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O Murmúrio do

outro lado do
Silêncio
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Esquizofrenia &
Musicoterapia

Índice

 Psyche-Pathos-Logos…………………………………………………………………3

 I – O Inconcebível Mundo Psicótico ………………………………………………… 6

 II – A Visão Analítica do Acontecer Psicótico……………………………………….9

 III – A Categorização Sistemática da Psiquiatria Ocidental………………………11

 IV – Musicoterapia e Esquizofrenia………………………………………………….15

 V – A Música Improvisada do Esquizofrénico………………………………………17

 VI – Sintomas Psicóticos e Abordagens Musicoterapêuticas…………………….19

 VII – O Esboço Emergente dos Estudos Ciêntificos……………………………….23

 O Eco do Outro Lado do Silêncio……………………………………………………24

 Referências Bibliográficas……………………………………………………………27
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Psyche - (Espírito, Respiração, Força vital,


Alma)

Pathos - (Paixão, Ser Movido,


Experiência, Sofrimento)

Logos - (Palavra, Tangível, Lógica,


Razão)

A maioria dos termos específicos da psicopatologia (incluindo a atitude essencial

a que o termo psicopatologia se refere) integraram-se na linguagem psicológica através

da medicina psiquiátrica, por isso associamo-los a doença. A definição de doença está

intimamente relacionada com a manifestação de sintomas, e a erradicação ou

supressão desses sintomas com uma noção de melhora ou saúde.

Todas as tentativas de definir o conjunto de sintomas conhecidos como

esquizofrenia enfatizam a incapacidade do indivíduo de descriminar a experiência

subjectiva da experiência da percepção objectiva do mundo (percepção socialmente

consensual e historicamente consolidada pela cristalização de um estado identificável

de consciência). Se a experiência individual do universo se afastar consideravelmente

deste modelo, é encarada como sintoma de um processo psicopatológico que envolve

algum tipo de disfunção orgânica (endócrino-neuronal), ou conflitos psicológicos

disfuncionais.

Se levarmos em conta os comportamentos humanos que têm vindo a ser

considerados normais, aceitáveis, ou desejáveis nas diversas culturas humanas durante

os diferentes períodos históricos, a etiologia e classificação que tem vindo a ser

articulada na psiquiatria parece ser desprovida de significado fora do próprio contexto

em que se insere como criação e criadora de realidades socio-culturais. Muitos dos


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fenómenos entendidos como sintomas psiquiátricos são contidos culturalmente e

sujeitos aos jogos de forças político-sociais postas ao serviço de toda a estrutura

civilizacional. Muitos desses sintomas (alguns dos quais presentes no acontecer

psicótico) invocam formas não usuais e exóticas de experiênciar o mundo e agir nele

que ocorrem selectivamente em certos grupos étnicos e culturas não "ocidentalizadas".

Muitos fenómenos considerados sintomáticos de "doença mental" pela

psiquiatria ocidental têm vindo a ser encarados como processos de cura e

transformação por culturas arcaicas e não ocidentais. Os métodos de transformação

psicológica utilizados por estas culturas passam pelo jejum, privação de sono,

isolamento sensorial e social, exercícios respiratórios, exercícios meditativos e

contemplativos, uso de enteogénicos (plantas, árvores, sementes ou raízes com

propriedades alcalóides transformadoras de consciência); “certas tradições espirituais

desenvolveram também métodos elaborados usando inputs visuais, tecnologia sonora,

estimulação cinestésica, e exercícios mentais.” (Grof,S., 2004)

A loucura é um símbolo poderosíssimo na civilização ocidental, ela é a sombra

do grande pilar da nossa era – a Razão. Os estados psicóticos, e a esquizofrenia em

particular, são emblemáticos do que achamos ser a irracionalidade caótica dos loucos,

esse enigma ancestral que insiste em iludir um olhar atento em busca de ordem.

A irracionalidade, domínio do inconsciente, impõe-se perante a consciência

racional como uma evidência a ser compreendida e explicada. Mas parece-me que a

necessidade não é apenas de um motivo compreensivo, mas de um motivo do qual

aprovemos: não tanto a busca por uma verdade ou essência, mas uma necessidade de

aprovação moral, ética, (estética), que nos proteja do sem sentido intuído no acontecer

psicótico.

