimamos o Judiciário como espaço social detentor do poder para ditar as outras quatro alternativas. Em seguida, lançaremos reflexões sobre
quem está com o direito. A busca pela solução do problema da morosidade a ética do discurso como base teórica auxiliar a uma compreensão
tem dado lugar a várias propostas de mudanças de legislações materiais e da justiça restaurativa, seguindo pelas ideias presentes na pedagogia
processuais, a publicação de novas normas jurídicas, bem como a criação freiriana, indispensável para uma compreensão da dimensão pedagógica

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

da decisão jurídica de pauta restaurativa. Por fim, lançaremos olhares da a vida na sociedade contemporânea, pois é preferível ser julgado por um
visão sociológica substantiva de Cláudio Souto (1971, 2003, 2009) para juízo racional (aplicação de critérios estabelecidos por legislação) e não
uma reflexão sobre a justiça restaurativa. arbitrariamente. Identificados paradoxos do modelo de Estado de Direito,
insiste-se em buscar qual dos lados do paradoxo é o certo: o da justiça.
A partir daí pensar em como estabelecer regras flexíveis para garantir a
2.Conciliação e justiça restaurativa
justiça da decisão.
Construídas alternativas sobre a maneira como o Judiciário vai agir,
Acontece que o Judiciário como promotor da justiça, da paz social é
a conciliação se apresenta como espaço para a realização de diálogo,
bastante questionado. Esse questionamento acontece, principalmente,
debates, conversas. Isso tudo voltado para se chegar a uma decisão
devido à pecha da morosidade, às dificuldades e mesmo à impossibilidade
jurídica, ainda que, agora, com a atenção mais voltada para a participação
de acesso à justiça para todos, ao uso do Judiciário como retardamento
das partes e não a uma decisão de um juiz, de um “decididor” que conhece
à solução de um caso judicial, ou quando se recorre ao Judiciário para
o direito e sabe declarar com quem está o direito no caso.
arrastar um problema ao infinito etc. As críticas a esse diagnóstico se
Na justiça restaurativa, o Judiciário não é reduzido à função de poder glorificam por indicar melhorias, inclusão e reconhecimento de novos
competente para ditar o direito. Antes, ele assume a função de compositor direitos e deveres, como críticas à manutenção do Estado de Direito.
da decisão. O judiciário atua com a responsabilidade de, junto com os
Em relação ao Judiciário, não deixamos de ver propostas de melhorias
participantes processuais, produzir a solução, sem perder de vista a sua
que vão de mudanças legislativas, alterações de normas processuais até à
função de disciplinador. Essa alternativa contém características de lógica do
criação de institutos jurídicos, como mediação e arbitragem, conciliação,
poder do Judiciário semelhantes àquelas presentes na visão de educação
penas alternativas e justiça restaurativa. Em relação à arbitragem, por
de Paulo Freire. Para esse teórico da educação, o educador intermedia
exemplo, a aposta e confiança nessa alternativa levaram a frases como:
a construção do conhecimento no desenvolvimento da aprendizagem, o
que não retira sua responsabilidade no processo educacional. A partir das
a arbitragem, há décadas utilizadas nos países desenvolvidos, é
discussões de Freire, entendemos que não é porque o educador deve se regulamentada no Brasil pela Lei 9.307/96, a chamada Lei da Arbitragem,
ocupar em construir com os discentes o conhecimento que ele perde a e vem sendo reconhecida como o método mais eficiente de resolução de
responsabilidade por conduzir ao melhor aprendizado. A ótica de poder conflitos, contribuindo para o descongestionamento do Poder Judiciário.
do educador deixa de ser a de dono do poder de educar e passa a ser a
Limitamos nossas reflexões à conciliação e à justiça restaurativa.
do poder instruir e formar para ações autônomas dos educandos. Ou seja,
Quanto à conciliação, observamos que ela não se efetivará somente pela
não se vê mais o educador como transmissor de conhecimento, mas sim
alteração da legislação, mas sim quando produzida uma cultura jurídica
como facilitador, como responsável por, junto com os cursistas, promover
da conciliação. Ou seja, quando advogados, promotores, procuradores,
o aprendizado.
magistrados e a sociedade abandonarem a visão de direito como poder
Ao pretender o monopólio da violência, o Estado se habilita a de estabelecimento do quem somos e como devemos agir e assumirem
resolver todos os conflitos sociais via legislação, competindo, única e o direito como instância produtora da ética. Em outras palavras, quando
exclusivamente, ao Poder Judiciário ditar o direito. Ou seja, declarar todos acatarem a possibilidade de assumir as consequências de suas
qual das razões em conflito é aquela que está com a Ratio Júris (Razão próprias ações, independentemente de um Judiciário impondo tais
Jurídica). Eliminada a admissibilidade da vingança privada, da justiça com consequências. Numa sociedade em que as pessoas vivem certas de
as próprias mãos, para um problema a ser resolvido, a alternativa racional que não são capazes de assumir suas responsabilidades éticas, conciliar
é recorrer ao Poder Judicial, o qual declarará quem está com a razão, não passará de um jogo de negociação de interesses, oportunidades e
quem está protegido pelo direito, pela legislação. espertezas.
Hoje, há críticas às ineficácias, às falhas do estado de direito, a exemplo Caso não se associe o Judiciário com o poder competente para ditar com
do diagnóstico das impossibilidades de pré-estabelecer decisões para quem está o direito e o vinculemos ao espaço para propiciar diálogo sobre
vivências futuras, ou seja, reconhecer que a legislação não é suficiente que valores estão em debate, a conciliação se tornará instrumento de
para resolver os problemas sociais. Todavia, é o que temos de melhor para
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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

pacificação social. Enquanto isso não ocorre, as audiências preliminares, expõe: “um maior grau de racionalidade cognitivo-instrumental tem
destinadas à conciliação, não passam de perda de tempo, de aumento por resultado uma maior independência em relação às restrições que o
da morosidade processual. Não sendo, assim, alternativa à morosidade entorno contingente opõe a autoafirmação dos sujeitos que atuam visando
e caminho para reformulação da função do Poder Judiciário em uma realizar propósitos”; enquanto que “um grau mais alto de racionalidade
sociedade (RAMOS e STAMFORD DA SILVA, 2003; STAMFORD DA SILVA e comunicativa amplia, dentro de uma comunidade de comunicação, as
outros, 2009). possibilidades de coordenar as ações sem recorrer à coerção e de resolver
consensualmente os conflitos de ação (na medida em que estes se devem
Em relação à justiça restaurativa, estão funcionando em São Paulo,
à dissonância cognitiva em sentido estrito) (HABERMAS, 1988a, p. 33).
Brasília e Rio Grande do Sul projetos de implementação da visão de justiça
restaurativa, resultado da implementação do programa “Casas de Justiça Com isso, para Habermas, alguém é racional não por suas manifestações,
e Cidadania”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Do relatório do CNJ mas por elas serem: a) avaliadas por boas razões, além de corretas ou
(2010) constam propostas típicas de cultura da paz, para o cotidiano do terem êxitos (dimensão cognitiva); b) confiáveis ou sábias (dimensão
Judiciário. A questão é o quanto a sociedade está preparada para vivenciar prático-moral); c) inteligentes ou convincentes (dimensão valorativa);
uma concepção de direito e de Judiciário pautada pelo fim do “dialogar d) sinceras ou autocríticas (dimensão expressiva); e) compreensivas
com o outro sem escutar o que o outro tem a dizer” (RAJAGOPALAN, (dimensão hermenêutica) (HABERMAS, 1988a, p. 70).
2004, p. 171), mas sim de produção de sentido do direito da sociedade.
Nesta perspectiva, o autor faz uma taxonomia da ação social. Nesta, ele
Nesta direção, o direito passa a ser produzido nos debates e discussões do
distingui a ação teleológica (ação instrumental e ação estratégica), da ação
caso jurídico e não como pré-estabelecido exclusivamente por legislação
regulada por normas; da ação dramatúrgica; e da ação comunicativa.
e jurisprudência.
A atividade orientada para um fim torna os valores escolhidos em
estados no mundo, bem como leva à lógica causal. Pois, para se atingir
3.Punir ou conciliar? Ética do discurso para pensar a justiça restaurativa os fins basta aplicar os meios adequados, pouco importando, no plano
Defendemos, neste artigo, a ética do discurso, a teoria da ação de ação, as interveniências dos meios julgados adequados, mas sim
comunicativa de Jürgen Habermas, como alternativa para se pensar sobre a produção do resultado favorável (HABERMAS, 1990, p. 67-68). Já as
a forma de justiça pautada pela lógica da punição, na qual a legislação atividades orientadas para o entendimento apresentam três condições:
contém o conteúdo do direito. Portanto, ao Judiciário cabe ditar quem 1. os fins ilocucionários não podem ser definidos independentemente dos
está com o direito, e a forma de justiça pautada pela lógica da conciliação, meios linguísticos do entendimento; 2. o falante não pode visar ao fim do
como na justiça restaurativa. entendimento de modo causal, porque o sucesso ilocucionário depende
do assentimento racionalmente motivado do ouvinte (para que possa
Segundo Habermas (1975, pp. 310-311), uma ação é comunicativa haver acordo na coisa é preciso que o ouvinte acate-o voluntariamente,
quando os participantes visam formar um entendimento sobre algo, visam, por meio do reconhecimento de uma “pretensão de validez criticável”.
a princípio, chegar a um consenso sem a interferência de jogos de poder. Por isso, se afirma que a cooperação é o único meio de atingir os fins
É da capacidade de argumentação, portanto da racionalidade, que se dão ilocucionários; 3. o processo de comunicação e o resultado a ser produzido
as construções de um entendimento. Habermas defende a “racionalidade por ele não constituem, na perspectiva dos participantes, estados do
comunicativa”, que é a capacidade do ser humano compor um acordo sem mundo objetivo. Os participantes que agem no nível dos fins assumem,
coação. Portanto, é a capacidade de gerar um entendimento espontâneo, no mundo, a qualidade de entidades - não se veem isoladamente, mas
sem imposição de um poder, que não o poder de escolhas das próprias como integrantes de uma coletividade -, mesmo diante da liberdade de
partes envolvidas. Nessa racionalidade, a fala argumentativa supera a escolha, um não pode atingir o outro, a não ser como objeto ou como
subjetividade inicial dos pontos de vista dos participantes da comunicação, rival. Os falantes e ouvintes assumem um enfoque performativo, no
em favor de uma comunidade de convicções racionalmente motivadas qual eles se defrontam reciprocamente como membros do mundo vital
(HABERMAS, 1988a, pp. 26-27). Considerando que a racionalidade de sua comunidade linguística compartilhada intersubjetivamente.
pode ser medida pelo êxito de intervenções dirigidas à obtenção de um Enquanto tentam chegar a um entendimento mútuo sobre algo, os fins
propósito ou pela capacidade de chegar a um entendimento, o autor ilocucionários visados situam-se como algo que não pertence ao mundo
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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

(HABERMAS, 1990, p. 69). a ação comunicativa, cujo fim é atingir o entendimento no sentido de
processo cooperativo de interpretação (HABERMAS, 1988a, p. 144). Cabe
Com isso, as características do modelo de ação comunicativa são: ser
ainda considerar que a comunicação voltada ao entendimento não se
bilateral; haver complexidade do ato de fala que expressa simultaneamente
esgota pela interpretação, antes envolve interação coordenada entre os
um conteúdo proposicional, a oferta de uma relação interpessoal e uma
participantes (HABERMAS, 1988a, p. 146).
intenção do falante; o modo reflexivo, os falantes integram um sistema
que envolve os três conceitos de mundo; a linguagem funciona como meio A distinção entre ação estratégica e ação comunicativa promove
de entendimento. O que não elimina a possibilidade de a ação teleológica alteração na lógica do agir em sociedade, o que não implica ignorar a
ser mediada por atos de fala, mas, neste caso, estes atos são meios para presença de poder. Sobre o tema, lembramos que para Weber poder
a obtenção dos fins desejados e pretendidos, não para a busca de um é “a probabilidade de impor sua própria vontade, dentro de uma
entendimento na construção, conjunta, da solução ao problema. Isso relação social, ainda que contra toda resistência e qualquer que seja o
porque, na ação teleológica, os participantes são oponentes, há a influência fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1996, p. 43). Assim, poder é
dos atos de um sobre os do outro, como forma de manipular as opiniões, a posição de alguém “impor sua vontade numa determinada situação”;
como forma de conduzir o outro a agir rumo aos propósitos do falante. Já dominação é a “probabilidade de encontrar obediência ao comando de
na ação de comunicação, há coordenação da ação através da semântica determinado conteúdo entre determinadas pessoas”, é a probabilidade
intencional. Enquanto na ação comunicativa, os participantes constroem de ter seu comando obedecido (WEBER, 1996, p. 43). Essa visão de poder
um entendimento; na ação estratégica, um participante transforma o tem que ser revisitada se a perspectiva for a de considerar mudança na
outro em objeto a ser manipulado (dá-se a coisificação do outro), vive-se lógica de realização de justiça, ou seja, se se quer pensar alternativas à
uma trama de interesses, não uma busca por entendimento. Dessa forma, justiça punitiva.
enquanto na ação comunicativa “a linguagem tem que servir de meio de
Diante disso, o desafio é revisitar a concepção de poder, como fez
coordenação da ação; na ação estratégica a linguagem pode servir de
Paulo Freire em relação à educação. Este educador propôs a educação
meio de coordenação da ação”, pois na ação estratégica a linguagem é
libertadora, democrática, em substituição à educação bancária. A nossa
um meio de influência mútuo (HABERMAS, 1994a, pp. 420-421). Na ação
proposta é, em relação ao direito, com a implementação da lógica
comunicativa, os participantes agem intersubjetivamente manifestando
conciliativa experenciada a partir da criação dos Juizados Especiais Cíveis
pretensões de validez, quando o que se enuncia se pretende que seja:
e Criminais (Lei 9.099, de 26/09/95), analisar as reformas do Código de
verdadeiro; correto ou normativo vigente; e que a intenção expressa pelo
Processo Civil pela Lei 8.952, de 14/12/94, estabelecendo as audiências
falante coincide com seu pensamento. Como há a intenção de chegar a um
preliminares, a partir da Lei 9.099/95 que traz a transação penal; por fim,
entendimento, a pretensão de validez do falante é suscetível de críticas
discutir a ênfase que vem tendo a justiça restaurativa à luz da contribuição
por parte do ouvinte, o qual também detém suas pretensões de validez
freireana.
ao expor sua opinião (HABERMAS, 1988a, p.144). Por fim, “o conceito de
ação comunicativa pressupõe a linguagem como um meio dentro do qual
tem lugar um tipo de processo de entendimento em cujo transcurso os 4. Paulo Freire e ação dialógica
participantes, ao relacionar-se com um mundo, apresentam-se uns frente
A história da humanidade muitas vezes tende a ser tratada, vista,
ao outros com pretensões de validez que podem ser reconhecidas ou
pensada como um catálogo de conquistas. Conquistas de territórios,
postas em questão” (HABERMAS, 1988a, p. 143).
conquistas de espaços, culturais. Catálogo de invasões, violências, guerras,
O que, portanto, distingue as espécies de ação social, em Habermas, não poder.
é a presença de um fim, de uma finalidade, mas, sim, as ações teleológicas,
Quando o tema é educação, não é diferente, principalmente se a
cujo cálculo egocêntrico de utilidade e dos conflitos e cooperações
referência central recair sobre os processos de colonização. As vivências
depende dos interesses em jogo na busca do êxito; as ações reguladas
históricas da humanidade não podem deixar de considerar a questão
por normas, nas quais o fim pretendido é uma convivência regulada
educacional. Colonialismo, catequização, as entradas e bandeiras, as
tradicional e socialmente por valores e normas; as ações dramatúrgicas,
cruzadas são a evidência da postura imperialista do educador como
cujo objetivo são as relações consensuais entre um público e os atores;

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

detentor do poder de transmitir conhecimento. Ao catequizador, o por isso, vai ensinar a forma de reagir, entendemos o lugar da prática
poder de colonizar; ao catequizado, o poder de se convencer e perder do diálogo que extrapola a superficialidade da troca de turnos em uma
sua identidade cultural. É o que Paulo Freire chama de “teoria da ação conversação e o modo pelo qual a justiça restaurativa pode materializar-se
antidialógica” da educação (1970, p. 78 e ss.). no campo dos chamados direitos humanos. O processo de rechaçamento
Dessas reflexões, tomamos o pensamento de Paulo Freire como à opressão, antes, requer, inclusive, a superação do “medo da liberdade”.
fundamental para um rechaçamento da visão do educador colonialista, O que não se obtém com imposição de uma visão de mundo sobre
do catequizador (1970, p. 34 e ss.). A quebra da lógica do educar como outra, mas por meio da construção de uma visão de mundo resultante
transmissão de conhecimento tem repercussões não só na educação, mas da relação educador-educando posta pelas novas práticas interativas
na visão de mundo que está em vários outros domínios da vida social. (FREIRE, 1970, p. 17-18). Trata-se aqui, portanto, da dialogicidade como
Essa mudança atinge diversos lugares, instituições sociais. Limitamos prática da liberdade (FREIRE, 1970, p. 44 e ss.). Tal perspectiva encontra-
nossas reflexões ao Judiciário, estabelecendo uma analogia entre a se em sintonia com as modernas proposições do pensador russo Mikhail
proposta de Paulo Freire, de quebra da lógica educacional tradicional, Bakhtin, um dos principais expoentes da teoria diálogica do discurso, e
com a quebra da lógica do Judiciário como poder competente para ditar com a teoria do agir comunicativo de Harbermas, sobre a qual já falamos
o direito, como requer a conciliação e a justiça restaurativa. Para isso, na seção anterior.
recorremos às seguintes ideias: “ensinar não é transferir conhecimento” A questão é que quando o educador se imagina detentor do
(FREIRE, 1996, p. 52); “a educação libertadora, problematizadora, já não conhecimento, ele reifica o educando. Ao enxergar o outro como objeto,
pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir como depositário de informação, elimina a possibilidade de construção
‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da conjunta, de co-produção do saber, portanto, do diálogo educativo para
educação ‘bancária’” (FREIRE, 1970, p. 39); e “o mito de que a educação ambas as partes. Nesta perspectiva, não há educação libertária, mas
é formar, deve ser desfeito” (BITTAR, 2007, p. 313-334). A educação desumanização.
é diálogo e, para Freire (1990, p.14), “dialogar não é só dizer ‘Bom dia,
O que nos chama a atenção é que a educação dialógica não tem relação
como vai?’ O diálogo pertence à natureza do ser humano enquanto ser de
com perda do poder de educar, da responsabilidade do educador na
comunicação. O diálogo sela o ato de aprender, que nunca é individual,
condução do aprendizado. O que se reconhece é que: “não posso pensar
embora tenha uma dimensão individual”. É aqui que a aproximação entre
pelos outros nem para os outros, nem sem os outros” (FREIRE, 1970, p.
as ideias freireanas e a justiça restaurativa ganha corpo e precisa ser posta
58), por isso “o educador não deve abrir mão do desenvolvimento de seu
com clareza para que não se confunda o diálogo com uma técnica ou uma
trabalho”, bem como não faz sentido inventar o mito de que os educadores
tática de abordagem de um problema. Para o conceito de “diálogo”, Freire
estão sendo desvalorizados porque agora são dialógicos (ensinar inexiste
é muito contundente. Diz ele:
sem aprender) e não mais donos do saber a ser transmitido (FREIRE, 1996,
(...) o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria p. 4-5). O educador é um profissional que mantém uma relação clara,
natureza dos seres humanos. É parte de nosso progresso histórico do afetiva e engajada com os demais participantes do processo. O educador
caminho para nos tornarmos seres humanos. Está claro este pensamento? dialógico é democrático, produtor de liberdade, construtor junto como
Isto é, o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que discente de conhecimento; é uma espécie de instrumento auxiliar no
os seres humano se transformam cada vez mais em seres criticamente
comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram
aprendizado, e isso não reduz a sua importância, a sua dignidade e a sua
para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem (1990, p.15). responsabilidade junto ao educando (FREIRE, 1996). Afinal, o educador
não deixa de ser um “político militante” cuja tarefa requer “compromisso
Mas, quando compreendemos melhor a proposta de educação e engajamento em favor da superação das injustiças sociais” (FREIRE,
dialógica como educação libertadora de Paulo Freire, percebemos que 1996, p. 54).
sua contribuição pode ser transposta para outras áreas. Ao lermos nesse
Conectando o tema ao direito, temos a ideia de que “educar exige
autor que o processo de opressão, gerador de desumanização, para ser
tomada consciente de decisão” (FREIRE, 1996, p. 68). Neste debate,
revertido, necessita de uma pedagogia construída junto com o oprimido,
Freire chama a atenção para a presença de posturas autoritárias, tanto
não de uma pedagogia daquele que sabe como reagir à opressão e,

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

nos defensores da postura autoritária quanto nos defensores da postura forma legal de controle social, formas estas cujos conteúdos poderão ser
dialógica. Romper essa tendência ao autoritarismo é um desafio ao próprio ou não jurídicos” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 38). Para isso, os autores
educador. Ser democrático, disponível ao diálogo, não é abandonar as apresentam a visão substantiva do direito, ou seja, a visão de que direito
responsabilidades de educador, ainda que seja abandonar a ideia de que detém um conteúdo social passível de identificação racional por pesquisa
“nós sabemos o que os estudantes devem saber” (FREIRE, 1992, p. 60). empírica. A ideia do bem e do mal são verificáveis, bastando para tanto a
Atuar como construtor, permitindo-se partir da leitura do mundo dos realização de pesquisa empírica voltada à verificação dos traços afetivo,
educandos (FREIRE, 1992, p. 67) possibilita a cooperação e o estímulo no ideativo e volitivo da atividade biopsíquica dos seres humanos, ou seja, do
aprendizado. processo mental humano, a saber: os sentimentos, as ideias e as vontades
Essa lógica no direito significa pensar o Judiciário, não como dono da (composto SIV).
decisão, mas como construtor da decisão junto com os interessados. Isso O social é, então, a padronização do composto SIV, o que se dá por meio
significa a colocar, no centro da questão, as diferentes visões de mundo e da convivência contínua (temporalidade) dentre os polos mentais. O traço
a construir uma nova visão advinda das experiências interativas concretas. S (sentimento), do mental humano é identificado pela agradabilidade ou
Essa inclusão de uma nova forma de entender a resolução de conflitos desagradabilidade, pelo sentimento de dever ser e de não dever ser de
não implica retirar do Judiciário o poder de decisão, mas sim a “juizite”, a um comportamento. Assim, quanto mais agradabilidade maior será a
utilização do poder de decisão de forma autoritária. tendência à convivência pacífica. O traço I (ideia) é regido pelo conteúdo
ideacional, pelas ideias de semelhança e dessemelhança resultantes do
convívio em sociedade. O traço V (vontade) implica o querer e não querer
5. Visão substantiva do direito e justiça restaurativa
socialmente produzido. Assim, o interSIV é o objeto da sociologia do
A dicotomia da justiça procedimental versos justiça substantiva é direito, que se ocupa do controle social, do direito da sociedade. Esses
trabalhada por Cláudio Souto e Solange Souto (2003), de maneira que traços não são separáveis, esta separação é realizada por abstração. Cada
o procedimento da pesquisa empírica informa dados à visão substantiva traço está plenamente ligado ao outro, o que leva os autores a afirmarem
do direito. A pergunta sobre o que faz a vida em sociedade ser possível é que o controle social energiza socialmente a força mental e a força física
posta no debate considerando que o fenômeno social é fato exteriorizado presentes na vida social (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 114).
na comunicação entre seres humanos (SOUTO, 1971, p. 5-7). O sentido
A partir dos estudos desses traços, a sociologia seria a ciência dedicada
social do ser humano perpassa pela padronização das regras produzidas
à pesquisa sobre o composto SIV que tem por fórmula: quanto maior
pelo processo de socialização (controle social), sem que com isso elimine
I de semelhança e S de agradabilidade, entre os polos SIV, menor a
a personalidade do indivíduo, afinal “o indivíduo não é de todo passivo,
distância exteriorizada (dada a conhecer). Quanto aos processos sociais
nem existe para a sociedade uma obediência absoluta de seus membros
de aproximação (como a cooperação) e de afastamento (como o conflito),
... assim como existem na família resistências e tensões, existem elas
os autores estabelecem os seguintes postulados:
também na sociedade global. Em ambos os sistemas há um hiato na
comunicação de grupos” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 28-30). 1º) se prepondera a ideia de semelhança sobre a de dessemelhança,
o sistema de interação social está equilibrado;
Portanto, devido à continuidade nos comportamentos sociais,
produzimos controles sociais, do que resulta admitir que “o social 2º) equilíbrio permanente do sistema de interação social resulta
é sempre mudança, mesmo quando é controle”. Afinal, ainda que o num processo social associativo;
social não se confunda com as mentes individuais, “não se pode negar
3º) quanto maior a semelhança preponderante entre os polos sócio-
que o social resulte de polos mentais em interação. Ora, assim sendo,
interagentes, maior o equilíbrio do sistema de interação social;
e desde que mentes individuais variam continuamente, toda interação
social implica mutação, mudança social, que pode ser mais ou menos 4º) quanto mais equilíbrio interSIV, maior controle social;
acentuada” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 37). 5º) quanto menor a distância interSIV, menos energia será necessária
Uma vez estabelecida a relação entre o social e as mentes, Souto e para a receptividade da comunicação e para o controle social;
Souto afirmam que “o direito como fato social não se confunde com a
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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

6º) quanto mais socialização, mais equilíbrio no sistema social; A proposta de uma visão substantiva do direito corrobora uma
7º) quanto maior a dessemelhança interSIV, maior a tendência ao compreensão da justiça restaurativa na medida em que o direito deixa de
desequilíbrio do sistema social; ser reduzido ao direito do estado, à legislação e às decisões judiciais. Há
um espaço para a visão de que legislação e decisão judicial podem não
8º) quanto maior o padrão de I (ideias), maior equilíbrio interSIV. ser direito substantivo. A questão de como essa visão colabora para uma
Com esses pressupostos, Cláudio Souto e Solange Souto têm por direito compreensão da justiça restaurativa é que quanto maior a participação
“a pauta de conduta social que esteja em consonância com o sentimento dos polos interSIV do estabelecimento da solução do conflito, maior será
humano universal de justiça – algo de intrinsecamente justo, pois - e com a probabilidade de esses polos interSIV desenvolverem um convívio social
dados de ciência empírica – algo necessariamente racional, portanto, e sem conflito, porquanto viabilizados o sentimento de agradabilidade, a
de racionalidade comprovável” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 227). Com ideia de justiça e a vontade de agir em consonância com o outro interSIV.
isso, distinguem-se as regras morais das regras de equidade das regras Não há que se pensar uma modelo pré-estabelecido para a condução
jurídicas. É que essas regras, mesmo que signifiquem pautas de conduta dessas audiências. Mas, a teoria sociológica do direito de Cláudio Souto
em consonância com o sentimento humano do dever ser (sentimento de e Solange Souto trazem contribuições à reflexão da justiça restaurativa
justiça), diferem porque “as regras jurídicas são aquelas em consonância justamente por explorarem a dimensão SIV, a individualidade e a
com dados do conhecimento científico-empírico, as morais são as sociabilidade do convívio social. A não redução do direito ao Estado, como
em consonância com dados de conhecimento metacientífico (não defendem os autores (SOUTO, 1971, p. 169; SOUTO e SOUTO e SOUTO,
empiricamente comprovável), ao passo que a equidade seria a pauta de 2003, p. 73), é um elemento fundamental para a justiça restaurativa, pois
conduta em consonância com dados de conhecimento positivo concreto a abertura para o que será construído como “direito entre os envolvidos”
do caso singular ais são as em consonância com dados de conhecimento não se esgota nos “termos da lei”. Por mais que a legislação não possa vir
metacientífico” (SOUTO, 2003, p. 221-222). a ser plenamente ignorada no resultado dos círculos restaurativos. Se, por
Souto e Souto não reduzem a ética ao dever ser, afinal o sentimento do hipótese os componentes do círculo decidirem matar um filho, ou vender
dever ser (sentimento de agradabilidade diante do que se acha que deve um órgão, hipóteses que se apresentam absurdas e não constituem
ser) expressa o que é próprio a todo ser humano, abstraídas suas ideias. O direito, pois não em consonância com o sentimento universal de dever ser
sentimento de dever ser não se confunde com a concepção individual de de qualquer grupo humano. Como propõe a teoria substantiva do direito.
dever ser. Com isso, um indivíduo pode considerar que determinada norma
jurídica não é um “dever ser” e agir contrário ao padrão (ao conteúdo
6. Poder Judiciário, justiça restaurativa e decisão democrática: concluindo
normativo de dever ser), afinal “todos têm liberdade humana de escolha
entre padrões e suas consequências” (SOUTO, 2003, p. 223). Com essa Evidenciada a insuficiência da concepção de justiça imposta, resultante
diferenciação, Souto e Souto afirmam que o “uso linguístico particular dos da aplicação (interpretação e decisão) sobre quem está com o direito,
juristas que chamam direito tudo que for conteúdo normativo de formas pautada pela legislação e pela jurisprudência, sem esquecer os relatos
de coercibilidade estatal – desconhecendo eles como ‘direito positivo’ fáticos e as provas constitutivas de processos judiciais, a conciliação
o que não for tal conteúdo – não é igual ao uso linguístico comum da é apontada como lógica substitutiva, seja na forma de diálogo em
sociedade” (SOUTO e SOUTO, 2003, p. 225). Afinal, o sentimento de dever audiências, seja na forma de transação penal, de pena alternativa, de
ser diz respeito à normalidade do sentimento, isto é, ao sentimento do justiça restaurativa.
dever ser que comumente se observa nos seres humanos (SOUTO, 2003, A distinção entre a forma de fazer justiça punindo o infrator e a justiça
p. 226; SOUTO, 2009, p. 32). Mas, é perfeitamente possível a alteração restaurativa é que:
desse sentimento no psiquismo doentio” (SOUTO, 2003, p. 227). Assim
é porque o sentimento de dever ser do ser humano normal contém o a simples punição não considera os fatores emocionais e sociais, e que
impulso de conservação do indivíduo e da espécie, que é o postulado é fundamental, para as pessoas afetadas pelo crime, restaurar o trauma
ético básico. emocional - os sentimentos e relacionamentos positivos, o que pode
ser alcançado através da justiça restaurativa, que objetiva mais reduzir o
impacto dos crimes sobre os cidadãos do que diminuir a criminalidade.

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

Sustentam que justiça restaurativa é capaz de preencher essas necessidades Com a justiça restaurativa, o papel do Judiciário deixa de ser o de impor
emocionais e de relacionamento e é o ponto chave para a obtenção e
manutenção de uma sociedade civil saudável (GOMES PINTO, 2005, p. 22).
sua decisão e passa a ser o de mediar os conflitos. Afasta-se da lógica do
“ditar o direito” e constrói-se a lógica do fazer junto. Evita-se a busca pela
Em seu texto, Renato Sócrates Gomes Pinto apresenta distinções de justiça a ser imposta, pela justiça a ser posta, porque é construída pelas
ordem axiológica, procedimental e quanto ao resultado. Estas afirmações partes.
feitas por Gomes Pinto segue os Princípios Básicos sobre Justiça Evidentemente, os críticos de leitura superficial já gritam: “é o fim do
Restaurativa presentes na Resolução do Conselho Econômico e Social das Estado de Direito, vamos voltar à Idade Média”. Acontece que a justiça
Nações Unidas, de 13 de Agosto de 2002 (GOMES PINTO, 2005, p. 24-27). restaurativa não substitui a justiça formal, tradicional, ela aparece como
Para tratar da justiça restaurativa e sua consequência na lógica punitiva, complementar, é o que se pode ler já na apresentação do livro Justiça
Renato Campos Pinto de Vitto (2005, p. 42-43) apresenta os seguintes Restaurativa, organizado e publicado pelo Ministério da Justiça e pelo
modelos de pena: o modelo dissuasório, voltado à “pretensão punitiva Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD:
do Estado”; o modelo ressocializador, que foca a função reabilitadora da
pena; e o modelo integrador, pautado pela ideia de conciliar interesses é inegável que eles constituem um instrumento de enorme importância
e expectativas dos envolvidos, buscando a pacificação da relação social para o fortalecimento e melhoria da distribuição de Justiça.
Complementando o papel das instituições do sistema formal de Justiça, os
que se tornou conflituosa. O modelo integrador é o que exigirá maior programas e sistemas alternativos podem representar um efetivo ganho
desafio ao pensamento jurídico penal, principalmente porque a justiça qualitativo na solução e administração de conflitos, pelo que devem ser
restaurativa, ao pretender intervir direta e positivamente em todos os objeto de criterioso monitoramento e acurada avaliação, a fim de que as
envolvidos no fenômeno criminal, toca “a origem e causa daquele conflito, boas práticas sejam fomentadas e difundidas.
e a partir daí possibilita o amadurecimento pessoal do infrator, redução
dos danos aproveitados pela vítima e comunidade ... Porém, o êxito da A aplicação de tal modalidade de intervenção no país ainda é, de uma
fórmula depende de seu correto aparelhamento” (DE VITTO, 2005, p. 49). forma geral, incipiente, como atesta o relatório de pesquisa “Acesso à
Justiça por sistemas alternativos de administração de conflitos”. Note-
Já Eduardo Rezende Melo apresenta os desafios de se implementar a se, porém, que é no campo dos conflitos de natureza penal e infracional
justiça restaurativa, partindo da visão filosófica de Kant, contrapondo-a que nos ressentimos sobremaneira da ausência de uma intervenção
diferenciada nos litígios (SLAKMON, Catherine; De VITOO, Renato Campos
à ideia de justiça retributiva, para a qual, a punição deve ser imposta Pinto e GOMES PINTO, Renato Sócrates. In: Justiça Restaurativa. Brasília:
para que se tenha retribuída a condição de paz social. Essa visão de Ministério da Justiça, 2005, p. 11. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.
justiça promove a cultura da vingança, o que impede a realização da br/Download/FDE/6%20-%20Textos%20Complementares/Livro%20
justiça restaurativa. Seguindo essa ideia, Rezende de Melo (2005, p. Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf).
57) escreve que “não apenas a justiça, o próprio direito haveria de ser
A expectativa do espaço que a justiça restaurativa vem tendo aumenta
repensado” (REZENDE MELO, 2005, p. 57). O maior desafio está em que
por constar no III Programa Nacional de Direitos Humanos, na parte
a justiça não está lá, já pronta, à espera para ser usada, mas que requer
referente à Segurança Pública, a questão do acesso à Justiça e Combate à
responsabilidade e comprometimento de todos os envolvidos. Sobre isso,
Violência. Sobre isso, o referido documento diz:
este autor, ainda, diz que “se em jogo está um outro modo de reflexão
da justiça, que passe da coerção ao juízo sobre suas práticas, deixando também como diretriz, o programa propõe profunda reforma da Lei
de ser a afirmação de um tipo determinado de valores supostamente de Execução Penal, que introduza garantias fundamentais e novos
transcendente à sociedade, a noção de justiça social não pode deixar regramentos para superar as práticas abusivas, hoje comuns. E trata
de estar presente a um modelo alternativo ao retributivo” (REZENDE as penas privativas de liberdade como última alternativa, propondo a
redução da demanda por encarceramento e estimulando novas formas
MELO, 2005, p. 57). Assim, a questão da justiça tem estreita ligação com
de tratamento dos conflitos, como as sugeridas pelo mecanismo da
a educação, principalmente se a proposta é sair da lógica da “regressão à Justiça Restaurativa (Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos
violência física primária” (REZENDE MELO, 2005, p. 71). da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH-3). Brasília: SEDH/PR, 2010, p. 105).

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso, Artur Stamford da Silva e Virgínia Leal
pedagógicas e jurissociológicas

Um último dado relevante para a compreensão do tema é que o Referências


relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o programa “casas BITTAR, Eduardo (2007). Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura,
de justiça e cidadania” esclarece, logo na primeira frase, que: democracia, autonomia e ensino jurídico. In: Educação em direitos humanos: fundamentos
teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, pp. 313-334.
o Programa “Casas de Justiça e Cidadania”, aprovado pelo Plenário do
DE VITTO, Renato Campos Pinto (2005). Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), teve sua implantação recomendada a
Humanos. In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em:http://
todos os Tribunais do País pela Recomendação nº 26, de 16 de dezembro de
www.tj.sp.gov.br/Download/FDE/6%20%20Textos%20Complementares/Livro%20
2009, para o desenvolvimento de ações destinadas à efetiva participação
Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf) – está faltando a indicação da data em que o endereço
do cidadão e de sua comunidade na solução de seus problemas e na sua
eletrônico foi visitado.
aproximação com o Poder Judiciário (RICHA, Morgana; TAMBURINI, Paulo
e HÉLIO, Jorge. Relatório Programa “Casas de Justiça e Cidadania. Brasília: FREIRE, Paulo (1970). Pedagogia do oprimido. Saberes necessários à prática educativa. Rio
CNJ, 2010, p. 3). de Janeiro: Paz e Terra.
FREIRE, Paulo & SHOR, Ira (1990). Medo e ousadia – o cotidiano do professor. Rio da
Um processo de revisão do papel do Judiciário com “decididor” dos
Janeiro: Paz e Terra.
conflitos sociais, atribuindo-lhe o lugar de restaurador do convívio
pacífico, ou mesmo mediador de conflitos contém a sensação de perda FREIRE, Paulo (1992). Pedagogia da esperança. Saberes necessários à prática educativa.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
de poder. Sensação semelhante a descrita por Paulo Freire quando fala
da relação de poder do professor em relação aos discentes. Isso, também, FREIRE, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
pode ser observado em relação ao monopólio estatal da violência, quando
ao Estado, através da legislação e da decisão judicial, cabe o poder de FREIRE, Paulo (1997). Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
dágua.
promover a paz social. Acontece que, assim como considerar o discente
como coautor do aprendizado não retira o poder (responsabilidade e GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: Justiça
compromisso) do professor com sua atividade, com o curso ministrado Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/
Download/FDE/6%20-%20Textos%20Complementares/Livro%20Justi%C3%A7a%20
e seu aprendizado, assim também considerar a justiça restaurativa, e Restaurativa.pdf) – está faltando a indicação da data em que o endereço eletrônico foi
demais formas de participação dos envolvidos na produção da decisão visitado.
do caso jurídico, tão pouco, retira do Estado a competência para impedir HABERMAS, Jürgen (1988a). Teoria de la acción comunicativa: racionalidad dela acción y
a volta à vingança privada, à justiça com as próprias mãos. Incluir as racionalización social. Tomo I (Trad. Manuel Jimánez Redondo). Madri: Taurus.
partes como construtoras da decisão judicial, não retira do Judiciário sua
HABERMAS, Jürgen (1988b). Teoria de la acción Comunicativa: crítica de la razón
responsabilidade e compromisso com a sociedade, com a decisão e as funcionalista. Tomo II. (Trad. Manuel Jimánez Redondo). Madri: Taurus.
consequências dela no cotidiano dos envolvidos, portanto da comunidade.
HABERMAS, Jürgen (1989). Consciência moral e agir comunicativo (Trad. Guido A. de
Nosso propósito foi apenas evidenciar que não faltam alternativas para Almeida). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
uma compreensão sociológica do direito da justiça restaurativa de maneira HABERMAS, Jürgen (1990). Pensamento pós-metafísico, estudos filosóficos. (Trad. Flávio
que ela seja compreendida como espaço de amplificação da eficácia dos Beno Siebeneichler). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
direitos humanos. Ou seja, da dignidade humana, e da adoção de uma MORIN, Edgar (2009). Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS, Francisco
perspectiva dialógica para a análise dos discursos que materializam as Menezes e SILVA, Juremir Machado da (org.). Para navegar no século XXI, Porto Alegre,
relações humanas. EDIPUCRS, 2000. Disponível em: http://www.ouviroevento.pro.br/leiturassugeridas/EM_
Da_necessidade.htm.
RAJAGOPALAN, Kanavillil (2004). A linguística que nos faz falhar. Investigação crítica. São
Paulo: Parábolas.
REZENDE MELO, Eduardo (2005). Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais.
Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em
contraposição à justiça retributiva. In: Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/Download/FDE/6%20-%20Textos%20
Complementares/Livro%20Justi%C3%A7a%20Restaurativa.pdf)

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JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO DIREITOS HUMANOS: observações éticas do discurso,
pedagógicas e jurissociológicas

SOUTO, Cláudio. Introdução ao direito como ciência social. Rio de Janeiro: Tempo
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SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. Sociologia do direito. Uma visão substantiva. Porto
Alegre: SAFE, 2003.
SOUTO, Claudio. Natureza, mente e direito. Para além do usual acadêmico. Coleção
Faculdade de Direito do Recife. Recife: Faculdade de Direito do Recife, 2009
STAMFORD DA SILVA, Artur e RAMOS, Chiara (2003). Conciliação judicial e ação
comunicativa: acordo judicial como negociação versus consenso. Anuário da Pós-
Graduação em Direito. Recife: PPGD-UFPE, no. 13, p. 75-109.
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em teoria e na prática. Pesquisa etnometodológica. Advocatus, Recife: OAB-PE, N° 2, p.
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WEBER, Max (1996). Economia y sociedade. México: Fondo de Cultura Económica.

130
Marcelo L. Pelizzoli

Círculos de Diálogo: base restaurativa para a Justiça e os


Direitos Humanos

Marcelo L. PELIZZOLI1

Introdução
Neste texto, discutimos fundamentos teóricos e orientações
pragmáticas dos Círculos de Diálogo como filosofia e como ferramenta
de realização da justiça e dos direitos humanos, tendo como foco os
seguintes conceitos interligados: Círculo, Encontro, Abertura, Diálogo
(Escuta/Atenção e Pergunta), Sistema, Interdependência (inter-humano),
Pertença (inclusão), Alteridade, Valores, Suporte, Justiça e Restauração.
Discutiremos, também, conceitos correlatos que circunscrevem os
significados principais desta temática. Nossa pesquisa é fruto da
relevância crescente da necessidade de estratégias psicossociais para a
resolutividade e efetividade da Justiça, tais como a mediação de conflitos
e o grande guarda-chuva chamado de Práticas Restaurativas.

Sobre o fundamento dos Círculos de Diálogo

Nós podemos liberar o potencial de nossa vontade coletiva para criar


o mundo que desejamos. Nós somos aqueles por quem estávamos
esperando.2

Os círculos de diálogo, ou os círculos restaurativos, que mencionaremos


aqui são modelados a partir da Justiça Restaurativa no foco de Pranis &
Boyes (2011) e de Zehr (2008), e a Real Justice de Connell & Wachtel
(1999), com os matizes que temos dado a partir das teorias e contextos
com os quais trabalhamos (Pelizzoli, 2008, 2010 e 2012). Cabe dizer que
os modelos vigentes em tais autores e seus respectivos países não foram
feitos para serem imitados à risca, mas precisam adaptar-se às culturas
e aos facilitadores, bem como ao contexto/tempo em que estão sendo
vividos. Os círculos têm regras básicas claras, contudo, têm alguma
flexibilidade; não se pode prever o que ocorrerá como tal no ambiente,
antes (pré-círculo), durante e depois do círculo (pós-círculo).

1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Professor nos mestrados PPG Direitos Humanos, PPG Saúde Coletiva, PPG
Filosofia, da UFPE. www.curadores.com.br. Contato: opelicano@gmail.com.
2 Anciãos Hopi, apud Boyes & Pranis, p. 26.

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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli

Há vários tipos de círculo, como podemos ver em Pranis (2011) e por outro lado, não deve ser considerada como algo que está fora dos
Boyes & Pranis (2011), sendo que o termo mais conhecido no âmbito ideais de justiça colocados nos cursos de Direito e no Sistema Legal usado
crescente da Justiça Restaurativa é “Círculos Restaurativos”. Estes são até o momento. Trata-se muito mais de abrir o leque de possibilidades,
momentos em que ocorre o que alguns chamariam, precipitadamente, de mudando o foco com que se olham os danos e as reparações do mesmo,
mediação judicial. Pranis & Boyes têm usado largamente o termo “Práticas saindo do engessamento em que o sistema legal e o direito positivo têm
Circulares” para ampliar o alcance, visto que os círculos não são somente colocado os operadores do direito e os sujeitos envolvidos no processo
para serem usados no âmbito de uma justiça restaurativa criminal, mas (Pelizzoli, 2008 e 2012; Zehr, 2008). Do mesmo modo, isto vale para os
como as mais diversas práticas restaurativas, tais como: reintegração, círculos restaurativos ou de diálogo, que não “inventam a roda”, mas
perdas, questões de sexualidade, cura, conflitos escolares e outros. O a fazem girar com uma capacidade de excelência bem maior do que o
“Guia de Práticas Circulares” das autoras traz como subtítulo “o uso de sistema legal vem utilizando, institucionalmente enferrujado, maquínico
círculos na construção da paz para desenvolver a inteligência emocional”. e que perdeu seu sentido maior e sua concretude. Quando se perde o
Muitas questões importantes e percepções profundas estão por trás sentido e a excelência da justiça, da restauração inter-humana, é preciso
destas palavras, desde que se entenda paz como capacidade de lidar com reinventá-la; o primeiro passo para tal é levantar os obstáculos sutis e
a vida, com a alteridade e os conflitos na pragmática da interação social ocultos que limitam ou impedem a realização do escopo visado, a ideia
cotidiana, bem como, entenda-se emocional como dimensão profunda e e a prática da justiça. Antes de adentrar na discussão sobre a justiça,
base para o “ser no mundo” do sujeito e, portanto, a qualidade de suas precisamos apontar aqui do que se trata, brevemente, com este novo
relações e (des)encontros consigo, com os outros e com o ambiente. A paradigma crescente e envolvente que são as práticas restaurativas, ou a
efetividade e vantagem da visão das autoras em relação às dimensões Justiça Restaurativa, na visão de seu mais conhecido nome, Howard Zehr4.
convencionais (igualmente importantes) na questão da justiça (ou também
Justiça) é que incorporam mais tecnologias psicossociais e possibilidades
A lente restaurativa da justiça a partir de Zehr
de uso circular haurindo a força sistêmica - as quais vêm primeiramente
de tradições indígenas. Mesmo os postulados de Howard Zehr (2008), Segundo Zehr (2008), a lente ou filosofia restaurativa tem cinco
que encontram eco nas visões cristãs de comunhão, reparação, perdão e princípios-chave ou ações:
outros, têm sua origem primeira no modelo de resolução de conflitos de 1.focaliza o dano e as consequentes necessidades das vítimas, assim
comunidades indígenas australianas. como das comunidades e dos ofensores;
Em nosso caso, usamos o termo Círculos de Diálogo, mas também 2.ocupa-se das obrigações que resultam desses danos (as obrigações
“práticas circulares ou sistêmicas”, para dar a entender a amplitude de dos ofensores, assim como da comunidade e da sociedade);
possibilidades sociais de tais práticas. Observe-se que elas NÃO podem
ser tomadas apenas como uma ferramenta ou um método, e uma moda 3.usa processos inclusivos e colaborativos;
na área social e da Justiça. Igualmente, não se pode “entender” o que 4.envolve aqueles com uma participação legítima na situação,
ocorre nas práticas circulares sem alguma experiência delas, tendo incluindo vítimas, ofensores, membros da comunidade e a sociedade;
sentido o tipo de força/energia e restauração que ali circula - na forma
5.busca reparar os erros.
de sentimentos e motivações diversas, reconexões de sociabilidade,
encontro reequilibrante entre dor e afeto, potencial de cura de relações, Segundo ele, nós podemos diagramar a justiça restaurativa como uma
traumas, suporte humano e elementos afins. roda. No centro está o foco central da justiça restaurativa: buscar reparar
os erros e danos. Cada raio representa um dos quatro outros elementos
É fundamental compreender que no momento em que um paradigma
essenciais destacados acima: focalizar os danos e necessidades, ocupar-
novo está se instaurando, a tendência é moldá-lo nos escaninhos
se das obrigações, envolver os participantes (vítimas, ofensores, e
conhecidos e familiares, os quais não contemplam ainda uma dialética
comunidades de cuidado), e, ao máximo possível, usar um processo
aberta ao novo3. Por conseguinte, a Justiça Restaurativa não deve ser
considerada como um novo ramo nos moldes da justiça convencional; 4 Os Círculos Restaurativos e, também, a sua nuance Círculos da Paz na versão de Pranis (2011) são usados
amplamente em países como Austrália, EUA, Canadá e começaram a ganhar o mundo nos últimos anos. No
3 Cf. T. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 1979. Brasil, são usados no judiciário a partir dos anos 2000, sendo que a primeira Central de Práticas Restaurativas foi
oficializada apenas em 2009, pelo TJ do RS.
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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli

inclusivo e colaborativo. Isso precisa ser feito, obviamente, numa atitude Neste simples e resumido olhar sobre o paradigma restaurativo, ou de
de respeito por todos os envolvidos (Zehr, 2008). justiça real, já podemos ver o quanto o sistema legal, que chamamos de
Justiça, está longe de realizar seu escopo último devido a vários fatores5.
Para ele, a justiça restaurativa é um processo para envolver, ao máximo
Interessa-nos especificamente agora tocar em alguns destes pontos
possível, aqueles que têm um papel num evento ofensivo específico e para,
dentro da ligação entre a ideia de justiça e a ação política.
coletivamente, identificar e cuidar dos danos, necessidades e obrigações
decorrentes, de modo a curar e corrigir o mais possível o malfeito (idem).
No excelente manual Justiça Restaurativa: Uma visão para a cura e a Limites da Justiça e da Política
mudança, Susan Sharpe (apud Zehr, 2008) resumiu os objetivos e tarefas
O desconhecimento das ferramentas psicossociais – tanto quanto de
de justiça restaurativa em três frases, apontando que os programas de
valores humanos fundamentais - para a realização dos escopos últimos
justiça restaurativa visam:
da ideia de Justiça, e sua correlata, a de Direitos Humanos, traz grandes
deixar as decisões chaves nas mãos daqueles mais afetados pelos prejuízos de ordem prática para os usuários destas áreas, bem como para
crimes; as instituições que aí atuam. E, em geral, a meta última dos operadores
de justiça – e de promulgadores e defensores de Direitos - é que os
tornar a justiça mais curativa e, idealmente, mais transformadora;
casos de violência e injustiça sejam julgados, e aqueles que praticaram
reduzir a probabilidade de futuras reincidências. atos deste tipo sejam condenados, dentro do modelo convencional:
Não obstante, alcançar estas metas requer que: retributivo, punitivo e vingativo. Neste modelo, o delito ou crime fere tout
court a Lei e o Estado, e trata-se de retribuir o malfeito/dano na forma
as vítimas estejam envolvidas no processo e saiam satisfeitas; das penalidades legais convencionais, sendo o modelo prisional o grande
os ofensores compreendam como suas ações afetaram outras arauto pretensamente protetivo e corretivo. Sem dúvida que a realização
pessoas e assumam responsabilidade por essas ações; desta meta, chamada de Justiça institucionalizada, tem sido importante.
E em geral, numa sociedade que não é nivelada na dimensão pragmática
os resultados ajudem a reparar os danos causados e considerem as
ou material e de condições de base, mas sim excludente, sabe-se que o
razões da ocorrência (projetos específicos foram desenhados para as
poder e o dinheiro, bem como o descaso e descompromisso ético, minam
necessidades das vítimas e dos ofensores);
constantemente a realização do ideal de Justiça, de dar (retribuir) a cada
tanto a vítima quanto o ofensor ganham um senso de “pertencimento” um o que lhe cabe no âmbito da manutenção da Norma, da Ordem social,
e ambos são reintegrados à comunidade. do Estado de Direito, do corpus legal. No Brasil, temos exemplos amplos de
como a Justiça, frequentemente, é prostituída e pervertida por dinheiro,
Enfim, a justiça restaurativa sintetiza-se também como um conjunto de
poder, ou mais genericamente pelo ego (egoísmo). Portanto, a luta pela
questões que nós precisamos fazer quando um malfeito ou erro ocorre.
realização da justiça em seus termos, colocados pela normatização legal,
Essas perguntas-guia são como que a essência da justiça restaurativa
é de fato uma luta de primeira grandeza, devido principalmente pelo
neste modelo. Quais sejam:
histórico de injustiças infligidas eminentemente contra as populações
1.Quem foi afetado? vulneráveis, como se diz no âmbito da Bioética, ou dos excluídos. Grandes
2.Quais são as suas necessidades? nomes se destacaram mundialmente, e muitos deles como prêmios Nobel,
na luta pela realização de direitos básicos, contra a opressão, contra o
3.Que obrigações foram geradas? coronelismo, exploração de crianças, trabalho escravo ou semiescravo
4.Quem tem participação nessa situação? e questões de ordem racial. Esta luta ainda está na ordem do dia e se
destaca surpreendentemente como a mais básica em tempos de evolução
E, por fim,
tecnológica e econômica monstruosa.
5. qual é o processo apropriado para envolver os participantes num
5 “Os procedimentos disciplinares no Sistema de Justiça tradicional fornecem pouca ou nenhuma oportunidade
esforço de reparação? (Zehr, 2008). de reintegração para fazer correções, desculpar-se, reparar os danos ou libertar-se do rótulo de infrator. Eles
excluem do processo disciplinar àqueles mais afetados pela infæração: os infratores, as vítimas e respectivas
comunidades de apoio”. Ted Wachtel, Terry O´Connell, Ben Wachtel (2010).

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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli

Muitos militantes dos direitos humanos e operadores da justiça, ou Esta discussão é importante para o que tratamos, pois os círculos de
mesmo políticos em geral de esquerda, ou acadêmicos de uma tradição diálogo, ou círculos da Justiça Restaurativa, são uma ferramenta muito
mais crítica tal como as de influência marxista, colocam a realização do poderosa e atuam no sentido primeiro da Justiça, que é de incluir os
escopo de direitos conectada diretamente a uma mudança social estrutural, sujeitos no sentido maior da sociabilidade, ou comunidade. Ao mesmo
de viés eminentemente de disputa política e de poder (governo), com um tempo, eles têm um papel de trazer consciência social e afetiva, e também
novo papel socializante do Estado. Trata-se de uma justa causa em meio política (polis – cidade) aos participantes. Isto ocorreu exemplarmente em
ao recrudescimento do capitalismo tardio, chamado em muitos casos de outros modelos sociais circulares, como os de Paulo Freire, ou nitidamente
“selvagem”, dilapidador, sendo que esta entidade chamada “capitalismo” psicossociais como o da Terapia Comunitária, criada no Ceará nos anos
acaba sendo a causa/inimigo número um a ser atacado. Não obstante, 90, em contexto de favela e necessidade de organização sociopolítica
sabe-se que tal inimigo está incrustado inclusive no modo de vida dos que (hoje a TC tem se estruturado amplamente pelo Brasil, como ferramenta
lutam contra o mesmo, contradição necessária e normal a assumir em altamente recomendada nos âmbitos de saúde social). Igualmente, com
busca de mudanças estruturais mais profundas. Por outro lado, quando os modelos do Teatro do Oprimido, vindo de A. Boal, usados no âmbito da
alguns militantes ou críticos de base social, marxista ou não, encontram educação popular, cultura e arte popular.
propostas que operam com ações psicossociais, tais como as que postulam As ferramentas sociais ou psicossociais circulares, sistêmicas,
o nível do diálogo, humanização, resgate de intersubjetividade, mudanças comunitárias, são instrumentos pedagógicos efetivos de cura, de
interpessoais e similares, tendem a encarar tais ações como menores, ou conscientização, de união de grupos, de formação para inciativas sociais,
ainda, como subjetivas, ou mesmo espirituais, ou “apenas psicológicas”. de inclusão social. Por outro lado, políticas sociais governamentais, ou
Uma antiga oposição se anuncia nestas posturas, entre a que afirmaria mesmo de distribuição de renda ou implementação de um Estado de
que a mudança deve começar no sujeito, e a outra que deve começar “bem estar” social, ou mesmo um Estado tipo socialista, são de fato muito
em estruturas sociais econômicas e políticas. Muitas vezes, é em torno de importantes. No entanto, enfrentam fracassos constantes. Por quê?
uma armadilha que se prendem tais oposições, entre o focar na pessoa As causas pontuais de cada caso nos fogem aqui. Contudo, não
e o focar na estrutura. Uns pensam que se mudarmos as estruturas, podemos deixar de levantar algumas hipóteses em torno de um foco
mudaremos tudo. Os exemplos são muitos a favor ou contra tais central: fracassaram e vão fracassar toda vez que não conseguem
concepções. O modelo de Cuba é um dos exemplos dos países que entra no mobilizar os sujeitos desde valores fundamentais relativos às suas vidas
fogo cruzado destas contraposições. Enquanto Dalai Lama clama por uma pessoais e comunitárias, relacionais e simbólicas. São estes valores os
“revolução espiritual”, do amor universal, muitos partidos de esquerda visados nas dimensões e ações psicossociais. Sujeitos desconectados
clamam por revolução política e econômica, ou seja, mudar radicalmente de valores fundamentais - ou como dizem muitos mestres espirituais de
o capitalismo, superá-lo inclusive. Um dos problemas aí está em saber várias tradições de sabedoria - da compaixão ou solidariedade básica
o que, como e onde se encontra concreta e presentemente o que se da vida, desembocam em motivações individualistas, insustentáveis,
chama por esta entidade, o capitalismo. É patente que uma modificação negativas ou conflitivas. A ética não funciona sem uma estética (aesthesis),
econômica traz mudanças nas paisagens subjetivas ou mentais dos sem sensibilidade, sem dor e beleza humana, tanto quando a política
indivíduos, e isso é importante. Não obstante, temos no mundo fartos torna-se apenas a arte da guerra egológica e de guetos empoderados e
exemplos de mudanças políticas para a esquerda, reformas e revoluções endinheirados, adoentados em suas paisagens mentais infladas, se não
de várias ordens, populistas ou não, desenvolvimentistas, estruturais atua carregando consigo o coração do humanus. O coração humano, por
ou não, que fracassaram em suas promessas paradisíacas. Por outro base, aponta para uma comunidade de sentido, trocas e diálogo, inclusão.
lado, sabemos que comunidades/povos tradicionais ou organizados(as),
com visão de sustentabilidade, do seu papel social na vida, têm criado Uma das verdades da luta política em torno das estruturas, tanto quanto
perspectivas de vida exemplares, sejam elas com pequenos ou grandes dos que alardeiam a promoção do desenvolvimento, do crescimento
exemplos. A pergunta que cabe é: revolucionar, ou desenvolver, para qual econômico (palavra de ordem ainda hoje) em especial das classes
direção, com que conceito de humano, de sociabilidade, com que conceito desfavorecidas, é a necessidade imperiosa de dar condições básicas de
de sustentabilidade, de felicidade? alimentação, moradia, saneamento, escola, cultura, educação. Estes são
direitos básicos e que, infelizmente, temos que lutar ainda a todo tempo
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por eles. Outro direito se junta a estes diretamente, o da sustentabilidade, por condições econômicas ideais às classes desfavorecidas, nem apenas
sem o que tudo aquilo começa a ir “por água abaixo”, cada vez mais em achar que tais condições nos tiraram da crise generalizada pela qual
alerta, apesar dos modelos urbanos vigentes serem ainda gritantemente passamos6.
insustentáveis (basta conferir alguns dados graves no âmbito da saúde, Isto deve-se a alguns motivos básicos: primeiro, devido a que o ideal
transporte e (i)mobilidade social, problemas nas periferias, perda de de crescimento econômico e sua direção à universalização (condições
paisagens, uso insustentável de energia e recursos naturais, produção materiais para todos) hoje no mundo é absolutamente irrealizável, pois
elevada de lixo, poluições de toda ordem). os recursos naturais são escassos, e aumentam os problemas relativos
O que muitos ignoram ou esquecem é que tais demandas ou ações à água, energia, terras cultiváveis; de igual modo, a poluição produzida
que vêm para elevar as condições de vida das populações não precisam pelos mesmos e o descarte de resíduos de toda ordem já ultrapassaram
e não devem estar desvinculadas da questão do sentido da felicidade os limites temporais e espaciais da linha da insustentabilidade. Isso
humana buscada: que tipo de humano, ambiente e intersubjetividade nos remete a afirmar que estamos vivendo o início do caos ecológico:
se visa quando se busca “incluir’ os sujeitos no sistema socioeconômico? aumento de doenças frutos do consumo, alterações climáticas de várias
Ou seja, educa-se, propicia-se saúde, moradia, alimentação etc., tendo ordens além do efeito estufa, perda de florestas, perda de recursos
em vista qual modelo de sustentabilidade, de sociabilidade e de sentido hídricos ou suas contaminações, agrotóxicos, resíduos químicos sistêmicos
do humano? Esta pergunta é uma chave, pois os sujeitos não são apenas persistentes, pragas, chuva ácida, acidez dos solos, perda de solos e muito
objetos a serem preenchidos com necessidades materiais e sobrevivenciais, mais (Pelizzoli, 2011).
mas são sujeitos culturais, afetivos, relacionais, emocionais, mentais, A constatação séria e científica de tais dados nos coloca diante da
espirituais, fundamentalmente ambientais. Na Sociedade Industrial de percepção da hipocrisia autodestrutiva com a qual vivem as sociedades
Consumo, que tem como palavras de ordem “progresso material a todo modernas, países ou cidades que fecham os olhos para a realidade nua
custo”, velocidade, competição, exploração de recursos, lucros e perdas e crua. Portanto, não se trata apenas de propiciar maior crescimento
numa guerra econômica e de poder, os sujeitos são incluídos apenas econômico dentro deste modelo dilapidador e excludente, mas de
como consumidores. Portanto, é preciso colocar em xeque a noção de repensar os valores vigentes, que são na sua maioria destrutivos, como
que “desenvolvimento humano” e mesmo “justiça social” é apenas prover citados: competitividade, exploração de recursos e mercados sem controle,
condições materiais básicas a potenciais consumidores. clima de egoísmo, individualismo, insensibilidade social, desânimo, perda
De igual modo, o escopo de reformas sociais ou mesmo de pequenas da dimensão simbólica e espiritual da vida, materialismo, gratificação
revoluções, precisa incluir sua motivação; qual concepção de sociabilidade/ imediata, falso prazer.
intersubjetividade - valores humanos (afetividade, laços sociais, Trata-se, sobretudo, de elevar os melhores valores comunitários e
participação), qual concepção de ambiente (integrado, fragmentado, pessoais, portanto, ambientais, para fazer seguir a caminhada evolutiva
material, competitivo, cooperativo, sustentável etc.) - e qual concepção do homo sapiens, a qual tem se mostrado violenta das mais diversas
simbólica (dimensão de cultura, espiritual, povo, bandeira de luta etc.) se formas. Não somos ainda seres humanos como tais, diriam grandes
está promovendo? mestres e educadores. Então, precisamos aprender a sê-lo; isto se faz
Estas reflexões que trazemos até aqui são reflexões de base, pois apenas com os outros e com espaços seguros para isto, com base no lidar
não se entenderá hoje Direitos Humanos e Justiça sem entender a base com as emoções, negatividades e positividades humanas. O diálogo é o
crítica (e as cegueiras em tempos de crise) em que estão assentadas mais importante momento, fato, situação-base de vida para realizar isto,
tanto as demandas políticas de direitos quanto os limites da realização da não é apenas “uma conversa”.
justiça. Poderíamos infindavelmente apontar os limites da justiça numa O resultado de nossa destinação ocidental trágica dos sujeitos tomados
sociedade altamente desnivelada e matizada pelo poder como dominação pelo modelo da “sociedade industrial de consumo e de massa” no
e afirmação das classes burguesas e das corporações que praticamente capitalismo (e também em muitos modelos chamados de comunistas)
ditam a normatização político-econômica. Mas, o que queremos ressaltar é um grande processo de objetificação da Vida, das relações humanas
aqui vai em outra direção, a que aponta que não podemos apenas esperar
6 Vivemos uma crise integrada, em vários âmbitos e setores, crise de paradigma, de modelo civilizatório, o que
exige novas posturas, compreensões da vida e formas alternativas de viver. Cf. Pelizzoli, 2011.

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essenciais (valores) e, portanto, uma grande perda do Diálogo, do Silêncio regida por equilíbrios dinâmicos, entre dar e receber, entre ação e
(como abertura dentro do diálogo) e do Encontro real entre seres humanos responsabilidades, entre ações de um indivíduo e o que isto significa
e com seus ambientes7. dentro de seu sistema familiar, grupos e do ambiente em geral. Justiça
é o pressuposto básico de manutenção de ordens estabelecidas para
O ser humano é capaz de aguentar muitas privações materiais, ou
o funcionamento dos animais humanos em seus grupos dinâmicos. Os
levar sua vida com parcimônia e num vivere parvo; porém, quando seus
grupos, como bem mostrou Zehr (2008), desenvolveram seus modelos
valores fundamentais – relativos em geral à essência humana e social
de justiça (chamados hoje de tradicionais) para a administração da vida
– são degradados, quando perde o ânimo (alma, o sentido maior para
relacional coletiva dentro de suas interações e conflitos sociais, simbólicas,
viver), ligado ao que se chama “amar e ser amado”, ou cuidar e ser
culturais.
cuidado, de algum modo ele não mais vive. Quando isto ocorre, ocorre o
desenraizamento de seu ego em relação ao seu si mesmo ou sentido mais Tais modelos, aos olhos de muitos, tinham visões arcaizantes ou mesmo
profundo, da adequação ao ambiente (cosmos) em que vive, do ar, água, estranhas ao Direito e à Pax romana como conhecemos (e isto pode-se
plantas, animais, alimentação, cultura; ele se desenraíza do social, ele afirmar apenas ex postum); e tinham modos surpreendentes de resolver
entra no âmbito da exclusão e pode começar a reagir de modo violento, seus conflitos. Uma das concepções mais significativas por baixo destas
ou indiferente, ou sobrevivencial narcísico, materialístico, animal, ou formas é a visão de que a simples e irresponsável e distante exclusão
nem isto. Como bem mostrou Marx em Ideologia Alemã, não é apenas de um membro traz desequilíbrios e instabilidade para todo o grupo ou
o proletário que se desumaniza, se aliena de si e da natureza, mas o comunidade. Um malfeito pode reverberar por longo tempo, se não for
próprio burguês, pois não vive a plenitude social da vida. Talvez a palavra reequilibrado, se não for reparado, responsabilizado, “curado” de alguma
de ordem negativa mais presente hoje, em grande parte silenciosamente, forma. O tecido social rompido precisa ser costurado constantemente.
seja exclusão. Rasgar um pedaço do corpo e jogá-lo fora, na maioria das vezes, não
resolverá o problema de base. Em relação principalmente às comunidades
indígenas, pode-se resgatar um modelo reparativo de danos sempre em
Sistema exclusão-inclusão no nível social referência aos familiares e à comunidade envolvida no ato. Eis a base
social sistêmica para a ideia de justiça, que é a própria manutenção do
O ser humano é parte do todo por nós chamado de universo. Nós
equilíbrio dinâmico da sociedade como relação, dar e receber, atuar e
vivenciamos a nós mesmos, pensamentos e sentimentos, separados
do resto – uma espécie de ilusão de ótica de nossa consciência. A nossa responder por.
tarefa deve ser nos libertarmos dessa prisão, ampliando nosso círculo
Um dos métodos psicológicos que temos usado em dimensões sociais
de compaixão, para abraçar as criaturas vivas e a natureza inteira (A.
Einstein). e que hauriu o mais fundo desta visão de interdependência é a Terapia
Familiar Sistêmica, ou Constelações Familiares, na matriz de B. Hellinger.
Um dos pontos chave que consideramos na compreensão dos Círculos Ela consegue acessar as faltas, as exclusões ocorridas num contexto familiar
de Diálogo é a percepções profunda do que rege o funcionamento do e intergeracional que trazem obstáculos à vida presente do indivíduo e à
social. Para isto, deveríamos ler autores como Marcel Moss (teoria da sua família ou ao seu grupo. De modo semelhante, os Círculos de Diálogo,
dádiva e trocas sociais), os nomes ligados à Justiça Restaurativas aqui quando conduzidos nesta direção, podem abrir o espaço de interioridade
citados, e ainda H-G. Gadamer, H. Maturana, J. Piaget, N. Luhmann (e relacional e emocional em que se situam causas básicas dos malfeitos
antes, G. Simmel) e B. Hellinger. Na base do humano está o ambiente, e danos ao sistema, o qual tem como força de movimento e conexão o
neste o social ou sociabilidade, e nesta um sistema de inclusão e exclusão que se chama de amor (o filósofo Heráclito diria, força de atração e de
em movimento. repulsão), e que opera o tempo inteiro em meio a forças de repulsão,
No caso humano, sociedade é um sistema de trocas de variadas ordens exclusão. O sistema familiar é regido por forças maiores que os indivíduos,
(material, afetiva, simbólica, de trabalho, partilhas, coletividades...) tais como os sistemas sociais em geral, em diferentes graus de pertença
e intensidade8.
7 Sobre o sujeito trágico e a odisseia autodestrutiva do mundo ocidental industrializado ver O herói de mil faces,
de J. Campbell, bem como Civilização em transição, de C.G. Jung. Objetificação é o grave processo de perda de visão
da espontaneidade, do saber viver, da sabedoria de vida, das interações com a natureza, da vida simples, simbólica,
afetiva e livre, devido à reificação das mentes e relações humanas. 8 Sobre isto, veja as obras de Bert Hellinger.

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Certamente, houve e há modelos de justiça que atuavam com base a Abertura, o resgate da Pertença, a Participação, e a Responsabilização,
no balanço do “olho por olho, dente por dente”, que também busca sinônimos todos de inclusão. O círculo é também uma forma de dar
reequilíbrios sociais. Mas, na percepção sistêmica e dos círculos de justiça nascimento social a pessoas que parecem não ter existência propriamente
como os que inspiraram a Justiça Restaurativa no seu início - a tradição (e assim direitos e deveres), ou àqueles que foram afetados na identidade
indígena canadense, australiana e norte-americana – criou-se ao longo social de suas existências. O movente fundamental para tal escopo se
do tempo uma forma altamente evoluída, otimizada, de manutenção chama diálogo.
social ou justiça. Nesta, o indivíduo responde ao todo ao qual pertence
– e pertença é uma das palavras chave aí – no nível das obrigações e
O que é diálogo?
responsabilidades inter-humanas em primeiro lugar, e não em termos
de referência à legalidade formal. Responde-se diante do clã dos mais Diálogo não é uma coisa que ocorre facilmente, uma conversa, ou
velhos, mas responde-se diante da família da vítima, bem como diante da encontro de pessoas trocando ideias. Ensinar não é em geral diálogo;
instabilidade de sua própria família e companheiros; responde-se de fato doutrinar, psicanalisar, julgar, determinar, controlar, dominar, ou ainda,
pelo que foi feito e pelo que há de se fazer desde então. E por sua vez, ficar indiferente, neutro, intocável, não é diálogo. Resumidamente,
reconhece-se o mal feito como ferindo pessoas e sistemas - não algo frio diálogo, escuta autêntica, é algo raro; quando uma pessoa nos escuta
e impessoal, mas instaurado no nível dos compromissos (laços) afetivos verdadeiramente e entra em diálogo, ocorre algo em nós; não somos
e de sentido social de vida das pessoas, que pertencem a um grupo de mais apenas indivíduos isolados; transforma-se algo em nós, como afirma
convivência. Gadamer, ou ainda Buber e Tagore9.
Tal como na natureza, os animais humanos estruturam-se Os pilares do diálogo, sem os quais ele não ocorre de fato, são: por
intrinsecamente com seus ambientes, fato bem compreendido quando um lado, a Escuta – e dentro desta a Presença, a Atenção e o Silêncio - e,
se tem consciência do que é um Ecossistema ou quando se tem a noção por outro lado, a Pergunta, motor do mesmo. A escuta, com o necessário
intergeracional familiar. Na pragmática da Terapia Familiar Sistêmica, é silêncio mais a atenção, disposição que caracteriza a Presença, é o ponto de
surpreendente e, ao mesmo tempo, misterioso para o leigo dar-se conta de acesso ou Abertura para o acontecimento do encontro ou diálogo. O que
que uma exclusão (assassinato, perdas, abandono, suicídio, psicose etc.) está em jogo é o atravessamento do logos, do sentido profundo e da palavra
move uma causalidade não apenas na mesma geração, mas para a geração que dá significado às vidas pessoais e sociais. Por sua vez, todo diálogo
seguinte e para a próxima também, sendo motivo de comportamentos tem por base perguntas, e no fundo a perguntabilidade fundamental
negativos e repetições de problemas emocionais vindos de antes, vindos que somos nós mesmos enquanto seres abertos, finitos, incompletos,
dos movimentos do Sistema-grupo. Há uma teia de interligações que vulneráveis e ao mesmo tempo extremamente interdependentes. Como
não se compreende apenas como uma teoria epistemológica, mas um diz Sócrates e Gadamer (ano), é o não-saber que estimula a inclusão do
fato sentido e vivido como efeito de atos anteriores e que afetam um outro; preciso colocar-me nesta disposição, para assim “saber” o que de
sistema – grupo, família, ambiente. As crianças em especial são muito fato outrem quer dizer, sente, pensa, expressa, ou mesmo não consegue
sensíveis ao que aconteceu anteriormente num ambiente. A boa nova é expressar. O diálogo vai muito além da objetividade das palavras, do léxico,
que há formas de lidar com tais impactos sistêmicos, de rede, focadas no da gramática; o seu elã vital está numa motivação de encontro, abertura,
círculo familiar, tribal, terapêutico, dialogal, seja como for; pode-se ter deixar ser e receber o que ocorre, com as “antenas bem ligadas”. Ele não
um acesso privilegiado ao que ocorre, o clima ou energia que move as é apenas as palavras ditas, mas a energia que circula, que depende das
relações, desde que se acesse a força de interligação, exclusões dolorosas disposições e emoções em jogo.
e inclusões renovadoras que tendem a reequilibrar os danos, por meio de O diálogo autêntico põe em causa a autoridade baseada no ter, saber
encontro e diálogo circular, a partir de um Centro ou Sistema (Hellinger, e poder, pois nele nivelam-se os indivíduos diante de um todo maior.
2007; Pelizzoli, 2010). Ele remete a um Centro e a um Sistema maior e anterior, em que nos
Os círculos, como ápice dos modelos de práticas restaurativas, têm movimentamos como seres vivos num ambiente interligado, complexo,
potencial mágico de chegar ao centro de equilíbrio do dar e receber, das enredado. É por isto que muitos indivíduos controladores, sejam eles
trocas sociais, mostrando-se como um espaço transparente em que se dá 9 De Gadamer, veja-se “A incapacidade para o diálogo”, em Verdade e Método II; de Buber, a obra Eu e Tu; de
Tagore, Poesia Mística.
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professores, políticos, ocupantes de cargos importantes, ou então mas uma disputa de melhores argumentos e aposta em versão de fatos;
pessoas algo neuróticas, egoístas, ensimesmadas e afins não conseguem na verdade não se desacelera o tempo utilitário em prol dos tempos de
entrar em diálogo. Mesmo que pareçam estar ouvindo, não ouvem de recomposição de encontro e responsabilidades. Igualmente, o fato de
fato; e em geral, o outro, o interlocutor, sente isto, um bloqueio, mesmo tentar negociar um conflito negativo apenas para chegar ao meio da
que inconscientemente. O diálogo restaurativo, ao mesmo tempo que questão, resolvendo pela divisão das coisas, pode ser um fracasso para
traz a inclusão, traz a responsabilização. A palavra responsabilidade o processo, principalmente para as vítimas que não conseguiram colocar
traz em si a disposição de responder, falar, dar contas, responder por. A amplamente sua demanda e dores e perdas, bem como vê-las restauradas
responsabilidade, para quem erra, não é apenas uma obrigação de pagar de modo mais justo.
algo, mas uma possibilidade de ser incluído novamente, ser trazido à cena Negociações, Conciliações e Arbitragens podem abafar os problemas,
social. Quando me torno indisposto ou indiferente ao outro, potencializo sendo que, muitas vezes, as pessoas cedem a algo neste nível por motivos
a exclusão. E, por outro lado, se apenas puno, vingo, não estarei agindo de força maior, pois apostar no caminho tradicional dos processos
no nível otimizado da responsabilidade, pois esta é sempre socializante, judiciários é uma loteria, além do desgaste, tempo, exposição, abandono
inclusiva, comprometedora10. e custos que tais calvários apresentam. Nitidamente, pode faltar Espaço,
O Diálogo coloca em xeque o sistema premiação-punição, quando Abertura, para que ocorra a circulação do Pathos (circulação das dores,
rotula e “mata” os sujeitos a partir de classificações, nosografias, afetividades, raivas, emoções, palavra ampla, reclames, tomadas de
doenças, mostrando seus limites, obstáculos, autoritarismos; o diálogo consciência, presença de espírito, acesso à alma familiar ou comunitária),
e o acompanhamento, o suporte humano, traz implícito possibilidades o qual se traduz no nível do Encontro e Diálogo. Deve ficar claro que o
inauditas de cura, de reinserção social, ressocialização, desde que ele não mediador ou a instituição não devem ser o “dono” da mediação, mas o
seja uma simples e descompromissada conversa, ou apenas momento de grupo.
desculpas, explicações, lamentos, julgamentos e similares. Não é julgamento moral das pessoas, nem correção ética. No viés moral
ou moralizante, o clima dos encontros ou julgamentos estão calcados numa
Círculos de Diálogo visão dicotômica encarnada na tradição ocidental e ligada às religiões que
separam completamente o bem do mal. Houve uma perda da dimensão
O círculo é um processo para organizar a comunicação em grupo, a sistêmica de forma gritante no ocidente cristão e capitalista, que coincide
construção de relacionamentos, tomada de decisões e resolução de com o seu afastamento da Natureza ou de culturas mais próximas e ela.
conflitos de forma eficiente. O processo cria um espaço à parte... incorpora
e nutre uma filosofia de relacionamento e interconectividade que pode nos
Quando apoiamos este viés, perde-se a oportunidade de trazer à tona
guiar em todas as circunstâncias – dentro do círculo e fora dele (Boyes & a fragilidade humana, bem como a capacidade maior de reparação de
Pranis, 2011). vítimas, que tem a ver com o encontro restaurativo e sistêmico com os
agressores, família, comunidade e também autoridades validadas.
Devemos primeiramente elencar algumas visões do que NÃO é um
Círculo de Diálogo real, autêntico, restaurativo. Não é uma conversa livre com poucas regras. Há hoje procedimentos
muito interessantes com base em ações livres, tais como Brainstorms,
Não é mediação ou resolução de conflitos convencional, pois o que tem livre expressão, estalagens momentâneas, arte viva, diálogo criativo etc.
se entendido como mediação tem os seguintes limites: coloca muito peso Porém, para os fins restaurativos e de conflitos, precisamos de fato de
no papel resolutivo do mediador, como se ele tivesse poderes especiais, ou tecnologias sociais, de diálogo e de recursos que sirvam de veículo ao
tivesse uma capacidade técnica ou científica a qual é o ponto chave para escopo desejado, o que não significa que a conversa e a alteridade do
resolver as questões. As mediações comumente feitas não contemplam, diálogo e dos participantes, e do sistema que ali se forma no encontro, não
em geral, a participação de membros além dos envolvidos diretamente no tenham prioridade sobre os objetivos e regras. Em todo caso, precisa-se
ato, deixando de constituir propriamente o círculo “mágico” sistêmico. Na de regras claras, que acima de tudo garantam os valores fundamentais em
mediação judiciária ocorre (na maior parte das vezes) a negação das dores jogo, tais como o respeito, direito a falar e a ser ouvido, responsabilidade
e efeitos envolvidos no ato, bem como não há diálogo propriamente, pelos atos, compromisso, entre outros.
10 Cf. “Fundamentos para a restauração da Justiça”, in: Pelizzoli, 2008.

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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli

Não é algo que prescinda de um facilitador. Precisa de um facilitador, pessoas com múltiplas capacidades e possibilidades dentro dos mundos/
o qual não pode adotar a atitude de sabedor, de professor. Não é ele que ambientes (melhores) que se criarem para e com eles.
resolverá, mas ele precisa estar preparado para saber acessar a capacidade O Círculo de Diálogo é um encontro real; e é também uma metáfora
de Abertura de um espaço simbólico significativo, o potencial do encontro do mundo significativo em ordem dinâmica em que precisamos
e diálogo humano. Precisa acionar a força do Sistema e o respeito aos constantemente nos reinserir, pois vivemos sob o signo da impermanência,
valores básicos da sociabilidade humana. do tempo, dos acidentes e acontecimentos, em especial aqueles
Não se trata de perdoar o ofensor ou de consolar a vítima. Qualquer chamados de violência. É por isto que, em geral, ele dispõe elementos
encontro que venha a conter perdão e reconciliação são bem-vindos, no seu centro, objetos simbólicos que representam valores culturais,
no entanto não são o escopo principal dos círculos de diálogo ou espirituais, relacionais, e em geral elementos da natureza, como água,
restaurativos. Qualquer consolo que venha a ocorrer será bem-vindo pedra, tecido, sementes, etc. Contém também um objeto da fala, com
também, desde que não se negligencie os procedimentos de reparação o qual se aprimora a organização e o centramento da atenção em quem
mais profundos, que têm a ver com a compreensão dos fatos/ocorrências está falando e no clima da fala. O objeto da fala mostra-se muito útil, pois
e seu peso pela vítima e pelo ofensor, e os envolvidos, a responsabilidade dá o tempo necessário ao sujeito que precisa expressar-se e, ao mesmo
e o compromisso de reparações possíveis para o caso, incluindo, se for tempo, ensina o silêncio, o respeito, o exercício da escuta e paciência.
necessário, o aprisionamento como último recurso. Igualmente, ele contém um tipo de peso ou poder, o que faz com que
aquele que o detém, de algum modo, se dê conta de que pode estar
Não se trata de não ter acordos formais e legais. Muitos encontros
monopolizando e que o objeto não pertence a ninguém em particular.
podem não resultar num acordo formal e de compromissos com base
legal. E mesmo assim, não deixam de ter importância e reverberação O círculo é um espaço em que se (re)criam laços, onde se cria um lugar
para os participantes, que conseguem com os círculos reelaborarem seguro, onde se pode expressar dores, emoções de vários tipos, tristeza,
melhor os fatos, dores, e ter o suporte de grupo. No entanto, quando choro, raiva, lamentos e, ao mesmo tempo, ter um suporte. Não é fácil
se tratam de círculos restaurativos para danos, o acordo se torna um dar suporte, pois exige a capacidade para o diálogo, para suportar a dor
veículo final concreto, que sela um acontecimento reparativo, e que põe do outro, o que remete a suportar a sua própria dor. Muitas vezes, alguém
em compromisso os agressores, ou todos os responsáveis, tendo uma não suporta o outro, a dor dele, a raiva, o medo, a fragilidade, porque
base institucional garantidora, no caso, o judiciário. O acordo tem força não suporta em si tais coisas, ou é tocado intimamente, demasiadamente
simbólica e legal, materializando o reequilíbrio necessário. para ele. Se sou abalado pelo outro, posso tender a fugir, a proteger-
me. A vantagem do círculo é que contém uma força maior do que um ou
Não é um espaço comum com objetos comuns, mas um espaço-
dois dialogantes, força esta que pode suportar o que o encontro traz de
círculo que tem um centro e que remete para além da viseira das visões
pesado.
idiossincráticas; remete ao uso respeitado da palavra, diálogo no sentido
pleno do termo. É um espaço de abertura e que motiva a pertença, a Como melhor exemplo institucional no Brasil, podemos citar a Central
responsabilidade, a interdependência dos participantes, e o caráter de de Práticas Restaurativas do Juizado Regional da Infância e da Juventude,
vulnerabilidade/fragilidade imensa e ao mesmo tempo preciosa da vida em Porto Alegre (que pratica a Justiça Restaurativa desde início dos
humana. anos 2000), um espaço oficializado em 2009, que vem tendo ampla e
crescente aceitação, chegando a ter um grau de “muito satisfeito” por
Não é um espaço de correção psicológica dos indivíduos que cometeram
parte de usuários em 80% dos casos atendidos. Lá se operam por círculos
danos, os ofensores. Mesmo que isso possa ocorrer indiretamente nos
restaurativos. Podemos trazer resumidamente um exemplo do resultado
círculos, como se tem visto, não é este o escopo maior, pois tendo-se
deles:
este viés como base criamos uma artificial Laranja Mecânica, ou Matrix,
para corrigir mentalmente os “doentes” sociais. Quando se olha assim, “Em 2011, João, pai de Gabriela, foi chamado na escola para acompanhar
rompe-se o olhar de resgate nos melhores valores e nas capacidades de a adolescente, pois ela estava sofrendo ameaças de ser agredida, em
responsabilidade, criatividade e mudança dos indivíduos, que não são função de desentendimentos anteriores com seus colegas. Ao chegar lá,
“bandidos, prostitutas, ladrões, menores, elementos, delinquentes”, mas percebeu que várias pessoas da comunidade estavam reunidas na praça

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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli

na frente da escola, aguardando a saída de Gabriela. Ocorreu discussão e, humana – mental, física, emocional e espiritual ou na construção de
logo em seguida, agressões físicas, envolvendo uma parte do grupo. João significados;
acabou sendo agredido e, ao se defender, bateu em uma adolescente, o praticar comportamentos baseados nos valores quando possa parecer
que revoltou muito a comunidade escolar. Após o ocorrido, João registrou arriscado fazê-lo. Quanto mais as pessoas os praticam no círculo,
ocorrência na Delegacia Especializada para Apuração do Ato Infracional.” mais estes hábitos são fortalecidos para levar o comportamento para
“Este caso ingressou no Sistema de Justiça e o Juiz suspendeu o processo, outras partes de suas vidas (Boyes & Pranis, p. 35).
encaminhando-o para que a equipe da CPR JIJ avaliasse a possibilidade de A magia ou força do Círculo encontra-se já antes mesmo de seu
realização de Procedimento Restaurativo. Como resultado da experiência acontecimento. Encontra-se latente na vontade das pessoas de se
(do Círculo), pode-se relatar que: As mães pediram desculpas ao pai da entenderem com as outras, de terem voz, espaço, serem respeitadas, ou
vítima, pois acreditavam que ele era uma pessoa violenta por ter agredido mesmo de pedir responsabilidade como elã de justiça a algum malfeito. A
a adolescente, pois compreenderam que ele agiu para se defender, ao ser intenção inter-humana, de reparar, de sanar a dor que se apresenta como
agredido pelo grupo maior. As adolescentes acordaram que construiriam mágoa, ressentimento, vergonha, ferimentos emocionais envolvendo
cartazes contando como aconteceu e como foi resolvido o conflito. tristeza, raiva, medo e similares, é a mais forte disposição para que um
Uma das mães se comprometeu a organizar um espaço para realização diálogo e uma restauração ocorram. Depois, é necessário contar com o
da tarefa. As mães e o pai de Gabriela ficaram responsáveis de verificar bom veículo de um facilitador, de um mediador, o qual facilita a tessitura
sobre a possibilidade de afixação dos cartazes produzidos pelo grupo, na de um pequeno sistema – comunidade, pessoas que se reúnem, famílias,
escola. O Diretor da escola, que inicialmente não aceitou participar da grupo – ou rede que tende à reparação e cura de rupturas sofridas em
experiência, pois entendia que, como o fato ocorreu fora da escola não suas tramas.
era sua responsabilidade, concordou em realizar atividades envolvendo
a Cultura de Paz, com a participação das adolescentes e suas famílias. As Se a força da intenção de base dos envolvidos for grande, apresenta-
coordenadoras/facilitadoras do procedimento se comprometeram em se então a capacidade de romper com as barreiras do medo/raiva que
participar e filmar o cumprimento do acordo”11. fecham o encontro, bem como romper com a vergonha ou a culpa, que
também podem bloquear; ou romper com a indiferença, ou romper,
Este relato é um simulacro de um processo muito rico, carregado de ainda, com o tempo utilitário, o autocratismo judicial, o frio mecanismo
tensões, expectativas, emoções, em que se percebe a sensibilidade, a kafkiano que atropela as comunidades, as vítimas e mesmo os ofensores.
vulnerabilidade e a complexidade/interconexão dos dilemas e dramas Neste sentido, o chamado pré-círculo é um espaço propedêutico que já
humanos; em especial porque o método é feito para atuar no âmbito acessa as possibilidades dos envolvidos, no sentido da primeira abertura e
criminal que, no entanto, não é o único de interesse das práticas circulares estabelecimento de confianças entre o mediador e as partes em separado.
ou restaurativas.
O encontro de diálogo, ou restaurativo, mostra sua importância quando
O Círculo tem as seguintes funções ou intenções, segundo Boyes & se percebe que mesmo que não haja um acordo fechado, ou fiquem ainda
Pranis (2011): pontos de divergência em aberto, ou mesmo ainda restem dores ou algo
apoiar os participantes a apresentar seu verdadeiro eu – ajudá-los a do “fazer justiça” na percepção de algum dos envolvidos, tal momento
se conduzirem com base nos valores que representam quem eles são traz possibilidades latentes e mesmo sementes futuras de uma nova visão
quando estão no seu melhor momento; pedagógica para resolver conflitos. Por vezes, há sujeitos que de fato ainda
não estão preparados para isto, devido a vários fatores: psicossociais,
fazer com que nossa ligação fique visível, mesmo e face de diferenças
interesses econômicos, fixação no ego e no poder, perda de senso social
muito significativas;
e outros. Por vezes, são necessárias novas rodadas de diálogos para que
reconhecer e acessar os dons de cada pessoa; o processo alcance algum grau maior de adequação e funcionamento. O
círculo é, além do mais, um momento/espaço altamente pedagógico e
evocar a sabedoria individual e coletiva;
que brota do seio dos saberes e desejos dos envolvidos, bem como queria
engajar os participantes em todos os aspectos da experiência Paulo Freire com seus círculos educativos, de conscientização e educação
11 De Boni, in Pelizzoli, 2012.