A moralidade provém do dogma religioso, e actualmente, também das estruturas

e instituições em relação às quais é reconhecido prestígio e autoridade na esfera da

moralidade, nomeadamente a psiquiatria e a psicologia ocidental. A autoridade para

impor essa moralidade vem dos pilares do estado – o poder judicial, a igreja
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institucionalizada, as profissões, a hierarquia familiar, e a estrutura de poder político

instituída para gerir a sociedade. Esta aprovação moral ganha contornos de “censura

disfarçada”, de uma subtileza extrema no que diz respeito às induções de

comportamento prescrito – a construção social do conceito de normalidade (estatística e

\ ou idealizada) cujo propósito parece ser o de “manter as instituições e a ordem social

onde é suposto a sanidade colectiva encontrar refúgio” (Boyers, Orril, 1972).

As formas como reflectimos sobre nós e nos definimos são determinadas e

constrangidas pelas estruturas de saber disponíveis em determinada cultura, situada

numa determinada época histórica. Desta forma, os pacientes mentais, através do curso

de diversas sessões e contacto com a autoridade psicológica instituída, vão definindo

as suas experiências de acordo com uma definição profissional de “doença mental” – os

discursos clínicos têm um impacto profundo na autobiografia pessoal, influenciando

decisivamente as formas subjectivas de experienciar o mundo e a identidade que

emerge durante o processo terapêutico.

A fenomenologia psíquica revelada no existir psicótico não deve ser negada mas

validada e trabalhada no sentido de poder ser integrada num novo centro ou identidade

a ser redefinida ou reelaborada. A morte, desintegração, caos, terra de ninguém que o

esquizofrénico habita é uma viagem à terra dos mortos; uma odisseia existencial que

exige um ressurgimento de Fé e Verdade psicológica mais abrangente e integrada.


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A Esquizofrenia

I - O inconcebível mundo Psicótico

O mundo experiencial do psicótico envolve uma perda das funções habituais de


saber ou de sentir o mundo que partilhamos com os outros. Velhos propósitos e
significados tornam-se estéreis, sem sentido. A distinção entre imaginação, sonho, e
percepções exteriores parece não fazer o sentido que fazia anteriormente. Os eventos
exteriores parecem por vezes elaborados magicamente, e o sonho pode parecer
comunicação directa de outros: a imaginação parece impor-se como realidade objectiva.
As fundações ontológicas do ser e do mundo parecem ruir. Tanto o mundo como o ser
revelam-se bizarros e muitas vezes indistintos. O psicótico é sugado para um vórtice de
não ser. Não existem suportes, nada onde tomar refugio, não existe chão que securize,
excepto talvez fragmentos psíquicos demasiado efémeros como memórias, nomes,
sons, objectos, algo que relembre uma ligação com um mundo à muito perdido, agora à
distância de um abismo. O vórtice, o vácuo, a imensidão psíquica parece não estar
vazia, é povoada por vozes e visões, fantasmas, formas e aparições estranhas,
símbolos, revelações e intuições. Alguém que não tenha experenciado o quão
insubstancial a realidade externa pode ser, como pode esvanecer-se enquanto âncora
existencial, não poderá nunca compreender a presença sublime e grotesca que a pode
substituir ou existir no seu amâgo.

Tentemos então olhar o acontecer psicótico à luz do legado Jungiano:


No desplotar do surto há uma quebra da função compensatória da psique e o
inconsciente invade abrupta e violentamente a consciência, obstruindo todos os seus
processos habituais. Surgem então atitudes e humores estranhos e incompreensíveis, e
formas incipientes de alucinação. Segundo Jung, um ou mais complexos (conteúdos
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ideativos e constelações afectivas que atraem e são envolvidas por pensamentos,


imagens, sensações e emoções interligadas por uma matriz unitária) emergem na
consciência e autonomizam-se em relação ao ego, ao ponto deste perder a sua função
sintética e coordenadora da vida psíquica e se transformar em apenas mais um
fenómeno na experiência psicótica. Os complexos, devido a uma intensa produtividade
do processo primário, são personificados, ganhando uma autonomia considerável.
Existe também um aflorar de conteúdos arquetípicos em forma de imagens, símbolos,
visões, sensações e emoções, ligados a temas míticos e religiosos. Esta dimensão do
inconsciente colectivo, que “pertence a todos os homens em todos os tempos”, dissolve
o que ainda existia de identidade pessoal num acontecer transpessoal, por vezes
transhumano. Ao destruir o complexo, o arquétipo torna-se “desumano”, apresentando-
se violentamente, através de imagens fragmentadas, desproporcionalmente míticas e
arcaicas, envolvidas em afectos extremos.

O acontecer psicótico apresenta paralelos impressionantes com os mitos


clássicos e com os rituais obscuros da antiguidade, invocados pela riqueza da
imagiologia emocional e dimensão simbólica contida na experiência esquizofrénica. A
ascensão arquetípica à consciência, comporta uma transformação radical no modo de
ser no mundo, agora mítico e a-causal, animado por envolvimentos titânicos. Eliade diz-
nos que “Os mitos revelam sobretudo o despertar e a manutenção da consciência de
outro mundo, de um para além, mundo divino ou mundo dos antepassados.” Existe uma
expansão de mistério, que é a pré-condição e consequência da revelação, revelação
que confirma a ambiguidade, não a resolve. Eliade diz-nos então que “…eles (mitos,
símbolos, imagens) respondem a uma necessidade psíquica e preenchem uma função:
a de pôr a nu as mais secretas modalidades do ser.” (Eliade 11)
A regressão psicótica não se situa num qualquer nível inferior, mas anterior.
Essa anterioridade, este outro mundo (onde o ser é revelado pela aniquilação das
camadas mais superficiais), além de um estado de morte (os impulsos de morte –
Thanatos – que Klein identificou no acontecer psicótico, que destruiriam a forma e
coesão do self), é um espaço de morte, o mundo dos mortos, dos espíritos e dos
antepassados. Esta visão evoca a “realidade última” ou “O” de Bion, que só pode
apreendida quando não há memória, desejo, conhecimento, ou compreensão. Bion
afirma que os místicos são provavelmente quem mais se aproximou de “O”, e que este
estado pode ser terrível, caótico e aniquilador para certas pessoas. Associado a este
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“mundo” está também o arcaico psicanalítico – um domínio do psiquismo relativamente


mal conhecido “ marcado por caracteres como a extrema anterioridade, a presença da
morte (não-vida, antes-vida, após-vida), começo absoluto ele próprio não começado…
uma realidade sobre a qual as cognições não têm domínio, e que permanece refractária
a qualquer sistema representativo.” (Houzel, Emmanuelli, Moggio, 2004). Estamos
perante um mundo que escapa à contenção das palavras, um mundo de essências
intimamente reveladas. Espinoza diz-nos que “…um homem comunica a outro a
existência mas não a sua essência". Neste sentido, o psicótico encontra-se sozinho
perante a incerteza do existir psicótico, num exílio existencial.
Hillman refere que “a patologia é uma verdade necessária, tal como parte do
sentido do amor é aprofundado pelo caos, sofrimento e adversidade.” Embora a
experiência seja de natureza arquetípica, contem também elementos autobiográficos
significativos. Após a vivência no plano mítico, as experiências devem ser integradas
nos problemas específicos da vida no dia-a-dia, e a restruturação, transformação e
vitalidade do Self, Ego, ou sentido de identidade revela-se primária e essencial a todo o
processo.
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II - A Visão analítica do acontecer