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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos Marcelo L. Pelizzoli

política. Deste modo, correlaciona-se assim os conceitos introdutórios a


este texto, os quais apresentam-se claramente interligados: O Círculo
Sabemos da importância de tais ferramentas psicossociais quando
das diferenças, da Alteridade, como local do Encontro, em que se dá a
vemos os resultados de programas e práticas como o método da
Abertura, consubstanciada como Diálogo (Escuta/ Atenção e Pergunta),
Reconciliação e Perdão, na Colômbia; a Pacificação em ambientes
que remontam ao fundamento do Sistema, em que se percebe a
violentos; o Vipassana/meditação nas prisões; Segurança Comunitária;
Interdependência radical do inter-humano, em outros termos chamada
Comunicação Não-violenta, e tantos outros projetos que trabalham com
de Pertença, local em que se confrontam e equilibram e recuperam os
inclusão social, mediação e diálogo pelo mundo afora.
Valores humanos, pois neste fulcro ocorre o Suporte social. Eis, portanto,
a realização da Justiça como Restauração.
Conclusões
Em termos de fundamentos filosóficos e sociais, o Círculo de Diálogo,
Referências
seja como encontro restaurativo ou fim próximo, responde a um modelo
sistêmico, integrativo, nos moldes epistemológicos contemporâneos que BOYES-WATSON, C. & PRANIS, Kay. No coração da esperança – guia de práticas circulares.
Porto Alegre: TJ do Estado do Rio Grande do Sul, 2011.
apontam para a interdependência de fatores, o inextrincável da relação
sujeito-objeto, a visão de rede e a dimensão da abertura de espaços de GOLEMAN, D. & Dalai Lama. Como lidar com emoções destrutivas. SP: Ediouro, 2002
autogestão de conflitos. Neste sentido, compõe-se como uma das mais HELLINGER, Bert. Conflito e Paz. SP: Cultrix, 2007.
poderosas ferramentas psicossociais para a realização do ideal de Justiça e O´CONNELL T. & WACHTEL, Ted. Conferencing handbook: the new Real Justice training
seu codependente, Direitos Humanos. Como disposição pragmática para manual. Pennsylvania: The Piper´s Press, 1999.
colocar em confronto, mediar, fazer emergir o conflito e as diferenças, PELIZZOLI, Marcelo L. (org.) Diálogo, conflito e práticas restaurativas. EDUFPE, 2012.
dentro de um espaço seguro e preparado, um espaço inter-humano vital,
PELIZZOLI, Marcelo L. (org.). Cultura de paz – educação do novo tempo. Recife: EDUFPE,
é o veículo para a realização de anseios os mais profundos da sociabilidade
2008.
humana, traduzido como nossos melhores valores, no âmbito da agregação
social, do dar e receber, do responder por, da pertença, do suporte, enfim, PELIZZOLI, Marcelo L. (org.) Cultura de paz – alteridade em jogo. Recife: EDUFPE, 2009.
do viver e assumir a vida em conjunto. PELIZZOLI, Marcelo L. (org.) Cultura de Paz – restauração e direitos. Recife: EDUFPE, 2010.

Os Círculos de Diálogo, como ápice de Práticas Restaurativas, retomam PELIZZOLI, Marcelo L. Homo ecologicus – ética, educação e práticas vitais. Caxias do Sul:
UCS, 2011.
a força do diálogo como mote da justiça. Não há justiça sem direito
à palavra, sem expressão do ser, valores, dores, visões, palavra da PRANIS, Kay. Processos circulares. SP: Palas Athena, 2011.
alteridade. Neste sentido, a Justiça é ou deveria ser instância pedagógica ROSENBERG, Marshall. Comunicação não-violenta. SP: Ágora, 2006.
em primeiro grau, pois ensina ou reintroduz aquele que fere ou exclui SAYÃO, S. & PELIZZOLI, M. L. Fragmentos Filosóficos – direitos humanos. Recife: EDUFPE,
às demandas da inclusão. Família e sociedade, grupos, compõem-se 2011.
como uma rede dinâmica que tende à inclusão, à reparação de danos, à
ZEHR, H. Trocando as lentes – novo foco sobre o crime e a justiça. SP: Palas Athena, 2008.
restauração contínua de relações e afetividades, à responsabilização justa
e humanizada pelos malfeitos, acidentes, ocorrências frutos do acaso, ZEHR, H. The little book of Restorative Justice. Pennsylvania: Good Books, 2002.
ou do descuido, ou do erro, ou da intenção desviada que atinge como WACHTEL, Ted; O´CONNELL, Terry; WACHTEL, Bem. Reuniões de Justiça Restaurativa. Real
violência. Sair do estado objetificador e estruturalmente violento que Justice (Justiça verdadeira) e Guia de Reuniões Restaurativas. International Institute for
Restorative Practice. Bethlehem, Pennsylvania: The Piper´s Press, 2010.
atinge inclusive as estruturas do Judiciário, caminhando para o escopo
maior da sociabilidade humana consubstanciada como Bem, Justiça,
Direitos, Humanização, é hoje o grande desafio dos sujeitos e instituições,
em especial, ao transformar em atores sociais àqueles que têm sido
excluídos. O melhor e mais tradicional caminho, árduo, para isto, chama-
se diálogo, encontro das diferenças, restauração.

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Círculos de Diálogo: Base restaurativa para a Justiça e os Direitos Humanos

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Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: vencedores e


vencidos

Larissa RAMINA1
Moacir Iori JUNIOR2

Os conflitos oportunizados no século XX foram marcantes na história


da humanidade, não somente por suas barbáries, mas também pela
atuação dos vencedores que condenaram juridicamente - como se não
bastassem os danos militares sofridos - os vencidos, por meio de tribunais
de exceção, em uma grave marca de criminalização destes vencidos pela
guerra que ambos travaram.
O fim da Primeira Guerra Mundial apresentou os contornos da aplicação
de tribunais de exceção, pois pela primeira vez, o conceito de guerra foi
concebido como uma ação contrária ao direito, cabendo à comunidade
internacional coibir referidas práticas. A história mostrou que as cortes de
julgamento destinaram-se exclusivamente aos perdedores.
A adoção do Tratado de Versalhes trouxe consigo a conceituação de
que os atos de guerra são ilícitos penais e que responsabilizam, além dos
Estados perdedores, também os indivíduos que participaram do combate3
e4
.

1 Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Professora Substituta de Direito Internacional
da Universidade Federal do Paraná – UFPR e Professora do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e
Democracia da UniBrasil.
2 Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Cescarelli. Mestrando pelas Faculdades Integradas
do Brasil - UniBrasil. Professor Coordenador do Curso de Direito das Faculdades do Centro do Paraná.
3 ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p.93.
4 Os artigos 227 e 231 do Tratado de Versalhes demonstram claramente o entendimento esposado (grifos nosso):
ARTICLE 227: The Allied and Associated Powers publicly arraign William II of Hohenzollern, formerly German
Emperor, for a supreme offence against international morality and the sanctity of treaties.
A special tribunal will be constituted to try the accused, thereby assuring him the guarantees essential to the right
of defence. It will be composed of five judges, one appointed by each of the following Powers: namely, the United
States of America, Great Britain, France, Italy and Japan.
In its decision the tribunal will be guided by the highest motives of international policy, with a view to vindicating
the solemn obligations of international undertakings and the validity of international morality. It will be its duty to
fix the punishment which it considers should be imposed.
The Allied and Associated Powers will address a request to the Government of the Netherlands for the surrender to
them of the ex-Emperor in order that he may be put on trial.
ARTICLE 231: The Allied and Associated Governments affirm and Germany accepts the responsibility of Germany
and her allies for causing all the loss and damage to which the Allied and Associated Governments and their
nationals have been subjected as a consequence of the war imposed upon them by the aggression of Germany and
her allies. The Versailes Treaty. Yale Law School. The Avalon Project. Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/imt/
partviii.asp. Acessado em 20 out 2012.

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

O Tratado de Versalhes também foi responsável pela criação da Liga O Tribunal de Tóquio aplicou o costume internacional para condenar
das Nações, primeira organização internacional nos moldes atuais, que os crimes cometidos pelo nazismo nos termos do art. 6º do Estatuto do
tinha como objetivo a manutenção da paz. A eclosão da Segunda Guerra Tribunal Militar Internacional referendado no Acordo de Londres de 1945.10
Mundial mostra, todavia, que a finalidade da Liga das Nações não fora Conforme o Tratado, três crimes distintos seriam julgados: os crimes
cumprida, ocorrendo o mais grave conflito armado da história. contra a paz que consideravam os atos de preparação, desencadeamento
e continuidade da guerra; os crimes de guerra que eram as agressões
As Potências Aliadas - Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética –
individuais, como maus tratos, trabalhos forçados e deportações; e os
firmaram, ainda no decorrer das hostilidades, na Conferência de Moscou,
crimes contra a humanidade, que englobavam ações desumanas como
em outubro de 1943, expressa declaração no sentido de que penalizariam
perseguições políticas e raciais, escravidão e exterminações em massa.11
os “responsáveis pelas atrocidades, massacres e execuções, perseguindo-
os até os confins da terra para entregá-los aos seus acusadores”.5 Uma das principais críticas dirigidas ao Tribunal de Nuremberg refere-se
a sua criação post factum, tipificando e julgando ações que anteriormente
O juiz Robert Jackson, da Suprema Corte dos Estados Unidos, ficou
não eram consideradas crimes. Além disso, o Tribunal aplicou penas
responsável pelo estudo do caso, negociando com os aliados os atos
severas, como a sentença de morte ou a prisão perpétua. A essa crítica,
internacionais relativos ao julgamento dos perdedores. Na concepção de
outras se acrescentam como as relativas ao alto grau de politicidade
Paulo Borba Casella,
daquele Tribunal, em que “vencedores” estariam julgando “vencidos” e
aplicando sanções pelos primeiros impostas, como a pena de morte.12
[...] O encargo não era fácil, pois o Juiz deveria estudar os aspectos jurídicos
da matéria, evitando propor medidas que pudessem mais tarde colocar Em seguida, os países aliados criaram o Tribunal de Tóquio, que acolheu
no rol dos réus governantes ou comandantes militares aliados. Apenas os os princípios de Nuremberg para julgar os criminosos de Guerra no
derrotados, em suas pessoas físicas ou jurídicas, deveriam ser julgados,
nunca os vencedores. Assim, nunca se cogitou em submeter a julgamento Extremo Oriente. Mais uma vez, a mão pesada dos vencedores foi sentida
comandantes, militares e policiais soviéticos culpados de violências pelos vencidos, sendo que “[...] dos vinte e oito acusados, sete foram
sistemáticas contra os prisioneiros e as populações civis das potências condenados à morte, dezesseis à prisão perpétua e os outros a penas
derrotadas, tampouco os responsáveis pela retenção por longos anos de menores”13.
milhares de prisioneiros de guerra utilizados em trabalhos forçados.6
Os trabalhos do Tribunal de Nuremberg continuam por meio de uma
Os vencedores, após intensos debates, compeliram-se a julgar segunda série de julgamentos, que penalizam mais de duzentos dirigentes
seus derrotados por um Tribunal Militar Internacional, o Tribunal de
10 O artigo sexto do estatuto assim estabelece a Competência do Tribunal de Nuremberg: Le Tribunal établi
Nuremberg, que foi instituído no Ato Constitutivo aprovado pelos Aliados, par l’Accord mentionné à l’article 1er ci-dessus pour le jugement et le châtiment des grands criminels de guerre
em 8 de agosto de 1945, na cidade de Londres7. Enquanto o Tratado des pays européens de l’Axe sera compétent pour juger et punir toutes personnes qui, agissant pour le compte
des pays européens de l’Axe, auront commis, individuellement ou à titre de membres d’organisations, l’un
de Versalhes iniciou o entendimento de que os indivíduos poderiam quelconque des crimes suivants. Les actes suivants, ou l’un quelconque d’entre eux, sont des crimes soumis à
la juridiction du Tribunal et entraînent une responsabilité individuelle : (a) ‘ Les Crimes contre la Paix ‘: c’est-à-
ser responsabilizados no âmbito penal, o Tribunal de Nuremberg foi dire la direction, la préparation, le déclenchement ou la poursuite d’une guerre d’agression, ou d’une guerre en
responsável em consolidar esse entendimento8. violation des traités, assurances ou accords internationaux, ou la participation à un plan concerté ou à un complot
pour l’accomplissement de l’un quelconque des actes qui précèdent; (b) ‘ Les Crimes de Guerre ‘: c’est-à-dire les
Concluídos os combates que se desenrolaram durante a Segunda violations des lois et coutumes de la guerre. Ces violations comprennent, sans y être limitées, l’assassinat, les
mauvais traitements et la déportation pour des travaux forcés ou pour tout autre but, des populations civiles dans
Guerra Mundial, com a devastação de Hiroshima e Nagasaki por duas les territoires occupés, l’assassinat ou les mauvais traitements des prisonniers de guerre ou des personnes en mer,
l’exécution des otages, le pillage des biens publics ou privés, la destruction sans motif des villes et des villages
bombas nucleares, “[...] surge a Carta das Nações Unidas, que define a ou la dévastation que ne justifient pas les exigences militaires; (c) ‘ Les Crimes contre l’Humanité ‘: c’est-à-dire
guerra como um flagelo (scourge) que a comunidade internacional deve l’assassinat, l’extermination, la réduction en esclavage, la déportation, et tout autre acte inhumain commis contre
toutes populations civiles, avant ou pendant la guerre, ou bien les persécutions pour des motifs politiques, raciaux
se empenhar em eliminar para sempre da história humana”9. Em seguida, ou religieux, lorsque ces actes ou persécutions, qu’ils aient constitué ou non une violation du droit interne du pays
foram constituídos os Tribunais de Nuremberg e Tóquio. où ils ont été perpétrés, ont été commis à la suite de tout crime rentrant dans la compétence du Tribunal, ou en
liaison avec ce crime. Les dirigeants, organisateurs, provocateurs ou complices qui ont pris part à l’élaboration ou à
l’exécution d’un plan concerté ou d’un complot pour commettre l’un quelconque des crimes ci-dessus définis sont
5 CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.847. responsables de tous les actes accomplis par toutes personnes en exécution de ce plan. Texto integral do acordo
6 Idem, p. 848. de Londres de 1945 dispoível em: http://www.icrc.org/dih.nsf/FULL/350?OpenDocument. Acesso em 17 nov 2012.
7 Ibidem. 11 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012,
8 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70. p.187-188.
9 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianopolis: 12 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74.
Conceito Editorial, 2010, p. 93 13 CASELLA, Paulo Borba. Op. Cit., p. 850.

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

nazistas. A tentativa de aplicação da justiça dos vencedores sobre os Desde sua formação, entretanto, a ONU testemunhou mais de uma
perdedores é tamanha que um dos criminosos é subtraído de dentro do centena de conflitos que causaram grandes destruições nas civilizações,
território argentino, sem o consentimento desse Estado, afrontando sua superando, em 2003, a exorbitante cifra dos vinte milhões de mortos17.
soberania e jurisdição14. Dentre os órgãos que integram as Nações Unidas, o Conselho de
Noam Chomski, em obra festejada, critica duramente as atitudes dos Segurança é o principal, pois que sua finalidade é manter a paz e a
Estados Unidos com os prisioneiros alemães da Segunda Guerra Mundial, segurança internacional. O Conselho é formado por cinco membros
que eram tratados de forma brutal por intermédio de uma política de permanentes e dez membros rotativos. As cinco potências permanentes
reeducação, que buscava doutriná-los a aceitarem as crenças americanas.15 são os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a China e, desde 1992, a
Rússia18. Somente esses países possuem poder de veto sobre as decisões
Aos militares dos EUA, que brutalmente agiram contra prisioneiros
do Conselho. Logo, podem, atendendo aos seus próprios interesses,
de guerra, tipificando crimes previstos no próprio rol estipulado pelos
determinar quais ações serão tomadas sem que lhes acarretem prejuízos19.
Aliados no Acordo de Londres instituidor do Tribunal de Nuremberg
(1945), nenhum julgamento ocorreu, tampouco lhes foi imposto alguma A maior crítica ao sistema de veto do Conselho de Segurança está ligada
sanção. A balança da justiça pendeu somente para os derrotados, que à flagrante desigualdade de direitos que têm os demais Estados-membros
fracamente podiam revidar. da ONU, que ficam à mercê daquilo que for decidido por tão somente
cinco Estados (os com cadeira permanente no Conselho) numa situação
Os Tribunais de Nuremberg e Tóquio foram Tribunais de exceção, de conflito internacional, ou que envolva questões importantes para a
extintos logo após o julgamento dos crimes cometidos na Segunda sociedade internacional como um todo.20
Guerra Mundial, sem prévia estipulação legal, com denúncias aleatórias
dos supostos criminosos de guerra, com o intuito máximo de manter a O Conselho, que conta com a assessoria da Comissão de Estado-Maior,
hegemonia do poder às grandes potências. Conforme Noam Chomski, composta pelos chefes de Estado Maior dos membros permanentes, é
o único órgão da ONU que possui poder mandatário, sendo de caráter
Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos obrigatório o cumprimento de suas decisões, que discutem questões de
rivais industriais, aos Estados Unidos ela propiciava enormes benefícios. caráter militar, inclusive quanto a autorização de investida bélica21.
Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que
triplicou. Após os julgamentos ocorridos nos Tribunais de Nuremberg e Tóquio,
o mundo entra no colapso da Guerra Fria, onde duas potências militares
Mesmo antes da guerra, os Estados Unidos já eram de longe o principal e nucleares se digladiam em territórios de países alheios. Como duas das
país industrial do mundo como o eram desde a virada do século. cinco potências detentores do veto no Conselho de Segurança da ONU se
Mas, nesse momento, possuíamos literalmente 50% da riqueza mundial encontravam em combate, o organismo permaneceu inerte em relação a
e controlávamos os dois lados dos dois oceanos. Nunca houve um período sua influência para frear os conflitos armados22.
na história em que uma nação tenha tido um controle e uma segurança do
mundo tão esmagadores16. 17 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 862.
18 É importante frisar que a Rússia ingressa como membro permanente após o final da Guerra Fria (na qual
Os países vencedores do grande combate criaram, em 1945, a EUA e Rússia travaram conflitos na iminência de um combate nuclear em territórios distintos dos seus, por meio
Organização das Nações Unidas (ONU), que tinha por objetivo evitar do financiamento de pequenos países para que combatessem entre si). A aceitação de um país no Conselho de
Segurança, cinquenta anos depois, demonstra claramente que as quatro grandes potências não poderiam sofrer
novos confrontos, garantir a segurança internacional, o progresso e o a influência de um Estado que detinha conhecimentos nucleares. O melhor era torná-la aliada no jogo do poder.
desenvolvimento social, bem como a paz mundial. Fácil verificar, da 19 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 624.
simples análise de sua estrutura orgânica, que a formação desse organismo 20 Idem, p. 625.
internacional buscava manter a hegemonia dos países vencedores da 21 Ibidem, p. 627.
22 Trindade, Antonio Augusto Cançado (Op. Cit, p. 695) explica que “Ao longo da década de noventa, o Conselho
Segunda Grande Guerra. de Segurança tem atuado em uma diversidade de situações, que incluem os conflitos internos no Iraque (1991),
Iugoslávia (1991) e Somália (1992), os conflitos civis na Libéria e Angola (1992-1993), as violações generalizadas
do direito humanitário na Bósnia (1993), e as maciças crises humanitárias decorrentes dos conflitos em Ruanda,
14 Ibidem, p. 851. Burundi, Zaire, Albânia, Kosovo, Timor Leste e Serra Leoa (1994-1999). O Conselho de Segurança, em mais de uma
15 CHOMSKI, Noam. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 24. ocasião, tem se deixado guiar por uma ampla visão do que possa constituir uma ameaça à paz, - o que contrasta
16 Idem, p. 5. claramente com sua virtual paralisia durante o período da guerra fria.

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

No início da década de noventa, os Estados Unidos saíram-se vitoriosos o órgão decide pela criação de mais um Tribunal ad hoc, o Tribunal Penal
da Guerra Fria e novamente aplicam a justiça dos vencedores aos Internacional para Ruanda inspirado no Estatuto do Tribunal para a Ex-
perdedores. O panorama mundial apresenta uma substancial mudança Iugoslávia, por meio da resolução no. 95529.
nos eixos econômicos e assim têm início conflitos armados que violam os O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com sede em Arusha,
direitos humanos, constituindo-se novos tribunais de exceção para julgar na Tanzânia, até maio de 2011, somente havia decidido 50 casos com 8
os vencidos23. absolvidos. Desses, 8 acusados aguardam decisão em sede de apelação,
A Guerra dos Bálcãs começa em 1991, quando a Eslovênia e a Croácia 2 tiveram a acusação retirada, 3 morreram e 11 estavam foragidos.30 As
declararam guerra contra a Iugoslávia, sendo que o conflito armado tem penas impostas se mostraram pesadas, com 18 casos de prisão perpétua,
longa duração, incluindo combates na Bósnia-Herzegovina. O Conselho de 11 penas maiores que 25 anos e 13 menores que 25 anos31.
Segurança da ONU decidiu, em maio de 1993, por meio das resoluções Os dois Tribunais, para a Ex-Iugoslávia e para a Ruanda, foram criados
808 e 82724, a constituição de um Tribunal ad hoc para julgar os casos de pelo Conselho de Segurança, órgão responsável pela manutenção da paz
crimes cometidos durante aqueles conflitos armados. e da segurança internacionais.
O Tribunal Penal para julgar crimes cometidos na Ex-Iugoslávia, Nos três casos em que foram criados tribunais ad hoc (Nuremberg, Ex-
suplantado pelas premissas de Nuremberg, foi criado exclusivamente Iugoslávia e Ruanda) a criação destes órgãos jurisdicionais estava eivada
para julgar os acusados de assassinatos em massa, detenção sistemática de poderosa margem política, com notória parcialidade, que vai desde a
organizada, estupro de mulheres e prática da limpeza étnica ocorridos escolha dos julgadores, sempre atrelada aos vencedores do combate, até
naqueles conflitos.25 Alexis Augusto Couto de Brito afirma que na aplicação de duras penas que contrariam direitos humanos, como o
caso da pena de morte.
[...] A competência ratione materiae do Tribunal é para o processo das
violações às Convenções de Genebra de 1949, violação das leis ou Além desses casos, é importante destacar a criação de outros dois
costumes de guerra, crimes de genocídio e crimes contra a humanidade, Tribunais de exceção, a Corte Especial para Serra Leoa e as Câmaras
ocorridos desde 1991.26
Extraordinárias nos Tribunais do Camboja. Ambos as cortes foram criadas
Conforme Flávia Piovesan, até o ano de 2011, o Tribunal Penal para pelo Conselho de Segurança32, com condução conjunta entre o Governo
a Ex-Iugoslávia, com sede na cidade de Haia, nos Países Baixos, já local e a ONU, devendo, no primeiro caso, julgar os acusados do conflito
tinha indiciado 161 pessoas pela prática de violações graves ao Direito ocorrido em Serra Leoa33, depois de novembro de 1996 e, no segundo
Internacional Humanitário. Desses, 126 acusados já foram sentenciados caso, os líderes do Khmer Vermelho pelo golpe de Estado, realizado entre
com 13 absolvições, 64 condenações e 13 encaminhamentos à jurisdição
nacional. Outros 36 tiveram sua acusação retirada ou morreram no
transcurso processual27. Habyarimana, presidente de Ruanda, juntamente com o presidente do Burundi, são mortos quando o avião em que
viajavam é derrubado ao sobrevoar Kigali. A Frente Patriótica de Ruanda lança uma ofensiva e a milícia extremista
Em julho de 1994, o Conselho de Segurança da ONU criou uma Hutu, com a colaboração de integrantes do Exército ruandês, começa um massacre sistemático de Tutsis. Em cem
Comissão de Investigação sobre as atrocidades ocorridas na guerra civil em dias, cerca de 800 mil Tutsis e Hutus moderados são mortos. Milicianos Hutus fogem para o Zaire (depois batizado
de República Democrática do Congo). Cerca de dois milhões de refugiados Hutus também fogem com os milicianos.
Ruanda28. Com base nos relatórios apresentados pela referida Comissão, 29 Texto integral da Resolução disponível em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N95/140/97/
PDF/N9514097.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov. 2012.
23 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais, ano 94, v. 840, out 30 O Tribunal de Ruanda foi seriamente criticado por sua pouca efetividade ante o alto custo empreendido pelas
2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 479. Nações Unidas que, entre 2002 e 2003, destinou ao Tribunal quase 180 milhões de dólares. (BRITO, Alexis Augusto
24 O texto integral das resoluções pode ser obtido em ONU: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/ Couto de. Op. Cit., p. 481)
N93/098/21/IMG/N9309821.pdf?OpenElement e http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/306/28/ 31 PIOVESAN, Flavia. Op. Cit., p. 77.
IMG/N9330628.pdf?OpenElement. Acesso em: 17 nov 2012. 32 A Corte Especial para Serra Leoa foi criada por meio da resolução n. 1315 de 2000. Disponível em ONU:
25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.70. http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/605/32/PDF/N0060532.pdf?OpenElement. Acesso em: 17
26 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Op. Cit., p. 480. nov 2012; e o
27 PIOVESAN, Flávia. Op. Cit., p. 76. 33 Os conflitos em Serra Leoa ocorreram pelo choque entre o Governo e a Frente Revolucionária Unida (FRU).
28 Brito, Alexis Augusto Couto de. (Op. Cit., p. 480) explica como eclodiu o conflito civil em Ruanda: “Na O movimento guerrilheiro desejava conduzir um Golpe de Estado, pois seus líderes estavam insatisfeitos com os
história de Ruanda, o grupo tribal Tutsi foi a elite minoritária e aristocrática que controlou cerca de 85% da abusos de poder e corrupçãodo então presidente Joseph Momoh. O conflito foi conhecido pelo uso de crianças
população de etnia Hutu. Após a independência da colônia, controlada pela Bélgica até 1962, os Hutus controlaram como soldados e ainda pelo financiamento feito pelos “diamantes de sangue” (pedras preciosas que eram
as forças militares até 1994, quando a morte do presidente de Ruanda incitou os Hutus ao enfrentamento da mineradas por pessoas em condições análogas a de escravos). Disponível em: http://www.brasilescola.com/
Frente Patriótica Ruandesa, formada pelos Tutsi, o que deu início a uma verdadeira carnificina. Em abril de 1994, geografia/serra-leoa.htm. Acesso em 17 nov. 2012.

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

1975 a 197934, com a execução de mais de 1 milhão e 700 mil pessoas35. 4º da Carta das Nações Unidas39.
Todos os Tribunais mencionados foram financiados pelas potências Na abertura da 16ª Cúpula dos Países Não Alinhados40, em Teerã,
hegemônicas, que anteriormente também financiaram os conflitos, na presença do Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, o
deixando os países de fraca posição política e econômica com rastro de Presidente do Irã, Ali Khamenei, declarou que “O Conselho de Segurança
destruição e mazela. Conforme assinala Noam Chomski, das Nações Unidas é uma estrutura irracional, injusta e totalmente
antidemocrática, que constitui uma ditadura”41. Essa declaração mostra
Para sangrar o Vietnã, nós apoiamos indiretamente o Khmer Vermelho por que, aos olhos de parte da comunidade internacional, as atividades do
intermédio de nossos aliados, China e Tailândia. Os cambojanos tiveram de Conselho de Segurança visam somente garantir a manutenção do poder
pagar com sangue até estarmos seguros de que não haveria recuperação das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial42.
no Vietnã. Os vietnamitas foram punidos por terem enfrentado a violência
norte-americana36. Na visão de Antonio Augusto Cançado Trindade, “O certo é que
o Conselho de Segurança ainda não se renovou institucionalmente,
No Kosovo, situado no território da antiga Ex-Iugoslávia, a OTAN realizou
continua apegado a uma estrutura de poder anacrônica e a um processo
um ataque37 sem a autorização do Conselho de Segurança e sob nenhuma
decisório autocrático e visto pela imensa maioria dos países do mundo
base internacionalmente jurídica, mas não teve nenhum de seus líderes
como oligárquico e injusto”43.
ou militares julgados pelo Tribunal Penal Internacional para Ex-Iugoslávia.
Três denúncias formais foram apresentadas contra os vencedores, mas Nas guerras do Golfo, na Somália, em Ruanda, no Haiti, na Bósnia-
em todos os casos o Tribunal decidiu arquivar as denúncias sem qualquer Herzegovia e no Kosovo, os Estados detentores de grande poder econômico
investigação, por considerá-las manifestamente infundadas. Segundo tiveram a anuência do Conselho de Segurança para conduzirem operações
Danilo Zolo, militares de “paz forçada”. As operações, com poderes ilimitados, foram
autorizadas por aquele Conselho que, na verdade, abdicou de sua
Las razones jurídicas aducidas por la fiscalía del tribunal para justificar el principal função, qual seja, impedir e limitar o uso da força nos conflitos
archivo de estas gravíssimas acusaciones remiten a la general “conducta internacionais44.
responsable” de la OTAN, que jamás habría usado la fuerza para provocar
“directa o indirectamente victimas civiles”, a la ausencia de intencionalidad No ano de 1998, após árduo processo de negociação e a oposição
dolosa y al caráter completamente accidental de algunos errores técnicos veemente dos Estados Unidos, foi adotado o Estatuto de Roma, dando
o de algunas carencias en la informacion38.
origem ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que, diferente de seus
A aplicação da justiça para os perdedores mostra que o cenário antecessores, tem caráter permanente, respeitando os princípios da
internacional, por influência das potências vencedoras nos Tribunais ad legalidade e anterioridade penal45.
hoc, sancionou as violações ao jus in bello. Mas, deixou de condenar os 39 Carta da ONU, Artigo 2 - A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no
crimes da chamada “guerra de agressão”, que diz respeito ao artigo 2º, p. Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: [...] 4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações
internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer
Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. Texto completo da Carta está
disponível em PLANALTO: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm Acesso em: 5
34 Desde 1954, o Camboja era liderado pelo príncipe Norodom Sihanouk. Os conflitos no território cambojano nov. 2012.
ocorreram com a instabilidade ocasionada pela Guerra no Vietnã (1959-1975), principalmente quando o Governo 40 O Movimento dos países não alinhados é uma associação que reúne 115 países, em geral nações em
Americano ordenou, em 1969, o bombardeio das fronteiras Cambojanas. O frágil regime de Sihanouk não resistiu desenvolvimento, com o objetivo de criar um caminho independente no campo das relações internacionais. Acerca
e, em 18 de março de 1970, sofreu um golpe de Estado liderado pelo General Lon Nol. O khmer vermelho surgiu do NAM, visitar a homepage: http://www.nam.gov.za/background/history.htm. Acesso em 17 nov. 2012.
sob as bases do Partido Comunista do Camboja e passou a invadir e dominar territórios cambojanos. Em 17 de 41 Disponível em AGÊNCIA BRASIL: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-08-30/lider-religioso-do-ira-
abril de 1975, o Khmer, num golpe de estado, toma o poder do país e instala um regime de trabalho forçado, cobra-reformas-no-conselho-de-seguranca-da-onu. Acesso em: 28 out. 2012.
com torturas, assassinatos e desaparecimento de pessoas. Conforme FRANKE, Bruno Scalco. Tribunais Híbridos: 42 CHOMSKI, Noam (Op. Cit., p. 35) aponta que “desde 1970, os Estados Unidos têm vetado muito mais
O caso das câmaras extraordinárias nas cortes do Camboja. 2010. Disponível em: http://idejust.files.wordpress. resoluções no Conselho de Segurança do que as outras nações (a Inglaterra em segundo lugar, a França em terceiro
com/2010/04/ii-idejust-franke.pdf . Acesso em: 17 nov. 2012. e a URSS em quarto)” na tentativa de bloquear a atuação da ONU que busca de uma igualdade política.
35 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais, ano 94, v. 840, out 43 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 482. 2003, p. 699.
36 CHOMSKI, Noam. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasília: Universidade de Brasilia, 1999, p. 36. 44 ZOLO, Danilo. Op. Cit.,.p. 34.
37 O ataque usou das mortíferas bombas cluster, que são proibidas por tratado internacional ratificado pelos 45 Referidos alicerces encontram-se encampados (grifos nosso) nos artigos 1°: “É criado, pelo presente
países da OTAN e de projéteis que dispersam urânio (material radioativo) que contamina o solo, a água e os instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com
alimentos, causando, a longo prazo, tumores, leucemias, nascimento de fetos deformados etc. (ZOLO, Danilo. La jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo
Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p. 46-47). com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento
38 Idem, p. 46. do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto”; 11: “1. O Tribunal só terá competência relativamente aos crimes

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

O Estatuto de Roma teve sua entrada em vigor no dia 1º de julho Salutar demonstrar que o crime de agressão, ainda que tenha sido
de 200246, mas desde 1948 já se cogitava de sua criação. A década de estipulado no rol de tipos penais sob jurisdição do TPI, é afastado da
noventa, marcada pelos conflitos da Iugoslávia e de Ruanda, reascendeu competência do Tribunal, pelo artigo 5º do Estatuto de Roma, que requer
a discussão para sua criação, muito embora o projeto inicial tenha sido disposição posterior definindo o crime51.
rejeitado por não se preocupar com as aspirações político jurídicas dos Consoante ao artigo 16 do referido Estatuto, pode o Conselho de
países hegemônicos47. Segurança solicitar que o inquérito ou procedimento crime seja adiado
É notório identificar que até a propositura do TPI, quase todos os por um período de 12 a 24 meses (no caso de renovação do pedido),
processos por infrações ao Direito Internacional Humanitário correram impedindo a investigação dos vencedores52.
a cargo de Tribunais de exceção, criados e constituídos pela parte Outra importante nota aplicável ao TPI refere-se a sua possibilidade
vencedora do conflito beligerante, e possuíram caráter de transitoriedade, de estender a jurisdição a países não signatários do Estatuto de Roma.
parcialidade, além de forte carga política e militar48. O art. 13, b53 da norma estipula que o Conselho de Segurança poderá
Uma importante diferença que o TPI traz refere-se ao seu caráter de encaminhar denúncia ao procurador nas situações que haja indícios do
complementariedade, disposto no art. 1º do Estatuto de Roma49. Nesse cometimento de crimes internacionais.
sentido, o Tribunal somente terá sua jurisdição mediante a incapacidade Com todos os louvores recebidos54, a aprovação do TPI se deu graças
ou inexistência de Poder Judiciário nacional capaz de exercer o julgamento. à ação conjunta dos países latino-americanos, de delegações africanas
A competência do Tribunal, por sua vez, está delineada nos artigos 5º e ainda de alguns países do leste europeu, que 120 votos favoráveis
ao 9º do Estatuto de Roma, que previram: os “crimes de genocídio, como aprovaram o projeto55.
qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um Em contrapartida, as grandes potências permaneceram relutantes,
grupo nacional, étnico, racial ou religioso; os crimes contra a humanidade, chegando a delegação dos Estados Unidos a declarar que o julgamento de
definidos pelo Estatuto como todo ato cometido no quadro de um ataque, alguns de seus militares ou dirigentes seria inaceitável56. Como também
generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil; os crimes de que a cooperação internacional somente ocorreria se acordos bilaterais
guerra, que são aqueles cometidos como parte integrante de um plano ou prévios garantissem a imunidade de seus soldados, conforme o artigo 9857
de uma política ou como parte de uma prática em larga escala e o crime
51 Artigo 5°: “1. [...];2. O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde
de agressão50. que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem
as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível
com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
cometidos após a entrada em vigor do presente Estatuto. 2. Se um Estado se tornar Parte no presente Estatuto decreto/2002/D4388.htm. Acessado em: 30 out. 2012.
depois da sua entrada em vigor, o Tribunal só poderá exercer a sua competência em relação a crimes cometidos 52 O artigo 16 assim traduz a matéria:” Nenhum inquérito ou procedimento crime poderá ter início ou prosseguir
depois da entrada em vigor do presente Estatuto relativamente a esse Estado, a menos que este tenha feito uma os seus termos, com base no presente Estatuto, por um período de doze meses a contar da data em que o Conselho
declaração nos termos do parágrafo 3o do artigo 12” e 22: “1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente de Segurança assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto no Capítulo VII da Carta das
responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver Nações Unidas; o pedido poderá ser renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições”. Disponível em:
lugar, um crime da competência do Tribunal. 2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acessado em: 30 out 2012.
não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de 53 Reza o artigo; O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se
inquérito, acusada ou condenada. 3. O disposto no presente artigo em nada afetará a tipificação de uma conduta refere o artigo 5o, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se: [...] b) O Conselho de Segurança, agindo
como crime nos termos do direito internacional, independentemente do presente Estatuto.” Disponível em: http:// nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 30 out 2012. indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes;” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
46 O Brasil promulgou o Estatuto de Roma e, portanto, está sob a jurisdição do TPI, por meio do decreto n. ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em: 18 nov 2012.
4.388 de 15 de setembro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388. 54 PIOVESAN, Flavia. (Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 83) mais
html. Acesso em: 29 out 2012. otimista com a aplicação do TPI averba: “Consagra-se o princípio da universalidade, na medida em que o Estatuto
47 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. Cit., p. 941 de Roma se aplica universalmente a todos os Estados-Partes, que são iguais perante o Tribunal Penal, afastando
48 SEGUCHI, Erika. Precedente Histórico da Criação do Tribunal Penal Internacional. Revista da Faculdade de a relação entre “vencedores” e “vencidos”. Com toda a vênia possível ousamos discordar da renomada Autora
Direito de Machado, v. 1, n. 1, jul/dez. Machado: IMES/FUMESC, 2004. p. 84. conforme as linhas expostas no trabalho.
49 Artigo 1°: “É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será 55 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Op. Cit., p. 947.
uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com 56 CASELLA, Paulo Borba. Op. Cit., p.855.
alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A 57 Artigo 98: “1. O Tribunal pode não dar seguimento a um pedido de entrega ou de auxílio por força do qual
competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto”. Obtido em: http://www.planalto. o Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem à luz do direito
gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em 30 out. 2012. internacional em matéria de imunidade dos Estados ou de imunidade diplomática de pessoa ou de bens de um
50 No artigo 5°, são definidos os crimes de competência do TPI, e nos artigos seguintes há a tipificação dos delitos Estado terceiro, a menos que obtenha, previamente a cooperação desse Estado terceiro com vista ao levantamento
penais internacionais. Para maior aprofundamento do tema, ver o Estatuto na íntegra em: http://www.planalto. da imunidade. 2. O Tribunal pode não dar seguimento à execução de um pedido de entrega por força do qual o
gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm Estado requerido devesse atuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem em virtude de acordos
internacionais à luz dos quais o consentimento do Estado de envio é necessário para que uma pessoa pertencente a
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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

do Estatuto de Roma58. Por fim, em 2010 e 2011, o TPI apresentou processos de investigação
sobre supostos crimes internacionais ocorridos no Estado do Quênia entre
Fato é que os Estados Unidos jamais ratificaram o Estatuto de Roma e
2007 e 2008, sobre a situação do Estado Libanês e sobre possíveis crimes
atuam em guerras espalhadas pelo globo de forma a prejudicar o trabalho
internacionais na Costa do Marfim63.
do TPI, explorando a seu favor as regras impostas pelo referido Estatuto.
Dez anos após a instalação do TPI, suas ações parecem pender somente O fato de que os seis casos atualmente diante do TPI envolvem
para a investigação e acusação de países pequenos e com menores africanos, conjugado aos esforços empreendidos pelos países ocidentais
influências políticas, deixando os vencedores sob o manto da proteção para imunizar seus soldados que combatem em território estrangeiro,
supranormativa, alicerçado no poder político, econômico e global. e que cometem crimes enquadrados na jurisdição do Tribunal, provoca
grande desconfiança na África. Resta lembrar que passam longe do TPI os
Em 2004, foram instauradas duas investigações na África, uma na
crimes cometidos pela Rússia na Chechênia, pelos EUA e pela Inglaterra
República da Uganda e outra na República Democrática do Congo, sendo
no Iraque e no Afeganistão, e por Israel na Palestina e no Líbano64.
que em 2005 o TPI determinou seu primeiro mandado de prisão para o
Líder da Resistência Armada em Uganda, Joseph Kony. Em 2007, também A pergunta posta pelo presidente da Comissão da União Africana ilustra
foram abertas investigações na República Centro Africana, com mandando bem a desconfiança: “o Procurador do TPI só condena africanos, só julga
de prisão em face de Jean-Pierre Bemba Gombô, acusado de crimes de africanos... será que os problemas só existem na África?”. A questão é
guerra59. legítima, principalmente quando lembramos que potências como EUA,
China e Rússia (sem falar de Israel) não são Estados-Partes do TPI, muito
Paralelamente, em 2005, o TPI instaurou investigações na região de
embora pretendam impor sua jurisdição aos países africanos, ao mesmo
Darfur, no Sudão, que culminou na expedição, em 2007, de mandado
tempo em que recusam submissão a ele65.
de prisão para Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman e Ahmad Muhammad
Harun, supostos líderes da milícia, e, em 2009, também para Omar Al- A justiça internacional de medidas desiguais se faz também presente
Bashir, presidente do Sudão60. no TPI. Enquanto as potências hegemônicas não aceitam sua jurisdição,
mantendo sob o manto da impunidade suas ações e dirigentes, essas
Por meio da resolução n. 1970/2011, o Conselho denunciou, sob
participam, por meio do Conselho de Segurança, de denúncias e
o suporte do art. 13, b, do Estatuto, os conflitos no Estado Libanês. As
investigações nos países que lhe aprouverem. São países que detém a
investigações se mostraram nefastas: quatro investigadores do TPI foram
força de determinar investigações e até mesmo intervenção militar sobre
presos preventivamente por 45 dias e foram liberados após negociações
outros países, sem sofrerem qualquer represália jurídica. Os casos da Líbia
internacionais61.
e Sudão mostram claramente os dois pratos da justiça.
Posteriormente, foram expedidos mandados de prisão contra o ditador
Por todo o transcurso da história, a justiça internacional dos crimes
da Líbia, Muammar Gaddafi, de seu filho, Saif Al-Islam Gaddafi, e do
humanitários foi aplicada por dois prismas diferentes: um na visão dos
chefe de inteligência, Abdullah Al-Senussi. Os três suspeitos libaneses
vencedores, que se mantinham impunes de qualquer julgamento, pois
e os líderes sudaneses não foram presos, pois nos dois casos o TPI não
detinham a espada da justiça; e outro na visão dos vencidos, que se
possuía jurisdição para requerer a intervenção da polícia local, sendo
obrigavam às mordaças, por vezes extremadas, de seus agressores. Mas,
todos os denunciados considerados foragidos, mesmo ocupando cargos
será que aos novos conflitos a justiça internacional ainda reflete duas
no governo local62.
medidas diferentes?
esse Estado seja entregue ao Tribunal, a menos que o Tribunal consiga, previamente, obter a cooperação do Estado
de envio para consentir na entrega.” A nova ordem mundial não aceita que os países se mantenham na
58 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da escola
de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005. p. 696.
neutralidade, mas antes requer sua participação em múltiplos acordos
59 A situação detalhada dos processos abertos pelo TPI, tais como procedimentos adotados, mandatos de prisão, entre os países e as instituições internacionais. Ocorre que, sob a égide
decisoes, etc., encontram-se amplamente divulgados no site oficial da Corte em: http://www.icc-cpi.int/Menus/
ICC/Situations+and+Cases/. Acesso: 17 nov 2012.
60 Idem. 63 As decisões do Tribunal e de suas câmaras podem ser encontradas em: http://www.icc-cpi.int. Acesso em:
61 Disponível em VEJA: http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/equipe-do-tpi-na-libia-em-prisao- 29 out 2012.
preventiva-por-45-dias. Aceso em: 18 nov 2012. 64 Disponível em CARTA MAIOR: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5522.
62 Disponível em CONJUR: http://www.conjur.com.br/2011-jun-27/tribunal-penal-internacional-manda- Acesso em 17 nov. 2012.
prender-presidente-libia. Acesso em 18 nov 2012. 65 Idem.

164 165
OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

de manutenção da segurança mundial, muitas alianças bélicas também ideológico.69 No sentido geopolítico, a guerra deixa de ser influenciada
são realizadas. pelos espaços do tempo e do território. As maiores potências econômicas
e militares realizam combates para manter uma ordem global que garanta
O pensamento de José Maria Gómez parece consolidar os
o acesso livre às fontes energéticas, bem como ao desenvolvimento
acontecimentos que vivenciamos com a cultura da guerra global:
econômico e industrial. A nova guerra deseja controlar a hegemonia
mundial sem interferir nas dimensões territoriais.70
[...] o panorama da política mundial não é, sem dúvida, dos mais
animadores: unilateralismo belicoso de uma única superpotência Quanto ao aspecto sistêmico, a nova guerra utiliza-se de vantagens
infringindo o direito internacional e as instituições e práticas multilaterais, nucleares, de informática e inteligência para manutenção de um poder
com perda de legitimidade hegemônica em vários lugares do planeta;
ascensão vertiginosa da questão da segurança nas agendas nacionais, hegemônico, ditando as regras do poder. Os países poderosos utilizam
regionais e global; disseminação nas próprias democracias liberais do terror de armas nucleares, ao mesmo tempo em que impedem que
de políticas “contraterroristas” que suspendem o Estado de Direito e outros países tenham tais armas.71
reduzem certas pessoas a meros corpos sem direitos; expansão de redes
de terrorismo islamita desterritorializado, tecnologizado e absolutizado O conflito ocorre em uma disparidade de tecnologias, em que grandes
em sua dimensão teológico-política; justificação da “guerra preventiva” poderios bélicos combatem pequenas forças militares, que são incapazes
como instrumento indispensável para enfrentar situações de “conflito de reação ou mesmo do vislumbre da vitória. No combate entre Israel e
assimétrico” e suprimir as ameaças de uso de armas de destruição em
as forças do Hamas, na faixa de Gaza, a Força Aérea Israelense possuía
massa por parte dos “inimigos da humanidade” – terroristas islâmicos e
Estados “párias”; deflagração de guerras de agressão entre Estados (em mais de quatrocentas aeronaves de ataque, entre caças e helicópteros de
especial, as dos EUA contra o Afeganistão e o Iraque) e existência de ataque, enquanto o grupo Hamas combatia através de pequenas milícias,
conflitos armados e guerras civis em Estados fracos ou em colapso, com com armamento de pouca força bélica, normalmente armas individuais
suas sequelas de destruição, morte, ódio e desestabilização regional; ou de pouco alcance.72 Para Noam Chomski, o que as potências desejam
tentativas de reconfiguração espacial do direito internacional, reeditando
antigas dicotomias entre a força da lei para os civilizados e a força sem lei é manter uma linha de participantes de forma obediente, como meros
para os “bárbaros.”66 espectadores, uma comunidade de indivíduos que não conseguem unir
seus recursos para tornarem-se uma força capaz de desestruturar o poder
Danilo Zolo chama os novos conflitos de “guerra global”. Alude o autor concentrado.73
que o processo de mudança da antiga guerra para a guerra global ocorreu
em quatro conflitos distintos: a guerra do Golfo de 1990, as guerras nos No plano normativo, a guerra é aquela que se esquiva da proibição do
Bálcãs, ocorridas no período de 1991 a 1999 e as guerras permanentes no uso da força, estipulada nas normas internacionais. O conflito vai contra
Afeganistão, iniciada em 2001, e no Iraque, que teve início em meados de regras estipuladas no plano internacional, ao arrepio de acordos, tratados
2003.67 ou mesmo organismos, como por exemplo, a Organização das Nações
Unidas e seu Conselho de Segurança. A hegemonia deve ser mantida
Acrescenta ainda o referido autor que “Trata-se de eventos bélicos através da aplicação de uma justiça que dá privilégios e garantias às
que se desenvolveram todos sob o mesmo suporte político-econômico. potências.74 Fábio Comparato denuncia que
[...] A circunstância não pode ser considerada casual do ponto de vista
geopolítico e geoeconômico em uma área relativamente restrita do O acesso dos Estados Unidos à condição de potência hegemônica mundial,
planeta”, que representa uma das maiores reservas de recursos enérgicos após o esfacelamento da União Soviética, constitui séria ameaça à
do planeta.68 reorganização das relações internacionais num sentido comunitário. O
último tratado internacional de direitos humanos integralmente ratificado
A nova guerra, para Danilo Zolo, é compreendida sob quatro aspectos pelos Estados Unidos foi o Pacto aprovado pelas Nações Unidas em 1966,
primordiais, quais sejam, o geopolítico, o sistêmico, o normativo e o 69 Ibidem, p. 90-92.
70 ZOLO, Danilo. Op. Cit., p. 95
66 GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização 71 Idem, p. 96.
e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago. 2008. Rio de 72 HONORATO, Marcelo. O Direito de Matar e os Ataques Israelenses à Faixa de Gaza. 2009. Disponível em
Janeiro: PUC, 2008, P. 282. JUS NAVIGANDI: http://jus.com.br/revista/texto/12209/o-direito-de-matar-e-os-ataques-israelenses-a-faixa-de-
67 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianopolis: gaza/2#ixzz2Bdxeo1ZX. Acesso em 28 out. 2012.
Conceito Editorial, 2010, pp. 94-98. 73 CHOMSKI, Noam. Op. Cit., p. 33.
68 Idem, p. 94. 74 ZOLO, Danilo. Globalização: Um mapa dos problemas. Tradução Anderson Vichinkeski Teixeira. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010, p. 98.
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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

sobre direitos civis e políticos. O Pacto gêmeo sobre direitos econômicos, Hoy em dia la guerra global “preventiva”, teorizada y praticada por Estados
sociais e culturais teve sua ratificação rejeitada pelo congresso norte- Unidos y sus aliados occidentales más afines, parece una prótesis necesaria
americano. A partir de então, os Estados Unidos vêm se recusando, para el desarrollo de procesos de globalización que dividen cada vez más
sistematicamente, a se submeter às normas internacionais de proteção al mundo em ricos y poderosos, por un lado, y pobres y débiles, por el
aos direitos humanos, por considerarem que isto implica uma limitação outro, mientras que el llamado global terrorism devino el contrapunto
de sua soberania.75 igualmente sanguinário y nihilista del conflicto neocolonial que enfrenta
a Occidente con los países que se resisten a su pretension hegemónica
Como último conceito de guerra global, tem-se o caráter ideológico em planetária79.
que as grandes potências procuram promover guerras sustentadas pelo
Enquanto as tropas americanas invadiam o Afeganistão, apoiados por
ideal de inclusão de valores ditos universais. A cultura dos vencedores é
alianças que incluíam a OTAN, em seu combate ao terror, o Senado dos
aplicada sobre seus vencidos como a melhor cultura, a máxima ideologia
Estados Unidos aprovava o Patriot Act, que suspendeu as restrições à
libertária, o correto direito humano76.
ação governamental com relação aos direitos civis. Também o governo
As quatro formas de guerra global demonstram a permanência da norte-americano emitiu, em novembro de 2001, ordem que autorizava
justiça aplicada pelos vencedores aos vencidos com fortes influências a detenção indefinida de estrangeiros, proibindo o acesso aos tribunais
econômicas e de manutenção do poder. As ingerências que ocorrem existentes e, no caso de acusação, o Poder Executivo nomearia comissões
atualmente no Irã demonstram fortemente uma futura guerra ante sua militares, como os antigos tribunais de exceção80.
relevância geopolítica e geoestratégica. Por conter uma das maiores
Por outro lado, o governo estadudinense estabeleceu que os prisioneiros
reservas de petróleo do planeta (o Golfo Pérsico), capazes de abalar
talibãs ou membros da Al Qaeda (grupo combatido como célula terrorista)
o comércio dessa energia, elevando o barril do petróleo a altíssimos
não estavam amparados pelo artigo 3º, comum as Convenções de
preços e maximizando o lucro das potências mundiais, notadamente dos
Genebra81.Portanto, poderiam sofrer torturas, maus tratos, tratamentos
Estados Unidos, e ainda, por sua posição geoestratégica, que interliga
humilhantes e degradantes82.
o subcontinente indiano ao Mar Mediterrâneo, “a ocorrência da guerra
parece demonstrar o único meio de resolver quem é o líder do mundo Os Estados Unidos, juntamente com a OTAN, também invadiram o
islâmico”77. Iraque, sem a aprovação do Conselho de Segurança, sob o pretexto de que
o país possuía armas biológicas de destruição em massa. Posteriormente,
O possível conflito no Irã reveste-se do combate global sistêmico, em
o líder iraquiano, Saddam Hussein, foi perseguido, condenado à pena de
que as potências detentoras de tecnologia nuclear tentam impedir que
morte e enforcado, sob o ideal de implantação da democracia no Estado.
o país, que publicamente declarou estar realizando testes com energia
nuclear para fins pacíficos, adquira tal tecnologia. Somado a estes conflitos “Guerra contra o terrorismo e o eixo do mal”. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/
doutrina-bush-guerra-contra-o-terrorismo-e-o-eixo-do-mal.htm. Acesso em 2 nov. 2012.
vemos a marcha empreendida contra a “Guerra ao Terror”. A bandeira 79 ZOLO, Danilo. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007, p. 27.
levantada após os ataques de onze de setembro, incitou os Estados Unidos 80 GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo. Desterritorialização
e confinamento na “Guerra contra o Terror”. Revista Contexto Internacional, vol. 30, n. 2, mai/ago 2008. Rio de
a realizarem caçadas mundiais contra grupos terroristas que compunham Janeiro: PUC, 2008, p. 272-274.
o chamado “Eixo do Mal”78. Consoante a isso, Danilo Zolo diz que 81 O artigo 3°, comum as Convenções de Genebra, diz o seguinte: No caso de conflito armado que não apresente
um carácter internacional e que ocorra no território de uma das Altas Partes contratantes, cada uma das Partes no
conflito será obrigada aplicar, pelo menos, as seguintes disposições: 1) As pessoas que não tomem parte diretamente
75 COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham
543.
sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as
76 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da Escola
circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor,
de Direito e Relações Internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004, p. 204-205.
religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo. Para este efeito, são e manter-
77 Estas palavras foram proferidas pelo presidente do Instituto de Estudos sobre o Oriente Médio, Evguêni
se-ão proibidas, em qualquer ocasião e lugar, relativamente às pessoas acima mencionadas: a) As ofensas contra a
Satanóvski. Disponível em DEFESANET: http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/7422/Tambores-de-
vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas
Guerra---Ameaca-de-conflito-no-Ira-e-real--diz-especialista-. Acessado em 30 out 2012.
e suplícios; b) A tomada de reféns; c) As ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes
78 “A expressão “Eixo do Mal” foi utilizada pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em seu discurso
e degradantes; d) As condenações proferidas e as execuções efetuadas sem prévio julgamento, realizado por um
anual no Congresso norte-americano em 2002, para se referir a três países (“Estados vilões”) que constituíam uma
tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos
grave ameaça ao mundo e à segurança dos Estados Unidos: Coréia do Norte, Irã e Iraque. Estes países, segundo
povos civilizados. 2) Os feridos e doentes serão recolhidos e tratados. Um organismo humanitário imparcial, como
Bush, desenvolviam armas de destruição em massa ou patrocinavam o terrorismo regional e mundial, ou faziam
a Comissão Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer os seus serviços às partes no conflito. As Partes no
as duas coisas ao mesmo tempo. Mais tarde os Estados Unidos incluíram também Cuba, Líbia e Síria a este seleto
conflito esforçar-se-ão também por pôr em vigor, por meio de acordos especiais, todas, ou parte, das restantes
grupo de países. A expressão eixo do mal é uma dupla referência histórica: eixo lembra o eixo Berlim-Roma na
disposições da presente Convenção. A aplicação das disposições precedentes não afetará o estatuto jurídico das
Segunda Guerra Mundial (nazifascismo) e mal retoma o termo império do mal, forma como o governo Reagan
Partes no conflito. Disponível em: http://www.icrc.org/por/resources/documents/treaty/treaty-gc-0-art3-5tdlrm.
se referia à União Soviética durante a Guerra Fria. Um eixo do mal mantém latente a ameaça exterior e justifica
htm. Acesso em 3 out. 2012.
a necessidade de manutenção de um expressivo orçamento, do governo Bush, na defesa.” MENDONÇA, Cláudio.
82 GOMEZ, José Maria. Op. Cit., p. 272.

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos Larissa Ramina e Moacir Iori Junior

O final da invasão no Iraque, em junho de 2004, mostrou que as combate a redes terroristas, mostram-se como meras fachadas para
supostas armas biológicas e químicas de destruição em massa jamais ações dos vencedores na manutenção da condição de subordinação dos
foram encontradas, bem como as alegadas ligações de Saddam com vencidos. Ainda assim, a mudança é sentida na nova ordem mundial.
grupos terroristas islâmicos nunca foram comprovadas. Com isso, o A necessidade cada vez maior de dependência e cooperação entre os
discurso norte americano passa a defender a intervenção no Iraque como Estados, principalmente pelos países periféricos, confere os contornos
uma promoção para implantação da democracia e da paz, ante o governo para o surgimento de uma nova justiça internacional. A criação de uma
autoritário de Sadam Husseim83. jurisdição universal internacional mostra vivas esperanças de que a cultura
nascida sob a justiça dos vencedores acabe por ser banhada, no respeito
Sob todas estas ações, o governo norte-americano realizava
de uma ordem jurídica plasmada, em princípios superiores a vontades
procedimentos para assegurar cobertura legal aos agentes, dando-lhes
políticas de mando e poder87.
amparo normativo para continuarem com os métodos alternativos de
investigação e tratamento aos presos84.Verifica-se que a bandeira de A cooperação entre os Estados deve criar não somente alianças, que
combate ao terrorismo foi levantada pelos países dominantes, garantindo mantenham a justiça de vencedores e vencidos, mas que aplique a justiça
a expansão de bases militares espalhadas pelo mundo, propiciando o com imparcialidade nos anseios de uma ordem cosmopolita.
controle de pontos específicos e estratégicos, principalmente nas regiões
de riquezas e reservas de energia85.
Referências
Observe-se que a guerra contra o terrorismo também é utilizada por
AGÊNCIA BRASIL: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-08-30/lider-religioso-do-
China e Rússia, como arcabouço para acirrar o combate de seus adversários ira-cobra-reformas-no-conselho-de-seguranca-da-onu.
políticos, generalizando conflitos civis, que criaram extremismos e
ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal.
separações sociais. Cadernos da escola de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez,
A justiça de vencedores e vencidos, portanto, permanece no cenário 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005.
internacional, desde o início com a constituição do Tribunal de Nuremberg BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Tradução Marcos Penchel.
e, até mesmo, após a criação do Tribunal Penal Internacional. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

O sistema de segurança das Nações Unidas não pode se transformar BRITO, Alexis Augusto Couto de. Os Tribunais Penais Internacionais. Revista dos Tribunais,
ano 94, v. 840, out 2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
em meio de obtenção de carta de alforria para que as potências militares
realizem intervenções, com caráter político e hegemônico, em outros CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20 ed. São Paulo: Saraiva,
2012.
países. Tampouco, organismos internacionais, como o caso da OTAN
na guerra do Kosovo, podem se aclamar porta-vozes da comunidade CHOMSKI, Noam. How The World Works: Secret, lies and democracy. New York: Publishers
Group West, 2011.
internacional86.
________. O que o Tio Sam Realmente Quer. Brasilia: Universidade de Brasilia, 1999.
A justiça desigual formada nos bancos dos Tribunais de exceção, desde
Nuremberg aos dias atuais, dá vivas mostras de privilégios aos vencedores COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
por seu poderio econômico, bélico e político.
CONJUR: http://www.conjur.com.br/2011-jun-27/tribunal-penal-internacional-manda-
A guerra global vem arraigada em ações manipuladas que, ao arrepio prender-presidente-libia.
das normas internacionais, sustentam as hegemonias no poder. Discursos CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/
que defendem princípios humanos, criação de Estados democráticos, Situations+and+Cases/.
83 Disponível em GLOBO: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL922333-5602,00-INVASAO+DO+IRAQ DEFESANET: http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/7422/Tambores-de-
UE+FOI+TAREFA+NECESSARIA+AFIRMA+BUSH+EM+VISITA+SURPRESA+AO+P.html e http://noticias.terra.com.br/ Guerra---Ameaca-de-conflito-no-Ira-e-real--diz-especialista-.
mundo/noticias/0,,OI698058-EI865,00-Bush+Deus+ordenou+invasao+do+Iraque+e+Afeganistao.html. Acesso
em;18 nov. 2012. FRANKE, Bruno Scalco. Tribunais Híbridos: O caso das câmaras extraordinárias nas cortes
84 Idem, p. 275.
85 Ibidem, p. 276.
86 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 87 ARAUJO, Fernando. O Tribunal Penal Internacional e o Problema da Jurisdição Universal. Cadernos da escola
2003, p. 697 de direito e relações internacionais da Unibrasil. v. 4, n. 4, jan/dez, 2004. Curitiba:Unibrasil, 2005, p. 193.

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OS DOIS PRATOS DA JUSTIÇA INTERNACIONAL: Vencedores e vencidos

do Camboja. 2010. Disponível em: http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-


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GOMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantanamo.
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SEGUCHI, Erika. Precedente Histórico da Criação do Tribunal Penal Internacional. Revista
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VEJA: http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/equipe-do-tpi-na-libia-em-prisao-
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________. La Justicia de los Vencedores. Trad. Elena Bossi. Buenos Aires, Edhasa, 2007.

172
Ana Zaiczuk Raggio

BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE À


IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

Ana Zaiczuk RAGGIO1

Introdução
Este trabalho busca demonstrar que os interesses da população de
baixa renda se encontram fora do espectro de atuação dos representantes
políticos. Para tanto, irá se tratar da tardia implementação da Defensoria
Pública do Estado do Paraná. Isto pois se entende que a demora para
estruturação do órgão está a demonstrar um limite da representação
política, visto que é essencialmente destinado à referida população.
A iniciativa para a criação da Defensoria Pública, seja em âmbito
federal, como estadual, é privativa do chefe do poder executivo, conforme
expressão do artigo 61, § 1º, II, “d”, da Constituição de 1988 e, no caso
do Estado do Paraná, do artigo 66, III da Constituição estadual. Assim,
caberia ao Governador do Estado a proposição da Lei de regulamentação
do órgão.
O parágrafo único do artigo 1º da Constituição da República de
1988 prevê: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Os representantes políticos no Brasil são escolhidos em eleições livres
por meio do voto universal, direto e secreto. Ou seja, os representantes
são formalmente legitimados pelo povo. No entanto, sua atuação não
corresponde, acredita-se, aos anseios populares, não estando, se poderia
dizer, materialmente legitimados. As políticas públicas, o Direito em si,
não servem ao povo em toda a sua extensão.
A fim de aprofundar a presente proposição, realizaram-se 6 entrevistas2
com pessoas que de alguma forma estiveram ligadas ao processo de
implementação da Defensoria Pública do Paraná, com 5 perguntas
abertas, semi-estruturadas e qualitativas sobre a perspectiva política que

1 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba, Pós-Guaduanda em Direito Constitucional pela
Academia Brasileira de Direito Constitucional e em Gestão Pública com ênfase em: Sistema Único de Assistência
Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Residente Técnica do Departamento de Direitos Humanos e
Cidadania, da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos.
2 Foram entrevistadas a Professora e advogada criminalista, Priscilla Placha Sá; Miguel Gualano de Godoy,
Doutorando em Direito e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)
na UFPR; Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Professor; Tadeu Veneri, Deputado estadual; Carlos Enrique
Santana, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Londrina, coordenador estadual do Movimento Nacional
pelos Direitos Humanos e conselheiro do Conselho Municipal de Saúde de Londrina; Maria Tereza Uille Gomes,
Secretária de Estado da Justiça Cidadania e Direitos Humanos.
173
BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE Ana Zaiczuk Raggio
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

permeou o processo. Com as respostas, pretende-se complementar com Demandas como requisição de fornecimento de remédios para
dados empíricos da realidade paranaense as teorias sobre representação tratamentos continuados ficam desprotegidas, não sendo levadas ao
política. conhecimento dos poderes constituídos, a título de exemplo.
Grande impacto se dá também quando da falta de defesa em processos
A Defensoria Pública como Expressão dos Interesses Populares criminais. Enquanto a acusação é elaborada na maioria dos casos pela
forte estrutura do Ministério Público, a população de baixa renda lota
A Constituição da República de 1988 criou no ordenamento jurídico as cadeias e penitenciárias por não possuir quem alegue sua inocência e
brasileiro a Defensoria Pública no artigo 134, in verbis: acompanhe a progressão de regime.

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função No III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil, do Ministério da Justiça
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a (2009), para fins de análise da situação das Defensorias no Brasil, utiliza-
defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, se como parâmetro para determinação do público-alvo do órgão a renda
LXXIV. mensal média de até três salários mínimos3.
O artigo 5º, LXXIV determina, por sua vez, que “o Estado prestará Ainda que o limite remuneratório apontado não seja suficiente para
assistência jurídica integral e gratuita destinada aos que comprovarem constatar a real situação de vulnerabilidade individual, ou mesmo familiar,
insuficiência de recursos”. Portanto, a implementação da Defensoria já abrange uma grande porcentagem da população brasileira, indicando
Pública se mostra como expressão dos interesses das camadas menos um enorme contingente de potenciais usuários da Defensoria Pública.
abastadas, tendo em vista sua função de fornecer amparo jurídico àqueles Das 161.990.266 pessoas de 10 anos ou mais de idade residentes em
que não possuem condições de contratar advogado. todo o país, 52,6% possuem rendimento nominal mensal de até 3 salários
mínimos (IBGE, 2010).
Para levar uma demanda ao Poder Judiciário se faz necessário possuir
capacidade postulatória. Entretanto a legislação brasileira determina que
afora o Ministério Público e a Defensoria Pública, conforme artigos 127 e A Implementação da Defensoria Pública do Paraná
134 da Constituição Federal, apenas o advogado possui esta capacidade Apesar da previsão constitucional ser de 1988, apenas em 1994 foi
de levar os interesses de um cidadão a conhecimento do Judiciário, pelo sancionada a LC 80/94 que organizou a Defensoria Pública da União,
expresso no artigo 36 do Código de Processo Civil, que traz também Distrito Federal e Território e estabeleceu normas gerais para a organização
exceções pouco utilizadas. das Defensorias Estaduais, a qual determinou, em seu artigo 142, cento e
Assim sendo, o cidadão só poderá pleitear em sua própria defesa nas oitenta dias para que os Estados adaptassem a organização da Defensoria
situações trazidas pelo artigo, ou ainda nas exceções legalmente previstas, Pública aos preceitos da Lei Complementar
quais sejam na impetração de habeas corpus (artigo 654 do Código de No Estado do Paraná, o artigo 128 da Constituição Estadual, promulgada
Processo Penal) e nas ações perante o Juizado Especial Cível (artigo 9º da em 5 de outubro de 1989, determina a organização do órgão por lei
Lei nº 9.099/95) e na Justiça do Trabalho (artigo 791 da Consolidação das complementar com observância a legislação federal sobre a matéria.
Leis do Trabalho). No entanto, mesmo com ausência da legislação federal em 1991, foi
A inexistência de Defensoria Pública, dessa forma, impede o acesso à sancionada a LC Estadual nº 55 que instituiu a Defensoria Pública do Estado
Justiça daqueles que não possuem condições econômicas de contratar um do Paraná. O artigo 6º da Lei também impunha o prazo de 180 (cento e
advogado. O que se mostra como flagrante violação do Estado Democrático oitenta) dias para que o Executivo encaminhasse à Assembleia Legislativa
de Direito e dos Direitos Fundamentais de inafastabilidade do Poder mensagem sobre a estruturação da carreira de Defensor Público e demais
Judiciário, contraditório e ampla defesa e assistência jurídica gratuita, disposições necessárias ao funcionamento do órgão.
positivados no artigo 5º, incisos XXXV, LV e LXXIV, respectivamente, da
Constituição de 1988. 3 Não existe determinação legal delimitando a renda máxima daquele que pode ser atendido pela Defensoria
Pública. No entanto, utiliza-se este parâmetro por possibilitar maior diálogo com os dados levantados pelo IBGE e
consequente facilidade de interlocução com outros estudos, conforme IPEA e ANADEP (2013).

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À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

Ainda assim, foi somente pouco antes das eleições de 2010 que o A Demora na Implementação da Defensoria Pública do Paraná como Limite de
Governo do Estado apresentou à Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) Representação Política
o Projeto de Lei (PL) n° 439/2010, a fim de estruturar a Defensoria Pública. Retomando a noção de contrato social de Rousseau (1999), tem-se
Porém, o PL não foi votado antes do fim das atividades legislativas daquele que: “cada um de nós põe sua pessoa e poder sobre uma suprema direção
ano e acaba por ser retirado de pauta no ano seguinte. da vontade geral e recebe ainda cada membro como parte indivisível do
Com a retirada do PL n° 439/2010 da pauta de votação, aquecem-se todo”, produzindo um “corpo moral e coletivo” (ROUSSEAU, 1999, p. 36).
os ânimos dos movimentos sociais, que há muitos anos pleiteavam a O autor traz assim a questão da “vontade geral” e a coloca como a única
implementação do órgão. Neste cenário, nasce o movimento “Defensoria que pode reger as ações do Estado (ROUSSEAU, 1999, p. 43).
Já!”, que congregava diversas entidades4 entorno de um único objeto: O que fica é a dificuldade de determinar-se o conteúdo da “vontade
uma Defensoria Pública paranaense livre, autônoma e independente. geral” em uma sociedade complexa como a contemporânea. O autor
Face à pressão social, a elaboração do Projeto de Lei foi conduzida pela limita-se a diferenciar vontade de todos, “soma das vontades particulares”,
Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, de maneira democrática, de vontade geral, que “atende só ao interesse comum” (ROUSSEAU, 1999,
possibilitando a participação direta de representantes do movimento e p. 46).
da sociedade como um todo em reuniões, audiências públicas e consultas Para superar esta dificuldade, a Democracia representativa em sua
públicas online. noção hegemônica liberal, predominante na Democracia brasileira,
Em 19 de maio de 2011 a Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado traz normativas eleitorais que fixam procedimentos para a escolha de
do Paraná (LC nº 136/11) é sancionada. Com 23 (vinte e três) anos de representantes políticos encarregados de expressar a vontade do povo.
atraso é organizada a Defensoria Pública do Paraná, sendo o penúltimo A Democracia, portanto, é tida predominantemente como instrumento
Estado da Federação a ter Defensoria, antes apenas do Estado vizinho, político-jurídico para a escolha de representantes políticos. Esse é o
Santa Catarina. Os direitos da população de baixa renda de todo o Estado conceito trazido por Bobbio:
foram reiteradamente violados e sua defesa improvisada.
Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo
Em 2010, 58% da população paranaense com 10 anos ou mais de quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as
idade possuía classe de rendimento nominal mensal de até 3 salários formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um
mínimo (IBGE, 2010). Dessa forma, nos termos colocados pelo Ministério conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem
está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.
da Justiça, mais da metade dos cidadãos do Estado se mostravam como (BOBBIO, 1986 apud PEREIRA, 2008, p. 50)
potenciais usuários da Defensoria Pública. Ainda assim, os Governadores
do Estado, desde a promulgação da Constituição de 1988, limitaram-se Junto a Bobbio está Joseph Schumpeter, que, segundo José Álvaro
a proporcionar meios precários para garantir a representação judicial da Moisés acreditava
população paranaense de baixa renda.
que o ‘método’ democrático serve, essencialmente, para ‘autorizar’
governos através de eleições livres, mas não acreditava que os eleitores,
ou seja, ‘as pessoas comuns’ fossem dotadas de suficiente autonomia e
de capacidade de discernimento, para atribuir ou retirar legitimidade de
qualquer regime político através de suas crenças. (MOISÉS, 1995, p. 192)
4 O movimento contou com grande participação de estudantes e professores, tendo ao lado do Diretório
Acadêmico Clotário Portugal, entidade de representação dos acadêmicos de Direito do Centro Universitário Curitiba,
o Centro Acadêmico Hugo Simas, do curso de Direito da UFPR, assim como o Centro Acadêmico de Ciências Sociais Como consequência, para o autor as “pessoas comuns” devem ter sua
e os professores daquela Instituição e do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Estadual de Londrina.
Se fizeram presentes ainda organizações não governamentais do Paraná como a Terra de Direitos e o Instituto de
participação política limitada ao voto: “uma vez tendo feito suas escolhas
Defesa de Direitos Humanos (IDDEHA), e outras organizações da sociedade civil tais como a Comissão de Direitos sobre a quem cabe governá-los, elas cessam qualquer outra função
Humanos de Londrina, a APP – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, a Central Única dos
Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Sindicato dos Trabalhadores e Servidores política e, até as próximas eleições, delegam as tarefas de produzir as
Públicos Estaduais dos Serviços de Saúde e Previdência do Paraná (SindSaúde), o Programa PróJovem da Vila Torres, políticas públicas adequadas” (MOISÉS, 1995, p. 193).
a Associação Nacional dos Defensores Públicos Estaduais (ANADEP), a Associação Nacional dos Defensores Públicos
Federais (ANADEF), a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná, dentre tantas outras que
subscreveram o abaixo-assinado e manifestos publicados.

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À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

Para ambos os autores, a Democracia deve se limitar a garantir eleições obra admite que não se pode falar em congruência entre as vontades de
periódicas livres, uma vez que a escolha do representante político governantes e governados, vez que “o processo representativo é farto em
por esses meios é suficiente para legitimá-lo. Este, por sua vez, deverá exemplos de que, mais do que as atitudes ou expectativas dos eleitores,
perseguir os interesses que entender cabíveis em cada momento. outros fatores influem na conduta dos representantes. Dito de outro
modo: a relação de representação não se exaure no processo eleitoral”
Entretanto, entre os autores que se dedicam ao tema da Democracia na
(CAMPILONGO, 1988, p. 13).
atualidade tem se entendido pela insuficiência da eleição para concessão
de autorização ao representante político, bem como para controle de suas Além da congruência, o autor se detém sobre as teorias acerca de
ações. Os motivos dessa corrente são claramente expostos por Bonavides: input e output of demand, elitistas e policies decisions, mas acaba por
concluir que nenhuma atitude ou interesse dos representados é capaz de
Vista pelo divórcio consumado entre a vontade governada – a vontade assegurar a persecução de seus interesses, para Campilongo “é certo que
passiva da cidadania – e a vontade governante, ou seja, a vontade da elementos de outro nível – fundamentalmente de natureza econômica –
elite hegemônica, a representação não só perdeu o sentido da identidade desempenham função preponderante na definição de políticas públicas”
(a ficção da paridade volitiva de governantes e governados), dantes
postulada de maneira abstrata, mas peremptória, como reconheceu e (CAMPILONGO, 1988, p. 22).
instituiu de forma efetiva uma dualidade em que, unicamente, a sua Bernard Manin, Adam Przeworski e Susan C. Stokes, partindo do
esfera de soberania (a vontade privilegiada do representante) se impõe
enquanto caudatária do egoísmo dos seus interesses, os quais logram, pressuposto de que os governados poderiam contar apenas com as
assim, eficácia, em dano óbvio da cidadania preterida, enfraquecida, eleições para controlar o desempenho de seus representantes, buscam
menoscabada; a cidadania de que o representante é órgão. compreender o que leva os políticos a atuarem de determinadas maneiras.
Em primeiro lugar, admitem a possibilidade de um representante perseguir
Em face, pois, do malogro das formas representativas clássicas, o espírito apenas interesses próprios, mas ressaltam que sua busca sempre será por
democrático de nossa época se inclina para a rejeição do formalismo recompensas. Assim, consideram que
tradicional, em ordem a desterrar a supremacia liberal do poder, enquanto
elemento institucionalizador de privilégios e desequilíbrios de classe.
Os políticos tem preferências sobre as políticas públicas se a recompensa
(BONAVIDES, 2008, p. 278 e 279)
de manter-se no cargo ou a probabilidade de se reeleger depende das
políticas por eles adotadas. Pode-se pensar em recompensa de manter-
Ou seja, para Bonavides a necessidade de se ir além do mero método se no cargo em três formas: os políticos podem ter políticas favoritas e
para concessão da autorização para exercício do poder, que se dá de derivar utilidade de executá-las, podem querer realizar seus interesses
representado para representante, se justifica pelo flagrante abandono pessoais, ou podem obter satisfação da honra de estar no cargo. (MANIN;
dos interesses dos cidadãos por parte daqueles que estariam imbuídos PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 106)
de persegui-los.
Ainda apontam a relevância da satisfação dos financiadores, uma vez
Com intuito de buscar motivos para a não institucionalização, por que para se eleger os políticos necessitam de verbas. Assim expõem que
meio de Lei Complementar, da Defensoria Pública no Estado do Paraná “os políticos podem vender aos grupos de interesse políticas que infligem
durante longos 23 anos, questionou-se aos entrevistados as razões que um custo pequeno para cada eleitor – mas com benefícios concentrados
acreditavam ter determinado a promulgação da Lei apenas em 2011. nesses grupos de interesse –, e gastar nas eleições os recursos arrecadados
Destaca-se que o motivo mais citado entre os entrevistados foi “falta em troca” (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 113).
de vontade política” (GODOY, 2013; SÁ, 2013; SANTANA, 2013; GOMES, Pode se perceber uma congruência entre todos os autores trazidos
2013). Ou seja, para 4 dos 6 entrevistados a implementação da Defensoria no sentido de que determinados interesses são perseguidos pelos
Pública do Paraná esbarrava no desinteresse dos representantes políticos representantes quando estes têm como consequência benefícios para
em conceder a população de baixa renda seu direito a Defensor Público eles próprios ou para grupos com forte poder econômico, o que pode
que lhe permitisse o acesso à Justiça. esclarecer as motivações para não implementação da Defensoria, visto
Nessa esteira, Celso Fernandes Campilongo estuda os fatores que que esta não se mostra como interesse de grupos de poder econômico.
influenciam nas decisões dos representantes políticos. No início de sua Ao contrário, seria capaz de instrumentalizar a população pobre e, com

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isso, afetar outros grupos com forte influência política, corroborando o Ambos acreditam que a Defensoria representa um Estado de Direito
trazido nas entrevistas. Ademais, não se mostra como interesse próprio do na medida em que se dispõe a buscar a concretização dos valores
representante, pois, como indicado pelos entrevistados, instrumentalizaria democráticos e da igualdade material. Há que se ressaltar que a atuação
ações judiciais contra o próprio poder público. em casos individuais também possibilita mudanças para a coletividade,
principalmente quando a Defensoria provoca o Supremo Tribunal Federal
Para além disto, se faz necessário apontar que a questão orçamentária,
em casos de repercussão geral. Ainda assim, admitindo que a Defensoria
trazida por um dos entrevistados, pode ser tida como um fator fora do
tende a se limitar à tutela dos direitos individuais, defense-se aqui também
campo de análise dos eleitores que impediria a efetiva avaliação da
sua atuação em conjunto com movimentos sociais.
qualidade das ações dos representantes. Tal questão aparece na teoria
política como uma condicionante que barra a avaliação política condizente A terceira pergunta, por sua vez, tinha por intuito saber se os
com as possibilidades. É o que se observa na seguinte passagem: “os entrevistados concordavam, e em qual medida, com a proposição exposta
eleitores não sabem tudo que precisariam saber, tanto para decidir neste trabalho de que a falta de Defensoria Pública no Paraná demonstrava
prospectivamente o que os políticos deveriam fazer, quanto para julgar uma falha na representação política. Apenas um dos entrevistados afirmou
retrospectivamente se eles fizeram o que deveriam ter feito” (MANIN; que não acreditava que a representação política poderia ser medida desta
PRZEWORSKI; STOKES, 2006, p. 106). forma. Pode-se compreender de seu posicionamento que a justificativa
de falta de orçamento suficiente, em sua opinião, é plausível: “Então a
Dessa forma, a justificativa da falta de orçamento poderia ser a razão
estrutura da Defensoria Pública é uma estrutura tão cara quanto à do
preponderante para o atraso na criação da Defensoria Pública do Paraná
Ministério Público e do Poder Judiciário […] E isso, no longo prazo, acaba
nos moldes constitucionais. Entretanto, como se passará a expor adiante,
inviabilizando o Estado” (SOUZA FILHO, 2013). Ou seja, a ausência do órgão
entende-se que a própria decisão orçamentária apresenta interesses
pode parecer uma falha para aqueles que não enxergam determinantes
conflitantes.
aparentes apenas para aqueles que conhecem o interior da administração
A segunda questão buscava compreender o papel da Defensoria pública.
Pública para a construção de um Estado de Direito, com intuito de aferir
Com a devida licença, há que se contrapor a isto, posto que a destinação
a relevância de sua institucionalização dentro do ordenamento jurídico.
de orçamento é também uma decisão política. O artigo 134, §2º da
Para 4 entrevistados a existência de Defensoria representa o Estado de
Constituição da República determina que a Defensoria tem iniciativa de
Direito devido funções atribuídas a ela pela Constituição de 1988, que
sua proposta orçamentária. Esta proposta, conforme artigo 8º da Lei
se traduz na persecução eminentemente jurídica de cada indivíduo
Complementar Estadual 136/11, deverá passar tanto pelo Executivo,
que procura assistência do órgão, seja buscando efetivação de direitos
quanto Legislativo para ser consolidada. Neste momento se expressa o
individuais, seja garantia dos “direitos sociais de cidadania” para todos
interesse político.
(SANTANA, 2013), como destacou outro entrevistado.
O III Diagnóstico Defensoria Pública no Brasil (Ministério da Justiça,
Para outra entrevistada a relevância da Defensoria está na atuação pela
2009, p. 86) traz a média do orçamento destinado ao Poder Judiciário, ao
busca da justiça social, pela melhor distribuição dos recursos patrimoniais,
Ministério Público e à Defensoria em todo o Brasil:
culturais e de poder, afim de caminhar no sentido da concretização do
Estado Democrático de Direito. Com relação ao orçamento executado pelo Poder Judiciário, Ministério
Em contraposição, outro entrevistado destacou que, tendo em vista a Público e Defensoria Pública das unidades da Federação no que diz
respeito ao orçamento total do estado, observou-se que em média o
atuação predominante da Defensoria na defesa de direitos individuais, Poder Judiciário dos Estados absorve 5,34% dos gastos totais do estado,
sua implementação não simboliza o Estado de Direito, acreditando que enquanto que o orçamento do Ministério Público foi de 2,02% do
para se alcançar efetivamente tal ideal são necessárias reformas no Poder orçamento do Estado e o da Defensoria Pública foi em média de 0,40% do
Judiciário e no Ministério Público. total de gastos pelas unidades da Federação.

Há que se colocar que a posição defendida pelos dois últimos Mais uma vez se observa a pouca importância dada à defesa e
entrevistados citados coincidem, apesar de parecerem contraditórias. orientação jurídica às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.

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Disto deriva a diferença de alcance destas instituições em todo o Brasil. 131), retomando o conceito de Joseph Schumpeter. A competição entre
O Mapa da Defensoria Pública no Brasil, elaborado pela Associação as elites seria satisfatória para a conquista da Democracia, uma vez
Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP, em parceria com o Instituto que elites autônomas entre si e perante o Estado podem competir pelo
de Pesquisa Econômica e Aplicada – IPEA, publicado em 13 de maio de poder político, evitando o despotismo. Ademais, em oposição ao que se
2013, se referindo a todas as Comarcas brasileiras, aponta que pretende defender neste trabalho, para esta corrente

Na maioria delas (72%), contudo, a população conta apenas com o estado- a maior ameaça à democracia não vem das elites, mas, ao contrário, da
juiz, o estado-acusação/fiscal da lei, mas não conta com o estado-defensor, presença das massas na política. Há, entre os pluralistas, um grande temor
que promove a defesa dos interesses jurídicos da grande maioria da em relação ao que avaliam ser o caráter autoritário do homem “médio”.
população, que não pode contratar um advogado particular. (IPEA; ANDEP, Por essa razão, avaliam ser melhor para a continuidade da democracia
2013) a existência de certa apatia da imensa maioria do que seu engajamento
direto na vida política. (PERISSINOTO, 2009, p. 129 e 130)
A prioridade, portanto, se mostra em acusar e julgar, mas não em
defender. Dentre as críticas a esta teoria, destaca-se o exposto por Campilongo:
esse realismo não se mostra interessado em avaliar as razões da apatia e
Os demais entrevistados concordam com a falta de representatividade incapacidade dos eleitores diante das questões políticas nem examina por
popular nas decisões políticas. O maior destaque se dá para o apontamento que os sistemas partidários são de escassa representatividade.
feito por uma das entrevistadas que aponta que a ausência de Defensoria O argumento da “apatia das massas” […] não verifica que um sistema político
se deve em razão da política elitista paranaense e do desinteresse dos que prima pelo disfarce das questões e pela ausência de responsabilidade
grupos dominantes em concretizar este direito (SÁ, 2013). Mostra-se dos representantes para com os representados desestimula a participação
popular. A apatia dos eleitores chega a ser vista como benéfica à
imprescindível neste ponto atenção às teorias elitistas e pluralistas que estabilidade política, e, por isso, é discretamente estimulada pelo sistema.
analisam o fenômeno de participação política, bem como as críticas feitas Além disso, as demandas das classes socioeconômicas dotadas de maior
a elas. capacidade de agregação de interesses, organização e conflito são sempre
mais efetivas – o que deságua na apatia dos setores circunstancialmente
Primeiramente, partindo do mesmo pressuposto de Robert Dahl, privados dessa capacidade. O “realismo” dessas posturas repousa na
entende-se “que uma característica-chave da democracia é a contínua hipótese inverificável de que as capacidades políticas de pessoa mediana
responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados numa sociedade de mercado são um dado fixado, ou, pelo menos, com
pouca probabilidade de mudar em nossa época. (CAMPILONGO, 1988, p.
como politicamente iguais” (DAHL, 2012, p. 25). Assim, a Democracia
20 e 21)
deve garantir que os interesses dos cidadãos estejam representados nas
À vista disso, pode se compreender que o autor assume a existência
decisões políticas.
de elites políticas que dominam os demais, impondo seus interesses. De
Porém, quando Dahl evolui do dever ser da Democracia, para a análise outra feita, questiona esta teoria como realidade intrínseca e imutável,
de seu real desenvolvimento, passa a considerar que apenas algumas apontando sua falha em não levar em consideração a conjuntura que leva
minorias exercitam efetivamente o poder político, garantindo a persecução à apatia das massas. Ou seja, Campilongo não apenas não acredita que as
de seus interesses. O autor é adepto da teoria do elitismo democrático, ou massas devam ser deixadas de fora, mas percebe que seus interesses não
pluralismo elitista, a qual possui como traço essencial estão na pauta política e que isto desestimula sua participação. Considera
o autor, ademais, as consequências dessa “apatia” no ordenamento
a crença de que é possível aceitar a tese fundamental do elitismo clássico, jurídico, quando afirma que “sendo as instituições representativas os
segundo a qual são as minorias que comandam a vida política, e conjugá-
mecanismos do sistema político mais vinculados à produção de lei, é
la com a defesa da democracia, desde que esse sistema político seja
entendido de uma maneira específica. (PERISSINOTO, 2009, p. 129) natural que a crise da representação tenha reflexos no ordenamento
jurídico” (CAMPILONGO, 1988, p. 55).
Para o autor é possível defender a Democracia, admitindo a existência
Ainda sobre as desigualdades de participação no processo democrático,
de elites, desde que se compreenda que a Democracia se resume a “um
tem-se marcante construção do escrito argentino Atilio A. Boron que
regime de eleições livres e competitivas, no qual diversas elites competem
afirma a desigualdade social como limitador da Democracia
entre si para conquistar o voto dos governados” (PERISSINOTO, 2009, p.