Psicótico

De acordo com Melanie Klein, o processo de individuação do esquizofrénico ficou


estagnado ou fixado nos primeiros meses de vida - posição ou núcleo esquizo-
paranoide. Idealmente, as projecções típicas desta fase (projecções de material
psíquico não assimilável) seriam contidas e transformadas pela actividade inconsciente
de "reverie" da mãe (através das suas fantasias de cura, impulsos e sonhos imaginais),
concedendo à criança a capacidade de as introjectar e integrar internamente (processo
de projecção identificativa). Se não existir sintonia entre os desejos, necessidades e
fantasia da criança e da mãe, existe uma ruptura, um desencontro com o objecto. A
simbiose psíquica com a mãe, ou é precária ou não existe de todo, não se constitui um
objecto interno estável e afectivamente investido.
Perante uma ameaça existencial precoce, e sem possibilidade de elaboração, a
criança cessa a comunicação e recolhe-se no seu mundo na tentativa de se proteger. A
dor na criança tem um efeito persecutório e é desorganizadora da vida psíquica. Este
processo afecta a diferenciação entre mundo interior e exterior, a formação de
representações de Self e de Objecto, e o desenvolvimento de estruturas defensivas
mais maduras… evocando uma ameaça sem direcção, omnipresente, reminescente das
regiões mais arcaicas da psique colectiva.
No decorrer do desenvolvimento, normalmente na adolescência, experiências
traumáticas de forte cariz emocional activam padrões de ruptura, isolamento e confusão
(constituidos precocemente) que podem conduzir a um eventual surto psicótico.
O psicótico abriga uma angústia de morte invasiva que o acompanha
constantemente e tolda o seu relacionamento com o mundo. Devido ao excesso de
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ansiedade, ele projecta-a no mundo exterior (mecanismo primitivo) defendendo-se de


uma angústia profundamente destruturante. Ocorre depois uma introjecção crua do
material projectado, não existindo elaboração mental dos esquemas psíquicos mais
agressivos e persecutórios (a parte má do objecto).
Devido à excessiva destructuração e permiabilidade de uma identidade sem
fronteiras definidas, o estar em relação activa um desejo inconsciente de fusão e um
medo intenso de dissolução do Self. Verifica-se uma incapacidade de modular os
afectos e o pensamento através da linguagem, o que leva os impulsos a traduzirem-se
normalmente em comportamento. - (pois a linguagem não é mais um veículo contentor
e espelho fidedigno da realidade interna, ela não abarca a experiência titânica da
invasão que o inconsciente opera na consciência).
De uma perspectiva clássica psicanalíca, O ego deixa de ser regido pelo principio
de realidade, o id toma conta do funcionamento psíquico invadindo-o com massiva força
pulsional. O Superego é projectado e reaparece enquanto alucinações auditivas e
delírios ideativos. A externalização distorcida de conflitos interiores causa alucinações e
paranóia. Este processo é considerado defensivo, tem uma função auto-reparadora.
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III - A Categorização sistemática da


Psiquiatria Ocidental

A esquizofrenia torna-se manifesta normalmente no fim da adolescência / princípio


da vida adulta.
Algumas pessoas recuperam totalmente após um ou dois surtos psicóticos.
Outros são hospitalizados intermitentemente durante toda a vida, mas têm períodos em
que funcionam relativamente bem, com alguma autonomia. Outros ainda são
institucionalizados para toda a vida.

- Factores de risco na esquizofrenia:

1) Factores biológicos: factores genéticos / disfunções cerebrais / disfunções


bioquímicas

2) Factores psicológicos: disfunção familiar / disfunções de comunicação

3) Factores sociais: baixo nível de escolaridade e de rendimento

- Para se ser diagnosticado com esquizofrenia tem que se ter por mais de 6
meses, dois dos seguintes sintomas:

1) Delírio

2) Alucinações
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3) Discurso desorganizado ou incoerente

4) Comportamento muito desorganizado ou catatónico

5) Ausência de expressão facial

6) Isolamento social extremo

(Durante o surto psicótico os sintomas agravam-se muito, ocorrendo uma perca


de contacto com a realidade consensual e com uma falta de auto-consciência)

Sintomas positivos da esquizofrenia:

 Alucinações (visuais e auditivas)

 Pensamento e discurso desorganizado (ilógico ou incoerente)

 Delirios (persecutórios, de grandezade, de controle, de referência, amorosos…)

 Comportamentos bizarros (ex: catatonia)

(São os sintomas que respondem melhor à farmacopeia)

Sintomas negativos da esquizofrenia:

 Embotamento afectivo

 Isolamento social

 Ausência de vontade ou iniciativa (apatia) - amotivação

 Empobrecimento do pensamento e do discurso


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(Existe normalmente uma ausência de consciência sobre o facto de ser


esquizofrénico. O declínio não é contínuo, linear ou progressivo, e os motivos desse
empobrecimento psíquico transcendem o acontecer psicótico – são também fruto de
isolamento social, falta de estimulação, desintegração social, estigmatização cultural,
farmacopeia psicotrópica…)

- Os tipos de sintomas podem mudar de ano para ano na mesma pessoa à


medida que a condição progride. Diferentes subtipos de esquizofrenia caracterizam-se
pela predominância de determinado sintoma:

1) Tipo Paranoíde:

Presença de alucinações auditivas ou delírios ideativos sobre persecução ou


conspiração. É considerado o tipo mais funcional de esquizofrenia em que a capacidade
de estar em relação é maior que nos outros casos.