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quando os pobres se transformam em indigentes e os ricos em magnatas, Uma das entrevistadas trouxe outra contribuição ressaltando que
sucumbem a liberdade e a democracia. A primeira não pode sobreviver “nós, infelizmente, vivemos em um país em que talvez nós não tenhamos
ali onde uns estejam dispostos a vendê-la “por um prato de lentilhas” e consciência das possibilidades de representação” (SÁ, 2013). De sua fala
outros disponham da riqueza suficiente para comprá-la a seu bel-prazer.
(BORON, 2002, p. 13)
retira-se a falta de conhecimento por parte da população de seus direitos
e dos espaços onde reivindicá-los.
A quarta pergunta visa informações acerca de outra característica A respeito disso é importante destacar a informação qualificada como
da Democracia liberal. Em vistas da compreensão de Democracia como um dos pressupostos da Democracia. Apenas pelo conhecimento trazido
procedimento eleitoral para autorização do governante, o acesso a foros através da informação para todos é que se pode concretizar a igualdade
de representação (mandatos, coalizões, conselhos, espaços públicos na participação política e, portanto, a existência de Democracia.
de manifestação) se mostra limitado. O que se pretendia era saber Entendimento este corroborado por Fernando Whitaker da Cunha no
quanto essas limitações afetam o exercício dos direitos fundamentais, seguinte trecho:
pressupondo a Defensoria como parte destes.
Neste ponto, todos os entrevistados concordam que o limite de acesso Temos eleição, mas não possuímos representação, pelo fato dessa última
prejudica o exercício de direitos fundamentais na medida que: limitam as não refletir, efetivamente, a consciência política do povo, pela fragilidade
do binômio votante-votado, num meio inculto e despreparado, para o
garantias constitucionais e trazem a impossibilidade de apresentação de necessário diálogo entre cidadão e o candidato, que combata as oligarquias,
demandas por pessoas e movimentos sociais (VENERI, 2013); impedem mas que estimule a criação de classes dirigentes desenvolvimentistas,
o acesso aos direitos sociais (GOMES, 2013); os direitos coletivos não das “elites funcionais” (Hélio Jaguaribe), devidamente preparadas, no
conseguem ser efetivamente tutelados pelo judiciário e dependem povo politizado. “Educar é Governar” já observava o prodigioso Rodolfo
Rivarola. (CUNHA, 1981, p. 48)
da cobrança direta aos responsáveis e os movimentos sociais são
criminalizados quando na busca pelo reconhecimento de suas demandas Por fim, acerca da capacidade da Defensoria de garantir direitos
(SOUZA FILHO, 2013). fundamentais apontaram os entrevistados que ela seria capaz tendo em
Ainda levantou-se fatores relativos aos Conselhos, como os vícios vista que defende os mais pobres dos pobres, esquecidos por juristas e
de representatividade internos e nas disputas eleitorais, o não pelos poderes constituídos (VENERI, 2013); bem como por incluir os 98%
reconhecimento de seu poder normativo, a estrutura, gestão e orçamento dos presos do Estado que não possuem condições de contratar advogados.
a ele destinado, bem como o despreparo observado nos conselheiros e a Em contrapartida, um dos entrevistados ressaltou que a Defensoria
desorganização da sociedade civil, na afirmação de que sozinha não é capaz de alterar o quadro de desrespeito aos direitos
fundamentais, isto só será possível, em sua opinião, por meio de
mesmo os conselhos às vezes não tem maturidade também para mobilizações populares que busquem a qualificação da justiça e a
compreender não apenas a importância dos Conselhos Estaduais, mas
dos Conselhos Municipais, da criação dos fundos, do manejo dos recursos verdadeira democracia (SANTANA, 2013).
públicos, do controle do orçamento público, discussões de orçamento Outros dois entrevistados condicionam a superação dos limites no
participativo, como controlar a execução do orçamento. Todo esse
contexto de participação popular que se dá através dos conselhos e de exercício dos direitos fundamentais à compreensão pela Defensoria de
diversas outras formas, quando a sociedade não está bem organizada, uma função específica. De acordo com um deles:
não se movimenta adequadamente no sentido da construção de políticas
públicas, então a gente percebe essa situação. (GOMES, 2013) Eu vejo a Defensoria sempre como a grande articuladora dos direitos
individuais. Ela pode atuar nos direitos coletivos, ela tem competência
Portanto, mesmo a abertura existente no Executivo, muitas vezes se para fazer isso, mas depende muito da vontade estrutural do órgão; e,
mostra sem estrutura adequada da situação de modo a tornar aquela mais ainda, do defensor. […] Então, no fundo a Defensoria acaba sendo
instância capaz de agir em sua plenitude. Ressalta-se, por outro lado, uma ponte de chegada da cidadania nas esferas judiciais. Sem garantir
que as esferas judiciais funcionem efetivamente – porque elas podem dar
a total ausência de instâncias de participação popular no Legislativo decisões contrárias – e sem que esse acesso chegue em última instância a
(GODOY, 2013). resolver o problema. […] Então o sistema judicial brasileiro não comporta
muito bem, não é feito para resolver os problemas dos pobres. Ele é feito

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para resolver os problemas dos ricos. Ele é estruturalmente para as classes Conclusão
dominantes. Então a Defensoria é um paliativo, mas ainda não é uma
solução. A solução, a meu ver, passa além da criação de uma Defensoria, Apoiando-se nos teóricos políticos apresentados e nas entrevistas
da reestruturação do sistema judiciário como um todo, e a reestruturação realizadas, percebeu-se o consenso quanto a existência de falha de
do Ministério Público, obviamente. (SOUZA FILHO, 2013) representação dos interesses dos governados pelos governantes,
mormente dos interesses da população de baixa renda, confirmando a
Para este entrevistado, portanto, a Defensoria só será capaz de alterar a
afirmação primeira trazida no presente trabalho.
realidade de coisas se o Judiciário e o Ministério Público forem repensados
para incluir também em suas atuações os interesses das camadas Nessa esteira, a demora na implementação da Defensoria Pública
socialmente excluídas, acima de tudo, se a Defensoria atuar na defesa do Paraná se deve, pelo que se pode extrair do exposto, à busca dos
dos interesses coletivos. Seu posicionamento se baseia na interessante representantes políticos em alcançar vantagens para eles próprios ou
compreensão de que as demandas que exigem reparação de violação aos grupos que os financiam. A ausência do órgão ainda se mostra como
perpetrada pelo Estado e a exigência de respeito a direito individual interesse privado não apenas dos representantes políticos, como dos
não produzem a alteração nas atividades reiteradas de desrespeito a demais órgãos envolvidos no sistema de justiça, conforme trazido em
coletividade. Somente pela demanda coletiva, poderia a Defensoria ser uma das entrevistas que apontou a pouca intervenção por parte do Poder
considerada como um avanço para o alcance do Estado Democrático. Judiciário, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil
neste processo.
Enfim, outro posicionamento parte do pressuposto de que a Defensoria
Pública compreende seu papel enquanto defensora dos direitos coletivos Ressalta-se a contribuição de um dos entrevistados no sentido de
em conjunto com movimentos sociais e que, dessa forma, sua atuação que o desconhecimento por parte tanto de representantes, como de
evidenciará ainda mais a crise da representação política. representados da necessidade de criação da Defensoria Pública teria
influenciado tão longa espera. Uma das entrevistadas corrobora esta
Mais do que isto, este entrevistado, que atuou intensamente nos
afirmação colocando que a população, desconhecendo seus direitos, não
procedimentos participativos da elaboração do anteprojeto de lei, aponta
se mobiliza e, assim, não cobra daquele representante, eleito por meio
que a população pode participar das decisões políticas.
de seu voto, a institucionalização de tal órgão essencial ao exercício da
cidadania. Nessa mesma medida, investir na Defensoria não aparece
Então a Defensoria Pública é uma prova viva de que é possível você
estabelecer uma política pública de forma ampla, plural, democrática, com para o governante como possível fonte de capital político, prolongando o
participação popular, com participação daquele potencialmente afetados descumprimento do mandamento constitucional.
por aquela política, que, no caso, era a criação da Defensoria.[...] Por isso,
cai por terra esse argumento elitista de que pessoas pobres, sem instrução Tem-se aqui a imprescindibilidade da informação e educação de
não podem participar da vida pública, da criação de políticas públicas, por qualidade para a existência de uma Democracia real, como descrito por
mais técnicas que elas sejam, como é criação, a estruturação de um órgão Cunha e Dahl.
como a Defensoria Pública. (GODOY, 2013)
A questão mais relevante dentre todas, para esta análise, está na
Ou seja, para ele o próprio processo de criação da Lei Orgânica da compreensão exposta por Campilongo que, reconhecendo as noções
Defensoria demonstra que é possível se fazer política pública com elitistas e pluralistas da política, enfatiza que a detenção do poder político
participação popular, inclusive daqueles potencialmente atingidos, vez por uma minoria não pode ser entendida como fato imutável, mas como
que todos tem condições de contribuir para a construção do Estado. decorrente da imensa desigualdade social e do reiterado atendimento
Relata a contribuição que diversas mulheres presentes em uma audiência aos interesses daqueles com maior poder econômico, em detrimento do
pública tiveram para a identificação de uma demanda reprimida, que se restante da sociedade.
apresentava como verdadeiro gargalo do sistema judiciário: a necessidade
Campilongo aponta que as teorias pluralistas e elitistas se furtam à
de criação de um Núcleo para realização de investigação de paternidade.
análise das razões por detrás da apatia das massas. Estas teorias inclusive
exaltam a apatia como necessária para o melhor funcionamento do sistema
político. Entretanto, para o autor, é exatamente a falta de persecução dos

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BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE Ana Zaiczuk Raggio
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

interesses da população de baixa renda, em especial, que desestimula a IPEA. ANADEP. Mapa da Defensoria no Brasil. Brasília: 2013. Disponível em: <http://www.
ipea. gov.br/sites/mapadefensoria/defensoresnosestados> Acesso em: 30 mar. 2013.
participação deste segmento nas decisões políticas. Afora isto, coloca que
a desigualdade de poder é característica das Democracias em sociedades MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C. Eleições e representação. Lua
marcadas pela intensa desigualdade social. Nova, São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006.
MIOSÉS, José Álvaro. Os brasileiros e a democracia – bases sócio-políticas da legitimidade
Por fim, destaca-se que a dificuldade de acesso aos espaços de tomada democrática. São Paulo: Ática, 1995.
de decisão impede a cobrança por parte daqueles conscientes de seus
PEREIRA, Marcus Abílio; CARVALHO, Ernani. Boaventura de Sousa Santos: por uma nova
direitos. A Democracia predominantemente indireta deixa o cidadão à gramática do político e do social. Lua Nova, São Paulo, n 73, p. 45-58, 2008.
mercê da vontade de seu representante político, não lhe sendo permitida
a intervenção direta nas construções de interesse coletivo. PERISSINOTO, Renato. As elites políticas: questões de teoria e método. Curitiba: Ibpex,
2009.
Conclui-se, portanto, pela necessidade de abertura da Democracia, ROUSSEAU, Jena-Jacques. O Contrato Social: princípios de direito político. Tradução de
complementando-se a representação com a participação direta do povo, Antônio P. Machado. 19. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
consagrando o princípio basilar de todo o ordenamento jurídico criado SÁ, Priscilla Placha. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio. Curitiba, 20 mar. 2013.
pela Constituição da República de 1988, qual seja a soberania popular.
SANTANA. Carlos Enrique. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio. Curitiba, 1 abr. 2013.
Fica a missão de construir formas de compartilhar o poder normativo e
viabilizar maneiras para o exercício e fortalecimento do controle social de SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade.
mandatos políticos no Legislativo e Executivo. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio.
Curitiba, 25 mar. 2013.
Referências VENERI. Tadeu. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio. Curitiba, 27 mar. 2013.
ANADEP. Governador do Paraná dá posse aos 10 primeiros Defensores Públicos. DF: 2011.
Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=12793> Acesso em:
13 abr. 2013.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa (por um Direito
Constitucional de luta e resistência; por uma Nova Hermenêutica; por uma repolitização
da legitimidade). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Tradução de Emir
Sader. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Representação política. São Paulo: Ática, 1988.
CUNHA, Fernando Whitaker da. Representação política e poder. 2. ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1981.
DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik.
1. ed. 2. reimpr. São paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
FIELD, G. C. Teoria Política. Rio de Laneiro: Zahar Editôres, 1959.
GODOY, Miguel Gualano de. Entrevista concedida a Ana Zaiczuk Raggio. Curitiba, 21 mar.
2013.
________. Lei orgânica da Defensoria Pública do Estado do Paraná anotada: lei
complementar estadual 136, de 19 de maio de 2011. Curitiba: Juruá, 2012.
IBGE. Censo 2010. 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/censo2010/caracteristicas_ da_populacao/caracteristicas_da_populacao_tab_
pdf.shtm> Acesso em: 13 mar. 2013.

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BREVE ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FACE
À IMPLEMENTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO PARANÁ

190
André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

A questão penitenciária no Brasil e o Sistema


Interamericano de Direitos Humanos

André GIAMBERARDINO1
Gustavo Trento CHRISTOFFOLI2

1. Premissas
Ao julgar o caso Coleman v. Schwarzenegger, em 2009, um tribunal local
na Califórnia reafirmou a necessidade de redução na população carcerária
do Estado, mesmo que para tanto fosse preciso a soltura de boa parte dos
presos do local. Isso para fazer viável a manutenção de condições mínimas
de saúde aos reclusos, nos termos exigidos constitucionalmente. Há,
evidentemente, um contexto maior e profundamente controverso: de um
lado, diversos juízes passaram efetivamente a expedir alvarás de soltura
diante da superlotação carcerária; de outro, o Congresso norte-americano
buscou limitar e restringir tal postura com a Prison Litigation Reform Act,
de 1995, lei elaborada com o objetivo explícito de evitar ordens de soltura
a não ser como “remedy of last resort” 3.
A questão central girava em torno da violação da Oitava Emenda
da Constituição norte-americana, que proíbe “cruel and unusual
punishments”. Também a Constituição da República Federativa do Brasil,
de 1988, veda “penas cruéis” (art. 5º, XLVII, “e”, CF), mas não se tem
conhecimento de um amplo e efetivo debate sobre a responsabilidade e o
papel de cada Poder – especialmente do Poder Judiciário – e da sociedade
civil em relação à questão carcerária, ao menos não nos termos claramente
colocados pelos norte-americanos: não configuraria a superlotação
carcerária, afinal de contas, constrangimento ilegal apto a fundamentar
juridicamente a soltura independentemente dos fundamentos da decisão
de decretação da prisão?
O objetivo do presente texto é levantar alguns aspectos sobre a relação
entre o discurso dos “direitos humanos” e a questão penitenciária. É
necessário, preliminarmente, situar o próprio tema em suas características
tipicamente modernas: mesmo já se tendo falado em direitos humanos
em contextos históricos mais distantes4, certamente não se o fez como

1 Defensor Público, Professor da UFPR e Universidade Positivo; Doutorando em Direito pela UFPR.
2 Graduado em Direito .
3 Coleman v. Schwarzenegger e também Plata v. Schwarzenegger; sobre, v. “Recent Cases” in Harvard Law
Review, vol. 123, 2010, p. 752-759.
4 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 13 e ss.

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A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

hoje, por ao menos duas razões: primeiramente, por conta da matriz – encontra imensos obstáculos. Teresa Caldeira se ocupou, como poucos,
racionalista moderna toda construída em torno à noção de indivíduo e da questão de como é que se chegou à massiva oposição popular à ideia
sujeito. Em segundo lugar, considerando como o traço distintivo dos direitos de “direitos humanos” enquanto associada a “direitos de bandidos”.
humanos contemporâneos – ao lado de seu caráter de essencialidade – a Segundo a autora, é preciso notar o processo de diferenciação do
sua positivação internacional5. Este, o reconhecimento internacional em debate entre os direitos dos presos políticos e os direitos dos presos
instrumentos que produzem obrigações jurídicas aos Estados-parte, é o “comuns”. Caldeira observou descritivamente as principais distinções
ponto de partida a ser situado ao lado da Constituição e acima da legislação entre ambos7, a saber: (a) no caso dos presos políticos, a reivindicação
ordinária. A noção de direitos é considerada recente e fundante também sempre visava atingir a terceiros, afirmando identidades e obtendo
no processo de redemocratização brasileira, com diferentes significados, legitimação social com maior facilidade; (b) a atenção aos direitos dos
especialmente através dos movimentos sociais populares dos anos 70 e presos comuns se tornou pauta de políticas governamentais antes que
80, vinculando o conceito a reivindicações de natureza coletiva6. Falar em houvesse um movimento de reivindicação pelos próprios atingidos; (c) a
direitos dos presos, de forma específica, remete a um discurso também lógica tradicional da defesa de direitos dos presos comuns é aquela dos
recente e pertencente àquela dimensão própria do pós-guerra, que não direitos eminentemente individuais, e não sociais ou coletivos, como
apenas afirmava a liberdade ou a autonomia do sujeito, como vinha-se em outros movimentos sociais. Este último ponto foi particularmente
fazendo desde o iluminismo, mas passava a reconhecer direitos sindicáveis manipulado pela “direita política”, fortemente presente nos setores
judicialmente em dimensões até então descritas e previstas como espaços ligados à segurança pública e à administração penitenciária, no sentido
“livres” da intervenção do Poder Judiciário. A execução da pena privativa de associar o debate à ideia de “privilégios” ou “regalias”, que seriam
de liberdade, em palavras mais claras, era tratada explicitamente como o concedidos em detrimento da atenção às vítimas de crime:
lugar do arbítrio e do poder absoluto da autoridade administrativa sobre o
recluso, inserto em uma especial relação de sujeição antipática à oposição O problema é que, além de a população não ver com maus olhos o uso
de direitos individuais. da força contra ‘bandidos’, os estereótipos disponíveis na sociedade
brasileira contra os criminosos consideram-nos no limite não só da
Seja através das teorias da “supremacia especial” ou da versão sociedade, como também da humanidade. E, na verdade, no processo de
norte-americana das hands-off, a primeira consequência da adoção de contestação aos direitos humanos parece que esses estereótipos foram
perspectivas como essa no âmbito da execução penal é a subtração da cada vez se tornando mais radicais. A imagem dos criminosos foi mais do
que enfatizada. Eles foram pintados com as cores fortes do preconceito,
administração penitenciária a qualquer tutela jurídica, “não se valorando”
da discriminação social e do desvio como estando nas bordas tanto da
as condições materiais de encarceramento e, principalmente, a produção sociedade quanto da humanidade.8
de normas administrativas internas segundo qualquer modalidade de
controle ou limite e, até mesmo, a garantias constitucionais. Não há, obviamente, qualquer relação de prejudicialidade entre o
respeito a um ser humano enquanto ser humano – especialmente se
Diante de tal quadro, e considerando a redemocratização do país
sob a custódia e dependência material do Estado – e as demais políticas
somente em meados do século XX, não é difícil compreender os passos
públicas voltadas a toda a coletividade. A natureza grosseira desse tipo
lentos no exercício do direito de acesso ao Judiciário e aos mecanismos
de argumentação não impede, porém, sua ampla difusão, justamente
internacionais de proteção no que tange à questão penitenciária. Já é
porque, como nota Caldeira, trata-se de um processo de desumanização
hora, porém, de se acelerar os passos: não faltam ilegalidades e a cada
potencializado pelo sistema formal de justiça criminal e que poderia ser
dia transparece com mais intensidade o desconforto de “tudo” se resolver
comparado ao processo de produção de indiferença moral perante o
em “pedidos de providências” entre os Poderes com consequências
sofrimento alheio a que fez referência Hanna Arendt, quando analisou o
claramente insatisfatórias.
julgamento de Eichmann e o holocausto nazista9.
Por outro lado, para além do Estado, na própria sociedade civil, o
7 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
discurso dos direitos humanos – e sobremaneira quando se fala dos presos Novos Estudos, p. 167-8.
8 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
5 WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 23-25. Novos Estudos, p. 169.
6 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”. 9 Faz-se referência a texto anterior, publicado em novembro de 2007, cf. GIAMBERARDINO, André. “O medo
Novos Estudos, p. 163. não nos absolverá: resenha do filme Tropa de Elite”. Correio da Cidadania, nov. 2007, disponível em:http://www.
correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1106&Itemid=79: “ (...). A produção

192 193
A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

A judicialização desse tipo de política e o fortalecimento do acesso 4.463, de 8 de novembro de 2002, “sob reserva de reciprocidade e para
aos mecanismos internacionais de proteção, reconhecendo seus limites, fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998” (Art. 1º)12.
constituem, nesse sentido, uma atitude contramajoritária – certamente O exercício do direito de petição individual não se dá diretamente
impopular – de se construir uma cultura de paz e humanização dos à Corte, mas sim à Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
conflitos. diferentemente do modelo europeu13. Inobstante a recente modificação
no Regulamento da Corte, que passou a admitir que as vítimas ou
2. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos seus representantes – inclusive com Defensor Público14 – participem
diretamente na instrução do processo, é a Comissão que recebe denúncias
O Sistema Interamericano de Proteção é regido pela Carta da de violações aos direitos consagrados pelos instrumentos mencionados
Organização dos Estados Americanos (OEA) e composto pela Comissão (vide art. 27 do Regulamento da Comissão). Tais denúncias podem ser
Interamericana e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, apresentadas por qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não
doravante simplesmente Comissão e Corte. Ele se insere no Sistema governamental legalmente reconhecida em Estado-parte. Recebida
Global, ao lado de outros sistemas regionais tais como o Africano e o e processada a denúncia, caberá à Comissão, dentre outras medidas:
Europeu. Tem como referência os seguintes documentos10: Declaração a) fazer recomendações ao Estado-parte, expressas em Relatórios
Americana dos Direitos e Deveres do Homem; Convenção Americana contendo medidas reputadas necessárias à cessação/reparação das
sobre Direitos Humanos (‘’Pacto de San José da Costa Rica”); Protocolo condutas violadoras; b) solicitar ao Estado informações relativas às
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria medidas adotadas, que visem efetivar as disposições dos instrumentos
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de San Salvador”); e Convenções; e c) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral das
Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente Organizações dos Estados Americanos15.
à Abolição da Pena de Morte; Convenção Interamericana para Prevenir
e Punir a Tortura; Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento A referida petição, contendo a denúncia, somente será admitida pela
Forçado de Pessoas; e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Comissão se cumprir certos requisitos (art. 46 da CADH; art. 31 a 33 do
Erradicar a Violência contra a Mulher. Regulamento da Comissão), tais como: 1) esgotamento dos recursos
jurídicos internos disponíveis; 2) observação do prazo máximo de seis meses
A Corte exerce funções contenciosa e consultiva. Nos termos do art. a partir da notificação sobre o esgotamento dos mecanismos internos; e
62 e incisos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), 3) inexistência de litispendência internacional. É importante frisar que as
as atribuições consultivas tratam da resolução de dúvidas quanto à disposições do primeiro e segundo requisitos não se aplicarão quando a
interpretação das disposições da Convenção Americana e/ou outros legislação interna do país envolvido não garantir o devido processo legal,
diplomas normativos, e independem até mesmo de ratificação da mesma ou quando houver demora injustificada do julgamento. Este é o teor do
pelos Estados-membros, podendo decorrer de pedidos formulados por próprio art. 31.2 do Regulamento da Comissão e da Opinião Consultiva n.
quaisquer Estados-parte ou órgãos da OEA11. Já a função contenciosa 11/90, de 10 de agosto de 1990, da Corte: se pessoa “indigente” tiver seus
resta condicionada ao reconhecimento expresso e formal da jurisdição direitos violados e não puder, por qualquer motivo, esgotar os recursos
obrigatória da Corte, não bastando a simples ratificação. Note-se que o jurídicos internos; quando houver, no sistema judiciário de certo país,
Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte apenas com o Decreto grande temor/comoção social em relação à algum caso (e.g., quando
Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998, promulgado pelo Decreto n. advogados temem trabalhar em dada causa, com medo de represálias
social da indiferença, nos termos materializados há décadas na Alemanha nazista, não serve hoje como analogia
apenas aos agentes do Bope, mas a todos nós. Faz com que cidadãos modalidade ‘de bem’, porque trabalham, 12 A data de 10 de dezembro de 1998 foi a data de depósito da aceitação da competência obrigatória da Corte
amam sua família e têm medo da violência, aceitem o desprezo por todas as conquistas e garantias individuais de junto à Secretaria-geral da OEA.
outros “não pessoas”, bandidos, sem se darem conta, assim como Eichmann, de estarem sendo co-responsáveis 13 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 384-385.
por um novo holocausto. (...). E não pensemos, quando a situação for definitivamente insuportável, com as balas 14 WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 159: “Em casos de supostas vítimas sem representação
perdidas da guerra deles entrando no quarto de cada um de nós, que o medo, então, nos absolverá”. legal devidamente credenciada, o Tribunal poderá designar de ofício um Defensor Interamericano que as represente
10Art. 23, Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.cidh. durante a tramitação do caso”, destacando o autor que desde 2010 vigora Acordo de Entendimento entre a Corte e
oas.org/basicos/portugues/u.Regulamento.CIDH.htm>. Acesso em: 09 de novembro de 2012. a AIDEF (Associação Interamericana de Defensores Públicos) prevendo que a AIDEF designará, nos casos de vítimas
11 Cf. WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos, p. 161; vide CADH, art. 62, §2º: “Todo Estado Parte hipossuficientes ou sem representação, um defensor público para atuar no caso. Sobre o tema, vale v. ainda o art.
pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em 8º, II, “e”, da CADH, um avanço em relação ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que prevê somente
qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, um defensor ex officio e gratuito (art. 14, 3, “d”, PIDCP), tudo cf. WEIS, Carlos. Idem, p. 141.
a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção.” 15 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 96

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A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

contra sua vida e/ou de familiares), a pessoa ou grupo de pessoas não 3. A questão penitenciária brasileira e exemplos de Relatórios da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos
precisará esgotar todos os recursos, sem prejuízo de o Estado garantir
condições mínimas para que a vítima possa manejá-los. Atualmente, se considerado o grau intenso de violação a direitos
fundamentais praticada no sistema penitenciário e, principalmente, nas
O caminho percorrido desde a apresentação da petição, até eventual
delegacias de polícia e cadeias públicas, no Brasil, pode-se considerar
Relatório, pode ser descrito resumidamente da seguinte forma: aquele
ainda muito tímido o exercício do direito de petição perante a Comissão
(ou seu representante legal) que tenha seus direitos violados apresenta a
Interamericana de Direitos Humanos19. Não há condenações do Estado
petição à Comissão; após, ter-se-á o juízo de admissibilidade, de acordo
brasileiro na Corte Interamericana relativas ao tema, mas sim quatro
com os requisitos dispostos no artigo 46 da Convenção Americana de
medidas provisórias – estas sim, todas atinentes à questão penitenciária
Direitos Humanos. Caso o reclamado prove a disponibilidade de recursos
ou à internação de adolescentes, abordadas adiante.
internos para o exercício de direito protegido pela Convenção, o ônus da
prova é transferido ao reclamante que deverá, então, demonstrar se as Já no âmbito da Comissão, há diversos Relatórios que tangenciam ou
exceções são aplicáveis. Caso reconhecida a admissibilidade da petição, tratam diretamente da questão penitenciária. Mencionam-se, aqui, dois
estabelece-se o contraditório e a ampla defesa do Estado-parte16, tendo exemplos. Ovelário Tames20, primeiramente, cidadão de origem indígena,
sempre em vista a possibilidade de solução amistosa entre o denunciante foi detido por policiais civis do Estado de Roraima e encontrado morto, no
e o denunciado. Havendo solução amistosa, a Comissão elaborará dia seguinte, dentro de sua cela, no município de Normandia, situado a
um informe contendo breve exposição dos fatos e do acordo a que se aproximadamente 200 km de Boa Vista. Consta que Ovelário permaneceu
chegou. Se não houver acordo, sobrevirá o Relatório (que é mandatório), durante grande parte da noite queixando-se fortemente de dores na
apresentando, também, os fatos, as alegações das partes, e as conclusões barriga, sem qualquer tipo de assistência por parte das autoridades, vindo
pertinentes ao caso, bem como recomendações a serem cumpridas pelo a falecer nas horas seguintes. O inquérito policial aberto para investigar
Estado-parte. o caso mostra que o soldado que prendeu Ovelário o agrediu na região
do abdômen porque teria resistido à ordem de prisão. Além disso,
Posteriormente, se a Comissão considerar que as recomendações
testemunhas confirmam que a vítima estava em condições deploráveis
não foram acatadas, irá submeter o caso à Corte Interamericana de
quando adentrou a cela: “que estava agonizando (...)”, e, posteriormente
Direitos Humanos ou publicar o Relatório com o objetivo de produzir
que “o cadáver apresentava sinais evidentes de violência no abdômen,
censura enquanto produção de “vergonha” para o Estado-parte perante a
com manchas violentas (...)”21.
comunidade internacional. A Comissão tem, ainda, conforme o art. 25 de
seu Regulamento, o poder de solicitar ao Estado-parte que adote medidas A Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu, assim,
cautelares com o objetivo de evitar lesões irreparáveis aos direitos dos que o Estado Brasileiro foi responsável22 por uma série de violações a
peticionários. A iniciativa pode ser tanto do reclamante quanto da própria direitos estabelecidos na Convenção Americana, fazendo as seguintes
Comissão, a depender da gravidade, urgência e contexto da situação17. recomendações: 1) realização de investigação séria, imparcial e eficaz
dos fatos e circunstâncias que levaram à morte de Ovelário Tames, com
O destino final da lide, caso não haja solução no âmbito da Comissão,
a identificação dos responsáveis; 2) que tal investigação incluísse as
é, enfim, a Corte Interamericana no exercício de sua função contenciosa.
possíveis omissões, negligências e obstruções da Justiça, que tiveram como
Eventual condenação do Estado-parte pela Corte Interamericana,
consequência a inexistência de condenação definitiva dos responsáveis e,
reconhecendo a violação de direitos, e, possivelmente, uma indenização
inclusive, as possíveis negligências do Ministério Público e de juízes que
compensatória, têm caráter vinculante e obrigatório: não se trata de
possam ter determinado a não aplicação ou redução da pena; 3) que se
“sentença estrangeira”, não necessitando, assim, de homologação por
tomassem as medidas necessárias para concluir os processos judiciais
Tribunal Superior, podendo ser executada diretamente segundo as normas
vigentes no Estado-parte18. 19 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal, p. 175 e ss.
20 Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de nº 60/99, de 13 de abril de 1999.
21 Disponível em: <http://www.cidh.org/annualrep/98span/fondo/brasil%2011.516.htm>. Acesso em: 10 de
novembro de 2012
16 Sobre o tema, v. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. Rio de Janeiro:
22 Sobre uma das ações tomadas pelo Estado Brasileiro referentes ao caso, ver: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/pfdc/
Renovar, 2002.
informacao-e-comunicacao/informativos-pfdc/edicoes-de-2006/fevereiro/anexo_inf-21-2006_1.pdf>. Acesso em:
17 Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/reglamento.cfm>. Acesso em: 10 de novembro de 2012.
10 de novembro de 2012.
18 Sobre, v. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 104.

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A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

e administrativos ainda em andamento referentes ao caso; 4) que o O Presídio Urso Branco (Casa de Detenção Dr. José Mário Alves)
Estado Brasileiro reparasse as consequências das violações aos direitos é um grande estabelecimento prisional, que se tornou símbolo das
dos familiares ou quem quer que seja que tenha(m) sofrido prejuízos em más condições carcerárias e da impossibilidade de falar, ou de cogitar
decorrência dos fatos. qualquer projeto que pretendesse ser minimamente “ressocializador” ou
socialmente inclusivo. Consta, por exemplo, que ao menos 37 detentos
Outro caso também emblemático ficou conhecido como “Massacre do
foram assassinados, de forma sistemática, por outros detentos, entre
Carandiru”, ocasião em que 111 presos (dos quais 84 processados, mas
janeiro e julho do ano de 200223. Foram reunidos relatos de inúmeros
ainda não definitivamente condenados) foram mortos, e os sobreviventes,
outros episódios carregados de extrema violência, tais como motins
submetidos a lesões graves, durante desastrosa intervenção com o
seguidos de torturas e esquartejamentos24. Diante disso, desde o ano de
objetivo de conter um motim de detentos. Até o presente momento, já
2002 até agosto de 2011, foram emitidas, no total, dez resoluções por
tendo o incidente completado vinte anos, nenhum dos agentes policiais
parte da Corte, documentos esses que contém as medidas provisórias
envolvidos foi responsabilizado. Acerca do episódio, a Comissão elaborou
oponíveis ao Estado Brasileiro.
o parecer de nº 34, de 13 de abril de 2000. As recomendações foram de
que o Estado Brasileiro: 1) realizasse uma investigação completa, imparcial O trâmite referente a este caso se deu da seguinte maneira: a Comissão
e efetiva a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários Interamericana, constatando a situação de verdadeira calamidade que
responsáveis pelas violações dos direitos humanos; 2) adotasse as medidas acometia o presídio, submeteu à Corte uma solicitação de medidas
necessárias para que as vítimas dessas violações que foram identificadas provisórias em favor dos reclusos. Dentre as medidas tomadas e tidas
e suas famílias recebam adequada indenização pelas violações, assim como as mais relevantes estavam: 1) requerimento ao Estado para que
como para que sejam identificadas as demais vítimas; 3) desenvolvesse adotasse todas as medidas necessárias para proteger a vida e integridade
políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das pessoal de todas as pessoas reclusas na Penitenciária Urso Branco; 2)
casas de detenção, estabelecendo programas de reabilitação e reinserção requerimento ao Estado para que investigasse os acontecimentos que
social de acordo com as normas nacionais e internacionais. A orientação, motivaram a adoção destas medidas provisórias, com o objetivo de
bastante óbvia, foi pela adoção de políticas, estratégias e treinamento identificar os responsáveis e impor-lhes as sanções correspondentes;
especial orientados à negociação e à solução pacífica de conflitos, assim 3) requerimento para que o Estado informasse, de dois em dois meses,
como técnicas de reinstauração da ordem que permitissem a subjugação sobre as medidas adotadas; e 4) indicasse o número e nome dos reclusos
de eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a integridade que se encontravam cumprindo pena e dos detentos sem sentença
pessoal dos internos e das forças policiais. condenatória e que, ademais, informasse se os reclusos condenados e os
não condenados se encontravam localizados em diferentes seções.

4. A questão penitenciária brasileira e as Medidas Provisórias Além dos diversos relatórios reiterando a adoção e cumprimento das
medidas acima citadas, audiências públicas foram convocadas para que
impostas pela Corte Interamericana
a Comissão, peticionários (ONG’s), e o Estado Brasileiro pudessem ser
Observa-se, preliminarmente, que as decisões ou medidas cautelares ouvidos. Na data de 24 de agosto de 2011, o “Pacto para Melhoria do
da Corte ou da Comissão Interamericana, meras recomendações, não se Sistema Prisional do Estado de Rondônia e Levantamento das Medidas
confundem com as medidas provisórias impostas pela Corte. Provisórias Outorgadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”
São apenas quatro casos nos quais a Corte adotou Medida Provisória foi assinado, na esperança de redução das violações e da violência na
em relação ao Brasil, sendo todos os quatro atinentes à questão unidade.
penitenciária: são aqueles do Presídio Urso Branco, em Rondônia; da O segundo caso, atualíssimo, envolve a Unidade de Internação
Unidade de Internação Socioeducativa, no Espírito Santo; da Penitenciária Socioeducativa (UIS), localizada em Cariacica, próximo a Vitória, Capital
Dr. Sebastião Martins Silveira, em São Paulo; e do Complexo do Tatuapé, do Espírito Santo, destinada a crianças e adolescentes. Um dos principais
antiga FEBEM, também em São Paulo.
23 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 18 de junho de 2002. Disponível em: <http://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_01_portugues.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2012.
24 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 22 de abril de 2004. Disponível em: <http://www.
corteidh.or.cr/docs/medidas/urso_se_03_portugues.pdf>. Acesso em 17 de novembro de 2012.

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A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

problemas do local é a superlotação, já que a capacidade nominal era reparos, cuja capacidade era, pasmem, para apenas 160 pessoas. Consta,
de 110 menores, mas abrigava, à época, cerca de 290. As denúncias ainda, que os agentes carcerários retiraram-se do local e soldaram a porta
tratavam, entre outros fatos, de adolescentes algemados que eram de acesso, isolando todos em pátio aberto. Os detentos, portanto, não
mantidos no pátio da Unidade; ausência de separação entre os internos dispunham de bens pessoais, de roupas adequadas, de colchões e de
por razão de idade, compleição física e gravidade da infração; e agressões energia elétrica, cortada pelo Estado para evitar a recarga de celulares. E
e tortura a adolescentes por parte de funcionários da UNIS e por outros foi nessa condição que permaneceram por mais de 10 dias. Diante de tal
adolescentes do centro25. A Corte, então, baseada em solicitação da quadro, a Corte Interamericana resolveu requerer ao Estado que adotasse
Comissão (provocada, por sua vez, pelas ONG’s Centro de Defesa dos as medidas necessárias, com estrito respeito aos direitos humanos das
Direitos Humanos da Serra do Estado do Espírito Santo e Justiça Global), pessoas privadas de liberdade, especialmente às suas vidas e integridade,
resolveu, dentre outras medidas, requerer ao Estado brasileiro que e cuidado para impedir atos de força indevidos por parte de seus agentes,
adotasse de forma imediata todas as medidas que fossem necessárias para para que estes recuperassem o controle e a ordem na Penitenciária de
proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as crianças Araraquara que: ao recuperar o controle, conforme o ponto resolutivo
e adolescentes privados de liberdade; que tomasse as providências anterior, oferecesse-lhes o atendimento médico adequado; reduzisse
adequadas para que as medidas de proteção à vida e à integridade substancialmente a superpopulação na Penitenciária de Araraquara,
pessoal fossem planificadas e implementadas com a participação dos separasse as pessoas privadas de liberdade por categorias, conforme
representantes dos beneficiários e que os mantivessem informados sobre os padrões internacionais sobre a matéria, e possibilitasse a visita
o avanço de sua execução. Complementarmente, audiências públicas dos familiares. Audiências públicas também foram convocadas.
também foram convocadas para que as partes envolvidas pudessem ser Posteriormente, com o intuito de reparar as instalações danificadas, os
ouvidas. O caso não se encerrou e permanece aberto. A quarta Resolução, detentos foram progressivamente transferidos a outras unidades. Por fim,
datada de novembro de 2012, reitera as medidas já emitidas e deve constatando a relativa melhora da situação no presídio, na data de 25 de
vigorar até 31 de agosto de 2013, restando explícita a dificuldade e falha novembro de 2008, as medidas provisórias foram levantadas e o assunto,
do Estado brasileiro em acatar as determinações. arquivado.

O terceiro caso se refere à penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, O quarto e último caso envolve crianças e adolescentes privados de
localizada no Estado de São Paulo. Tal complexo penitenciário é composto liberdade no “complexo do Tatuapé”, da extinta FEBEM, cuja sigla significa,
pelo Centro de Detenção Provisória (CDP) e pelos pavilhões tradicionais, ironicamente, Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor. Quando
destinados aos presos já condenados definitivamente. Os fatos expostos as denúncias foram feitas, a situação do local se mostrava insustentável:
se relacionam à série de rebeliões deflagradas no Estado de São Paulo dia após dia novas mortes ocorriam, provocadas pelos próprios internos,
durante o mês de maio de 2006. em motins, brigas e espancamentos, ou pela falta de assistência médica
necessária. Saliente-se que tais episódios ocorreram posteriormente a
Mais uma vez, é a superlotação, fator comum à esmagadora maioria medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
de estabelecimentos prisionais brasileiros, que se faz presente: depois Assim, tendo em vista a ineficácia das medidas acima citadas, a Corte
de danos à estrutura do CDP, causados pelo motim, aproximadamente resolveu requerer ao Estado que adotasse de forma imediata as medidas
600 reclusos foram transferidos aos pavilhões (que já se encontravam que fossem necessárias para proteger a vida e integridade pessoal de
superlotados), fazendo com que aproximadamente 1.600 pessoas todas as crianças e adolescentes residentes no Complexo do Tatuapé
ficassem confinadas em um espaço destinado a 750 pessoas26. Como da FEBEM. Para tanto, determinou que as medidas de proteção fossem
agravante, os referidos pavilhões que tinham a missão de abrigar implementadas com a participação dos representantes dos beneficiários
os 600 novos presos provisórios foram alvo de uma nova rebelião, das medidas; que o Estado investigasse os fatos que motivaram a adoção
impossibilitando, naquele local, a continuidade da estadia. Assim, os das medidas provisórias, com o fim de identificar os responsáveis e impor-
mesmos 1.600 detentos foram transferidos a uma ala ainda carente de lhes as sanções correspondentes. Por fim, no ano de 2008, três anos após
a emissão da primeira resolução sobre o caso, a Corte decidiu levantar as
25 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 25 de fevereiro de 2011. Disponível em: <http://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/socioeducativa_Se_01_portugues.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2012. medidas provisórias e arquivar o caso.
26 Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 28 de julho de 2006. Disponível em: <http://www.
corteidh.or.cr/docs/medidas/araraquara_se_01_por.pdf >. Acesso em: 17 de novembro de 2012.

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A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

5. Percursos necessários e considerações finais A relevância da decisão está, justamente, em colocar que certos
patamares mínimos, referentes às condições de detenção, precisam
Cunhou-se denominar controle de convencionalidade a interpretação
ser observados independentemente do nível de desenvolvimento
que a Corte pode fazer da legislação doméstica de um dado Estado em
socioeconômico do Estado. Isso inclui, de acordo com os artigos 10, 12,
face dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos,
17, 19 e 20 das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da ONU
fixando a melhor interpretação para a efetivação das disposições destes
(documento acolhido no Brasil pela Resolução nº 14 do Conselho Nacional
últimos. Já se defende que o controle de convencionalidade difuso e
de Política Criminal e Penitenciária, de 1994), espaço livre mínimo,
concentrado também deve ser realizado em âmbito interno, pelos juízes e
instalações sanitárias mínimas, roupagem, cama separada, e provisão de
tribunais locais, procedendo “ao exame de compatibilidade das leis com a
alimentos com valor nutricional adequado31.
Convenção Americana, levando em conta não somente a Convenção, mas
também a interpretação que dela faz a Corte Interamericana”27. Toca-se A assertiva, porém, pode constituir importante diretriz para que,
um dos temas mais importantes e delicados na matéria: aquele referente à enfim, se judicializem, no Brasil, as políticas públicas atinentes à questão
internalização dos tratados de direitos humanos. Para abalizada doutrina, prisional, com fulcro na vedação às penas cruéis como direito fundamental
tratados de direitos humanos não aprovados nos termos do art. 5º, §3º, garantido pelo art. 5º, XLVII, “e”, da Constituição e pelo art. 5.2 da CADH.
da Constituição – se aprovado com o quórum e o trâmite ali previsto, Parâmetros normativos não faltam: além das “Regras Mínimas” da ONU e
não há dúvidas de que será “equivalente a emenda constitucional” – os dispositivos constitucionais, convencionais e legais mencionados, vide
seriam materialmente constitucionais28. No entanto, posicionou-se o também o art. 10.1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a
Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria, no julgamento do ratificação da Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou Penas
Recurso Extraordinário (RExt) 349.703/08, no sentido de que a Convenção Cruéis, Desumanas ou Degradantes por meio do Decreto nº. 40, de 15 de
Americana de Direitos não teria status constitucional, mas supralegal fevereiro de 1991.
(acima da legislação ordinária), exercendo eficácia paralisante por sobre a Se o tema do controle judicial de políticas públicas é relativamente novo,
legislação concernente à prisão civil por dívida (STF – Súmula Vinculante pouco ou nada se fala na observância dos referidos patamares mínimos
nº. 25). como verdadeiro direito transindividual, cuja violação exigiria o manejo
Seja como for, vem do Sistema Global, e não do Sistema Interamericano, de instrumentos como ação civil pública, mandado de segurança coletivo
a afirmativa contundente e fundamental de que os patamares mínimos e, por que não, habeas corpus coletivo, tendo por objetivo, conforme
estabelecidos para as condições materiais das prisões devem ser o caso, tanto a imediata cessação das violações – com a interdição do
observados independentemente do desenvolvimento socioeconômico estabelecimento e a substituição da custódia pela prisão domiciliar
do Estado. Referimo-nos ao caso Mukong v. Cameroon (Mukong contra ou medida similar, na ausência de vaga em unidade adequada – como
Camarões)29, levado ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das a responsabilização objetiva do Estado pelos danos materiais e morais
Nações Unidas – importante órgão incumbido de garantir a proteção aos causados32.
direitos listados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.30 No debate sobre o possível controle judicial desta desastrada e trágica
27 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, p. 84. Ver também política pública que constitui a questão penitenciária, o tema da reserva
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 100.
28 Dentre os argumentos, nota-se aquele que aponta que a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro
do possível certamente não terá guarida, como justificação pelo Estado,
de 2004, com o art. 5º, §3º, teria restringido direitos fundamentais em face do art. 5º, §1º, da Constituição, ao se adotada a conclusão do caso Mukong. Ora, os mesmos fundamentos já
condicionar o gozo de status constitucional dos tratados de direitos humanos à aprovação por 3/5 do Congresso
Nacional. acolhidos pelos Tribunais Superiores para a concessão de prisão domiciliar
29 O caso se refere ao fato ocorrido em junho de 1988, quando Albert Womah Mukong, cidadão camaronês e como forma de tutela da dignidade humana em casos de falta de vagas em
jornalista opositor ao governo, foi preso após manifestação em entrevista. Mukong alegou que teria permanecido
em distrito policial com condições indignas, tais como superlotação, falta de banheiro, falta de alimentação, por
dias, obrigação de dormir no concreto, dentre outras. Também alegou que havia proibição de visita de advogados,
familiares e amigos. Assim, os seguintes direitos teriam sido violados: proteção contra tortura (artigo 7º); direito à Legislativo n° 226, de 12 de dezembro de 1991.
liberdade e às proteções contra o arbítrio estatal (artigo 9º, § 1º a 5º); direito ao devido processo legal (artigo 14, § 31 Decisão, na íntegra, em inglês, disponível em: < http://www.bayefsky.com/pdf/100_cameroonvws458.pdf>.
1º e 3º); e direito à liberdade de expressão (artigo 19) do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Acesso em 15 de novembro de 2012.
30 Vale observar que a Convenção Americana de Direitos Humanos é considerada o instrumento correspondente 32 No sentido da notícia recente, de 14 de maio de 2012: “Defensoria de Minas Gerais obtém condenação
ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, respectivamente no Sistema Americano e no Sistema Global. do Estado por danos morais difusos”, referente a delegacias superlotadas em Contagem/MG. TJMG, processo:
Texto integral do Pacto disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. 1.0079.07.343322-3/001. Acórdão publicado em 16/03/2012. Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtk/
Acesso em: 15 de novembro de 2012. O Pacto foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto pagina/materia?id=14310.

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A questão penitenciária no Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos André Giamberardino e Gustavo Trento Christoffoli

estabelecimentos prisionais de regime semiaberto33, somados à vedação Referências


constitucional de penas cruéis (art. 5º, XVII, e, CR) e dispositivos positivados CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da
em tratados internacionais, são inteiramente aplicáveis às condições Democratização Brasileira”. Novos Estudos, 30, CEBRAP, julho 1991, p. 162-174.
estruturais do sistema penitenciário brasileiro. Exemplo nesse sentido COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. São Paulo:
foi a polêmica decisão de um magistrado que determinou a soltura de Saraiva, 2010.
presos recolhidos em condições desumanas em duas delegacias da cidade CONSTITUTIONAL LAW. EIGHT AMENDMENT. “Recent Cases” in Harvard Law Review, vol.
de Contagem/MG34. Tal reconhecimento não seria uma medida inédita: 123, 2010, p. 752-759.
o Tribunal Provincial de Hamm, na Alemanha, julgou, em 1967, que a DONNEL, Daniel O’. Derecho internacional de los derechos humanos. Bogotà, ONU: 2004.
manutenção de três presos em uma cela pequena violava a dignidade
humana garantida pela Constituição alemã35. O respaldo jurídico estaria na FRAGOSO, Heleno Cláudio. “Perda da liberdade (os direitos dos presos)”. Anais da VIII
Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Manaus, 1980.
consideração das prisões como estabelecimentos numerus clausus, assim
como são escolas e hospitais, bastando a previsão de procedimentos como MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2.ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
“filas de espera” e a soltura de presos considerados “menos perigosos” ou
prestes a sair, abrindo vagas a recém-condenados. ONU/Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. Personas
privadas de libertad: jurisprudencia e doctrina. Bogotà: 2006,
Não obstante a via para a tutela coletiva nesse campo tenha sido aberta
PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal: uma
com a Lei 12.313/10, que inseriu, na Lei de Execução Penal, “a defesa dos introdução crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva”
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. São
(art. 81-A) como função da Defensoria Pública, o que certamente inclui
Paulo: Saraiva, 2011.
a atuação desta também junto aos órgãos internacionais de proteção
aos direitos humanos36, parece necessária uma profunda transformação ________. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006.
dos demais órgãos ainda imersos na visão tradicional que, tantas vezes, RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. Rio de Janeiro:
legitima a ilegalidade em nome de abstrações arbitrárias – a velha “defesa Renovar, 2002.
da sociedade” – e eticamente inadmissíveis. RIBEIRO, Roberta Solis. “Sistema interamericano de proteção aos direitos humanos
e Defensoria Pública”. SOUSA, José Augusto Garcia de (org.). A Defensoria Pública e os
Afinal, se a oposição popular à extensão de direitos mínimos individuais Processos Coletivos: Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de
a presos remete a um discurso que demarca um limite de pertencimento Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 291-302.
que desumaniza e exclui, por um lado, e abre as portas ao isolamento WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
social, ao abandono dos espaços públicos e à privatização da segurança,
por outro, o que se vê é que os discursos em disputa acabam por demarcar
a (im)possibilidade de consolidação de uma sociedade verdadeira e
materialmente democrática no Brasil37, o que, pelo que se constata das
“falas do crime” no cotidiano e a sua correspondente atuação estatal,
ainda não aconteceu.
33 Dentre muitos outros precedentes recentes, v. STF, HC 96.169/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 25/08/2009; STF,
HC 95.334/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. 03/03/2009; STJ, HC 48.629/MG, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, p.
04/04/2006.
34 Mais uma vez em Contagem/MG: decisão do juiz Livingston José Machado, da Vara de Execuções Penais de
Contagem/MG. Consta que em uma das delegacias, haviam 113 pessoas presas em uma cela projetada para 16
indivíduos. Todavia, o Poder Judiciário mineiro abriu procedimento administrativo para apurar suposta infração do
magistrado. Sobre, v. “Editorial em defesa da legalidade na execução penal: apoio do IBCCRIM ao magistrado de
Contagem/MG”. Boletim do IBCCRIM, v. 158, janeiro 2006, p. 1.
35 Sobre este e outros exemplos, v. FRAGOSO, Heleno Cláudio. “Perda da liberdade (os direitos dos presos)”.
Anais da VIII Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Manaus, 1980, p. 19.
36 Sobre o tema, v. RIBEIRO, Roberta Solis. “Sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e
Defensoria Pública”. SOUSA, José Augusto Garcia de (org.). A Defensoria Pública e os Processos Coletivos:
Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 291-302.
37 CALDEIRA, Teresa. “Direitos humanos ou ‘privilégios de bandidos’? Desventuras da Democratização Brasileira”.
Novos Estudos, p. 173.

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Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

NAS FRONTEIRAS DA JUSTIÇA


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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana

Rosita MILESI1
Marcia Anita SPRANDEL2

Introdução
O enfrentamento ao tráfico de pessoas, particularmente para fins de
exploração sexual e trabalho escravo, é considerado uma prioridade na
pauta de numerosos governos, organismos internacionais e organizações
não-governamentais. Tem todo o sentido, pois é inadmissível que, no
mundo contemporâneo, continue, e até aumente, esta prática hedionda
de mercantilização de seres humanos.
O Brasil ratificou, em 2004, o protocolo adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial
Mulheres e Crianças (conhecido como Protocolo de Palermo)3, do qual
era signatário desde 2000. Em 2006, foi criada a Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.4 De 2008 a 2010, vigorou o I Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP)5 e, em 2013, foi
lançado o II PNETP.
O presente artigo contextualiza o momento de aprovação do Protocolo
de Palermo e sua incorporação pelo Governo Brasileiro, para em seguida
fazer uma reflexão ética sobre o tema. Com isso, objetiva qualificar o
debate sobre pauta tão importante para a contemporaneidade e que será
tema da Campanha da Fraternidade de 2014.

1 - O Protocolo de Palermo: contextualização, críticas e tensões


Conforme SPRANDEL e DIAS (2012), o Protocolo de Palermo surge no
contexto contemporâneo de globalização, diante da preocupação de
alguns países com a ampliação da mobilidade humana e sua vinculação
à questão da “criminalidade” internacional. Ou seja, em um contexto
1 Advogada, Religiosa da Congregação Scalabriniana, Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH)
e membro observador do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE).
2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB).
3 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional tem mais dois Protocolos Adicionais,
referentes ao combate ao tráfico de armas e ao combate ao contrabando de migrantes.
4 Disponível em http://www.reporterbrasil.com.br/documentos/cartilha_trafico_pessoas.pdf.
5 Disponível em http://portal.mj.gov.br/data/Pages/htm.

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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

marcado pelo processo de aproximação da questão migratória a desafios e dificuldades a governantes, operadores do direito e defensores
problemas de segurança e crime, especialmente nos Estados-membros de direitos de trabalhadores imigrantes. Subjacente a esta tensão está a
da União Europeia e nos Estados Unidos. dicotomia entre crime e direito, que perpassa as categorias apresentadas
na definição de tráfico do Protocolo de Palermo. A leitura da Organização
Chama a atenção que, no final da década de 1990 e início de 2000,
Internacional do Trabalho (OIT) sobre o tráfico de pessoas, por exemplo,
as migrações internacionais tenham figurado nos relatórios oficiais da
o considera uma das agressões à dignidade humana e uma das graves
ONU como um “desafio” prioritário de intervenção e debate (conforme
violações aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no trabalho.
relatório final da Global Commission on International Migration6, de 2005),
A OIT vê o tráfico de pessoas como a antítese do trabalho em liberdade.
a ser tratado na área de defesa dos direitos, tanto de Estados-soberanos
quanto dos próprios migrantes. Com o Protocolo de Palermo, o arcabouço Coerentemente a esta visão, a maior difusão internacional de casos de
institucional das Nações Unidas que vinha tratando de criminalidade trabalho escravo ou trabalho forçado estaria ligada a elementos estruturais
internacional passa também a discutir e propor soluções para questões da globalização, como a terceirização desregrada de partes do processo
relacionadas à temática migratória. produtivo e a perda de valor do trabalho. Ou seja, a perspectiva da OIT
traz o debate, sobre o tráfico de pessoas, para o mundo do trabalho e da
O fato do tráfico de pessoas e do contrabando de migrantes terem sido
defesa dos direitos dos trabalhadores migrantes.
problematizados no âmbito de uma Convenção da ONU de repressão
à criminalidade e não em uma Convenção de Direitos Humanos não é No entanto, apenas o trabalho escravo ou forçado não caracteriza o
aleatório, sinaliza para uma aproximação conceitual da mobilidade tráfico de pessoas, uma vez que é fundamental que haja o deslocamento
humana a questões de caráter criminal e de segurança. Coerentemente territorial. É aí que a temática das migrações, afeta anteriormente, pelo
com este entendimento, a agência das Nações Unidas, responsável por menos no contexto brasileiro, ao mundo do trabalho ou da administração
coordenar o processo de elaboração do Protocolo de Palermo, foi a United pública, passa a interagir com a pauta criminal.
Nations Office on Drugs and Crimes (UNODC), responsável, justamente, A Convenção de Palermo diferencia as noções de “tráfico de pessoas”
pelo enfrentamento ao crime organizado transnacional. e “tráfico ou contrabando de migrantes”, tratando-as, inclusive, em
Ao aderir ao Protocolo de Palermo, os países membros se comprometem Protocolos distintos.
a realizar mudanças na legislação e a construir políticas públicas. O O “Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas,
cumprimento destes compromissos é avaliado por agências internacionais especialmente de mulheres e crianças”, traz a conceituação abrangente
– como o próprio UNODC, no caso da ONU – e por instituições nacionais de tráfico de pessoas, nos termos do artigo 3º, ‘a’:
que lidam com política externa, como o Departamento de Estado dos EUA,
que publica anualmente a série de Relatórios TIP (Trafficking in Persons), o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o
avaliando as respectivas ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras
desenvolvidas em diferentes países do mundo. Estes e outros organismos formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos
internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e
ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
Organização Internacional para as Migrações (OIM), também promovem autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá,
campanhas, capacitações e atividades diversificadas que concorrem para no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
a formação de opinião e difusão de informações junto à sociedade civil. exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
O texto do Protocolo de Palermo está longe de ser uma unanimidade,
afirmam SPRANDEL e DIAS (2012). Ao incluir em um mesmo conceito (e Por outro lado, o “Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de
tipo penal, se pensarmos que a tipificação penal é um dos objetivos da Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea”, no artigo 3º, incisos ‘a’ e
adesão ao texto) a exploração da prostituição ou outra forma de exploração ‘b’, o tráfico ilícito (ou contrabando) de migrantes é definido como:
sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares
à escravatura, a servidão e a remoção de órgãos, o Protocolo coloca a facilitação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado Parte do qual
esta pessoa não seja nacional ou residente permanente com o fim de
6 Ver o relatório final da Global Comission em http://www.iom.int/jahia/webdav/site/myjahiasite/shared/
shared/mainsite/policy_and_research/gci/GCIM_Report_Complete.pdf.

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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício que a prostituição reduz as mulheres a objetos comercializáveis e que,
de ordem material”. Por entrada ilegal entende-se “a transposição de portanto, é sempre e necessariamente degradante e danosa para as
fronteiras sem o preenchimento das condições necessárias para a entrada mulheres. Não reconhece distinções entre prostituição forçada e por livre
legal no Estado receptor.
escolha. Sustenta que tolerando, regulando ou legalizando a prostituição,
Organizações de defesa dos direitos de trabalhadores migrantes os Estados permitem a violação dos direitos humanos. As medidas para
denunciam que os Protocolos adicionais da Convenção de Palermo, erradicar a prostituição são consideradas medidas antitráfico e vice-versa.
referentes ao tráfico de pessoas e de migrantes, têm servido, na prática, Por sua vez, a abordagem pró-direitos dos trabalhadores sexuais,
para criminalizar e coibir a migração indocumentada. Defendem, para se organizada em torno do GAATW/Human Rights Cáucus, considera a
contrapor a esta leitura criminalizadora das migrações, que se tráfico de prostituição como uma forma de trabalho e traça distinções entre a
pessoas é um crime, migrar é um direito. prostituição voluntária exercida por adultos, a prostituição forçada e a
Outra intersecção complexifica sobremaneira o debate, ao acrescer exploração infantil. Defende que a exploração - inclusive, o tráfico - não se
às ideias de trabalho forçado e migração o universo do trabalho sexual. vincula de maneira automática à indústria do sexo, mas é favorecida pela
A partir de Palermo, o turismo sexual e a migração internacional para falta de proteção aos/às trabalhadores/as. Entende que os traficantes
trabalhar na prostituição passaram a ser cada vez mais frequentemente se beneficiam da ilegalidade da migração e da ilegalidade do trabalho
relacionados com o tráfico internacional de pessoas com fins de exploração sexual comercial.
sexual. No debate público, por exemplo, o turismo sexual aparece quase Esta tensão entre grupos feministas é reatualizada constantemente.
sempre vinculado à prostituição e à exploração sexual de crianças por Um exemplo é o posicionamento em relação aos grandes eventos
estrangeiros. esportivos internacionais, como Copa do Mundo, Olimpíadas, Copa das
Conforme SPRANDEL e DIAS (2012), tal fusão é contestada em diversos Confederações etc. A GAATW lançou recentemente o relatório What’s
estudos. Em termos analíticos, o turismo sexual (que não é crime) the Cost of a Rumour?  A guide to sorting out the myths and the facts
envolve um universo amplo e diversificado que está longe de reduzir- about sporting events and trafficking7, preocupada com a quantidade
se à exploração sexual de crianças e à prostituição. Embora, em certos de referências na mídia e em documentos oficiais sobre uma suposta
contextos, possa ter vinculações com a prostituição e o tráfico de pessoas, ligação entre grandes eventos esportivos e o tráfico de pessoas. Segundo
são problemáticas diferentes. Entretanto, no debate, esses temas são estudiosos do tema, esta relação não se confirma.
repetidamente lidos numa ótica que, ao fundi-los, faz com que as pessoas Segundo a ONG, a despeito da ausência de evidências, o alarde em
envolvidas, sobretudo mulheres e crianças, tendam a ser percebidas como torno do tráfico continua a ter grande apelo para grupos abolicionistas,
seres necessariamente sujeitos à violência. Tal posicionamento, embora grupos anti-imigração, políticos e jornalistas, em função de sua eficácia em
tenha fundamentos sólidos no campo da defesa de direitos, não permite chamar a atenção da mídia e da população – já que é uma forma rápida
uma real compreensão destes fenômenos. Ao contrário, contribui para e fácil de ser visto “fazendo algo” contra o tráfico –, por sua utilidade
que um discurso enviesado sobre tráfico de pessoas se sobreponha às como estratégia para financiamento de projetos e por ser um pretexto
realidades localizadas, esvaziando-as de sentido. mais socialmente aceitável para pautar agendas antiprostituição e anti-
Para compreender esta tensão específica entre as pautas referentes ao imigração.
tráfico de pessoas e as pautas das trabalhadoras sexuais, é importante ter Enquanto isso, um dos aspectos mais presentes no cotidiano de muitos
consciência do peso que tiveram os lobbys de grupos feministas durante países, que é o tráfico de pessoas para fins de trabalho doméstico, tem
a elaboração do Protocolo de Palermo. Tais grupos, embora coincidissem sido pouco estudado e, consequentemente, pouco enfrentado. No
no interesse em promover o bem-estar das mulheres, se dividiram no que entanto, o trabalho doméstico, muitas vezes, pode resultar do tráfico
se refere à concepção da prostituição e da relação entre prostituição e de pessoas, sobretudo quando envolve crianças e adolescentes levadas
tráfico de pessoas. para trabalhar em “casas de família” em idade inferior àquela permitida
A chamada abordagem abolicionista, organizada em torno da CATW/ pela legislação (18 anos, no Brasil) ou sem nenhum direito trabalhista
Coalition Against the Trafficking in Women, defendia (e segue defendendo)
7 Acesso em http://www.gaatw.org/publications/WhatstheCostofaRumour.11.15.2011.pdf.

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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

respeitado. Estamos tratando, neste caso, de situações de trabalho norte-americano. A Colômbia, por exemplo, é descrita como sendo capaz
doméstico forçado, que, espera-se, sejam mais enfaticamente enfrentadas de realizar esforços “continuados e robustos de prevenção”, o que inclui
com a aprovação da Convenção 189 sobre trabalho doméstico, na 100ª uma condenação por trabalho forçado. A Venezuela, por outro lado, é
Conferência Internacional do Trabalho, realizada em junho de 2011. penalizada no Grupo 3, quando “o governo prendeu pelo menos doze
pessoas por crimes de tráfico durante o período do relatório”.
A discussão da temática do tráfico de pessoas também não deve
ser deslocada do contexto mais abrangente das políticas no âmbito Independentemente deste contexto de política externa, evidencia-
internacional. Se, para muitos países em desenvolvimento, o tráfico de se que a agenda do tráfico humano tem servido para que os países
seres humanos não aparece (ou melhor, não aparecia) como um tema hegemônicos deixem de enfrentar de forma mais consistente a pauta dos
prioritário em suas agendas, alguns países desenvolvidos costumam direitos dos trabalhadores migrantes e suas famílias, que segue sendo
endossar a construção do problema, vinculando-o a um “outro” colocada em segundo plano em suas políticas públicas. Ao contrário, os
(estrangeiro) potencialmente bárbaro e criminoso, que surge como uma aspectos repressivos e criminais da pauta antitráfico acabam reforçando
constante ameaça a ser defendida e evitada. Assim, o tema do tráfico estereótipos de um estrangeiro potencialmente bárbaro e criminoso, o
de pessoas acabaria se traduzindo em mais um aparato conceitual que que se distancia de forma vigorosa de uma discussão mais bem informada
aproxima a conduta de estrangeiros de práticas criminosas, reforçando sobre a realidade social de migrantes em diferentes contextos nacionais.
visões xenófobas e reatualizando representações coloniais e neocoloniais
com relação aos imigrantes. 2 - O Protocolo de Palermo no Brasil
Além disso, estudiosos, como Pardis Mahdavi, professora associada do Em 2004, quando o governo brasileiro ratificou a Convenção de
Departamento de Antropologia do Promona College, têm demonstrado Palermo, a pauta do tráfico de pessoas praticamente inexistia no país.
que o tema do tráfico de pessoas tem servido, não raras vezes, como objeto Há décadas, no entanto, a sociedade civil e as associações de migrantes
de barganha em discussões de política internacional. Um exemplo disso vinham cobrando, dos sucessivos governos, políticas públicas para sua
seria a avaliação do desempenho dos distintos países no cumprimento de proteção e uma nova Lei de Estrangeiros, que superasse o caráter de
medidas de combate ao tráfico de pessoas produzida anualmente pelo segurança nacional da lei em vigor, fruto que foi de um governo ditatorial
Departamento de Estado dos EUA e publicizada por meio dos Relatórios (Lei 6.815, de 1980).
TIP.
Outras demandas da sociedade estavam em fase de atendimento, por
O Relatório TIP 20118, por exemplo, elenca 180 países em três grupos meio da execução dos Planos Nacionais de Enfrentamento à Exploração
(sendo o Grupo 1 o melhor e o Grupo 3 o pior) de acordo com as iniciativas Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (2000), de Erradicação do
e desafios levados a cabo pelos governos nacionais no enfrentamento ao Trabalho Escravo (2003) e de Erradicação do Trabalho Infantil (2004).
TSH. Em 2011, o número de países classificados no Grupo 3 (que podem Ou seja, no começo dos anos dois mil, as demandas da sociedade civil
ser objeto de sanções não-humanitárias) cresceu de 13 para 23. Para brasileira se referiam à proteção de migrantes, crianças e adolescentes
muitos analistas, tal ranking representaria, na verdade, os interesses da vítimas de exploração sexual comercial, crianças e adolescentes em
política externa dos Estados Unidos. Nesse caso, Coréia do Norte, Irã, situação de trabalho infantil e trabalhadores adultos em situação de
Cuba, Venezuela, Iêmen, Argélia, Birmânia e Líbia, entre outros, ficaram trabalho escravo.
no Grupo 3, enquanto Canadá, Alemanha, Dinamarca, Coréia do Sul,
Austrália e, é claro, EUA, no Grupo 1. A pauta antitráfico acabou interferindo ou mesmo se sobrepondo a
todas estas questões e criando, em nosso ponto de vista, uma “demanda
As considerações de política externa dos EUA estariam influenciando artificial”, que acabou gerando novos problemas e desviando a atenção,
as designações dos integrantes dos Grupos, o que comprometeria a bem como recursos humanos e orçamentários, da área de defesa dos
integridade destes relatórios, que são fontes importantes de avaliação direitos dos migrantes. “Demanda artificial” não porque o crime do tráfico
das políticas antitráfico no mundo. Segundo Mahdavi, a linguagem das de pessoas inexista e não necessite ser enfrentado pelas autoridades
narrativas dos países em todo o relatório está repleta de nepotismo competentes, mas porque a abrangência do enfoque e a maneira como
as discussões foram inicialmente pautadas fizeram crer que ele estaria
8 Disponível em http://www.state.gov/j/tip/rls/tiprpt/2011/.

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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

amplamente difundido na sociedade brasileira e que precisaria ser não estava mais lá. Rasgou suas vestes e voltou para seus irmãos dizendo:
priorizado, em detrimento de outras temáticas. o menino não está mais lá! E eu, para onde irei?” (Gn 37, 30). Rubem
fracassou em sua tentativa de salvar o irmão. Indigna-se ante a indiferença
Como bem analisam SPRANDEL e DIAS (2012), no universo relativamente
dos demais irmãos diante do desaparecimento do caçula. Mais tarde, os
pequeno de militantes e defensores dos direitos dos migrantes, acabou
irmãos assumem sua culpa pelo ato e sua insensibilidade diante dos gritos
por criar clivagens, envolvendo, sobretudo, a tentativa de subsumir a
desesperados do irmão clamando por não ser abandonado (cf. Gn 42, 21-
questão do trabalho escravo no conceito guarda-chuva de tráfico de
22). A vítima tem a força de desmascarar a mentira. Ao fazê-lo, reverte os
pessoas e em função da criminalização do trabalho sexual, que continua a
rumos da história.
provocar polêmicas e discordâncias.
Este relato bíblico revela que, na fé cristã, a partir do momento em que
A pauta antitráfico, além disso, foi extremamente eficaz em termos da
junto ao “eu” (Rubem) aparece um “tu” (José), dá-se a irrupção da ética. O
construção de convencimentos, por meio de capacitações e campanhas.
rosto do outro, como diz Lévinas, solicita, interpela o “eu” ensimesmado.
De fato, parece que o objetivo de ver o tráfico de pessoas sendo discutido
Quando o eu exclama: “quero que tua liberdade e autonomia sejam”, está
por nossa sociedade civil organizada - através de workshops e capacitações
descendo a gigantesca escadaria do seu castelo de vaidades.
– foi alcançado. Trata-se, agora, de participar ativamente deste debate,
sempre levando em consideração a contextualização apresentada acima, Para um eu ético, a preciosa fragilidade da pessoa confere sentido ao
tendo como parâmetro ético a riqueza de reflexões que a Sagrada Escritura ser humano e rompe a barreira do vazio e da indiferença. O outro passa
nos fornece. a ser a condição de possibilidade para que o eu mereça respeito de si
mesmo. Deus, através da fragilidade do outro abre os olhos: salvai o
mísero e o indigente, arrancai-o das mãos dos iníquos... pois a injustiça
3 - Tráfico de Pessoas – Uma reflexão Ética9
abala todos os fundamentos da terra (Sl 82,4-5).
O Tráfico de Pessoas é um problema ético antigo. O povo de Israel
O desejo fundamental de todo ser humano é o desejo de reconhecimento
sentiu em sua própria carne o que era trabalhar e viver desterrado (Gn 12,
da sua liberdade. O direito absoluto é o direito de ter direitos (Hegel).
1-10; 26,1-6). A proibição do rapto e comércio de pessoas está legislado
O reconhecimento é a exigência ética mais profunda. Sou ser humano
na Lei de Moisés. Na Torá, o mandamento Não roubar (Ex 20,15) proíbe
na medida em que consigo sair do meu eu para me tornar humano na
apoderar-se de pessoas para reduzi-las à escravidão. Desse modo, visa
acolhida do outro. Por isso, os direitos do homem são originariamente os
toda e qualquer alienação da liberdade de outrem. Semelhante legislação
direitos do outro humano (Paul Ricoeur).
aparece no catálogo de normas apresentadas por Javé a Moisés (Ex 21-
23): “Quem cometer um rapto – quer o homem tenha sido vendido ou A busca de Rubem pelo irmão-vítima é uma partida sem retorno,
ainda se encontre prisioneiro em suas mãos – será morto” (Ex 21,16). como a de Abraão, que sai de sua terra rumo ao desconhecido. Gritos de
Dt 24,7 é mais incisivo: todo aquele que raptar uma pessoa para tirar pessoas de carne e osso originam uma resposta ética da responsabilidade
proveito é réu de morte. por toda a humanidade “carne da nossa carne”. Para Rubem, o rosto de
José transtornado pelos seus gritos pedindo misericórdia expõe toda
José, filho de Jacó, aparece na Bíblia como primeira vítima do tráfico
sua vulnerabilidade humana. Ao deixar-se afetar, Rubem quebrou sua
de pessoas da história (Gn 37,13-28)10. Foi salvo da morte por Rubem,
indiferença e vaidade. José tornou-se um interlocutor que o transcendeu.
seu irmão mais velho, pois José “é nosso irmão, nossa carne”. Era mais
O grito de José é o grito de um irmão. Carne de sua carne, por isso
vantajoso vendê-lo do que matá-lo e ocultar seu sangue para abafar a
inviolável. A única maneira de não reconhecer alguém como a carne de
justiça. Abandonado em uma cisterna, encontrado por comerciantes
sua carne é o assassinato. Rubem expressa o primeiro conteúdo de todo
madianitas que logo o venderam por vinte ciclos e levado ao Egito para
discurso ético: não o matemos!
trabalhar como escravo. Quando o irmão mais velho volta à cisterna, “José
Se Rubem tivesse se omitido, José teria sido assassinado. A acolhida do
9 A presente reflexão ética é uma breve contribuição de Élio Estanislau Gazda, s.j., professor de Ética e Teologia
na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte), Doutor em Teologia pela Universidade Pontifícia de
ser humano que aparece no rosto e no grito da vítima pede sua resposta
Madrid. ética, afeta, inquieta, desinstala. Ao responder a José, Rubem afirmou-
10 WÉNIN, André. José, ou a invenção da fraternidade. Leitura narrativa e antropológica de Gênesis 37-50. São
Paulo: Loyola, 2010.
se como humano e embarcou na viagem da procura da verdade de José:

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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

É carne da minha carne. O outro é prova maior da existência divina. modo a integrar iniciativas mais eficazes no enfrentamento ao tráfico
Entretanto, nesta peregrinação da verdade, o eu deve abdicar de ser o humano e suas degradantes expressões.
centro, precisa se retirar do centro para centrar-se no outro. Ao colocar Exigir do Estado efetividade das políticas públicas (saúde, educação,
o outro no centro, descubro quem sou eu verdadeiramente. A verdade desenvolvimento social, moradia) e dos planos de ação, nas diversas
está além de Rubem, está em José. A identidade de Rubem foi revelada esferas do poder público, partindo da premissa de que o tráfico humano
em José. se expande quando existe vulnerabilidade social.
José se apresenta a Rubem sem nenhuma mediação e espera apenas Apoiar e fortalecer a implantação em todos os Estados do Brasil dos
uma resposta, nada mais. José rompe com as verdades dos irmãos. Este Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e redes de organizações
ato, face a face entre os irmãos, irrompe o sentido do humano. Quando da sociedade civil, com vistas ao monitoramento, denúncia e articulação
isso ocorre, o eu toma consciência de sua responsabilidade. Rubem não de processos que reduzam ou eliminem o tráfico de pessoas, bem como
espera reciprocidade, tem o coração tomado de gratuidade. Diante da os que visam a punição e responsabilização dos culpados por este crime.
miséria, da nudez do outro, a liberdade do eu se sente culpada, perde
sentido. O egoísmo perde seus fundamentos: e eu, para onde irei? (Gn Nas campanhas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, promovidas
37, 30). pelo Estado - âmbito federal, estadual e municipal -, desenvolver atividades
voltadas à difusão e debate dos temas propostos e a prevenção ao tráfico,
A responsabilidade pelo outro devolve a liberdade perdida pelas valendo-se, para tanto, também de datas significativas, tais como: 28 de
artimanhas da vaidade narcisista. O outro se impõe acima de qualquer janeiro – Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo; 8 de março – Dia
retórica. Assim se forma o segundo conteúdo do discurso da ética: “Sou Internacional da Mulher; 1º de maio – Dia do Trabalhador/a; 18 de maio –
responsável pela preciosa fragilidade do outro”. O eu entrega sua liberdade Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças
e autonomia na luta pela justiça: devolver a dignidade, a liberdade e a e Adolescentes; 23 de setembro - Dia Internacional contra a Exploração
autonomia que lhe foi usurpada. Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças.
Esta responsabilidade pelo outro deve se traduzir em ações. No caso do Desenvolver ações conjuntas e articuladas entre Igrejas e organizações
tráfico de pessoas, trataremos desta práxis no próximo item. éticas e de fé, de modo a contribuir para uma constante formação da
mentalidade e das consciências e, assim, colaborar na construção de
4 - Propostas de Ação medidas eficazes para a erradicação do tráfico humano e pela sensibilização
e realização de ações na proteção e atenção às vítimas.
O tráfico de pessoas é hoje um dos mais urgentes apelos históricos para
os governos, organizações governamentais e não governamentais, igrejas, Organizar ou aprimorar o sistema de “coleta de dados sobre o Tráfico de
enfim, de todas as forças vivas da sociedade, pois a responsabilidade Pessoas”11, para maior conhecimento do alcance dessa violação de direitos
na defesa da dignidade de cada ser humano é missão de todos. e construção de mecanismos e ações que fortaleçam o enfrentamento a
Cuidar, proteger, defender e promover a vida ameaçada é imperativo esta prática criminosa.
antropológico. Monitorar as ações do Estado brasileiro na efetivação do que está
Em seminários, encontros, jornadas e fóruns, colhemos algumas proposto no III Plano Nacional de Direitos Humanos: “Estruturar, a partir
sugestões e propostas de ação que poderão servir como ponto de partida de serviços existentes, sistema nacional de atendimento às vítimas do
para debater e implementar iniciativas contra este mal do tráfico de tráfico de pessoas, de reintegração e diminuição da vulnerabilidade,
pessoas que tanto fere a ética, corrói a própria sociedade e vilipendia a especialmente de crianças, adolescentes, mulheres, transexuais e
dignidade do ser humano. travestis”12.

Fortalecer e/ou contribuir na articulação nacional de uma rede de Promover e monitorar junto ao governo - em suas esferas municipal,
entidades e organizações da sociedade civil que atuam ou venham a estadual e federal - a efetivação do II Plano de Enfrentamento ao
atuar na prevenção ao tráfico de pessoas, na assistência às vítimas e na 11 Relatório final da CPI do Senado Federal sobre o Tráfico de Pessoas (2012).
repressão ao crime, bem como na incidência por políticas públicas, de 12 Brasil – Secretaria Nacional de Direitos Humanos. III Programa Nacional de Direitos Humanos, Brasília, 2010,
p. 149.

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Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana Rosita Milesi e Marcia Anita Sprandel

Tráfico de Pessoas, garantindo recursos econômicos suficientes para Combater as redes de tráfico de pessoas e de contrabando de migrantes,
implementar estruturas adequadas para a repressão ao crime, e para o evitando rigorosamente que o migrante seja criminalizado em função
devido acolhimento, proteção e atendimento às vítimas13. desta migração irregular enganosa e a que é submetido.
Somar forças e agir em parceria, governo e sociedade civil, na luta
pelo aprimoramento do marco legal referente ao Tráfico de Pessoas e o Conclusão
Trabalho Escravo, de modo a pôr fim aos limites atuais no que tange à A temática do tráfico de pessoas, por mais complexa que seja, é um dos
responsabilização por estes crimes14. maiores desafios da contemporaneidade, em termos de políticas públicas
Intervir, enquanto sociedade civil, na incidência de políticas e de ação pastoral. Isto porque, independentemente do nome que dermos
que enfrentem efetivamente as causas estruturais que produzem ao fenômeno, ele se refere a situações de muita superação de pessoas que
vulnerabilidade social – situações de exclusão, tais como desemprego ou saem de seus locais de origem procurando trabalho e que, muitas vezes,
subemprego, práticas discriminatórias por razões étnicas e de gênero, a tornam-se vulneráveis a situações de imobilização de mão de obra e de
pobreza, a miséria, entre outras. superexploração. Todas estas pessoas, independentemente da atividade
que exerçam ou estejam sendo obrigadas a exercer, são merecedoras
Instar os órgãos governamentais, no que tange a medidas e ações de apoio por parte das autoridades, do consolo e estímulo por parte de
efetivas no combate ao tráfico humano, a aprimorar seus mecanismos de religiosos, religiosas e instituições confessionais, e da atenção específica
investigação e responsabilização dos ‘agentes operacionais’ desse crime e especializada de profissionais de diversas áreas e serviços públicos e
contra os direitos da pessoa humana. comunitários. A interdisciplinaridade é fator importante e fundamental
Adequar a legislação interna de modo que a lei penal brasileira inclua no trato da questão do tráfico de pessoas e da devida atenção ao ser
o crime de tráfico de pessoas nos termos da Convenção de Palermo, das humano que venha a ser submetido a esta abominável prática de violação
Nações Unidas, contra o crime organizado transnacional, pois uma das de direitos e de negação da dignidade humana.
falhas da legislação vigente é vincular o tráfico de pessoas exclusivamente Como bem afirma a Senadora Lídice da Mata, relatora da CPI do Tráfico
à exploração sexual, deixando de lado, por exemplo, os casos ligados à de Pessoas do Senado Federal, “o tráfico de pessoas, que não haja ilusões,
remoção de órgãos ou ao trabalho escravo15. existe e atenta contra os direitos de toda a sociedade brasileira. Como
Analisar e, se for o caso, solicitar ao estado que retome investigações se vê, além de vitimar mulheres e homens que vivem em situação de
sobre pessoas desaparecidas, seja em território nacional ou no estrangeiro, vulnerabilidade dada às condições peculiares das atividades profissionais
levando em consideração a possibilidade de ter ocorrido tráfico humano. que desempenham, relacionadas à indústria do sexo, o tráfico de pessoas
também entra nas casas, rouba crianças, empobrece o futuro de meninas
Reforçar ações ou ampliar a atuação do estado brasileiro no que tange às
e meninos e instala a desesperança e a revolta no seio de famílias que já
adoções ilegais, sejam elas efetivadas no próprio país ou no exterior, pois
enfrentam a necessidade de conviver com privações sociais, políticas e
nestas circunstâncias configura-se tráfico de pessoas16. É necessário maior
civis inaceitáveis na era moderna”.
controle sobre formas veladas de adoção, encobertas por parentesco ou
por suposta ajuda dada aos pais, e que resultam na retirada da criança do
convívio familiar, mas que não tem nenhum amparo legal. Referências
Atuar decididamente no debate, conteúdo e aprovação pelo Congresso DIAS, Guilherme. SPRANDEL, Marcia. A CPI do Tráfico de Pessoas no contexto do
Nacional de uma nova lei de migrações, centrada no princípio dos direitos enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. In: ACNUR e IMDH. Caderno de Debates 7.
humanos, que contemple devidamente a questão do tráfico de pessoas e Refúgio, Migrações e Cidadania. 2012. p. 21.
proteção às vítimas. GASDA, Élio Estanislau. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo: lugar teológico, exigência
ética, missão da Igreja. In: In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo. Brasília: Edições
13 MILESI, Rosita e SPRANDEL, Márcia, II Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Trabalho
Escravo, in Tráfico de pessoas e trabalho escravo – II Seminário Nacional. Brasília, CNBB, 2012, p. 158).
CNBB, 2012, p. 15 e ss.
14 Idem, p. 157.
GORENSTEIN, Fabiana. Da concepção menorista à proteção integral: oscilações de discurso
15 Recomendações da CPI do Senado Federal (2012).
16 O Relatório final da CPI do Senado afirma claramente a necessidade de aprimoramento no Cadastro Nacional na CPMI da exploração sexual de crianças e adolescentes. Dissertação de Mestrado
de Adoções.

220 221
Tráfico de Pessoas: a negação da dignidade humana

defendida na Faculdade de Direito/UnB. Brasília, 2009.


LOWENKRON, Laura. O Monstro Contemporâneo - a construção social da pedofilia em
múltiplos planos. Tese de Doutorado defendida no PPGAS/Museu Nacional. Rio de Janeiro,
2012.
MAHDAVI, Pardis “Just the ‘TIP’ of the iceberg: the 2011 Trafficking in Persons Report
(TIP) falls short of expectations”. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/pardis-
mahdavi/just-the-tip-of-the-icebe_1_b_888618.html
MILESI, Rosita. SPRANDEL, Marcia. II Seminário Nacional de enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Trabalho Escravo (Relatório). In: CNBB. Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo.
Brasília: Edições CNBB, 2012, p. 145 e ss.
WÉNIN, André. José, ou a invenção da fraternidade. Leitura narrativa e antropológica de
Gênesis 37-50. São Paulo: Loyola, 2010.

222
Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo

O Projeto de Lei do Senado no 236/2012 e o retorno do


Direito Penal do Autor: crítica ao título XV sobre crimes
relativos a estrangeiros1

Gabriel Gualano de GODOY2


Raquel TRABAZO3

Introdução
Os artigos 452, 453, 454 e 456, do Projeto de Lei do Senado (PLS) n.
236, de 2012, tipificam novos delitos que somente podem ser cometidos
por estrangeiros ou por pessoas que auxiliam estrangeiros em situação
irregular no país. Esses dispositivos almejam consolidar no Brasil uma
reprochável política de criminalização dos movimentos migratórios, em
franca oposição à postura assumida pelo Estado brasileiro nos foros
internacionais, aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados
pelo Brasil e ao objetivo de promoção do bem de todos, sem preconceitos
de origem, solidificado no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
As condutas tipificadas nos dispositivos acima já estão devidamente
abarcadas pelo artigo 265 do PLS 236/2012, que equivale ao artigo 299 do
Código Penal em vigor, ambos relativos ao crime de falsidade ideológica.
A repetição configura um excesso legislativo, na medida em que condutas
idênticas já estão criminalizadas em outros dispositivos distintos, o que
pode, inclusive, vir a gerar um censurável bis in idem.
O legislador já havia considerado aquelas condutas lesivas em razão
da preservação da fé pública, não havendo justificativa plausível para
a especialidade da criminalização de condutas já tipificadas. Ademais,
constata-se que somente será possível identificar o bem jurídico violado
a partir das características pessoais do agente da conduta. Ou seja, se um
brasileiro comete algum daqueles crimes, viola-se o bem jurídico da fé
pública. Contudo, se um estrangeiro comete o mesmo crime, viola-se o
bem da segurança nacional, o que abre a possibilidade de permitir que
o status do autor altere o bem jurídico tutelado, sem nenhum elemento
1 As opiniões dos autores não refletem, necessariamente, a opinião do Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR).
2 Doutorando em Teoria do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Direito
e Antropologia pela London School of Economics and Political Science (LSE), Mestre e Bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR); atualmente exerce o cargo de Oficial de Proteção do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
3 Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), Especialista em Relações
Internacionais pela Unb, Bacharel em Direito pela Universidade Salvador (Unifacs); atualmente trabalha como
Assistente de Proteção no escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil.

223
O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

adicional que torne a conduta em si efetivamente mais grave. abarcar a hipótese trazida na Declaração de Cartagena de 1984 e também
reconhecer como refugiado a pessoa que deixa seu país de origem devido
Além disso, os artigos acima não levam em consideração as
a uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos.
peculiaridades inerentes ao deslocamento e à proteção dos solicitantes de
refúgio e refugiados no mundo. Tratam-se de pessoas que deixam seu país Diante da situação de vulnerabilidade característica da população de
de origem em razão de um fundado temor de perseguição por motivos de refugiados e solicitantes de refúgio, e tendo em vista o ordenamento
raça, religião, nacionalidade, opinião política imputada ou pertencimento jurídico brasileiro, o presente estudo tem por objeto o Anteprojeto de
a grupo social, sendo a sua fuga caracterizada pela urgência, o que Código Penal, que tramita sob a rubrica PLS 236/2012 na Comissão
inviabiliza a espera pela documentação adequada que permita o acesso Especial Externa do Senado Federal, denominada “Comissão de Juristas
regular ao país onde podem buscar asilo. Não raro o refugiado viaja sem com a Finalidade de Elaborar Anteprojeto de Código Penal – CJECP” e
qualquer documento de identidade, assim como pode ver-se obrigado presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Langaro
a valer-se de documentação adulterada justamente para conseguir sair Dipp.
do país onde a perseguição é perpetrada. Justamente em razão disso, A referida comissão foi incumbida de propor uma ampla modernização
a Lei 9.474/1997 instituiu em seu artigo 8º que o ingresso irregular no do Código Penal, tendo norteado os seus trabalhos com o objetivo de
território nacional não constitui impedimento para que o estrangeiro unificar a legislação esparsa, compatibilizar os tipos penais existentes
solicite refúgio às autoridades competentes, sendo que o artigo 10º com a Constituição Federal de 1988, tornar proporcionais as penas dos
ainda define que, feita a solicitação de refúgio, serão suspensos todos os diversos crimes e valorizar as penas alternativas, não prisionais, conforme
procedimentos administrativos e criminais que tenham por fundamento apontado em seu relatório final4, apresentado ao Presidente do Senado
a entrada irregular. em junho de 2012.
Os argumentos expendidos serão desenvolvidos, em detalhes, a No Título XV do PLS 236/2012, que trata especificamente dos “Crimes
seguir para melhor ilustrar os fundamentos da disposição do Estado Relativos a Estrangeiros”, são tipificadas condutas relacionadas à imigração
e da sociedade brasileira em tratar a imigração através de uma lente e entrada irregular no território brasileiro, bem como delitos relativos ao
humanitária, o que não se coaduna com a proposta de repulsão e acesso ao mecanismo do refúgio e aos procedimentos de reconhecimento
criminalização de estrangeiros em situação irregular contida nos artigos da condição de refugiado.
452, 453, 454 e 456 do PLS 236/2012.
Sendo assim, o Título XV reflete a tendência retrógrada de criminalização
dos movimentos migratórios e punição dos imigrantes, dos solicitantes
1. PLS 236: incoerências do Título XV de refúgio e dos indivíduos e organizações solidários à vulnerabilidade
Em 1961, ao promulgar o Decreto 50.215, o Brasil internalizou a dessa população, o que não se coaduna com a postura brasileira reiterada
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, sendo que nos foros internacionais, a Constituição Federal de 1988, a Lei Brasileira
em 22 de julho de 1997 foi promulgada a Lei Brasileira de Refúgio n. de Refúgio e o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos.
9.474, confirmando o compromisso assumido perante a comunidade Ressalte-se que o Título XV do PLS 236/2012 engloba os artigos 452 a
internacional no sentido de oferecer proteção plena aos solicitantes de 457 do Anteprojeto de Código Penal, onde são tipificados novos delitos
refúgio e refugiados que se encontrem em território nacional. que somente podem ser cometidos por estrangeiros ou por pessoas que
auxiliam estrangeiros em situação irregular no país.
A Lei Brasileira de Refúgio 9.474/97 acolhe a definição estabelecida
na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e considera
como refugiado todo indivíduo que foge do seu país de origem devido 2. Sobre a criminalização do ingresso irregular no território nacional
a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, Os artigos 452, 453 e 454 dizem respeito a crimes que envolvem
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas imputadas, e que não solicitantes de refúgio e o acesso ao mecanismo de refúgio no Brasil,
possa ou não queria acolher-se à proteção de tal país. Ademais, o inciso tendo sido propostos nos seguintes termos:
III do artigo 1º da Lei 9.474/97 foi além e estendeu aquele conceito para
4 Disponível no website do Senado: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=110444&tp=1.