2) Tipo Desorganizado:

Desorganização de pensamento. As alucinações e o delírio são menos


acentuados neste caso. São geralmente instáveis emocionalmente e os afectos são
descontextualizados - respostas emocionais desapropriadas, e incapacidade de
comunicar emocionalmente.

3) Tipo Catatónico:

Distúrbios de movimento. Vão do estupor catatónico em que o movimento


voluntário cessa, até à excitação catatónica em que o movimento aumenta
drasticamente. Ocorre regularmente comportamento estereotipado, actividade sem
sentido repetida em loop. Posições corporais bizarras; ecolalia (repetição do que o outro
diz) e ecopraxia (repetição de como o outro se move).
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4) Tipo Indiferenciado:

Casos em que os sintomas não são muito acentuados ou específicos o


suficiente para se encaixarem em qualquer subtipo.

5) Tipo Residual:

Quando não ocorrem mais sintomas proeminentes; os sintomas não se


apresentam mais com tanta severidade. Podem ocorrer alucinações, delírios, ou
comportamentos bizarros, mas a sua manifestação é significativamente menor do que
na fase aguda da condição esquizofrénica.
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IV- Musicoterapia e Esquizofrenia

Daniel Stern afirma que experiências positivas de relação, onde o cliente partilha

um fócuo mútuo exterior, possibilitando a partilha de atenção, intenções e afectos, são a

base da mudança.

O processo musicoterapeutico desenvolve-se com o intuito de proporcionar ao

paciente esquizofrénico, através de uma linguagem não referencial, uma restruturação e

re-integração psíquica que possibilite uma expressão contida e significativa de

sentimentos e pensamentos, e não apenas uma descarga activa de tensão e impulsos.

Planeiam-se as sessões e as actividades musicais como uma estrutura sólida e

consistente. Ajuda-se o paciente a viver a sua disrupção ao aceitarmos numa atitude de

não julgamento e contenção o que quer que ele diga ou faça. Facilita-se o processo

musical, o reconhecimento de emoções e a organização do pensamento, e incentiva-se

o estar em relação e a edificação de um sentido de identidade.

Ajuda-se o paciente a edificar defesas psíquicas. Devemos ser tolerantes com

emoções fortes e alguma impulsividade, mas as intervenções devem encorajar a

contenção do agir e a formulação verbal e musical de ideias que constituam uma forma

controlada de expressão.

Musica e palavras são utilizadas como formas de comunicação com o potencial de

organizar o pensamento, integrá-lo com os afectos, e aproximar o paciente do mundo

intersubjectivo dos "outros" sem o risco de ele se dissolver e perder a individualidade.


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Fazemos música com os pacientes de uma forma contentora e não afirmativa,

criando o maior espaço possível para o paciente definir a sua voz musical através do

tempo e experimentar formas de elaboração alternativas através da sua música. Ao

combinarmos musica e intervenções verbais, diminuímos a distância entre a expressão

verbal e não verbal, entre os afectos e o pensamento.

A relação terapêutica não só reproduz padrões de relações primárias (com a

intensidade regressiva operada no acontecer psicótico), como é criadora e contentora

de novos símbolos e dinâmicas relacionais.

Na improvisação terapêutica a música é imbuída de material inconsciente

projectado pelo paciente e pelo terapeuta. A função do terapeuta é fundar nessa

dimensão não referencial que é a música, um espaço contentor onde as projecções do

paciente possam ser transmutadas em elementos alfa (bion), e posteriormente

introjectadas facilitando a integração intrapsiquica.

A transformação de sentimentos operada na improvisação livre, permite não só

uma expressão de conteúdos inconscientes, mas também a criação imediata de novos

símbolos pela síntese interpsiquica que a música possibilita. Este material interpsiquico

fica disponível para ser introjectado establecendo um principio para a síntese

intrapsiquica do esquizofrénico.

A música teria uma função Alfa: seria um veículo de expressão e transmutação de

material não elaborado psiquicamente, e terreno de criação e experimentação de novas

modalidades de ser em relação. Enquanto forma de linguagem não referencial, o

terreno musical não está sujeito às defesas psíquicas associadas ao uso de formas

cognitivas mais analíticas como a linguagem verbal.

A relação com o outro (terapeuta) é mediada por uma dimensão

contentora (música), terreno intersubjectivo que diminui a ansiedade (de morte) do

esquizofrénico em ligar-se a outra pessoa, possibilitando a relação sem dissolução do

Self. Desta forma, ao longo das sessões, é concedido ao esquizofrénico a possibilidade

de conter a sua ansiedade e gerir a sua vida psíquica com relativa autonomia.
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V- A música improvisada do
esquizofrénico

O paciente psicótico evidencia uma incapacidade de criar um espaço psíquico

onde se apropriaria do objecto musical concedendo-lhe um estatuto símbolico. Esta

incapacidade exprime-se pela sua forma improvisada de expressão musical: um tocar

monótono e repetitivo, sem fim, ou um tocar fragmentado que ele não experencia como

algo que lhe pertence; as notas e fragmentos ritmicos não têm coerência entre si, não

criam uma dinâmica variável; a estructura vislumbrada é rigida e muito limitada, e há

uma ausencia de silêncio.

Com o decorrer das sessões espera-se um despertar gradual do paciente.

Momentos de “sincronicidade” musical começam a surgir inesperadamente e

involuntáriamente, onde se criam as fundações de um espaço interpsiquico comum. O

paciente começa a desenvolver o seu tecido musical e a interagir com o terapeuta: a

pulsação começa a ser partilhada, começam a orrer silêncios na improvisação, surgem

pequenas variações melódicas e ritmicas, e momentos de diálogo e interacção musical.

Ocorre então criação de um espaço psiquico independente apartir do qual o paciente

desenvolve a sua autonomia e identidade na experiência musical.


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As fundações que emergem nos momentos de “sincronicidade” possibilitam uma

primeira diferenciação entre identidade / realidade externa, um processar símbolico

primário e uma apropriação da música por parte do paciente.

Surgem então na improvisação, motivos ritmicos e melódicos que são

explorados com variações e diversas dinâmicas. A pulsaçao torna-se o chão do espaço

musical partilhado, assim como o sentido harmónico. O silêncio torna-se um aspecto

estructurante da improvisação, e esta é claramente desenvolvida num espaço

interpsiquico onde o paciente existe autonomamente e desenvolve as suas próprias

“imagens e pensamentos” musicais.

A música leva e inspira o paciente a criar a partir do desconhecido. Não mais

isolado no seu mundo intemporal, ele recria-se e descobre-se no paradoxo da liberdade

individual: ele toca, pensa e existe a partir de um espaço intrapsiquico definido, num

espaço interpsiquico onde a autonomia convive com a aceitação da dependência

mutual.
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VI – Sintomas Psicótico e
Abordagens Musicoterapêuticas

Disturbios Afectivos:

Embotimento do afecto

 Audição guiada de musicas que evoquem respostas emocionais

 Técnicas estructuradas de musica e movimento que evoquem respostas


emocionais

 Técnicas expressivas de musica e movimento que usem conceitos emocionais


como temas de performance

Afecto inapropriado

 Audição guiada de musicas que evoquem respostas emocionais


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 Técnicas estructuradas de musica e movimento que evoquem respostas


emocionais

 Intervenções verbais de suporte com o intuito de identificar sentimentos e


emoções

Humor disfórico

 Audição guiada de musicas com o objectivo de alterar sentimentos

 Técnicas expressivas de musica e movimento que usem conceitos emocionais


como temas de performance

 Intervenções verbais de suporte com o intuito de expressar sentimentos e


emoções.