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O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

Artigos 452. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território Com isso em mente, a Lei 9.474/976 instituiu em seu artigo 8º que
nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento
qualquer documento falso: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Parágrafo para que o estrangeiro solicite refúgio às autoridades competentes.
único. Nas mesmas penas incorre o estrangeiro que omite informação, usa
documentos falsos ou faz declaração falsa com o fim de ter reconhecida a Além disso, o artigo 10º ainda define que, feita a solicitação de refúgio,
condição de refugiado no território nacional. serão suspensos todos os procedimentos administrativos e criminais que
tenham por fundamento a entrada irregular.
Artigo 453. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não
ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território Aqueles artigos da Lei 9.474/97 foram inspirados no artigo 31 da
nacional ou para assegurar-lhe a condição de refugiado: Pena - prisão, de Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados7, que dispõem que
dois a cinco anos.
os Estados não aplicarão sanções aos refugiados em virtude da entrada ou
Artigo 454. Introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino permanência irregulares.
ou irregular: Pena - prisão, de dois a cinco anos.
O ex-presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) no
Esses tipos penais revelam-se preocupantes, em primeiro lugar, porque Brasil, Luiz Paulo Barreto, ratificou a importância de permitir livre acesso
não levam em consideração as peculiaridades inerentes ao deslocamento ao mecanismo do refúgio, independentemente da situação do estrangeiro
e à proteção dos solicitantes de refúgio e refugiados no mundo. no país:
Considerando-se que a perseguição sofrida no país de origem impõe O artigo 8º contém dispositivo importantíssimo para uma efetiva proteção
uma grave ameaça à vida, liberdade ou integridade física dos refugiados, internacional ao desconsiderar eventual ingresso imigratório irregular
a fuga caracteriza-se pela urgência, o que inviabiliza a espera pela como situação restritiva ao direito de solicitar refúgio. O disposto na lei
documentação adequada que permita o acesso regular ao país onde se aplica ao estrangeiro irregular ou clandestino. Ainda que chegue de
navio, sem visto, passaporte ou qualquer outro documento ou ainda que
podem buscar asilo. Assim, não raro o refugiado é obrigado a valer-se de
tenha um visto vencido, deverá ser permitido o acesso ao procedimento
documentação adulterada justamente para conseguir sair do país onde a de refúgio. [...] Não raro um solicitante de refúgio porta documento de
perseguição é perpetrada. viagem parcial ou totalmente falsificado ou com dados de identificação
inverídicos. Em um regime de exceção, se o indivíduo tentasse sair do seu
Além disso, também em razão da urgência na saída do país, é comum país com um passaporte autêntico seria de imediato preso. Por isso, o
que os refugiados viajem sem qualquer documento de identidade, o que exposto no artigo 8º é fundamental para outorgar à pessoa o livre acesso
exige que os países de recepção tenham a sensibilidade e capacidade ao pedido de refúgio.”8
técnica adequada à identificação dos estrangeiros que possuem um
Na mesma linha, o ex-coordenador geral do CONARE, Renato Zerbini,
fundado temor de perseguição e que não podem ser criminalizados em
assevera que o princípio de que o ingresso irregular no território nacional
decorrência dos meios utilizados para salvar sua própria vida.
não constitui impedimento para a solicitação de refúgio por parte de um
O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), em documento estrangeiro não poderia estar mais explícito na legislação brasileira: “O
que oferece orientação sobre a detenção de solicitantes de asilo, artigo 8º da Lei é cristalino com relação à garantia deste princípio”9.
prescreve como diretriz primária a compreensão de que os solicitantes
A posição refletida pelo ex-presidente do CONARE é elucidativa no que
de asilo “podem, por exemplo, estar impossibilitados de obter a
tange à exclusão da culpabilidade do estrangeiro que, por motivos de
documentação necessária antes da sua fuga em razão de um fundado
força maior e em estado de necessidade, busca subterfúgios para deixar o
temor de perseguição e/ou em razão da urgência da sua partida. Esses
local de perseguição e refugiar-se em um ambiente seguro. Ao comentar
fatores, aliados ao fato de que os solicitantes de asilo frequentemente
o artigo 10 da Lei 9.474/07, Luiz Paulo Barreto afirma:
experimentam eventos traumáticos, devem ser levados em consideração
no momento de se determinar quaisquer restrições à sua liberdade de
movimento com base na entrada ou estadia irregular”5. 6 Disponível no site do Planalto, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm.
7 Disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/humanitarian/Genebra.pdf.
8 BARRETO, Luiz Paulo Ferreira Teles. “Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas
Américas”. Brasília: ACNUR, 2010, p. 165.
9 LEAO, Renato Zerbini Ribeiro. “Reconhecimento dos Refugiados pelo Brasil: decisões comentadas pelo
5 Disponível no website do ACNUR, em:http://www.unhcr.org/refworld/docid/503489533b8.html. CONARE”. Brasília: ACNUR, 2007.

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O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

Na área criminal, um exemplo seria a falsificação de um passaporte ou No entanto, este não é o único aspecto problemático no PLS 236/2012,
a falsificação de um visto. Eventuais procedimentos instaurados para uma vez que o que está na base das tipificações penais propostas no
apuração desses crimes também ficam suspensos quando a solicitação de Título XV não são apenas condutas, mas também elementos que servem
refúgio é apresentada. Tudo isso porque esses procedimentos criminais
podem ser considerados como “estado de necessidade”, figura prevista à caracterização de um autor específico que pertence a uma categoria de
no Direito Penal brasileiro, que exclui a culpabilidade do agente pelo fato pessoas consideradas perigosas ao Estado.
praticado, quando não se tem como exigir dele uma conduta diversa da
praticada. Seria esse o exato caso de uma pessoa que sofre perseguições
no exterior e foge para o Brasil a fim de preservar sua vida, sua liberdade 3. Bis in idem
ou integridade física que se encontram em risco em razão de perseguições
políticas, étnicas ou de gênero, por exemplo. Muitas vezes, a única O fato de que muitas das condutas tipificadas como novos crimes no
maneira de sair do país de origem, principalmente quando desestruturado PLS 236/2012 já se encontravam abrangidas por tipos penais em vigor
por conflitos, é com nome diferente, com passaporte ou com um visto é um primeiro indicativo desta tentativa de criação de uma categoria
falsificado. Os bens jurídicos são distintos, sendo razoável a conduta do
de inimigos do Estado. A título exemplificativo, vejam-se os tipos abaixo
agente ao promover uma falsificação a fim de preservar-se de perseguição
injusta. O artigo, assim, contém lógica irreparável e constitui-se norma transcritos:
avançada da lei brasileira, em perfeita consonância com a Convenção
de 1951 e com os demais instrumentos internacionais de proteção aos Artigos 452. Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território
refugiados.”10 nacional, nome, qualificação ou declaração de origem não verdadeiros ou
qualquer documento falso: Pena - prisão, de dois a cinco anos. Parágrafo
Ademais, o único órgão competente para apreciar o pedido de único. Nas mesmas penas incorre o estrangeiro que omite informação, usa
reconhecimento da condição de refugiado é o CONARE. Ele o faz após um documentos falsos ou faz declaração falsa com o fim de ter reconhecida a
condição de refugiado no território nacional.
procedimento específico que inclui a realização de uma entrevista pessoal
com um oficial de elegibilidade capacitado para tanto, sendo incabível Artigo 453. Atribuir a estrangeiro qualificação ou informação que sabe não
delegar a qualquer outra autoridade a competência para determinar o ser verdadeira, para promover-lhe a entrada ou permanência em território
caráter abusivo ou não do pedido de refúgio. nacional ou para assegurar-lhe a condição de refugiado: Pena - prisão, de
dois a cinco anos.
Esta interpretação está de acordo, inclusive, com a Recomendação n.
Artigo 456. Fazer declaração falsa em processo de transformação de visto,
30 (XXXIV)11 do Comitê Executivo do ACNUR: de registro, de alteração de assentamentos, de naturalização, ou para a
obtenção de passaporte para estrangeiro ou documento de viagem laissez-
(i) tal como em todos os pedidos para a determinação do estatuto de passer: Pena - prisão, de dois a cincos.”
refugiado ou de concessão de asilo, deve conceder-se ao requerente uma
entrevista pessoal e completa por um funcionário devidamente qualificado Nota-se que todas as condutas tipificadas nos dispositivos acima já
e, sempre que possível, por um funcionário da autoridade competente estão devidamente abarcadas pelo artigo 265 do PLS 236/2012, que
para a determinação daquele estatuto;
equivale ao artigo 299 do Código Penal em vigor, ambos relativos ao crime
(ii) o caráter manifestamente infundado ou abusivo de um pedido deve de falsidade ideológica.
ser estabelecido pela autoridade normalmente competente para a
determinação do estatuto de refugiado; A princípio, constata-se que essa repetição configura um excesso
legislativo, na medida em que condutas idênticas já estão criminalizadas
(iii) um requerente, cujo pedido tenha sido recusado, deve ter a possibilidade
em outros dispositivos distintos, o que pode, inclusive, vir a gerar um
de requerer a revisão da decisão negativa antes da rejeição na fronteira ou
do seu afastamento forçado do território. Onde não existam disposições censurável bis in idem.
para essa revisão, os Governos devem considerar favoravelmente o seu No entanto, uma análise mais acurada leva a uma conclusão ainda mais
estabelecimento. Esta possibilidade de revisão pode ser mais simplificada,
do que a existente, para os casos de pedidos recusados que não são preocupante. O crime de falsidade ideológica volta-se à proteção de um
considerados manifestamente infundados ou abusivos.” bem jurídico específico, a fé pública. Logo, o legislador de 1940 e também
os proponentes do PLS 236/2012 consideraram relevante criminalizar a
10 BARRETO, Luiz Paulo Ferreira Teles. “Refúgio no Brasil: a Proteção Brasileira aos refugiados e seu impacto nas conduta daquele que omite uma declaração verdadeira ou faz constar
Américas”. Brasília: ACNUR, 2010, p. 166.
11 Disponível em: http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/unhcr/excom/xconc/excom30.html.

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crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

uma informação falsa com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou Segundo Luis Greco, “boa parte do catálogo de bens jurídicos coletivos
alterar a verdade de fato juridicamente relevante. imaginários da legislação extravagante, notório misto de tipificações
desnecessárias ou duvidosas e de cominações desproporcionais, foi
Ocorre que as condutas tipificadas nos artigos 452, 453 e 456
acolhido no Projeto”. Para o jurista, proclama-se a adesão à ofensividade,
criminalizam precisamente a omissão quanto a fato relevante e a
ao mesmo tempo em que se confere reconhecimento a bens coletivos da
prestação de declarações falsas: usar nome, qualificação ou declaração de
mais duvidosa estirpe12.
origem não verdadeiros ou qualquer documento falso (art. 452); atribuir
qualificação ou informação que sabe não ser verdadeira (art. 453); fazer No que tange à repetição do artigo 125, já existente na Lei 6.815/1980
declaração falsa (art. 456). no artigo 454 do PLS 236/2012, que se diferencia apenas pelo substancial
aumento de pena cominada, importa trazer a irreparável crítica também
Ora, o legislador já havia considerado aquelas condutas lesivas em
formulada por Luis Greco:
razão da preservação da fé pública, não havendo justificativa plausível
para a especialidade da criminalização de condutas já tipificadas. A solução do Projeto, contudo, é de uma simplicidade salomônica: no
Entretanto, segundo a exposição de motivos constante no relatório geral, ele se limita a inserir as leis esparsas no próprio Código. Contudo,
permaneceram, em grande parte, irresolvidos os dois problemas
final da comissão, a criminalização de novas condutas e o aumento de fundamentais dessas leis, quais sejam, o problema das incriminações
penas justifica-se pela tutela ao bem jurídico da segurança nacional. aleatórias, repetitivas ou injustificadas e o problema das cominações
desproporcionais. Além disso, o que é ainda mais grave, conferiu-se a essas
leis de ocasião uma dignidade que elas em absoluto merecem. Será muito
4. Crimes contra a segurança nacional mais difícil extirpar do ordenamento o conteúdo dessas leis irrefletidas se
ele passar a fazer parte do venerável corpo do Código Penal.”13
Digno de nota que a Lei 7.170/1983 define especificamente os crimes
que atentam contra a segurança nacional, sendo o único indicativo Todos estes pontos apenas reforçam a percepção de que o anteprojeto
concreto no ordenamento brasileiro do que se consideram atos lesivos à almeja implementar no Brasil um Direito Penal do Autor. O Direito Penal
segurança nacional. do Autor é a teoria segundo a qual se elege uma determinada categoria
Em linhas gerais, aquele diploma legal considera que crimes contra de pessoas que compartilham uma característica pessoal comum e
a segurança nacional são as condutas que tem por objetivo iniciar assinalam-nas “como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é
uma guerra contra o Brasil; submeter o país ao domínio estrangeiro; negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites
oferecer a outros governos informações confidenciais do país; introduzir do direito penal”14.
armamentos proibidos; sabotar instalações militares; tentar promover, É preocupante, portanto, a constatação de que somente será possível
por meio do uso da violência, a mudança do regime vigente; e formar identificar o bem jurídico violado a partir das características pessoais do
organizações com fins combativos. agente da conduta. Ou seja, se um brasileiro comete algum dos crimes
Sendo assim, resta claro que não há qualquer correspondência entre previstos nos artigos 452, 453 e 456 do PLS 236/2009, viola-se o bem
as condutas ali discriminadas e os artigos constantes no Título XV do PLS jurídico da fé pública. Se um estrangeiro comete o mesmo crime, viola-se
236/2012, que tratam da entrada irregular no país para fins estritamente o bem da segurança nacional.
migratórios ou do apoio humanitário às pessoas que assim agem. Logo, no Título XV do PLS 236/2012, propõe-se que o status do autor
altere o bem jurídico tutelado, sem nenhum elemento adicional que torne
a conduta em si efetivamente mais grave.
5. Retorno do Direito Penal do Autor
O jurista e Ministro da Suprema Corte da Argentina, Eugenio Raúl
Eminentes doutrinadores de Direito Penal no Brasil já começaram a
Zaffaroni, explica que o tratamento diferenciado de determinados seres
se pronunciar sobre o PLS 236/2012, e duras críticas têm sido tecidas
sobretudo ao fato de que o novo código estaria criando bens jurídicos 12 GRECO, Luis. “Princípios fundamentais e tipo no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei236/2012 do
“irreais”. Senado Federal).” Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/upload/noticias/pdf/revista_especial.pdf.
13 Idem nota anterior.
14 ZAFFARONI, Eugenio Raul. “O Inimigo no Direito Penal”. Rio de Janeiro: Revam, 2007. p.11.

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crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

humanos pelo Direito Penal é típico do Estado absoluto, que não conhece classe de seres humanos – a dos imigrantes indocumentados ou em
limites jurídicos e está autorizado a valer-se do seu poder punitivo para situação irregular.
tratar seres humanos não como pessoas, mas como entes perigosos15. Para Zaffaroni, é inadmissível que um Estado democrático e
Neste sentido, o Estado não está se valendo do seu poder punitivo para constitucional de Direito crie uma categoria jurídica de inimigos no direito
enviar uma mensagem aos seus cidadãos e atuar preventivamente, mas ordinário penal – ou em qualquer outro ramo – quando esta categorização
para enviar uma ameaça direta ao grupo de pessoas que considera serem só é admitida no estado de guerra e desde que respeite as limitações
entes perigosos. impostas pelo Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos,
sendo que nem mesmo a caracterização como inimigo bélico retira a
Mais do que isso, o PLS 236/2012 identifica também o acolhimento
condição de pessoa do indivíduo17.
e assistência ao imigrante em situação irregular como uma ameaça
penalmente relevante, negando as garantias mínimas do direito
internacional dos direitos humanos a uma população que, dada a 6. Princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da
sua condição migratória, encontra-se em uma posição de extrema culpabilidade
vulnerabilidade e risco de ser vítima de toda forma de violência.
Ademais, cabe ressaltar que o Título XV fere os princípios da intervenção
Neste ponto, ao analisar o artigo 318 do Código Penal Espanhol, que mínima, da fragmentariedade e da culpabilidade, por diversos motivos.
trata do crime de “imigração clandestina”, o jurista espanhol Manuel Primeiro porque somente se deve recorrer ao Direito Penal quando todos
Cancio Meliá faz uma irretocável ponderação sobre a categoria de normas os demais meios de controle estatal revelarem-se insuficientes, haja vista
que, assim como aquelas do Título XV do PLS 236/2012, criminalizam o a qualidade de ultima ratio deste ramo do Direito. Não é este o caso do
imigrante em situação irregular e as pessoas que lhes prestam assistência: tema das migrações, que deve permanecer sendo regulamentado na área
administrativa. Ainda, não é objetivo do Direito Penal proteger todos os
No caso do delito do artigo 318 bis. 1 CP, é possível afirmar que a bens jurídicos contra violações, mas sim intervir apenas nos casos de
dificuldade existente na hora de se identificar o risco concreto que se
pretende evitar quando se castiga quem favorece o descumprimento das
maior gravidade, protegendo um fragmento dos inúmeros interesses
normas reguladoras da imigração leva à conclusão de que o interesse jurídicos envolvidos.
não se volta a uma determinada forma de imigração, mas ao próprio
fenômeno migratório em geral. [...] Desse modo, gera-se a impressão de
Dessa forma, é censurável uma proposta que, em lugar de trazer penas
que, além do controle da imigração, o que se produz com a tipificação alternativas, promove o encarceramento por ainda mais tempo, olvidando-
de condutas que favorecem a imigração irregular é a marginalização e se das estratégias do Governo e do Ministério da Justiça e de que a prisão
exclusão dos imigrantes que entram no nosso país sem respeitar as normas deve ser vista como última alternativa. Igualmente, é inadmissível que em
estabelecidas, castigando severamente aqueles que se identificam com os um período de transição, de consolidação da verdade e de fortalecimento
imigrantes e lhes prestam algum tipo de ajuda. Ao considerar a chegada
ou permanência do imigrante como uma ameaça penalmente relevante, é das instituições democráticas busque-se resgatar a mesma lógica vigente
o próprio imigrante quem acaba sendo visto não como um “cidadão”, mas no período ditatorial instaurado após o golpe de 1964.
como uma fonte de conflitos, como um “inimigo”.16
O respeito ao princípio da culpabilidade, por fim, pode ser questionado
Com efeito, por analogia, nota-se que o que está na base das tipificações na medida em que o Título XV não reflete uma censura fundada na
penais propostas no Título XV não são apenas condutas, mas elementos experiência de vida cotidiana da sociedade brasileira, sobretudo levando-
que servem à caracterização de um autor específico que pertence à se em conta que ela mesma foi construída com base em prolongados
categoria de pessoas que Zaffaroni e Cancio Meliá classificam como fluxos migratórios. Além disso, o princípio da culpabilidade também exige
“inimigos do Estado”, uma formulação típica do Direito Penal do Inimigo. que o agente saiba que tem a opção de agir de outro modo conforme ao
direito, mas ainda assim prefira atuar violando-o.
Sendo assim, o Título XV não se dispõe a combater crimes, mas perigos
abstratos ou presumidos e supostamente impostos por uma determinada Neste ponto, cabe tratar da essência da Lei de Estrangeiros (6.815/1980)
15 Idem nota anterior.
a fim de averiguar os limites dessa escolha do estrangeiro em agir em
16 MELIA, Manuel Cancio; GOMEZ, Mario Maraver. “El Derecho Penal Español Ante La Inmigración: Un Estudio
Político-Criminal”. In: Revista Cenipec, 2006, p. 108. 17 Idem nota 8, p. 12.

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crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

conformidade ao direito. Esta Lei foi elaborada em um contexto de temor Por todo exposto, resta claro que os artigos do Título XV do PLS 236/2012
das influências externas sobre o regime ditatorial inaugurado em 1964, ferem as garantias asseguradas aos solicitantes de refúgio e refugiados no
de modo que a segurança nacional era tida como um valor fundamental à Brasil e destoam da ponderação de valores feita pelo legislador pátrio, que
preservação da ordem no Estado. optou por preservar o bem jurídico da vida, integridade física e liberdade
do solicitante de refúgio, considerados infinitamente mais importantes do
Os Delegados de Polícia Federal Luciano Pestana Barbosa e José
que a instauração de procedimentos contra o uso de passaportes falsos
Roberto Sagrado da Hora compartilham o entendimento de que, após a
ou pela ausência de documentação.
transição democrática, “a filosofia da legislação brasileira sobre a entrada
e permanência de estrangeiro no Brasil mantém-se obsoleta e inspirada Ainda, conforme será demonstrado nos itens a seguir, o tratamento
no atendimento à segurança nacional, à organização institucional e nos penal diferenciado que o anteprojeto de Código Penal almeja dar aos
interesses políticos, socioeconômicose culturais do Brasil, bem como na estrangeiros em geral não se coaduna com os princípios basilares da
defesa do trabalhador nacional (Lei nº 6815/80, art. 2º), sendo que o igualdade e não discriminação previstos na Constituição Federal de 1988,
ingresso no País configura-se mera expectativa de direito”18. e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, e tampouco reflete
as políticas migratórias que têm sido adotadas pelo Estado brasileiro nos
Importa notar que aquele posicionamento não reflete uma posição
últimos anos.
isolada, mas o entendimento da própria Academia Nacional de Polícia,
que considera o seguinte:
7. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e os migrantes
Esta Lei reflete uma política imigratória restritiva e de caráter seletivo, indocumentados
ultrapassada, portanto. A promulgação da Constituição Federal de 1988
consolidou os direitos civis e fundamentais do imigrante, seguida pela O artigo inaugural da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe
edição do Decreto Legislativo nº 27/92, em que o Brasil subscreveu a que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
Rica). É a melhor indicação de que a atual política de imigração mudou com espírito de fraternidade21.
o foco para os direitos humanos”19. Ao longo dos anos, os tribunais e a doutrina de Direito Internacional
O Presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Paulo Sérgio elevaram o princípio da igualdade e não discriminação à qualidade de
de Almeida, por sua vez, há muito defende a urgente modificação da jus cogens, uma vez que são princípios inderrogáveis e de aplicação
Lei 6.815/1980, entendendo que “a lei é de 1980, o contexto migratório imperativa nas relações entre Estados e indivíduos.
naquela época era outro e a lei é muito restritiva e burocrática, tratando Com base neste princípio, a Assembleia Geral das Nações Unidas editou
os estrangeiros no Brasil tão somente como uma questão segurança a Resolução 54/166 em 24 de fevereiro de 200022, chamando a atenção
pública”20. para a situação de vulnerabilidade em que se encontram os imigrantes
Diante dessas considerações, a vigência de uma Lei de Estrangeiros sem documentação ou em situação irregular e externalizou a preocupação
(6.815/1980), orientada pela ótica da segurança nacional e avaliada com as manifestações de violência, racismo, xenofobia e outras formas
pelas autoridades brasileiras como restritiva, coloca para o estrangeiro de discriminação e tratamento degradante contra imigrantes. Feito isso,
que deseja imigrar ao Brasil barreiras muitas vezes intransponíveis para a Assembleia Geral reiterou a necessidade de os Estados protegerem os
acessar as vias de imigração regular. Somando a isso fatores de ordem direitos humanos universalmente reconhecidos dos imigrantes e tratá-los
econômica e humanitária, fica questionável a afirmação de que o imigrante com humanidade, independentemente da sua situação jurídica.
sempre tem a opção de agir em conformidade ao direito, sendo possível No âmbito regional, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
argumentar que o princípio da culpabilidade estaria sendo violado pelo tampouco silenciou a respeito do tratamento deferido aos migrantes
Título XV do PLS 236/2012. indocumentados. Na Opinião Consultiva n. 18/0323, a Corte Interamericana
21 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm
18 BARBOSA, Luciano Pestana; HORA, José Roberto Sagrado. “A Polícia Federal e a Proteção Internacional dos
22 Disponível em: http://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/mainsite/policy_and_research/un/54/A_
Refugiados”. Brasília: ACNUR, 2007, p. 57.
RES_54_166_en.pdf.
19 Idem nota anterior, p.58.
23 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf.
20 Disponível em: http://www.fetecsp.org.br/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=38922.
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de Direitos Humanos ressaltou que estar em situação regular não é hipótese alguma, ter um caráter punitivo”26.
condição necessária para que um Estado respeite e garanta o princípio O Estado do Panamá, inclusive, chegou a ser condenado pela Corte
da igualdade e não discriminação, dado o caráter fundamental daquele Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em razão dos fatos que se
princípio e a obrigatoriedade de os Estados aplicarem-no, indistintamente, seguiram à prisão do imigrante equatoriano, Jesús Tranquilino Vélez Loor,
aos seus cidadãos e aos estrangeiros que se encontram em seu território. após a constatação de que ele não portava a documentação necessária
Conforme exposto no item anterior, o PLS 236/2012 propõe a punição para permanecer no Panamá27.
de indivíduos exclusivamente em razão de sua origem, fazendo da Preliminarmente, a CIDH recordou que os Estados têm a faculdade de
nacionalidade um elemento do tipo penal, já que a conduta seria atípica fixar políticas migratórias e mecanismos de controle do ingresso e saída
se os mesmos indivíduos fossem nacionais do Brasil. de pessoas que não sejam seus nacionais, mas que essa capacidade
Neste sentido, no que tange à imposição de medidas privativas de deve ser compatível com as normas de proteção dos direitos humanos
liberdade de caráter punitivo e com o escopo de controlar os fluxos estabelecidas na Convenção Americana.
migratórios, sobretudo aqueles de caráter irregular, os organismos A CIDH chamou a atenção, ainda, para a situação de vulnerabilidade
internacionais também se manifestaram, em inúmeras ocasiões, de na qual se encontram os migrantes indocumentados ou em situação
maneira contrária à penalização da imigração e dos imigrantes. irregular, reconhecendo que eles estão mais expostos a potenciais e reais
Inicialmente, importa mencionar os resultados obtidos pelo Grupo de violações aos seus direitos humanos e que sofrem um elevado nível de
Trabalho sobre a Detenção Arbitrária da Comissão de Direitos Humanos desproteção em decorrência da sua situação.
das Nações Unidas, que construiu, ao longo dos seus relatórios, uma Feitas essas considerações iniciais, a CIDH passou a debruçar-se sobre
posição contrária à detenção dos imigrantes. a possibilidade de os Estados estabelecerem sanções penais, de caráter
Em 12 de dezembro de 2005, o Grupo de Trabalho publicou um punitivo, em razão do descumprimento de leis migratórias.
relatório24, no qual denunciava a aplicação excessiva da pena de prisão, o A sentença começa a análise daquela questão a partir da interpretação
que não seria compatível com o princípio de que todos os indivíduos têm do Artigo 7.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que cristaliza
direito à liberdade, consagrado em diversos tratados regionais e globais. o princípio da tipicidade e obriga os Estados a estabelecerem de antemão
Em cumprimento à Resolução 1997/50, da Comissão de Direitos as causas e condições da privação da liberdade física; e do Artigo 7.3 do
Humanos das Nações Unidas, o Grupo de Trabalho analisou, em 10 de mesmo diploma, que estabelece que ninguém será submetido a detenção
janeiro de 200825, a situação dos imigrantes e solicitantes de asilo que ou prisão arbitrária.
eram objeto de detenção sem que houvessem cometido qualquer delito. A análise de compatibilidade das medidas privativas de liberdade
Diversas facetas da detenção daquela população específica foram com aqueles artigos da Convenção Americana conclui, em síntese, que
analisadas, tendo o Grupo de Trabalho concluído que “tipificar como somente são admissíveis as prisões que a) sejam idôneas a cumprir o
delito a entrada ilegal no território de um Estado transcende o interesse fim perseguido; b) sejam absolutamente indispensáveis ao alcance do
legítimo dos Estados de controlar e regular a imigração ilegal e dá lugar a fim desejado e que não exista nenhuma outra medida menos gravosa
detenções desnecessárias”. capaz de alcançar o mesmo objetivo; c) que a privação da liberdade seja
absolutamente proporcional, de modo que não imponha um sacrifício
No mesmo sentido, concluiu a Relatora Especial das Nações Unidas,
excessivo.
Gabriela Rodríguez Pizarro, convocada pela Comissão de Direitos
Humanos por meio da Resolução 2002/62, que dispôs que “a detenção Diante disso, a Corte conclui que a imposição de medidas penais ao
dos imigrantes em razão de sua situação irregular não deveria, em imigrante que ingressa no país de maneira irregular não é um fim legítimo
de acordo com a Convenção, quedispõe que “a detenção de pessoas por
descumprimento de leis migratórias nunca deve ter um fim punitivo.
24 Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G05/166/51/PDF/G0516651.
pdf?OpenElement. 26 Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G02/162/58/PDF/G0216258.
25 Disponível em:http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G08/100/94/PDF/G0810094. pdf?OpenElemvtent.
pdf?OpenElement. 27 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_218_esp2.pdf.

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O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

[...] Serão arbitrárias as políticas migratórias cujo foco central seja a humanos, revelam-se inconstitucionais e ilegais diante do ordenamento
detenção obrigatória dos imigrantes irregulares, sem que as autoridades jurídico brasileiro e vulneram os direitos dos migrantes, de suas famílias
competentes verifiquem em cada caso particular, e mediante avaliação e dos atores da sociedade civil e defensores de direitos humanos que
individualizada, a possibilidade de utilizar medidas menos restritivas que prestam assistência aos imigrantes e refugiados.
sejam efetivas a alcançar aqueles fins.”
Este entendimento está de acordo com o Manual do ACNUR sobre 8. Compromissos brasileiros nos foros internacionais e ações concretas no
detenções de solicitantes de asilo, que considera que “a entrada ou estadia plano interno
ilegal de solicitantes de refúgio não dá ao Estado um poder automático de A proposta do Título XV do PLS 236/2012 também está em desarmonia
prendê-lo ou restringir sua liberdade de movimento. [...] Além disso, a com os pronunciamentos emitidos pelo Brasil à comunidade internacional,
detenção não é permitida como medida punitiva – por exemplo, criminal assim como dissente dos compromissos formalmente assumidos em
– ou como sanção disciplinar pela entrada ou presença irregular no país”28. fóruns regionais.
Cabe recordar que o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Com efeito, em Nota à Imprensa emitida em 03 de maio de 201032,
Humanos, pelo Decreto 678, de 02 de novembro de 199229, e, mediante o Ministério das Relações Exteriores condenou veementemente a Lei
o Decreto 4.463/200230, reconheceu como obrigatória, de pleno direito Anti-imigratória do Arizona (Estados Unidos da América) que, tal como
e por prazo indeterminado, a competência da CIDH em todos os casos o PLS 236/2012, criminalizava a estadia irregular e autorizava a prisão de
relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de imigrantes naquela situação.
Direitos Humanos.
Naquela comunicação, o Governo brasileiro externalizou sua censura
Isso significa que o Brasil está obrigado pelo direito internacional e à legislação norte-americana, afirmando que “o Governo brasileiro tem-
interno a observar não apenas as decisões que lhe forem diretamente se pronunciado firme e reiteradamente, em negociações bilaterais e
aplicáveis, mas também a jurisprudência geral da CIDH, uma vez que, nos foros internacionais, contra a associação indevida entre migração
segundo o artigo 62, item 3, da Convenção Americana, a Corte é o órgão irregular e criminalidade”, considerando ainda “que conceder o mesmo
competente para interpretar e aplicar as disposições da Convenção, tratamento a indocumentados e criminosos subverte noções elementares
sempre que um caso for submetido à sua apreciação. de humanidade e justiça”.
O Supremo Tribunal Federal, inclusive, firmou posicionamento no Por fim, a nota afirmou expressamente que “o Governo brasileiro se
Recurso Extraordinário 466.343-1/SP31, no sentido de que os tratados une às manifestações contrárias à lei anti-imigratória do Arizona” e que
internacionais sobre direitos humanos ratificados antes da promulgação da “espera que tal legislação seja revista, de modo a evitar a violação de
Emenda Constitucional n. 45/2004, tem status de supralegalidade. Diante direitos de milhões de estrangeiros que vivem e trabalham pacificamente
disso, aqueles tratados internacionais são hierarquicamente superiores à nos Estados Unidos”.
legislação ordinária, em que se inclui o código penal, tendo uma eficácia
paralisante sobre a legislação infraconstitucional e eivando de ilegalidade Outro exemplo concreto de uma postura brasileira diametralmente
qualquer disposição contrária ao tratado contida na lei comum. oposta à substância do Título XV do PLS 236/2012 deu-se por ocasião da
XI Conferência Sul-Americana sobre Migrações, realizada em outubro de
Resta evidente, portanto, que o Brasil estará ferindo frontalmente 2011, quando doze países sul-americanos, dentre eles o Brasil, firmaram a
a Convenção Americana de Direitos Humanos; contrariando o “Declaração de Brasília: Rumo à Cidadania Sul-Americana”33.
posicionamento da Corte, cuja jurisdição reconheceu como obrigatória
e se submetendo a uma possível condenação futura caso o Congresso Naquela declaração, os países signatários reconheceram expressamente
venha a aprovar os artigos constantes no Título XV do PLS 236/2012, “a significativa contribuição dos migrantes para o desenvolvimento social,
que destoam das convenções internacionais e regionais sobre direitos econômico, cultural e educacional nos países de destino, bem como os
efeitos positivos que a dinâmica migratória produz para o bem-estar e o
28 Idem nota 2.
29 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm.
32 Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/lei-anti-imigratoria-do-
30 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm.
arizona/print-nota.
31 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444.
33 Disponível em: http://www.csm-2011.com/index.php/xi-conferencia/103-declaracao-de-brasilia.

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O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

desenvolvimento dos países de origem”. da política brasileira que se orientou no sentido de acolhê-los nas
fronteiras, regularizar a situação daqueles que se já encontravam no
Ademais, consignaram que “não são aceitáveis políticas ou iniciativas
território nacional em situação irregular (mediante a Resolução 97/2012
que tipifiquem a irregularidade migratória como crime, equiparando,
do CNIg)37 e viabilizar meios de acesso à migração regular para o Brasil
desse modo, as pessoas indocumentadas aos criminosos”34.
através do plano de concessão de 1.200 vistos anuais a haitianos a partir
Feitas as considerações iniciais, os países, finalmente, decidiram da Embaixada Brasileira em Porto Príncipe.
“repudiar as políticas governamentais que tratam de forma indiferenciada
O CNIg, aliás, em voto aprovado em março de 201138, firmou o
migrantes indocumentados ou em situação irregular e criminosos”
entendimento de que as suas políticas migratórias “se pautam pelo
e condenar conjuntamente “leis estaduais aprovadas recentemente
respeito aos direitos humanos e sociais dos migrantes, de forma que sejam
nos Estados Unidos da América, que tipificam como delito a condição
tratados com dignidade e em igualdade de condições com os brasileiros”.
migratória irregular, o transporte e a oferta de emprego a imigrantes
indocumentados.” Esta política encontra fundamento na própria Constituição Federal de
1988, que dispõe, em seu artigo 3º, que um dos objetivos da República
Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de
9. Posição do Conselho Nacional de Imigração origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de discriminação. Adicione-
Nos termos do artigo 1º do Decreto n. 840/199335, o Conselho Nacional se a isso a fundamental previsão do artigo 5º, que cristaliza a igualdade
de Imigração (CNIg), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, de brasileiros e estrangeiros perante a lei, sem distinções de qualquer
é o organismo responsável, no país, pela formulação de políticas de natureza.
imigração, coordenação e orientação de atividades de imigração e solução Exemplo concreto de que as ações do CNIg estão calcadas na primazia
dos casos omissos no que diz respeito a imigrantes. dos direitos humanos reside na Resolução n. 2739 de 25 de novembro
Sendo assim, as características da posição brasileira com relação à de 1998 do conselho. Aquela normativa disciplina a avaliação de casos
imigração podem ser extraídas a partir da análise das ações e decisões do especiais e omissos que, embora não se enquadrem nos regimes de vistos
CNIg, mesmo na ausência de um plano nacional de políticas migratórias. disponíveis para estrangeiros, merecem a atenção do CNIg em razão da
vulnerabilidade do migrante.
Inicialmente, cumpre salientar que o Presidente do CNIg, Paulo Sérgio
de Almeida definiu a política daquele conselho como voltada à situação No mesmo voto do CNIg, ao qual se fez referência linhas atrás, restou
dos migrantes indocumentados, e norteada pela busca da regularização consignado que “na aplicação da RN n. 27/98 o CNIg tem considerado
migratória, como se infere dos seus comentários abaixo transcritos: as políticas migratórias estabelecidas para considerar como ‘especiais’ os
casos que sejam ‘humanitários’, isto é, aqueles em que a saída compulsória
Nos últimos anos, o CNIg avançou na perspectiva de tornar mais acolhedora do migrante do território nacional possa implicar claros prejuízos à
a legislação brasileira, especialmente em relação aos imigrantes oriundos proteção de seus direitos humanos e sociais fundamentais”.
dos países da América do Sul, que integram um dos principais fluxos
migratórios ao Brasil, e em relação aos quais temos compromissos de Outro exemplo interno que deve ser recordado é o fato de que, desde
integração. [...] O CNIg tem apoiado políticas de regularização migratória 1980, o Brasil promoveu até então quatro grandes anistias (em 198040,
dos imigrantes indocumentados.”36 198841, 199842 e em 200943) de estrangeiros que se encontravam em
A solução adotada diante do intenso fluxo de haitianos para o Brasil, 37 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC8820135687F345B412D/
RESOLU%C3%87%C3%83O%20NORMATIVA%20N%C2%BA%2097.pdf.
iniciado após o terremoto que assolou o Haiti em 2010, é emblemática 38 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D308E21660130D7CE9FAD1DD9/ata_
cnig_20110316.pdf.
34 Essa perspectiva de não-criminalização da parte mais vulnerável nesta relação pode ser associada à orientação 39 Disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_estrang/resolucao-normativa-n-27-de-25-11-1998.htm.
basilar do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo 40 Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.
à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, do qual o æBrasil htm#art13v.
é signatário, que prescreve que a vítima não pode ser criminalizada, devendo ser protegida e tratada com 41 Lei 7.685, de 02 de dezembro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7685.
humanidade. htm#art1.
35 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0840.htm. 42 Lei 9.675, de 29 de junho de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9675.htm#art1.
36 ALMEIDA, Paulo Sérgio de. “Conselho Nacional de Imigração (CNIg): Políticas de Imigração e Proteção ao 43 Lei nº 11.961, de 2 de julho de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
Trabalhador Migrante ou Refugiado”. In: Caderno de Debates, v. 4. Brasília: ACNUR, 2009, p. 13. 2010/2009/Lei/L11961.htm.

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O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor: Gabriel Gualano de Godoy e Raquel Trabazo
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

situação irregular no país. As anistias são, irrefutavelmente, fruto de dirigem. A proteção de direitos dos chamados migrantes indocumentados
uma evidente e atual inclinação brasileira em promover a inserção social visa a evitar esta exclusão social e as violações reiteradas a direitos
dos estrangeiros que, por muito tempo, se encontravam marginalizados inerentes à condição de pessoa humana”45.
devido à sua condição migratória no país. Assim, o Brasil tem adotado uma prática favorável em matéria de
Ademais, o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes imigração e, em lugar de simplesmente desconstituir o grau de efetivação
do Mercosul, firmado, em 2002, pelo Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, dos princípios constitucionais já alcançado em relação aos estrangeiros
Bolívia e Chile, é outro exemplo da abertura do Brasil à integração de através das políticas acima apontadas, deveria buscar alinhar sua
estrangeiros na sociedade. legislação com os melhores exemplos dados por outros países da região.
O referido acordo estipula que os nacionais de qualquer Estado-parte A Lei 25.871, de 21 de janeiro de 2004, Lei de Migrações da Argentina46,
poderão obter residência temporária, válida por dois anos, em qualquer por exemplo, reconhece expressamente que o direito à imigração é
outro Estado-parte do acordo. Findos os dois anos iniciais de residência essencial e inalienável à pessoa, e que a República Argentina assegura
provisória, é facultado requerer a conversão em residência permanente. esse direito com base nos princípios da igualdade e universalidade. Este
Em 28 de junho de 2011, o Peru e o Equador passaram a integrar aquele é, sem dúvidas, um modelo a ser adotado como inspiração pelo legislador
acordo, sendo que em 29 de junho de 2012 a Colômbia também aderiu. brasileiro, na medida em que, ao contrário do PLS 236/2012, mantém a
coerência com a práxis brasileira.
Finalmente, a prática favorável do Estado brasileiro em adotar uma
política migratória protetiva dos direitos humanos dos imigrantes também Diante do exposto, resta evidente que a proposta do Título XV do
tem se refletido em dois projetos de lei em tramitação no Congresso PLS 236.2012 decorre de uma absoluta incompreensão não apenas da
Nacional. legislação brasileira e do Direito Internacional relativos ao refúgio, direitos
humanos e migrações, mas também à própria política estatal de correção
O PL n. 5.655/2009 (Anteprojeto de Estatuto do Estrangeiro)44 é um
de vulnerabilidades e regularização de estrangeiros no país.
exemplo concreto da intenção do Brasil em tratar a imigração sob o
prisma humanitário, positivando o que já acontece na prática. A exposição A menos que todo aquele título seja excluído, impor-se-á ao Direito
de motivos daquele projeto de lei comprova essa intenção, na medida brasileiro um flagrante retrocesso social, sobretudo levando-se em
em que dispõe que o Governo brasileiro reconhece a migração como um consideração que nem mesmo a Lei 6.815/1980, formulada sob a ótica
direito do homem e considera a regularização migratória como o caminho da segurança nacional em um período de ditadura militar, criminaliza a
mais viável para a inserção do imigrante na sociedade. entrada, permanência e assistência a estrangeiros em situação irregular
da maneira que o PLS 236/2012 o faz.
A MSC n. 696/2010, por sua vez, submete à apreciação do Congresso
Nacional o texto da Convenção Internacional sobre a Proteção dos
Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Conclusão
Famílias, adotada em 18 de dezembro de 1990, na Assembleia Geral das Os argumentos expostos ilustram nada mais que a disposição do Estado
Nações Unidas. A exposição de motivos da Mensagem enviada pelo então e da sociedade brasileira em abrir espaços para os imigrantes, tratando
Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, dispunha que: a migração através de uma lente humanitária que não se coaduna com
O instrumento visa a proteger os direitos de todos os trabalhadores a proposta de repulsão e criminalização de estrangeiros em situação
migrantes e membros de suas famílias, independentemente de sua irregular proposta pelo PLS 236/2012.
situação migratória. Os migrantes indocumentados constituem parte Nosso histórico impõe que o debate acerca da migração no Brasil não
significativa da totalidade dos migrantes e têm sido sujeitos a diversas deva ocorrer na seara penal, mas sim no âmbito administrativo, por meio
violações a seus direitos humanos em países de trânsito e de destino. Suas da elaboração de uma Política Nacional de Imigração.
condições de vida e de trabalho são frequentemente degradantes, devido
à fragilidade advinda de seu “status” precário nos países para os quais se
45 Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=489652.
44 Disponível em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=443102. 46 Disponível em: http://www.gema.com.ar/ley25871.html.

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O Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 e o retorno do Direito Penal do Autor:
crítica ao título XV sobre crimes relativos a estrangeiros

Assim, considera-se que a incongruência do Título XV do PLS 236/2012,


diante da postura do Estado brasileiro, somente pode ser sanada pela
supressão de todos os dispositivos legais constantes naquele título, motivo
pelo qual espera-se ao menos uma emenda supressiva do Título XV do
PLS 236/2012, que pelos fundamentos descritos propõe a positivação de
graves retrocessos. Esses poucos artigos, de modo muito similar a outros
tantos dispositivos do PLS mostram exemplos de atecnia perpetrada pelo
legislador ao longo de todo o Projeto, que, infelizmente, apostou na pena
privativa de liberdade como solução para os mais distintos problemas.

Referências
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ROXIN, C. Tratado de derecho penal, parte general, tomo I , tradução de Diego-Manuel
de Lúzon Peña, Miguel Dias y Garcia Colledo e Javier de Vicente Remesal, Madri: Editora
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SANTOS, J. C. A moderna teoria do fato punível, 4ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,
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ZAFFARONI, E. R. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revam, 2007, p.11.

244
MSc. Efraín Peña

Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como


garantizarlos? ¿Es posible?

MSc. Efraín PEÑA1

Resumen
A medida que el clima mundial cambie, millones de personas quedarán
desarraigadas debido a la subida del nivel del mar, acontecimientos
climáticos extremos, sequías y la escasez de agua. Si bien muchos
actores - que van desde los consultores en desarrollo a los expertos en
seguridad - han ido incluyendo este hecho en su discurso, la comunidad
internacional, hasta ahora, ha hecho muy poco por proteger los derechos
de los “refugiados climáticos”. Cuando se trata de la migración ocasionada
por el cambio climático. Para incluir los derechos de estas poblaciones
vulnerables en la agenda de la comunidad internacional es necesario
enlazar el mundo académico, las organizaciones de la sociedad civil, los
gobiernos que trabajan en la cuestión del cambio climático para así darles
el status que se requiere para la correcta protección de sus derechos.
Encontrar las palabras adecuadas para describir a aquellas personas
que se verán forzadas a dejar sus países a causa del empeoramiento de
las condiciones climáticas, es la primera dificultad que entraña el camino
hacia el reconocimiento de su protección por el derecho internacional. La
terminología de las Naciones Unidas establece sutiles distinciones entre
migrantes, refugiados y desplazados internos en función de cómo y por
qué se ha producido su desplazamiento: ¿Cruzaron fronteras nacionales o
internacionales? ¿Fueron objeto de persecución? ¿En qué medida existía
una amenaza contra sus vidas y sus derechos humanos? Se les llama
refugiados climáticos, porque buscan refugio? Es esa la correcta acepción?
Dado que las personas afectadas comparten una serie de características
que las sitúan aparte de las categorías de refugiados políticos y migrantes
económicos elaboradas en el pasado, los refugiados climáticos no
pueden volver a su lugar anterior de residencia tras un asilo temporal. Es
probable que migren en grandes cantidades, colectivamente y de forma
relativamente predecible. Y, más importante aún, tienen una gran exigencia
legal frente a la comunidad internacional, puesto que las naciones más ricas
del mundo son las principales causantes de sus problemas que causaron
1 Abogado, Master en Gestión Ambiental, Especialista en Derecho Minero y Energético; y Doctorando en Derecho
Ambiental y de Sostenibilidad. Consultor Internacional.

245
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín Peña

dicho fenómeno. Por este motivo, se considera que es necesario crear El informe Stern4, afirmó que la clave para resolver la crisis climática, es
un nuevo instrumento legal especialmente adaptado a las necesidades lograr que los países más contaminantes, como China y Estados Unidos,
de los refugiados climáticos, así como un mecanismo de financiación reduzcan sus emisiones por medio de medidas tributarias y cuotas de
separado, tal como un protocolo a la Convención Marco de las Naciones emisión de monóxido de carbono. En él se realizan advertencias muy
Unidas sobre el Cambio Climático (CMNUCC). Así las cosas, se precisa preocupantes acerca del impacto económico que tendrá el cambio
necesario un régimen específico para los desarraigados por el cambio climático en el mundo de continuar incumpliendo el Protocolo de Kioto y
climático, pero la supranacionalidad ha probado fallarle a la humanidad, sus compromisos de reducción de emisión de gases de efecto invernadero.
entonces estaremos en presencia de la reivindicación del ente local, como Hoy, más seis años después de la presentación del mencionado informe,
implementador de dicho régimen? vemos que sus predicciones son aún más graves de lo dicho.
Resulta aun más preocupante y agrava dicha situación es el hecho que
Introducción investigaciones de la NASA aseguran que aún cuando se eliminaran las
emisiones de gases invernadero, la temperatura del planeta continuaría
Como lo ha sostenido el Panel Intergubernamental de Cambio Climático aumentando hasta 0,6°C debido a las grande cantidades ya emitidas de
(IPCC), entre las diversas consecuencias que han provocado los efectos dichos gases5, lo cual implica que el calentamiento del planeta continuará
del cambio climático a raíz del calentamiento global, está la aceleración incrementándose sobre todo considerando que aun se han adoptado
de la degradación de los ecosistemas, propensos a la deforestación, a medidas reales para mitigar el cambio climático a través de mecanismos
la salinización, a la erosión de la tierra y a la desertificación, así como reales de reducción de la emisión de gases de efecto invernadero. Por lo que
el incremento del riesgo tanto del ser humano, como de los niveles de resulta inminente que continuaran incrementándose el acontecimiento de
producción al ser cada vez más extremos y catastróficos los fenómenos distintos fenómenos ambientales y con ello el desplazamiento de millones
ambientales2. de personas. Ahora bien, están los marcos jurídicos en posibilidad de
Como una consecuencia importante de lo anteriormente descrito, se abordar este fenómeno y garantizar los derechos fundamentales?
resalta la migración de miles de personas en diversas partes del mundo, Vemos que desde 1990, el Grupo Intergubernamental de Expertos
que al resultar insostenible continuar viviendo en el lugar donde residen sobre Cambio Climático observó que la migración humana podría ser
optan por desplazarse a lugares donde puedan continuar su vida. Uno la consecuencia más grave del cambio climático. Asimismo, el Panel
de los casos más evidentes es África, en donde siendo la cuarta reserva Intergubernamental de Cambio Climático (IPCC) predijo que habrá
más grande de agua dulce, el lago Chad se ha secado casi totalmente. 150 millones de desplazados ambientales en el año 2050 –cantidad
Asimismo, los casi veintidós millones de personas viven en la cuenca del equivalente al 1.5% de 2050’s de la población mundial que se predice será
lago ven amenazada su supervivencia, haciendo evidente que no es solo la de 10 billones aproximadamente6. Por su parte el mencionado Informe
pérdida de un ecosistema el problema del calentamiento global, sino que Stern señala que podrá haber 200 millones de desplazados en el 20507.
hay una dimensión humana por considerar. Nigeria por ejemplo, ya no Una predicción más dramática es la de Christian Aid quien considera que
tiene acceso al lago, por lo que la sequía, el hambre y epidemias afectan un billón de personas podrían permanecer desplazadas en el 2050, 250
no sólo al citado país sino también a Mauritania, Mali, Chad y Somalia. millones por fenómenos relacionados con el cambio climático y otras 645
Esto ha provocado el constante desplazamiento de personas a cientos de
kilómetros de distancia3, dentro y fuera de las fronteras de donde son 4 Stern, es el nombre de un informe sobre cambio climático (Stern Review on the Economics of Climate Change)
presentado en Octubre 2006 por el Gobierno del Reino Unido y encargado al antiguo vicepresidente del Banco
nacionales. Mundial, Nicholas Stern. En él se realizan advertencias muy preocupantes acerca del impacto económico que
tendrá el cambio climático en el mundo de continuar incumpliendo el Protocolo de Kioto y sus compromisos de
reducción de emisión de gases de efecto invernadero. Estas advertencias incluyen previsiones de pérdidas de hasta
el 20% del Producto interior bruto mundial (PIB), lo que provocaría una crisis a gran escala. Se afirma entonces que
con una inversión del 1% anual del PIB mundial, se podría paliar el aumento de temperatura, el deshielo, y todas las
demás consecuencias del cambio climático. Cfr. Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change,
www.hm-treasury.gov.uk/independent_reviews/stern_review_economics_climate_change/ stern_review_report.
2 Citado en International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Ninety cfm
Fourth Sesion, MC/INF/288, 1 November 2007, disponible en: http://www.iom.int/jahia/webdav/shared/shared/ 5 Cfr. NASA. NASA News, 2005 Warmest Year in Over a Century, USA, 2006, disponible en: http://www.nasa.gov/
mainsite/about_iom/en/council/94/MC_INF_288.pdf centers/goddard/news/topstory/2006/2005_warmest.html.
3 Cfr. Norman Myers, “Environmental Refugees: A Growing Phenomenon of the 21st Century,” Philosophical 6 Milan, S. Eco-Refugees Seek Asylum, en www.alternet.org/environment/19179
Transactions of the Royal Society of London B 357, no. 1420 (2002): 609-13. 7 Stern, N. (2006) Stern Review on the Economics of Climate Change, Op. Cit.

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Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín Peña

millón a consecuencia de otros proyectos ambientales8. Es decir que aun Concepto para identificar a las personas que sufren desplazamiento por
cuestiones climáticas
en el escenario más optimista, esta realidad es no solo preocupante, sino
inminente. El primer punto que es necesario abordar para crear la instrumentación
que protegerá a aquellas personas que se ven compelidas a dejar sus
Es aquí donde, independientemente de las medidas que tomen las
hogares por el acontecimiento de fenómenos naturales derivados del
distintas naciones para reducir la emisión de gases invernadero a corto
cambio climático, es establecer el concepto que los defina de manera
plazo, es un hecho inevitable que se incrementará el desplazamiento
más apegada conforme al propósito del presente artículo, para lo cual
humano. En este sentido, aún cuando para algunos Estados, la migración
se analizarán las acepciones que ha creado la doctrina para definirlos. En
por cuestiones climáticas constituye ya una problemática, actualmente
este sentido, se puede advertir que sin bien la doctrina ha creado diversas
no existe ningún tipo de ordenamiento que regule la situación jurídica
acepciones tales como refugiados ambientales, refugiados climáticos,
de estas personas que se ven obligadas a abandonar sus hogares por
desplazados ambiéntales, personas ecológicamente desplazadas, eco-
resultarles imposible permanecer ahí.
refugiados, migrantes ambientales, migrantes forzados ambientales; sin
Si bien existe algunos ordenamientos internacionales que regulan embargo, estas categorizaciones no resultan idóneas para describirlos
la migración de personas de un país a otro por cuestiones políticas o toda vez que hacen referencias a instituciones que no son aplicables para
humanitarias como es el caso de los refugiados y desplazados, éstos no le el caso de las personas que han sido desplazadas por cuestiones climáticas.
pueden ser aplicables analógicamente a este nuevo fenómeno al tratarse
Algunos autores sostienen que no es importante la definición que se
de figuras de distinta naturaleza y ni si quiera los migrantes por cuestiones
elija para definir a las personas que han sido desplazadas por fenómenos
climáticas cuentan con una terminología que los identifique, o bien, con
ambientales, al considerar que no son importantes las causas que motiven
un ordenamiento (nacional o internacional) que los regule su tratamiento,
su protección nacional o internacional, pues al final lo único que se busca
así como una institución que vele por su protección y ayuda financiera,
es brindarle dicha protección; no obstante, en el caso concreto (el de los
alimentaria y sanitaria.
climáticos) se considera indispensable hacer dicha diferenciación, pues de
Así las cosas, resulta preocupante el destino que tendrá la vida de ello dependerá la instrumentación que será aplicable, el organismo que
millones de personas que se vean forzadas a migrar a otros territorios velara por su protección, la duración de la misma y quienes asumirán la
e incluso a otros Estados, pues los países desarrollados han tenido responsabilidad nacional e internacional de dichos individuos.
una respuesta muy negativa a la migración de personas extranjeras,
En este sentido, a continuación se esgrimirán cual es la acepción
militarizando sus fronteras aunado a la promulgación de leyes racistas y
que resulta idónea para brindarle una adecuada protección a las
xenofóbicas. Pero aun, estas conductas se están también presentando en
personas desplazadas a causa de fenómenos ambientales atribuibles al
el interior de los Estados, y en un futuro veremos más leyes como la de
cambio climático, así como los demás razonamientos que sustentan la
Arizona, en contra de los migrantes internos.
inaplicabilidad de las otras acepciones.
El presente artículo, buscará por un lado dilucidar las precisiones
terminológicas desde la doctrina para identificar esta nueva categoría de
persona desplazada, quien sufre el desarraigo de su lugar de habitación Diferencias entre Migrante Ambiental y Climático
por cuestiones climáticas y así definirá desde el punto de vista jurídico En principio resulta necesario hacer la diferenciación entre el concepto
y desde la óptica del derecho interno y el internacional, la categoría de “ambiental” y “climático”, toda vez que en el presente artículo
adecuada para referirse a estas personas y por ende darles el tratamiento únicamente se enfocara a proponer el desarrollo de la instrumentación
jurídico idóneo ante esta nueva realidad. para la protección de aquellas personas que son desplazados por las
consecuencias de fenómenos ambientales derivados del cambio climático
y no de cualquier daño ambiental.
En efecto, las afectaciones ambientales pueden ser originadas por
distintas causas como por ejemplo las diversas acciones u omisiones que
8 Christian Aid (2007) Human Tide: the Real Migration Crisis, www.christianaid.org.uk/Images/human_tide3__
tcm15-23335.pdf

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Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín Peña

afecta al medio ambiente, así como por el acontecimiento de diversos (naturales o antropomórficas) que ponen en riesgo su existencia y/o
fenómenos ambientales; sin embargo, como ha sido demostrado, el afectan seriamente su vida”10.
cambio climático provocado por el calentamiento global derivado de la Al mismo tiempo las Naciones Unidas, aun cuando no han determinado
emisión de gases de efecto invernadero, ha generado el incremento e algún concepto concreto que defina a estas personas, su División de
intensificación de los fenómenos naturales, por lo cual los Estados que Estadística, en un glosario de términos ambientales, ha definido a los
se consideran más contribuyen con la emisión de los gases de efecto refugiados ambientales como “aquellas personas que se desplazan
invernadero con base en el Protocolo de Kyoto, han asumido la obligación debido a causas ambientales por la pérdida de su tierra y a la degradación
de reducir sus emisiones. Por tanto, se considera que en el caso de las o desastre natural”11.
personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio
climático, solo dichos Estados quienes tendrán que responden por Por otro lado, el ambientalista británico Norman Meyers definió a los
tales afectaciones. Pero qué pasa si los desplazamientos se presentan refugiados ambientales como “aquellas personas que no pueden ganarse
internamente? Más adelante abordaremos este punto. la vida en el país en que residen a causa de las sequías, erosión del suelo,
desertificación, la deforestación y otros problemas ambientales, aunado
En este orden de ideas, no se puede tratar de la misma manera el a los problemas asociados al aumento de población y de la pobreza
desplazamiento de un grupo de personas como consecuencia de un daño extrema”12.
ambiental producto de la falta de prevención o por la acción y omisión
de determinado Estado respecto a su obligación de proteger el medio Conforme a las anteriores definiciones, se considera que la acepción
ambiente que se encuentra dentro de su territorio, pues en dichos casos de “refugiado ambiental” es un término que por su naturaleza no es
es el propio Estado quien tiene que responder ante aquellos daños y adecuado para definir la situación que enfrenta una persona desplazada
asumir la responsabilidad; en caso de necesitar del apoyo o auxilio de por cuestiones climáticas, toda vez que del análisis que se haga al propio
otros Estados este se deberá realizar a través de convenios y con base concepto de “refugiado” se puede advertir que está conlleva una naturaleza
en la buena voluntad de los Estados, pero en el caso de los migrantes inminentemente bélica y la protección internacionalidad que se le brinda
climáticos se deben hacer responsables, de estos desastres naturales, a al refugiado es por ser sujeto de amenazas o agresiones derivadas de sus
todos los Estados que contribuyan a la emisión de los gases de efecto características personales, creencias o convicciones personales como la
invernadero y con ello al incremento del cambio climático, conforme a sus raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u
respectivos niveles de contaminación. opiniones políticas.
Se considera que no debe usarse dicho termino, porque podría crear
confusiones con conceptos que ha adoptado el propio Alto Comisionado,
Refugiados ambientales, sus características y diferencias con el climático
pues aun cuando el término de refugiado ambiental o climático no
Respecto del término “refugiado ambiental” no existe ningún está regulado en ninguno de los instrumentos de protección a los
instrumento internacional que como tal lo prevea; no obstante, ésta refugiados, el Estatuto de los Refugiados ha sido aplicado por el ACNUR
ha sido usada por diversos doctrinarios. Lester Brown del World Watch en circunstancias excepcionales, en los que los servicios ambientales han
Institute fue quien la utilizó por primera vez en 19709. Posteriormente, sido destruidos por un Estado como forma de persecución en contra de
Esam El-Hinnawi desarrollo dicho concepto en el Informe presentado un grupo determinado13.
ante el Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente
En la Convención de Ginebra de 1951 sobre el Estatuto de los Refugiados
titulado Refugiados Ambientales (UNEP), en el desarrollo las diversas
establece como refugiado a “toda persona que como resultado de los
repercusiones de los desplazados por las catástrofes nucleares de Bophal
acontecimientos ocurridos en Europa antes del primero de enero de
en India y la de Chernobyl, definiendo como refugiados ambientales a
“aquellas que se ven forzadas a dejar su hábitat tradicional, temporal 10 Essam El-Hinnawi, “U.N. environmental program, environmental refugees” (1985), Nairobi: UNEP, citado en
Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between
o permanentemente, debido a marcadas disrupciones ambientales environmental change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.6.
11 Stadisticas de las Naciones Unidas en unstats.un.org/unsd/environmentgl/gesform.asp?getitem=473, citado
9 Cfr. Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages en Ibidem, pg. 7.
between environmental change, livelihoods and forced migration, Refugee Studies Centre Policy Brief No.1 (RSC: 12 Myers, N. (2005) Environmental Refugees: An Emergent Security Issue, Organisation for, citado en Idem.
Oxford), pg. 7. Security and Cooperation in Europe, www.osce.org/documents/eea/2005/05/14488_en.pdf., citado en Idem
13 Cfr. International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Op. Cit., pg. 2.
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Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín Peña

1951 y debido a fundados temores de ser perseguida por motivos de que han tenido que huir por el rechazo de las características personales
raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u o ideologías, y cuya temporalidad se definirá con base en el tiempo que
opiniones políticas, se encuentra fuera del país de su nacionalidad y no perduré dicho sistema de gobierno represor; asimismo, está regulado
pueda o, a causa de dichos temores, no quiera acogerse a la protección para proteger a determinadas personas o grupos de personas que por sus
de tal país”14. propias características personales o ideológicas están huyendo de cierta
agresión, en cambio en el caso del migrante climático la temporalidad
Dicha definición fue superada a través del Proyecto del Comité Ad
de dicha protección se determinara con base en la propia capacidad
Hoc, compuesto por trece gobiernos con el fin de redactar el texto de
ambiental para soportar nuevamente a ese grupo de personas, asimismo
una convención para los refugiados, únicamente se borró la referencia
generalmente las afectaciones climáticas y no siempre ambientales, se
a Europa, lo que hacía aplicable el término de “refugiado” a cualquier
producen de manera masiva y en muchos casos resulta imposible regresar
acontecimiento ocurrido en el mundo y no solo en Europa. No es hasta
al lugar de origen, como en el caso de las islas archipiélagos del Pacífico
1967 con el Protocolo de 1967 cuando se intenta superar dicha limitación
Sur, en donde uno de los Estados llamado Tuvalú, a causa del incremento
temporal con el artículo 1 del Protocolo de 1967 en el cual de manera literal
del nivel del mar en su territorio, está desapareciendo. Desde el 2001
será aplicado por los Estados partes sin ninguna limitación geográfica15.
se firmó por arte del mencionado pequeño estado insular un acuerdo
Posteriormente, la Convención de la Organización de la Unión Africana, con Nueva Zelanda para aceptar cierta cantidad de personas por año
quien tras los diversos flujos masivos que conllevaron a distintos conflictos (migración controlada).
en África, aportó la consideración de que se entienda por desplazado
Finalmente, como ya fue señalado respecto a la responsabilidad de los
a toda persona que a causa de una agresión exterior, una ocupación o
Estados en el caso de las personas desplazadas por cuestiones climáticas,
una denominación extranjera o acontecimientos que perturben el orden
a diferencia de los refugiados, dicha responsabilidad no debe ser
público en un parte o en la totalidad de su país de origen o del país de
asumida por los Estados únicamente por acuerdos bilaterales, sino dicha
su nacionalidad, están obligados a abandonar su residencia habitual para
responsabilidad debe derivar de las propias obligaciones establecidas en
buscar en otro lugar fuera de su país de origen o del país de su nacionalidad.
el Protocolo de Kyoto con base en la cantidad de emisión de gases de
No obstante, dichas modificaciones no cambiaron la naturaleza del efecto invernadero que emita cada Estado, y considerando los Estados
refugiado así como tampoco anexaron dentro de dicha definición el a los que le resulta vinculante dicho instrumento. Sin embargo ahí no
concepto de “refugiado ambiental”, lo cual en cierta medida resulta termina el deber de protección, ya que desde lo local, es muy importante
lógico toda vez que con base en las definiciones antes esgrimidas un se preparen las municipalidades para recibir flujos de migrantes que por
refugiado ambiental es aquella persona que se ve forzada a dejar su causas climáticas lleguen a competir y ejercer presión sobre los recursos
lugar de residencia u origen por el acontecimiento de diversos daños propios de una comunidad con la que se comparte nacionalidad.
ambientales que hicieron insostenible su permanencia en dicho lugar,
por lo cual dichas personas huyen por motivos ajenos a las características
Desplazado ambiental y/o desplazado climático?
de su propia persona sino por motivos externos, en cambio el refugiado
tiene que huir para repeler agresiones motivadas por su propio origen, El ACNUR ha definido, aunque de manera cautelosa, como desplazado
creencias o convicciones. ambiental “a quien es desplazado o quien se siente forzado a dejar su lugar
de usual de residencia porque su vida, su sustento y bienestar, ha sido
Aunado lo anterior también se considera que no resulta aplicable la
ubicado en una situación de riesgo, como resultado de una adversidad
estructura edificada por las Naciones Unidas para la protección y asistencia
ambiental, ecológica o un proceso o evento climático”16.
de los refugiados, consistente en la responsabilidad de los Estados y la otra
atinente a la acción del Alto Comisionado de las Naciones Unidas, toda Otras voces señalan que se les denomine “desplazados climáticos”
vez que por un lado el ACNUR tiene como objeto el proteger a personas amparados en los Principios rectores aplicados a los desplazamientos
14 Convención de Ginebra de 1951 sobre el Estatuto de los Refugiados, artículo 1, A, 2. 16 Cfr. Gorlick, B. (2007) Environmentally-Displaced Persons: a UNHCR Perspective, www.ony.unu.edu/
15 Pero aquellos países que habían firmado la Convención de 1951 con “limitación geográfica “podrían seminars/2007/16May2007/presentation_gorlick.ppt., citado en Boano, C., Zetter, R., and Morris, T., (2008).
válidamente mantenerla al adherirse al Protocolo. Cfr. Galindo Vélez, Francisco, El derecho de los refugiados, Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental change, livelihoods and
Jurídica 30, México, 2000, pg. 221, citado por Loreta Ortiz Ahlf et. el., De los migrantes. Los derechos humanos de forced migration, Op. Cit., pg.7.
los refugiados / La igualdad en ciernes. La prohibición de discriminar,, Editorial Porrúa, México D. F., 2004, pg.29.
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Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín Peña

internos, elaborados por Francis Deng, que reconoce como desplazados países porque su vida, seguridad o libertad han sido amenazadas por la
a las “personas o grupos de personas que han sido forzados u obligados violencia generalizada, la agresión extranjera, los conflictos internos, la
a huir de sus hogares o lugares de residencia habitual, o a abandonarlos, violación masiva de derechos humanos u otras circunstancias que hayan
en particular a causa de un conflicto armado, de situaciones de violencia perturbado gravemente el orden público”19.
generalizada, de violaciones de los derechos humanos o desastres Posteriormente, se amplió el término de refugiado bajo la denominación
naturales o causados por el hombre, y que aún no han cruzado una de desplazados en el documento “Principios y Criterios de 1989” producto
frontera reconocida internacionalmente entre Estados o que lo hacen a de la Conferencia Internacional sobre refugiados centroamericanos y
fin de evitar los efectos de todo ello”17. teniendo como antecedentes diversos coloquios sobre refugiados para
Respecto a los conceptos aportados anteriormente se considera que tratar la nueva problemática del refugiado presentado en América Latina,
tampoco son aplicables al caso de las personas desplazadas por fenómenos tras diversos conflictos y donde se plantea la necesidad de encerrar la
atribuibles al cambio climático, pues el término de “desplazados” a pesar extensión de refugiado. Además se alude a los desplazados y los define
de ya no se refiere al desplazamiento por ser perseguido por ciertas “como las personas que han sido obligadas a abandonar sus hogares
características personales o ideológicas, éste tiene una connotación sus hogares o actividades económicas habituales debido a que sus vidas,
bélica y local. En efecto, el término de “desplazados” fue acuñada de seguridad o libertad han sido amenazadas por la violencia generalizada o
manera indirecta por la Convención de la Organización de la unión el conflicto prevaleciente”20.
Africana como una ampliación del término de refugiado al señalar que Conforme a lo anterior, es claro que aun cuando el término de desplazado
“el término de refugiado se aplicará también a toda persona que, a causa supera la limitante de otorgar la protección internacional o nacional,
de una agresión exterior, una ocupación o una dominación extranjera, o únicamente por la agresión o amenaza hacia una persona o grupos de
de acontecimientos que perturben gravemente el orden público en una personas por tener ciertas características físicas o ideológicas y extiende
parte o en la totalidad de su país de origen, o del país de su nacionalidad, la protección de manera generalizada a un grupo de personas cuya
está obligada a abandonar su residencia habitual en otro lugar fuera de su amenaza se debe a una situación externa como un conflicto armado, una
país de origen o del país de su nacionalidad”. violencia generalizada o circunstancia que haya perturbado gravemente
Asimismo, como consecuencia de que los problemas de violencia se el orden público; no obstante, si bien podría ser aplicable en el caso de las
intensificaron en América Central en los años 70´s se produjeron enormes personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio
flujos masivos, por lo cual se vieron en la necesidad de ampliar el concepto climático, al aplicarse de manera generalizada a un grupo de personas
clásico de refugiado en el Coloquio de 1981 sobre “Asilo y la Protección que sufren un mismo contexto que pone en peligro la integridad de sus
Internacional de Refugiados en América Latina”18. Fue hasta en 1984 en el derechos fundamentales, lo cierto es que la naturaleza dicho contexto es
Coloquio sobre Refugiados en la que se adoptó una definición ampliada a distinto al de los migrantes climáticos, pues dicha protección se establece
través de la Declaración de Cartagena, en la que en su conclusión tercera en circunstancias eminente bélicas y en cuya regulación entra reglas de
señala “que en vista de la experiencia recogida con motivo de la afluencia derecho humanitario que no son aplicables al caso concreto.
masiva de refugiados en el área de Centroamérica, se hace necesario Asimismo, debe señalarse que tampoco resultaría aplicable utilizar los
encarar la extensión del concepto de refugiado, teniendo en cuenta, en conceptos refugiado y desplazado como sinónimos, pues en el contexto
lo pertinente, y dentro de las características de la situación existente de europeo, por ejemplo, se diferencian los desplazados de los refugiados
la región el precedente de la Convención de la OUA (Artículo 1, párrafo tanto por las causas que justifican dichas figuras como por sus efectos,
2) y la doctrina utilizada en los informes de la Comisión Interamericana en este sentido, en el refugio se otorga una protección de carácter
de Derechos Humanos. De este modo, la definición de refugiado permanente, en cambio en el caso de los desplazados es temporal21, por
recomendable para su utilización en la región es aquella que además de lo tanto, para el caso de los migrantes climáticos, no resultaría aplicable ya
contener los elementos de la convención de 1951 y el Protocolo de 1967, que existen diversos fenómenos naturales que han afectado el territorio
considere también como refugiados a las personas que han huido de sus
19 Ibidem, pg. 348.
17 Principios Rectores del Desplazamiento Interno en http://www.law.georgetown.edu/idp/spanish/gp.html 20 Ibidem, pg. 199.
18 Protección y asistencia de refugiados en América Latina – Documentos Regionales 1981-1999, ACNUR, 2000, 21 Cfr. Loreta Ortiz Ahlf et. el., De los migrantes. Los derechos humanos de los refugiados / La igualdad en ciernes.
pg. 353. La prohibición de discriminar, pg 40.

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de las personas desplazadas de manera permanente, como en el caso de Asimismo, la Organización Internacional de Migración propuso como
la desaparición de las islas por el aumento del nivel del mar. correcto el término de migrantes ambiéntales, haciendo referencia “a
aquellas personas o grupos de personas que de manera inevitable por
Incluso, el gerente de proyecto de EACH-FOR22 considera que existen
cambios repentinos o progresivos del ambiente afectan de manera adversa
tres tipos de migrantes climáticos a consecuencia del cambio climático,
sus vidas o condiciones de vida son forzados a dejar su vivienda habitual,
aquellos que sufren desplazamientos temporales por terremotos,
o a elegir a hacerlo de manera temporal o permanente, y quienes tienen
ciclones o posibles inundaciones, los que migran porque los procesos de
que moverse dentro de su país o al exterior”24.
degradación ambiental ponen en riesgo su salud y destruyen las bases
de su sustento económico y los que se desplazan porque hay cambios La Asociación Internacional para el Estudio de las Migraciones Forzadas
permanentes en su hábitat tradicional. (IASFM por sus siglas en ingles) describe la migración forzada como:
Un término generalizado que refiere a los movimientos de refugiados y
De la misma manera, la Organización Internacional de Migración ha
personas internamente desplazadas (por conflictos); al igual que aquellos
definido cuatro escenarios de migración por cambios ambientales: 1) la
desplazados por desastres naturales o ambientales, desastres químicos o
migración en un grado menor por cambios ambientales graduales; 2) la
nucleares; hambruna y proyectos de desarrollo25.
migración en un grado avanzado de cambios ambientales graduales; 3)
la migración debido a eventos ambientales extremos y; 4) la migración De las distintas acepciones que se han analizado en el presente artículo,
debido a una larga escala de desarrollo y conservación de la tierra. el término de migrantes se considera el más idóneo para describir a las
personas desplazadas por fenómenos ambientales derivados del cambio
Por otro lado, en el caso de los desplazados la recepción de los mismos
climático, toda vez que dicho concepto está libre de acepciones que
es distribuida entre los Estados miembros de la Unión Europea mediante
conllevan ciertos parámetros ya establecidos previamente y permite definir
un reparto de cargas y la estancia con carácter temporal; sin embargo, en
nuevos parámetros con base en la propia naturaleza de los conceptos;
el caso de los migrantes ambientales quienes se considera deben asumir
asimismo, al no estar contemplado en ningún instrumento internacional
dicha repartición de cargas son los propios Estados que más contribuyen
no es necesario tratar de forzar la concepción a un determinado concepto
con la emisión de gases de efecto invernadero.
ya establecido para obtener la protección internacional, sino al contrario
Al final, vemos como no hay consenso entre los distintos entes permite crear un instrumento y un organismos autónomo que esté acorde
internacionales que tratan la materia y en muchas ocasiones se utilizan con las características de dichas circunstancias.
incluso como sinónimos para referirse al fenómeno del desplazamiento
De esta manera, se considera acertado el termino de forzado, pues
ambiental y el climático. Si ello es así y el concepto mismo ofrece
justamente la mayoría de los migrantes, por las características extremas
problemas, que podremos decir de los derechos humanos de aquellas
que han caracterizado los fenómenos ambiéntales derivado del cambio
personas que se encuentren en esta categoría?
climático no tienen la opción de elegir respecto a la posibilidad de
quedarse en el lugar donde residen y repeler las afectaciones ambientales
Migrante Ambiental y Migrante Ambiental Forzado de alguna manera, asimismo una de las características que se considera
que distingue entre los migrantes ambientales y los migrantes climáticos es
Respecto la acepción de migrantes ambientales, el Instituto Universitario que dada la gravedad de las consecuencias de los fenómenos ambientales
de Medio Ambiente y Seguridad Humana en las Naciones Unidas definió causados como consecuencia del cambio climático, resulta necesario el
como migrante forzado ambiental “a alguien quien tiene que dejar su responsabilizar a los demás estados para enfrentar dichas catástrofes
lugar habitual donde reside por una afectación ambiental, a diferencia de y evitar en un fututo terribles conflictos derivados de la migración
un migrante ambiental que es una persona que puede decidir si se mueve exacerbada de personas.
como consecuencia de una afectación ambiental”23.
En este sentido, toda vez que se considera que al hacer el distingo entre
22 Cfr. International Organization for Migration, Discussion Note: Migration and Environment, Op. Cit., pgs. 2 y 3.
los migrantes climáticos de los ambientales, por la intensidad de dichos
23 Cfr. Renaud, F., Bogardi, J.J., Dun, O. and Warner, K. (2007) “Control, Adapt or Flee: How to Face Environmental fenómenos resulta ocioso el utilizar el término de forzados, pues dicha
Migration”, InterSecTions, UNU-EHS, no. 5/2007, www.ehs.unu.edu/file.php?id=259, citado en Boano, C., Zetter,
R., and Morris, T., (2008). Environmentally Displaced People: Understanding the linkages between environmental
24 Organización Internacional de Migración, Nota de Discusión: Migación y Ambiente, Op. Cit., pg 1 y 2.
change, livelihoods and forced migration, Op. Cit., pg.6.
25 International Association for the Study of Forced Migration [IASFM], 2008,
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acepción lo implica. No obstante, no se debe confundir respecto a que la adecuado el no adoptar las acepciones de refugiado y desplazado,
diferencia de esas dos acepciones únicamente se refieren a dicha cuestión, otorgadas a ciertas personas para brindarles la protección internacional,
pues como ya se esgrimió antes, entre otras diferencias que conlleva los entonces resultaría necesario el crear un instrumento y un organismo a
migrantes ambientales y los migrantes climáticos es la causa de dicho fin de velar por la protección de las personas desplazadas por los efectos
afectación ambiental, pues en el caso de las afectaciones climáticas éstas del cambio climático.
únicamente son producidas como consecuencia del calentamiento global Se considera idóneo que a efecto de proteger a los migrantes
provocado por el aumenta de las emisión de gases invernadero que ha climáticos no solo se cree un instrumento para su regulación y en éste
provocado, dejando a un lado aquellas afectaciones ambientales que se establezca la constitución de un organismo que tenga relación directa
hayan sido generadas por la acción u omisión de una persona que derive con dichas personas desplazadas así como sus facultades, como sucede
en un daño ambiental. con los refugiados que son supervisados a través del ACNUR y no quede
Asimismo, otra diferencia que se considera como fundamental entre únicamente supeditada a la voluntad de los Estados para cumplir con las
los migrantes forzados climáticos y los refugiados y desplazados, es obligaciones derivadas de un instrumentos adoptado entre los mismos.
que los migrantes climáticos deben ser protegidos por otros Estados no De esta forma, la Organización Mundial de Migración al igual que con
solo por simples convenios entre los Estados con base con su capacidad otros migrantes podría coadyuvar con la protección de los derechos de
económica y como un acto humanitario, sino dicha protección se deberá los migrantes ambientales, trabajando con los gobiernos y la sociedad civil
asumir como una obligación de los Estados que más contribuyen con la para promover la comprensión sobre las cuestiones migratorias, alentar el
emisión de los gases de efecto invernadero y que se encuentran obligados desarrollo socioeconómico a través de la migración y velar por la dignidad
conforme al Protocolo de Kyoto. humana y el bienestar de los migrantes.
Finalmente, se considera que los migrantes climáticos podrían dárseles En este punto es dado resaltar que ya existen y de manera aislada,
una protección temporal o bien una protección permanente dependiendo ejemplos donde algunos regímenes internacionales han protegido los
la situación en la que se encuentren, ya que si los fenómenos ambientales derechos de las personas que migran por razones del clima, a saber la
son temporales y existe la posibilidad de que se les restituya la situación Unión Europea, a través de la Directiva de Protección Temporal, que
para poder vivir adecuadamente en su lugar de origen, como en el caso establece en su Artículo 2 que la protección temporal podrá ser otorgada
de las inundaciones, una sequía, la protección es temporal, pero tendrá a migrantes que hayan tenido que abandonar sus hogares en zonas de
que ser permanente, cuando exista la imposibilidad de regresar a su lugar conflicto armado o violencia endémica, así como aquellas que estén bajo
de origen, como en el caso de las Islas Tuvalú o las demás Islas las cuales el alto riesgo, o que hayan sido víctimas, de violaciones sistemáticas o
están desapareciendo en el que el incremento del nivel del mar. generalizadas en Derechos Humanos26.
Bien lo señalan Espósito y Camprubí,27 Finlandia propuso introducir en
Problema Jurídico este directiva una referencia explícita a los ‘refugiados climáticos’ dentro
de la categoría de ‘violaciones sistemáticas o generalizadas de Derechos
¿Teniendo en cuenta la categoría de Migrantes Forzados Climáticos, Humanos’. La propuesta finlandesa no fue finalmente acogida en el
cual es la Institución Jurídica que puede garantizar la protección de los articulado de la Directiva por oposición expresa de España y de Bélgica.
derechos fundamentales de estas personas? No obstante, cada país de la Unión Europea queda libre de incluir a los
‘refugiados medioambientales’ o ‘refugiados climáticos’ en el ámbito
de aplicación de la norma de derecho interno mediante la cual sean
Como hemos visto a lo largo de la lectura de este artículo, es imposible
a hoy proteger desde la supranacionalidad los derechos fundamentales 26 Directiva del Consejo 2001/55, relativa a las normas mínimas para la concesión de protección temporal en
de las personas que migran por razones del cambio climático y bajo el caso de afluencia masiva de personas desplazadas y a medidas de fomento de un esfuerzo equitativo entre los
Estados miembros para acoger a dichas personas y asumir las consecuencias de su acogida, DO L 212, de 7 de
evidente vacío legal existente, que versa desde la definición misma y la Agosto de 2001. Véaseasimismo Kolmannskog, Vikram y Myrstad, Finn, “Environmental Displacement in European
Asylum Law”, en: European Journal of Migration and Law,Vol. 11, La Haya, Boston, Kluwer Law International, 2009,
categorización de estas personas, no podemos afirmar que exista siquiera pp. 313-326.
una protección siquiera insipiente. Toda vez que se ha considerado 27 Espósito C y Camprubí A, Cambio y Derechos Humanos: El desafío de los “Nuevos Refugiados”, en Revista de
Derecho Ambiental de la Universidad de Palermo | ISSN 2250-8120, pp. 7-32 Año I, No. 1, Mayo de 2012.

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Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible? MSc. Efraín Peña

traspuestos los objetivos de la Directiva. la reacción frente al hecho de recibir y garantizar los derechos de las
personas provenientes de otros lugares del país a su localidad.
Dos países nórdicos (Suecia y Dinamarca) ya han seguido esta vía,
habiendo incorporado esta interpretación extensiva en su legislación
nacional, y un comunicado del Foreign Office del Reino Unido parece Conclusiones
igualmente inclinarse positivamente en esta dirección28. De la misma
En resumen y para concluir, el termino acertado que ha de acuñarse
manera, el Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Refugiados
para referirse a las personas que has sido sacadas forzosamente de su
(ACNUR) se expresó en recomendación de 2008, a favor del otorgamiento
lugar de habitación por fenómenos asociados al Cambio Climático es la
de la Protección Temporal a ‘los afectados por el cambio climático, los
de Migrante Climático, y hemos de empezar a reconocer una serie de
desastres naturales y otras formas de ‘acute distress’29.
derechos y deberes de estos por parte de los Estados (y hacia el interior
Igualmente se considera necesario para la creación de un fondo para de los mismos) más de aquellos que contribuyen en mayor medida al
enfrentar los desastres naturales, para los Estados que no cuentan con los fenómeno del calentamiento global.
recursos económicos suficientes para enfrentar las catástrofes ambientales,
Igualmente y teniendo en cuenta el aspecto de Responsabilidad Común
así como para sostener al organismo que velará por la protección de los
pero Diferenciada, no es posible que esta categoría de Migrante Climático
migrantes climáticos, el cual deberá ser financiados por los Estados partes
sea asociada como un sinónimo a la de Migrante Ambiental, ya que no es
del Protocolo de Kyoto, para lo cual igualmente se considera menester el
lo mismo endilgar responsabilidad directa a un Estado determinado o un
establecer dentro de las obligaciones de los Estados que se encuentran
Privado por un daño ambiental sufrido, que a una comunidad de Estados
contemplados dentro del Anexo I del Protocolo de Kyoto, no solo el reducir
industrializados, que por sus altos niveles de emisiones de CO2 contribuyen
la emisión de gases efecto invernadero sino el hacerse responsable de
al acelerado calentamiento global, conllevando ello afectaciones serias a
las poblaciones que se vean forzadas a migrar de su país de origen por
países vulnerables que a su vez repercuten en su población, forzándola a
el acontecimiento de fenómenos ambientales consecuencia del cambio
migrar dentro o fuera de sus fronteras.
climático y aportar a un fondo correlativa a la emisión de contaminantes,
como el pago de la deuda climática30 toda vez que los países pobres son Se considera entonces imperiosa la necesidad de contar con un nuevo
los que más sufren las consecuencias del cambio climático y son los que sistema de protección a migrantes climáticos exclusivamente y este debe
menos han contribuido a este nivel de contaminación. ser creado en el contexto de las Partes signatarias de la Convención Marco
de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático, en el que se otorgue
Ahora bien, esto aún es algo etéreo y ante la pregunta del título
una partida del Fondo para la Adaptación, creado por la COP7 (Marrakesh,
mismo del presente artículo, se considera que el volumen de migraciones
2001) para financiar proyectos y programas concretos de adaptación en
internas versus las externas es muy superior y que por ende es importante
países en desarrollo que son Partes de la Convención y del Protocolo de
fortalecer a la unidad local o municipal para afrontar este fenómeno
Kyoto y aquel que le sobrevenga.
social y ambiental, con el fin de proteger los derechos fundamentales
de aquellas personas que se ven inmersas en el desplazamiento de Sin embargo y mientras eso se da, es importante reconocer que
su lugar de residencia por razones del clima. Así las cosas, es de vital los temas migratorios en la actualidad permanecen eminentemente
importancia empezar a trabajar con las unidades locales para fortalecer regulados a nivel nacional, presumiblemente por la estrecha vinculación
desde el municipio la prevención (reducción vulnerabilidad) la adaptación entre la soberanía estatal y el establecimiento de políticas migratorias,32
y la resiliencia31 del conglomerado dentro de su jurisdicción, asi como por lo que es necesario también abordar este problema desde lo local
y desarrollar dentro del marco jurídico nacional las herramientas que
28 The Finnish Aliens Act(301/2004, Enmiendas hasta 973/2007 incluidas), Section 109(1); y Swedish Aliens Act
(2005, 716). permitan garantizar los derechos fundamentales de los migrantes
29 Ibídem
30 Contrastando con el concepto de deuda financiera, existe una nueva corriente de pensamiento que analiza
climáticos locales o internos.
también el intercambio desigual entre Norte y Sur, pero en términos medioambientales y de sostenibilidad
planetaria asociados al actual modelo de producción industrial, consumismo, residuos y emisión de gases de efecto
invernadero por parte del Norte. Este ideario habla de la necesidad moral y económica de que el Norte repare
las consecuencias nefastas que dicho modelo tiene sobre las poblaciones del Sur. Es decir, que asuma la deuda y sobreponerse a ellas.
ecológica con estos países. 32 Marchi, Sergio, “Global Governance: Migration’s Next Frontier”, Global Governance, Vol. 16, Boulder, Lynne
31 Definida por la Real Academia Española como Capacidad humana de asumir con flexibilidad situaciones límite Rienner Publishers, 2010, p. 323.

260 261
Derechos Humanos del Migrante Climático: ¿Como garantizarlos? ¿Es posible?

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262
Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do


possível

Rosa MOURA1

Nelson Ari CARDOSO2

Introdução
Este artigo sintetiza a primeira etapa de pesquisa que objetiva avaliar os
impactos decorrentes do processo de integração regional do MERCOSUL
sobre as regiões de fronteira, de modo a contribuir com a formulação de
políticas públicas de integração e articulação destes espaços. A pesquisa
volta-se também a observar a qualidade das políticas públicas a eles
direcionadas, apontando possibilidades para seu aperfeiçoamento.
Para efeitos deste artigo, privilegia-se o enfoque sobre a mobilidade
transfronteiriça, pautando-se em análises empíricas a partir de dados
referentes à migração internacional e aos deslocamentos pendulares dos
brasileiros em direção ao exterior, para trabalho e/ou estudo em município
que não o de residência, disponibilizados pelo IBGE; e de entrevistas a
pesquisadores e lideranças regionais com atuação precípua relativa ao
MERCOSUL e fronteiras.
O recorte analítico é a faixa de fronteira, que corresponde a
aproximadamente 27% do território nacional, com 15.719 km de extensão,
cerca de 10 milhões de habitantes de 11 estados brasileiros e faz limite
com 10 países da América do Sul (BRASIL, 2005). Agrega 98 municípios da
Região Norte, 403 da Sul e 69 da Centro-Oeste, totalizando 570 municípios,
lindeiros e não-lindeiros. A principal legislação inerente à faixa de fronteira
é de 1979 (Lei nº 6.634), atribuindo destacada importância a esse espaço
territorial como região estratégica, em harmonia com os ideais de justiça
e desenvolvimento.
Os municípios lindeiros – situados na linha de fronteira –, em muitos
casos configuram aglomerações transfronteiriças, também chamadas
cidades gêmeas, cidades-pares, ciudad binacional, entre outras. São 19
cidades que se estendem de um ao outro lado da fronteira (BRASIL, 2005).