Disturbios de conteúdo e forma do pensamento:

Delírios de pensamento e Delírios de referência

 Tarefas musicais prazerosas e não ameaçadoras, aos níveis verbal e não


verbal

 Desorganização do discurso (discurso disperso e sem sentido; Alogia,


pobreza do discurso)

 Actividades musicais que sustentem uma interacção verbal centrada num


determinado tema.
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 Musica enquanto mnemónica para ajudar em tarefas de memória e


"sequencial tasks", e enquanto estimulação sensorial para reavivar
habilidades auditivas e perceptivas.

Distúrbios motivacionais:

Avolição (incapacidade de iniciar e persistir em actividades com


objectivo)

 Utilizar a música enquanto estimulante prazeroso da motivação e


promover o envolvimento em actividades com objectivo definido.

 Uso de feedback sensorial e social no processo performativo com o


objectivo de praticar resolução de problemas e tomada de decisão.

Anedónia (perda da capacidade de ter prazer)

 Situações de performance que evidenciem sucesso e eficácia a curto


e longo prazo, que funcionem como reforço e feedback positivo na
busca por actividades.

Disturbios do sentido do Self:

Auto-imagem distorcida e falta de insight

 Uso de feedback sensorial e social no processo performativo que


evidencie sucesso e eficácia musicais a curto e longo prazo.
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 O uso do ritmo, forma, dinâmica, melodia e hamonia na performance


musical, e o estructurar progressivo da interacção do Self com o
mundo exterior.

 Performances de música composta ou improvisada, orientadas para


objectivos

Relação disfuncional com o mundo exterior:

Isolamento social

 Participação em actividades musicais de grupo baseadas num tema comum

Distracção excessiva com estímulos internos

 Utilizar a música como estímulo multi-sensorial exterior suportando a percepção


do mundo exterior

Disturbios psicomotores:

Rigidez e locomoção reduzida

 Tarefas musicais e de movimento que evoquem respostas motoras

Consciência reduzida do corpo

 Tarefas de movimento estructuradas, dança e exercícios físicos com musica de


suporte com o objectivo de promover consciência do corpo movimentos
funcionais.

Maneirismos sem sentido e posturas bizarras


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 Exercícios de controle de movimento que usem musica como estimulo de


suporte e feedback

O esboço emergente dos estudos


ciêntificos

Conclusões de uma revisão de literatura de 2 estudos ciêntificos e uma meta-

análise efectuada a estudos sobre 700 pacientes institucionalizados - (Gold, Bergen,

Solli, 2009); (Ulrich, Houtmans, Gold, 2007); (musictherapy.org, 2010).

a) A musicoterapia quando usada em sinergia com a assistência médica convencional


revela efeitos significativos no estado geral de saúde, no nível de sintomas, ansiedade,
funcionalidade e interacção musical e inter-pessoal; diminui especialmente os sintomas
negativos (sendo mais eficaz quando estes são primários na condição do paciente)

b) Os resultados mais específicos que se evidenciaram eficazes foram: a redução da


tensão muscular, diminuição da ansiedade, melhoria das relações inter-pessoais,
aumento da motivação, melhoria da auto-imagem / aumento da autoestima, aumento de
verbalização e a vivência de descargas emocionais seguras e bem sucedidas

c) A eficácia dos efeitos produzidos não depende do diagnóstico específico de subtipos


de esquizofrenia

d) Assim como nas terapias verbais, os efeitos da musicoterapia aumentam com o


número de sessões providenciadas.
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e) A relação do nº de sessões / efeito produzido, no que diz respeito aos sintomas


negativos e funcionalidade, é não linear (tem maior efeito nas primeiras sessões).

f) São verificados efeitos ligeiros após 3 a 10 sessões; efeitos médios são alcançados
após 10 a 24 sessões; e efeitos fortes são visiveis após 16 a 51 sessões.

g) Os factores de cura são indeterminados: o uso de determinadas técnicas; a


abordagem teórica do terapeuta; a relação terapêutica; o setting terapêutico (...)

O Eco do outro lado do Silêncio

As sociedades tribais encaravam com medo e terror o caos que circundava o

seu mundo habitado, terreno não cosmogonizado que significava o não-ser absoluto. O

homem primitivo, ao perder-se nesse “espaço amorfo”, “sente-se vazio da sua

substância ontológica, como se se dissolvê-se no caos, acabando por se aniquilar”

(Eliade 2000). Antes do ser humano vir ao mundo, o nada era o conteúdo anterior ao

big bang da criação cósmica. Na tradição psicanalítica ele tem sido encarado como o

resultado de fantasias ou realidades destrutivas, a sua dimensão criativa tem apenas

sido esboçada.