1 Doutora em Geografia pela UFPR, pesquisadora do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e


Social (IPARDES) e do Observatório das Metrópoles – INCT/CNPq. E-mail: rosamoura@ipardes.pr.gov.br
2 Sociólogo, pesquisador do IPARDES e coordenador estadual do projeto Mercosul e Regiões de Fronteira,
PROREDES/IPEA/IPARDES. E-mail: nelsoncardoso@ipardes.pr.gov.br

263
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

Em relação a elas, não se observa “apenas um entrelaçamento entre os (1986),4 a fronteira age à maneira de um comutador, que se acende ou se
traçados urbanos de duas cidades; há, sobretudo, uma imbricação da apaga, permite ou proíbe (COURLET, 1996). Para Machado (1998, p.1), “o
história e da vida das pessoas nestas cidades” (OLIVEIRA, 2010), que limite jurídico do território é uma abstração, gerada e sustentada pela ação
desenvolvem interações sociais e culturais, valores materiais e imateriais. institucional no sentido de controle efetivo do Estado territorial, portanto,
Peculiarizam-se pela mescla de povos por relações familiares, de trabalho um instrumento de separação entre unidades políticas soberanas; a
ou consumo, constituindo-se, paradoxalmente, em “zonas de incerteza fronteira é lugar de comunicação e troca”.
identitária.” (FERRARI, 2012). Rochefort (2002, p.12) sublinha que fronteira significa separação,
Conforme Oliveira (2009, p.3), aglomerações desse tipo têm modulado demarcação e até obstáculo; poucas vezes encontro, reunião,
a paisagem nas regiões de fronteira nas Américas: enriquecimento mútuo e amizade. “El término frontera se refiere a
la existencia de límites, bordes o confines, pero el ser de estos bordes
Frágeis lugarejos têm se fortalecido como cidade; a infraestrutura
fronterizos dibuja también, además de separación o delimitación total, la
(ainda que lenta e mal cuidada) tem avançado em direção às divisas; as
aparición de identidades culturales tanto disímiles cuanto recurrentes.”
relações de interatividades econômicas (formais, funcionais e ilícitas)
estabelecem redes de intercâmbios de tipos variados; aproveitando Sob perspectiva global, a fronteira não seria um obstáculo a um
de legislações diferentes (trabalhistas e ambientais), e diferenciais de ajustamento otimizador das atividades econômicas, pela sua função à
monetários, os trabalhadores, os empresários e a população, em geral, expansão do capitalismo, mas um instrumento para administrar situações
criam economias de arbitragens (MACHADO, 1996)3 para obterem interativas, com fundamental importância na gestão em nível local; uma
diferenciais de lucros. Todas estas relações tecem interações intensas, zona de contato, um local de concorrência e de complementaridades
cada vez mais permanentes e fecundas, subvertendo as formas de (COURLET, 1996). Paradoxalmente, sua importância como objeto de
controle. Como efeito, todo esse movimento conspira contra qualquer estudo não se dá apenas pelo viés político, mas por outra perspectiva: “a
tentativa de uniformização do território. de constituir uma região de interações privilegiadas que não reconhece as
relações entre seus povos” (FERRARI, 2012).

Marco referencial Segundo Oliveira (2009, p.4), a “condição de fronteira impõe


mobilidade aos indivíduos de qualquer classe social, com diferentes graus
O trabalho desenvolvido pelo Ministério da Integração Nacional de intensidades legitimando os mecanismos de complementaridades”.
(BRASIL, 2005), orientou a demarcação do recorte da pesquisa e subsidiou Assim, as áreas fronteiriças podem funcionar como impulsionadoras do
a abordagem de alguns conceitos e noções pertinentes ao espaço desenvolvimento, áreas de transição, contato, articulação, “com especial
fronteiriço. Destacam-se, entre eles, o entendimento sobre fronteira, vivacidade e dinamismo próprio”. As cidades contíguas que se estendem
integração, interação e identidade. A fronteira estabelece uma relação entre países e exercem, muitas vezes, atividades econômicas similares
entre Estados Nacionais, separados por limites físicos ou abstratos, e e funções urbanas complementares, poderiam dar origem a estruturas
as conexões cotidianas de convivência decorrentes da expansão do bi/trinacionais com articulação produtiva e transformação territorial
povoamento e da dinâmica econômica. É uma linha material ou imaginária, (CICCOLELLA, 1997; OLIVEIRA et al., 1999). Entretanto, contrapondo-
historicamente institucionalizada, que se esmaece diante da interação na se ao espaço único de ocupação, prevalecem ainda tensões históricas
produção/construção real do espaço. fronteiriças e, mais que tudo, assimetria entre as partes, levando a quadros
Embora em muitos casos ostensivamente cercadas pelos mais diversos de expressiva desigualdade. Isso reforça a importância da presença
aparatos de controle, as fronteiras e limites refletem e propiciam do Estado na formulação e implementação de políticas integradoras,
interdependências e dinâmicas inter-relacionais que extrapolam a consideradas as particularidades da mobilidade econômica e populacional
formalidade, em ações capazes de suplantar, de forma legal ou não, desses espaços.
as barreiras de sua existência. Os limites e o controle fronteiriço são Para viabilizar relações econômicas globais, blocos de países e políticas
acionados segundo conjunturas. Resgatando expressão de Raffestin de integração postulam-se como alternativas ao desenvolvimento.
3 MACHADO, L.O. (1996). O comércio ilícito de drogas e a geografia da integração financeira. In: CASTRO, I. et al.
(Org). Brasil: Questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, apud Oliveira (2009). 4 RAFFESTIN, C. (1986). Eléments pour une théorie de Ia frontière. Diogene, 13-14 avr./juin., apud Courlet (1996).

264 265
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

Salienta-se que integração regional é uma formulação de Estado, com se constroem as identidades. Em seu entendimento, poderíamos estar
potencial transformador das relações interestatais, que passam a se evoluindo para que ocorra, em um extremo, a “transformación de las
orientar pelo cooperativismo e complementaridade, possibilitando a identidades tradicionales en identidades móviles”, e em outro extremo,
reorganização dos estados fronteiriços em termos de competências “las identidades estarían en vía de desaparición ejercida por la movilidad”.
internas e alterando as relações jurídicas locais e extraterritoriais Tomando como referência a mobilidade para o trabalho, o autor aponta
(CARNEIRO, 2007). Deve ser instituída, regulada e consolidada pelo Direito que o imaginário ligado ao lugar de origem e a um possível retorno,
de Integração, e responder por meio de regulações conjuntas a questões que permeou estudos sobre migrações, perde o sentido ao se admitir
como migração de trabalhadores; gestão ambiental e de recursos naturais a crescente penetração do uso de tecnologias de comunicação na vida
essenciais e estratégicos; combate à contravenção e à pobreza, entre transnacional dos migrantes, reforçando seus vínculos de origem mesmo
outras demandas insuscetíveis de serem reguladas unilateralmente pelos à distância, ao mesmo tempo transformando o migrante, no lugar de
estados, pois são problemas não isolados, não localizados. Oliveros (2005) origem, em um “turista”, com atitude “nostálgica con relación a lo que
agrega que integração fronteiriça é “el proceso orgánico, convenido por dejó”. Retoma-se, assim, a questão chave: ¿“se trata realmente de la
dos Estados en sus espacios fronterizos colindantes, que tiene por objeto construcción de unas identidades móviles o una movilidad sin identidad
propiciar su desarrollo sobre la base del aprovechamiento complementario (y la búsqueda de la misma)?”
de sus potencialidades y recursos, y de costos y beneficios compartidos, Para o projeto referência deste trabalho (BRASIL, 2005, p.33-34):
proceso que al mismo tiempo contribuye al fortalecimiento de los vínculos
bilaterales.” Por mais que, no senso comum, se tenha uma concepção muito
clara e bem definida de identidade, como se ela pudesse até mesmo
Enquanto tratados internacionais ensaiam políticas de integração, a ser considerada “natural” a um determinado grupo, devemos partir
interação viabiliza o cotidiano e une os povos das fronteiras, sem garantir sempre do pressuposto de que a identidade cultural é uma construção
convergência econômica ou cultural entre eles. Alegria (2009) adiciona social-histórica – e, no nosso caso, também, geográfica. Centralizada
que a interação é propulsada pelas diferenças entre os países e pode ser sobre a dimensão simbólica da realidade, ela está sempre aberta a novas
considerada cíclica, aumentando na medida em que se intensificam as formulações e, para retomar o termo de Hobsbawm e Ranger, é possível
diferenças. Perante contínua interação, questiona se a convivência entre de ser sempre “reinventada”.
povos, culturas, religiões em sua vivência cotidiana, complexificada pela
intensa mobilidade das pessoas, cria uma nova cultura, uma possibilidade
de cidadania transfronteiriça, ou se simplesmente aproxima diferenças, Mobilidade na fronteira: o que dizem os números
compondo um mosaico diverso, ao qual se sobrepõe uma camada à parte, Movimentos migratórios internacionais
que não é resultado da interação, menos ainda da integração, mas que em
Para efeitos desta análise, foram utilizadas informações sobre
si mescla traços da diversidade presente, como decorrência das relações
emigrações internacionais do universo do Censo Demográfico 2010;
estabelecidas na busca de alternativas de superação dos entraves para a
e sobre imigração internacional, informações de data fixa, ou seja, que
sobrevivência presente.
respondem à pergunta sobre onde a pessoa estava em 31/07/20055.
Alegria (2009, p.358) pondera que há influências físicas urbanas
Com relação à emigração internacional, o Censo Demográfico 2010
e urbanísticas entre os lados da fronteira, assim como em valores e
considerou um universo de 5.156 municípios, nos quais foram registrados
identidades. “La interacción porta la influencia para que un lado de la
491.645 emigrantes internacionais, em 193 países do mundo. A maioria
frontera se parezca al otro, y para que identidades regionales en el espacio
dos emigrantes era composta por mulheres (53,8%) e a faixa etária que
transfronterizo florezcan.” No entanto, essas influências e identidades não
mais contribuiu foi a entre 20 e 34 anos de idade (60%).
estão atadas nem são exclusivas a um lugar, mas aparecem em outras
cidades e lugares. No caso das imigrações, para o IBGE, a crise financeira internacional e o
desempenho positivo da economia do Brasil foram os grandes atrativos à
Hiernaux-Nicolas (2006, p.164) questiona se a mobilidade, neste
imigração de estrangeiros ao país e influenciaram o retorno de brasileiros
momento de céleres mudanças espaço-temporais, altera a forma como
5 Análise destas informações em maior detalhe pode ser encontrada em Cardoso; Moura; Cintra (2012).

266 267
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

que moravam no exterior. Em 2010, 268,3 mil imigrantes internacionais


que tinham passado os últimos cinco anos fora do país estavam de
volta ao Brasil. Entre eles, os brasileiros correspondem a 65,7% (176,2
mil pessoas); 29% eram estrangeiros e 5,4% naturalizados brasileiros.
Sua distribuição entre os municípios correspondia a 12,5% na faixa de
fronteira; 21,2% entre municípios fora da faixa, mas em UFs fronteiriças; e
66,3% nos demais municípios do país.
Nas aglomerações transfronteiriças, predominam os estrangeiros
(50,5%) sobre o total dos imigrantes (Tabela 1). Entre os demais municípios
da faixa e da linha de fronteira, a distribuição se aproxima da proporção
total do país, ou seja, mais de 60% são brasileiros natos.

TABELA 1 - IMIGRANTES POR LOCALIZAÇÃO E CONDIÇÃO DE NATURALIDADE - BRASIL – 2010


NATURALIZADO
IMIGRANTES BRASILEIRO NATO ESTRANGEIRO
BRASILEIRO
Como no caso da emigração, poucos municípios receberam os maiores
Aglomeração transfronteiriça 40,47 9,05 50,48
volumes de imigrantes. Apenas 11 municípios têm participação superior a
Linha de fronteira 61,87 9,81 28,32
1%, registrando 34,5% do total de imigrantes em 2010. Foz do Iguaçu é o
Faixa de fronteira 68,51 8,24 23,25 único município fronteiriço nesta classe de participação. Grande parte dos
Outros mun. UFs fronteiriças 74,40 5,20 20,40 municípios que compõem aglomerações transfronteiriças se encontra na
Outros em UFs não fronteiriças 64,50 4,77 30,73 classe de participação entre 0,100% e 1% (ver Figura 1).
Foz do Iguaçu é também o único município de aglomerações
FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados data fixa: residência na origem em 31 de julho de 2005).
transfronteiriças com participação superior a 0,5% do total de imigrantes
Elaboração: IPARDES
estrangeiros. Outros integrantes de aglomerações transfronteiriças
Com a intenção de observar o comportamento dos municípios participam no total de estrangeiros com mais de 0,100%, e esses perfazem
brasileiros, analisou-se a participação do município no total dos emigrantes mais de 50% do total de imigrantes recebidos, casos de Tabatinga (93,9%),
e imigrantes internacionais. No caso dos emigrantes, apenas 12 municípios Chuí (87,5%), Sant’Ana do Livramento (71,9%) e Ponta Porã (60,5%),
participam com mais de 1% desse total, somando uma participação de juntamente com Manaus (70,4%), Lauro de Freitas – BA (78,3%) e Itaí – SP
29,5%, correspondente a 144.949 emigrantes. Dos demais, observa- (100%).
se que muitos municípios na faixa de fronteira participam com mais de O conjunto dos municípios com participação na emigração superior
0,010% do total dos emigrantes (Figura 1). a 0,100% foi considerado o de maior relevância pelos volumes que
movimenta. Sobre ele foram analisados e mapeados os principais destinos,
destacando-se, nesta análise, os sul-americanos. Do total de emigrantes,
51,4% destinam-se a países da Europa, 26,4% aos da América do Norte,
8,9% aos da África e 7,9% aos da América do Sul. Na América do Sul,
os principais destinos são Argentina (22,2%), Bolívia (20,4%) e Paraguai
(12,7%) – Tabela 2.

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Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

TABELA 2 - DESTINO DOS EMIGRANTES E ORIGEM DOS IMIGRANTES EM RELAÇÃO AOS países contribuintes, predominam os Estados Unidos (52,1 mil imigrantes,
PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL E PARTICIPAÇÃO - BRASIL - 2010 ou 19,4% do total) e Japão (41 mil ou 15,3%), assim como Paraguai (24,6
mil ou 9,2%), Portugal (21,6 mil ou 8,1%) e Bolívia (15,6 mil ou 5,8%) –
% TOTAL % TOTAL apenas esses com participação superior a 5% do total. Segundo o IBGE,
DESTINOS EMIGRANTES IMIGRANTES
EMIGRANTES IMIGRANTES
na década anterior, o Paraguai e o Japão apareciam antes dos norte-
Argentina 8.631 22,19 8.084 11,93 americanos, seguidos pela Argentina e pela Bolívia.
Bolívia 7.919 20,36 15.651 23,09
Na América do Sul, Paraguai e Bolívia lideram os países originários de
Paraguai 4.926 12,67 24.610 36,31
imigrantes, totalizando 59,4% dos movimentos sul americanos (ver Tabela
Guiana Francesa 3.822 9,83 1.072 1,58
2). A Argentina contribui com 11,9%. Entre os demais países, o Chile,
Colômbia 3.255 4,80 embora não limítrofe, destaca-se com uma participação de 4%. O mapa
Suriname 3.416 8,78 572 0,84 dos fluxos principais, considerados os municípios com participação em
Chile 2.533 6,51 2.674 3,95 mais de 0,100% do total dos imigrantes, reproduz o comportamento da
Venezuela 2.297 5,91 1.892 2,79 emigração, com nítida mobilidade entre países limítrofes.
Uruguai 1.703 4,38 4.326 6,38 Os 925 municípios com imigrantes oriundos da América do Sul
Peru 4.224 6,23 totalizam fluxos de 67.775 pessoas, das quais 36% em municípios cuja
Outros países representatividade dos sul-americanos sobre o total de imigrantes
3.643 9,37 1.415 2,08 ultrapassa 75%. Da mesma forma que ocorre com os emigrantes
América do Sul
internacionais, os imigrantes sul-americanos também compõem a maior
AMÉRICA DO SUL 38.890 100 67.775 100
proporção do total dos imigrantes dos municípios da faixa de fronteira.
FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados data fixa: residência na origem em 31 de julho de 2005).
Elaboração: IPARDES
Movimentos pendulares
As emigrações para a América do Sul apontam para um perfil que, em
O Censo Demográfico de 2010 oferece uma importante base de dados
termos de volumes, origina-se em centros de maior porte. Poucos são os
para análise do movimento das pessoas para trabalho e/ou estudo em
municípios fronteiriços que concentram volumes elevados de emigrantes,
outro município que não o de residência. Entendidos como deslocamentos
entre eles se destacam Foz do Iguaçu, além de capitais dos estados do
pendulares, tais movimentos não são considerados migratórios, pois não
Norte, como Boa Vista, Rio Branco e Macapá. Nas UFs fronteiriças os
implicam em mudança de domicílio. Também não se restringem a fluxos
destinos principais são os países limítrofes, o que sugere uma emigração
diários, mas incluem aqueles com maior duração entre partida e retorno.
de contato, de transposição, e que se supõe nem sempre ser realizada por
O Censo registra fluxos de entrada e saída dos municípios. No caso dos
brasileiros, podendo corresponder a estrangeiros em retorno.
fluxos para o estrangeiro é possível registrar apenas os de saída dos
No âmbito do município, 239 têm na emigração para países sul- municípios brasileiros.
americanos mais de 75% do total dos emigrantes, e desse conjunto partem
As informações apontam que 14.803.149 pessoas realizam movimento
11,7% do total dos emigrantes com destino a países desse continente.
pendular para trabalho e/ou estudo entre municípios brasileiros, das
São municípios majoritariamente de menor porte, em UFs fronteiriças
quais apenas 0,4% dos que trabalham e 0,6% dos que estudam o fazem
(ver Figura 1) e se caracterizam por fluxos com pequenos volumes (em
no estrangeiro. Considerando o total de fluxos, 34.975 pessoas deixam
159, não atinge 10 emigrantes). Os maiores volumes deixam municípios
municípios brasileiros em fluxos pendulares para trabalhar no exterior;
do Norte, com destaque a Boa Vista (972 pessoas, 82,5% destinadas a
34.335, para estudar no estrangeiro; 741 realizam ambas as atividades no
países da América do Sul).
exterior; e há um número de pessoas que saem para estudar em município
No caso das imigrações, as principais origens dos imigrantes para o Brasil brasileiro mas realizam atividade de trabalho no estrangeiro (Tabela 3).
foram Europa (29,7%) e América Latina (aqui consideradas as Américas do Somando todas as saídas para o estrangeiro tem-se 72.302 pessoas em
Sul e Central e o México), com a participação de 27,1%. Porém, entre os movimento.
270 271
Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

TABELA 3 - MOVIMENTO PENDULAR DA POPULAÇÃO - FLUXOS DE SAÍDA - BRASIL - 2010

% TOTAL
CONDIÇÃO PESSOAS
DE PESSOAS

Saída para trabalho em outro município 9.527.748 64,36


Trabalho estrangeiro 34.975 0,24
Trabalho vários municípios 883.890 5,97
Estudo em outro município 3.652.488 24,67
Estudo estrangeiro 34.335 0,23
Estudo e Trabalho em outro município 647.687 4,38
Estudo em outro município e Trabalho estrangeiro 269 0,00
Estudo e Trabalho estrangeiro 741 0,01
Estudo estrangeiro e trabalho em outro município 1.719 0,01
Estudo em outro município e Trabalho vários municípios 19.034 0,13
Estudo estrangeiro e Trabalho vários municípios 264 0,00
TOTAL estuda e/ou trabalha em outro município 14.803.149 100,00

FONTE: IBGE - Censo Demográfico (dados da amostra).


Elaboração: IPARDES.
Ao se analisar a proporção das pessoas que se deslocam para o
estrangeiro sobre o total de pessoas em movimentos pendulares
Das 72.302 pessoas que realizam deslocamentos pendulares para o
observa-se que em apenas 24 municípios supera os 20% do total de
estrangeiro, a concentração de fluxos tem origem nos grandes centros
saídas, envolvendo 19.517 pessoas. A grande maioria dos municípios que
urbanos. De São Paulo saem 14,85% desse total, e apenas outros
realizam movimentos pendulares para o estrangeiro tem neles menos de
dez municípios têm participação superior a 1% do total. Entre eles
5% do total dos fluxos de saída.
encontram-se os municípios fronteiriços Foz do Iguaçu (9,10%), Sant’Ana
do Livramento (3,84%), Ponta Porã (2,910%), Chuí (1,75%) e Tabatinga Os municípios onde essa participação é elevada estão inseridos na
(1,3%), demonstrando um mesmo padrão de mobilidade em municípios faixa de fronteira, porém são os da linha de fronteira (aglomerações
integrantes de aglomerações transfronteiriças (Figura 2). Sumarizando, transfronteiriças) que apresentam os mais elevados percentuais.
esses 11 municípios respondem por 45% dos deslocamentos, sendo 18,9 Da mesma forma que observado na análise dos movimentos migratórios,
pontos percentuais correspondentes aos municípios fronteiriços. os deslocamentos pendulares apontam fluxos importantes na extensão
da faixa de fronteira, seja pelo volume de pessoas seja pela proporção
que representam sobre o total dos fluxos. Lembra-se que não se dispõem
de dados similares dos países vizinhos. Se computadas as entradas para
trabalho e/ou estudo no Brasil, o volume de pessoas em trânsito seria
consideravelmente superior. Particularmente nas aglomerações urbanas,
esses fluxos, entre outros, representam a interação de pessoas no
território para a realização de atividades essenciais e exigem a definição
de políticas de mobilidade, assim como outras medidas que garantam o
livre trânsito dessas pessoas. É o que constata Oliveira (2010):

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Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

estas fronteiras têm proporcionado ações compartilhadas entre associações de migrantes, porém, em diálogo informal, religioso. A
brasileiros, bolivianos e paraguaios: incentivado a utilização de mão-de- inconsistência constatada decorre da história de cultura política distinta
obra em ambos os lados, intensificado a prestação de serviços, aumento da entre os países, da existência ou não de uma política exterior e sua
arrecadação municipal (fato constatado em todas as prefeituras, alcadias
e intendência); incentivo à criação de centros universitários de graduação prática. A falta de cultura política para relações internacionais cria sérias
e pós-graduação, dilatando, ainda mais, o raio de atuação regional das dificuldades de inovação nas relações entre os países fora das estruturas
cidades, tanto para dentro do Brasil como para dentro do Paraguai e da burocráticas estabelecidas. Como exemplo, a maioria dos parlamentares
Bolívia; além de tudo, têm forçado a aproximação entre as administrações membros da Comissão do Mercosul não demonstra interesse algum pelo
municipais, com intuito de solucionar problemas que afetam ambas as
cidades, possibilitando expandir, desta feita, a integração formal.
tema, como adverte um dos entrevistados. Ademais, é notória a assimetria
entre os países, com diferentes características e interesses.
Também se evidenciou a centralização nacional, a falta de autonomia
Mobilidade e integração: o que dizem pesquisadores e lideranças para o diálogo e a tomada de decisões, e a desconsideração das
Com vistas a uma análise preliminar das políticas existentes, problemas necessidades e especificidades da zona fronteiriça, de seus povos e de
e desafios a serem enfrentados para se implementar uma política de suas aglomerações. A maior parte das ações compete à esfera nacional,
integração para as áreas de fronteira, com ênfase na mobilidade, foram todavia, os problemas recaem nos níveis do Estado e do Município; em
entrevistados pesquisadores e lideranças regionais do Paraná e de Santa muitos casos, é grande a dificuldade de aprovação das resoluções junto
Catarina6, selecionadas devido à atuação precípua relativa à temática, ao Congresso Nacional, dados os diferentes tempos político-eleitorais dos
como etapa preparatória à pesquisa de campo prevista. países e suas disputas políticas.
Foi percebida consonância na posição dos entrevistados, seja quanto Os entrevistados apontam importantes desafios. O principal diz respeito
aos problemas ou aos desafios. De modo geral, os grandes problemas à cidadania, pois não existe um cidadão do MERCOSUL, mas um cidadão
residem no conflito de escalas e na atomização dos planos projetos e de um país que quer tirar vantagens para seu país, e assim fomenta a
ações federativas na faixa de fronteira, assim como na ambígua função da desintegração e não a integração. É imprescindível redefinir conceitos:
fronteira, como espaço alfandegário, porta de entrada e saída de migrantes, a fronteira tem de ser vista como área que requer gestão/intervenção
espaço transitório, lugar “perigoso”, permissivo ao tráfico de drogas, de conjunta dos Estados, não como área limite de atuação da soberania, o que
pessoas e ao contrabando. A ausência de políticas públicas migratórias, limita a construção da cidadania para além da nacionalidade. Os conceitos
particularmente que considerem as especificidades dos grupos culturais e jurídicos de Nação e Soberania não dão conta das relações fronteiriças,
as precárias condições de renda, deixa a população a mercê de uma rede portanto há que se construir o conceito de cidadania ampliada da situação
não oficial de agenciamento de trabalho, do medo, do silêncio, do temor fática das pessoas, de sua existência nos lugares.
pela represália. São inadiáveis medidas que combatam a precarização Outro desafio premente é colocar dignidade na discussão sobre
do trabalho e assumam a difícil tarefa de inserir o indocumentado e o o migrante transfronteiriço, o qual está em um contexto social com
apátrida7. pouca representatividade, pouco poder. É fundamental implementar
Foi evidenciado que é ainda inconsistente o diálogo entre países, agentes a identificação única de pessoas e veículos nas regiões da fronteira (há
e responsáveis por políticas e práticas de integração, particularmente um acordo aprovado, mas não praticado), o que ajudaria a dignificar o
com a sociedade civil. Neste caso, são realizados apenas contatos com migrante ou as pessoas que realizam comutação diária. Outro desafio é o
diálogo interescalar, respeitando a participação de moradores fronteiriços,
6 Dr. Rosinha, parlamentar, ex-presidente do Parlamento do Mercosul, integrante da Comissão de Representantes e a partir dele dar sentido a instituições supranacionais (MERCOSUL,
do Brasil no MERCOSUL; José Antônio Peres Gediel, Coordenador dos Direitos do Cidadão da Secretaria de
Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Paraná; Nadia Floriani, Assessora da Comissão Parlamentar do UNASUL), aprofundando a integração com os países limítrofes e abrindo a
MERCOSUL e Assuntos Internacionais na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná; Josemar Ganho, Coordenador
do Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira do Paraná (NFPR); Gislene dos
possibilidade de uma agenda compartilhada para a solução de problemas
Santos, docente no Departamento de Geografia da UFPR; Maristela Ferrari, docente na Universidade Federal de comuns na faixa de fronteira. Para tanto, há que se reduzir o peso sobre
Santa Catarina; Elizete Sant Anna de Oliveira, atuante na Sociedade dos Missionários de São Carlos – Pastoral do
Migrante - Centro de Atendimento aos Migrantes; Gladys Renée de Souza Sánchez, presidente da ONG Casa Latino-
o aspecto econômico e efetivar a integração das sociedades do bloco,
Americana (CASLA), em Curitiba. considerando uma agenda social, cultural, tecnológica, acadêmica
7 Caso daquelas pessoas que nascem e têm negado o direito a registro no país migrante, como ocorre entre
guaranis. etc. Isso requer que a estrutura do Estado compreenda os problemas
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Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

apontados, assimile-os conceitualmente e em ações transformadas em que considerem sua condição de lugares de passagem e proporcionem
políticas públicas, com vigor para que efetivamente sejam implementadas assentamentos solidários a refugiados.
(orçamento, estrutura, possibilidades de articulações etc.).
Do ponto de vista acadêmico, há o desafio intelectual de entender que Considerações finais
a fronteira é uma nova categoria teórica – nem limite, nem contato, nem
As informações analisadas confirmam que há entre o Brasil e os demais
interação –; o desafio empírico, pois a fronteira exige dados compatíveis e
países da América do Sul uma dimensão de mobilidade transfronteiriça, por
comparáveis entre os países, e metodologia diferente da escala do Estado
movimentos migratórios e por deslocamentos pendulares para trabalho
Nacional; e o desafio da pesquisa, posto que trabalhos de campo são
e/ou estudo. Tal dimensão requer que sejam concebidas e implementadas
de difícil operacionalização, por incidir sobre lugares com fluxos e redes
políticas adequadas às especificidades da região, particularmente no que
distintas que exigem cuidados especiais.
se refere a migrações, mobilidade, trabalho, educação, cultura, entre
Nesse cenário de problemas e desafios, as responsabilidades se diluem e outras.
os povos das fronteiras se veem privados dos direitos essenciais, ao mesmo
Os movimentos migratórios registrados na faixa de fronteira envolvem
tempo em que construções simbólicas emergem a partir justaposição
um grande número de pessoas e municípios e correspondem a uma
“diversidade e conflito”. A fronteira tripla Brasil/Paraguai/Argentina
busca preferencial pelos países limítrofes, o que sugere um exercício
constitui-se em exemplo. Para Montenegro e Béliveau (2006), essa região
de interação entre os povos. A mobilidade pendular repete intensos
se converteu em uma metáfora das zonas cinzentas e dos espaços sob a
fluxos na faixa de fronteira, particularmente nas aglomerações urbanas
ameaça imprevisível do “terrorismo global”, particularmente após 2001,
transfronteiriças (cidades gêmeas, cidades pares, cidades binacionais),
tornando-se alvo de notícias na imprensa nacional e internacional, sob
confirmando relações de interação. Tais movimentos (migratórios e
um discurso jornalístico que a relaciona a um espaço transnacional que
pendulares) decorrem fundamentalmente de relações para trabalho,
escapa aos controles estatais.
estudo, consumo, demanda e acesso a funções urbanas, e implicam
Tais privações, imposições no imaginário e construções estratégicas trocas culturais, de hábitos e de padrões. No extremo, sugerem a busca
explicam as palavras finais dos entrevistados, instigados a sintetizar “a pela realização de direitos que se confundem entre os lados da fronteira,
quem pertence a fronteira”. Quase que unanimemente a resposta foi: muitas vezes dificultados pelos obstáculos de políticas de controle
aos povos que ali residem e que devem discutir os aspectos centrais de inadequadas.
suas identidades, tendo em conta a interculturalidade, e enfrentar os
Resta investigar o perfil desses migrantes e os motivos dos
conflitos escalares da tomada de decisões, normalmente de acordo com
deslocamentos. Tais informações evidenciariam os tipos de atividades
interesses distantes da escala local, do cotidiano vivido pelos moradores
comuns e complementares entre os países (econômicas, funcionais,
destas regiões. Mas, é preciso “borrar” a fronteira; apagar a linha divisória
sociais), as redes sociais existentes, as principais rotas da mobilidade e, com
sobre cursos dos rios ou vias urbanas e tornar o espaço único. Então, a
isso, orientariam a formulação de políticas adequadas às peculiaridades
fronteira pertencerá aos povos que ali vivem. Pertence também a quem
da região transfronteiriça. Ressalta-se que qualquer informação sobre
faz uso dela, o que implica em uma política, não de vigilância, mas que
movimento migratório pode corresponder a um número subestimado,
capte e seja adequada às suas peculiaridades. Apontou-se que existe uma
em face a omissões por parte de pessoas e familiares temerosos diante de
dialética de fronteira, ou seja, a fronteira é uma síntese de existência e
situações de irregularidade – fato que também remete à necessidade de
inexistência, é o fim como também é o início, é o legal e o ilegal manifesto
políticas públicas de acolhimento, documentação, inserção social e que
em um mesmo espaço onde existe e inexiste o pertencimento.
neutralizem o preconceito.
Sob a compreensão dos aspectos jurídicos, a noção de fronteira deve
A fronteira é ainda uma linha imaginária que dificulta o cotidiano dos
ser transposta, pois é uma noção pouco hospitaleira, que reforça o papel
que nela vivem e para muitos se transforma em uma “zona de incerteza
dominante da nação. Há que se considerar reflexões de Jacques Derrida8 e
identitária”. Sua constante transposição por migrantes ou pela comutação
propor que nas fronteiras existam cidades acolhedoras, territórios livres,
frequente legitima que se questione se conformam identidades dissimiles
8 DERRIDA, J. (2001). A solidariedade dos seres vivos. Entrevista a Evandro Nascimento. Folha de S. Paulo, Mais! ou recorrentes; identidades móveis ou que se desaparecem por uma
27/5/2001.

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Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível Rosa Moura e Nelson Ari Cardoso

mobilidade sem identidade; ou identidades que se reinventam. Talvez, Brasília: Ministério da Integração Nacional.
nem integração, nem interação, mas uma camada à parte que mescla CARDOSO, N.; MOURA, R.; CINTRA, A. (2012). Mobilidade transfronteiriça. Caderno
os traços da diversidade. Em qualquer condição, é imprescindível que Ipardes – Estudos e Pesquisas, v., n.2, jul./dez. Disponível em: http://www.ipardes.pr.gov.
br/ojs/index.php/cadernoipardes
seja ampliada a cidadania para além do conceito da nacionalidade, e
que se garanta dignidade a segmentos com pouca representatividade CARNEIRO, C.S. (2007). O direito da integração regional. Coleção Para Entender. Belo
social, presos ao medo, à vulnerabilidade, ao espectro do “irregular” que Horizonte: Del Rey.
acompanha muitos desses movimentos nessas porções do território. CICCOLELLA, P.J. (1997). Redefinición de fronteras, territorios y mercados en el marco
del capitalismo de bloques. In: CASTELLO, I.R. et al. (Org.) Fronteiras na América Latina.
É nítida, portanto, a necessidade de políticas públicas efetivamente Espaços em transformação. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/FEE.
integradoras que reforcem a importância da presença do Estado, efetiva COURLET, C. (1996). Globalização e fronteira. Ensaios FEE, v17, n.1, p.11-22.
e estratégica, de modo a desconstruir a noção de um mosaico de pedaços
FERRARI, M. (2012). Zonas de fronteira, cidades gêmeas e interações transfronteiriças
de países independentes que se avizinham. Políticas que enfrentem
no contexto do Mercosul. Palestra proferida no Congresso Educação e Cultura para a
as restrições à mobilidade das pessoas – políticas de mobilidade e Integração da América Latina – CEPIAL. Curitiba, 16/07/2012 (anotações).
de assistência ao trabalho, entre outras que garantam livre trânsito
HIERNAUX-NICOLAS, D. (2006). ¿Identidades móviles o movilidad sin identidad? In: LEMOS,
e desempenho profissional – e as dificuldades imposta por barreiras e A.I.G. de; SILVEIRA, M.L.; ARROYO, M. (Org.). Questões territoriais na América Latina. 1ª
controles à concretização de um espaço social e econômico peculiar. Ed. Buenos Aires: CLACSO : São Paulo: USP.
Romper fronteiras, limites, e assumir a diversidade, a multiculturalidade MACHADO, L.O. (1998). Limites, fronteiras, redes. In: STROHAECKER, T.M.; DAMIANI, A.;
presente nessas regiões significa abertura para fluxos que não só SCHAFFER, N.O.; BAUTH, N.; DUTRA, V.S. (Org.). Fronteiras e Espaço Global. Porto Alegre:
aproximam pessoas e lugares como garantem sua inserção numa mesma AGB-Porto Alegre, 41-49.
dinâmica, acesso a direitos incontestáveis e o exercício de uma cidadania MONTENEGRO, S.; BÉLIVEAU, V.G. (2006). La Triple Frontera: globalización y construcción
ampliada. social del espacio. Madrid: Buenos Aires: Miño y Dávila Editores.
Inúmeras são as questões remanescentes na discussão sobre espaço e OLIVEIRA, N.; KOCH, M.R.; BARCELLOS, T.M. (1999). A fronteira Oeste do RS na perspectiva da
mobilidade transfronteiriça, particularmente em sua principal expressão integração latino-americana. In: SCP/FEE. Impactos sociais e territoriais da reestruturação
econômica no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Convênio FEE/FINEP, p.147-172.
territorial, as aglomerações urbanas. Entre elas, permanecem latentes
questões afetas ao (des)equilíbrio entre a legalidade e a ilegalidade OLIVEIRA, T.C.M. de. (2009). Frontières en Amèrique Latine: réflexions méthodologiques.
Revue Espaces et Sociétés, n. 138, Paris.
nas práticas que se materializam nessas localizações – fato que pode
ser associado não só a uma recorrente compreensão cultural do que OLIVEIRA, T.C.M. de. (2010). A lógica espacial do território fronteiriço: os casos das
é entendido por violação de direitos, mas também à distância física e aglomerações de Ponta Porã-Pedro Juan Caballero e Ladário-Corumbá-Puerto Quijarro-
Puerto Suarez. In: SEBRAE (Org.). Mato Grosso do Sul sem fronteiras: características e
ao relativo isolamento destas porções dos territórios nacionais –, e a interações territoriais. 1ª Ed. Campo Grande: Visão/SEBRAE, 2010, v.1, p.239-255.
recomposição da imagem manchada por negatividades, como o tráfico, o
OLIVEROS, L.A. (2005). Integración y desarrollo fronterizo en la Comunidad Andina.
contrabando, a impunidade, a clandestinidade. Carentes de reflexão essa Pasantía Intensiva sobre Integración Andina para Periodistas. Lima: mar./nov./dic., 2005.
profusão de territorialidades particulares formata e dinamiza a existência
ROCHEFORT, N.M.D. de. (2002). Frontera: ¿Muro divisorio o tejido de relaciones? Estudios
de múltiplas fronteiras internas, dada a quantidade de atores, interesses,
Fronterizos (Un. Autónoma de Baja California), ene./jun., v.3, n.5., p.9-42.
pactos formais e informais, que fazem com que, por se tratar de um
espaço de todos, pareça não pertencer a ninguém.

Referência
ALEGRIA, T. (2009). Metrópolis transfronteriza. 1ª Ed. Tijuana: El Colegio de la Frontera
Norte : Miguel Ángel Porrúa.
BRASIL (2005). Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Programas Regionais.
Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira.

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Mobilidade Transfronteiriça: o ir e vir na fronteira do possível

280
Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes

O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORÂNEO DAS


MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS1

Gislene SANTOS2
Caio da Silveira FERNANDES3

Introdução
Para o sociólogo Abdelmalek Sayad (1998), a migração se define na
polaridade: emigração-imigração. O migrante é aquele, homem ou
mulher, cujo cotidiano é atravessado por uma dúbia situação espacial:
para a sociedade de origem, é um emigrante, aquele que parte; do
outro lado, para onde chega, um imigrante, presente na sociedade de
destino. Carregaria assim, o migrante, simultaneamente, duas dimensões
espaciais: um e/imigrante. Presente e ausente, entre dois lugares - o de
partida e o de origem. A palavra migração é sobretudo espacial. Migrante é
aquele para quem o espaço é fonte valorosa de recursos. Assim, depende,
o ato de migrar, necessariamente de lugares. Não há ação migratória
sem o substrato de um território. Para este artigo, apesar da amplitude
semântica da migração, priorizamos como espaço de análise, o local de
destino. Trataremos aqui de apresentar quem são os novos imigrantes
internacionais no Paraná. Para apresentar a singularidade do estado neste
período contemporâneo, o artigo estrutura-se em 2 seções: 1) através da
organização dos dados censitários (2010), apresentamos e descrevemos
a particularidade do Paraná no cenário dos afluxos de estrangeiros no
Brasil que, destaca-se, no quadro regional sulino, como um dos estados
receptores de migrantes provindos dos países do cone sul; 2) guardamos
atenção para a inserção de um grupo de migrantes, provindos da América
do Sul, na cidade de Curitiba, capital do estado. O objetivo aqui é darmos
visibilidade para algumas de suas manifestações nos espaços públicos da
cidade. Registra-se ainda uma descrição e análise sobre suas táticas de
inserção no espaço público urbano.

1 O presente artigo é parte do Projeto de Pesquisa, financiado pelo CNPq: “A migração feminina do Paraguai para
o Brasil: o papel das Redes Sociais Migratórias”.
2 Gislene Aparecida dos Santos - Professora Adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da UFPR. Coordena o Núcleo de Estudos em População e Território (NuPoTe), UFPR. Pesquisadora do
CNPq. Email: gissantos@ufpr.br
3 Caio da Silveira Fernandes - Acadêmico do 3º Ano do Curso de Geografia da UFPR, bolsista de Iniciação
Científica/TN/UFPR do Projeto “A migração estrangeira em Curitiba (1990-2000): uma análise entre a economia
espacial e políticas migratórias”. Email: caio_fernandes1986@ufpr.br

281
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

2. Migrantes Internacionais no Paraná QUADRO1 - Países de origem dos imigrantes no Paraná - 2010

Nacionalidade Estrangeiro Naturalizado Total


O território do Paraná é historicamente configurado por fluxos
migratórios internacionais. Na segunda metade do século XIX, migrantes Paraguai 7518 8352 15870
provindos sobretudo do continente europeu, estabeleceram-se no estado Japão 3194 3041 6235
e, em 1960, o Paraná contava com 100.955 pessoas estrangeiras (IBGE, Argentina 2309 904 3213
1986). No decorrer dos anos este fluxo reduz-se, e para o período mais Líbano 1897 859 2756
recente, 2010, aproximadamente 50.000 migrantes residem no Paraná, ou
Alemanha 945 827 1772
seja, cerca de 0,5% da população estadual compostos por estrangeiros4. Na
China 1203 558 1761
região sul, o Paraná é o estado que mais sedia uma população estrangeira,
visto que Santa Catarina e Rio Grande do Sul acolheram cerca de 17.623 e Espanha 1161 567 1728
34.244 pessoas respectivamente (Censo Demográfico, 2010). Itália 1065 556 1621

Mas quem são estes novos migrantes? Qual a sua procedência? Estados Unidos 847 426 1273

Para uma apresentação da localização e distribuição dos estrangeiros Chile 802 141 943
contemporâneos no estado do Paraná, utilizamos os dados censitários do Peru 404 305 709
ano de 2010. Entretanto, alertamos, trata-se aqui de uma aproximação. Polônia 248 422 670
Os dados da migração estrangeira são, por sua natureza, difíceis de serem Fonte: IBGE - Censo Demográfico, 2010. Arquivo Microdados.
contabilizados. No Brasil, as normatizações para a regularização de um Adaptado pelos autores.
estrangeiro no território nacional são rigorosas5. É comum que, aqueles
A primeira vista, chama atenção a relevância dos migrantes provindos
migrantes na condição de irregulares prefiram não fornecer informações
do Paraguai. Na sequência, a predominância dos japoneses, segundo
aos órgãos censitários, dada a precariedade jurídica de sua estada no
grupo mais representado, cuja origem migratória remonta, no Paraná, ao
país. Entretanto, ainda que o levantamento censitário apresente lacunas,
início do século XX. Destacam-se também a manutenção dos migrantes
este é um dos poucos registros empíricos da imigração estrangeira que o
europeus e a emergência daqueles provindos do Líbano e da China.
Governo Federal disponibiliza à sociedade brasileira. E, vale advertir, os
dados censitários são utilizados como parâmetros para as políticas públicas Para entender o Paraná contemporâneo como receptor de migrantes
em suas diferentes escalas, daí a importância de sua divulgação para a estrangeiros é necessário apontar que este estado apresentou-se, em
sociedade civil, sobretudo se pensarmos em projetos democráticos de relação às demais unidades da Federação (UFs), um acelerado grau de
planejamento territorial que levem em conta a mobilidade da população urbanização estadual. Se em 1970, apresentava 36% de urbanização,
no território nacional. em 1990 salta para 78%; já em 2010, cerca de 85% da população total
do estado residiam em áreas urbanas. Os municípios de Curitiba, Foz
Assim esclarecido, os migrantes estrangeiros no Paraná, em 2010, são
do Iguaçu, Londrina e Maringá, destino dos maiores fluxos de migrantes
provindos de 144 nacionalidades. 91% desta população localiza-se em
estrangeiros (Quadro 2), apresentavam, em 2010, a taxa média de
áreas urbanas e 54% são homens; cerca de 46% são idosos, com idade
97,5% de urbanização, acima da regional. São cidades que, no Paraná,
acima de 70 anos e 41% jovens (entre 15 a 29 anos). Verifica-se assim
além de serem as mais populosas, representam espaços privilegiados de
um equilíbrio etário na composição da população, e os dados indicam a
oportunidades, com disponibilidade de variados bens e serviços, recursos
necessidade de políticas públicas para atender as demandas específicas
espaciais valorosos tanto para a população local quanto para aqueles que
de cada grupo etário. Elencamos abaixo os 13 países mais representativos
chegam. Destacam-se também entre as maiores economias municipais
de origem dos migrantes no Paraná.
do estado. Para ilustrar, em 2009, 24,09% do PIB estadual concentrava-
se em Curitiba, Londrina 4,68%, Maringá 3,83% e Foz do Iguaçu 3,53%
(IPARDES,2010). São cidades que, no contexto regional, apresentam-se
4 Para migrantes internacionais, considera-se aqui os estrangeiros e aqueles naturalizados brasileiros.
5 Para informações da legislação brasileira e os procedimentos jurídicos obrigatórios para a regularização do
atrativas para os migrantes à procura de trabalho.
estrangeiro, consultar COELHO (2011). E, para o entendimento dos acordos que regulam o trânsito dos migrantes
entre os países do Mercosul, consultar o informe do CDHIC(2011).

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O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

QUADRO 2. Localização dos Imigrantes no Paraná - 2010 foram transportados nos ônibus interurbanos entre Foz do Iguaçu e
Municípios População estrangeira Ciudad del Este, conforme Cury (2010, p. 200). Moura e Cardoso (2010)
Curitiba 13.108 reconhecem que a cidade de Foz do Iguaçu está atualmente muito mais
Foz do Iguaçu 8.744 integrada à dinâmica urbana fronteiriça do que à rede urbana paranaense.
Londrina 2.875
Segundo a UNICEF (2005), ocorre nesta área fronteiriça intensa circulação
Maringá 2.291
de pessoas à procura de trabalho e serviços. Ou seja, uma dinâmica de
Cascavel 1.466
São J.dos Pinhais 889 migração laboral entre áreas urbanas fronteiriças.
Ponta Grossa 759 Os japoneses, segundo grupo representativo no Paraná, concentram-
Santa Helena 714
se principalmente em Londrina, 1234 pessoas e, na sequência, Maringá,
Guaíra 709
Toledo 641 675. Em Curitiba, a terceira capital nacional de destino de migrantes-
Fonte: IBGE - Censo demográfico 2010. Arquivo Microdados. estrangeiros6, o principal grupo de estrangeiros está representado
Adaptado pelos autores. pelos argentinos, 832 pessoas, seguido pelos japoneses, 799. Ainda,
Foz do Iguaçu é a cidade que sedia o maior número de paraguaios, 2685 uma particularidade em Curitiba: a presença de 511 portugueses e 453
pessoas, e, na sequência os provindos do Líbano, 1534 pessoas. A migração paraguaios que obtiveram a naturalização brasileira.
dos libaneses para Foz do Iguaçu, iniciou-se nos anos 1950 e incrementou- Se focarmos a atenção para aqueles migrantes provindos da América
se nos anos 1970 e 1990. Das 16 instituições árabes na região da tríplice do Sul (Quadro 3), percebe-se que, para 2000 e 2010, os dados nos trazem
fronteira, 12 estão localizadas em Foz do Iguaçu (Cardozo, 2012). algo novo: no Paraná, em 2010, a presença modesta de um contingente de
A centralidade de Foz do Iguaçu na imigração dos paraguaios pode ser equatorianos, cerca de 46 pessoas e o ligeiro aumento dos uruguaios: de
explicada pela singularidade desta cidade no contexto nacional e regional: 75 pessoas em 2000 salta para 116 migrantes em 2010. Ainda, destaca-se a
desde os anos 1970, quando da efetivação da Usina Binacional de Itaipu, manutenção em ascendência de um fluxo provindo do Peru, da Venezuela
Foz do Iguaçu tornou-se um dos pontos de destino da migração interna e do Chile. Por sua vez, uma redução de 54% daqueles provindos da
brasileira, e, justaposto a este movimento, o afluxo de migrantes paraguaios. Bolívia. E, mesmo o Paraguai, apesar de apresentar uma das mais altas
Para os anos 1990 e 2000, Matos el al (2008) demonstram a intensidade concentrações de migrantes estrangeiros no estado, apresentou também,
do fluxo da população paraguaia para o estado do Paraná, concentrados em 2010, uma significativa redução em seu contingente migratório.
nesta porção fronteiriça. Cascavel também sedia grande parte número de QUADRO 3. País de origem dos migrantes provindos da América do Sul
migrantes paraguaios, 441 pessoas. Se acrescentarmos Guairá 3% e Toledo no Paraná - 2000 e 2010.
5%, localizados na porção oeste do Paraná, verificamos que esta região
fronteiriça acolhe cerca de 81% do fluxo. Assim, no quadro explicativo Origem 2000 2010

da migração dos paraguaios para o Brasil é imperante reconhecermos Argentina 1103 911
Bolívia 310 142
o efeito que a região oeste do Paraná, lindeira ao Paraguai, exerce no Chile 167 183
arranjo de um fluxo transfronteiriço. No ano de 2007, Foz do Iguaçu Colômbia 58 37
possuía 325.137 habitantes, com uma das mais altas taxas de urbanização Equador 43 46
estadual (99,21%) e crescimento geométrico da população em torno de Paraguai 20815 13498
3,5%, acima da tendência regional e nacional. Sua paisagem urbana é Peru 33 65
Uruguai 75 116
também marcada por intensas relações internacionais fronteiriças “e se
Venezuela 32 58
manifesta como uma espacialidade complexa, desenvolvendo estreitas Fonte: Censo demográfico, 2000 e 2010. Arquivo Microdados.
relações com as cidades vizinhas de Puerto Iguazu, na Argentina, e Ciudad Adaptado pelos autores
del Este, no Paraguai”. (IPARDES 2006, p. 49). Tais interações se expressam
sobretudo pelo fluxo de população para o trabalho entre as duas cidades
- Foz do Iguaçu e Ciudad del Este - e, pela circulação de mercadorias do 6 No Brasil, São Paulo, segundo o Censo 2010, foi a capital que mais recebeu estrangeiros, cerca de 119.727
pessoas. Rio de Janeiro, na sequência, com 55.521. E, Curitiba, em terceiro lugar, com 8.871. Belo Horizonte, e Porto
Paraguai para o Brasil. No ano de 2007, cerca de 1.178.268 passageiros Alegre, receberam 6.088 e 501 pessoas estrangeiros, respectivamente.

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O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

Interessante verificarmos que, apesar do Paraná ser um dos destinos nacional e, são, por vezes, nomeados “habitantes transnacionais”. Vários
privilegiados do fluxo de migrantes provindos do Paraguai, não sejam autores, entre eles Canales et al (2005), utilizam o fluxo migratório
eles, os paraguaios, o grupo mais representativo no recebimento dos internacional para ilustrar experiências “transnacionais” contemporâneas.
vistos para o trabalho. Para exemplificar: das autorizações concedidas Consideram o fato de que, relações sociais mantidas e sustentadas em
para migrantes a trabalho no Paraná, provindos dos países do Mercosul, trânsitos migratórios, associadas às facilidades de comunicação, são
o Paraguai se destaca como o país que obteve as menores concessões. elementos formadores de comunidades transnacionais. Por conseguinte,
Entre 2009 a 2012, os argentinos são aqueles que obtiveram as maiores as relações sociais são capazes de influenciar e alterar tanto a comunidade
autorizações concedidas, 76 ao total, enquanto que, o Paraguai, durante de origem quanto a de destino. Mudanças principalmente no campo
este mesmo período, registrou 7 concessões (Ministério do Trabalho social, cultural e econômica.
e Emprego). Não temos aqui a pretensão de desvendar as relações de Em outra vertente, Fitzgerald e Waldinger (2004); Stefoni (2005); Herrera
trabalho dos migrantes no Brasil, entretanto, vale mencionar que, mesmo (2008), menos entusiastas do transnacionalismo migratório, advertem
dentro dos países do Mercosul, ocorre diferenças assimétricas na inserção acerca dos limites do que realmente pode e/ou deve ser considerado uma
dos migrantes no mercado de trabalho brasileiro (Sala, 2010). comunidade transnacional. Segundo os autores, as políticas migratórias
Antes de terminar esta seção, citamos a presença recente dos haitianos restritivas, o contexto da interação social entre os migrantes e a presença
no Paraná. Se, no Brasil, em 2010, 15 vistos de trabalho foram expedidos ou não dos acordos bilaterais entre os países envolvidos no fluxo (origem
para os haitianos, no primeiro semestre de 2012 já se atingia 2.311 vistos. e destino) devem ser levados em consideração no argumento conceitual
Estudos da Pastoral dos Migrantes, registram que, em 2012, cerca de 376 do transnacionalismo. Chamam a atenção também para as relações
haitianos foram direcionados do Amazonas para o Paraná. De Manaus históricas entre os países envolvidos e, especificamente urgentes no
(AM), dirigiram-se para Pato Branco, Londrina, Maringá e Campo Largo contexto contemporâneo, a necessidade de uma análise política acerca
(Costa, 2012). Este fluxo migratório desencadeou-se após o violento da estreita relação entre nacionalidade e cidadania. Apesar da relevância
terremoto, ocorrido no Haiti, em janeiro de 2010. empírica das redes sociais no curso migratório, muitas vezes desafiando
a soberania dos Estados Nacionais, o grupo dos autores acima citados
Outro grupo de migrantes-estrangeiros presentes no Paraná são os
argumentam que, as políticas nacionais têm um papel chave para que
procedentes do sudeste asiático. Em 2000, cerca de 647 chineses e 721
uma comunidade migrante se configure como fato social, econômico
taiwaneses se encontravam distribuídos entre as cidades de Foz do Iguaçu,
e político.transnacional. Herrera (2008), ao analisar o fluxo migratório
Curitiba, Londrina e Maringá. Foz do Iguaçu concentrava o maior número,
feminino do Equador em direção aos Estados Unidos, destacou o papel
com 415 chineses e 159 taiwanses (Censo Demográfico, 2000). Este curso
das políticas migratórias estadunidenses como agente modelador da rede
migratório em Curitiba, apesar de discreto, apresenta particularidades:
migratória. Em suas palavras:
laboralmente dedicam-se ao setor do serviço de alimentos, como
empregadores ou empregados em restaurantes ou lanchonetes na área Me interesa analizar como los y las migrantes responden, resisten,
central da cidade. Esta migração se organiza ancorada sobretudo nos adaptan y/o contornean las leyes, reglas, procedimientos que emanan
laços das redes sociais parentais. de determinadas políticas migratorias y como a su vez estas políticas son
marcos estructurantes de su acionar (p. 71).
Em síntese, até aqui tratamos de uma visão estatística panorâmica,
evidenciando os mais expressivos numericamente nos dados censitários. Menos adepta da ideologia da livre circulação de migrantes no espaço
Para a próxima seção, guardamos atenção para a dimensão política da internacional, a autora dedica-se a entender os limites e restrições das
migração. legislações migratórias às práticas transnacionais. Ou seja, nos países de
destino, os migrantes, em sua experiência diária, convivem com limites
jurídicos e culturais institucionalizados cerceadores de espaços de convívio
2. Os migrantes latinos em Curitiba comum e plural. Em síntese, esta discussão coloca em evidência o quanto
Os migrantes internacionais, no contexto atual, têm sido considerados a migração é um fenômeno complexo. O migrante, em sua trajetória,
elementos emblemáticos que subvertem a lógica homogênea do Estado estabelece laços sociais no país de destino, laços que podem ser fortes
ou frágeis; mantêm e/ou rompem com os seus vínculos de origem e,
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O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

no cotidiano mantido entre as duas nações, convivem com legislações Reforçamos que o Acordo Mercosul faculta a entrada e saída dos
nacionais distintas. migrantes entre os países acordados, mas ainda trata-se de uma política
que atende somente as chegadas e as partidas. Pouco tem se dedicado a
Para esta seção, o objetivo é apresentar uma das faces desta
delinear políticas públicas que atendam às necessidades dos migrantes
complexidade e, sobretudo, colocar em evidência algumas experiências
em seu cotidiano. Aqui, pensamos em acordos culturais, educativos,
e ações de um grupo de migrantes, provindos de países da América do
políticas de saúde, habitacionais e outras, recursos fundamentais na vida
Sul no espaço urbano de Curitiba. Como ponto de partida é importante
de qualquer pessoa, em trânsito ou não. Curitiba, apesar de sua posição
salientar que a inserção e visibilidade dos migrantes da América do Sul
no Brasil, uma das principais cidades que sedia o maior contingente de
é ainda precária nos espaços públicos da cidade, o que aponta uma
estrangeiros, não conta, até o momento, com postos de atendimento ao
fraca integração e trânsito intercultural7. Ainda que a área de curso dos
migrante, tampouco serviços de informação e hospedagem. Os migrantes
migrantes estrangeiros estenda-se minimamente entre dois países, as
estrangeiros têm emergências em sua chegada, instalação e fixação, mas
relações sociais são muito restritas aos espaços próximos de circulação
a satisfação destas apresenta-se condicionada pela sua situação jurídica e
dos migrantes. Assim, os laços contatados são, sobretudo, aqueles de
econômica.
utilidade assistencial, formados, principalmente, com as organizações
não-governamentais que os auxiliam, principalmente, no campo social e Assim, apesar do variado grupo de migrantes de 144 nacionalidades no
jurídico. Apesar de, em 2009, ter sido celebrado o Acordo Mercosul8, que Paraná, temos a ausência de políticas públicas multilaterais favoráveis que
normatiza o trânsito da população migrante entre os países membros e facultem a experiência transnacional dos migrantes no estado. A ausência
associados9, há um conjunto de procedimentos normativos que dependem destas faz com que os migrantes tenham que criar inúmeras alternativas,
de esclarecimentos e informações para a liberação do visto temporário geralmente articuladas em redes sociais não formais, para conseguir o
e permanente. Somente para ilustrar, são necessários um conjunto de que não está em pauta na esfera de uma política pública.
documentos como: certidão de nascimento, carteira de trabalho ou outro Neste contexto, a Pastoral dos Migrantes, entidade católica, tem se
registro de vínculo empregatício para se regularizar no Brasil. Documentos apresentado como ator fundamental no atendimento às demandas dos
esses que, nem sempre, um migrante com parcos recursos carrega em seu migrantes no Paraná. Segundo informações da coordenação, a partir
mudança e deslocamento. E, ainda que o Acordo Mercosul torne mais dos anos 1980, as ações da Pastoral se voltaram para um atendimento
viável o deslocamento dos migrantes, as dificuldades para se orientar em ao migrante latino, visto que, nesse período, o número de assistência
meio a tantas exigências burocráticas e normativas são significativas. O dada aos migrantes provindos do Paraguai, Bolívia, Equador e Argentina
processo de regularização do estrangeiro no território nacional é uma tornaram-se mais recorrentes. Se, até então, eram os migrantes internos
ação efetivada diretamente pela Polícia Federal. É deste órgão que são que solicitavam auxílio, no final dos anos 1980 a demanda de atendimento
liberados e renovados os passaportes, e, para o habitante fronteiriço, o é solicitada pelos novos estrangeiros. A questão da irregularidade
“Documento Fronteiriço”. As práticas de regularização seguem a lógica do juntamente com a busca por emprego apresenta-se como o problema
Estatuto do Estrangeiro dos anos 1980, quando o estrangeiro era tratado central para um grupo significativo dos migrantes.
como assunto de segurança nacional. Desde 1990, tramita no Congresso
Brasileiro o Projeto de Lei 5.6555 para alterar o Estatuto do Estrangeiro, Em Curitiba, a Pastoral do Migrante, busca, através de várias ações,
entretanto, os avanços e as alianças não se apresentam favoráveis à sua construir espaços de visibilidade aos migrantes latinos. Há 10 anos
aprovação. consecutivos, na cidade de Curitiba, se celebra A Festa Latina, criada
e organizada pela Pastoral do Migrante. Em outubro de 2012, foi
comemorado a 10ª Festa, reunindo no Parque São Cristóvão, migrantes
7 Metodologicamente, temos participado em Curitiba de várias atividades políticas com os migrantes e provindos do Paraguai, Chile, Uruguai, Colômbia, Peru, México, Bolívia,
organizações não-governamentais que atendem aos migrantes estrangeiros. Junto a isto, realização de longas
entrevistas com os migrantes, representantes de organizações não governamentais, advogados que prestam
Equador e do Haiti. Junto com o comércio de produtos típicos, tendas
assistência jurídica, assistentes sociais e educadores. Também temos realizado atividades com representantes gastronômicas e apresentação de danças folclóricas. Este espaço de
da sociedade civil sobre a questão migratória. A consideração da frágil integração dos migrantes estrangeiros,
sobretudo aqueles provindos da América do Sul, em Curitiba, nos é percebida pela convivência junto aos migrantes.
congregação torna-se também, pelos realizadores, uma expressão de
8 Consultar informe do CDHIC (2011). acesso ao espaço público urbano, e, sobretudo, a festa representa um
9 Países Membros: Argentina, Brasil, Paraguai (suspenso em junho de 2012), Uruguai e Venezuela. Associados:
Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. possível canal de diálogo entre nacionais e estrangeiros. Expressa também
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O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

atos reivindicativos para regularização do migrante e sua participação no


espaço social da cidade.

9ª. Festa Latina, Curitiba, 2011.


Acervo NuPoTe (Núcleo de Estudos de População e Território) -UFPR.

Outras manifestações de visibilidade têm ocorrido. Em julho de 2012, na


abertura do “III Congresso de Educação e Integração da América Latina”, Abertura do III CEPIAL, Curitiba, 2012.
Gislene Santos. Acervo NuPoTe - UFPR
organizado pela Casa Latino-Americana – CASLA, vários grupos compostos
por migrantes de diferentes países da América Latina desfilaram no O uso das vestimentas, não deve ser aqui entendido como nostalgia
centro da cidade de Curitiba. O que é marcante, é que ao longo de 25 ou anseio ao retorno de uma sociedade rural ancestral. Buscam, nestas
anos de um curso migratório para o Paraná, os migrantes latinos, pela ações, formas de se inserir no novo país. Assim, taticamente valoram e
primeira vez, ocuparam festivamente as ruas centrais da cidade. Grupo de utilizam-se do seu capital cultural, transpostos do país de origem, para se
bolivianos, paraguaios, equatorianos, mexicanos, peruanos, adornaram- legitimarem enquanto atores políticos e, não somente como migrantes-
se de vestimentas tradicionais dos seus locais de origem, e, publicamente, trabalhadores na sociedade de destino.
apresentaram-se atores no cenário urbano, exibindo os seus aportes
culturais. Em A Condição Urbana, Costa Gomes argumenta que, para a fundação
da cidadania são necessárias duas condições: 1) o acesso ao espaço
público; 2) a efetiva participação do Estado na normatização destes
espaços, regulamentando seu uso e as possibilidades de manifestação
cultural, social e política. Compreendemos que estas duas condições
são fundamentais para o exercício da cidadania transnacional. São elas
o pressuposto que fundam um espaço público plural, onde nacionais e
estrangeiros possam se manifestar em igualdade de condições.

290 291
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO Gislene Santos e Caio da Silveira Fernandes
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

Entretanto, o Paraná, apesar de se constituir como um estado que migração europeia e japonesa do século XIX, e recentemente a entrada
historicamente sediou várias correntes migratórias, tanto migrantes dos migrantes provindos da América do Sul, tema da seção 1. Entretanto,
internos quanto estrangeiros, não possui, até o momento, um registro a presença deste coletivo ainda é invisível nos espaços públicos da cidade
de sólidas políticas públicas para a integração do migrante à sociedade de Curitiba, local comum urbano, que possibilita a construção de uma
regional. O que se observa são políticas assistencialistas ou outras de convivência plural. Mas, observamos também, que ações de resistência,
cunho social. Neste contexto, na ausência de políticas estatais, em Curitiba, como as de organizações não governamentais tornam-se importantes elos
as ações da Pastoral do Migrante, da Casla e de outras organizações não- de mediação dos migrantes com a sociedade de destino e sua inserção no
governamentais podem ser concebidas como aquelas que, no contexto país.
contemporâneo, politicamente tem construído práticas espaciais de
inserção dos migrantes nos espaços públicos. Entretanto, apesar destas
ações, é importante registrar que a migração dos latinos ainda não se Referências
materializou como um elemento visível na paisagem paranaense. Muitos CANALES, A. I .; ZLOLNISKI, C. (2005). Comunidades transnacionales y migración en la era
migrantes estão ainda submersos nos espaços da informalidade do de la globalización. Disponível em: www.cepal.cl/publicaciones/Poblacion/4/LCG2124P/
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trabalho e ausentes de uma participação no cenário da vida pública.
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A possibilidade de uma cidadania transnacional, somente pode ser de imigrantes libaneses em Foz do Iguaçu. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação
realizada através de laços de pertencimento à sociedade de destino e à em Geografia, UFPR.
de origem. E pertencer implica apropriação e uso dos espaços públicos; CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DO IMIGRANTE (CDHIC) (2011). Brasil –
discutir e propor, em condições de igualdade, a efetiva construção de Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes. Disponível em: http://
políticas públicas multilaterais. Estas são as condições necessárias e www.cdhic.org.br/?p=203. Acesso em 01/04/2012.
fundamentais para uma coexistência solidária, menos folclorizada e mais COELHO, Rodrigo Meirelles Gaspar (2011). Assistência jurídica a brasileiros e estrangeiros:
política fundando assim, de fato, uma sociedade plural. nacionalidade, naturalização, vistos e temas correlatos. Curitiba: Ed. Juruá.
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Paulo: Revista Travessia, ano XXV, n.70, jun-jul. p. 91-97.
Considerações Finais
CURY, M. J. (2010).Territorialidades transfronteiriças do Iguassu (TTI): interconexões,
No contexto contemporâneo temos presenciado uma sorte de palavras interdependências e interpenetrações nas cidades da Tríplice Fronteira. Foz do Iguaçu (BR)
e noções que, à primeira vista, podem nos levar à falsa ideia que vivemos Ciudad del Este (PY) e Puerto Iguazú (AR). Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação
num mundo de intensas relações. Capitais circulam de um país a outro, em Geografia, UFPR.
os meios de comunicação virtuais se expandem geograficamente, e, FITZGERALD, D. e WALDINGER, R.D. (2004): Transnationalism in Question. American
numa causalidade simplista, a população é vista em constantes fluxos Journal of Sociology. Vol.109.5 p. 1177-95. Disponível em: http://works.bepress.com/
roger_waldinger/25. Acesso em: 12/03/2011.
internacionais. Os serviços técnicos e meios de transporte facilitam a
circulação de diferentes fluxos, entretanto, em relação aos migrantes, o GOMES, Paulo C.C. (2002). A condição urbana. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
seu deslocamento está condicionado por fatores políticos e econômicos. E, HERRERA, Gioconda (2008). Políticas migratórias y famílias transnacionales: migración
ainda, é preciso alertar que, no contexto do Paraná, apesar de sua posição ecuatoriana en Espana y Estados Unidos. In: HERRERA, G y RAMIRES, J (ed.). América
na região sulina, o estado que mais recebe migrantes internacionais, este Latina migrante: Estado, família, identidades. Quito: Flacso/Ecuador, p.71- 86.
fluxo é modesto numericamente. O que chama a atenção é a variedade IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 1986. Estatísticas históricas do Brasil.
das nacionalidades presentes e a emergência de um fluxo provindo dos Séries Econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1985. V.3. Rio de Janeiro. p.28-33.
países lindeiros ao Paraná. Assim, a descrição e análises feitas ao longo ________2001. Censo Demográfico de 2000. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso em
do artigo, buscou apresentar o panorama paranaense em relação aos 05/09/2010.
fluxos migratórios contemporâneos, e, ao mesmo tempo, o território ________2012. Censo Demográfico de 2010. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso em
estadual como aquele que, ao longo de sua história, sediou várias 05/09/2012.
correntes migratórias. Entre os diversos fluxos mais consolidados, o da ________2012. Censo Demográfico de 2010 (Arquivo Micro-dados). CD-R0M.

292 293
O LUGAR DO PARANÁ NO FLUXO CONTEMPORANEO
DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

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294
Eduardo J. Vior

Por que o Estado do Paraná precisa da livre


circulação das pessoas

Eduardo J. VIOR1

O Estado do Paraná tem uma longa divisa com a Argentina e o Paraguai:


501 km no total. Atualmente, vivem cerca de meio milhão de habitantes
na região lindeira que inclui 139 munícipios, definida pelo Ministério da
Integração Nacional como “Faixa de Fronteira” (NFPR-2012). A área tem
150 quilômetros de largura e 16 mil quilômetros de extensão. 35% dos
municípios paranaenses estão nessa faixa de fronteira, onde vive 23% da
população estadual.2
Contrariando o imaginário predominante, que vê a fronteira como uma
linha no mapa, os territórios fronteiriços são regiões de forte intercâmbio:
pessoas, mercadorias, e serviços atravessam as fronteiras todos os dias
em ambas as direções. Os mais de 200 mil “brasiguaios” que moram no
Leste do Paraguai têm parentes, amigos, negócios e bens imobiliários
deste lado da fronteira. Os que retornaram, porque não acharam trabalho
ou terra lá, deixaram parentes e amigos.
Em Foz do Iguaçu moram muitos trabalhadores e comerciantes
que dependem das lojas de Cidade do Leste para se sustentar. Muitos
trabalhadores paraguaios atravessam a fronteira de semana em semana
para trabalhar no serviço doméstico ou na construção civil no Brasil, ou
procuram do lado brasileiro os serviços de saúde. Além disso, os criminosos
de alta ou baixa periculosidade, que aproveitam dos arcabouços jurídicos,
legais, políticos e sociais da fronteira trinacional, fazem parte da realidade
estadual. Os índios M’bya Guarani sempre circularam pelas suas terras
ancestrais, sem se preocupar com as divisas. Em outros pontos relevantes
da fronteira, como Barracão no extremo oriental, cidade gêmea com
Dionísio Cerqueira (Sta. Catarina) e Bernardo de Irigoyen (Misiones, AR),
ou Guaíra no extremo norte, gêmea com Guayrá (PY), os intercâmbios
também são permanentes.
1 Eduardo J. Vior, Dr. em Ciencias Sociales (Facultad de Filosofia y Letras – Univesidad de Buenos Aires), Dr. em
Ciências Sociais (Univ. de Giessen, Alemanha, 1991), Dr. em Sociologia (UFPR, 2011), Professor do quadro efetivo de
Ciência Política na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu.
2 Os dados provêm do Decreto de criação do Núcleo Regional para o Desenvolvimento e Integração da Faixa de
Fronteira do Paraná, estabelecido pelo Governo Federal em novembro de 2011. O Núcleo, instalado pelo Ministério
da Integração Nacional, integra as três esferas governamentais no planejamento e execução de ações voltadas para
o desenvolvimento da região. Integram o núcleo do Paraná mais de 20 secretarias e autarquias do estado, Itaipu,
Polícia Federal, Receita Federal, e o Parque Nacional do Iguaçu, além das associações de municípios da região, Fiep,
Faep, Faciap, Fecomércio, Ocepar. O Núcleo está sediado no Parque Tecnológico Itaipu, em Foz do Iguaçu.

295
Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas Eduardo J. Vior

Perante essa realidade existem duas alternativas: a) mais policiamento 1.A situação das comunidades de origem imigrante nas regiões fronteiriças do
Paraná e as políticas públicas que as afetam
e intervenções periódicas do Exército Brasileiro para fechar a fronteira,
maior controle da Policia Militar, e mais armamento das Guardas Calcula-se que na grande região das Três Fronteiras circulam cerca de
Municipais, com as consabidas consequências para a circulação das 70 etnias (P. A. Gonçalves, 2008: 64). Somando as três cidades principais
pessoas, as relações com os países vizinhos, o comércio e a cultura: travas, (Puerto Iguazú, na Argentina, Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad del Este,
perda de lucros, temor, desalento de todo tipo de iniciativas, perda de no Paraguai) e as cidades e povoados menores, nessa região moram por
direitos, desconfiança ante a atividade do Estado, incitação à ilegalidade, volta de 700.000 habitantes. Embora Foz do Iguaçu seja ainda a cidade
e aumento da violência nas respostas dos criminosos; ou b) expansão mais povoada, com 256.000 habitantes, as tendências demográficas dos
da cidadania, ampliação dos direitos, maior compatibilidade legal e últimos censos de povoação na Argentina e no Brasil (ambos de 2010)
administrativa com as autoridades argentinas, garantias e segurança para demonstram um decrescimento da povoação no lado brasileiro e um
a livre circulação das pessoas, bens e serviços em todas as direções, e crescimento nas regiões argentina e paraguaia confrontantes.
uma crescente pressão sobre as autoridades paraguaias, para obrigá-las a Como não existem estudos recentes sobre os fluxos de população
aplicar normas do Estado de Direito. entre as três partes da região, no presente ensaio utiliza-se como base um
No presente ensaio, fundamenta-se a segunda alternativa desde três estudo realizado em 2005 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância
pontos de vista: (Unicef) (Sprandel, 2008). Muitas pessoas atravessam a divisa todos os
dias para trabalhar do outro lado da fronteira. São inúmeras as situações
1.Como opção lógica, tendente a aumentar a coerência sistémica
identificadas de brasileiros que vivem na Argentina ou no Paraguai e que
do Estado de Direito no Brasil e no Paraná, decorrente do
matriculam seus filhos em escolas brasileiras, ou que procuram no Brasil
desenvolvimento dos direitos humanos e dos acordos que garantem
serviços gratuitos de saúde. Todos esses dados apontam para uma grande
a livre circulação das pessoas no MERCOSUL.
circulação de pessoas entre os três países.
2.Como alternativa realista, para se adaptar positivamente à realidade
Nos municípios argentinos e paraguaios há um predomínio de
da crescente miscigenação das culturas na faixa de fronteira, assim
população vivendo na área rural, mais de 50%. Esse quadro se inverte
como à crescente e irrefreável circulação de pessoas através das
nos municípios brasileiros, onde já há cerca de 80% da população vivendo
fronteiras.
em área urbana. Na região, vivem aproximadamente 13 mil indígenas
3.Como alternativa utilitária, para aproveitar essa miscigenação em (Sprandel, 2008). A população Guarani não deve ser considerada
prol do desenvolvimento econômico, social, cultural e político do migrante, já que ela sempre foi nômade e se movimenta através das linhas
Estado do Paraná. geopolíticas do Mato Grosso, Paraguai e da Bolívia. Em termos da situação
Como o ponto nodal da problemática das fronteiras internacionais socioeconômica, nas atividades produtivas da região predominam
do Estado se dá na zona das Três Fronteiras3, a exposição se concentra a agricultura e a agroindústria. Nas áreas de serviço, obviamente se
nela, mas sem esquecer aspetos pontuais das outras zonas fronteiriças. destacam Foz do Iguaçu, Puerto Iguazú e Ciudad del Este. Há a silvicultura,
A argumentação começa com uma breve descrição da realidade na qual se destacam a celulose em Misiones, a avicultura, a suinocultura e
migratória na região das Três Fronteiras, e do plexo jurídico e político a pecuária, e há grandes centros de comércio e de turismo. É uma região
criado pelas sucessivas medidas multi-, bi- e nacionais adotadas pelos de imensa diversidade e mobilização étnica e cultural. Todos estes fatores
países fundadores do MERCOSUL para garantir a livre circulação das devem ser considerados ao pesquisar as políticas públicas.
pessoas; continua com as obrigações de coerência e congruência que os Percebe-se que faz parte da estratégia das famílias a utilização de várias
acordos internacionais e regionais de direitos humanos geram ao Brasil línguas, o uso de três moedas, o entrecruzamento de traços culturais, a
– considerando especialmente os custos acarretados pela resistência do possibilidade de crianças e adolescentes matricularem-se na escola em
Estado brasileiro a implementa-los-, e acaba salientando a necessidade e um país e buscarem serviços de saúde em outro e até a dupla ou tripla
a conveniência da sua implementação para o Estado do Paraná. documentação (Sprandel, 2008). A mão de obra itinerante a procura dos
locais de safra que existem na região é muito grande.
3 Se rejeita aqui o termo “Tríplice Fronteira” pelas suas conotações ideológicas (Rabossi, 2010).

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Tanto pelo número quanto pelas caraterísticas especiais do grupo e da Para compreender a situação dos imigrantes em Foz do Iguaçu em
sua situação, a comunidade de origem árabe de Foz do Iguaçu e Ciudad particular, deve-se, finalmente, considerar a evolução negativa da
del Este merece uma consideração especial: população da cidade no período intercenso 2000-10. Nesse lapso, a cidade
perdeu quase 60.000 habitantes. É a única zona urbana do Estado do Paraná
Cabe acrescentar que a atividade laboral desses imigrantes está quase que não aumentou a sua população. Existem várias interpretações não
exclusivamente vinculada ao comércio e, na dinâmica da interação entre as conclusivas para esse fenômeno. A mais plausível explica o decrescimento
duas cidades, muitos dos imigrantes estabeleceram seus locais comerciais pelos maiores controles fronteiriços sobre o contrabando e sobre o
em Ciudad del Este, embora muitos deles tenham fixado sua residência em
Foz do Iguaçu, onde retornam uma vez finalizado o horário comercial. Não trânsito dos chamados “sacoleiros”, a partir de 2005, o que teria forçado
obstante, não são poucos os que residem e trabalham em uma mesma muitas famílias a sair da cidade para procurar trabalho em Maringá e em
cidade. (Hillu/Montenegro, 2010: 5). outros centros do Oeste e Centro-Sul do Paraná. Neste contexto, aumenta
o peso relativo dos imigrantes, já que estes – ocupados em outros setores
Segundo dados recentes (A Gazeta, 23-10-12), só em Foz do Iguaçu - não emigram.
moram 4.077 libaneses. Tendo em conta a crescente quantidade de
membros dessa comunidade que têm adotado a cidadania brasileira ou Longe do grande eixo de circulação BR-277/PY-VII, na outra “tríplice
paraguaia, e seus filhos, que para as leis de ambos os países são nacionais, fronteira” entre Paraná, Santa Catarina e a Província Argentina de Misiones,
a cifra mencionada aparece como muito pequena. A comunidade no sudoeste do Estado, Barracão (5.000 habitantes) não tem uma grande
muçulmana na região cresceu em ondas sucessivas entre os anos 70 e 90, população estrangeira, mas tem outras dificuldades decorrentes da
em parte pelas crises políticas no Meio Oriente, ou pelas possibilidades de sua estreita convivência com Dionísio Cerqueira (SC) e com a argentina
negócios comerciais nas Três Fronteiras. Ainda que dividida entre sunitas Bernardo de Yrigoyen:
e xiitas, é uma comunidade numerosa e rica. As contínuas campanhas de
assédio da mídia e as denúncias norte-americanas de cumplicidade com Viver em um país e trabalhar em outro é situação comum no triângulo
Barracão-Dionísio Cerqueira-Bernardo de Irigoyen. Uma parte desses
o “terrorismo islâmico” obrigam à comunidade a evitar a cena pública e trabalhadores, contudo, exerce suas funções na ilegalidade. Segundo
a atuar sigilosamente. Não obstante, a comunidade muçulmana intervém o secretário municipal de Assistência e Promoção Social de Barracão,
fortemente na política local e regional. Esta semiclandestinidade de uma Emerson Duarte, estimativas dão conta de que 40% dos argentinos que
comunidade de origem imigrante rica e potencialmente poderosa distorce vivem na cidade estão em situação irregular. Do lado argentino, calcula-se
que essa proporção chegue a 30%. ‘Nós precisamos deles [argentinos] e
a construção de cidadania e desvia a alocação de recursos municipais para
eles precisam da gente. Esse intercâmbio é positivo e bom para a nossa
negociações privadas. As redes que ela estabelece com os mandatários economia. Porém, existem muitos que não têm interesse em regularizar
municipais em ambas as cidades devem ser caracterizadas como típicas sua situação’, afirma Duarte. (Gazeta do Povo, 9-12-11).
“redes fechadas”. Comunidades menores, mas também poderosas, são a
chinesa e a coreana. Essa falta de interesse decorre em parte do complicado procedimento de
solicitação do visto – ainda que para argentinos a outorga seja automática
No contexto das Três Fronteiras é também importante considerar as -, e em parte da opção sempre aberta para os argentinos de retornar
“ilusões” de fluidez. Ou seja, em um âmbito onde se encontram grupos na sua pátria. Nessas condições recomendar-se-ia, especialmente, um
de imigrantes recentes que, em alguns casos, nem sequer se comunicam documento binacional que permitisse o controle das autoridades, não
entre si através de uma língua franca, existe também a construção importa onde o trabalhador morasse.
imaginária de “nichos étnicos” que se fortalecem com emblemas mais ou
menos definidos. A população das Três Fronteiras se define, então, por No outro extremo da fronteira paranaense, em Guaíra (30.800
uma ambiguidade: pela sua dinâmica migratória através das fronteiras e habitantes), a situação resulta mais confusa, já que, localizada na fronteira
a hibridez das suas referências aos estados nacionais. Pode ser tratada com Paraguai (cidade de Salto del Guairá, 40.000 habitantes) e com Mato
como unidade; pelas suas construções identitárias e a falta de uma cena Grosso do Sul (cidade de Mundo Novo), tem maiores dificuldades de
pública unificadora, essa população deve ser tratada como um sistema de controle do tráfego fronteiriço por causa da facilidade para se deslocar
nichos culturais, profissionais, corporativos e religiosos que somente se através da margem norte do Lago de Itaipu. Assim, numa matéria recente
comunicam através das suas elites. o jornal O Paraná (27-10-12) informava o seguinte:

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Já na jurisdição da Polícia Federal de Guaíra, o controle é um pouco seguinte modo:


mais complexo. Há relatos de que muitos paraguaios entram no Brasil
clandestinamente, sem buscar a regularização da presença no País. a)Políticas decorrentes das decisões do MERCOSUL.
Essa situação é atribuída à facilidade de travessia pelo rio Paraná, por
b)Políticas decorrentes de acordos entre os três e/ou entre dois dos
intermédio de balsas. Ao todo são 1.006 estrangeiros em Guaíra. Do total,
256 são japoneses e 202 portugueses. Os paraguaios somam 131. países limítrofes na região.
c)Políticas nacionais, regionais ou municipais.
Assim expostas, pode-se afirmar que as problemáticas da imigração e
dos intercâmbios com os países vizinhos afetam toda a faixa fronteiriça do
Paraná. Não obstante, a maior concentração se dá em Foz do Iguaçu. A 1.2.1.Os acordos do MERCOSUL
imigração não é per se um problema, mas como resultado da ocorrência
O principal instrumento que regula a livre mobilidade da população
entre a diminuição da população brasileira na região e a progressiva maior
através das fronteiras é o Acordo de Residência para Nacionais do
duração da residência dos estrangeiros, precisa-se de políticas específicas.
MERCOSUL e países associados, assinado em 2002 e que entrou em
Não é que cheguem mais estrangeiros (de fato o censo 2010 demostra
vigência em 2009, depois que o Congresso do Paraguai o ratificou.
que a população estrangeira não aumentou sensivelmente nos dez
anos anteriores). Sim, faltam estudos quantitativos sobre a duração da A esse acordo, somaram-se, nos últimos anos, vários documentos
residência dos estrangeiros na região, sobre a sua pirâmide etária, e sobre tendentes a facilitar a circulação das pessoas através das fronteiras:
a sua contribuição ao Produto Interno Bruto (PIB) regional. Assim como o “Acuerdo para la creación de la Red de Especialistas en Seguridad
qualitativos sobre o grau de adesão dos filhos de estrangeiros nascidos Documental Migratoria del MERCOSUR y Estados Asociados” (em
na região às comunidades de origem. Só com esses dados seria possível espanhol no original, http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4392/1/
dimensionar o peso real das comunidades de origem imigrante na faixa secretaria/2012).
fronteiriça do Paraná. Ao estabelecer o Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), em 2011; o
Ao mesmo tempo, é conhecida a intensa mobilidade transfronteiriça. Conselho dos Ministros do MERCOSUL adotou a Diretriz 4: “Garantizar
Porém, não temos dados quantitativos sobre essa mobilidade e a sua que la libre circulación en el MERCOSUR sea acompañada del pleno goce
significação para a economia regional nos três países envolvidos; nem de los derechos humanos”.
qualitativos sobre as referências identitárias desses grupos: se se sentem Seu objetivo prioritário é: “Articular e implementar políticas públicas
argentinos, brasileiros ou paraguaios? Onde e como apresentam as suas destinadas a promover el respeto de los derechos humanos y la plena
demandas por direitos insatisfeitos? Com quais autoridades preferem integración de los migrantes y la protección de los refugiados”. (Decissão
negociar seus interesses e por quê? Nro. 12/11, CMC/MERCOSUL, em espanhol no original: http://www.
Nos últimos anos, os três estados envolvidos (sobre tudo a Argentina e o mercosur.int/innovaportal/v/2923/1/secretaria/decisiones_2011).
Brasil) estão realizando grandes esforços para harmonizar as suas políticas No âmbito da integração fronteiriça, caberia mencionar o
para a livre circulação das pessoas, e para facilitar o assentamento a ambos estabelecimento de Comitês de Fronteira entre cidades lindeiras. Já
os lados da fronteira paranaense. Porém, esses esforços chocam com existem os Comitês de Ciudad del Este/Foz de Iguaçu, Salto del Guairá-
limites estruturais dos países e nas relações entre eles, assim como com Guaíra (PR)/Mundo Novo (MS), e Pedro Juan Caballero/Ponta Porã (Lessa,
preconceitos ideológicos ancorados profundamente nas mentalidades de 2008: 74). Ainda para revitalizar a cooperação fronteiriça bilateral, foi
políticos e gerenciadores, que são brevemente apresentados no apartado criada a Reunião dos Prefeitos dos Municípios Brasileiros e Paraguaios
seguinte. Lindeiros ao Lago de Itaipu com o objetivo de aprofundar a integração
fronteiriça nas áreas de turismo, educação e saúde, entre outras (Lessa
1.2.As políticas públicas 2008:75).
As políticas públicas que afetam as comunidades de origem imigrante Identificou-se que os municípios da região fronteiriça, em todos os
na faixa fronteiriça do Estado de Paraná podem ser classificadas do três países, têm indicadores de desenvolvimento humano baixos e que

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existe, em função disso, a presença de programas dos governos argentino o permanente temor de ser incriminada por cumplicidade com atividades
e brasileiro de combate à pobreza. No Paraguai, entretanto, entre 2008 de apoio ao “terrorismo islâmico”. Esse temor gera uma atitude muito
e 2012, se organizaram redes de proteção social e se aplicou o Programa reservada e uma tendência a operar sigilosamente. Nesse contexto, os
Nacional de Assistência Alimentar e Nutricional, mas não chegaram a se mais vulneráveis são as mulheres e os paraguaios que trabalham na
desenvolver muito e seu universo de abrangência é pequeno. construção ou no emprego doméstico. Embora a legislação brasileira
reconheça a esses trabalhadores direitos trabalhistas e previdências,
a falta de informação e a manipulação dos intermediários fazem com
1.2.2.Os acordos bilaterais que a grande maioria não esteja documentada e seja vítima de grandes
injustiças.
Estas políticas também atraem população. Por exemplo, agricultores
brasileiros emigrados para o Paraguai vão pedir a sua aposentadoria Embora faltem políticas municipais específicas visando às comunidades
no sistema brasileiro como trabalhadores rurais, ou a sua incorporação de origem imigrante, existem políticas setoriais (educação, saúde,
aos vários programas de atendimento ao idoso que o governo brasileiro planejamento urbano, transportes, e segurança) que as afetam
oferece, ou procuram os centros de assistência social. Os funcionários diretamente. Sobre estas políticas se concentrará a pesquisa no futuro.
brasileiros, que se deslocam para o Paraguai (em geral para lojas de Ciudad
del Este) apresentam um problema especial: continuam trabalhando para
2.As obrigações de coerência e congruência que os acordos internacionais e
o mesmo empregador, mas em uma outra empresa, depois de vários anos,
regionais geram ao Brasil
ao voltar para o Brasil, acham que não têm contribuições na Previdência4
brasileira. Ainda que a política seja uma prática profundamente humana,
caracterizada pelas lutas de poder e os efeitos públicos delas, o conjunto
Nesse sentido, no plano bilateral, a execução do acordo de regularização
de atores, práticas e instituições políticas estabelecem entre si relações
migratória Brasil-Paraguai, assinado em novembro de 2009, é uma
regulares e repetitivas com características sistémicas, isto é, lógicas, inter-
prioridade do governo brasileiro, ante o grande número de brasileiros em
relacionadas, estáveis, flexíveis e em continua adaptação às condições
situação irregular naquele país. Nos anos 70 e 80, muitos camponeses
circundantes.
passaram a divisa com o Paraguai sem documento nenhum, obtiveram
terras no Leste do país vizinho, fundaram famílias, e criaram seus filhos Quando dois ou mais países estabelecem relações duradouras
sem documentos ou, às vezes, registraram seus filhos com nomes e de cooperação, intercâmbio, ações e iniciativas comuns no plano
documentos diferentes tanto no Brasil quanto no Paraguai. Essa situação internacional e dentro do próprio acordo, paulatinamente essas relações
gera hoje inúmeros problemas que o Ministério das Relações Exteriores adquirem também um carácter sistémico e obrigatório para os estados-
procura resolver através de seus consulados no Paraguai, mediante partes. No MERCOSUL, isso aconteceu com o comum rejeito ao ALCA em
operativos de documentação5. 2005, a cláusula democrática ajuntada ao Tratado de Assunção em 2008,
e com a entrada em vigência do Acordo de Residência para Nacionais
do MERCOSUL e Países Associados, em 2009. Através desses três
1.2.3.As políticas estaduais e municipais instrumentos, o MERCOSUL se transformou num sistema regional que,
Não existem políticas municipais específicas visando às comunidades embora sem supranacionalidade, tem uma lógica constringente para os
de origem imigrante; e o já assinalado caráter segmentado da cena estados membros e as suas unidades subnacionais.
pública em Foz do Iguaçu deixa pouca margem para a articulação política Ao mesmo tempo, os sistemas políticos da região estão submetidos
democrática das demandas por direitos dessas comunidades. As suas a uma forte pressão adaptativa. As sociedades estão mudando
lideranças procuram impor os seus interesses por meio de acordos aceleradamente: envelhecimento crescente, acesso de milhões de
privados. Particularmente a poderosa comunidade muçulmana vive sob pessoas ao mercado de trabalho e de consumo, deslocamentos massivos
4 Várias entrevistas do autor com a Juíza do Trabalho A. NogaraSlomp, em Foz do Iguaçu entre fevereiro e julho dentro dos países e através das fronteiras, crescente individualização e
de 2012. massificação, surgimento de múltiplas demandas por direitos vulnerados.
5 Sucessivas entrevistas do autor com o Consul brasileiro em Ciudad del Este, Embaixador J. Bonsalini, entre
setembro de 2011 e abril de 2012. Os sistemas políticos precisam ampliar a esfera cidadã se pretendem
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manter a sua legitimidade. Se não o fazem, ou o fazem inadequadamente, O estabelecimento legal do Direito Humano à Migração tem mais duas
perderão representatividade e poder normativo. A corrupção e a difusão consequências políticas:
da violência são as dois consequências mais estendidas desses déficits 1.Como os direitos humanos são por definição “universais, inatos,
(Vior, 2012a; 2012b). inseparáveis, inalienáveis e sistémicos” (Fornet-Betancourt 2000;
Nas regiões fronteiriças, essas carências viram escandalosas. No Fornet-Betancourt/Sandkühler 2001; Fritzsche 2004), reconhecer o
contexto do processo integracionista do MERCOSUL, a tendência lógica direito humano à migração de uma pessoa e/ou de um grupo implica
conduz à extensão da cidadania além das fronteiras, dado o caráter também que o fazem na plena vigência de todos os seus direitos
subjetivo do direito à cidadania desde a perspectiva intercultural dos humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
direitos humanos aplicada nesse ensaio. Essa extensão fortaleceria a 2.Em consequência, os estados nacionais perdem a faculdade de
legitimidade dos estados em contato. Assim, indivíduos e grupos de determinar as condições de acesso à cidadania. Esta é parte do
nacionalidades vizinhas que traspassam a fronteira não somente teriam direito subjetivo dos indivíduos e grupos a determinar onde querem
o direito de colocar demandas perante os estados vizinhos, mas também exercer seus direitos políticos.
deveriam assumir responsabilidades dentro das respetivas ordens legais e
políticas (Borja 2001, Goyhenespe 2005). O Brasil deve tomar conta dessa nova situação, mudando a sua
legislação de migrações, mas também as condições do acesso à e do
Não obstante, essa tendência lógica choca com a forma nacional dos exercício da cidadania. No regime legal brasileiro existe uma contradição
estados que impõe requisitos materiais, mas sobretudo simbólicos ao insuperável entre o Estatuto da Migração, instituído em 1980 pela ditadura
reconhecimento dos direitos cidadãos. Teoricamente, a solução para este sob o princípio da “segurança nacional”, e a Constituição Federal de 1988,
dilema seria o estabelecimento da cidadania MERCOSUL, mas ela supõe baseada em direitos subjetivos inalienáveis (Milesi 2005; 2008; MTE 2010).
acordos legais e, principalmente, normativos e simbólicos, que hoje estão O reconhecimento dessa contradição conduziu a outorgar aos servidores
longe de ser atingidos (Vior, 2012b; Segato 2007). públicos e às instituições responsáveis pela aplicação da política migratória
Porém, a tendência nesse sentido é inelutável, dados os um enorme poder discricional que dá lugar ao surgimento de práticas
constrangimentos que os tratados e pactos internacionais, assim corruptas. Como o sistema político está inter-relacionado, essas práticas
como a prática política e diplomática impõem. O Brasil tem assinado e não se limitam às relações com as comunidades de origem imigrante,
incorporado a seu sistema legal os principais pactos internacionais de mas se difundem dentro do Estado todo, generalizando a corrupção e
direitos humanos. Embora ainda subsista uma indefinição sobre o status o clientelismo. Além dos danos que sofrem os diretamente atingidos,
constitucional deles e sobre as faculdades soberanas da Justiça brasileira, aumenta a ineficácia do Estado e a conseguinte perda de governabilidade.
para determinar a sua aplicabilidade dentro do Direito positivo, a situação
mudou radicalmente com o estabelecimento do sistema integracionista
3.Consequências do aumento dos intercâmbios demográficos e econômicos
do MERCOSUL.
através da fronteira para as políticas de livre circulação
Em efeito, como a Argentina (2004) e o Uruguai (2008) estabeleceram
Considerando a caracterização feita acima sobre a região fronteiriça
nas suas respectivas leis migratórias o Direito Humano à Migração, como
do Estado - em particular, da sub-região de Foz do Iguaçu - como uma
parte de seus sistemas legais, acordo internacional nenhum que esses
região altamente interdependente e vinculada com os países vizinhos
países assinem pode frear ou limitar a livre circulação das pessoas. Como
através das divisas internacionais, mas, ao mesmo tempo, profundamente
ademais, os membros do MERCOSUL estão obrigados à livre circulação das
segmentada, assim como o crescimento dos fluxos transfronteiriços de
pessoas pelo Acordo sobre Residência, e todos os membros da UNASUL
mercadorias, serviços, turistas, trabalhadores e empreiteiros, ainda
têm assinado entre si acordos bilaterais, facilitando a circulação através
que também nas redes criminais, impõe-se para a região uma política
das fronteiras, o plexo legal dos acordos internacionais adquiriu força
combinada de livre circulação e articulação política, econômica, social, e
política mediante as instituições e práticas da integração (Asa/Ceriani
cultural.
2005).

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Neste contexto, é preciso aclarar que livre circulação não implica pelas guerras entre espanhóis e portugueses. Já no século XIX, a destruição
perda de controles estatais. Todo o contrário: precisamente a outorga do Paraguai na guerra de 1864-70 implicou a supressão do centro do
aos habitantes e aos veículos da região fronteiriça de uma identificação subcontinente sul-americano e a sua exclusiva orientação na direção do
comum, a unificação dos controles migratórios, a interconexão dos Oceano Atlântico. Nessa época, surgiram as fronteiras que fragmentaram
registros de dados pessoais, impositivos, educacionais, trabalhistas, o território regional. No século XX, a necessidade de consolidar os
previdenciários e de saúde – para citar só alguns exemplos – não somente estados nacionais, as rivalidades entre o Brasil e a Argentina, e os mitos
facilitariam o acesso das pessoas aos seus direitos, mas também dariam da “segurança nacional” dificultaram ainda mais a livre circulação e o
aos estados eficientes instrumentos de controle contra fraudes e ações desenvolvimento regional.
ilegais. O fortalecimento do MERCOSUL e a construção da UNASUL podem
Também a organização de organismos regionais transfronteiriços para devolver às regiões fronteiriças do Estado do Paraná seu lugar no centro
gerir o tráfego, o transporte de pessoas e de mercadorias, o tratamento do subcontinente. Em particular, a região das Três Fronteiras, entre a
de esgotos e do lixo, cuidar das águas, do ar, da flora e da fauna, assim Argentina, o Brasil e o Paraguai, poderia tornar-se um centro de transporte
como avançar em prol da integração energética acelerariam a unificação e logística, dado o cruzamento das vias Norte-Sul com as vias que vão do
da região, e reduziriam os custos desses serviços para o Estado do Paraná. Leste ao Oeste do continente.
De igual modo, a forte segmentação étnica e cultural, já descrita, Por isso, o fomento e a promoção da livre circulação das pessoas através
representa um grande desafio para as políticas regionais de integração. das fronteiras paranaenses podem se constituir em um importante fator de
Tanto a nível estadual quanto municipal seria necessário encaminhar desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Trata-se somente
políticas de educação, capacitação profissional, trabalhistas, de uma mudança de perspectiva: deixar de ver a fronteira como margem
previdenciárias, para as mulheres e crianças, de hábitat e de segurança do território nacional, para começar a trata-lá como centro continental.
tendentes a promover a participação das comunidades de origem
imigrantes na gestão pública, e a intensificar o diálogo entre as autoridades
5. Conclusões
e essas comunidades6.
Neste ensaio, procurou-se mostrar desde uma perspectiva, ao mesmo
Em suma, pode ver-se que, assim como a inter-relação da região
tempo sistêmica e empírica, como os acordos internacionais e regionais
fronteiriça com os países vizinhos e a sua segmentação interna
sobre direitos humanos e sobre a livre circulação das pessoas, assim
representam um grande desafio para as políticas públicas do Estado
como a adoção do Direito Humano à Migração nas legislações argentina
do Paraná, elas também implicam chances para o desenvolvimento do
e uruguaia, geram dentro do MERCOSUL constrangimentos dos quais o
Estado.
Brasil não pode fugir, se pretende continuar pelo caminho da integração.
Ao mesmo tempo, as incoerências e incongruências que a ambiguidade
4. Vantagens comparativas que a região fronteiriça dá na matéria produz no sistema político e legal brasileiro ameaçam a sua
ao Estado do Paraná legitimidade e governabilidade. Assim, resulta evidente a necessidade
Na América antiga, a região do Estado do Paraná estava atravessada pelo do Estado brasileiro de se adaptar às mudanças em sua composição
Peabiru, a rede de caminhos que uniam o Cusco com o litoral atlântico. demográfica e em seu entorno regional, assim como ao aprofundamento
O Rio Paraná servia como eixo de comunicação e transporte Norte-Sul, do processo integracionista, incorporando a sua legislação e sistema
que permitiu aos guaranis, na época imediatamente anterior à Conquista, político o princípio da livre circulação das pessoas.
chegar até o delta do Rio Paraná, perto da atual Buenos Aires. Todavia a incorporação da livre circulação das pessoas não é somente
Durante o período colonial, a região foi segmentada, primeiro pela uma obrigação constrangente que decorre do processo integracionista,
concentração da população indígena nas missões dos jesuítas e, depois, mas também da realidade demográfica, econômica e social da região
fronteiriça do Paraná. Não há formas de frear intercâmbios que de todos
6 Estas propostas estão influídas pela experiência do autor com a política migratória alemã, especialmente os modos vão ocorrer. Pelo contrário, para o Brasil e o Estado do Paraná é
durante a coordenação do projeto de pesquisa “Bestandsaufnahme demokratischer Initiativen in der politischen
Bildungsarbeit mit muslimischen Jugendlichen” (2004).

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uma opção realista se adaptar às trocas já existentes e procurar governá- comunidades%20mu%C3%A7ulmanas%20na%20Triplice%20Fronteira....pdf


las junto com os países vizinhos. Milesi, R. (2005). “Algumas Reflexões, em termos de Princípios, sobre o Anteprojeto de
Lei de Estrangeiros”, Brasília: IMDH.
Finalmente, da situação geográfica da região fronteiriça do Paraná,
Milesi, R. mscs. (2008), “O Estatuto do Estrangeiro e as medidas compulsórias de
mas também das novas oportunidades abertas pelo aprofundamento
Deportação, Expulsão e Extradição”, Brasília: IMDH.
do processo integracionista, surgem magníficas perspectivas de
desenvolvimento regional como centro de uma América do Sul integrada. MTE. Ministério de Trabalho e Emprego (MTE, 2010) – Conselho Nacional de Imigração.
“Política Nacional de Imigração e Proteção ao(à) Trabalhador(a) Migrante”. Disponível em:
Assim, pode se verificar a eficiência da aproximação intercultural aos http://www.mte.gov.br/politicamigrante/imigracao_proposta.pdf, 2010.
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para a análise de processos complexos de desenvolvimento político, e a Paraná – NFPR 2012. Reunião intersecretarial. Faisal Saleh, coordenador NFPR, Foz do
proposta de políticas públicas de direitos humanos que simultaneamente Iguaçu.
contribuam ao desenvolvimento regional. Rabossi, F. 2010. “Unidades, Interações e Representações Fronteiriças: Notas a Partir da
Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina”. In: Edgar Aparecido da Costaet al.
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Hurtado, IIo. Encuentro Latinoamericano de Estudiantes de Postgrado en Ciencias Sociales
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A Gazeta do Iguaçu, 23-10-12, Foz do Iguaçu.
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Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01
e 04 de junho de 2010, Porto Seguro, Bahia, disponível em: www.abant.org.br/conteudo/
ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/foruns_de_pesquisa/trabalhos/FP%2002/FP02%20As%20

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Por que o Estado do Paraná precisa da livre circulação das pessoas

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Maria Berenice Dias

IDENTIDADE, DIFERENÇA E CIDADANIA

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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

Um Estatuto para a diversidade sexual

Maria Berenice DIAS1

O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –


IBGE, em 2010, revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por
pessoas do mesmo sexo. Às claras que esse número não quantifica as
pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros,
identificadas pela sigla LGBT. Em face do enorme preconceito de que são
alvo, da perseguição que sofrem, da violência de que são vítimas, não
há como pretender que revelassem ao recenseador a natureza de seus
vínculos afetivos. Ao depois, sequer foi questionada a identidade sexual
dos residentes no imóvel.
Ainda que imensurável, é impossível condenar parcela da população
à invisibilidade, deixando-a a margem da tutela jurídica. Desta realidade
tomou consciência a Justiça quando, há mais de uma década, passou
a reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar. De tão
reiteradas algumas decisões, direitos passaram a ser deferidos em sede
administrativa, como a concessão pelo INSS de pensão por morte e
auxílio reclusão; o pagamento do seguro DPVAT; e a expedição de visto de
permanência ao parceiro estrangeiro. Também a inclusão do companheiro
como dependente no imposto de renda e a soma do rendimento do casal
para a concessão de financiamento imobiliário foi regulamentada.
Como os avanços começaram, no âmbito da Justiça surgiu a necessidade
de qualificar os profissionais para atender à crescente demanda deste
segmento na busca de direitos. Isso levou a Ordem dos Advogados a criar
Comissões da Diversidade Sexual em todos os cantos do Brasil.
De outro lado, em face da falta de um sistema integrado de divulgação
da jurisprudência, sempre houve enorme dificuldade de acesso às decisões
de juízes e tribunais. Por isso, as Comissões assumiram o compromisso
de amealhar os julgados de todas as justiças e graus de jurisdição. O
resultado foi surpreendente, o que ensejou a construção de um portal2,
que permitiu quantificar as quase duas mil decisões que garantem direitos
no âmbito do direito das famílias, do direito sucessório e previdenciário.
1 Advogada , Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB, Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM – www.
mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br
2 www.direitohomoafetivo.com.br

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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

Lá também são noticiados os avanços na esfera da administração pública em vias de instalação. Além disso, foram ouvidos os movimentos sociais,
e no âmbito federal, estadual e municipal e também iniciativa privada. que encaminharam cerca de duas centenas de propostas e sugestões.
Este levantamento em muito contribuiu no julgamento do Supremo Em 23 de agosto de 2011, o Anteprojeto foi formalmente entregue ao
Tribunal Federal que, ao apreciar duas ações constitucionais3, reconheceu Presidente do Conselho Federal da OAB, que o encaminhou à apreciação
as uniões homoafetivas como entidade familiar. A decisão, além de ter do Conselho Federal, sob a relatoria do Conselheiro Federal Carlos
efeito vinculante e eficácia perante todos, desafiou o legislador a inserir a Roberto Siqueira Castro. O Relator levou-o a julgamento no dia 19 de
população LGBT no sistema jurídico. Isso porque, nunca nenhum projeto setembro, apresentando minucioso parecer pela sua aprovação. Conclui
de lei ou proposta de emenda constitucional logrou ser votado – e muito o voto: apoiar a proposta de Emenda Constitucional e o Anteprojeto do
menos aprovado – por qualquer das casas legislativas. Sempre prevaleceu Estatuto da Diversidade Sexual elaborado pela ilustrada Comissão Especial
o medo escudado em alegações de ordem religiosa, o preconceito de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, significa contribuir em
disfarçado em proteção à sociedade. nosso País para uma histórica sublimação na disciplina jurídica aplicável às
igualdades e à rejeição dos preconceitos e discriminações que infelicitam
No entanto, era chegada a hora de dar um basta à hipocrisia e alguém
o espírito humano. Por estar convencido da oportunidade, da necessidade
precisava tomar a iniciativa. Ninguém mais poderia aceitar este grande
e da excelência do trabalho apresentado, com as mínimas ponderações de
desafio do que os advogados deste país. Afinal, foram os precursores
início aduzidas, voto no sentido da sua aprovação, a fim de que o mesmo,
de todos os avanços, provando que são mesmos indispensáveis à
por iniciativa de nossa augusta Casa dos Advogados, possa seguir o curso
administração da Justiça, como reconhece a Constituição Federal.
da aprovação que considero justo e desejável mediante a tramitação
Foram eles que ousaram bater às portas do Poder Judiciário, buscando o
devida junto ao Congresso Nacional.
reconhecimento de direitos inexistentes a um segmento invisível e alvo de
severa discriminação. Concedido prazo para emendas, foram apresentados quatro destaques,
nenhum deles contrário à sua aprovação. Assim, tão logo votado,
Comprometido com a construção de uma sociedade livre, igualitária
deverá ser encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação
e democrática, a Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Participativa do Senado Federal, pois o Conselho Federal da OAB dispõe
assumiu a missão quase impossível de elaborar um projeto legislativo
de legitimação ativa universal, dispensada comprovação da pertinência
e promover uma ampla revisão da legislação infraconstitucional. Isso
temática5.
pretendia assegurar os direitos que já vinham sendo reconhecidos pela
jurisprudência e na esfera administrativa. Deste modo, a Ordem dos Advogados do Brasil, ao elaborar o Estatuto
da Diversidade Sexual – o mais arrojado anteprojeto deste século, quer
Em audiência pública, realizada dia 22 de março de 2011, foi aprovada
pela sua abrangência, quer pelo seu significado e alcance –, mais uma
a criação da Comissão Especial da Diversidade Sexual4, integrada por
vez assume o destacado compromisso que desempenhou no processo de
profissionais que, pelas suas trajetórias de vida, gozam do respeito e do
democratização do país e em todas as demais lutas que enfrentou em
reconhecimento da comunidade científica. A eles foi delegada a difícil
defesa do Estado e do direito dos cidadãos.
tarefa de consolidar um conjunto de normas e regras que servissem
para aperfeiçoar o sistema legal, de modo a acolher parcela significativa
da população que, injustificavelmente, se encontra alijada dos mais Emendas Constitucionais
elementares direitos de cidadania.
Uma vez que a Constituição prioriza o respeito à dignidade e consagra
O Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual foi elaborado a muitas a liberdade e a igualdade como princípios fundantes de um Estado
mãos. Contou com a efetiva participação das mais de 50 Comissões da Democrático de Direito, é indispensável que, modo expresso, se vete a
Diversidade Sexual das Seccionais e Subseções da OAB, já instaladas, ou discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero; que se
assegure os direitos decorrentes da homoparentalidade e reconheça a
3 ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05.05.2011.
4 Portaria 16/2011, de 15 de abril de 2001 Composição: Maria Berenice Dias (RS) – Presidenta. Integrantes: família homoafetiva como entidade familiar.
Adriana Galvão Moura Abílio (SP); Jorge Marcos Freitas (DF); Marcos Vinicius Torres Pereira (RJ) e Paulo Tavares
Mariante (SP). Consultores: Daniel Sarmento (RJ); Luis Roberto Barroso (RJ); Rodrigo da Cunha Pereira (MG) e 5 Parágrafo único do art. 5º e § 2º do art. 7º do Ato nº 1/2006, que regulamenta o art. 102-E do Regimento
Tereza Rodrigues Vieira (SP). Interno do Senado Federal, alterado pela Resolução n.º1 de 2005.

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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

Como o Conselho Federal da Ordem dos Advogados não tem impunes. Esta é a causa maior e a pior consequência da homofobia.
legitimidade para propor emendas constitucionais, em 23 de agosto de Daí a indispensabilidade de inserir as expressões “orientação sexual
2011, a Comissão Especial da Diversidade Sexual entregou à Senadora ou identidade de gênero” no art. 3º, inc. IV7 e no art. 5º, inc. XLI8 da
Marta Suplicy a proposta de alteração de sete dispositivos da Constituição Constituição Federal, para deixar explícito que a população LGBT precisa
Federal. ter sua identidade respeitada, bem como a necessidade de criminalizar os
Em 19 de setembro, o Conselho Federal da OAB, acolheu o voto delitos fruto da intolerância homofóbica.
do Relator, Conselheiro Carlos Roberto Siqueira Castro, ratificando e A vedação de discriminação também precisa chegar ao ambiente
ampliando a proposição original de emendar a Constituição. de trabalho, como forma de dar efetividade ao princípio isonômico nas
O projeto deu origem a três Propostas de Emenda Constitucional. Uma relações laborais. Assim, é necessária a alteração do inc. XXX do art. 7º
proíbe discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, da Constituição Federal9, proibindo diferenças salariais e a adoção de
inclusive nas relações de trabalho. Outra substitui a licença-maternidade critérios diferenciados para a admissão e o exercício de funções laborais,
e a licença-paternidade pela licença-natalidade, a ser concedida em razão da identidade de gênero ou orientação sexual.
indistintamente a qualquer dos pais. Ambas já se encontram na Comissão
de Constituição e Justiça do Congresso Nacional6. A terceira proposta,
Licença-natalidade
que explicita a possibilidade do casamento e o reconhecimento da união
estável aos vínculos homoafetivos, aguarda a colheita de assinaturas pelo, Duas ordens de motivação ensejaram a proposta de acabar com
então, Deputado Federal Jean Willys. o tratamento diferenciado a mães e pais. Cada vez mais se valoriza a
paternidade responsável, assegurando a ambos os genitores os mesmos
Esses são direitos que precisam constar na Carta Constitucional, sob
direitos e impondo aos dois os deveres inerentes ao poder familiar. Deste
pena de se comprometer a própria estrutura do Estado, que tem por
modo, é indispensável consagrar a igual responsabilidade parental. Nada
finalidade a proteção de seus cidadãos. De todos eles.
justifica a concessão da licença de quatro meses para a mãe e, ao genitor,
Afinal, ninguém duvida que todos são iguais perante a lei. somente escassos cinco dias. Essa é a justificativa para se adotar a licença-
natalidade.
Discriminação A exemplo da legislação de muitos países, a proposta é eliminar tanto a
licença-maternidade como a licença-paternidade, assegurando, de forma
A Constituição Federal é cuidadosa em vetar qualquer forma de
indistinta, licença-natalidade, com prazo de duração de seis meses. Este
discriminação, referência que se encontra inclusive no seu preâmbulo, ao
é período já reconhecido para assegurar o melhor desenvolvimento da
garantir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
criança, que terá direito à presença de um de seus pais, da maneira que
Ao identificar os objetivos fundamentais da República, a chamada lhes seja mais conveniente. Por isso, a proposta de alteração dos incisos
Lei Maior assume o compromisso de promover o bem de todos sem XVIII e XIX do art. 7ª da CF10, para assegurar licença-natalidade a qualquer
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma 7 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
de discriminação. No entanto, olvidou-se o constituinte de proibir, (...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, orientação sexual ou identidade de
modo expresso, discriminação em decorrência da orientação sexual gênero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
ou identidade de gênero. Esta omissão gera um sistema de exclusão 8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
incompatível com os princípios democráticos de um estado igualitário, propriedade, nos termos seguintes:
deixando número significativo de cidadãos fora do âmbito da tutela (...)
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais com base em raça,
jurídica. Diante deste imperdoável silêncio, homossexuais, lésbicas, sexo, cor, origem, idade, orientação sexual ou identidade de gênero;
9 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais são reféns social:
de toda a sorte de violência. Como não estão ao abrigo da legislação que (...)
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,
criminaliza a discriminação, as perseguições de que são vítimas restam orientação sexual, identidade de gênero, idade, cor ou estado civil;
10 CF, art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
6 PECs 110 e 111, de 8/11/2011.
condição social:
(...)
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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

dos pais, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento inúmeros juízes e tribunais passaram a admitir a conversão das uniões
e oitenta dias. homoafetivas em casamento, até que o STJ14, em decisão não menos
louvável e corajosa, garantiu acesso ao casamento, mediante habilitação
Durante os 15 primeiros dias após o nascimento, a adoção ou a
direta perante o Registro Civil. A partir desses antecedentes, vários
concessão da guarda para fins de adoção, a licença-natalidade é usufruída
Tribunais estão normatizando os procedimentos – quer para o casamento
por ambos os pais. No período subsequente, por qualquer deles, de forma
direto, quer por conversão – a serem adotados pelos registros públicos,
não cumulativa, segundo deliberação do casal.
sendo dispensada a via judicial.
Como o benefício independe do sexo do genitor, eliminam-se os
Essas mudanças precisam ser inseridas na Constituição Federal,
inúmeros questionamentos que surgem frente a homoparentalidade,
dando-se nova redação ao parágrafo 1º do art. 22615 , para explicitar a
quando o beneficiado é um homem, ou é um casal masculino ou feminino.
possibilidade do casamento civil entre duas pessoas, independente
Cessam as dúvidas sobre a quem conceder a licença e por quanto tempo,
da orientação sexual16. Também é necessário substituir a equivocada
nas hipóteses de adoção ou reconhecimento da dupla parentalidade
referência a “homem e mulher”, constante do § 3º do mesmo art. 22617
por casais homoafetivos. A igualdade de oportunidade a ambos vem em
.Assim, acabaria-se com a resistência de alguns em admitir a união estável
benefício da própria família, pois se estende a todos, independentemente
entre duas pessoas como entidade familiar18.
da orientação sexual dos pais.
Somente reconhecendo a união estável e garantindo acesso ao
Outro ganho significativo é reduzir a discriminação contra as mulheres
casamento aos vínculos homoafetivos estará assegurada a extensão de
no mercado de trabalho, pois, a possibilidade da gravidez muitas vezes
todos os direitos e garantias fundamentais à população LGBT.
dificulta a inserção profissional.

Estatuto da diversidade sexual


Casamento e união estável
Para uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos, nada,
Por dever de justiça há que se louvar a corajosa e sensível decisão do
absolutamente nada, justifica a omissão do sistema jurídico frente à
Supremo Tribunal Federal que, em 5 de maio de 2011, à unanimidade,
população formada por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,
reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar. O histórico
transgêneros e intersexuais. Assim, urge a aprovação de uma lei que
julgamento garantiu aos parceiros homossexuais os mesmos direitos
assegure a essa significativa parcela de cidadãos o direito à vida; à
e deveres dos companheiros das uniões estáveis. Deu ao art. 1.723 do
integridade física e psíquica e à inclusão social. Também é indispensável
Código Civil11 interpretação conforme a Constituição Federal, excluindo
o reconhecimento legal de seus vínculos afetivos o que, nada mais é do
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
que a garantia do direito à felicidade. Um direito fundamental de todos,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade
independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero.
familiar”, entendida como sinônimo perfeito de “família”12.
Em face do efeito vinculante e eficácia erga omnes do julgado13,
XVIII – licença-natalidade, concedida a qualquer dos pais, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração
A construção de um microssistema
de cento e oitenta dias;
XIX – durante os 15 dias após o nascimento, a adoção ou a concessão da guarda para fins de adoção, a licença A técnica mais moderna de inclusão de segmentos alvo da
é assegurada a ambos os pais. O período subsequente será gozado por qualquer deles, de forma não cumulada. vulnerabilidade social no âmbito da tutela jurídica é por meio da
11 CC, art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada
na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. construção de microssistemas: lei temática que enfeixa princípios, normas
12 Ofício 81/P-MC, datado de 09.05.2011, expedido pelo Presidente Ministro Cezar Peluso, aos Presidentes de
todos os Tribunais: Comunico a Vossa Excelência que o Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária realizada em 5 e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta,
de maio de 2011, por unanimidade, reconheceu a arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como nas esferas federal, estadual e municipal.
ação direta de inconstitucionalidade. Também por votação unânime julgou procedente a ação, com eficácia erga 14 STJ, REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011.
omnes e efeito vinculante, para dar ao art. 1723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele 15 CF, art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas § 1º: O casamento é civil e gratuita a celebração.
do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento 16 CF, art. 226, § 1º: É admitido o casamento civil entre duas pessoas, independente da orientação sexual.
que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. 17 CF, art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
13 CF, art. 102, § 2º: As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos 18 CF, art. 226, § 3º: É reconhecida a união estável entre duas pessoas como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento.
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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

de conteúdo material e processual, além de dispositivos de natureza civil e expressão contida no termo generalizante, foi inserida em segundo lugar
penal. Essa é a estrutura do Estatuto da Diversidade Sexual, que consagra e não como figura na sigla LGBT.
uma série de prerrogativas e direitos a homossexuais, lésbicas, bissexuais,
O vocábulo transgênero – originalmente utilizado para englobar
transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais.
transexuais e travestis – sempre ensejou muita polêmica, por serem
É assegurado o reconhecimento das uniões homoafetivas no âmbito inconfundíveis as características de duas modalidades de identidades
do Direito das Famílias, Sucessório, Previdenciário e Trabalhista. Além de de gênero. Apesar disso, o termo foi mantido no Estatuto por definir
criminalizar a homofobia, são apontadas políticas públicas de inclusão na as pessoas que mudam transitoriamente de identidade, sendo assim
tentativa de reverter tão perverso quadro de omissões e exclusões sociais. identificados “drags queens e crossdressers”.
Em anexo são identificados os dispositivos da legislação infraconstitucional
A referência aos intersexuais – que antes recebiam o nome de
que precisam ser alterados, acrescentados ou suprimidos, única forma a
hermafroditas – justifica-se por inexistir qualquer regulamentação ou
harmonizar todo o sistema legal.
regra protetiva a quem nasce com características sexuais indefinidas.
Os direitos previstos no Estatuto não excluem outros que tenham sido
ou venham a ser adotados no âmbito federal, estadual ou municipal e
nem os decorrentes das normas constitucionais e legais vigentes no país Objeto e objetivos
ou oriundos dos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil No seu primeiro dispositivo o Estatuto diz a que vem: promover a
seja signatário. inclusão de todos, combater a discriminação por orientação sexual ou
identidade de gênero e criminalizar a homofobia. Também identifica a
quem visa proteger, para que lhes seja assegurado igual dignidade jurídica:
Nomes e nomenclaturas
heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis,
A primeira controvérsia que surgiu quando da elaboração do Anteprojeto transgêneros e intersexuais.
do Estatuto foi a respeito do seu nome. As sugestões de chamá-lo de
A referência à heterossexualidade, no entanto, não significa que o
“Estatuto da Diversidade” ou “Estatuto da Igualdade” foram descartadas
Estatuto abriga todas as condutas sexuais e as mais diversas expressões
por não gizar que se trata da tutela de parcela específica da população.
da sexualidade, amplitude que não se comporta em uma lei que tem por
Existiram focos de resistência ao uso do vocábulo “diversidade”, que, justificativa a proteção da identidade homossexual e seus relacionamentos
por ressaltar o aspecto de diferença, poderia ter conotação pejorativa. afetivos.
No entanto, como a expressão também significa diverso, de outro jeito,
conceito sem viés preconceituoso, foi a opinião que prevaleceu.
Princípios
Outra decisão alvo de enormes debates foi a de não definir o que seja
sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e nem os sujeitos Como toda legislação que se destina a tutelar segmento determinado
aos qual o Estatuto se destina: homossexuais, lésbicas, bissexuais, exposto a alguma espécie de vulnerabilidade, exclusão ou discriminação,
transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais. Além de a lei não ser o também neste Estatuto é indispensável a identificação dos princípios que
espaço adequado para trazer definições ou conceitos, estas são expressões a regem.
que não dispõem de significado unívoco. Daí a consagração, como princípios fundamentais na interpretação
Ainda assim, houve a preocupação de referir o maior número de e aplicação do Estatuto da Diversidade Sexual, a dignidade da pessoa
segmentos, da forma mais explícita possível. Optou-se por falar em humana, a igualdade e o respeito à diferença. Também são erigidos
“homossexuais” ao invés de “gays”, estrangeirismo que, em sua origem, como princípios: a livre orientação sexual; o respeito à intimidade; a
não identifica a orientação homossexual. Apesar de a expressão privacidade; a autodeterminação; e o reconhecimento da personalidade
“homossexual” não dizer exclusivamente com a população masculina, a de acordo com a identidade de gênero. No âmbito das relações vivenciais
inclusão do termo “lésbicas” atendeu a antiga reivindicação para que seja são consagrados como princípios, o direito à convivência comunitária e
assegurada mais visibilidade ao gênero feminino. Mas, como se trata de familiar, à liberdade de constituição de família e de vínculos parentais.

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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

Mas, talvez o mais significativo princípio seja o que diz respeito ao Direito à convivência familiar
direito fundamental à felicidade. Este merece estar previsto na própria
Afirmado o direito à constituição da família, independente da orientação
Constituição Federal, como princípio fundante do Estado, pois se
sexual ou identidade de gênero de seus membros, de forma expressa, a
trata de direito que deve ser garantido a todos os cidadãos. Além de
família homoafetiva goza da especial proteção do Estado. Como entidade
incorporadas as normas constitucionais consagradoras de princípios,
familiar, faz jus, no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, a todos
garantias e direitos fundamentais, são invocadas as normas constantes de
os direitos assegurados à união heteroafetiva,.
tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil seja signatário.
Expressamente é imposto respeito aos Princípios de Yogyakarta. Além de o companheiro estrangeiro ter direito à concessão de visto de
permanência, é admitido o reconhecimento do casamento, da união civil
e da união estável formalizados em países estrangeiros.
Direito à livre orientação sexual
O direito à constituição de família alcança também os vínculos
Consagrado o direito à livre orientação sexual e identidade de gênero homoparentais, quer individualmente, quer pelo casal homoafetivo,
como direitos fundamentais, é assegurado a todos o direito de viver a frente aos filhos biológicos, adotados ou socioafetivos.
plenitude de suas relações afetivas e sexuais.
Como os pares, com a mesma identidade sexual, não dispõem de
Em face da inviolabilidade de consciência e de crença, são proibidas capacidade procriativa, é garantido acesso às técnicas de reprodução
práticas que obriguem alguém a revelar, renunciar, negar ou modificar sua assistida por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, de forma individual
identidade sexual. Cada um pode conduzir sua vida privada, sem pressões ou conjunta. É expressamente admitido o uso de material genético do
de qualquer ordem, garantia que alcança não só a própria pessoa, mas casal para práticas reprodutivas.
qualquer membro da sua família ou comunidade.
Repita-se, também é assegurada a guarda, a adoção, a habilitação
Também é vedada a incitação ao ódio ou comportamentos que individual ou conjunta à adoção de crianças e adolescentes, fazendo
preguem a segregação em razão da orientação sexual ou identidade de qualquer dos pais jus à licença-natalidade, com duração de cento e oitenta
gênero, condutas que, inclusive, são criminalizadas. dias. A licença é usufruída durante os 15 primeiros dias por ambos os pais
e, no período subsequente, por qualquer deles de forma não cumulada.
Direito à igualdade e a não discriminação Quando ocorre a separação do casal, o exercício do poder familiar
O princípio da igualdade compreende o direito à diferença e a proibição é garantido a ambos os genitores. Deve-se estabelecer a obrigação
à discriminação. Por isso, a necessidade da expressa referência à vedação alimentar e assegurar o direito de convivência, com preferência pela
de atitudes constrangedoras, intimidativas ou vexatórias que tenham por guarda compartilhada.
objetivo anular ou limitar direitos e prerrogativas da população LGBT. A proibição de os pais expulsarem de casa ou discriminarem o filho, em
De forma exemplificativa, são identificadas como discriminatórias face de sua orientação sexual ou identidade de gênero, gera obrigação
algumas posturas: proibir o ingresso ou a permanência em indenizatória, além da responsabilidade por abandono material quando,
estabelecimento público ou estabelecimento privado aberto ao público; o filho for menor de idade.
prestar atendimento seletivo ou diferenciado não previsto em lei; preterir,
onerar ou impedir hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares; Direito à identidade de gênero
dificultar ou impedir locação, compra, arrendamento ou empréstimo
de bens móveis ou imóveis; proibir expressões de afetividade em locais A livre expressão da identidade de gênero é reconhecida a transexuais,
públicos, sendo as mesmas manifestações permitidas aos demais travestis, transgêneros e intersexuais, que têm direito ao uso do nome
cidadãos. social. O uso independe da realização da cirurgia de redesignação sexual
ou da alteração do nome registral. Além disso, o direito à retificação do
O impedimento de tais práticas, além de configurarem crime de nome e da identidade sexual no Registro Civil também independe da
homofobia, geram responsabilidade por danos materiais e morais. realização da cirurgia de transgenitalização. Ainda, para a adequação do

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Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

sexo morfológico à identidade de gênero, é garantida a realização dos Direito à educação


procedimentos de hormonoterapia e transgenitalização pelo Sistema
É proibido o uso de materiais didáticos e metodologias que reforcem
Único de Saúde – SUS.
a homofobia, o preconceito e a discriminação. Ainda, nessa direção, os
Havendo indicação terapêutica de equipe médica e multidisciplinar, estabelecimentos de ensino devem coibir, no ambiente escolar, a prática
procedimentos complementares não cirúrgicos de adequação à identidade de bullying por orientação sexual ou identidade de gênero do aluno, ou
de gênero podem iniciar a partir dos 14 anos de idade, mas a cirurgia de pelo fato de pertencer a uma família homoafetiva.
redesignação sexual somente pode ser realizada a partir dos 18 anos. É
As atividades escolares referentes a datas comemorativas precisam
vedada a realização de qualquer intervenção médico-cirúrgica de caráter
atentar à multiplicidade de formações familiares, de modo a evitar
irreversível para a determinação de gênero em recém-nascidos e crianças
qualquer constrangimento aos alunos filhos de famílias homoafetivas.
diagnosticadas como intersexuais.
Assim, os professores devem ser capacitados para uma educação inclusiva,
Em todos os espaços públicos e abertos ao público é assegurado o uso com o objetivo de elevar a escolaridade em face da identidade sexual dos
das dependências e instalações correspondentes à identidade social. alunos ou de seus pais, com o fim de reduzir a evasão escolar.
O uso do nome social é garantido nos estabelecimentos de ensino,
devendo constar em todos os registros acadêmicos. Igual garantia é Direito ao trabalho
assegurada nas relações de trabalho, devendo o nome social ser inserido
na Carteira de Trabalho e nos assentamentos funcionais. O acesso ao mercado de trabalho é assegurado a todos, sendo vedado
inibir o ingresso, proibir a admissão ou a promoção no serviço público ou
privado, em função da identidade sexual do servidor. Como também é
Direito à saúde proibido demitir ou estabelecer diferenças salariais entre empregados ou
Faz-se necessário a capacitação de médicos, psicólogos e demais servidores que ocupem o mesmo cargo e desempenhem iguais funções,
profissionais da área de saúde para atender a população LGBT. Essa ação em decorrência da orientação sexual ou identidade de gênero.
visa impedir a utilização de instrumentos e técnicas para criar, manter ou A administração pública e a iniciativa privada devem adotar programas
reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou ações que favoreçam de formação profissional, de emprego e de geração de renda, além de
a patologização de comportamentos ou práticas homossexuais. Ainda, promover campanhas com o objetivo de elevar a qualificação profissional
nesse sentido, são proibidas, de forma expressa, promessas de cura ou dos servidores e empregados travestis, transexuais, transgêneros e
de reversão da identidade sexual, bem como ações coercitivas para que intersexuais.
alguém se submeta a tratamentos não solicitados.
Em respeito ao princípio da proporcionalidade, e visando assegurar
A orientação sexual ou a identidade de gênero não podem ser usadas igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, é adotado o sistema
como critério para seleção de doadores de sangue, sendo proibido de cotas a travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, para ingresso
questionar a orientação sexual de quem se apresenta voluntariamente no serviço público. Empresas e organizações privadas serão incentivadas a
como doador. adotar medidas similares.
Direito à moradia
Direitos previdenciários Como o direito à moradia tem assento constitucional, é proibida
São garantidos direitos previdenciários de forma universal. Às qualquer restrição à aquisição ou à locação de imóvel em decorrência
instituições de seguro ou previdência públicas ou privadas é vedado negar da identidade sexual do adquirente ou locatário. Também é assegurada
qualquer espécie de benefício em face da orientação sexual ou identidade a conjugação de rendas do casal para a concessão de financiamento
de gênero do beneficiário. Do mesmo modo, os planos de saúde não habitacional na aquisição da casa própria.
podem impedir ou restringir a inscrição como dependente do cônjuge ou É afirmada a responsabilidade por dano moral da administração do
do companheiro homoafetivo do beneficiário. imóvel ou condomínio que for omisso em inibir condutas que configurem

324 325
Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

prática discriminatória nas áreas de uso comum. Dos delitos e das penas
Ainda que significativos tenham sido os avanços no âmbito do Poder
Acesso à justiça e à segurança Judiciário na concessão de direitos, é indispensável previsão legal para
que a homofobia seja punida criminalmente. É mais do que conhecido
As demandas, que tenham por objeto a exigibilidade dos direitos
o princípio de que ninguém pode ser condenado pela prática de um ato
previstos no Estatuto, devem tramitar em segredo de justiça, sendo
sem que haja lei anterior que o defina como crime. Então, desde 2006,
obrigatória, para fins estatísticos, a identificação da natureza das ações.
um projeto de lei – ora sob o nº PLC 122 – tenta criminalizar a homofobia.
As ações não criminais são de competência das Varas de Família e os
Apesar de ter sido aprovado na Câmara Federal, no Senado não avança.
recursos devem ser apreciados pelas Câmaras Especializadas de Família
Foram apresentadas tantas alterações e emendas que o projeto restou
dos Tribunais de Justiça, onde houver.
desconfigurado.
Devem ser criadas delegacias especializadas para o atendimento de
Com pena de reclusão de 2 a 5 anos, são punidas condutas
denúncias por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de
discriminatórias. Como também toda manifestação que incite o ódio ou
gênero. Às vítimas de discriminação é garantida assistência, acolhimento,
pregue a inferioridade de alguém em razão de sua orientação sexual ou
orientação e apoio, quando da apuração de práticas delitivas.
identidade de gênero.
O encarceramento no sistema prisional deve atender à identidade
No âmbito das relações de trabalho, gera responsabilidade criminal
sexual do preso, ao qual é assegurada cela separada se houver risco à
deixar de contratar alguém, dificultar a contratação ou negar ascensão
sua integridade física ou psíquica. É, também, garantida visita íntima sem
profissional a cargo ou função, motivado por preconceito de sexo. Está
qualquer diferenciação quanto à identidade sexual ou de gênero do preso.
sujeito à mesma apenação o responsável pelo estabelecimento comercial
que recusar, impedir acesso ou negar atendimento a alguém em face
Dos meios de comunicação de sua orientação sexual ou identidade de gênero. O Estatuto cria uma
agravante genérica, elevando em um terço a pena de quem praticar
Os meios de comunicação de massa, como rádio, televisão, internet e
delitos nos quais ficar evidenciada motivação homofóbica.
redes sociais, bem como peças publicitárias, devem assegurar respeito
à diversidade sexual. Não podem fazer qualquer referência de caráter Além da criminalização da homofobia, é proposta a alteração de cinco
preconceituoso ou discriminatório em face da população LGBT. Publicar, dispositivos da Lei do Racismo (Lei 7.716/89), incluindo em todos os tipos
exibir a público, qualquer aviso, sinal, símbolo ou emblema que incite a penais as expressões: gênero, sexo, orientação sexual e identidade de
intolerância se constitui em prática discriminatória. gênero.

Relações de consumo Políticas públicas


São práticas discriminatórias, sujeitas as sanções penais, impedir Não basta a lei prever direitos. Para garantir a participação em
acesso a estabelecimento público ou aberto ao público, assim como condição de igualdade e de oportunidade na vida econômica, social,
impor restrições no fornecimento de bens ou prestação de serviços ao política e cultural do país, é indispensável conscientizar a sociedade da
consumidor, em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de igual dignidade de heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais,
gênero. transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais. Daí, então, a
necessidade de adoção de uma série de políticas públicas no âmbito da
Os serviços públicos e privados têm o dever de capacitar seus
administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
funcionários e empregados para evitar manifestações discriminatórias.
municipal, destinadas a conscientizar a sociedade da igual dignidade de
todos, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero.
Por isso, a imposição de 34 medidas que promovam a igualdade de
oportunidades no acesso à saúde, educação, emprego e moradia, as quais

326 327
Um Estatuto para a diversidade sexual Maria Berenice Dias

devem constar, inclusive, nos Planos Plurianuais e dos Orçamentos Anuais Legislação infraconstitucional
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
A discriminação que existe na sociedade sempre contagiou o legislador,
Como é garantido acesso ao Sistema Único de Saúde – SUS, é o qual, além de negar-se a aprovar leis que assegurem direitos, não
indispensável o investimento em recursos humanos dos profissionais da perde a oportunidade de carimbar a legislação com o seu preconceito.
área de saúde para acolherem a população LGBT em suas necessidades e Isso se mostra nos usos das expressões “homem e mulher”, “pai e mãe”,
especificidades. quando trata da família. Assim, além da alteração da Constituição Federal
É imposto aos profissionais da educação o dever de abordar as questões e a consolidação dos direitos em uma única lei, são identificados os
de gênero e sexualidade sob a ótica da diversidade sexual, cabendo ao dispositivos da legislação infraconstitucional que precisam ser adequados
poder público promover a capacitação dos professores para uma educação ao novo sistema normativo.
inclusiva. Deste modo, é proposta alteração das seguintes leis: Lei de Introdução
Em face da significativa evasão escolar, se fazem necessárias ações com às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.656/1942); Código Civil;
o objetivo de elevar a escolaridade de homossexuais, lésbicas,bissexuais, Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973); Estatuto da Criança e do
transexuais, travestis, transexuais e intersexuais. Para assegurar a igualdade Adolescente (Lei 8.069/1990; Lei 8.560/1992; Consolidação das Leis do
de oportunidades na inserção no mercado de trabalho, é indispensável a Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943; legislação previdenciária (Lei 8.213/199
adoção de programas de formação profissional, de emprego e geração de e Decreto 3.048/1999); estatutária (Lei 8.112/1990) e tributária (Decreto
renda voltadas à população LGBT. 3.000/1999. Também, do Código Penal; Código de Processo Penal e Lei das
Execuções Penais; Lei do Racismo (Lei 7.716/1989); Código Penal Militar
Também é necessária a promoção de campanhas com o objetivo de e o Estatuto dos Militares. As Leis 6.815/1980; 8.560/1992 e 9.029/1995
promover a qualificação profissional de travestis, transexuais, transgêneros precisam ser alteradas e a Lei 11.770/1978, revogada.
e intersexuais. É imposta à administração pública e incentivada a iniciativa
privada a adotar sistema de cotas a travestis e transexuais, transgêneros
e intersexuais. Referências
Os entes federados devem estimular e facilitar a participação de BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 110 de novembro
organizações e movimentos sociais na composição dos conselhos de 2001. Altera a redação do artigo 208 da Constituição Federal. Autor: Deputado Romero
Rodrigues. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarinte
constituídos para fins de aplicação do Fundo Nacional de Habitação de gra;jsessionid=0EB725FD4A0CA58B54617B3403CB2F3E.proposicoesWeb1?codteor=9381
Interesse Social – FNHIS. Também, devem ser implementadas ações de 24&filename=PEC+110/2011.
ressocialização e proteção da juventude em conflito com a lei que esteja BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 111 de novembro
exposta a experiências de exclusão social em face de sua orientação sexual de 2001. Altera a redação do artigo 31 da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de
ou identidade de gênero. 1988, e dá outras providências. Autora: Deputada Dalva Figueiredo. Disponível em: http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=940079&filename=
Os serviços públicos e privados devem capacitar seus funcionários para PEC+111/2011.
aprimorar a atenção e o acolhimento das pessoas, evitando qualquer BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277.
manifestação de preconceito e discriminação sexual. Relator Ministro Ayres Brito. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/
consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=11872.
Para garantir a integridade física, psíquica, social e jurídica da população
LGBT em situação de violência, várias medidas são impostas, como: a BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Descumprimento de Preceito Federal nº
132. Relator Ministro Ayres Brito. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/geral/
criação de centros de referência contra a discriminação e de atendimento verPdfPaginado.asp?id=433816&tipo=TP&descricao=ADPF%2F132.
especializado na estrutura nas Secretarias de Segurança Pública; a
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis
capacitação e qualificação dos policiais civis e militares e dos agentes Felipe Salomão, j. 25.10.2011. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/
penitenciários. portal/Civel_Geral/Registros_Publicos/Jurisprudencia_registros/STJ-%20REsp%20
1183378-casamento%20homoafetivo.pdf.

328 329
Um Estatuto para a diversidade sexual

BRASÍLIA. Regimento Interno Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.


br/legislacao/regsf/RegInternoSF_Vol1.pdf e http://www.senado.gov.br/legislacao/regsf/
RegInternoSF_Vol2.pdf

330
Regina Bergamaschi Bley

ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS


MULHERES

Regina Bergamaschi BLEY1

1. Introdução
Pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana é o fundamento
último do Estado Brasileiro. Ou seja, cabe ao Estado garantir e promover
as condições assecuratórias da dignidade de todas as pessoas.
Construir, portanto, uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o
desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização,
reduzir as desigualdades sociais e promover o bem estar de todos, sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do Estado
Brasileiro, conforme destaca Bley e Josviak (2007p.204).
O século XX constitui-se em época marcada pela ampliação de direitos,
de oportunidades e de mudanças, tanto na qualidade de vida das mulheres
quanto no imaginário coletivo. Devido a isso, Pinsky (2012, p.) refere-se a
este período como sendo “o século das mulheres”. E diz isso em razão das
transformações aceleradas que propiciou à experiência feminina.
No Brasil, a partir de 1975, o movimento feminista toma impulso com
grande influência do feminismo chamado de “Segunda Onda”, cujo início
se deu nos anos 60, e com as ideias e debates provocados pelas mulheres
exiladas políticas na Europa, que retornam ao Brasil com o processo de
redemocratização.
Destaca-se, na perspectiva acima mencionada, o surgimento, na França,
na década de 70, de dois grupos de mulheres que, por conta de seus
países estarem vivendo sob regime de ditadura, haviam sido obrigadas a
deixá-los: o grupo de latino-americanas chamado de Nosotras e o Círculo
de Mulheres Brasileiras em Paris, só para citar alguns.
O movimento de mulheres, assim como outros, contribuiu para a
aprovação da Carta Constitucional de 1988 a qual representa, sem dúvida,
um marco na defesa dos direitos das mulheres no Brasil.

1 Bióloga, professora, mestre e doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; é
Diretora do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Justiça Cidadania e Direitos Humanos
do Paraná, Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e Gestora do Pacto Nacional de Enfrentamento
à Violência contra a Mulher, no Estado do Paraná.

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ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Regina Bergamaschi Bley

Em comemoração aos 25 anos da sua promulgação, em 5 de outubro encontravam impregnados na mentalidade popular portuguesa – e mesmo
europeia -, cabendo à igreja metropolitana adaptar valores conhecidos
de 2013, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Secretaria de das populações femininas, para um discurso com conteúdos e objetivos
Políticas para as Mulheres da Presidência da República publicaram nota específicos.(...) Adestrar a mulher fazia parte do processo civilizatório, e,
na qual explicitam a importância da participação dos movimentos de no Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização.
mulheres para o processo de democratização do Brasil: (...) O outro instrumento utilizado para a domesticação da mulher foi o
discurso normativo médico. (DEL PRIORE, 2009, p.23-24).
No processo de luta pela restauração da democracia, o movimento de
A autora destaca a contribuição dada pelo discurso normativo
mulheres teve uma participação marcante, ao visibilizar um conjunto
de reivindicações relativas ao seu processo de exclusão, assim como ao médico, ou “phisico”, sobre o funcionamento do corpo feminino, como
lutar pela inclusão dos direitos humanos para as mulheres.Seu marco foi a instrumento utilizado para a domesticação da mulher, na medida em que
apresentação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes (1988), este referendava o discurso religioso por asseverar cientificamente que
que indicava as demandas do movimento feminista e de mulheres. A Carta a função natural da mulher era a procriação. Nesse sentido, é possível
Magna de 1988 incorporou no Artigo 5°, I: “Homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. E no Artigo pensar, então, corroborando a ideia da autora, que a medicina aliou-se
226, Parágrafo 5°: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal à Igreja na luta pela constituição de famílias sacramentadas, já que o
são exercidos pelo homem e pela mulher”. Esses dois artigos garantiram médico, assim como o padre, tinha acesso à intimidade das residências,
a condição de equidade de gênero, bem como a proteçãodos direitos das famílias e das mulheres. Cabia à medicina dar caução à igreja, a fim
humanos das mulheres pela primeira vez na República Brasileira. (PORTAL
de disciplinar as mulheres para o ato de procriação, reforçando a ideia de
BRASIL, 2013).
que o corpo feminino só se mostraria dentro da normalidade pretendida
Isso pode nos levar a pensar que o tempo em que a identidade feminina pela medicina quando desprovido de prazeres físicos, se revelando, dessa
formava-se e era formada a partir da maternidade, a exemplo do que forma, “eficiente, útil e fecundo”. “Apenas como mãe, a mulher revelaria
acontecia no período colonial ou que a condição de filha, esposa, mãe, um corpo e uma alma saudáveis, sendo sua missão atender ao projeto
“como sendo as únicas identificações valorizadas da mulher na sociedade fisiológico-moral dos médicos e à perspectiva sacramental da Igreja”:
patriarcal e escravista”, conforme coloca Scott (2012 p.17), encontra-se
muito distante. Entretanto, a despeito de todos os avanços apresentados, Enquanto o segundo cuidava das almas, o “doutor” ocupava-se dos
corpos, sobretudo no momento de partos dificultosos e doenças graves.
é fato que ainda há muito por se fazer no que diz respeito à construção
Ao penetrar o mundo fechado de pudores, mistérios e usos tradicionais
de políticas públicas que garantam a condição de equidade de gênero, dessa espécie de terra desconhecida que era o corpo feminino, o médico
pressuposto básico para a justiça social. interrogava a sexualidade da mulher e era também por ela interrogado. Os
ciclos menstruais, a gestação, os “males da madre” eram criteriosamente
Nesse sentido, o Estado, como entidade política, tem a responsabilidade cadastrados para que se sublinhassem as diferenças sexuais. O saber
precípua de organizar, fomentar e implementar, a partir das demandas médico insuflava aos percursos temporais femininos uma verdadeira
da sociedade civil, as políticas públicas que tenham esse fim.Del Priore dramaturgia, na qual desvios, doenças e acidentes vinham sancionar os
(2009, p. 26), em sua análise a respeito do papel social da mulher no Brasil defeitos, os excessos ou a normalidade de suas fisiologias” (DEL PRIORE,
2009, p. 26).
Colônia, descreve o longo processo de “domesticação” pela qual a mulher
passou, com o objetivo de torná-la responsável pela casa, família, pelo Não é por acaso que Simone de Beauvoir, em o Segundo Sexo, na
casamento e pela procriação, na figura da “santa-mãezinha”. A construção tentativa clara de desconstruir os mitos criados ao longo do tempo sobre
dessa maternidade idealizada como um dos instrumentos de adequação a suposta natureza perversa da mulher, o mito do amor materno e a ideia
da mulher à vida matrimonial, de acordo com a autora, foi um projeto da “mulher santa” construída pela Igreja Católica, aponta para a ideia
desenvolvido pela igreja, como eco da Reforma Trentina, e pelo Estado: de “ser mulher” como algo construído histórica e socialmente. A sua
intenção era desconstruir a tese do “instinto biológico feminino”, o que
O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais foi considera não um pressuposto natural imutável, mas sim uma condição
acionado por meio de dois musculosos instrumentos de ação. O primeiro,
um discurso sobre padrões ideais de comportamento, importado da culturalmente construída.
Metrópole, teve nos moralistas, pregadores e confessores os seus mais
eloquentes porta-vozes. Elementos para esse discurso normatizador já se

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ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Regina Bergamaschi Bley

Foucault, em A História da Sexualidade: a vontade de saber, faz Corroborando as ideias de Del Priore, Boff e Muraro (2002, p. 13),
referência ao início do século XVII, quando, segundo ele, ainda havia analisando a relação histórica entre o feminino e o masculino, descrevem
uma “certa franqueza” e uma tolerante familiaridade com o ilícito. Nesse que nas sociedades de caça iniciam-se as relações de força e o masculino,
período, ainda de acordo com o autor, em meio a gestos diretos, discursos que passa a ser o gênero predominante, vem a se tornar hegemônico
sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente no período histórico – há oito mil anos -, quando destina a si o domínio
misturadas, os corpos “pavoneavam”. Se até então os corpos se exprimiam público e à mulher, o privado. A relação homem-mulher passa a ser de
sem pudores nas falas, gestos, no período vitoriano a sexualidade é dominação e violência, tornando-se estas a base das relações entre
encerrada, “muda-se para dentro de casa”, sendo confiscada pela família os grupos e entre a espécie humana e a natureza. “Então é o princípio
conjugal, que a absorve, integralmente, na função de reproduzir: masculino que governa o mundo sozinho”.
No fim do século XX, ainda de acordo com os autores, com a segunda
Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-
revolução industrial, a mulher entra para o domínio público porque o
se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito
de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no sistema competitivo “faz mais máquinas do que machos”:
coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas
utilitário e fecundo: o quarto dos pais.Ao que sobra só resta encobrir-se; o No início do século XXI as mulheres são praticamente 50% da força de
decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os trabalho mundial, ou seja, para cada homem que trabalha, uma mulher
discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: também trabalha.Isso, ao menos teoricamente, está fechando o ciclo da
receberá este status e deverá pagar as sanções. (FOUCAULT,1988,p.10). história: o ciclo patriarcal. Esta abriu-se no período histórico junto com a
sociedade escravista, quando as mulheres foram reduzidas à sua função
Foucault fala, ainda, do processo de histerização da mulhercomo forma procriadora (BOFF e MURARO, 2002, p. 13).
de repressão sexual, representando uma das mais importantes formas de
poder da sociedade burguesa desde o século XVIII e destaca que - como Em sua análise, Boff e Muraro, (2002, p.14) destacam que hoje
consequência dessa  patologização  de seu corpo e a apropriação, pela as mulheres trazem para o sistema produtivo e para o Estado algo
medicina, dos seus processos reprodutivos -, se outorga aos “homens radicalmente novo. “Foi apenas o homem que se tornou competitivo,
da ciência” o poder de dar a palavra final sobre a normalidade ou porque se destinou ao domínio público. É ela quem traz os novos/arcaicos
não da mulher, podendo, inclusive, decidir por recolher aos asilos as valores simbólicos de solidariedade da família para o sistema produtivo
que porventura não se enquadrassem nos padrões de feminilidade e para o Estado. Desta forma, a entrada da mulher no domínio público
considerados “normais”. masculino é condição essencial para reverter o processo de destruição”.

Por outro lado, como forma de resistência ao discurso religioso, Nessa seara, merecem destaque as diversas críticas que o movimento
moralista e ao discurso normativo médico, os quais definiam a casa, a feminista tem feito ao patriarcado, entendendo ser este o sistema
maternidade e a família como sendo os lugares destinados às mulheres masculino de opressão das mulheres. Coerentemente, pregam a
no Brasil Colônia, “estas aproveitavam para viver a maternidade como necessidade de sua eliminação para que a desigualdade entre homens e
uma revanche contra a sociedade androcêntrica e desigual nas relações mulheres seja reduzida, e se possa criar uma sociedade mais igualitária,
entre sexos”, conforme coloca Del Priore (2006, p. 15). Na medida em que, menos discriminatória, e, por conseguinte, mais justa.
no espaço privado da casa, a mulher se magnificada pela gravidez, parto
e cuidados com os filhos, por trás da imagem da mulher ideal, unia-se 2. O Estado e as Politicas de igualdade de gênero
aos seus filhos para resistir à solidão, à dor, e, tantas vezes, ao abandono. É fato que a sociedade brasileira, historicamente, vem lutando pela
Além do respaldo afetivo e material, a prole permitia à mulher exercer, construção de uma verdadeira democracia. Isso pressupõe a igualdade de
dentro do seu lar, um poder e uma autoridade dos quais ela raramente todos perante a lei, conforme garantido no texto constitucional, e justiça
dispunha no mais da vida social. Identificada com um papel que lhe era social. Também é fato que houve no Brasil, nos últimos anos, uma evolução
culturalmente atribuído, ela valorizava-se socialmente por uma prática no que diz respeito à conquista dos direitos e dos instrumentos de defesa
doméstica, quando era marginalizada por qualquer atividade na esfera das mulheres, conforme já referenciado. Exemplo disso é a Lei 11.340/06
pública (DEL PRIORE, 2009, p.16). – Lei Maria da Penha, que se constitui em importante instrumento jurídico

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ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES Regina Bergamaschi Bley

de defesa das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Entretanto, as disparidades ainda são grandes no mercado de trabalho. No
emprego formal, o salário da mulher é apenas 78% do salário do homem.
Os avanços obtidos, todavia, não descaracterizam a gravidade do
Entre as pessoas com 12 anos ou mais de estudo, os homens ganham,
problema social no qual a violência contra a mulher se constitui, tanto no
por hora, 70% a mais que as mulheres. A participação da mulher nos
Brasil quanto no mundo. Muito pelo contrário, o problema se traduz ainda
processos políticos também é baixa: o número de candidatas a vereadora
hoje como uma das principais formas de violação dos direitos humanos da
é pouco mais do que o estabelecido por lei (20%), das quais apenas 11%
população feminina. A Organização Mundial da Saúde – OMS, já em 2011,
se elegeram no último pleito. Em apenas 6% dos municípios paranaenses
declarou que a violência contra a mulher se alicerça em uma prioridade
foram eleitas mulheres como Prefeitas.
urgente de saúde pública.
Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas no contexto
Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), ação criada
do conjunto das desigualdades sócio-históricas e culturais herdadas,
pela Organização das Nações Unidas, em 2000, para reduzir os maiores
pressupõe-se que o Estado evidencie a disposição e a capacidade para
problemas mundiais até o ano de 2015, estabelece como Meta de Número
redistribuir riqueza, assim como poder entre mulheres e homens, classes,
3, promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher. Quanto
raças, etnias e gerações. Para tanto, “é necessário compreender que
a esta Meta, o Governo Federal destaca alguns dados, conforme seguem2:
as políticas públicas com recorte de gênero são as que reconhecem a
No que diz respeito ao acesso à educação, o Brasil já alcançou as diferença de gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam
metas previstas: meninas e mulheres já são maioria em todos os níveis ações diferenciadas dirigidas às mulheres” (SPM, 2012). Esta configuração
de ensino. Entretanto, mesmo tendo havido melhorias nos indicadores, faz com que a mobilização, para dar maior visibilidade a este problema,
a desigualdade das mulheres em relação aos homens ainda persiste no passe a se tornar um compromisso social que os governos devem,
mercado de trabalho, nos rendimentos e na política. A violência doméstica necessariamente, assumir, tomando para si a responsabilidade de
é outro fator de preocupação, na medida em que continua atingindo enfrentar a desigualdades de gênero em suas mais diversas formas de
milhares de mulheres brasileiras.  manifestação.
Entre 2003 e 2011, a População Economicamente Ativa (PEA) feminina Para isso, é imprescindível que se discuta o papel do Estado na definição
cresceu 17,3%, enquanto a PEA masculina aumentou 9,7%. A participação e estruturação das políticas públicas em geral, e, em particular, as de
das mulheres na PEA passou de 44,4%, em 2003, para 46,1%, em 2011. No igualdade de gênero, objeto do presente artigo, com vistas a contribuir
mesmo período, as mulheres aumentaram sua participação na população para a justiça social.
ocupada, passando de 43,0% para 45,4%.
Referimo-nos aqui ao Estado, na perspectiva de Boneti (2011, p. 17),
Diminuíram as diferenças entre os rendimentos do trabalho. Entre como sendo uma instituição não neutra. Ou seja, perpassada por valores
2003 e 2011, o rendimento real médio das mulheres cresceu 24,9%, ideológicos, éticos e culturais que apresenta, organiza, institucionaliza um
variação superior à observada entre os homens. A remuneração média conjunto de regras, normas e leis de interesse social.
das mulheres passou a corresponder a 72,3% da masculina, em 2011,
Entende-se, também, na perspectiva do mesmo autor, as políticas
situação menos desigual que em 2003, quando esta proporção equivalia
públicas como sendo as ações derivadas de um processo de construção
a 70,8%.
social. Ou seja, as ações “resultantes da dinâmica do jogo de forças que
No Paraná, a iniciativa dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio se estabelece no âmbito das relações de poder, constituídas pelos grupos
integra o Movimento Nós Podemos Paraná, coordenado pelo Sistema FIEP econômicos e políticos, classes sociais e organizações da sociedade civil”.
– Federação das Indústrias do Paraná, que, no que diz respeito à Meta 3, Essas relações vão determinar um conjunto de ações que serão atribuídas
apresenta o seguinte panorama3: ao Estado. O que provoca o direcionamento ou redirecionamento de
investimentos e de intervenção administrativa na realidade social (BONETI,
As mulheres, hoje, no Paraná, já são a maioria nas escolas e
2011, p.18).
universidades e, entre os jovens, já possuem maior escolaridade.
Partindo-se dessa perspectiva, pode-se dizer, portanto, que o papel do
2 Disponível em http://www.portalodm.com.br
3 Disponível em htpp://www.fiepr.org.br
Estado, diante das políticas públicas, é, não única, mas, precipuamente, o

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de agente de organização e de institucionalização de decisões surgidas a civis e políticos, mas todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de
partir do debate público, conforme bem lembra Boneti. um Estado. E deste Estado recebem uma carga de direitos (civis e políticos;
sociais, econômicos e culturais) e também deveres.
Essa concepção de Estado e de políticas públicas compatibiliza-se com
o momento histórico e a nova configuração social, perpassada não só A Constituição Federal institui o Estado Democrático de Direito
por interesse de classes, mas também pelos interesses de vários outros destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
segmentos constituintes da sociedade civil. Ou seja, essa concepção liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
desconstrói a ideia funcionalista das políticas públicas pensadas justiça como valores supremos de uma sociedade fundada na harmonia
exclusivamente a partir do ordenamento jurídico e/ou administrativo. social. Estabelece em seu primeiro artigo, o fortalecimento da Federação,
Além disso, ela leva em conta a participação dos integrantes da sociedade formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
civil como sendo agentes definidores das políticas públicas. Federal, declara seus princípios fundamentais e afirma a soberania
popular, além de instituir o princípio da democracia participativa. Com
Tomando de empréstimo as palavras de Boneti (2011, p. 17), na
isso, a sociedade assume um papel de co-responsabilidade na definição
perspectiva acima apresentada, “é impossível se pensar como comumente
de leis e políticas garantidoras dos seus direitos.
se faz, o Estado e a sociedade civil como duas instituições separadas”. Se
assim fosse, “as políticas se apresentariam como se se constituíssem de A Carta Magna traz um capítulo específico que trata dos direitos do
outorgas de direitos atribuídas à sociedade civil pela instituição estatal. Os homem (Direitos e Garantias Fundamentais) reunidos em 5 grupos:
direitos sociais e as políticas públicas, porém, se constituem, na verdade, individuais; coletivos; sociais; de nacionalidade; políticos.Ela passou a
de construções coletivas e sociais”. comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com a
concepção contemporânea de cidadania.
Como resultado de causas estruturais e historicamente construídas ao
longo da vida em sociedade, a complexidade das questões que envolvem Na concepção de Hannah Arendt, a essência dos direitos humanos “é
mulheres, em especial as que se encontram em situação de violência o direito a ter direitos”, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres
e, as causas que desencadeiam essa própria violência, assim como seu humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que
resultado, devem ser objeto de debates. Mas e principalmente de ações requer o acesso a um espaço público comum. Nessa perspectiva, “ser
concretas que devem ser coletivamente pensadas e implementadas. cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante
a lei, é participar no destino da sociedade, votar, ser votado, participar da
Entendendo a violência de gênero como sinônimo de violação dos
riqueza socialmente produzida, ter direito à educação, à saúde, à uma
direitos humanos e com vistas a contribuir de forma mais efetiva para
velhice tranquila” (Hannah Arendt, 2007).
o respeito à dignidade da pessoa humana e, nesta perspectiva, também
no enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres em suas A participação, na visão de Gohn, passou nos anos 1990, a ser vista
mais diversas formas de manifestação, o Estado tem a responsabilidade sob o prisma de um novo paradigma – a “participação cidadã”, baseada
de propor um repertório de ações concretas e efetivas. Para que as ações na universalização dos direitos sociais, na ampliação do conceito de
da política pública para as mulheres sejam estruturadas e implementadas, cidadania e numa nova compreensão sobre o papel e o caráter do Estado.
é imprescindível o esforço conjunto dos governos federal, estadual e A partir disso, na análise da autora, a participação passa a ser concebida
municipais. É, da mesma forma, fundamental que a sociedade civil, em como intervenção social periódica e planejada, ao longo de todo o circuito
especial o movimento de mulheres e os Conselhos Estaduais e Municipais de formulação e implementação nas estratégias de desenvolvimento,
dos Direitos da Mulher, proponham, conheçam e acompanhem a execução transformação e mudança social.
das ações propostas. Essa participação cidadã, na concepção da autora, funda-se numa
concepção democrática radical que objetiva fortalecer a sociedade civil
3. A participação social na garantia dos Direitos das Mulheres no sentido de construir ou apontar caminhos para uma nova realidade
social - sem desigualdades, exclusões de qualquer natureza. Busca-se a
A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 passa a igualdade, mas reconhece-se a diversidade cultural. Há um novo projeto
considerar como cidadãos não somente aqueles detentores dos direitos emancipatório e civilizatório por detrás dessa concepção que tem como

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horizonte a construção de uma sociedade democrática e sem injustiças Mulher integra a estrutura da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e
sociais. Direitos Humanos do Paraná. Tem por finalidade possibilitar a participação
popular, propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção
Nessa perspectiva, com vistas a efetivação da participação social, é
dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas
imprescindível que sejam garantidos os espaços de diálogo entre o Estado
de igualdade de gênero, assim como exercer a orientação normativa e
e a sociedade civil, tais como os conselhos, as conferências, os comitês, os
consultiva sobre os direitos das mulheres no Estado do Paraná.
canais de denúncias, dentre outros.
Ao fazer referência aos conselhos, Gohn (2002, p. 103) diz que eles
3.1.1. Breve histórico da criação do Conselho Estadual da Mulher no Estado do
são importantes, pois são fruto de demandas populares e pressões pela Paraná5
redemocratização do país. Estão inscritos na Constituição de 1988 na
qualidade de “conselhos gestores”, suas estruturas inserem-se em esferas O Conselho Estadual da Mulher foi criado por meio do Decreto n°
públicas e, por força de lei, integram-se com órgãos públicos vinculados 6617/1985, originalmente com a denominação de Conselho Estadual da
ao Poder Executivo. De acordo com a autora, eles diferem dos conselhos Condição Feminina. Sua finalidade é a de “assegurar melhores condições
comunitários, populares ou de fóruns civis não-governamentais, porque à mulher, visando o exercício pleno de seus direitos, sua participação e
estes últimos são compostos exclusivamente de representantes da integração no desenvolvimento econômico, social, político e cultural”.
sociedade civil, cujo poder reside na força da mobilização e da pressão e Assumiu, por meio do Decreto n° 3.030/1997, a denominação de
não possuem assento institucional no poder público. Conselho Estadual da Mulher do Paraná vinculado à Secretaria de Estado
Embora reconheça a incontestável importância dos conselhos no da Justiça e da Cidadania – SEJU, passando, porém, a integrar a estrutura
processo de construção e de efetivação da democracia participativa no organizacional da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania - nível de
Brasil, conforme já exposto, Gohn (2002,p.25) aponta, em seus estudos, o Direção Superior - somente em novembro de 2003, por meio do Decreto
que ela chama de “necessidades e lacunas” e destaca os seguintes pontos: n°. 2.085.
(1) falta uma definição mais precisa das competências e atribuições dos A forma de composição do Conselho e do mandato das Conselheiras,
conselhos gestores; (2) deve-se cuidar da elaboração de instrumentos inicialmente regulamentado no art. 32 do Decreto n° 2085/2003, foi
jurídicos de apoio às suas deliberações; (3) deve haver uma definição mais alterada por meio do Decreto n° 2631/2004, de maneira a permitir uma
precisa do que é participação. recondução desta composição e nomeando efetivamente as componentes
Para que tenham efetividade é necessário, ainda, na visão da autora, o do Conselho Estadual da Mulher do Paraná com mandato de dois (02)
aumento efetivo de recursos públicos nos orçamentos; devem ser paritários anos.
não apenas numericamente, mas também nas condições de acesso e Em 2010, dois novos Decretos foram instituídos: o de n° 7626/2010,
de exercício da participação; deve-se criar algum tipo de pré-requisito que atualizou a composição do Conselho e propôs novos requisitos para
mínimo para que um cidadão se torne conselheiro, principalmente no que a suplência, agora com a participação da sociedade civil, bem como o
diz respeito ao entendimento do espaço que ele vai atuar, dentre outros mandato do Conselho; e o de n° 8940/2010, que nomeou a presidente do
(GOHN, 2002, p. 107). Conselho Estadual da Mulher.
A autora complementa dizendo que “não se trata, em absoluto, de Conforme observado no documento do Ministério Público, a criação e
integrá-los, incorporá-los à teia burocrática. Elas têm o direito de conhecer regulamentação do Conselho foram sempre fundamentadas em Decretos.
esta teia para poderem intervir de forma a exercitarem uma cidadania Isso contraria o texto da Constituição do Estado Paraná que, em seu
ativa e não regulada, outorgada, passiva”. Capítulo VII, artigo 219, define o então Conselho Estadual da Condição
Feminina como órgão governamental instituído por lei com o objetivo de
3.1. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CEDM do Anexo); n° 3.030/1997; n° 604/1999; o n° 7.626/2010; e os arts. 39° ao 46° do Anexo do Decreto 5.558/2012.
5 Extraído do Documento “Análise da Legislação referente à Instituição do Conselho dos Direitos da Mulher do
Criado pela Lei 17.504/20134, o Conselho Estadual dos Direitos da Paraná, elaborado pelo Ministério Público do Paraná, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias
de Justiça dos Direitos Constitucionais e apresentado como parte da programação da Conferência Temática, dentro
4 Com a publicação desta Lei, foram revogados os Decretos: n° 6.617/1985; n° 700/1995 (nos arts. 9° ao 12° do painel “CEMP/PR: história, desafios e perspectivas para sua organização e regulamentação”.

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zelar pelos direitos da mulher propondo estudos, projetos, programas (2) educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica e não
e iniciativas contra a discriminação da mulher, em integração com os lesbofóbica; (3) saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos
demais órgãos do Governo, com estrutura administrativa e dotação e enfrentamento das diferenças geracionais, sociais e étnicas/raciais; (4)
orçamentária. participação das mulheres em espaços de poder e decisão, considerando
a disputa de cargos eletivos, organização de espaços de definição de
Somente em 2013, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher foi,
políticas para as mulheres; (5) enfrentamento de todas as formas de
portanto, regularizado mediante a aprovação da Lei 17.504/13, conforme
violência contra as mulheres, incluindo a discriminação de gênero, etnia/
já mencionado.
raça, orientação sexual promovida pelos veículos de comunicação e de
disseminação da cultura.
3.1.2. Composição do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher Ao final da Conferência foram eleitas 113 representantes paranaenses,
Compõem o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDM 26 sendo: 68 representantes da sociedade civil organizada, 34 dos governos
(vinte e seis) membros e respectivos suplentes, dos quais 50% (cinquenta municipais e 11 do governo estadual, que, na condição de delegadas,
por cento) são representantes do Poder Público e 50% (cinquenta por participaram da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
cento) são representantes da sociedade civil organizada. A Presidência do realizada em Brasília, em dezembro de 2011.
Conselho tem alternância em sua gestão, sendo um mandato presidido por
uma representante do Poder Público e o outro por uma representante da
sociedade civil organizada.A Presidente, a Vice-Presidente e a Secretária- 4. A violência contra as mulheres e as politicas públicas de enfrentamento
Geral do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDM são eleitas A violência contra a mulher constitui-se em um grave problema social
pela maioria qualificada do Conselho. de grandes proporções tanto no Brasil quanto no mundo. Isso se traduz
como uma das principais formas de violação dos direitos humanos da
população feminina, conforme anteriormente apontado.
3.1.3. A 3ª Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres
Esta configuração faz com que a mobilização para dar maior visibilidade
Com o tema “Mulher, Poder e Autonomia Econômica”, foi realizada
a este problema venha se tornando um compromisso social que os
em novembro de 2011 a 3ª Conferência Estadual de Políticas para as
governos devem, necessariamente, assumir. Para isso, devem tomar
Mulheres do Paraná. Deste evento, participaram aproximadamente
para si a responsabilidade de enfrentar e prevenir a violência contra as
500 pessoas, destas 171 eram delegadas governamentais e 235 eram
mulheres em suas mais diversas formas de manifestação, razão porque
delegadas representantes da sociedade civil, além de autoridades,
dedico parte do presente Artigo à esta temática.
convidados e observadores. Dos 399 municípios do Estado do Paraná, 250
(63%) estiveram representados na 3a Conferência6. No Brasil, o conceito de violência contra a mulher, recepcionado pela
Política Nacional, é aquele estabelecido na Convenção Interamericana
Na oportunidade foram aprovadas 142 propostas7, divididas em
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher8 – realizada
cinco eixos temáticos: (1) autonomia econômica e igualdade no mundo
em 1994 na cidade de Belém/PA. Seu teor enfatiza que a violência
do trabalho com inclusão social: direito à terra; direito à moradia;
contra a mulher deve ser compreendida como “qualquer ato ou conduta
desenvolvimento sustentável no meio rural, na floresta e na cidade;
baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
6 SECRETARIA DE JUSTIÇA CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Final da 3a Conferência Estadual de ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
Políticas para as Mulheres. Curitiba:2011
7 Do total de propostas aprovadas na 3ª Conferência, 39 delas são relativas à busca de “autonomia econômica e Dentro deste amplo conceito que envolve, inclusive, a diversidade de
igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social: direito à terra, à moradia e ao desenvolvimento sustentável”; situações associadas às variadas formas de violência praticadas contra
17 são referentes à “educação inclusiva, não sexista, não homofóbica e não lesbofóbica”; 24 propostas referem-
se à “saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e enfrentamento das diferenças geracionais, sociais e as mulheres, a Política Nacional pode ser considerada um importante
étnicas/raciais”; 22 propostas tratam da “participação das mulheres e espaços de poder e decisão, considerando
disputa de cargos eletivos e organização de espaços de definição de políticas para as mulheres”; e 40 propostas
avanço, pois, hoje, as ações de enfrentamento a este tipo de violência não
referem-se ao “enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo a discriminação de
gênero, etnia/raça, orientação sexual promovida pelo veículos de comunicação e de disseminação da cultura” ( 8 Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos estados Americanos, em 06 de junho de 1994, e ratificada
SECRETARIA DE JUSTIÇA CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS. Relatório Final da 3a Conferência Estadual de Políticas pelo Brasil, em 27 de novembro de 1995. Ver mais em http://www.pge.sp.gov.br/centrodedestudos/biblioteca/
para as Mulheres. Curitiba:2011) instrumentos/belem.htm

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Taxas de homicídios femininos (em 100 mil mulheres) por UF. Brasil, 2010*
ficam restritas às áreas de segurança e assistência social, mas abarcam os
diversos setores do Estado que, em ações articuladas, podem combater UF N Taxa pos.   UF n Taxa pos.
com maior rigor a tradicional concepção de desigualdade e discriminação Espírito Santo 171 9,4 1º   Amapá 16 4,8 15º
de gênero e os arcaicos padrões sexistas/machistas que ainda encontram Alagoas 134 8,3 2º   Acre 17 4,7 16º
eco na sociedade brasileira, propagando a violência contra a mulher. Paraná 338 6,3 3º   Sergipe 45 4,2 17º

Além da Convenção de Belém do Pará, o Brasil é, também, signatário Paraíba 117 6,0 4º   Rio Grande Sul 226 4,1 18º

de outras convenções e tratados internacionais, tais como: a Declaração Mato Grosso Sul 74 6,0 5º   Minas Gerais 393 3,9 19º
Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção sobre a Eliminação Pará 225 6,0 6º   Rio Grande Norte 62 3,8 20º
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/ Distrito Federal 78 5,8 7º   Ceará 165 3,7 21º
ONU,1981) e a Convenção Internacional contra o Crime Organizado Bahia 399 5,6 8º   Amazonas 65 3,7 22º
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Mato Grosso 81 5,5 9º   Santa Catarina 112 3,6 23º
Pessoas (Convenção de Palermo, 2000). Pernambuco 249 5,4 10º   Maranhão 114 3,4 24º

Na seara da Justiça este compromisso se traduz com a criação de Tocantins 35 5,1 11º   Rio de Janeiro 272 3,2 25º
mecanismos legais que se concretizam em ações de enfrentamento Goiás 157 5,1 12º   São Paulo 663 3,1 26º
à violência contra a mulher. Um exemplo disso foi a criação da Lei nº. Roraima 11 5,0 13º   Piauí 41 2,6 27º
11340/2006 – Lei Maria da Penha –, principal instrumento legal de Rondônia 37 4,8 14º        
enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres no Brasil, cujo Tabela 1 - Fonte: SIM/SVS/MS * 2010: dados preliminares
objetivo é o de coibir a violência doméstica e familiar e punir o agressor O Mapa da Violência também analisou a taxa de homicídios femininos
na forma da lei. (em 100 mil mulheres) em municípios com mais de 26 mil mulheres e
Dada a importância da temática, a Política Nacional de Enfrentamento à identificou que 7 municípios paranaenses estão entre os 60 primeiros
Violência contra as Mulheres está contemplada em um capítulo específico municípios que mais homicídios. São eles: Piraquara, Araucária, Fazenda
dentro do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Este foi elaborado Rio Grande, Telêmaco Borba, União da Vitória, Foz do Iguaçu e Curitiba.
a partir das propostas deliberadas na I Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, realizada no ano de 2004. 4.1. O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher
Para se ter uma ideia da magnitude do problema, o Caderno O Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, lançado
Complementar 1: Homicídios de mulheres no Brasil, do Mapa da Violência, em 2007, constituiu-se em uma estratégia de gestão, prevendo, a partir
publicado em 20129, - resultado de uma pesquisa que trata da vitimização de ações coordenadas e pactuadas entre os Governos Federal, Estadual
feminina por homicídios no Brasil, com base no Sistema de Informações de e Municipal, o enfrentamento à violência contra as mulheres, no sentido
Mortalidade – SIM, do Ministério da Saúde -, aponta que, no período de de garantir a prevenção e o combate à violência, a assistência e a garantia
1980 a 2010, 91.932 mulheres foram vítimas de homicídio. Só no período de direitos às mulheres. Inicialmente, este Pacto foi estruturado com
de 2000 a 2010, 43.486 mulheres foram assassinadas. Esse estudo aponta base em quatro eixos; em 2011, essa estrutura foi ampliada, passando-
ainda que 40% dos incidentes que originaram as lesões que levaram à se a adotar como eixos estruturantes: (1) garantia e aplicabilidade da Lei
morte da vítima, ocorreram dentro da residência. Maria da Penha; (2) ampliação e fortalecimento da rede de serviços para
No Paraná, a situação não é diferente. O mesmo estudo indica uma mulheres em situação de violência; (3) garantia da segurança cidadã e
elevada taxa de homicídios, o que o coloca na terceira posição dentre acesso à justiça, com foco na mulher encarcerada; (4) garantia dos direitos
os 27 estados brasileiros analisados, conforme demonstrado na tabela sexuais e reprodutivos, enfrentamento à exploração sexual e ao tráfico
abaixo. de mulheres; (5) garantia da autonomia das mulheres em situação de
violência e ampliação de seus direitos.
9 WAISELFISZ, J.Jacobo.Mapa da Violência, Caderno Complementar 1: Homicídio de Mulheres no
Brasil, São Paulo:Instituto Sangari, 2012

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O referido Pacto parte do entendimento de que a violência constitui um Em 26/07/2013, o Governo do Estado do Paraná reiterou o compromisso
fenômeno de caráter multidimensional que requer a implementação de de implementar políticas efetivas de enfrentamento à violência contra
políticas públicas amplas e articuladas nas mais diferentes esferas da vida as mulheres ao repactuar, por meio de Termo de Adesão, o Acordo de
social. Entre elas a educação, o mundo do trabalho, a saúde, a segurança Cooperação para Implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento
pública, a assistência social, a justiça. Destaca-se que, no Paraná, esta à Violência contra as Mulheres.
articulação tem sido feita entre o Governo do Estado, o Tribunal de Justiça, Alinhando aspectos técnicos, sociais, culturais, políticos e conceituais
por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência sobre o assunto, orientando procedimentos, construindo protocolos,
Doméstica e Familiar– CEVID, o Ministério Público, a Defensoria Pública e normas e fluxos capazes de institucionalizar e garantir a legitimidade aos
os Municípios do Estado, além de representação da sociedade civil, por serviços prestados e às políticas implementadas, o Acordo se propôs a
meio do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher. organizar as ações no enfrentamento à violência contra mulheres a partir
Esta conjunção de esforços deve resultar em ações que, simultaneamente, de quatro áreas de atuação, a saber:
desconstruam as desigualdades e combatam as discriminações de gênero, a) consolidação da Política Nacional de Enfrentamento da Violência
interfiram nos padrões sexistas/machistas ainda presentes na sociedade contra as Mulheres e Implementação da Lei Maria da Penha;
brasileira e promovam o empoderamento das mulheres. O Pacto em tela
compreende, assim, não apenas a dimensão do combate aos efeitos da b) proteção dos direitos sexuais e reprodutivos e implementação do
violência contra as mulheres, mas também as dimensões da prevenção, Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da AIDS;
assistência, proteção e garantia dos direitos daquelas em situação de c) combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; e
violência, bem como o combate à impunidade dos agressores.
d) promoção dos direitos humanos das mulheres em situação de
As ações nele propostas fundamentam-se em três premissas: prisão.
(1) a transversalidade de gênero, que visa garantir que as questões de Para isso, criou, por meio do Decreto n° 7554/2013, a Câmara Técnica
violência contra a mulher perpassem as diferentes políticas públicas Estadual de Gestão e Monitoramento do Pacto, a qualconstitui-se em
setoriais; espaço de planejamento e execução das ações, dos avanços e dos
(2) a intersetorialidade, que compreende duas dimensões: a primeira, desafios para a implementação do Pacto Nacional no âmbito estadual e de
envolvendo o estabelecimento de parcerias entre organismos avaliação política do processo. No sentido de dar conta da complexidade
setoriais e atores em cada esfera de governo (ministérios, secretarias, do fenômeno da violência contra a mulher, a Câmara Técnica é marcada
coordenadorias etc.); e a segunda, que requer uma articulação mais pela intersetorialidade, tanto no que se refere à representação de
ampla entre políticas nacionais e locais nas diferentes áreas (saúde, diferentes setores, como à definição de ações que incluam os diferentes
justiça, educação, trabalho, segurança pública etc.); atores sociais envolvidos no enfrentamento do problema. Uma das
competências fundamentais desta Câmara é a constituição, fortalecimento
(3) a capilaridade, que conduz a uma proposta de execução de uma e monitoramento da rede estadual de atendimento às mulheres em
política nacional de enfrentamento à violência contra a mulher até situação de violência.
os níveis de governo.
Em que pese os inegáveis avanços alcançados com a  Lei Maria da
O Estado do Paraná assinou, em novembro de 2010, o Termo de Penha, ainda, assim, de acordo com dados da Secretaria de Políticas
Acordo e Cooperação Federativa para implementação do Pacto Nacional para as Mulheres da Presidência da República, o Brasil apresenta,
de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Esse Acordo, publicado hoje, 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que o coloca
no Diário Oficial da União No 233, Seção 3, de 7 de dezembrode 2010, e em 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime. Isso sem contar
com prazo de vigência de 04 (quatro) anos, tem por objetivo manifestar a os impactos e os custos da violência contra as mulheres em termos de
intenção dos partícipes de estabelecer um regime de colaboração mútua resultados intangíveis,tais como: a saúde reprodutiva, a vida profissional
para execução de ações cooperadas e solidárias visando à implementação e o bem-estar de seus filhos, conforme Estudo divulgado pelo Banco
do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres.

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Interamericano de Desenvolvimento (BID)10. Esses desafios devem ser traduzidos em ações, tais como: avanços
legislativos que permitam alterar as relações de trabalho entre homens
Isso nos dá a dimensão do problema e demonstra a necessidade
e mulheres, já que a dupla jornada de trabalho das mulheres é, sem
imediata de ações públicas que contemplem as dimensões da prevenção,
dúvida, uma das principais responsáveis pelas condições desiguais
da assistência e do combate à violência praticada contra as mulheres.
entre mulheres e homens no mundo do trabalho; estabelecimento de
estratégias que objetivem a autonomia das mulheres; a ampliação dos
5. Considerações finais seus direitos; o acesso à educação, à cultura, à saúde, à segurança e à
justiça; a participação política.
O Estado deve ser instrumento a serviço da dignidade humana e não
o contrário. Falamos aqui a partir das análises e do entendimento das Para finalizar, lembro que Samora Machel, primeiro presidente de
políticas públicas como sendo as ações que nascem do contexto social, Moçambique Independente e ex-presidente da Frente de Liberdade de
mas que passam pela esfera estatal como uma decisão de intervenção Moçambique, ao falar sobre a necessidade da emancipação da mulher,
pública numa determinada realidade social, baseados na análise de durante a realização da Conferência das Mulheres Moçambicanas, em
Boneti, conforme já exposto, cabendo ao Estado, portanto, gerenciar as 1973, destacou que “ a emancipação da mulher não é um ato de caridade,
demandas e os interesses dos diversos agentes. não resulta de uma posição humanitária ou de compaixão. A libertação da
mulher é uma necessidade fundamental da revolução, uma garantia da
Por essas razões, o princípio da dignidade da pessoa humana exige sua continuidade, uma condição de seu triunfo”. Destacou, ainda, que “a
o compromisso do Poder Público e o firme repúdio a toda forma de revolução tem por objetivo essencial a destruição do sistema de exploração,
tratamento degradante do ser humano, tais como a escravidão, a tortura, a construção de uma nova sociedade libertadora das potencialidades do
a perseguição ou o mau trato por razões de gênero, etnia, religião, ser humano e que o reconcilia com o trabalho, com a natureza”. E que “é
orientação sexual ou qualquer outra. dentro desse contexto que surge a questão da emancipação da mulher”.
Quando observa-se os dados que apontam que somente na última Machel era casado com Josina Muthemba, uma guerrilheira do
década foram assassinadas no Brasil mais de 40 mil mulheres; o resultado Destacamento Feminino, criado por ele para envolver as mulheres
do balanço de 2013, da Central de Atendimento à Mulher – Disque moçambicanas na luta pela libertação.
180, serviço prestado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República (SPM-PR)11 -, aponta que os autores das Por óbvio que o presidente Machel se referia, materialmente, à luta
agressões relatadas são, em 81% dos casos, pessoas que têm ou tiveram pela independência de Moçambique do domínio português, mas também,
vínculo afetivo com as vítimas; que em 2011, o Sistema de Informações e fundamentalmente, falava da opressão, da exploração, do poder, da
de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, registrou resistência.
que: 37.717 mulheres, entre 20 e 59 anos, foram vítimas de algum tipo Onde há poder, há resistência, por certo diria Foucault. Passados 41
de violência no Brasil; a maioria das agressões ocorre dentro da própria anos e com todas as inegáveis conquistas no que diz respeito à ampliação
residência (60,4%); o Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude dos direitos, tão bravamente, alcançado pelos movimentos feministas,
no Brasil, revela que mulheres com idade entre 15 e 24 anos foram as pelos movimentos de mulheres; pelo reconhecido avanço em direção à
principais vítimas de homicídio na última década, pode-se ter a ideia da ampliação dos direitos das mulheres consagrados e garantidos na e pela
gravidade do problemae os desafios para o seu enfrentamento. Constituição Federal de 1988, não se pode deixar de perceber o quanto
o discurso feito por Machel, durante aquela Conferência, ainda é atual.

10 O estudo mostra a violência doméstica afetando importantes resultados na saúde das crianças cujas mães
sofreram violência. Também apresenta evidências que apontam que a educação e a idade das mulheres podem
reduzir o efeito negativo da violência doméstica nos resultados de saúde dos seus filhos, dentre outras coisas.
Demonstra que as próprias vítimas da violência apresentam níveis mais baixos de hemoglobina e uma maior
incidência de anemia. Disponível em inglês  no site do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID  http://
www.iadb.org/ ou em pdf: Causal Estimates of Intangible Costs of violence against women in Latin America and the
Caribbean, por Jorge M. Agüero (BID, 2013).
11 Disponível em www.spm.gov.br.

348 349
ESTADO, SOCIEDADE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES

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350
Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel

IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE


OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

Giovanna Bonilha MILANO1


José Antônio Peres GEDIEL2

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em


05 de outubro de 1988, encerra o ciclo ditatorial iniciado em 1964
e contém princípios que visam à superação de problemas há muitos
vividos pela sociedade brasileira. Entre eles, pode-se citar, o racismo e a
discriminação racial, principalmente em relação aos negros descendentes
de trabalhadores africanos submetidos ao regime de escravidão.
Esse propósito constitucional se traduz em regras que dão prioridade
aos direitos fundamentais de cunho individual e social previstos nos
incisos do artigo 5º, dispostos no Título II dessa Constituição, todos de
observância obrigatória pelo Estado, pela sociedade e suas instituições, e
pelos indivíduos.
Nessa perspectiva, a Constituição busca enfrentar, com instrumentos
normativos, questões sociais que resultam em opressões específicas e
desigualdades estruturais e que dificultam a efetivação da igualdade
material e a plena fruição dos direitos fundamentais. Assim, a proibição
e a busca de superação de qualquer forma de preconceito - seja ele de
origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação -
encontra-se entre os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil (art. 3º, IV), e o racismo é previsto como crime inafiançável (art. 5º,
XLII).
A Constituição de 1988 provoca, nessa matéria, uma verdadeira ruptura
com as Constituições anteriores ao expressar com clareza a existência
dessas questões, ao combater o racismo e a discriminação e ao articular
a igualdade racial com os demais objetivos da República com os direitos
fundamentais individuais e coletivos, econômicos sociais e culturais.
O caráter compromissório da Constituição já se fazia antever nas
propostas retiradas dos movimentos sociais, no que toca à igualdade
racial, elaboradas pelos movimentos negros, conforme registros da

1 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Professora de Direito Civil da Universidade
Positivo.
2 Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná.

351
IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

Assembleia Constituinte: 1988, com relação aos direitos fundamentais e aos diferentes sujeitos
1-Insere, onde couber, no Capítulo I (Dos Direitos Individuais), do Título II
destinatários desses direitos, na sociedade contemporânea:
(Dos Direitos e Liberdades Fundamentais), os seguintes dispositivos:
Art. Todos, homens e mulheres são iguais perante a lei que punirá Com efeito, torna-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica,
como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito,
humanos estabelecidos nesta Constituição. que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica,
Parágrafo Único — É considerado forma de discriminação subestimar, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos,
estereotipar ou degradar grupos étnicos raciais ou de cor, ou pessoas a exigem uma resposta específica e diferenciada. Os povos indígenas, as
eles pertencentes por palavras, imagens e representações através de mulheres, as crianças, as populações afrodescendentes, os migrantes,
qualquer meio de comunicação. as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem
2- Acrescente, onde couber, no Título X (Disposições Transitórias), o ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao
seguinte artigo: lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental,
Art. Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e a à diversidade, o
comunidades negras remanescentes de Quilombos, devendo o Estado que lhes assegura um tratamento especial. [...] À luz de uma interpretação
emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem como evolutiva e dinâmica, a Corte tem reconhecido aos povos indígenas e
documentos referentes à história dos Quilombos no Brasil.3 às comunidades integradas por descendentes de escravos negros (em
tudo similares aos remanescentes de quilombo brasileiros) o direito à
Para a Constituição de 1988, a concretização da igualdade racial tem propriedade coletiva da terra, como uma tradição comunitária e como um
como ponto de partida a proibição de todas as formas de preconceito direito fundamental à sua cultura, à sua vida espiritual, à sua integridade e
à sua sobrevivência econômica. Tem ainda realçado que para estes povos a
e discriminação, mas exige o compromisso de, por parte do Estado e da relação com a terra não é somente uma questão de possessão e produção,
sociedade, ampliar as políticas públicas e as estratégias,para permitir mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente,
o acesso diferenciado dos negros à cidadania plena e aos direitos inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações
fundamentais, como saúde, educação, trabalho, moradia e terra. futuras.5

Em virtude da indissociabilidade e interpenetração dos conteúdos de Sem essa compreensão do caráter compromissório e finalístíco
todas as dimensões dos direitos fundamentais, a efetivação da igualdade da Constituição, a igualdade racial, a identidade cultural dos sujeitos
racial requer, também, o acesso a bens de cunho imaterial e material. Isso discriminados e o direito de acesso aos bens socialmente produzidos,
se traduz, no caso dos quilombolas -portadores de uma identidade não ficam reduzidos ou são ineficazes. No que se refere especificamente às
somente cultural mas também econômica e socioambiental - no direito terras quilombolas, o texto sofreu inúmeras modificações e foi aprovado
ao acesso e manutenção da terra e de seus modos de vida. com um conteúdo que dificulta sua conexão com os direitos fundamentais
e sugere interpretações de cunho meramente histórico ou patrimonial,
Débora Duprat afirma o caráter diferenciado da Constituição brasileira
como se lê no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
sobre esse tema:
aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
A Constituição brasileira, na linha do direito internacional, rompe a
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
presunção positivista de um mundo preexistente e fixo, assumindo que Estado emitir-lhes os títulos respectivos6.
fazer, criar e viver se dão de formas diferentes em cada cultura, e que a
compreensão do mundo depende da linguagem do grupo. Nesse cenário,
Além desse dispositivo, os aspectos culturais das comunidades
a Constituição reconhece, expressamente, direitos específicos a índios e quilombolas são tratados no artigo 216, § 5º, Seção II, Capítulo III, Título
quilombolas, em especial seus territórios, mas não só a eles. Também são VIII, que se refere ao tombamento dos documentos referentes à história
destinatários de direitos específicos os demais grupos que tenham formas
próprias de expressão de viver, criar e fazer.4 5 BRASIL. Procuradoria Geral da República. Do Parecer na ADI nº 3.239 da lavra do Procurador Regional da República
Daniel Sarmento e da Professora Flávia Piovesan, no intuito de contribuir para o julgamento do tema veiculado na
mencionada ação direta de inconstitucionalidade. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/
Nessa mesma linha de entendimento, situa-se a reflexão de Flávia consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2227157.
6 Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
Piovesan, ao explicitar a mudança operada na Constituição Federal de a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. BRASIL, Constituição da República
Federativa de 1988 — Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 68. É possível citar alguns outros países
3 BRASIL: Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 1987. Disponível em www.senado.gov.br. p. 2865. nos quais também houve o reconhecimento de direitos territoriais a estes sujeitos, com destaque para a Colômbia
4 DUPRAT, Deborah. O Direito sob o Marco da Plurietnicidade/Multiculturalidade. In: RAMOS, Alcida Rita (org.) (Constituição Política de 1991, Art. 55); Nicarágua (Lei n.º445/2002) e Equador (Constituição Política de 1998, Art.
Constituições Nacionais e Povos Indígenas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 232-233. 83).

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IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

dos quilombos no Brasil7. Mesmo levando em consideração que esse poder está efetivamente
expresso em uma forma legal, ou nessa linguagem de poder, existem
Conforme apontado anteriormente,o tratamento da matéria referente enormes dificuldades na implementação de arranjos legais dessa ordem,
às terras quilombolas destoa do tratamento adotado em relação aos especialmente nas sociedades autoritárias e naquelas que se fundam
no colonialismo e no escravismo, como é o caso do Brasil. Nos últimos
fundamentos da República e aos direitos fundamentais, como expõe Ilka quinze anos, desde a promulgação da Constituição Federal, ações isoladas
Boaventura Leite,ao criticar a expressão “remanescentes das comunidades e relativamente dispersas prevaleceram, com foco em fatores étnicos,
de quilombos”.Segundo a autora,esta terminologia reduz o alcance de mas sob a égide de outras políticas governamentais, tais como as políticas
aplicação do texto constitucional, tornando-o restritivo e impedindo-o de agrárias e as políticas de educação, saúde, moradia e segurança alimentar.10
servir para reparar o processo de cidadania incompleto, que incluiria uma
Alfredo Wagner também indica outros obstáculos ao reconhecimento
diversidade de situações relacionadas aos negros, para restringir-se a uma
da titularidade das terras aos quilombolas e a outros povos e comunidades,
concepção de cultura imobilizada, estanque e excessivamente vinculada a
como a fragmentação e inadequação, ou o caráter muito recente das
um fenômeno pretérito8.
estruturas administrativas, obstáculos que aproximam, em certa medida,
A superação da visão imobilista, falsamente comprometida com a a situação pós Constituição de 1988 com o período anterior, no que diz
recuperação do caráter histórico das comunidades quilombolas, requer respeito à titulação de terras tradicionalmente ocupadas, especialmente
a compreensão da permanência dessas comunidades e sua inserção as terras indígenas.
na sociedade brasileira como destinatárias dos direitos fundamentais e
Além de todos esses empecilhos à aplicação do artigo 68 do ADCT,
humanos, tal qual aponta Alfredo Wagner:
somente em 1995 foi aprovado o primeiro ato administrativo normativo
O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento
destinado ao tratamento da questão territorial quilombola: a Portaria
da ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações n.º25 editada pela Fundação Cultural Palmares11, que contém normas
e práticas dos próprios agentes sociais que viveram e construíram tais procedimentais para demarcação e titulação das áreas de terras ocupadas
situações em meio a antagonismos e violências extremas. A meu ver, o por comunidades quilombolas12.
ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios
agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas com Nesse mesmo ano, a Portaria n. º307/9513 foi editada pelo Instituto
os grupos sociais e as agências com que interagem. Esse dado de como Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA -, estabelecendo os
os grupos sociais chamados ‘remanescentes’ se definem é elementar, procedimentos de medição, demarcação e titulação das comunidades
porquanto foi por essa via que se construiu e afirmou a identidade coletiva.9 quilombolas localizadas em áreas públicas federais, além dispor sobre a
Além das controvérsias e ambiguidades intrínsecas ao processo de criação do Projeto Especial Quilombola. Essa Portaria foi revogada pela
elaboração constituinte que marcaram a aprovação do artigo 68 do ADCT, décima primeira edição da Medida Provisória n.º 1911/99,que delegou
o texto final imprimiu caráter normativo a um conjunto de demandas e ao Ministério da Cultura a competência para realizar as titulações dos
tem enfrentado várias espécies de dificuldades em sua implementação: quilombos.
Essas alterações de atribuição de competência administrativa nessa
matéria comprovam as observações de Alfredo Wagner, no que tange
7 Art 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
a atuação do Estado brasileiro no reconhecimento e regularização das
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira nos quais se incluem: 10. Even taking into account that power is effectively expressed under a legal form or that language of power
is the law, there are enormous difficulties in the implementation of legal arrangements of this order, especially in
I- as formas de expressão; II- modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; authoritarian societies and those with colonial and slaveholding foundations, such as in the case of Brazil. Over the
IV — as obras, objetos,documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais past fifteen year, since the promulgation of the Federal Constitution, isolated and relatively dispersed actions have
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico prevailed, which focus on ethnic factors but under the aegis of other government policies, such as agrarian policies
e científico. (...) and the policies of education, health, housing, and food security. Texto traduzido pelos autores. P. 34.
§5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos 11 Refere-se à Portaria n.º 25, datada de 15 de agosto de 1995 e editada pela Fundação Cultural Palmares
quilombos. (...) BRASIL, Constituição da República Federativa de 1988 —Art. 216. vinculada ao Ministério da Cultura.
8 LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. p. Artigo publicado no sítio 12 Para o aprofundamento sobre o processo de consolidação do marco jurídico de reconhecimento dos territórios
eletrônico do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas — NUER/UFSC. Disponível no endereço quilombolas, consultar: MILANO, Giovanna Bonilha. Território, Cultura e Propriedade Privada: direitos territoriais
http://www.nuer.ufsc.br/artigos/osquilombos.htm, Acesso em 07/10/2010. quilombolas no Brasil. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná,
9 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). 2011.
Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 67-68. 13 Corresponde à Portaria n.º307 de 22 de novembro de 1995, editada pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária — INCRA.
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IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

terras quilombolas. Em sentido contrário, Marcelo Beckhausen argumenta que a expressão


“estejam ocupando”, utilizada pelo artigo 68 do ADCT/CF, não excluiu, sob
Em 2000, doze anos após a promulgação da Constituição Federal, a
nenhuma interpretação, àquelas comunidades que foram submetidas a
Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, realizou
um processo de espoliação de suas terras e compulsoriamente tiveram
inúmeras titulações de territórios quilombolas,mas apenas em áreas não
de efetuar a desocupação desses espaços, porque tal direito quilombola
tituladas classificadas como terras devolutas da União ou dos Estados.
diz respeito justamente a processos de ocupação territorial constituídos
Sem, contudo, realizar qualquer desapropriação de áreas privadas,
a partir da resistência coletiva e da construção identitária moldada nos
anulação de títulos, ou desocupação nas áreas afetadas. Conforme
conflitos travados historicamente e que encontram na luta pela terra um
avaliação apresentada pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, o resultado
fator relevante de disputa17. Assim, a comprovação de permanência nas
dessas medidas foi o acirramento dos conflitos em quase todas as
terras se mostra inconstitucional ao restringir direitos constitucionalmente
comunidades “beneficiadas”, ensejando posterior intervenção do INCRA
assegurados.
para o cumprimento das desapropriações e assentamentos devidos14.
Walter Claudius Rothenburg ataca o conteúdo do Decreto, nos seguintes
Com a edição do Decreto Federal n.º 3.912/2001, foi ratificada a
termos:
competência da Fundação Cultural Palmares para atuar em todo o
processo administrativo de identificação e titulação dos remanescentes O equívoco no decreto aqui é evidente e não consegue salvar-se nem com
das comunidades de quilombos, e se estabeleceram restrições às hipóteses a melhor das boas vontades. Do ponto de vista histórico, sustenta-se a
de aplicação do artigo constitucional.Segundo o artigo 1º, Parágrafo formação de quilombos ainda após a abolição formal da escravatura, por
único, do referido Decreto “só pode ser reconhecida a propriedade sobre (agora) ex-escravos (e talvez não apenas por estes) que não tinham para
onde ir ou não desejavam ir para outro lugar. Então as terras em questão
as terras que: I — eram ocupadas por quilombos em 1888, e II — estavam podem ter sido ocupadas por quilombolas depois de 1888.
ocupadas por remanescentes de comunidades dos quilombos em 5 de
outubro de 1988”15. Ademais, várias razões poderiam levar a que terras de quilombos se
Manifestamente inconstitucional, o marco regulatório proposto pelo encontrassem, em 1888, ocasionalmente desocupadas. Imagine-se um
Governo Federal acabava por impor às comunidades remanescentes de quilombo anterior a 1888 que, por violência de latifundiários da região,
quilombos critérios de temporalidade absolutamente incongruentes com houvesse sido desocupado temporariamente em 1888 mas voltasse a
as dinâmicas de ocupação territorial experimentadas, historicamente, ser ocupada logo em seguida (digamos, em 1889), quando a violência
por estes sujeitos. Isto porque adotou, como exigências normativas para cessasse. Então as terras em questão podem não ter estado ocupadas
comprovação da ocupação, duas datas arbitrárias, correspondentes por quilombolas em 188818.
a mudanças jurídicas do Estado brasileiro, a abolição da escravidão e a Como consequência do tratamento jurídico restritivo dispensado
promulgação constitucional. aos territórios quilombolas, por meio do Decreto 3.912/2001, deu-se a
Esse mesmo argumento, absolutamente inconstitucional, que não estagnação completa no processo de regularização fundiária das áreas,
encontra qualquer ponto de referência no artigo 68 do ADCT/CF, foi fato perceptível pela ausência absoluta de titulações no período de
estranhamente retomado no voto do Ministro Antonio Cezar Peluso do vigência do instrumento. Tal situação prolongou-se até o ano de 2003,
Supremo Tribunal Federal16. com a inauguração de um novo marco jurídico, o Decreto Federal n.º
4.887/03.
Destaque-se que a eliminação das exigências temporais para ocupação
14 Os dados disponíveis no sítio eletrônico da Comissão Pró-Índio de São Paulo informam que dez das doze das terras e, sobretudo, a conceituação dos sujeitos quilombolas,
comunidades “beneficiadas” nesse “pacote” de titulações, realizado pela Fundação Cultural Palmares, no ano
2000, ainda sofrem com conflitos de terras e não têm acesso livre aos recursos naturais dos territórios que ocupam. destinatários da norma, em consonância com as advertências
Disponível em http://www.cpisp.org.br/htm/leis/legislacao_federal.aspx?LinkID=54 Acesso em 25/10/2010.
15 BRASIL. Decreto n.º3.921, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta as disposições relativas ao processo 17 BECKHAUSEN, Marcelo A inconstitucionalidade do Decreto 3912, de 10 de setembro de 2001. p.22-23 In
administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a DUPRAT, Deborah. (Org.) Pareceres Jurídicos — Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais. Manaus: UEA,
delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. 2007.
16 BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239. Relator Ministro Cezar 18 ROTHENBURG, Walter Claudius. O processo administrativo relativo às terras de quilombos: análise do Decreto
Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&pro n° 3.912, de 10 de setembro de 2001. In Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão pró
cesso=3239. Índio de São Paulo, 2001. p. 18-19.

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IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

antropológicas, com os critérios dispostos na Convenção n. º169 da inclusão ou exclusão dos grupos, em relação à determinada classificação
OIT, alinha o marco normativo brasileiro e com a dinâmica da realidade para fins de políticas públicas que favoreçam a efetivação de direitos
concreta, que sustenta a aplicação do artigo constitucional. fundamentais. Isso significa, em outras palavras, que “nenhum estado ou
grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou
Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, tribal que como tal ele próprio se reconheça”22.
para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios
de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações A validade jurídica atribuída ao autorreconhecimento, pela Convenção
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada 169 da OIT, altera o norte não só do direito de acesso à terra de povos,
com a resistência à opressão histórica sofrida comunidades e grupos sociais, mas toda a condução das políticas de
igualdade racial e de afirmação de pluralismo.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes
das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição Dalmo Dallari aponta a necessidade de se integrar, efetivamente,
da própria comunidade19. a Convenção nº 169 da OIT ao direito brasileiro e indica elementos
doutrinários para sua integração:
As questões dos sujeitos beneficiários das políticas públicas de
afirmação de direitos territoriais são reflexo e se refletem sobre a Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização
sociedade e as instituições estatais. Mas podem ser superadas se o Estado Internacional do Trabalho, que também integra a ordem jurídica positiva
brasileiro, em especial o Poder Judiciário, levar a sério as disposições brasileira e determina que sejam garantidos os direitos dos povos “cujas
contidas tanto no Decreto 4.887/2003, quanto na Convenção 169, da condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores
da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos. [...] Além
Organização Internacional do Trabalho - OIT20 - aprovada, em 1989, que
dessa base legal para o decreto regulamentador, o Pacto Internacional
trata de diversos aspectos dos direitos dos povos, como ressalta Alfredo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que integra a legislação
Wagner: brasileira desde 1992, determina que os Estados signatários, entre os
quais o Brasil, adotem todas as providências necessárias para a eficácia
O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma daqueles direitos. Soma-se a isso a adesão do Brasil à Convenção 169
ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios da Organização Internacional do Trabalho, que também integra a ordem
sujeitos se autor-representam e quais os critérios políticos organizativos jurídica positiva brasileira e determina que sejam garantidos os direitos
que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa dos povos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de
identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles outros setores da coletividade nacional”, como é o caso dos quilombos. E
construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não foi justamente para a garantia efetiva dos direitos individuais e sociais dos
necessariamente aqueles que são produtos de classificações externas, quilombolas que o governo federal editou o decreto n 4887, de 2003, que
muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da atividade deve ter aplicação imediata, garantindo-se a supremacia e a eficácia da
coletiva e das categorias sobre as quais ela se apoia.”21 Constituição.23

Destaque-se que essa Convenção foi incorporada ao ordenamento Apesar da fragmentação e imobilismo administrativo assinalados por
jurídico brasileiro no ano de 2004 e deslocou o eixo da discussão, ao utilizar Alfredo Wagner, o Governo Federal altera o quadro normativo com a
a autoidentidade dos povos como critério fundamental na delimitação da edição do Decreto 4.887, em 2003, antevendo a ratificação da Convenção
19 BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para
nº 169 da OIT em 2004, e estabelecendo o retorno da competência para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
20 Em que pese a inquestionável relevância desse dispositivo internacional para o tratamento jurídico relativo
terras de remanescentes de comunidades de quilombos ao Ministério
aos povos indígenas e tribais, não é possível deixar de pontuar o fato da iniciativa de sua edição estar vinculada à do Desenvolvimento Agrário — por meio do INCRA. Caberá ao Ministério
um organismo internacional que se ocupa originalmente com as relações de trabalho na sociedade industrial.Criada
em 1919, a Organização Internacional do Trabalho corresponde a uma Agência do Sistema das Nações Unidas e da Cultura e à Fundação Cultural Palmares acompanhar os processos e
possui como objetivos estratégicos: “formular normas internacionais do trabalho; promover o desenvolvimento e
a interação das organizações de empregadores e de trabalhadores e prestar cooperação técnica principalmente 22 Convenção n.º169 sobre os povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à OIT
nas áreas de formação e reabilitação profissional; políticas e programas de emprego e empreendedorismo; sobre povos indígenas e tribais. 2ª ed. Brasília: OIT, 2005. p. 11. A Convenção refere-se explicitamente ao critério do
administração do trabalho; direito e relações do trabalho; condições de trabalho; desenvolvimento empresarial; autorreconhecimento em seu artigo 1º: “2. A autoidentificação como indígenas ou tribais deverá ser considerada
cooperativas; previdência social; estatísticas e segurança e saúde ocupacional”.Cf. dados do sítio oficial da OIT no como critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.”
Brasil. Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/inst/fund/mandato/index.php Acesso em 22/10/2010. 23 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Orgs); LEITE, Eliane Cantarino O ‘Dwuer. Territórios quilombolas e
21 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). conflitos. Cadernos de debates Nova Cartografia Social, vol. 01, nº 02. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da
Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 67-68. Amazônia / UEA Edições, 2010. p. 313-314.

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OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

intervir, nos casos em que houver contestação ao procedimento, por meio da adoção dos parâmetros de territorialidade a serem definidos pelos
de subsídio técnico, resultou em um avanço favorável aos direitos das próprios quilombolas27.
comunidades quilombolas24. As alegações do Partido da Frente Liberal atacam os dois pilares centrais
No que diz respeito à conceituação das terras que devem ser tituladas, que fundamentam constitucionalmente a garantia dos direitos territoriais
abrangeu-se, corretamente, não apenas o local de moradia dos membros das comunidades quilombolas, os quais se referem ao reconhecimento
da comunidade, mas todo o espaço utilizado para a “garantia de sua dos sujeitos destinatários da norma, pela autoidentificação e à garantia
reprodução física, social, econômica e cultural”, determinando-se a da propriedade do território que ocupam, como condição sine qua non de
demarcação, a partir dos critérios de territorialidade indicados pelos sobrevivência de toda a comunidade.
próprios sujeitos quilombolas25. Essa argumentação do autor, além de sugerir que os sujeitos de
Em relação a forma de titulação da terra em favor dessas comunidades, direito legitimados constitucionalmente corresponderiam apenas aos
determina-se a emissão de títulos coletivos, pró-indivisos, gravados das “remanescentes” e não aos “descendentes” de quilombos, sustenta que o
cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, em objeto da titulação deve ser “a área cuja propriedade deve ser reconhecida
nome das comunidades que deverão estar devidamente representadas constitui apenas e tão-somente o território em que, comprovadamente,
por uma associação. durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formaram”28.
Diante da possibilidade da alteração de uma interpretação favorável às A partir de 2007, outras ações contestatórias promovidas por setores
comunidades quilombolas, interpretação essa baseada nos instrumentos conservadores tornaram-se ainda mais acirradas, diversificando seus
normativos recém reeditados e aprovados, novas investidas foram fundamentos, ao apontar a titulação dos territórios quilombolas como
feitas para desconstruir qualquer avanço nessa matéria. Sendo a mais ameaça à salvaguarda da segurança jurídica e ao direito de propriedade.
representativa, o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade Ressalte-se que, no Estado do Paraná, a Ação Ordinária nº
nº 3.239, pelo Partido da Frente Liberal (PFL)26, no dia 25 de agosto de 2008.70.00.000158-3, promovida em 07/01/2008, volta-se contra o
2004, em face do decreto nº 4.887/03, com pedido de concessão de processo de desapropriação da área conhecida como Invernada Paiol
medida cautelar para suspensão imediata da eficácia do instrumento, sob de Telha ou Imóvel Fundão, situado no município de Reserva do Iguaçu,
a alegação de existência de risco de dano iminente à segurança jurídica. comarca de Pinhão, hoje destinado à agricultura pela Cooperativa Agrária
Dentre os argumentos apresentados pelo autor, merecem destaque, Agroindustrial29.
neste contexto, àqueles que ilustram mais significativamente o Parte desse imóvel foi objeto de doação a ex-escravos libertos, pela Sra.
campo de disputas e interesses que orbitam em torno da categoria Balbina Ferreira de Siqueira, no ano de 1860. A partilha em que constava
política “quilombo”, quais sejam: a impossibilidade de realização de essa doação não foi regularizada pelos donatários nos moldes exigidos
desapropriações de terras particulares pelo INCRA; a ausência de pela Lei de Terras de 1850. Em 1875, Pedro Lustosa Siqueira incorpora,
legitimidade na utilização do critério de autoatribuição para definição
dos sujeitos destinatários da norma; o descabimento da caracterização 27 Além destes pontos estruturais, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239-9 questiona também a
legitimidade do Decreto n.º4.887/2003, na medida em que tal matéria constitucional só poderia ser regulamentada
das terras quilombolas de forma demasiadamente ampla; a inidoneidade por instrumento legislativo e não por decreto presidencial. Diz o texto da ADIN: “(...) O texto constitucional dá
aos decretos e regulamentos, segundo o disposto no art. 84, IV, da Constituição a função de fiel executar as leis,
24 Art. 3º: Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização conferindo-lhe, portanto, natureza de instrumento normativo secundário, que tem sua validade dependente da
e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras lei formal. Ao dispensar a mediação do instrumento legislativo e dispor ex novo, o ato normativo editado pelo
ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente Presidente da República invade esfera reservada à lei, incorrendo em manifesta inconstitucionalidade.” Disponível
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (...) Art. 5º: Compete ao Ministério da Cultura, por meio da em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&processo=3239.
Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações Acesso em 28/10/2010. Não assiste razão a tais alegações, todavia, uma vez que o artigo 68 do ADCT versa
de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades sobre direitos fundamentais e consequentemente é dotado de autoaplicabilidade, inexistindo a necessidade de
dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de mediação legislativa para sua aplicação. O Decreto n.º4.887/2003 cumpre, nessa perspectiva, apenas a função de
identificação e reconhecimento previsto neste Decreto. BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003. operacionalizar e estabelecer as regras e procedimentos para sua concretização pelo Poder Público.
28 Cf. Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239-9, ajuizada em 25 de agosto de 2004.
25 Art. 2º, §3º: Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de
p. 11 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&proc
territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à esso=3239 Acesso em 20/10/2009. Tal ADIN permanece em trâmite junto ao Supremo Tribunal Federal – STF –
comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. BRASIL. Decreto aguardando data para julgamento.
nº4887, de 20 de novembro de 2003. 29 ITCG. Instituto de Terras, Cartografia e Geociências. Terra e Cidadania: Terras e territórios quilombolas. Grupo
26 No ano de 2007, o Partido da Frente Liberal (PFL) alterou a denominação de sua legenda para Democratas de trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005-2008. Curitiba: ITCG, 2008. p.92-93.
(DEM).

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OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

a título de usucapião, 5.712 hectares, dos 8.700 hectares originais, mas A baixa prioridade das titulações quilombolas na agenda governamental
essa titulação foi contestada judicialmente, na década de 1940, pelos também pode ser atestada na avaliação da execução orçamentária para
herdeiros dos donatários que remanesceram na área. Na década de 1960, esta questão. Segundo dados apresentados pelo Instituto de Estudos
esses remanescentes começaram a ser expulsos por grileiros, jagunços e Socioeconômicos — INESC —, o maior programa destinado a esse setor
pistoleiros, com aval de autoridades locais. da população corresponde ao “Programa Brasil Quilombola” (Decreto
n.º 6.261/2007), que prevê a Agenda Social Quilombola (ASQ) e envolve
Na década de 1970, alguns moradores ainda resistiam na área, mas
uma série de atores institucionais para sua execução, como a Casa Civil
o Estado do Paraná desapropriou 10 (dez) mil hectares de terra para a
da Presidência da República (CC/PR); o Ministério da Cultura (MinC);
instalação de uma colônia de imigrantes, que se organizou sob forma
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); o
da atual Cooperativa Agrária Agroindustrial, acirrando o conflito. Nesse
Ministério de Minas e Energia (MME); o Ministério da Integração Nacional
mesmo período, ocorreram novas expulsões e violências contra os
(MIN); o Ministério dos Transportes (MT); e Ministério das Cidades (MCID).
descendentes dos donatários.
A fragmentação administrativa e o desconhecimento da matéria pelos
Na década de 1990, alguns dos membros da comunidade Paiol
órgãos da Administração Pública, antes apontada por Alfredo Wagner,
de Telha, que se encontravam acampados próximo ao imóvel, foram
é potencializada baixa realização orçamentária na implementação de
deslocadas para o assentamento Vila Socorro. Outra parte permaneceu
políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas, previstas no
acampada próximo ao imóvel, e os dois outros grupos pertencentes a essa
Programa Brasil Quilombola.Nos anos de 2008 e 2009, o valor líquido
comunidade se estabeleceram nas periferias das cidades de Guarapuava
utilizado não ultrapassou a marca dos 24% em relação ao orçamento
e Pinhão.
autorizado30. Tendência que permeia o conjunto do orçamento de políticas
A imprecisão dos dados da área objeto da doação e da ocupação das para Igualdade Racial e combate ao racismo, previstos para o quadriênio
famílias descendentes dos donatários gerou, ao longo do século XIX, 2008-201131.
conflitos fundiários entre descendentes da família da doadora e dos
Essa discrepância entre o recurso disponível para realização das
donatários. No início do século XX, esse conflito aumentou pela pretensão
políticas e sua utilização real torna-se mais alarmante na avaliação dos
de fazendeiros ocuparem parte da área. E, finalmente, na segunda
resultados obtidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
metade do século XX, o conflito incluiu a presença do Estado com projetos
e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
de colonização e desenvolvimento, que não levaram em consideração
que lograram aplicar apenas 13,26% do recurso autorizado, em 2008, e
a ocupação das famílias descendentes dos ex-escravos libertos que lá
15,02%, no ano de 200932.
viviam.
Nesse quadro de mau aproveitamento orçamentário, o fator de
No Paraná, os autores da Ação Ordinária 2008.70.00.00158-3
maior peso tem sido a não utilização adequada da rubrica destinada
também promoveram a arguição de inconstitucionalidade nº 5005067-
à “indenização aos ocupantes de terras demarcadas e tituladas aos
52.2013.404.0000/TRF 4ª Região, em 14/03/2013, com caráter prejudicial
remanescentes de quilombos”, integralmente devolvida ao Tesouro
de mérito, questionando a constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003.
Nacional no ano de 2008, totalizando R$ 33, 672 milhões, e aproveitada
Em 28/11/2013, foram realizados os julgamentos da presente arguição, em 6,52% de sua disponibilidade, em 2009. Também os gastos destinados
conduzidos pela Relatora Des. Federal Marga Inge Barth Tessler, havendo ao “reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de remanescentes
pedido de vista. O julgamento retomado em 19/12/2013 resultou na de quilombos” obtiveram índices de aproveitamento de 55,73%, em 2008
rejeição da presente arguição, por maioria de votos.
30 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento
Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/
Esse resultado parcial favorável à constitucionalidade do Decreto publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010.
não afetou o curso da ação direta de inconstitucionalidade, perante o 31 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º179. Novembro de 2010. “O
orçamento das políticas federais de promoção da igualdade racial e combate ao racismo: baixa prioridade e
Supremo Tribunal Federal, que permanece aguardando o prosseguimento execução ”. p. 4-5. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20
do julgamento. -%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 08/06/2014.
32 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de 2010. “Orçamento
Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/
publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010.

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OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

— de um montante de R$ 7,4 milhões e 33,46% dos R$10, 287 milhões CRQ PORTO VELHO Adrianópolis Bocaiuva Sul R 15 66
aprovados para o exercício de 200933. CRQ SETE BARRAS Adrianópolis Bocaiuva Sul R 18 73
Por certo, esses números apresentados não correspondem à ausência CRQ CÓRREGO DAS MOÇAS:
Adrianópolis Bocaiuva Sul R 14 49
de demandas para titulação de áreas quilombolas, as quais totalizam Sede
inúmeros processos administrativos em trâmite nas Superintendências CRQ CÓRREGO DAS MOÇAS:
Regionais do INCRA de todo o país34. No período compreendido entre Adrianópolis Bocaiuva Sul R 6 19
Córrego Malaquias
janeiro de 2008 e junho de 2010, registraram-se 24 titulações de territórios CRQ SÃO JOÃO  Adrianópolis Bocaiuva Sul R 17 62
quilombolas, compreendendo 40.815,7673 hectares e abrangendo CRQ CÓRREGO DO FRANCO Adrianópolis Bocaiuva Sul R 70 124
um total de 1.591 famílias beneficiadas. Nesse conjunto de titulações,
CRQ ESTREITINHO Adrianópolis Bocaiuva Sul R 12 33
todavia, apenas duas contaram com a expedição dos títulos pelo INCRA,
CRQ TRÊS CANAIS Adrianópolis Bocaiuva Sul R 4 13
sendo as vinte e duas titulações restantes realizadas pelos institutos de
CNT DO BAIRRO DOS ROQUE Adrianópolis Bocaiuva Sul R 8 40
terras estaduais35.
CNT DE TATUPEVA Adrianópolis Bocaiuva Sul R 6 23
A sistematização dessas informações nos permite constatar que, CRQ DO VARZEÃO Doutor Ulysses Cerro Azul R 8 30
desde o início, as titulações quilombolas estão circunscritas a opções
CNT DE QUEIMADINHOS Doutor Ulysses Cerro Azul R 5 25
políticas do Governo Federal, que privilegiam a regularização de áreas
CRQ DE AREIA BRANCA Bocaiuva do Sul Bocaiuva Sul R 16 30
compreendidas em “terras devolutas”; “públicas estaduais” e “terras sem
CRQ PALMITAL DOS PRETOS Campo Largo Campo Largo R 27 108
grande dificuldade de aquisição”, não enfrentando, com isso, a reação dos
proprietários rurais e do agronegócio, tornando pouco a pouco ineficaz o CNT SETE SALTOS Campo Largo Campo Largo R 10 53
instrumento da desapropriação. CRQ DA RESTINGA Lapa Lapa R 37 271
CRQ DO FEIXO:
Essas constatações são comprovadas no exame do caso da comunidade Vila dos Pedroso
Lapa Lapa R 50 203
Paiol de Telha, no Estado do Paraná, no qual seria necessário realizar CRQ DO FEIXO:
desapropriação por se tratar de terra titulada pelo próprio Estado. Além Lapa Lapa R 32 127
Maria Antonia
disso, nenhuma outra área foi desapropriada no Estado do Paraná, a CRQ DA VILA ESPERANÇA Lapa Lapa R 7 74
despeito da presença expressiva dessas comunidades em quase todas as CRQ RIO VERDE Quaraqueçaba Antonina R 22 80
regiões do Estado, com maior concentração na região do Vale do Ribeira e CRQ DE BATUVA Quaraqueçaba Antonina R 24 94
Centro-Sul, como se vê no quadro abaixo:
CRQ DA SERRA DO APON:
Castro Castro R 10 31
Faxinal do São João

COMUNIDADES TRADICIONAIS NEGRAS E REMANESCENTES QUILOMBOLAS NO PARANÁ CRQ DA SERRA DO APON:


Castro Castro R 6 17
Lagoa dos Alves
*CRQ´s e CNT´s Cidade Comarca **R/U Famílias Habit. CRQ DA SERRA DO APON:
Castro Castro R 20 84
CRQ JOÃO SURÁ: Sede Adrianópolis Bocaiuva Sul R 24 88 Serra do Apon

CRQ JOÃO SURÁ: CRQ DA SERRA DO APON:


Adrianópolis Bocaiuva Sul R 5 26 Castro Castro R 3 12
Poço Grande Paiol do Meio

CRQ JOÃO SURÁ: Guaracuí Adrianópolis Bocaiuva Sul R 12 35 CRQ DA SERRA DO APON:
Castro Castro R 7 23
Santa Quitéria
CRQ PRAIA DO PEIXE Adrianópolis Bocaiuva Sul R 6 26
CRQ DA SERRA DO APON:
Castro Castro R 3 9
33 Idem. p. 4-5 Acordo
34 Em 24 de março de 2009, contabilizaram-se 831 processos administrativos para titulações de áreas quilombolas,
em trâmite nas diversas Superintendências Regionais do INCRA, excetuando-se Roraima, Acre e Marabá. CRQ DA SERRA DO APON:
Castro Castro R 10 31
35 Estas 24 titulações localizam-se majoritariamente no Estado do Pará (16); Maranhão (04); Piauí (02) e Rio Lagoão de Dentro
Grande do Sul (02). Cf. INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de
2010. “Orçamento Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 5. Disponível em http://www.inesc. CRQ DE MAMÃS – Núcleo
Castro Castro R 8 27
org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em Castro: Imbuial
31/10/2010.

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CRQ DE MAMÃS – Núcleo Fazenda Rio


Cerro Azul Cerro Azul R 7 22 CNT PAVÃOZINHO Agudos do Sul R 5 24
Cerro Azul: Ribeirão do Meio Grande
CRQ DE MAMÃS – Núcleo CNT LAGOA DAS ALMAS Contenda Lapa R 24 118
Cerro Azul Cerro Azul R 3 13
Cerro Azul: Pinhalzinho CNT SERRINHA Contenda Lapa R 8 46
CRQ DE MAMÃS – Núcleo CNT POÇO DOS CRUZ Contenda Lapa R 10 40
Cerro Azul Cerro Azul R 1 3
Cerro Azul: Pinhal Grande
CNT ÁGUA CLARA Jaguariaíva Jaguariaíva R 3 12
CRQ DO LIMITÃO Castro Castro R 30 106
CNT CERRADO Palmeira Palmas R 12 39
CRQ DO TRONCO Castro Castro R 15 62
CNT COMUNIDADE DO São José dos
CRQ DO SUTIL Ponta Grossa Ponta Grossa R 41 144 Tijucas do Sul R 8 20
BARREIRO Pinhais
CRQ DE SANTA CRUZ Ponta Grossa Ponta Grossa R 11 39 TOTAL 138 619
CRQ DESPRAIADO Candói Guarapuava R 42 210
*CRQ – Comunidade Remanescente Quilombola
CRQ VILA TOMÉ Candói Guarapuava R 21 110 CNT – Comunidade Negra Tradicional
CRQ CAVERNOSO 1 Candói Guarapuava R 12 86 ** Rural/Urbano
CRQ INVERNADA PAIOL DE ***Não consta no mapa da ITCG
Guarapuava Guarapuava R 66 230
TELHAS: Assentamento
CRQ INVERNADA PAIOL DE A análise da elaboração normativa e jurisprudencial e a não efetivação
TELHAS: Periferia da cidade Guarapuava Guarapuava U dos direitos territoriais quilombolas no Brasil contemporâneo demonstra,
(trabalho a ser efetuado) com clareza, as limitações que o Estado e a sociedade brasileira
CRQ INVERNADA PAIOL DE enfrentam para a construção da democracia baseada na igualdade, no
TELHAS: (trabalho a ser Pinhão Guarapuava U
efetuado)
reconhecimento da alteridade,no pluralismo jurídico e na superação de
suas origens aristocráticas fundiárias e escravagistas.
CRQ INVERNADA PAIOL DE
TELHAS: Barranco
Guarapuava Guarapuava R 19 95 A superação dos entraves existentes para a efetiva aplicação do artigo 68
CRQ ADELAIDE MARIA DA do ADCT deve enfrentar, por um lado, a necessidade do reconhecimento
Palmas Palmas R 88 391 do dever do Estado, em relação a setores da população que ainda
TRINDADE BATISTA
CRQ CASTORINA MARIA DA sofrem com um processo de cidadania inacabado, herdado da ausência
Palmas Palmas R 20 74
CONCEIÇÃO – (FORTUNATO) de políticas para igualdade pós-abolição e, de outro, a indispensável
***CNT TOBIAS FERREIRA – realização da redistribuição e desconcentração das terras no país.
Palmas Palmas R 19 98
(LAGOÃO)
CRQ CAMPINA DOS
Turvo Guarapuava R 10 66
MORENOS Referências
CRQ SÃO ROQUE Ivaí/Imbituva Imbituva R 51 203
ALFONSIN. Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos
CRQ RIO DO MEIO Ivaí/Imbituva Imbituva R 22 84 fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
CRQ MANOEL CIRIACO DOS ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane
Guaíra Guaíra R 7 42
SANTOS Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora
São Miguel do São Miguel do FGV, 2002.
CRQ QUILOMBOLA APEPÚ R 6 44
Iguaçu Iguaçú
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Orgs); LEITE, Eliane Cantarino O ‘Dwuer. Territórios
Comarca quilombolas e conflitos. Cadernos de debates Nova Cartografia Social, vol. 01, nº 02.
CRQ ÁGUA MORNA Curiúva R 19 61
Curiúva Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia / UEA Edições, 2010.
Comarca
CRQ GUAJUVIRA Curiúva R 38 132 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos
Curiúva
fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
CNT BARROCA Antonina Antonina R 4 21
BECKHAUSEN, Marcelo A inconstitucionalidade do Decreto 3.912, de 10 de setembro de
CNT FARTURA Antonina Antonina R 16 60
2001. p.22-23 In DUPRAT, Deborah. (Org.) Pareceres Jurídicos — Direito dos Povos e das

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IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE Giovanna Bonilha Milano e José Antônio Peres Gediel
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

Comunidades Tradicionais. Manaus: UEA, 2007. INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de
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BRASIL. Decreto n.º4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para em http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010.
por remanescentes das comunidades dos  quilombos de que trata o art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º179. Novembro
ccivil_03/decreto/2003/D4887.htm. Acesso em: 24/04/2014. de 2010. “O orçamento das políticas federais de promoção da igualdade racial e combate
ao racismo: baixa prioridade e execução ”. p. 4-5. Disponível em http://www.inesc.org.br/
BRASIL. Decreto n.º3.921, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta as disposições relativas biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20Orcamento%20Quilombola.
ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos pdf Acesso em 08/06/2014.
quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro
imobiliário das terras por eles ocupadas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS — INESC. Nota Técnica n.º168. Julho de
ccivil_03/decreto/2001/D3912.htm. Acesso em: 24/04/2014. 2010. “Orçamento Quilombola 2008-2010 e a maquiagem na titulação”. p. 4. Disponível
em http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/notas-tecnicas/NT.%20168%20-%20
BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239. Orcamento%20Quilombola.pdf Acesso em 31/10/2010.
Relator Ministro Cezar Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/
verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4887&processo=3239. ITCG. Instituto de Terras, Cartografia e Geociências. Terra e Cidadania: Terras e territórios
quilombolas. Grupo de trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005-2008. Curitiba: ITCG, 2008.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Popular n.º 3388 – Voto Relator Min. Carlos Ayres
Britto. Julgado em 27/08/2009. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. V, Quarta Sessão. São Paulo: Vozes,
1966.
BRASIL. Tribunal Regional Federal 1. AI 2009.01.00.048663-2/BA. Rel. Desembargadora
Federal Selene Maria de Almeida. Julgado em 14/04/2011. LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. p.
Artigo publicado no sítio eletrônico do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações
BRASIL. Tribunal Regional Federal 1. AI 2009.01.00.048663-2/BA. Rel. Desembargadora Interétnicas — NUER/UFSC. Disponível no endereço http://www.nuer.ufsc.br/artigos/
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IGUALDADE RACIAL E TERRITÓRIOS TRADICIONALMENTE
OCUPADOS POR QUILOMBOLAS

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Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino

O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos,


mitologia política e a descolonialidade da justiça nas religiões
afro-brasileiras1

Thiago de Azevedo Pinheiro HOSHINO2

“Atravessei o mar a nado,


por cima de dois barril...
Eu vinha ver a juremeira
e os caboclos do Brasil.”3

Nas margens do Atlântico negro, tantas histórias há a margem da


narrativa oficial. As revoltas, as insurreições, a insurgência e a rebeldia,
por vezes, fetichizam-se no papel, marcos emudecidos numa linha
crivada de datas, mas emergem cotidianamente, revisitadas e revividas
no imaginário político de seus sujeitos, seus efetivos autores. Através da
mediação da cultura, a uma só vez, ponto de partida e de chegada do círculo
hermenêutico das trajetórias negras na América Latina, a denúncia contra
sociedades que, embora complexas, recusam-se a assumir sua pluralidade
constitutiva, articula-se em diversos níveis de formação discursiva: político,
mítico, científico, simbólico. Destacados ou superpostos, cada um deles
descortina uma epistéme própria, uma paisagem social cujo enunciado –
e, mais do que isso, cuja via de enunciação específica – revela, sobretudo,
o lugar ocupado pelos enunciadores num amplo mosaico de resistência
negra no Novo Mundo. Um lugar de descolonização.
As múltiplas tradições implicadas na religiosidade afro-brasileira4, como
o candomblé5 e a umbanda6, também participam dessa teia cultural. Nelas,
1 O presente artigo é um resumo da Monografia de Graduação em Direito intitulada Òrìsá Láarè: por uma
iconografia jurídico afro-brasileira, defendida na Universidade Federal do Paraná, no ano de 2010.
2 Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do INCT Observatório das
Metrópoles – Núcleo Curitiba. Membro do Instituto Brasileiro de História do Direito e do Fórum Paranaense das
Religiões de Matriz Africana.
3 “Zuela” de caboclo recolhida no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, Zona Sul da cidade de São Paulo, em 2009.
4 Não faltam estudos buscando retraçar as origens africanas das culturas negras na América, levando em conta
mesmo as permanências existentes em cada tradição religiosa. Exemplo dessa perspectiva, que, embora útil,
consideramos insuficiente é o estudo de Pollak-Eltz (POLLAK-ELTZ, 1970).
5 O termo seria uma corruptela de candonbe, espécie de tambor utilizado pelos negros de Angola. Outrossim,
Moura fala de um emprego jurídico mais técnico da palavra: “nome pelo qual era conhecida, judicialmente, a
“tralha” e os pertences, de um feiticeiro africano” (MOURA, 2004, p. 81). Ou então, como afirmam outros, um
derivado do verbo “rezar; louvar” em quimbundo (-ndonbe), indicando o local do culto.
6 “A umbanda é a religião de maior expressão no Rio de Janeiro, de onde se irradiou para os estados de Minas
Gerais e São Paulo, bem como para a região Sul do país. Por ser de origem banta, apresenta muitas similaridades
com outras matrizes religiosas africanas, apesar de algumas variações na forma de culto aos ancestrais e da
incorporação de influências de outras origens, como a do espiritismo da linha de Allan Kardec. (...) no culto da
umbanda, os pretos-velhos e caboclos se manifestam ou incorporam por meio das sacerdotisas e dos sacerdotes.

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justiça nas religiões afro-brasileiras

nada foi automático e nada está definitivamente resolvido. No avesso demonstra que ela é mais que uma alegoria:
do determinismo, o signo se torce e se retorce à sombra da casa-grande,
nas casas de farinha dos quilombos, nas casas de santo7 na periferia das Encontrei mesmo num terreiro o mito simbólico de uma árvore, cujas raízes
atravessariam o Oceano para religar os dois mundos [África e Brasil]; seria
metrópoles. Nelas, África não se recorda tão somente, África se inventa. ao longo dessas raízes que os Orixás viriam, assim que fossem chamados.
Da travessia dos negros escravizados sobre o infinito de Kalunga, deus- (BASTIDE, 2000, p. 90)
oceano banto, lembrança e esquecimento nadam contra a maré da história
ocidental. O “mar salgado” de Fernando Pessoa desconsidera o quanto Esta árvore é o Irôko, a sagrada gameleira branca (Ficus Gomelleira)
do seu sal não são lágrimas de Angola, Congo, Daomé, Ketu e Oyó. Se do candomblé brasileiro, cuja fixação no solo do terreiro é um dos seus
tudo valeu a pena não é um juízo que nos cabe ousar. Desejamos aqui tão primeiros atos de consagração e estruturação litúrgica. Irôko igualmente
somente oferecer algumas contribuições para o fortalecimento de uma é o nome do orixá que nela habita, insinuando que não são somente os
leitura política das experiências religiosas de matriz africana no Brasil, a corpos objeto de iniciação: a terra (espaço profano), depois de iniciada
partir da análise de seu discurso, sua prática e sua iconografia8; de suas como uma noviça, transmuta-se em território (espaço sagrado). Por
continuidades, rupturas, intercâmbios e deslocamentos, cujo foco deve força das polarizações envolvidas nesse jogo de sentidos, o que ocorre
ser a natureza das tensões atualmente vigentes entre elas o imaginário é um processo de “africanização da pátria do exílio, ou se preferirmos,
social hegemônico. o candomblé como um pedaço da África” (BASTIDE, 2000, p. 91). Frente
a esse fragmento, o sentido original do termo religião ganha nova
dimensão: não se trata mais de apenas “re-ligar” o mundo dos homens
1. Replantar o Irôko: a matriz africana como reordenação ao dos deuses, mas sobretudo de tornar próximos novamente o território
sócio-simbólica na diáspora presente (Brasil) e o território dos ancestrais (Ilú Ayê, a “terra da vida”, a
Quando se funda um novo terreiro, uma nova comunidade religiosa, África). Por isso mesmo é que todo ritual se inicia com uma invocação a
diz-se que se “plantou o seu axé”. Esse axé, conceito central de todo o Exu, o mensageiro, que deve ser “despachado”, isto é, enviado para buscar
pensamento mítico afro-brasileiro, refere-se à força vital presente em seus irmãos do outro lado do Atlântico: “agô, agô l’onan” – nos dê licença
todas as coisas, mas que anima também a tradição cultural. Um axé, nos caminhos, abra os caminhos para que os deuses possam retornar a
nesse sentido, é uma determinada linhagem espiritual que remete até aos nós. Da mesma forma, por empreender a travessia de entre-mundos é que
fundadores africanos do culto no Brasil, uma cadeia simbólica que, como esse elemento de conexão aparece amiúde associado ao mar (chamado
uma árvore, ramifica-se e deve ser alimentada constantemente para dar “Kalunga grande”, na umbanda, em comparação ao cemitério, a “Kalunga
continuidade à matriz ancestral de civilização. A refundação dessa matriz pequena”)10:
(ou, para usar uma expressão consagrada por R. Bastide, dessa “estrutura Verekête da colônia
de civilização”)9 nos desvãos da diáspora colonial negra segue o mesmo Ele é rei do mar
padrão imagético. Se a metáfora da árvore é poderosa – as raízes estão
Verekête da colônia
cravadas na África, mas suas ramificações roçam o Novo Mundo – Bastide
Ele é rei do mar11
(...) Para Marco Aurélio Luz existem dois tipos de umbanda: a umbanda de morro e a umbanda de asfalto. Suas
diferenças se caracterizam pelos diversos discursos ideológicos de seus integrantes. (...) No entanto, apesar dessas O sentido “colonial” – o encobrimento, e não o descobrimento, do
divergências ideológicas, tanto a linguagem como a estrutura simbólica e ritual africanas caracterizam a umbanda.”
(THEODORO, 2008, p. 79-80). Analisaremos conjuntamente discursos advindos da umbanda (com enfoque Outro (DUSSEL, 1993) – da relação de poder estabelecida no comércio
na “umbanda de morro”) e do candomblé, pois, a despeito de idiossincrasias litúrgicas, no plano das alianças
e interações sociais, seus membros compõe um mesmo “povo-de-santo”, de modo que os conceitos circulam
triangular (Europa-África-América)12 transatlântico não deixa de
culturalmente entre templos de ambos os cultos, muitos deles mantendo mesmo ambas as práticas. Para uma
releitura histórica da umbanda desde o sec. XIX, consultar: BARBOSA, 2008. 10 O termo é encontrado em inúmeras etnografias de grupos bantos. Citamos exemplificativamente o interessante
7 Casa-de-santo, casa-de-orixá, Ilê Axé, Abassá, barracão de candmblé ou terreiro são alguns dos nomes dados à estudo (de cunho igualmente mítico-político) de Melo entre os hambas de Angola: “Crendo na existência de vida
totalidade (física e simbólica) do local/espaço/território das comunidades religiosas afro-brasileiras. após a morte, entendem que o espírito do indivíduo deve libertar-se do corpo, despedir-se e, só assim, afastar-se da
8 O material de cunho etnográfico apresentado é resultado de trabalho de campo empreendido entre os anos família para repousar e participar, com os outros, no outro mundo, do kokalunga.” (MELO, 2008, p. 185).
de 2008 e 2010 em terreiros de umbanda e candomblé (nações ketu, angola e candomblé de caboclo) nas cidades 11 Cântico de invocação a Averekête, vodun da tradição jêje no Brasil, cultuado também como jovem divindade
de São Paulo e na Região Metropolitana de Curitiba, além daquele derivado da própria inserção religiosa do autor. de conexão. Recolhido em cerimônia de tambor-de-mina, em Marajó (2009) e também citado por Bastide (BASTIDE,
9 Novamente encontramos esse ponto de vista, objeto atual de uma série de críticas e debates, em Bastide : “On 2000, p. 235).
risque, en effet, si on examine le monde des candomblés uniquement à travers lês candomblés, de laisser échapper 12 Para uma análise detida da conjuntura político-econômica do tráfico escravista, vide: LUZ, Marco Aurélio.
ce qui, pour nous, est l’essentiel: la structure de la civilisation africaine” (BASTIDE, 2000, p. 87). Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Edufba, 2000, pp. 148-167.

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transparecer nos enunciados da mitologia afro-brasileira, de modo que os afro-latino-americana dos escravizados:
polos Brasil-África, subitamente, transbordam dos seus limites geográficos
para se projetarem na ordem simbólica da geopolítica do imaginário, O “tráfico” imolará ao novo deus do Sexto Sol, o capital, cerca de treze
milhões de africanos. Não é este o segundo “holocausto” da Modernidade?
acarretando dicotomias como escravidão/liberdade, morte/vida13, (...) A resistência dos escravos foi contínua. Muitos deles alcançaram a
negação/afirmação, branco/negro etc. Se, para o escravizado, branco era liberdade pela luta. Testemunho disso são os “quilombos” no Brasil (...) as
o ayê14, negro o òrún15. Negro também esse Atlântico de modernidade “costas do Pacífico” na América Central (...) Esses escravos “trans-terrados”
e anti-modernidade, colonialidade e resistência, espaço de contraste. O que no Caribe, quando nascia uma criança, guardavam seu cordão
umbilical numa caixinha e o enterravam na terra, criaram sincreticamente
modelo interpretativo do “Atlântico negro”, desenvolvido por P. Gilroy a
nova cultura. Na América Latina, desde o Vodu haitiano até o candomblé
partir do mote da travessia do mar, presente na memória coletiva de todas ou a Macumba brasileira, são expressões religiosas afro-latino-americanas
as comunidades afro-americanas, reposiciona inúmeras “ecologias do dessa trans-territoriedade dos escravos. (DUSSEL, 1993, p. 162-164)
pertencimento” produzidas em suas narrativas sobre o passado, presente
e futuro da tradição (matriz africana), de modo que Trata-se, já em si, de um movimento não apenas diacrônico, mas,
sobretudo, diatópico, uma vez que a dinâmica da escravidão americana
(...) as culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolidação através trouxe para o Novo Mundo habitantes das mais variadas partes da África,
da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contra- aportando consigo culturas, hábitos, idiomas, crenças, formas de ser
estéticas e uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente distintas. Impreterível que façamos aqui um aparte: é urgente destruir a
separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer.
imagem de uma África una e culturalmente indistinta. Para que tenhamos
(GILROY, 2001, p. 13)
uma noção geral da escala de diversidade que representou a convivência
Nesses termos, insistimos na necessidade de se manter no horizonte de intercultural na sociedade escravocrata, recordemos que L. Viana Filho
análise que, diferentemente dos povos indígenas16, grupos autóctones da (VIANA FILHO, 2008, p. 59-66) identifica, no Brasil, uma sucessão de quatro
América Latina, quando nos referimos à tradição religiosa afro-brasileira ciclos históricos do tráfico negreiro, os quais, de 1540 a 1851, abarcariam
vislumbramos não uma chamada “cultura originária”, mas uma semântica o aporte desde grupos sudaneses a bantos (Ciclo da Guiné, no sec. XVI;
existencial diaspórica, isto é, um conjunto de práticas, representações e Ciclo de Angola, no sec. XVII; Ciclo da Costa da Mina e Golfo do Benin,
sentidos não meramente perpetuados no tempo, mas reconstruídos por no sec. XVIII e até 1815; e uma “fase de ilegalidade” de parcos dados
sujeitos forçosamente postos no exílio. A ressignificação, já não resta sobre procedência geográfica, mas provavelmente com predominância
dúvida, é fenômeno patente em qualquer tradição (não há neste campo sudanesa)18. Quantitativamente, isso nos assinala uma cifra estimada
fixidez nem pureza), porém, no caso específico dos conteúdos da matriz de 3.902.000 africanos entre 1500 e 1867 (40,6% do total de escravos
africana, isso traz uma série de desdobramentos e exige outro tanto de vendidos para as Américas), fazendo do Brasil o que é hoje: o segundo
vigilância do observador, porquanto as formas culturais do candomblé e país mais negro do mundo.
da umbanda ganham sentido apenas em perspectiva, ou seja, como uma Assim, seguindo a proposição de Mintz e Price, uma discussão
espécie de reorganização sócio-política de comunidades e territórios em antropológica de caráter menos restrito/descritivo (etnográfico) da
espaço alheio17. É o que Dussel conceituará como a transterritoriedade herança afro-americana e mais ambicioso deveria dar maior atenção aos
13 Bastide, entre outros autores, recolheram material suficiente para comprovar a presença de uma “princípios gramaticais” dessa linguagem (uma linguagem ritual e mítica),
representação entre o povo-de-santo que afirma que, embora se viva no Brasil, retorna-se à África depois da morte que a cada uma de suas mínimas variações locais:
(BASTIDE, 2000, p. 90).
14 O mundo físico, material o mundo dos homens e dos acontecimentos históricos.
15 O mundo dos orixás e dos egúns, os ancestrais mortos. A relação política entre o mito e o espaço, ou, em Uma herança cultural africana (...) terá de ser definida em termos
outros termos, a territorialização do mito, torna-se evidente, por exemplo, na utilização, pelos umbandistas, do
termo Aruanda (corruptela de Aluanda/Luanda, localidade no Reino de Angola e hoje capital do país), para designar
menos concretos, concentrando-se mais nos valores e menos nas
a “cidade”, a “vila” ou a “aldeia” dos ancestrais entre os bantos e, atualmente, dos “guias”, entidades e espíritos. Aí formas socioculturais, e até tentando identificar princípios “gramaticais”
temos a passagem, portanto, da geografia à geopolítica e desta a uma cartografia do imaginário.
16 Obviamente, não se deve desprezar igualmente o caráter móvel de parcela dos povos indígenas originários na “donos da terra”, seus originais habitantes, enquanto, pela força, o espaço produtivo/tecnológico é entendido
América Latina. Sabe-se que também nas trajetórias de muitos deles estão presentes fluxos migratórios e dispersões como lugar de tortura e sofrimento (o “engenho”), como espaço branco, embora essa propriedade absolutizada
populacionais, narradas mesmo em sua riquíssima cosmologia. Parte importante dos conflitos fundiários hoje seja sempre apontada como ilegítima e injusta, numa crítica, portanto, ao patriarcalismo brasileiro.
experimentados pelos povos guarani, por exemplo, encontra-se atrelado ao seu nomadismo ritualístico-profético, 18 Para novas perspectivas sobre o tráfico escravista dos sec. XVIII e XIX, vide: FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
que integra uma determinada cosmovisão sobre as relações territoriais. Alexandre Vieira e SILVA, Daniel Domingues da. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos
17 Por um lado, como transparece do imaginário mítico afro-brasileiro, são os povos indígenas os considerados XVIII e XIX). In: Revista Afro-Ásia, n. 31 (2004), pp. 83-126.

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inconscientes que pudessem estar subjacentes à reposta comportamental coloca-se como alternativa e em oposição à tradição ética da civilização
e fossem capazes de moldá-la. Para começar, pleitearíamos um exame ocidental, a qual perdeu sua legitimidade filosófica “pela cumplicidade
do que Foster chamou “orientações cognitivas”, por um lado, como óbvia que tanto a escravidão da plantation como os regimes coloniais
pressupostos básicos sobre as relações sociais (...) e, por outro, os
pressupostos e expectativas básicos sobre o modo de funcionamento revelaram existir entre a racionalidade e a prática do terror racial”
fenomenológico do mundo (...) (MINTZ e PRICE, 2003, p. 27-28) (GILROY, 2001, p. 98). O papel das teorias racialistas e racistas (fazemos
distinção entre os termos) na cristalização da dominação ocidental está
Conforme não só a antropologia afro-americana, como também escancarado (SILVEIRA, 1999). Por isso mesmo, a unidade que prevalece
a historiografia da diáspora negra têm indicado, esses modos de na epistéme negra entre ética e estética é uma forma de negação dessas
compreensão culturais de nível profundo operam como estruturantes grandes rupturas epistemológicas da modernidade:
da cosmovisão africana no Novo Mundo e “podem ter servido de
catalisadores nos processos pelos quais indivíduos de diversas sociedades Sua ética bastante fundamentada oferece, entre outras coisas, um
forjaram novas instituições” (MINTZ e PRICE, 2003, p. 33). Colocar em comentário contínuo sobre as relações sistemáticas e generalizadas
evidência essas institucionalidades (re)inventadas revela o próprio caráter de dominação que condicionam sua existência. Sua estética, também
bastante fundamentada, nunca se isola num domínio autônomo onde as
móvel, histórico (e, logo, político) das tradições: regras políticas familiares não possam ser aplicadas (...) (GILROY, 2001, p.
98).
As tradições na realidade são sempre discriminatórias. Tendem a constituir
um sistema de referências que estabelece distinções entre o que é Uma negação, porém, longe da crítica niilista ou de qualquer temido
tradicional e o que não é. Inscrever-se numa tradição significa, portanto, fanatismo “tribalista”. Ao contrário, ela se construiu historicamente em
marcar uma diferença, sendo preciso interrogar as funções políticas das
tradições: elas não são simples sistemas de ideias ou de conceitos, e sim diálogo com os próprios questionamentos ocidentais e pressupostos do
verdadeiros modelos de interação social. (CAPONE, 2004, p. 29) establishment, como reapropriação e síntese desde a perspectiva dos
outsiders. Ela vem acompanhada de um projeto civilizacional calcado na
No que tange à religiosidade afro-brasileira, marcar essa diferença experiência da escravidão e da opressão racial, fundantes da subjetividade
implica operar um “sistema de referências” que toma a África como diaspórica:
metáfora, como norte simbólico para configurar o que P. S. Pinho
classifica de “identidades afro-referenciadas” (PINHO, 2004, p. 78-84). A memória da escravidão, ativamente preservada como recurso intelectual
É sobre esse suporte imagético que se constrói a tradicionalidade da vivo em sua cultura política expressiva, ajudou-os a gerar um novo
umbanda e, particularmente, do candomblé no Brasil, na medida em que conjunto de respostas para essa indagação. Eles [os negros na América]
tiveram de lutar – muitas vezes por meio de sua espiritualidade – para
instauram efetivamente espaços diferenciais no seio de uma sociedade manterem a unidade entre ética e política, dicotomizadas pela insistência
supostamente homogênea, não como produtos de preservação, mas de da modernidade em afirmar que o verdadeiro, o bom e o belo possuíam
resistência, interação e de inovação cultural. Essas institucionalidades origens distintas e pertenciam a domínios diferentes do conhecimento.
negras criativas ensejaram formas de organização social encarnadas em Primeira a escravidão em si mesmo e, depois, sua memória induziram
territórios muito próprios, que apenas agora a historiografia, a geografia e muitos deles a indagarem sobre as bases da fundação da filosofia e do
pensamento social modernos, quer viessem eles dos teóricos dos direitos
a antropologia começam a tomar por objeto. É o caso não só das religiões naturais que procuravam distinguir entre as esferas da moralidade e da
de matriz africana, mas também de experiências como a do Quilombo legalidade, dos idealistas que desejavam emancipar a política da moral
de Palmares. Conforme identifica Cerqueira, “o Estado de Palmares se de sorte que aquela se tornaria uma esfera de ação estratégica, ou dos
constituía num momento especial na história do pluralismo jurídico no economistas políticos da burguesia que primeiro formularam a separação
da atividade econômica tanto da ética como da política. Os excessos
Brasil, pluralismo este de caráter progressista e, mais que isso, libertador” brutais da plantation escravista forneciam um conjunto de respostas
(CERQUEIRA, 1998, p. 214). morais e políticas para cada uma dessas tentativas. (GILROY, 2001, p. 99)
A ênfase na diferença, aliás, é o que permite a esse imaginário
Assim, no espaço hermenêutico do terreiro – comunidade de axé: ética
mitológico de justiça fundamentar uma contracultura negra na diáspora
e estética – poiésis, poética e política se conjugam de formas insuspeitas.
ou um discurso político contra-hegemônico e descolonial, que Gilroy
Ser e dever-ser articulam-se ritual, mítica e pragmaticamente no cotidiano
chamou de “contracultura da Modernidade” (GILROY, 2001, p. 33). Ela
do povo-de-santo, em processos de produção e reprodução da vida

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coletiva: “a razão é assim reunificada com a felicidade e a liberdade dos uma experiência de enfrentamento messiânico, irradia-se como “religião
indivíduos e o reino da justiça no âmbito da coletividade” (GILROY, 2001, dos oprimidos”, congregando elementos que se repetem igualmente
p. 99). em inúmeros movimentos de libertação presentes nas sociedades pós-
coloniais:

2. “Eu nasci no Brasil, brasileiro sou eu”: resistência cultural e Na realidade, na raiz de toda a revolta política e militar de povos
negociação da identidade indígenas encontram-se outros movimentos premonitórios de renovação
religiosa, os cultos proféticos de libertação. (...) Aliás, a própria natureza
Estamos diante, portanto, de um discurso político minoritário e de uma dos movimentos de renovação que nos interessam aqui denuncia uma
cultura de resistência negra à dominação avalizada pelo Estado brasileiro característica própria das culturas nativas: elas, por uma tradição cultural
(entre outros países da América escravocrata), uma forma de contestação amadurecida em experiências de todo tipo de miséria e sujeição, são
levadas a reagir contra a opressão, a inquietação, a frustração, muito mais
das suas instituições “monoétnicas”: no terreno religioso que no organizacional-político. (...) O mal reside no
choque – com os seus múltiplos aspectos – entre uma minoria hegemônica,
El proyecto fundacional del Estado con hegemonía monoétnica excluyó opressora, depredadora e hipócrita e a população nativa oprimida: na sua
definitivamente a los pueblos indios [os americanos como os africanos]. raiz está a subtração da terra aos nativos. (LANTERNARI, 1974, p. 15-17).
El desarrollo del capitalismo por la via oligárquica era compatible con el
etnocidio practicado en las guerras de exterminio. (ROSENMANN, 2007, Embora Lanternari faça referência expressa aos movimentos nativistas
p. 200) na África, princípios gerais de sua análise cabem em parte às tradições
Contudo, ao processo contínuo de vitimação produzido pelo regime da diáspora. Neste caso, não foi a terra subtraída aos nativos, mas os
escravista, as comunidades de vítimas19, organizadas como comunidades nativos à sua terra. Se originariamente “estrangeira”, todavia, a cultura
religiosas, puderam responder das mais variadas maneiras, fomentando de matriz africana veio a tornar-se também afro-brasileira, derivando
desde revoltas memoráveis, como foi a dos Malês na Bahia (1835)20, até daí as dificuldades referentes ao duplo vínculo (tensão nacionalidade-
diagramas de negociação intercultural e interétnica. Mas, no “instante de identificação) formulado por DuBois. De fato, vale repisar que “o problema
perigo” benjaminiano em que a controvérsia sobre a validade dos feriados de ponderar as afirmações de identidade nacional contra as variedades
e das datas celebratórias da memória negra se acha instalada em algumas contrastantes de subjetividade e identificação ocupa um lugar especial
localidades21, é imprescindível alinhavar os conflitos do presente com na história intelectual dos negros no Ocidente”23. Ser, a um só tempo,
leituras argutas do passado, como a de Reis: brasileiro e afrodescendente, isto é, ser afro-brasileiro, exige ocupar um
espaço “inacabado” de identidade, como demonstraremos a seguir. Uma
Zumbi, Mãe-Preta e Pai-João, são apenas ênfases historiográficas. questão de lente, de foco, de escala, de grau.
Concretamente, na história real, cada cativo, segundo um destino que A partir dessa primeira reflexão, entendemos com Brumana que duas
muito raramente podia controlar (...) teria sua porção de ambos, maior
ou menor, segundo cada caso, cada oportunidade. Na história, Pai-João têm sido as perspectivas centrais até hoje adotadas no estudo desse tipo
não foi a ausência de luta, mas uma estratégia de luta sob condições de religiosidade: enquanto uma enfatiza sua africanidade, outra procura
extremamente desfavoráveis. (REIS, 1989, p. 78). dar conta da brasilianidade de um campo religioso reconhecidamente
subalterno (ou seja, politicamente minoritário). Durante esta breve
A essência política dessa resistência negociada e dessa resposta cultural, empreitada, colocamo-nos ao lado da segunda, de modo que sobressaia
gestada e maturada na espiritualidade (e na sociabilidade) marginalizada mais a originalidade criativa das culturas negras do que um suposto
da tradição mística afro-brasileira22, ainda que não possa ser considerada continuísmo de conteúdos originais, embora não se possa afastar a
19 “A consensualidade crítica das vítimas promove o desenvolvimento da vida humana. (...) A partir da
exterioridade das vítimas a totalidade é subsumida (negada e assumida) e transformada.” (DUSSEL, 2002, p. 415-6). etc., que envolvem a vida dos membros”) e enfrenta uma dimensão místico/religiosa do tema, em perspectiva
20 Negros de religião muçulmana, bastante organizados e combatentes na Bahia do século XIX (REIS, 2003). comparada com outras grandes tradições religiosas (CARVALHO, 1998).
21 No momento de produção deste artigo, tramitava perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a Ação 23 “Esforçar-se por ser ao mesmo tempo europeu e negro requer algumas formas específicas de dupla
Direta de Inconstitucionalidade n. 1.011.923-6, de autoria da Associação Comercial do Paraná, impugnando a Lei consciência. Ao dizer isto não pretendo sugerir que assumir uma ou ambas identidades inacabadas esvazie
Municipal nº 14.224/2013 de Curitiba, que instituiu o Dia da Consciência Negra como feriado local. necessariamente os recursos subjetivos de um determinado indivíduo. Entretanto, onde os discursos racista,
22 J. J. Carvalho emprega a expressão “tradição mística afro-brasileira” para destacar um corpus de práticas e nacionalista ou etnicamente absolutista orquestram relações políticas de modo que essas identidades pareçam
discursos (liturgia e textualidade) que circulam socialmente entre os membros de cultos afro-brasileiros a partir de ser mutuamente exclusivas, ocupar o espaço entre elas ou tentar demonstrar sua continuidade tem sido encarado
suas experiências místicas individuais. No entanto, o autor em questão avança para além da dimensão ideológica de como um ato provocador e mesmo opositor de insubordinação política.” (GILROY, 2001, p. 33-34).
análise desses materiais (“tudo o que eles indicam sobre a natureza das relações sociais, raciais, políticas, sexuais
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relevância do afro-centrismo que desponta em outras paragens24. a população e qualquer visitante que pretenda fazer uso das orientações
que ele contém. Nesse sentido, não pode se dizer que exista propriamente
Disso decorre um esvaziamento, ou, para sermos menos enfáticos, um povo afro-brasileiro dentro da nação (exceto no caso restrito dos
uma relativização instrumental, da própria noção de etnicidade para a quilombolas), mas uma etnicidade afro-brasileira disponível, que se doa,
ao povo brasileiro. (SEGATO, 2005, p. 3-4)
compreensão da realidade dos cultos afro-brasileiros. Efetivamente, não
é a regra, ainda que se verifiquem casos singulares, a existência de uma Qualquer conceito minimamente convincente de “afro-brasilidade”,
continuidade biológica da comunidade-terreiro. O que ocorre, em vez portanto, deve levar em conta a dimensão mais simbólica da etnicidade
disso, é a perpetuação simbólica da linhagem de cada casa de santo, de afro do que propriamente étnica, em acepção racialista. Parece sensato
modo que se operam sucessões constantes nos cargos deixados vagos adotar, secundando Viana em seu estudo sobre as mestiças “irmandades
pela morte ou outro tipo de afastamento de seus ocupantes anteriores. de pretos e pardos” da Colônia, a categoria de identidade socioreligiosa
Segundo explicitam Poutignat e Streiff-Fenart, essa conversão de uma (VIANA, 2007, p. 42), como alternativa às peculiaridades analíticas das
fronteira étnica em fronteira cultural implica no recurso à etnicidade relações étnico-raciais. “Afro-brasileiro” e “afrodescendente”, longe de
como parentesco fictício: serem sinônimos, são expressão desencontradas, não necessariamente
sobrepostas ou caminhando lado a lado na estrada tortuosa pela cidadania
Quando a filiação de membros não-nativos torna-se um traço permanente negra. Não à toa destaca Capone o fato de que
e um método sistemático de recrutamento de um grupo que representa
a si mesmo como uma comunidade étnica, este se dota geralmente de
mecanismos culturais que permitem traçar um parentesco fictício entre Até os cultos que se consideram depositários de uma tradição africana,
os nativos e os assimilados. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 2011, p. 161) como o candomblé nagô, não são mais, e isso há muito tempo, o apanágio
dos descendentes de africanos. Na verdade, mesmo nos terreiros mais
A filiação mítica de qualquer indivíduo (isto é, de um indivíduo de tradicionais da Bahia encontramos iniciados brancos e até nisseis. A
identidade “africana” está, portanto, completamente dissociada de toda
qualquer origem étnica) a um orixá, ao lado da sua filiação iniciática a origem étnica real: é possível ser branco, louro de olhos azuis e dizer-se
um sacerdote, através das chamadas obrigações-de-santo (com inclusão “africano”, por ter sido iniciado em um terreiro tido como tradicional.
necessária numa linhagem mística e numa comunidade ritual – o terreiro) (CAPONE, 2004, p. 48)
é o mecanismo que permite a absorção (“recrutamento”) de sujeitos
externos, aliás numerosos, no candomblé e na umbanda. É o que a “teoria Essa “disponibilidade” cultural pode ser entendida como reflexo da
nativa” (o discurso mítico) afro-brasileira abarca sob a expressão família- natureza fundamentalmente contrastiva da etnicidade, na medida em que
de-santo, entendida por Bastide como uma “sociedade de assistência “esta se exprime como um sistema de oposições ou contrastes” (PINHO,
pecuniária e moral, (...) de seguro mútuo, de união fraternal, que mantém 2004, p. 72) nunca estanque, mas sempre relacional. A identidade não
o espírito comunitário africano” (BASTIDE, 2000, p. 80). Devemos, nesse é um diagrama absoluto, mas um jogo relativo, pressupondo polos de
contexto, secundar R. L. Segato ao afirmar a raça como signo, antes num atração, repulsão e interlocução que são sua conditio sine qua non. Tão
sentido político que genético. Desde esse marco identitário aberto ou constrastiva é que desemboca em situações inusitadas, qual a da “etnia”
“disponível”, o candomblé caracterizara dos “brasileiros” (descendentes de ex-escravos negros que retornaram à
África no século XIX) no Togo, em Gana, no Benim25.
(...) uma tradição africana que atraiu e incluiu eficientemente a população
Assim, embora tenhamos nos referido anteriormente à ideia de
branca em suas fileiras, constituiu uma estratégia decisiva de suas
lideranças históricas para garantir sua sobrevivência – crescer a expensas uma “matriz africana”, o fato é que subsistem inúmeras africanidades
do Branco significou sobreviver (...). Se, por um lado, as diferentes religiões dentro do território do Estado-nação brasileiro. Não se trata apenas de
de matriz africana oferecem o que chamei de códice africano no Brasil como reconhecer a diversidade das origens e cosmovisões que compuseram
conjunto de premissas estáveis de uma filosofia, construção de gênero
e formas de organização e sociabilidade diferenciadas dentro da nação, 25 Nesse período, de 3.000 a 8.000 afro-brasileiros retornaram à África. “De fato, o que fizeram foi estabelecer
uma colonização informal que criou enclaves de comunidades afro-brasileiras na costa da África Ocidental, em
esse códice é mantido pelos seus especialistas como um códice aberto, no territórios que hoje são chamados de Benin, Togo, Nigéria e Gana. Algumas destas comunidades que floresceram
sentido de disponível (enquanto códice de matriz afro-brasileira) para toda no século XIX existem ainda hoje naqueles países. Celebrações de festas brasileiras, nas quais a bandeira brasileira
é exibida com orgulho, ainda têm lugar no Benin. Comidas brasileiras tais como feijoada, kosidou (corruptela de
24 “Nos Estados Unidos (e também em outros países), o rótulo agora se aplica tanto a aspectos da cultura cozido) e concada (corruptela de cocada) são ainda consumidas com satisfação em áreas francófonas da África
popular quanto a posições assumidas individualmente por professores e outros intelectuais, ou coletivamente (no Ocidental por pessoas que se proclamam “brésiliens”. (AMOS e AYESU, 2005). É o caso, também, dos agudá no
caso norte-americano) por alguns departamentos universitários.” (FARIAS, 2003, p. 319). Benin (GURAN, 2002).

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o contingente populacional e o paradigma epistêmico de genealogia pela historiografia brasileira27, permanece, contudo, um terreno de
negra, mas principalmente de identificar as variações e possibilidades disputas e desacordos intermitentes28. Aqui, a nosso ver, é preciso
inscritas no corpo da própria tradição. Essas marcas e fronteiras tornam- combinar à metáfora da fronteira, a metáfora da origem (PINHO, 2004,
se evidentes desde a categoria nativa da “nação” (LIMA, 1976). De acordo p. 73). Diferenças contextuais integram esse panorama, é claro, porém
com a fala do povo-de-santo, existiriam diversas nações de candomblé no estamos, de qualquer maneira, diante de idiomas políticos sincréticos,
Brasil, cada qual com suas especificidades em relação à liturgia, à língua que incorporam conceitos advindos do histórico contato interétnico para
ritual, ao panteão e aos mitos (nação xambá do culto xangô do Recife, fortalecer a própria contraposição do negro no plano simbólico-político.
nação angola, nação congo, nação jêje ou jêje-nagô, nação kétu, etc.). O Num mesmo golpe, é necessário afastar o olhar ideologizado de
emprego sincrético do termo, de plano, uma releitura eloquente, já que parte do campo de pesquisa atual sobre o assunto, que insiste em
tais “nacionalidades africanas” têm um sentido marcadamente colonial: sobredimensionar o lugar da “pureza” na tradição, arbitrariamente
identificando-a aos terreiros de rito nagô-ketu. Essa interferência de uma
O uso inicial do termo “nação” pelos ingleses, franceses, holandeses e
elite intelectual do candomblé, em associação a atores da academia, vem
portugueses, no contexto da África ocidental, estava determinado pelo
senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monárquicos sendo destacada como processo de consolidação duma “nagocracia” ou
europeus dessa época [sec. XVII e XVIII] (...) esses estados soberanos “quetocracia” no Brasil29:
europeus encontraram um forte e paralelo sentido de identidade coletiva
nas sociedades da África ocidental. (PARÉS, 2007, p. 23) A ideia de pureza religiosa como vemos é um mito que alguns adeptos
procuram vivenciar no candomblé e que estudiosos procuraram
Esse tipo de designação “metaétnica”, contudo, é significativo de um evidenciar. Este ideal de pureza é de fato mais um mito que influencia a
espaço de mobilidade e hibridismo, sendo a própria “nação”, nesses realidade religiosa. No passado, foi acentuado por intelectuais, e apesar
termos, um artefato cultural26. O discurso remete não apenas a uma das críticas que recebe, retorna hoje no processo de reafricanização ou
dessincretização. (FERRETI, 1995, p. 71)
diferenciação interna ao campo de interação dos cultos afros, mas a um
recorte dentro da nação entendida como sociedade global, a “nação Mas, se é fato que o mito goza de materialidade e veracidade para
brasileira” como lugar de exercício da soberania do Estado. Sob essa ótica, as ciências sociais, devemos seguir o rastro da tradição já não em busca
o uso do termo “nação”, que sugeriria, a priori, a internalização de uma de uma pureza irredutível, mas da “pureza” enquanto categoria nativa,
relação de colonialidade, apresenta-se como uma apropriação ativa, um ou seja, como veículo de poder, na medida em que subsidia dispositivos
contra-uso descolonial da figura para recortar uma diferença em relação discursivos e argumentos de legitimação entre diferentes nações,
ao status quo. Somos levados, assim, a resgatar a análise de Ramos sobre tradições e “modos de fazer” no campo religioso afro-brasileiro. O
o emprego político do conceito nas lutas e táticas dos povos indígenas: paradoxo do tradicional, no entanto, implora para ser resolvido, já que
“a crítica à pureza não pode ignorar a tradição preservada em muitos
“Nação” é uma palavra que entrou de contrabando, clandestina, como
grupos” (FERRETI, 1995, p. 71). Invocamos, em nosso auxílio, o conceito
diz Bourdieu (1989), na retórica indigenista brasileira. Nos Estados Unidos
o uso de “nações indígenas” serviu como uma espécie de senha para a de sincretismo, para testá-lo. Até que pondo ele nos será de alguma valia?
tomada de territórios pelo nascente Estado norte-americano através de Concordamos com Sodré no que tange ao caráter inclusivo do candomblé
declarações de guerra e assinaturas de tratados, ainda que fantoches, com
os donos desses territórios. Já no Brasil, o termo “nações indígenas” é 27 Depois dos trabalhos vanguardistas de R. Bastide (BASTIDE, 1974) e J. Thorton (THORNTON, 2004), em ensaio
de fôlego, R. Silveira apresenta o “estado da arte” nesse campo: J. Lorand Matory, “Jeje: repensando nações e
recente e surgiu da consciência de que nunca se reconheceu nas culturas- transnacionalismos”, Mana, vol. 5, nº 1, (1999), pp. 57-80; Mary Karasch, “‘Minha nação’: identidades escravas no
etnias indígenas um mínimo de vulto que merecesse crédito político. fim do Brasil colonial”, in Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), Brasil: colonização e escravidão (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2000); Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil colonial 1500-1808, (Rio de Janeiro, Editora Objetiva,
(RAMOS, 1993, p. 5)
2000); Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000; Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista:
As mesmas considerações nos servem para propor uma analogia história da festa de coroação de Rei Congo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002; Juliana Barreto Farias, Carlos
Eugênio Líbano Soares & Flávio dos Santos Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de
com as nações de candomblé. Tema hoje razoavelmente explorado Janeiro, século XIX, (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005); Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história
e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas, Editora da Unicamp, 2006 (SILVEIRA, 2008, p. 246).
26 “Havia naturalmente, entre os negros, as diferenças étnicas, a diversidade das “nações” na diáspora. Isto se 28 Revisitando R. Vainfas, Silveira propõe, entre outras coisas, que “nação era uma palavra que exprimia a
entrevia especialmente na esfera do trabalho de “ganho” (ferraria, sapataria, barbearia, carpintaria), em que os diferença” (SILVEIRA, 2008, p. 282), mais do que a identidade, o que nos pode servir de alerta contra a uniformização
negros, forros ou não, se organizavam etnicamente através de pontos de trabalho, conhecidos como “cantos”, republicana.
espalhados pela Cidade de Salvador e existentes até os primeiros tempos do século vinte.” (SODRÉ, 1988, p. 54) 29 Uma revisão dos autores que tem trabalho a problemática encontra-se em: FERRETI, 1995, p. 64-71.

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brasileiro, que, em sua formação – estruturado de maneira relativamente esses dois registros são claramente diferenciados, de modo que se tem
estável somente em meados do sec. XIX – teve de incorporar múltiplas bastante lucidez sobre qual o santo a ser cultuado em cada contexto, com
tradições numa estrutura suficientemente plástica, que o autor defende cada sistema de signos.
ser o padrão jêje-nagô (SODRÉ, 1988, p. 53). Assim, ao levar em conta A hibridização, é verdade, é sempre um processo de mão-dupla,
culturas advindas de inúmeras localidades na África, além dos outros gostem ou não os puristas, ainda que por vezes ela ocorra em assimetria
parceiros no xadrez colonial (brancos, índios, mestiços, etc.), o próprio de condições/posições. Isso não se expressa apenas na interface entre o
candomblé seria por natureza um “acordo” (SODRÉ, 1988, p. 53) cultural, cristianismo e as religiões de matriz africana. De fato, existiram relações
testemunha da diversidade e produto de transações diatópicas: mais horizontais em nossa história. A figura do “caboclo” – tradução mítica
do elemento indígena – no candomblé e na umbanda pode exemplificar
No Brasil, esse “grupo zelador de orixá” não é já-dado ou natural, mas
nossa visão. A solidariedade histórica e as trocas políticas entre negros
construído. (...) A construção do grupo “negro de terreiro” no Brasil
obedeceu, como já se observou, a uma reterritorialização condensadora. e índios são rememoradas nos cultos afro-brasileiros na forma de uma
(...) Aqui, portanto, reelaboravam-se ou redefiniram-se as regras originais “posição comum de respeito e homenagem aos donos originais da terra,
com o objetivo de preservar uma matriz fundadora. (...) [Pois] a posição aos ancestrais do território” (SODRÉ, 1988, p. 60). Seja nas cerimônias
litúrgico-existencial do elemento negro foi sempre a de trocar com as chamadas de toré, seja nas “mesas de jurema” famosas especialmente
diferenças, de entrar no jogo da sedução simbólica e do encantamento
festivo, desde que pudesse, a partir daí, assegurar alguma identidade nas regiões Norte e Nordeste, seja ainda nos “candomblés de caboclo” da
étnico-cultural e expandir-se. Não vige aí o princípio lógico do terceiro Bahia e ramificações, ou cotidianamente nas giras de umbanda, a verdade
excluído, da contradição: os contrários atraem-se, banto também é nagô, é que “a participação dos Caboclos enquanto entidades que se incorporam
sem deixar de ser banto. (SODRÉ, 1988, p. 53) nas cerimônias de transe dos cultos afro-brasileiros é comum em todo o
país”31. Recuperando o início desta discussão, a presença dos caboclos,
Nesse sentido, apenas, é possível falar de sincretismo, como acordo,
os quais se afirmam e são afirmados como os autênticos brasileiros
como apropriação ativa (e não imposição passiva) de elementos de
(em detrimento, inclusive, do elemento branco, também considerado
alteridade na lógica simbólica estruturalmente “imexida”, jamais como
estrangeiro, invasor de terras alheias e seu ilegítimo possuidor – e
uma mistura sumária e sem coerência no balaio da história. Africanos e
por este motivo, cantigas como a que abre este texto enfatizam que o
seus descentes nas Américas tiveram contato com um universo religioso
verdadeiro sentido do encontro entre povos se deu entre autóctones
culturalmente distinto do seu, embora o catolicismo barroco (com seus
americanos e africanos no Novo Mundo, estes vindo conhecer a sagrada
múltiplos santos e devoções), não fosse de todo ilegível segundo os
juremeira daqueles), atesta a tensão duboisiana entre subjetividade e
próprios padrões africanos. Não podemos excluir o impacto daqueles
nacionalidade. Nesse sentido, espanta o patriotismo ligado à figuração do
(especialmente negros libertos) que, dentre eles,
“caboclo”, palco de intercâmbios e negociações implicadas na identidade
(...) se tivessem abrasileirarado e escolhido experimentar uma dupla afro-brasileira:
inserção religiosa, uma vez que sua religião de origem não exigia Tudo o que eu tive
exclusivismo devocional. Seu catolicismo, porém, povoado desses
interesses celestes, era tipicamente popular, gravitava em torno de uma foi Deus quem me deu.
“economia religiosa do toma-lá-dá-cá” entre devoto e devoção, como Eu nasci no Brasil,
a caracterizou Laura de Mello e Souza. Um catolicismo, enfim, que se
aproximava da lógica do candomblé. (REIS, 2008, p. 281) brasileiro sou eu.32
acrescentar que, através da prática do ritual em pauta, eles fazem a sua crítica, expressam o seu desejo, a sua
Em grande medida, portanto, foi o catolicismo popular que se aspiração e esperança de um dia ainda viverem numa sociedade sem tantos sofrimentos, discriminações e exclusão
africanizou durante o Brasil colonial, e não somente o oposto. Enegreceu- social. Por certo, esta é a imagem ou forma de representação que projetam deste nosso Brasil.” (SILVA, 2010, p.
180).
se o cristianismo barroco e consubstanciou-se em mais um ato 31 Na Bahia, eles podem “baixar” até mesmo em candomblés de Eguns, cujo ritual, altamente rígido, segue a
performativo de politização30. Apesar disso, da parte do povo-de-santo, tradição africana do culto aos ancestrais mortos. “No terreiro de Babá Aboulá, um Egum caboclo, Baba Iaô, quase
sempre encerra a festa. Nessa ocasião toda a assistência, já do lado de fora do barracão, canta em língua brasileira
em homenagem a um dos mais festejados Eguns daquele terreiro.” (GANDON, 1997, p. 150).
30 É o que identifica, ainda hoje, Rubens Alves da Silva identifica, por exemplo, nas práticas ritualístico-festivas do 32 “Chula” recolhida durante cerimônia de candomblé-de-caboclo realizada no Abassá de Xangô e Caboclo
Congado mineiro: “Em suma, através do “mito de origem” do Congado os sujeitos desse ritual falam das relações Sultão, em 2010. Sobre este tipo de cântico, afirma C. Ribeiro: “É comum ouvir-se, nos candomblés-de-caboclo,
raciais no espaço onde vivem e, pelo que se percebe, sem estarem iludidos quanto ao racismo e à discriminação cantigas mencionando nos seus versos uma certa exaltação ao lugar de nascimento dos índios. Por exemplo: “Sou
que sofrem quotidianamente por serem – nos dizeres poéticos – “pretos ou quase pretos”. Se estou correto, devo brasileiro/Sou brasileiro, imperador/Sou brasileiro, o que é que eu sou?”. Outra: “Minha mãe é brasileira/o meu pai

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O caboclo surge como o protótipo do brasileiro nato, tanto quanto olhar significador do presente. Por outro lado, ele é também ator quando
brasileiros natos o próprio candomblé e a umbanda. Serve de espelho, a arkhé encarna-se na história vivida, ao passo que esta enriquece e
ainda, à conversão político-territorial do africano ladinizado sob a vergasta expande a fronteira da mitologia: “os mitos constroem em seus discursos
da escravidão, sem outra opção senão reinventar-se: as diretrizes cognitivas e comportamentais dos indivíduos em sociedade”
(TRINDADE, 2000, p. 165). Esse processo dialético de recombinações
Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade se opera segundo uma lógica de bricolagem (TRINDADE, 2000, p. 160),
ou como herança histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no porém não aleatoriamente. É preciso encontrar homologias e metáforas
mundo branco. E logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se para a passagem da história ao mito e vice-versa:
e parecer brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem ser católicos.
Podiam preservar suas crenças no estrito limite dos grupos familiares,
muitas vezes reproduzindo simbolicamente a família e os laços familiares O mesmo ocorre no momento de lembrar essas experiências do passado
através da congregação religiosa, daí a origem dos terreiros e das famílias- nos esquemas da memória, quando as dimensões mítica e histórica se
de-santo. (PRANDI, 1996, p. 56) interpenetram, passando do nível mítico para o histórico: ao evocar as
situações passadas, o tempo cronológico e os espaços social e geográfico
Conjunto de práticas e de discursos de resistência e de mediação, descritos coexistem no tempo e espaço mítico de evocação. (TRINDADE,
2000, p. 155-156)
a religiosidade afro-brasileira baliza a leitura de uma das três ditas
“vertentes civilizadoras” do Brasil sobre o choque intercultural americano O trabalho de L. Trindade sobre a memória da escravidão ressalta o
(considerando o teor também ficcional do próprio “mito das três raças”). lugar do preto-velho34, por exemplo, no imaginário de descendentes
Tendo de partilhar um mesmo território com europeus e povos indígenas, de africanos, constatando que a perspectiva “sincrética”, ou, analógica,
os africanos foram autores notáveis de uma narrativa sobre suas relações explicita-se numa determinada forma de recordar (“recortar”) o mundo e
com estes Outros: de “ser-no-mundo”: “os indivíduos delegam às divindades a ação histórica
Três pedras, três pedras, e, mediante rituais, eles atuam como divindades” (TRINDADE, 2000, p.
165). À semelhança da protonarrativa de teor mitológico, recuperada
três pedras dentro desta aldeia,
por C. Ford sobre os traumas sociais do povo bacongo (SÃO BERNARDO,
uma maior, outra menor 2006, p. 66), tanto o caboclo como o preto-velho são elementos míticos
a mais pequena é que nos alumeia33 articulados para contar uma história não sobre a África distante, mas
A interpretação de Ribeiro sobre o cântico vai justamente nesse sentido: sobre o Brasil, seus traumas, desencontros e desigualdades. De um lado,
a constância das divindades entre os homens e, de outro, a transformação
Sentimos neste verso a citação das três raças: a negra, a branca e a dos homens em divindades esgarçam o limiar entre mito e histórica, mas
indígena, sendo que essa última está mencionada na derradeira estrofe “a
mais pequena é que nos alumeia”, em relação à minoria em que ficaram
reforçam a fronteira entre o Ocidente e seus enclaves de diferença, a
reduzidos mas, no entanto, na condição de donos da terra, consideram-se cidade e o terreiro, levando uma ebômi35 a afirmar sobre si mesma: “Meu
a pedra mais luminosa. (RIBEIRO, 1983, p. 78) nome é Maria da Silva da parte de lá, Oyá Ladè da parte de cá”36 (FREITAS,
1995, p. 80).
A mais luminosa de todas, entretanto, é a pedra da memória. Flexível
pedra, que recebe inscrições e superposições quase sem espanto. É na
interseção da memória individual com a memória coletiva que podemos 3. “Pequenas Áfricas”: o terreiro contra a cidade
deslindar o nó no fio de Ariadne da tradição e da mudança. Pois o Na fala de Maria da Silva, qual é a linha divisória entre “a parte
narrador conjura e esconjura reminiscências seletivamente, conforme um de lá” e “a parte de cá”? O portão (ou a porteira, como preferem os
imperador/ Eu sou brasileiro. Brasileiro o que é que eu sou?”. Mais uma: “Brasileiro é sinal que Deus me deu/nasci
membros do culto) e os muros do terreiro. Segundo a leitura de Bastide,
no Brasil/Brasileiro sou eu”. Existe uma saudação à Bandeira do Brasil, à moda do índio. Eis: “O verde é esperança/
O Amarelo é desespero/ O Azul é a liberdade dos caboclos brasileiros.” (RIBEIRO, 1983, p. 78) 34 Eles mesmos, figuras cujo lastro histórico remete ao período pós-1885, ano de edição da Lei dos Sexagenários.
33 Cantiga recolhida no Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, exatamente nos mesmos termos em que encontrada Abandonados por seus senhores, em grande medida dispensados das obrigações de sustento dos cativos idosos,
por Carmem Ribeiro na década de 1980, em Salvador. Isso pode ser explicado pelo fato de ser baiano o babalorixá muitos libertos e libertas encontraram na comercialização de saberes mágicos, fitoterápicos e medicinais a única
responsável pela referida casa, demonstrando que à dispersão migratória corresponde uma dispersão de padrões fonte de renda para sobreviver numa sociedade que desestimulava as redes de sociabilidade negra.
rituais que desembocam, eles mesmos, num modelo de negociação com os estabelecidos da metrópole paulistana 35 Adepta de alta hierarquia, com mais de sete anos de santo, isto é, de iniciação.
no período, isto é, as casas e terreiros de umbanda, então em ascensão. 36 Ressalte-se que Oyá Ladè seria a denominação (o dito “nome de santo”, orukó ou djina) que recebeu aquela
iniciada depois de cumpridos os ritos de incorporação à comunidade religiosa, chamados raspagem ou feitura.

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o terreiro, espaço sagrado, é uma espécie de “África em miniatura”, de regulada pela lei do mercado. Se o espaço do terreiro não é apenas terra,
“microcosmo da terra ancestral”37 (BASTIDE, 2000, p. 93). Tendo em vista mas território político, é porque se entende como extensão, um posto-
que o candomblé, da forma como hoje se encontra estruturado, é um avançado da África no além-mar, depois de ritualmente demarcado:
fenômeno eminentemente urbano, vale a pena findar nosso interlúdio
com um rápido sightseeing pelos marcos da territorialidade negra gravada Inscrito no corpo da terra, o terreiro é o espaço-lugar de uma potência
sagrada, mas, também, marco tópico de uma diferença. É um espaço
a sangue e suor no coração da cidade desigual. diferente do espaço da classe-etnia dominante. Um lugar que se fez imantar
por outros signos. Que, por isso mesmo, possui uma identidade distinta da
dos lugares comuns da cidade e de sua periferia. Ali está o ponto onde o
3.1. O negro no egbé negro escravo já não é escravo, mas filho de um deus ou de uma deusa, de uma
entidade sagrada africana, de um orixá. (RISÉRIO, 2007, p. 174)
O território do terreiro é um espaço concorrente com o território da
nação. Este o primeiro ponto que queremos visitar. São dois momentos: É por isso que se convocam os deuses a habitarem naquele espaço,
afirmar o espaço do terreiro como território e afirmar esse território como todo disposto e pensado segundo a cosmologia dos orixás. O santo, não
espaço diferencial no seio da sociedade envolvente. Não se olvide que, por mero acaso, deve ser “assentado”, fixado em sua nova morada no
entre os iorubás, a instituição da família ampliada (linhagem) era central: exílio. Isso é possível pela capacidade do axé (força, tradição e força da
tradição) de “gerar espaços” (SODRÉ, 1988, p. 96), de instituir ordens.
O ebi (família, linhagem) constituía a organização social básica, geralmente
“Pouco importa a pequenez (quantitativa) do espaço topográfico do
sob a forma de linhagem agnatícia ou patrilinear. Ao ebi – e não ao
indivíduo-membro – pertenciam os bens de produção e até mesmo os terreiro, porque ali se organiza, por intensidades, a simbologia de um
títulos de nobreza. Seus membros viviam juntos no agbô-ilê (conjunto de Cosmos” (SODRÉ, 1988, p. 52). O lugar é crua paisagem, na ausência da
casas, grande comunidade). A cidade ou a vila (ilu) era formada por vários cultura, mas apropriado a serviço de uma lógica humana, o espaço ganha
agbô-ilê (SODRÉ, 1988, p. 49). um uso político, fazendo dele território. O mesmo território torna-se
Pela impossibilidade de manutenção da forma social clânica no Brasil é contra-hegemônico na medida em que fortalece a lógica do lugar próprio
que se pode afirmar o terreiro, o egbé (comunidade litúrgica organizada), (o local) em detrimento da lógica dos não-lugares ou dos lugares impostos
como unidade substitutiva, responsável pela transferência e salvaguarda (o global). Para Milton Santos,
de grande parte do patrimônio cultural negro-africano, que aqui firmou-
Há um conflito que se agrava entre o espaço local, espaço vivido por todos
se como “território político-mítico-religioso” (SODRÉ, 1988, p. 50). os vizinhos, e um espaço global, habitado por um processo racionalizador
Nem é por outra razão que existem (qual pudemos comprovar a campo e um conteúdo ideológico de origem distante e que chegam a cada lugar
diversas vezes) de dois principais espaços dentro da comunidade com com os objetos e as normas estabelecidos para servi-los. (SANTOS, 1996,
características funcionais distintas: um é urbano, de uso público e privado p. 18)
do culto, outro virgem, compreendendo árvores, fontes, nascentes e
A dicotomia entre o “dentro” e o “fora” da comunidade (a “parte
“mato” em geral. Contudo, o egbé não coincide com os limites físicos do
de cá” e a “parte de lá” do terreiro), o lugar (centro de diversidade
terreiro:
humana) e o mundo (centro de homogeneidade cultural). É verdade,
O “terreiro” ultrapassa os limites materiais (por assim dizer polo de não cabe enclausurar a análise tão somente na fricção pertinente, porém
irradiação) para se projetar e permear a sociedade global. Os membros
contextualizada, do local x global, mesmo porque foi, em grande medida, a
do egbé circulam, deslocam-se, trabalham, têm vínculos com a sociedade
global, mas constituem uma comunidade “flutuante”, que concentra e manutenção de relações transnacionais entre Bahia e Costa da África que
expressa sua própria estrutura nos “terreiros” (SANTOS, 2008, p. 33) permitiu o fortalecimento do culto ancestral no Novo Mundo (VERGER,
2002). Tal tensão, embora não permanente, é produto candente de nossa
Como espaço partilhado de vida (vida sempre, mesmo além e a despeito temporalidade angustiada sob um projeto de colonialismo geográfico.
da morte física), o terreiro é organizado como um polo diferencial, regulado Todo ordenamento, inclusive o jurídico, começa por ordenar o espaço da
pela lei da arkhé (o princípio da tradição) no meio da sociedade capitalista, vida. Assim, como expressão amadurecida do Lebenswelt (o “mundo da
vida” na ética habermasiana), a organização (o éthos ou Ettlichkeit) do
37 “L’espace sacré, c’est donc l’espace clos entre les murs ou les limites du terreiro” [O espaço sagrado é, portanto,
o espaço cerrado entre os muros ou os limites do terreiro] (BASTIDE, 2000, p. 99). terreiro responde a uma composição alternativa:

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O Atlântico negro e suas margens: direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
justiça nas religiões afro-brasileiras

É uma solidariedade para além das dimensões do individualismo burguês, as formas populares de usufruto da cidade, um risco, acreditavam, para
com raízes na divindade (princípios cósmicos) e na ancestralidade a “saúde pública”. A racionalização do espaço público através de políticas
(princípios éticos). Por meio da aglutinação grupal, acumulam-se de sanitaristas e ordenadoras, impondo limites à formas de ser, de estar e de
preferência homens, seres-forças, ao invés de bens regulados pelo valor
de troca. (SODRÉ, 1988, p. 108) morar negras (SANTOS, Y. 2010), esteve presente com ênfase nos Códigos
de Posturas Municipais do período e posteriores. A política do “bota-
A casa de santo, o ilê axé (“casa da força”), o terreiro de candomblé abaixo” no Rio de Janeiro do início do sec. XX desabrigou cirurgicamente
instauram heterotopias38, espaços de convergência de muitos espaços e os negros cariocas:
de lógicas contra-hegemônicas (da sociabilidade popular), a partir de uma
inscrição solidária/solitária na territorialidade alheia, sendo, ainda hoje, Com as reformas urbanas, o prefeito Pereira Passos pretendia combater as
um dos epicentros da cultura negra no mundo dos brancos. doenças endêmicas que infestavam os lares e ruas, remodelar e arejar a
cidade com grandes avenidas e dar fim aos cortiços. A população migrante-
negra-baiana que ocupava essas habitações populares passou a residir no
espaço registrado na história cultural da cidade como “Pequena África”,
3.2. O negro na urbs branca
que consta nos mapas como Cidade Nova. (DINIZ, 2008, p. 39-40)
Contrariamente ao espaço transcultural do terreiro, o espaço da cidade
ocidental, subjugado à normalização do Estado-nação moderno - que dele Mas não apenas sobre a antiga Corte o “embranquecimento” lançou
se apoderou ao longo de verdadeiras “guerras espaciais” pelo monopólio seu olhar. O desmonte do Centro Velho em São Paulo exemplifica o mesmo
do direito de cartografar39 - atende a uma dinâmica em que imperam, tipo de estratégia biopolítica:
mormente, as verticalidades40 e não as horizontalidades:
(...) a legalidade urbana foi construída a partir de um padrão único e
supostamente universal, que genericamente correspondia ao modo de
A especificidade do relacionamento entre espaço e força tem consequências
vida das elites paulistanas no momento em que os instrumentos legais
sobre a natureza do poder exercido. Assim, o poder da Polis – assentado
foram propostos. A análise detalhada desses territórios revela como
em forças cosmológicas, em deuses – difere do poder romano da Urbs, que
o direito urbanístico, enquanto discurso e processo, funciona como
associa espaço de poder político com espaço fundiário. Subjaz ao poder
mecanismo de criação de um espaço (ainda que imaginário) definidor de
romano a ideia do moderno Estado-nação, que busca a unificação à base
limites, domínios e hierarquias, condenando singularidades divergentes.
de denominadores comuns redutores das diferenças, avessos à pluralidade
étnico-cultural. (SODRÉ, 1988, p. 91) (ROLNIK, 1997, p. 61)

Prova disso foram todas as tentativas, ao longo do tempo, de “limpeza Saltam dessa análise a minúcia e o rigor com que se buscava assegurar
étnica” ou de “desafricanização” (FERREIRA FILHO, 1998-1999) das ruas, cada vez mais a “tranquilidade” e “salubridade” nos centros urbanos
das praças, dos portos, com o álibi do regramento oficial. É patente nos em expansão, reflexos de todo um discurso “civilizatório” que permeia
governos e na legislação do sec. XIX a preocupação em, ao lado das elites as políticas oitocentistas. Como recursos retóricos insistentes, vemos
brancas, projetar o Brasil como nação desenvolvida. Médicos higienistas, o apelo à ordem e saúde públicas empregados na batalha ferrenha
seguidores da literatura francesa, darão início a verdadeira cruzada contra contra a mais enraizada cultura popular. No imaginário europeizado e
38 O conceito, originalmente apresentado por Michel Foucault na conferência “Utopia e heterotopias”, é assim
“embranquecedor” das elites brasileiras não cabiam folguedos pagãos,
assumido por Joaquim Herrera-Flores na esfera da Teoria Crítica dos Direitos Humanos: “A heterotopia, à diferença exóticos tambores, procissões mulatas, nem grandes funerais de reis
do impulso utópico, não se baseia na esperança de um novo começo histórico situado no futuro. A densidade
conceitual da heterotopia reside, ao contrário, no impulso de situar-nos em meio à história, aos processos e desde
negros, como tantas vezes retratou Debret em suas obras. Para colocar no
aí considerar todo o existente como algo em devenir e transformação constante. Quer dizer, a heterotopia, como seu lugar os calundus e candomblés, para sanear a cidade, numa palavra,
outro lugar a partir do qual se construirá o radicalmente novo, não supõe situar-nos mais além da história, do fluir
dos processos, das mutações da realidade, mas, ao contrário, reapropriar-nos desse fluir e dessa possibilidade de para nos modernizar é que estavam aí tanto as leis como os fiscais, a pena
mutação para conseguir condições que nos permitam devenir outra coisa, devenir algo novo no marco da realidade dos doutores e o peia dos feitores.
e da época histórica na qual vivemos.” (HERRERA FLORES, 2009, p. 35)
39 “A modernização dos arranjos sociais promovidos pelas práticas dos poderes modernos [pelo Estado] visava
ao estabelecimento e perpetuação do controle assim entendido. Um aspecto decisivo do processo modernizador
Em nossos dias, o impasse da segregação sócio-espacial permanece:
foi portanto a prolongada guerra travada em nome da reorganização do espaço. O que estava em jogo na principal favelas, periferias, vilas, aldeias e quilombos são mais objeto de
batalha dessa guerra era o direito de controlar o ofício de cartógrafo.” (BAUMAN, 1999, p. 37).
40 “Na democracia de mercado, o território é o suporte de redes que transportam regras e normas utilitárias, criminalização que de atenção propositiva dos poderes públicos. O
parciais, parcializadas, egoísticas (do ponto de vista dos atores hegemônicos), as verticalidades; enquanto as programa de branqueamento pactuado entre as elites, ao lançar os
horizontalidades, hoje enfraquecidas, são obrigadas, com suas forças limitadas, a levar em conta a totalidade dos
atores.” (SANTOS, 2008, p. 143).

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justiça nas religiões afro-brasileiras

marcos inaugurais da nação brasileira, foi recepcionado no ideário das A diferenciação tangenciada discursivamente se realiza espacialmente:
instituições estatais, traduzindo-se em ação repressiva ou omissão a nação, ao imprimir a tradição e a cultura sobre uma determinada
expressiva (SKIDMORE, 1976). E sob o influxo da urbanização e da fração de terra, institui um território (Onilé41), considerado ele mesmo
industrialização, na segunda metade do século XX, chegou-se mesmo ao em descompasso com território nacional. Há e não há integração entre
ponto de se decretar a “morte branca do feiticeiro negro”, supostamente o terreiro e a cidade. Num primeiro momento analítico, ele representa
sepultado pelo processo de racionalização interna experimentado por um recorte diferencial em termos civilizacionais. Não obstante, logo
uma parcelada do campo religioso afro-brasileiro, como a umbanda em seguida, podemos distinguir na nebulosa quase homogênea da
(ORTIZ, 1999). Tentemos vencer essa miragem. metrópole, sinais e marcas no tecido da polis que revelam a presença do
mítico no âmago daquilo que deveria ser a expressão mais bem-acabada
de racionalidade ocidental, de modernização, de secularização. Conforme
3.3. O negro na polis multicromática buscamos demonstrar, o ritual politiza o espaço da cidade à medida que
De um modo geral, as religiões de matriz africana, sem reinventarem-se, dele se apropria. A paisagem urbana se conforma na produção conflituosa
estariam há muito condenadas na cidade que lhes é inóspita. A ampliação do espaço, como se dá na Festa do Bonfim42.
da democracia, na perspectiva desses grupos, não tem propriamente a A seu modo, a etnografia de Silva sobre os usos místicos do urbano pelas
ver com a laicização do espaço público, mas com a possibilidade de seu religiões afro-brasileiras traz mais aportes para sustentar a tese de que
reencantamento por meio do acesso plural aos seus (des)vãos. Porque, a superação do modelo político-urbanístico da urbs monocromática por
ainda que o espaço físico seja o mesmo, não é a mesma avenida aquela uma verdadeira polis pluriétnica e multicultural passa pela ressignificação
em que passa o cortejo militar e aquela em cuja esquina se deposita da cidade e de seus exclusivismos, ora quando a tradição religiosa
uma oferenda. Se a casa e a rua já foram lidas pela antropologia cultural recompõe os espaços naturais indispensáveis à realização do culto, ora
na chave de uma dicotomia estruturante das relações sociais no Brasil quando reconhece nos nichos do artifício humano (esquinas, cemitérios,
(DAMATTA, 1997), para o candomblé elas surgem sem solução de etc.) o domínio de seus deuses:
continuidade, conquanto atendendo a funcionalidades cosmológicas
distintas. Aqui caberia uma investigação de semiótica, de “poética” do A presença do terreiro na cidade é, pois, o resultado dessa dinâmica
espaço (BACHELARD, 1988), pela qual não nos agora toca incursionar. O relacional entre o dentro e o fora da religião construída através do diálogo
que podemos é evidenciar a maneira como cada código de práticas sociais entre os dois universos. E nesse diálogo entre o candomblé e a cidade, a
incorporação de um universo pelo outro permite que os deuses (e os seus
determina uma singular (e, não raro, conflituosa) apropriação dos lugares
ritos) se transformem para habitar a cidade (como espaço físico e social)
comuns: e que esta se faça cada vez mais apropriada para recebê-los e protegê-los
como parte de seu amplo mercado de bens simbólicos. (SILVA, 2000, p.
As religiões afro-brasileiras têm enfrentado oposição em várias cidades 122)
brasileiras também sobre onde depositar os “despachos”, ou oferendas
aos deuses. Em nome da proteção ambiental e da consciência ecológica, Não se deve desprezar a força política dessa reterritorialização,
os locais tradicionalmente utilizados para depósito dos sacrifícios - lagoas,
a intensidade mística e insurgente da simbolização como manifesto
rios, cachoeiras, matas - têm sido protegidos, ou pelo menos negociados
em sua utilização com outras entidades do estado ou da sociedade civil. De reivindicativo de direitos e isonomias. Toda essa escrita do imaginário
qualquer maneira, há um avanço político aqui: até trinta anos atrás, jogar fundamenta-se numa determinada concepção marginal de justiça, de
despachos na rua, nas esquinas ou mesmo em terreno baldio era visto cidadania e de dignidade humana, objetos de disputa e de permuta entre
como um ato de poluição simbólica por parte dos adeptos do catolicismo Thémis e Xangô.
que se sentiam soberanos em representar a sociedade brasileira como
um todo. E era também um “símbolo do atraso” em termos do relógio 41 Ou seja, a própria terra, o solo, que deve ser periodicamente alimentado e consagrado ritualmente.
da modernidade: provocava vergonha para aqueles que olham o laicismo 42 “(...) estudando as manifestações festivas e religiosas que ocorriam na península de Itapagipe, pudemos
como um sinal de “evolução” e “desenvolvimento social”. Agora a discussão observar a dinâmica da longa e multifacetária história da Bahia. Uma história de luta, que envolveu questões
relacionadas com religião, a política, a moralidade, continuidades e rupturas da tradição, valores do catolicismo,
pode superar o preconceito e transformar-se numa negociação entre religiosidade africana e a realidade do amplo processo de miscigenação cultural (...) Embora fugaz, pois se realiza
iguais em torno de um bem comum, qual seja, a área pública. (CARVALHO, apenas uma vez por ano, a festa do Bonfim confere à cidade um significado particular, apresentando uma linguagem
1999, p. 15-16) própria” (SANTANA, 2009, p. 227).

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justiça nas religiões afro-brasileiras

4. Quando Thémis encontra Xangô: encruzilhadas simbiose não abolida entre a matriz judaico-cristã de pensamento e as
da justiça e dos direitos fabulações do direito moderno:

Logo ali, na encruzilhada onde Thémis – síntese da herança greco- La referencia a Dios es sin duda uno de los rasgos más arcaicos, pero
romana do direito ocidental – esbarra com Xangô – ícone da justiça de también más recurrentes, del pensamiento jurídico, aun cuando la
dinastia nagô-iorubá – Ogum, divindade de (van)guarda, busca abrir o secularización progresiva de nuestros derechos occidentales y la
caminho estreito rumo a uma cidadania negra, ainda hoje mais margeado “emancipación” al menos parcial del derecho “humano” en relación al
derecho “divino” redujo aparentemente la actualidad de este fenómeno
de mocambos que de sobrados. Antigos são os dilemas, contemporâneos (...) Kelsen lo afirma con nitidez: entre Dios y el Estado no se establece
os debates que os pretendem enfrentar. Velhos são os deuses, novos são sólo un paralelo lógico; existen relaciones reales que los aproximan (OST e
os mundos que passaram a habitar. Todavia, conforme discorre Kwame KERCHOVE, 1991, p. 73-76)
Appiah, não são irredutivelmente inconciliáveis, nem no plano cognitivo-
epistemológico, nem no plano ético-político, aquilo que, na falta de termos Além da imbricação estrutural entre teologia cristã, teoria do Estado
mais adequados, poderíamos caracterizar como “tradicionalidade” e e filosofia política que se revela ainda (oni)presente (no fundamento
“modernidade” (APPIAH, 1997, p. 191-192). Enquanto a intolerância, a transcendental da autoridade do ordenamento jurídico, na sua
estigmatização e a expectativa dos direitos instituídos, porém negados43, organização piramidal hierarquizada, na sistemática de “absolutidão” e
fustigam o povo-de-santo brasileiro, em Gana, um pássaro encara o ausência de anomia etc.), indícios menos monumentais, mas nem por
próprio rabo. Este não é um koan chinês, mas um ideograma adinkra. O isso menos sintomáticos, assomam nos símbolos religiosos em exposição
pássaro, por sua vez, é Sankofa, imagem que lembra: “Se wo were fi na wo nas repartições públicas, nas casas de leis, nas salas de justiça. Uma
sankofa a yenkyi”, noutras palavras, “nunca é tarde para voltar e apanhar permanência justificada, a despeito dos imperativos angustiados da
o que ficou atrás”: laicidade, como traço cultural do povo brasileiro.
Cultura que, a propósito, salvaguardada nos artigos 215 e 216 da
O ideograma Sankofa remete à missão e ao momento de recuperar a Constituição Federal de 1988, deixa, pouco a pouco, de ser patrimônio de
dignidade humana desses povos. Espalhados pelo mundo, africanos e seus contemplação narcísica, para tornar-se instrumento de empoderamento
descendentes se reconhecem herdeiros de uma civilização que engendrou
a escrita, a astronomia, a matemática, a engenharia, a medicina, a filosofia dos povos e comunidades tradicionais, categoria esta que abarca também
e o teatro. O conhecimento e o desenvolvimento permeiam a história da o povo de terreiro, por expressa disposição do Decreto n. 6.040/2007. Na
África, em sistemas de escrita,, avanços tecnológicos, estados políticos contramão das imanências naturalizadas, novas metodologias e projetos
organizados, tradições epistemológicas. (...) Nele, o princípio Sankofa eclodem por todas as latitudes: fala-se em jurisdições indígenas e negras
significa conhecer o passado para melhorar o presente e construir o
em diversos países da América Latina, fala-se em autogoverno. No Brasil,
futuro. (NASCIMENTO e GÁ, 2009, p. 22)
o Estatuto da Igualdade Racial (Lei Federal n. 12.288/2010), entre outras
Numerosas são, neste viés, as convergências entre o repertório jus- matérias de relevo, dedicou à liberdade de crença especial atenção:
epistêmico afro-brasileiro e os desafios atuais para a confirmação de Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício
uma perspectiva não mais universalista, mas multicultural, dos direitos dos cultos religiosos de matriz africana compreende:
humanos, com destaque para as sociedades cindidas por heranças I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade
coloniais de desigual distribuição de oportunidades e de acesso a bens e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados
para tais fins;
jurídicos e a capital simbólico/cultural. A contribuição proporcionada
II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das
pelo imaginário da justiça afro-brasileira para enriquecer o estatuto respectivas religiões;
da democracia contemporânea diz respeito à introjeção, na equação III - a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições
da teoria clássica do direito, de vetores de descolonização, haja vista a beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;
43 Como exemplos de direitos cuja defasagem de implementação avulta para os religiosos de matriz africana, IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais
em relação a outras devoções, são a previdência social para seus sacerdotes (ALVAREZ e SANTOS, 2006) e a religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva
imunidade tributária dos respectivos templos e locais de culto relativa ao Imposto sobre a Propriedade Predial e religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;
Territorial Urbana (IPTU). Sobre este último ponto, remetemos ao parecer elaborado pela Associação de Advogados
de Trabalhadores Rurais da Bahia, entregue ao Município de Salvador para pleitear, com sucesso, o benefício V - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à
constitucional em favor do Ylê Axé Oxumarê, importante casa de santo da cidade (in: Revista da AATR, 2004).

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justiça nas religiões afro-brasileiras

difusão das religiões de matriz africana; é preciso ir longe para verificar a tensão que subsiste entre os valores de
VI - a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de dignidade assumidos pelo Estado Democrático de Direito, alicerçado em
natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das uma ficcional laicidade, e a prática segregacionista de suas instituições.
respectivas religiões; Permanecem vigentes em nosso ordenamento tipos como o do
VII - o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das anacrônico artigo 284 do Código Penal (embora haja alentos de mudança
respectivas religiões;
em seu atual processo de revisão), a ensejar constante criminalização da
VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal
em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de
umbanda, do candomblé, do batuque, do tambor de mina, do xangô e de
comunicação e em quaisquer outros locais. seus congêneres. Em tese, ao menos, e interpretado sem o necessário giro
Art. 25. É assegurada a assistência religiosa aos praticantes de religiões de constitucionalização, o dispositivo inviabilizaria qualquer espécie de
de matrizes africanas internados em hospitais ou em outras instituições manipulação litúrgica ou fitoterápica prescrita pela medicina tradicional
de internação coletiva, inclusive àqueles submetidos a pena privativa de afro-brasileira. Venhamos ao pé da letra:
liberdade.
Art. 284 - Exercer o curandeirismo:
Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate
à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer
seus seguidores, especialmente com o objetivo de: substância;
I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao III - fazendo diagnósticos:
ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
africanas;
Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente
II - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens fica também sujeito à multa
de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios
arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas; Nítido é o resquício de disciplinarização, de “ortopedia moral” – na
III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões expressão foucaultiana – que reside na forma como se encontra dada a
de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em redação do artigo. Trata-se de autoritária reminiscência que não merece
comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas sobreviver, uma vez que remete sintomaticamente a
ao poder público.
Ao tempo em que comunidades-terreiro começam a sair da invisibilidade (...) um confuso conjunto de todos os comportamentos que não
através da replicação, em escala nacional e com expressivo êxito, de correspondiam à vertical disciplina policial da sociedade industrial,
procedimentos de mapeamento participativo como os adotados pelo traduzível na livre punição do mero portador dos signos do estereótipo.
Esse foi o fundamento do estado perigoso sem delito, por meio do qual
projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais se pretendia apenar os desocupados, mendigos, ébrios, consumidores de
do Brasil, pais e mães-de-santo, mediadores por natureza entre mundos, drogas, prostitutas, homossexuais, jogadores, rufiões, gigolôs, adivinhos,
compõem cotidianamente conflitos, demandam perante os tribunais, magos, curandeiros, religiosos não-convencionais, etc., sem que
constroem alianças, integram-se ao planejamento e à execução de políticas cometessem qualquer delito, em função de sua pretensa periculosidade
pré-delitual. (ZAFFARONI, 2003, p. 577)
públicas e dialogam com o establishment cada vez mais intensamente. O
povo-de-santo não passa em branco. Veem e fazem-se vistos, encarnando A partir da análise do material jurisprudencial compilado por A. L. P.
o dizer dos antigos: “quem não é visto não é lembrado”. E o fazem desde Schritzmeyer, abrangendo quase um século de pesquisa (1900-1990),
seu olhar sobre a justiça, da sensibilidade jurídica44 que lhes é peculiar. é-nos lícito concluir, desde logo, que, ao contrário da opinião corrente nos
Nada obstante, impende reconhecer: mais do que ao encontro, Thémis meios jurídicos, o crime de curandeirismo segue dando azo à persecução
e Xangô estão habituados ao embate pelos sentidos da legalidade. E não penal, ainda quando absorvida pela Lei n. 9.099/1995, diante de seu
menor potencial ofensivo. Continuam tendo lugar, portanto, os episódios,
44 Na arquitetura teórica de Clifford Geertz, a sensibilidade jurídica de cada grupo social seria “o primeiro
fator que merece atenção daqueles, cujo objetivo é falar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do
amiúde burlescos, que contrapõem ditos “curandeiros”, seus acusadores e
direito. Pois essas sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os os magistrados nos palcos dos tribunais, mobilizando sentidos, no mais das
processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir (...) e, profundamente, nos meios que utilizam –
nos símbolos que empregam, nas estórias que contam, nas distinções que estabelecem – para apresentar eventos
vezes, antagônicos. Esses espaços, por isso mesmo, constituem profícuos
judicialmente.” (GEERTZ, 1997, p. 261-262).

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justiça nas religiões afro-brasileiras

“observatórios” sociológicos, refletindo, por extensão, vicissitudes das Seus ecos ainda muito terão de se ouvir. Pois, se, nas últimas décadas, o
relações de poder dramatizadas cotidianamente na sociedade brasileira candomblé pôde fortalecer-se na aproximação com as esquerdas político-
como um todo. Identifica-se, nos casos em que são parte adeptos de partidárias e com os movimentos sociais, retroalimentando um conjunto
religiões afro-brasileiras, a incidência frequente das chamadas meta- de leituras e demandas reivindicativas destes últimos (HOFBAUER, 2006),
regras, isto é, vetores hermenêuticos derivados de um código oficioso, não- os anos 1990 testemunharam um “rearranjo global do campo religioso
escrito (second code) mas operante no processo concreto de imputação no Brasil” (MONTES, 2012, p. 12), trazendo à baila novos atores e novas
da culpa (BARATTA, 2002). Trocando em miúdos, os juízos formulados correlações de força entre as esferas privada e pública do sagrado. A
sobre a conduta descrita no art. 284 valem-se, via de regra, de conceitos proliferação dos cultos neopentecostais marcaram uma inflexão de
hermeneuticamente vagos, deixando transparecer pré-concepções e escalante belicosidade contra as religiões afro-brasileiras, reformulando
preconceitos de um viés colonizado. Assim, curas empreendidas por o projeto de embranquecimento em sua modalidade cultural46,
confissões judaico-cristãs são socialmente classificadas como “milagres”. africanofóbica:
Já curas empreendidas por tradições outras são judicialmente travestidas
como “crimes”: A demonização das religiosidades afro-brasileiras que se produz nesse
contexto assume características de verdadeiro etnocídio, porque se
estende, para além do universo religioso, à totalidade de um patrimônio
Não havia, por tudo isso, em relação à liberdade de culto, possibilidade cultural negro, preservado ou recriado ao longo de século de história no
de garantir espaço oficial para crenças e religiões que fossem, Brasil, e que sempre constituiu um universo de significados partilhados,
simultaneamente, doutrinárias e práticas, ou seja, tivessem ao mesmo permitindo a construção positiva de uma identidade de contraste. Diante
tempo um pé na modernidade teórico-científica e na busca de princípios de uma religião que se apropria em negativo de todo o conjunto de símbolos
e pressupostos lógicos (causas e efeitos comprováveis) e outro pé que conformam o etos e a visão de mundo próprios às religiosidades afro-
no empirismo de tradições legitimadas por reiteradas atribuições brasileiras, na situação limite em que a violência se transforma em terror,
de significado a acontecimentos cartesianamente desconectados. o que é grave é que não sobra às pessoas nenhuma opção, sejam elas
(SCHRITZMEYER, 2004, p. 138-139) brancas ou negras. Ou se serve aos desígnios do Maligno, ao se manter
qualquer contato com esse universo cultural demonizado, ou se está do
Mas a prática da repressão consegue inovar sempre, mostrando-se lado de Deus, que agora só tem uma única face. (MONTES, 2012, p. 87)
ainda mais perversa. No Município de Registro (SP), em 2003, durante os
procedimentos de iniciação de uma criança, administrados por motivos Enquanto, pragmaticamente, o reencantamento do mundo praticado
de saúde, cinco fiéis do candomblé foram presos em flagrante, acusados pelos religiosos afro-brasileiros sem esteio numa reflexão explicitamente
de “cárcere privado”. A ironia do caso é que fora o sacerdote à frente política presta-se a disputar o cotidiano do espaço público, em sua feição
do terreiro quem, que, de inteira boa-fé, pedira à mãe biológica que mais concreta, como as matas e os logradouros de uso comum, o povo de
comunicasse o Conselho Tutelar sobre a autorização concedida para santo começa a esboçar um discurso articulado em termos propriamente
o tratamento religioso, no intuito de agir da forma mais transparente constitucionais, reivindicando do Estado a laicidade formalmente
possível com as autoridades locais. Sua postura, porém, não evitou que positivada, mas nunca efetivada na vida das instituições públicas
mais de 150 pessoas presentes à festa de saída da nova yawô fossem brasileiras. Esse movimento dá-se, em grande medida, como reação ao
conduzidas à delegacia para prestar esclarecimentos, num quadro imbricamento conservador entre público e privado, em curso na guerra
persecutório inegável (JÚNIOR, 2008, p. 184). santa de posições empreendida por setores protestantes mais radicais:
Não à toa, se os juristas invocam argumentos de ordem legal, o povo- A mídia garante visibilidade à igreja e aos candidatos e a filantropia
de-santo invoca a ordem sobrenatural, invoca “babá tenù no mo ré” (“o estabelece um vínculo clientelista, pois as figuras que aparecem como
pai que aplica o direito”), entoando: gerentes da redistribuição de benefícios são também os candidatos a cargos
públicos. A ação política institucional não se resume somente à disputa por
Justiça, meu pai, justiça mandatos políticos, mas estende-se a outras posições institucionais que
Justiça para os filhos teus estão sendo alvo dos quadros da Igreja Universal [do Reino de Deus], com
Justiça, meu pai, justiça a disputa mais recente em vários Estados por mandatos nos Conselhos
Ganhou justiça quem mereceu45 46 A despeito disso, não se pode descartar a possibilidade de acomodação de outro espectro de questões
identitárias ligadas à raça no seio do protestantismo neopentecostal, como sublinham certos estudos (BURDICK,
45 Cantiga de Xangô recolhida, em 2008, no Terreiro de Umbanda Reino de Aruanda, então situado em Curitiba. 2001).

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justiça nas religiões afro-brasileiras

Tutelares, com a finalidade de garantir um enraizamento maior nas concepção jurídica de patrimônio, há também uma incorporação dessa
instituições públicas. (ALMEIDA, 2007, p. 176) noção à sua cosmologia. (BITAR, 2010, p. 173)

Tal “plano de poder”, assim definido pelas próprias lideranças da Igreja Além de fortalecer o acesso do povo-de-santo aos espaços públicos para
Universal do Reino de Deus (MACEDO e OLIVEIRA, 2008), tem promovido fins de trabalho, o registro do acarajé agregou prestígio ao alimento em
deslocamentos nos modelos de interação social e nas estratégias de sua versão tradicionalmente litúrgica, num contexto de acirramento das
sobrevivência razoavelmente consolidados e exitosos das religiões tensões entre os cultos afro-brasileiros e as igrejas neopentecostais, que
afro-brasileiras, passando a ameaçar sua manutenção e expansão, se apropriaram da comida votiva rebatizando-a como “Bolinho de Jesus”.
destacadamente nas principais metrópoles do país. Num cenário É fato que as trocas e entrechoques do candomblé com as classes políticas
em que as cadeiras Poder Legislativo são progressiva e difusamente não são, a rigor, uma novidade, fazendo parte de sua história desde e os
ocupadas por parlamentares oriundos das vertentes neopentecostais, primórdios, com indisfarçável aprofundamento a partir da década de 1930
descontinuamente organizados sob as bandeiras de uma “bancada (SANTOS, 2005). Todavia, o debate atual sobre os usos e abusos do acarajé
evangélica”, os Poderes Executivo e Judiciário têm sido chamados a ganhou amplitude nacional e reinseriu na agenda pública a urgência de se
estabelecer alianças contramajoritárias com as religiões de matriz africana, refletir sobre os modelos de interação e de regulação do campo religioso,
haja vista a emergência contemporânea de uma espécie de “jurisdição tendo como carros-chefes as pautas da “autoria”, da autenticidade e da
dos conflitos religiosos como mais uma faceta das transformações que tradicionalidade da cultura.
tendem ao pluralismo religioso utilizando-se cada vez mais da regulação
No que toca ao exercício da jurisdição, há que se mencionar duas
externa ao campo religioso” (ALMEIDA, 2007, p. 184).
decisões emblemáticas, a primeira de cunho cível, do Tribunal de Justiça do
Quanto ao estreitamento de laços com o Poder Executivo, à parte o Estado da Bahia e a segunda do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
direcionamento de políticas com recorte étnico-racial no marco das ações do Sul, assentando, em disputado julgamento, a inconstitucionalidade da
afirmativas promovidas pelo governo, destacadamente na esfera federal proibição dos sacrifícios rituais de animais nos cultos afro-brasileiros.
e na última década (GUIMARÃES, 2008), interessantes possibilidades
A Ação de Indenização nº 8.215.479/01, da 17ª Vara Cível e Comercial
foram entreabertas do reconhecimento oficial de práticas religiosas
de Salvador, foi movida pelo espólio da yalorixá Gildásia dos Santos,
afro-brasileiras como patrimônio cultural. Se a dimensão material
mãe espiritual do Ilê Axé Abassá de Ogum. A sacerdotisa foi ameaçada
dos candomblés vinha recebendo atenção do Instituto do Patrimônio
e moralmente agredida depois que a Folha Universal, veículo da Igreja
Histórico e Artístico Nacional desde a década de 1980 – sendo o ano de
Universal do Reino de Deus, publicou matéria altamente ofensiva aos
1986 o divisor de águas nessa aproximação, com o tombamento da Casa
cultos de matriz africana, utilizando sem qualquer autorização imagem
Branca do Engenho Velho –, não foi desprezível o avanço da conjuntura
sua. A sentença de primeiro grau, datada de janeiro de 2004, condenou a
recente com relação ao patrimônio imaterial. Prova disso é o conjunto de
requerida ao pagamento de mais de um milhão de reais. Embora o valor
processos de inventariamento de terreiros em curso em diversos estados,
tenha se reduzido em sede recursal, a decisão da 4ª Turma do Superior
como no Distrito Federal (BRASIL, 2009), ao lado do registro do ofício
Tribunal de Justiça de manter a condenação, em 2009, foi encarada como
das baianas de acarajé, levado a cabo em 2004, no Livro dos Saberes. Os
uma vitória exemplar nas trincheiras da “guerra santa” deflagrada contra
efeitos desse expediente não são meramente simbólicos, com a adoção
as religiões de matriz africana.
formal por toda a nação brasileira de um elemento tipicamente associado
ao culto de Iansã/Oyá, mas repercutem nas lutas cotidianas dos que fazem Outrossim, quando, em abril de 2005, os vinte e cinco desembargadores
do acarajé um meio de subsistência: da Corte Gaúcha se reuniram para deliberar sobre a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 70010129690/2004, não eram poucos os
O registro do “ofício” aparece, para as baianas, como um instrumento olhos focados no debate que se desenrolaria no plenário. Em pauta: o
de legitimação do seu trabalho, diferenciando-as primeiramente dos parágrafo único acrescido pela Lei Estadual 12.131/2004 ao art. 2º da Lei
“ambulantes”. Mas, em outras ocasiões, essas baianas questionam: “para
Estadual 11.915/200347, alcunhada de “Código Estadual de Proteção aos
que serve o registro?”. Há uma preocupação das baianas de acarajé pela
“utilidade” do registro. Na maioria dos casos, ele é acionado para a vencer 47 “Art. 2. – É vedado:
dificuldades de legalização do ponto. Não obstante, para além de uma I – Ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar
sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;

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justiça nas religiões afro-brasileiras

Animais”, depois de forte reação política das comunidades de terreiro e Aqui, é de se notar, Xangô e Thémis parecem ter alcançado um
de movimentos sociais ligados ao debate racial. Além dos muitos curiosos consenso transcultural sobre espinhoso assunto, redigindo um importante
do dia, sete entidades da sociedade civil organizada gaúcha e de outros capítulo da narrativa dos direitos humanos. Ao permitir a ampliação da
estados haviam pleiteado intervenção como amicus curiae no feito48. A comunidade de intérpretes da Constituição (HÄBERLE, 1997), acatando
razão de tamanho interesse suscitado repousava numa única frase: “Não argumentos jurídicos dos movimentos sociais negros e mesmo de
se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das associações religiosas de matriz africana, a justiça dos homens acabou por
religiões de matriz africana”. recepcionar em seus átrios a justiça dos deuses da diáspora, num ímpeto de
desconstrução (DERRIDA, 2007). Ocorre que, numa das ironias de nossos
Pela constitucionalidade da exceção manifestaram-se a Mesa da
tempos, a demanda divina era, in casu, uma demanda por laicidade, pela
Assembleia Legislativa Estadual e o Governador do Rio Grande do Sul,
concretização dos valores de igualdade e não-intervenção de um Estado
desenvolvendo tese calcada na singularidade dos “rituais das religiões
laico, o que a diferencia do lobby atual pelo “elastecimento” do rol de
de matriz africana” que vedava analogia com os maus-tratos aos animais
legitimados para propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade
a que fazia alusão a legislação em tela. Ao fim e ao cabo, prevaleceu o
encapsulada na Proposta de Emenda à Constituição n. 99/2011, que
entendimento do Desembargador Araken de Assis, relator do processo,
beneficiaria tão somente associações religiosas formalizadas e de âmbito
quem, por meio de acertada ponderação de valores, conferiu primazia
nacional, excluindo, por óbvio, o modelo de organização das comunidades-
ao “meio ambiental cultural” em face do “meio ambiente natural”,
terreiro.
destacando, com um toque de ironia, os hábitos alimentares nacionais:
É fato notório que o homem e a mulher matam, diariamente, número
A decisão em tela instaura uma contratendência em face das restrições de
incalculável de outros animais para comê-los. O caráter exclusivamente natureza sanitária (controle do abate animal), ambiental (suposta poluição
“doméstico” do animal, ou seu uso para fins alimentares, depende da sonora) ou urbanística (parâmetros construtivos e de uso e ocupação do
cultura do povo. Recordo a figura do cachorro, tanto animal de estimação, solo) cada vez mais frequentemente impostas à liberdade de culto pelas
quanto fina iguaria em determinados Países. E não há, no direito brasileiro, Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas por todo o país. Trata-
norma que só autorize matar animal próprio para fins de alimentação.
Então, não vejo como presumir que a morte de um animal, a exemplo se de normas da microfísica das gestões administrativas que antepõem
de um galo, num culto religioso seja uma “crueldade” diferente daquela sucessivos embaraços às práticas religiosas afro-brasileiras e que, como
praticada (e louvada pelas autoridades econômicas com grandiosa geração assumido no julgado acima exposto, já nascem eivadas de “insuprimível”
de moedas fortes para o bem do Brasil) pelos matadouros de aves. inconstitucionalidade. À luz de uma hermenêutica potencialmente
(...) emancipatória, por conseguinte, verifica-se a possibilidade de invocar os
Por outro lado, há precedentes respeitáveis no sentido de consagrar direitos humanos como trunfos contra a maioria política, na expressão
a liberdade de culto. É digna de registro a valiosa contribuição do Prof.
de Novais, toda vez que os ocupantes conjunturais de algum setor dos
Dr. HÉDIO SILVA JR., trazendo à baila o caso julgado pela Suprema Corte
dos Estados Unidos da América, em outubro de 1992 (inteiro teor à fls. poderes instituídos, ainda que devidamente eleitos nos termos da
296/428), no caso Church of Lukumi Balalu Aye versus City of Hialeah. democracia representativa, busquem comprimir liberdades ou garantias
Apesar de as leis locais proibirem, expressamente, o sacrifício de animais, fundamentais com fulcro numa visão particularista do que seja vida boa:
prática adotada pela referida Igreja, pertencente à confissão da “Santería”
(proveniente de negros cubanos), a Suprema Corte entendeu que as No mesmo sentido, mas aí de forma mais objetivamente evidente, a ideia
autoridades locais deviam respeitar a tolerância religiosa. (p. 8-9) dos direitos fundamentais como trunfos é particularmente operativa nas
II – Manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o situações em que a esfera da liberdade e autonomia de um indivíduo,
descanso ou os privem de ar e luminosidade. isolado ou como integrante de um grupo marginalizado, minoritário ou
III – Obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força; mais débil, sofre as ameaças, a invasão ou as pressões, eventualmente
IV – Não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V – Exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
avassaladoras, provindas, não directamente do poder público, mas da
VI – Enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem; parte de um meio social hostil ou de maiorias pouco tolerantes. A natureza
VII – Sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde do trunfo dos direitos fundamentais coloca, aí, sobre as autoridades
OMS, nos programas de profilaxia da raiva.” públicas, especiais exigências, que o Poder Judiciário deve acompanhar
48 Nominalmente: Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras; CEDRAB – Congregação em defesa das
Religiões Afro-Brasileiras; UNEGRO – União dos Negros pela Igualdade; Ilê Axé Yemonja Omi-Olodo e C.E.U. Cacique e fazer cumprir, no domínio dos deveres de protecção estatal dos bens
Tupinambá; CEERT - Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades e o MNU – Movimento Negro jusfundamentalmente protegidos. (NOVAIS, 2007, p. 112)
Unificado. Apesar de negada sua inclusão no feito, foram admitidos pelo Desembargador Relator os documentos
por elas encaminhados, com vistas a aprimorar o esclarecimento da matéria.

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justiça nas religiões afro-brasileiras

Em contraponto a uma perspectiva hierarquizada e sócio-culturalmente relaciones de producción de mestizaje, al asumir una forma cooperativa,
cambian sus lealtades ideológicas. (…) El mestizaje poscolonial, a su vez,
míope, não se pode negar a existência de precedentes, portanto, que amplía enormemente la diversidad por media de la infinita hibridización
avançam consideravelmente na direção de uma experiência dialógica que ahora se transforma en propiedad libre y comunal de los productores
da justiça num marco de multi, quiçá interculturalidade. Um esforço de asociados de mestizaje. (SANTOS, B. 2010, p. 103)
justiça híbrida, sincrética, mestiça é a possível roupagem conceitual de um
aparato e de um fazer jurídicos potencialmente inclusivos, pluriétnicos, À guisa de conclusão, não mais que provisória nesses itinerários
descoloniais. Quem sabe mesmo, de mitologias jurídicas alternativas às sempre labirínticos de Exu-Elegbará, cabe ressaltar o caráter fortemente
da modernidade (GROSSI, 2007): político que emerge da iconografia religiosa de matriz africana. Pois o
mito, ao abrir-se para absorver a história do enunciador, torna-se ele
Em outras palavras, somente se pode transcender a diferença colonial da mesmo um enunciado expressivo. O mito, no avesso do senso comum,
perspectiva da subalternidade, da descolonização e, portanto, de um novo dá voz ao discurso político reprimido, permitindo que os sujeitos possam
terreno epistemológico que o pensamento liminar está descortinando. (...) emergir como sujeitos de sua própria história, sujeitos de direitos. Na
O pensamento liminar, na perspectiva da subalternidade, é uma máquina leitura de Segato, “neste tipo de mitologia, a verdade divina só se realiza
para a descolonização intelectual e, portanto, para a descolonização
política e econômica. (MIGNOLO, 2003, p. 76) na medida em que ela é verdade sobre o mundo (...) fé e conhecimento se
confundem, tautologicamente”. É pelo mesmo motivo que urge revisitar a
A mescla epistemológica que funda os ordenamentos sociais e os tradição afro-brasileira como um manifesto e seus elementos semióticos
imaginários populares latino-americanos é o saldo das trocas simbólicas como falas, “porque se constituem em objeto de crença na mesma medida
empreendidas incessantemente no bojo dessa resistência e dessa em que se constituem como meios expressivos para explorar a verdade”
convivência intercultural. No caso da iconografia jurídica afro-brasileira, (SEGATO, 1995, p. 355). Estamos, enfim, num campo onde é o mito que
pouco tem a nos dizer a ideia de conservação. Os sentidos da justiça não dá parâmetros para interpretar, conhecer e emitir juízos (julgar) nos mais
são uma constante africana, mas as variáveis incorporadas na equação diversos contextos:
da diáspora e na resposta à experiência político-existencial da escravidão
e da marginalização que a sucedeu. Não estamos nos referindo, por O conteúdo desses mitos é, entre outros possíveis, político, porque, ao
conseguinte, às continuidades somente, mas às brechas e entremeios descrever um conjunto de relações entre divindades enquanto membros
de uma família mítica, faz escolhas e prevê destinos, ao mesmo tempo que
numa justiça negociada, móvel, viva, sempre reinterpretada. Uma teoria toma posição sobre o papel de cada uma das entidades no seio de suas
popular da justiça cujos insights podem contribuir na de reversão dos relações familiares. Por trás destas opções há manifesta uma hierarquia
elementos opressores da modernidade jurídica e dos próprios sentidos valorativa, uma escolha de estratégias e um posicionamento em face dos
restritivos de humanidade (que recaem, desde a Revolução Francesa, aspectos da vida social: acesso ao poder e ao prestígio, acesso à riqueza,
calor relativo do trabalho e do senso de justiça, papel das instituições e
nos esquemas subterrâneos de atribuição de cidadania e nacionalidade)
normas, etc. (SEGATO, 1995, p. 355)
num projeto de descolonização dos direitos humanos. Essas seriam
juridicidades mais mestiças, sem o ranço conciliatório do termo. Uma Podemos nos referir, portanto, a um processo de politização – e até
versão melhor e mais nossa dos direitos humanos exige que abdiquemos juridicização – do mito, ou então de ritualização da política, empreendido
do puritanismo teórico e da falácia do autismo jurídico. Exige uma pelas religiões afro-brasileiras como uma das estratégias específicas pelas
mestiçagem pós-colonial, uma mestiçagem libertária, uma hibridização quais lidam com os padrões racializados e o imaginário hegemônico de
epistêmica: uma sociedade ainda demasiado intolerante à diferença cultural, como é
a brasileira. A dissimulação da “democracia racial” – um poderoso arsenal
El reconocimiento de la plurinacionalidad es un mandato político para la ideológico que serve, esta sim, à mistificação, à fetichização das relações
promoción de la interculturalidad. Su práctica a lo lardo del tiempo dará
sociais, como fartamente debatido na literatura –, agregada à decantação
origen a un mestizaje (humano, cultural, conceptual, vivencial, filosófico)
de tipo nuevo. El mestizaje colonial es un mestizaje alienado porque separa histórica de modelos institucionalizados de discriminação, consolida-se
las relaciones de producción del mestizaje del producto mestizo. (…) Al numa espécie de burocracia das desigualdades em instâncias várias de
contrario, el mestizaje poscolonial – por ahora un proyecto y nada más – e um Estado que ainda não se pode dizer laico. Instâncias por meio das
dialógico y plurilateral, tanto en su producción como en sus productos. Las quais, amiúde, escoam preconceitos contra o candomblé, a umbanda,

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justiça nas religiões afro-brasileiras

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412
Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich

POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM


RELAÇÃO À ÁGUA: o caso do Programa Cultivando Água Boa da
Itaipu Binacional

Tatyana Scheila FRIEDRICH1


Nelton Miguel FRIEDRICH2

1. As políticas públicas, direitos humanos e cidadania


As políticas públicas resultam de reações dos Estados diante do amplo
rol de necessidades dos cidadãos que compõem uma sociedade. Podem
ser desenvolvidas por meio de várias ações, tais como, diagnóstico das
necessidades, criação de normas concernentes, estabelecimentos de
prestações públicas e criação ou organização de instituições, com pessoal
apto para implementá-las, direta ou indiretamente.
O fim último da política pública nada mais é do que a concretização
dos Direitos Humanos, garantindo a efetivação de direitos individuais e
coletivos, com vistas à emancipação política e econômica dos indivíduos,
na perspectiva do desenvolvimento social.
A emancipação política dos cidadãos só se realiza após terem suas
necesidades básicas atendidas, sua autonomía preservada em um
ambiente que permita o amplo discernimento para decidirem o que
é melhor para si e para a sociedade. Daí a necessária e precedente
emancipação econômica, para se atingir a cidadania, com a possibilidade
de os cidadãos atuarem na defesa dos direitos fundamentais e humanos,
em todas as suas vertentes.

2. A água e o seu acesso


Na categoria de direitos fundamentais e humanos, encontram-se os
postulados necessários para a garantia da dignidade humana, congregando
os valores mais elementares do sistema jurídico reconhecidos e positivados
na esfera do direito constitucional positivo do Estado e na esfera internacional
à qual o Estado se vincula.
Nesse sentido, não há como desvincular o acesso à água dos direitos
fundamentais e humanos, uma vez que se trata de necessidade básica
1 Tatyana Scheila Friedrich – Doutora, Professora de Direito Internacional da UFPR. Email: tatyanafriedrich@
yahoo.com
2 Nelton Miguel Friedrich – Advogado, Diretor de Coordenação e Meio Ambiente da Itaipu Binacional e
coordenador do Programa Cultivando Água Boa. E-mail: neltonmf@yahoo.com.br.

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POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM RELAÇÃO À ÁGUA: Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich
O PROGRAMA CULTIVANDO ÁGUA BOA DA ITAIPU BINACIONAL

imprescindível à sobrevivência. Tal Convenção adota os princípios da utilização e participações


equitativas e razoáveis: obrigação de não causar danos sensíveis, obrigação
Em consequência, a água, em si, é geralmente considerada como bem
geral do cooperar, intercâmbio regular de dados e informação, obrigação
de interesse público, por seu caráter coletivo e sua abrangência erga
de informação e notificação de medidas projetadas que possam causar
omnes. Qualquer limitação nesse sentido deve justificar-se no interesse
efeito prejudicial. Ainda prevê as obrigações de proteger e preservar
comum.
individual ou conjuntamente, fazendo prevenção, redução e controle da
Entretanto, há, ainda, o entendimento da água como um bem contaminação, impedindo a introdução de espécies estranhas ou novas
econômico que deve ser negociado, gerando a cobrança pelo seu acesso. no ecossistema do curso d’água e, por fim realizando o planejamento e a
Isso se justificaria por seu caráter de recurso natural findável e escasso, regulação do uso compartilhado.
que deve ser utilizado com parcimônia e racionalidade. Possuindo um
Na Europa, existe a Convenção sobre a Proteção e o Uso dos Cursos
valor econômico tornar-se-ia então numa mercadoria negociável, cuja
D’água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais, celebrada em
utilização requereria o estabelecimento de um preço. Só que, nesse caso,
Helsinque, em 1992, a partir dos trabalhos do Comitê Econômico Social
a possibilidade de pagamento do preço passa a separar os que têm e os
da ONU (ECOSOC), na Comissão das Nações Unidas para a Europa.
que não têm acesso a tal bem.
No processo de integração regional, a União Europeia já expediu
A opção por uma ou outra abordagem depende de questões filosóficas
mais de 600 atos relativos ao meio ambiente, dentre os quais aparece,
e ideológicas de cada país e de sua legislação interna, além da influência
especificamente sobre a água, a Diretiva 2000/60/CE do Parlamento
da regulamentação regional e internacional.
europeu e do Conselho de 23/10/2000, que estabelece Um Quadro de
Ação Comunitária no Domínio da Política da Água”, com posteriores
2.1 A regulamentação internacional sobre água modificações4.
Os recursos hídricos fazem parte do patrimônio e do território do Na América Latina, o Brasil participa do Tratado da Bacia do Prata (Brasília,
Estado em que se encontra, prevalecendo o princípio da soberania do 23/04/1969); a Convenção que constituiu um Fundo Financeiro para o
Estado sobre os recursos naturais localizados em seu território. Assim, Desenvolvimento da Bacia do Prata - Fonplata (Buenos Aires, 12/06/1974);
cada país estabelece normas internas sobre seu acesso e aproveitamento. e o Acordo Tripartite de Cooperação Técnica e Operacional entre Itaipu e
corpus (Argentina, Brasil e Paraguai, Ciudad Presidente Stroessner/Ciudad
A regulamentação internacional resta, portanto, limitada. De um modo de Leste, 19/10/1979). Ao norte, foi celebrado em 1978 o Tratado de
geral, o que se percebe em termos de legislação internacional sobre o tema Cooperação Amazônica. Em todo o continente, inúmeros são os Tratados
da água é a proliferação de tratados regionais, para estabelecimento de Bilaterais.
regras para o uso compartilhado de fontes comuns de água, entre dois ou
mais países. E os textos de tais acordos variam conforme as características O Mercosul, ao promover o processo de integração regional, ainda
muito próprias de cada região. no estágio de União Aduaneira, longe de ser um Mercado Comum, não
tem normativa vinculante sobre o meio ambiente, incluindo a água. Há
A sociedade internacional ainda carece de regras universais gerais sobre diversos trabalhos realizados pelo Subgrupo de Trabalho nº 6, vinculado
o tema. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Utilizações dos do GMC – Grupo Mercado Comum, o órgão executivo do bloco.
Cursos d’Água Internacionais para fins Distintos da Navegação foi adotada
pela Assembleia Geral da ONU, em 21 de maio de 1997, exatamente para Em outubro de 1995, a estrutura inicial do MERCOSUL, feita pelo
suprir tal lacuna. Entretanto, tal convenção ainda não conseguiu o número Tratado de Assunção que lhe deu origem, foi alterada através do
mínimo de ratificações estatais, necessário para entrar em vigor. Em 1º de Protocolo Adicional do Tratado de Assunção – Protocolo de Outro Preto
agosto de 2011, haviam 24 Estados Partes na Convenção e mais 5 Estados sobre Estrutura Institucional do Mercosul, eliminando alguns Subgrupos
que a assinaram, mas não a ratificaram. O Brasil nem sequer a assinou3. técnicos e criando outros. A partir daí surgiu o Subgrupo de Meio
Ambiente – SGT 6, que tem por objetivo geral a formulação e proposição

3 Disponível em: http://internationalwaterlaw.org/documents/intldocs/watercourse_status.html. Acesso em 4 Disponível em http://europa.eu/legislation_summaries/agriculture/environment/l28002b_pt.htm. Acesso em


7/10/2011. 7/10/2011.

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POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM RELAÇÃO À ÁGUA: Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich
O PROGRAMA CULTIVANDO ÁGUA BOA DA ITAIPU BINACIONAL

de estratégias e diretrizes para garantir a proteção e a integridade do Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos;
meio ambiente nos países-membros, no contexto do livre comércio e
VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a
da consolidação da união aduaneira, assegurando, paralelamente, iguais participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.
condições de competitividade, tendo em conta as Diretrizes Básicas
de Política Ambiental, aprovadas pela Resolução nº 10/94 do CMC – Segundo essa Lei, a matéria do Gerenciamento de Recursos Hídricos
Conselho Mercado Comum, órgão político do Mercosul, e os princípios do está disposta na previsão legal do Relatório sobre a Situação dos Recursos
desenvolvimento sustentável emanados da CNUMAD – Conferência das Hídricos que deve conter o prognóstico sobre a disponibilidade futuro dos
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992. recursos, em quantidade e qualidade, mantidas as atuais tendências de
uso e procedimento gerenciais, e no Plano de Recurso Hídrico que deve
Vários estudos e apontamentos foram realizados pelo SG 6, mas ainda conter metas de racionalização de uso e propostas para a criação de áreas
não há um marco regulatório comum sobre o meio ambiente ou sobre o sujeitas à restrição de uso, com vistas à proteção do recurso hídrico.
uso das fontes d’água do Mercosul.
São integrantes do Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos
o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, o Comitê Intersetorial, os
2.2 A regulamentação brasileira sobre água Comitês de Regiões Hidrográficas, os Comitês de Bacia Hidrográfica e as
A Constituição Federal5 prevê o direito à vida, no seu artigo 5º e ao Agências de Bacia Hidrográfica.
meio ambiente ecologicamente equilibrado, no artigo 225, considerado O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, composto pelo Comitê
como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Intersetorial e pelos Comitês de Regiões Hidrográficas, tem como
A água, sendo necessária para a sobrevivência e um dos componentes principais funções o estabelecimento de diretrizes suplementares para
desse meio ambiente, pode ser tratada como um direito fundamental. a implantação da Política Nacional de Recursos Hídricos, a arbitragem
Assim, toda e qualquer análise ou proposta sobre o regime jurídico administrativa dos conflitos existentes entre os Comitês que o compõem,
das águas, superficiais ou subterrâneas, deverá levar em consideração aprovação do Relatório Nacional sobre a situação dos recursos hídricos,
a noção de direitos fundamentais indisponíveis. Entretanto, não é o que aprovação do Plano Nacional de Recursos Hídricos, acompanhamento da
ocorre na prática. execução do Plano Nacional de Recursos Hídricos, análise das propostas
de alteração legislativa relacionada aos recursos hídricos, deliberação
A Lei Federal n° 9.433/976 instituiu a Política Nacional de Recursos sobre projetos de aproveitamento e, por fim, aprovação do plano de
Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos trabalho e do orçamento da Secretaria Executiva.
Hídricos, regulamentando o artigo 21, inciso XIX, da Constituição Federal.
Já no seu artigo primeiro a lei parece agregar todos os conceitos iniciais O Comitê Intersetorial, composto por doze representantes do Poder
sobre a água, já vistos neste trabalho, enquadrando-a como um bem de Executivo federal e doze representantes de organizações da sociedade civil,
domínio público, com valor econômico, e esquecendo-se de abordá-la tem como principais atribuições a informação ao Conselho Nacional de
como direito fundamental. Recursos Hídricos dos condicionantes que são impostos ao planejamento
e à gestão dos recursos hídricos pelos planejamentos nacional e regional,
Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes
informação aos setores usuários dos condicionantes existentes ao uso dos
fundamentos:
recursos hídricos, proposição ao Conselho Nacional de diretrizes adicionais
I - a água é um bem de domínio público;
e a supervisão do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o Os Comitês de Região Hidrográfica (Região Hidrográfica da Amazônia,
consumo humano e a dessedentação de animais; Região Hidrográfica Nordestina e Região Hidrográfica Centro-Sul) têm
IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso competência para arbitrar administrativamente os conflitos existentes em
múltiplo das águas; um Comitê da Bacia Hidrográfica ou entre os Comitês, aprovar, divulgar,
V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da acompanhar e executar o Relatório e o Plano de Recursos Hídricos da
5 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. Região Hidrográfica, analisar os projetos de aproveitamento dos recursos
6 BRASIL. Lei nº 9.433 de 8 de janeiro de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.
htm. Acesso em: 07/10/2011.
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POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM RELAÇÃO À ÁGUA: Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich
O PROGRAMA CULTIVANDO ÁGUA BOA DA ITAIPU BINACIONAL

hídricos que extrapolam a área da região hidrográfica, e deliberar sobre Os Estados devem implantar suas Políticas Públicas de modo a garantir
os projetos de aproveitamento dos recursos hídricos cuja repercussão a implementação dos direitos humanos e estimular a cidadania, tendo em
extrapola a bacia hidrográfica de sua implantação. mente a consciência ambiental.
A principal competência dos Comitês de Agências de Bacia Hidrográfica Já para a iniciativa privada, o papel pró-ativo e de liderança enquanto
é a arbitragem administrativa dos conflitos relacionados aos recursos ator social territorial configura verdadeira gestão sustentável e
hídricos, aprovação, divulgação e atualização dos relatórios sobre a construtora da economia verde e inclusiva. Vale dizer, a empresa deve
situação dos recursos hídricos, aprovação do Plano de Recursos Hídricos, desempenhar uma saudável articulação, com soma de esforços e divisão
acompanhamento da execução deste Plano, definição das derivações, de responsabilidades, com os demais atores políticos, econômicos,
captações e lançamentos para a isenção de obrigatoriedade de outorga sociais, ambientais e culturais na área que a empresa influencia e/ou sofre
de direitos de uso dos recursos, efetivação do enquadramento dos corpos influência, para o fim de implementação de programas estruturantes de
de água em classes de uso, ratear o custo das obras de uso múltiplo ou inclusão social e de ações para a sustentabilidade, comparecendo também
de interesse comum ou coletivo, estabelecimento dos valores a serem com parte dos recursos financiadores das atividades e ações projetadas.
cobrados pelo uso de recursos hídricos e suas respectivas multas por Na conceituação do Instituto Ethos:
inadimplência, e, finalmente, aprovação do plano de aplicação dos
recursos arrecadados. Responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela
relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os
A Agência de Bacia Hidrográfica deve atuar em conjunto ao Comitê da quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que
Agência da Bacia Hidrográfica, devendo aquela fiscalizar a atividade de impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando
arrecadação financeira e a aplicação dos recursos arrecadados. recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a
diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais.8
Em 17/07/2000, foi promulgada a Lei nº 9.9847, que criou a Agência
Nacional de Águas - ANA, entidade federal de implementação da Política A Itaipu Binacional, sabedora de seu caráter sui generis, de empresa
Nacional de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de criada por Tratado entre dois Países, Brasil e Paraguai, que recebeu aporte
Gerenciamento de Recursos Hídricos, que o vem fazendo desde então. de capital estatal, mas que atua como um ente privado de geração de
energia elétrica, estando consciente dessa nova abordagem sobre a
responsabilidade socioambiental, assumiu a sua parte, implementando
3. O Programa ‘Cultivando Água Boa’ da Itaipu Binacional
um dos mais abrangentes programas de responsabilidade socioambiental.
O mundo vive hoje a mais grave crise socioambiental da história da
Na etapa dos diagnósticos, a Itaipu detectou que, anualmente, uma das
humanidade, na qual está inserida a assustadora escassez de água, havendo
treze sub-bacias hidrográficas do Rio Paraná III, a do Rio São Francisco
regiões em que ela pouco existe e regiões em que há quantidades de água,
Falso, no extremo oeste do Estado do Paraná, recebia em média 50 mil
mas ela não é cuidada, não é boa. O que está em jogo é a sobrevivência
toneladas de sedimentos/ano, decorrentes de uso não adequado do solo
do ser humano no Planeta Terra e, em consequência, mudanças precisam
e da carência de determinadas praticas conservacionistas e de cuidado
acontecer.
com a água.
A esperança está no exercício intenso do senso de urgência e na
A par disso, considerável quantidade de agrotóxicos, dejetos humanos
responsabilidade compartilhada: significa “Todos enfrentando o desafio”,
e animais (a região tem a maior produção de leite, de aves e de suínos
sem omissões. A ação deve acontecer por iniciativa de cada um: governos,
do Paraná – para ilustrar, um dos municípios, de seis mil habitantes, tem
sociedades, universidades, o cidadão e a cidadã, além do papel das
120 mil suínos), resíduos industriais, lixo, terra cultivável (além da terra,
empresas públicas ou privadas. Público e Privado, Governo e Empresas
seu adubo e fertilizante) e plantações agrícolas alcançavam os rios da
não florescerão num tempo muito próximo se não tiverem, além de seus
sub-bacia e, pelos rios, eram levadas para o reservatório da empresa,
objetivos imediatos, ações estruturantes de responsabilidade social e
comprometendo o multiuso das águas, contribuindo para a poluição
ambiental.
7 BRASIL. Lei nº 9.984 de 17 de julho de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9984. 8 Disponível em: http://www1.ethos.org.br/EthosWeb/pt/29/o_que_e_rse/o_que_e_rse.aspx. Acesso em 10 de
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POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM RELAÇÃO À ÁGUA: Tatyana Scheila Friedrich e Nelton Miguel Friedrich
O PROGRAMA CULTIVANDO ÁGUA BOA DA ITAIPU BINACIONAL

ambiental, eutrofização das águas, mudanças climáticas e seus efeitos na chega ao fim, não sobrando nada à comunidade-alvo. O propósito do
qualidade de vida das populações. Percebeu-se que ainda que se queira Programa Cultivando Água Boa é ser um instrumento permanente de
a água como um direito e mesmo que a legislação a defina como bem, a transformação para a preservação, com continuidade.
realidade é que ela está condenada. Outra novidade foi a adoção de um novo modelo de gestão, que engloba
Diante do quadro preocupante, a empresa voltou seus olhos para as o planejamento estratégico, gestão participativa, a gestão por programa, a
comunidades mais necessitadas, como pequenos produtores, pescadores, gestão da informação territorial e a gestão ambiental, concomitantemente.
catadores, indígenas, jovens e micro e pequenos empresários. Para A base dos trabalhos deixou de ser os municípios lindeiros e passou a ser
tanto, no contexto de uma nova missão empresarial que emergiu à luz as bacias hidrográficas. Então a territorialidade operativa do Programa
de uma visão de futuro gestada no planejamento estratégico situacional Cultivando Água Boa se dá respeitando a unidade de planejamento da
implementado pela direção da Itaipu Binacional empossada em 2003, natureza, que é a bacia hidrográfica - no caso a Bacia Hidrográfica do Rio
a Diretoria de Coordenação e Meio Ambiente implantou o Programa Paraná III, com 29 municípios e um milhão de habitantes. Ali, busca-se
Cultivando Água Boa, em funcionamento até os dias atuais e que conta vivenciar e aplicar de forma conjunta Políticas Públicas, Plano Nacional de
com 20 projetos. Recursos Hídricos e legislação pertinente, anteriormente abordada neste
trabalho, além de documentos planetários, como a Carta da Terra, Metas
Fundamentada em conceitos, valores e metodologias inovadores, a
do Milênio, Agenda 21, Pacto Global, “Tratado de Educação Ambiental
centralidade do programa está na quantidade e qualidade das águas; na
para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global” e Protocolo de
proteção, recuperação e conservação dos solos e da biodiversidade; na
Quioto, que juntos formam a sua base jurídica do Programa.
melhoria dos fluxos ambientais; nos sistemas de produção diversificados
e limpos; na educação ambiental formal, não formal e difusa; na cultura O destaque está na participação da comunidade dessa bacia, desde o
da água e da sustentabilidade e na melhoria da qualidade de vida, planejamento até a execução, ocorrendo sempre uma avaliação final dos
principalmente dos segmentos socioambientalmente vulneráveis. trabalhos, conforme cada etapa é concluída.
Estabeleceu-se, assim, uma estreita relação entre o desafio da Os trabalhos são realizados através de um procedimento bastante
sustentabilidade planetária, com a realidade e a necessária reflexão-ação original: inicialmente há a seleção das microbacias e passa-se
local, a partir de uma visão sistêmica, integral e integrada da relação do imediatamente ao processo de sensibilização da comunidade. Forma-se
homem com seu meio, onde a sustentabilidade é uma resultante de novos então um Comitê Gestor em cada município - como são 29 municípios,
modos de “ser e sentir, viver, produzir e consumir”. há 29 Comitês. O amplo envolvimento comunitário e o protagonismo de
atores locais congregam mais de 2.380 parceiros, 29 Comitês Gestores,
A base filosófica do programa centra-se na promoção do paradigma da
29 Coletivos Educadores, além de já ter envolvido 12 mil Educadores
ÉTICA DO CUIDADO, da ecopedagogia e a nova governança, com metas
Ambientais.
comuns e compartilhadas, cooperativas e energizadas, voltadas para a
democracia participativa. Para isso há os Ajustes de Parceria, com o fim de agregar o maior
número possível de atores sociais. Quer-se assim que o Programa não
A primeira grande inovação do Programa Cultivando Água Boa foi no
seja da Itaipu, de ONGs, das Prefeituras, mas seja multifacético, incluindo
procedimento dos trabalhos. Definiu-se o papel da Itaipu Binacional com
inclusive empresas, advogados, juízes, promotores.
as seguintes funções: articular, compartilhar, dividir responsabilidades
e somar esforços. Essa função quádrupla foi estabelecida através da Em seguida, nesse procedimento, montam-se as Oficinas do Futuro,
premissa de que uma verdadeira política pública não significa apenas que englobam 3 dinâmicas especiais: o Muro das Lamentações, onde
definir o objetivo e repassar sua execução a um terceiro, normalmente as pessoas escrevem o que as incomoda em termos socioambientais na
Organização Não Governamental, mediante uma remuneração. sua região, numa ação em que a Itaipu age somente como facilitadora. A
ideia é afastar a vitimologia e favorecer a construção de sujeitos coletivos.
Afastou-se com isso a ideia de apenas acompanhar os trabalhos e
Em seguida vem a Árvore da Esperança, em que se discute o sonho de
verificar balancetes de gastos ao final, pois essa metodologia é considerada
cada participante que, em sendo aprovado pelo coletivo, é colado num
defasada pela constatação que, ao terminar os trabalhos, todo o projeto
banner com desenho de árvore, a qual fica, então, cheia de sonhos

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O PROGRAMA CULTIVANDO ÁGUA BOA DA ITAIPU BINACIONAL

compartilhados. Passa-se a seguir à dinâmica de Um Caminho Adiante, diálogo de saberes desde a modernidade à ancestralidade. Revisitam
título retirado do último capítulo da Carta da Terra, que congrega os as dimensões da água (jurídica, econômica, social, política, ambiental,
passos a serem tomados. biológica e da saúde, poética, cultural e espiritual), inclusive com o
efeito-demonstrativo do ecopedagógico projeto de captação da água
A partir daí, cria-se e imprime-se a Agenda 21 do Pedaço e celebra-se o
da chuva nas escolas. Neste caso, durante a construção da cisterna, na
Pacto das Águas. O Pacto das Águas é um grande evento em que 70 % dos
aula de matemática, por exemplo, calculam-se quantidades de ferro e
presentes são da comunidade, que fazem místicas criadas por eles mesmos
de cimento, e, na horta escolar, aprende-se ciências e biologia. Assim,
e ensaiadas, dão depoimentos sobre como é o rio da região, a vegetação,
multiplicam-se as comunidades de aprendizagem, sendo promovido o
etc. A própria comunidade cozinha uma grande torta comemorativa,
monitoramento participativo da qualidade da água por bioindicadores,
decorada em sua superfície com a bacia hidrográfica respectiva.
em cada microbacia, e capacitado-se os “gestores das águas”.
Assina-se então o Convênio entre a Itaipu e as instituições envolvidas,
Hoje, os principais resultados alcançados pelo Programa podem ser
como as Prefeituras, definindo-se o objeto da parceria, as responsabilidades
encontrados:
de cada um e só apenas nesse momento começa-se a falar de aporte de
capital por parte da Itaipu. Parte-se da ideia de que se estraga a boa prática a) Nas mais de 70 microbacias que tiveram seus passivos recuperados,
das parcerias quando se inicia já falando em dinheiro. Primeiramente com recuperação de nascentes, adequação de estradas rurais (510
a própria comunidade faz um exame de consciência, expondo suas quilômetros de foram estradas readequadas), terraceamentos,
inquietações e sonhos. Só depois é que se assina o compromisso, adubação verde, plantio direto de qualidade, matas ciliares
sabendo-se então dos valores realmente necessários. Para o controle dos recompostas (hoje há mais de 830 quilômetros de cerca com mata
atos e resultados, são feitas avaliações periódicas, novamente envolvendo ciliar refeita sem um conflito jurídico ou administrativo, numa região
todos. em que 90% das propriedades rurais têm menos de 50 hectares);
No Convênio sempre há a previsão da obrigatoriedade de ações no b) Nas 973 propriedades rurais com agricultura orgânica;
campo da educação ambiental e seu objeto principal sempre engloba Nos 53% de merenda escolar orgânica servidas nos 29 municípios; e
mudanças estruturais com resultados indiretos. Um exemplo disso é o nos concursos de pratos saudáveis em que participam as merendeiras
compromisso firmado para recuperar determinada mata ciliar do Rio que das escolas municipais, com publicação de seus respectivos livros de
passa pela comunidade. Depois da realização dos trabalhos não só a mata receitas;
cresceu, o rio ficou mais limpo, a erosão acabou como também voltaram
as abelhas na região, o que possibilitou a população cultivar mel. c) Na significativa produção de fitoterápicos, condimentares e
aromáticos nos municípios, com 23 postos de saúde onde são
Na fase da implantação dos compromissos previstos nos diversos receitadas ervas medicinais, gerando, portanto, novos arranjos
convênios, também há a participação de novos atores sociais, tal como produtivos locais;
ocorre com as Cooperativas da região e as Universidades (há atuação da
Unioeste/PR, da PUC/PR, dentre outras). d) Nos mais de 760 pescadores, hoje inclusos, muitos produzindo
peixe nos tanques-rede cedidos pela empresa;
Durante todo esse amplo trabalho, a Itaipu desenvolve outros projetos
específicos na região, como a Sustentabilidade de Segmentos Vulneráveis e) Nas mais de 640 famílias de catadores incluídos no programa
- que inclui os 3 projetos “Sustentabilidade das Comunidades Indígenas Coleta Solidária, com melhoria de 350% na sua renda, com resgate
Avá-Guarani”, “Jovem Jardineiro” e “Coleta Solidária”; além do “Mais da atividade e já com mais de 200 carinhos elétricos que dispensam
Peixes em Nossas Águas”, a “Biodiversidade nosso Patrimônio”, dentre o esforço físico desumano;
outros. f) Nas 207 famílias Ava-Guarani, cada com 6 filhos sem nenhum caso
Na compreensão de que a mudança para ser duradora precisa ser de subnutrição, produzindo grande parte de sua alimentação e com
cultural, o Cultivando Água Boa e seus parceiros trabalham muito viva manifestação cultural;
a Cultura da Água (“o que se faz para, com, e na água”), resgatando o g) No amplo trabalho de educação ambiental, inclusive na

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conscientização, na reflexão-ação, na mudança de comportamentos, transformando para melhor a sociedade em que se está inserido.
com novas atitudes;
h) Na Plataforma Itaipu de Energias Renováveis que coordena a Referências
geração de energia a partir da biomassa residual, já funcionando um ARRUDA FILHO, Norman de Paula et. al. Estudo de Caso: Programa Cultivando Água Boa.
condomínio cooperativo de agroenergia na agricultura familiar, onde Isae/FGV, 2012.
37 pequenos produtores têm energia para sua propriedade a partir CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida - Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos. São
dos dejetos de seus animais, dispondo de biofertilizante e vendendo Paulo: Editora Cultrix. 1996.
o excedente de energia à COPEL;9 SENGE, Peter. A quinta disciplina : arte, teoria e prática da organização da aprendizagem.
São Paulo : Best Seller, 1993.
O Programa inspira-se no pensamento de Peter Senge, para quem
“nossos problemas de hoje vem das soluções de ontem”9. Por isso, parte-
se da ideia de que “Mudar é preciso, fazer é necessário”. Não há mais lugar
para o olhar e agir fragmentado, separatista, utilitarista, linear, mecanicista,
monocausal e economicista que tem predominado. Só com pensamento-
ação multifacético, interdisciplinar e transversal da água, garantindo seus
multiusos e essencialidade, é que são possíveis os avanços. Se água é vida,
se não há vida animal, vegetal nem humana sem água, não se pode tratá-
la como mera mercadoria ou apenas insumo. Água deve ser para todos e
de qualidade. A visão sistêmica do Programa leva a compreender que “o
homem não teceu a teia da vida, ele é dela apenas um fio. O que ele fizer
para a teia estará fazendo a si mesmo”10.
Diante de todo o exposto, verifica-se que as grandes intenções de
preservação da água no mundo podem ser revertidas em ação local, desde
que realizadas com boas práticas, com exemplar tecnologia social testada,
praticada e consolidada, demonstrando que é possível fazer e com escala.
Mais do que discursos, reuniões e novas leis internas e tratados
internacionais, o que o mundo precisa atualmente é reflexão-ação.
Colocar em prática o que já foi convencionado, tratado, legislado. E com
metas, compromissos e concretude, para mudar a si mesmo, as pessoas,
as comunidades e o meio, confirmando o legado de Mahatma Ghandi:
“temos que ser a mudança que queremos ver no planeta”.
O Programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional demonstra que
é possível e viável implementar Políticas Públicas de qualidade, com
ampla base filosófica e jurídica, voltadas à consciência socioambiental,
concretizadoras de direitos humanos e estimuladoras da cidadania,
9 Para uma análise mais detalhada do Programa ver ARRUDA FILHO, Norman de Paula et. al. Estudo de Caso:
Programa Cultivando Água Boa. Isae/FGV, 2012.

9 SENGE, Peter. A quinta disciplina : arte, teoria e prática da organização da aprendizagem. São Paulo : Best
Seller, 1993.

10 Ted Perry, inspirado pelo Chefe Seattle em sua carta para o presidente norte-americano, extraído do livro A
Teia da Vida, de Fritjof Capra. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida - Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos.
São Paulo: Editora Cultrix. 1996. Prólogo.

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