No surto psicótico (na fase apocalíptica posterior à apófania - Claus Konrad)

opera-se uma “implosão centrípeta que, eventualmente, faz regressar o sujeito à

experiência do nada, do sem sentido, da entropia, do caos e da indivisibilidade”

(Grostein 1999). É através de uma progressiva transformação caótica que ocorre este

movimento em direcção ao nada, ao terreno do arcaico, a “O”, ao não-ser; onde tanto

as leis Newtonianas e Einsteinianas (para lá do horizonte de acontecimentos nos

buracos negros astrofísicos, suposta passagem para além da estrutura espaço-tempo e

da lei da causalidade, em direcção ao indiferenciado vácuo quântico), como as leis

psíquicas com que nos habituamos a conviver, deixam de fazer sentido e perdem-se no
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horizonte longínquo da infinitude do inconsciente. Revela-se um mundo sem interior

nem exterior, sem tempo nem espaço evidentes.

Este processo de dissolução no caos pode ser um processo dinâmico de

reestruturação ou reelaboração do ser para um estado mais integrado, complexo,

autónomo e abrangente (como são descritas as estruturas autopoiéticas – sistemas

não-lineares que evoluem através de revoluções caóticas descritas por Ilya Prigogine).

Guy Ausloos diz-nos que “…o caos talvez seja fonte de vida, de união, de inovação; o

erro seria considerar que ele é nocivo e fazer tudo para o combater e ordenar.” Hillman

completa afirmando que “O desconhecido leva-nos ao caos, e o caos é inseparável de

Eros e da criatividade.” Neste sentido, a questão já não seria como eliminar o caos e o

sem sentido, mas como lidar com ele. Como extrair a riqueza deste terreno fértil? Como

fazê-lo dizer a sua verdade? Como permitir-lhe desabrochar-nos? Onde se encontra o

Pathos fundador de uma Cosmogonia de Terra Incógnita? Este ser movido impõe-se

pessoal e colectivo, num movimento de expansão do Ser intra e inter-subjectivo.

Fazendo uma ponte com a visão de Bion e alguns conceitos Kleinianos, o

processo vislumbrado anteriormente remete-nos para a dialéctica entre a posição

esquizo-paranoide e a posição depressiva: a dissolução, ou desmantelamento (a

destruição envolvida no acontecer psicótico) seria uma “catástrofe psíquica” em

direcção à posição esquizo-paranoide, enquanto a função sintetizadora e integradora

estaria envolvida num movimento em direcção à posição depressiva (por isso a ideia

que por de trás de uma psicose encontra-se uma grande depressão – dois pólos de

uma dinâmica psíquica). No surto psicótico, o acesso a uma realidade caótica e

paradoxal, com a dissolução dos continentes contentores (no movimento esquizo-

paranoíde), levaria a uma reorganização de elementos beta transmutados em

elementos alfa, e uma reelaboração do significado dos “factos seleccionados” –

experiências psíquicas essencialmente emocionais de um sentido de coerência entre

fenómenos mentais - (no movimento depressivo). A capacidade de tolerar esta mudança

catastrófica resultaria em crescimento, embora seja um processo extremamente


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doloroso e dependente da capacidade de tolerar e integrar a fragmentação, ansiedade,

incerteza, caos e a natureza intrinsecamente paradoxal de toda a experiência.

Tal como a história da música veio a ser uma sobre o aceitar progressivo da

dissonância, uma procura e celebração de uma maior liberdade de criação e expressão

sonora, talvez a história do homem se avizinhe ser sobre uma maior aceitação da

incerteza e mistério fundamental escondido na essência das coisas. Talvez através de

uma maior aceitação da loucura no amâgo do mundo, libertaremos as energias que a

reduziam aos esquizofrénicos e a todos os aclamados de “doentes mentais”, e

encontraremos um equilíbrio desconhecido libertando os loucos da sua distância

incomensurável e os sãos da sua cegueira dominadora.


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Shambhala Publications

Miguel Soares

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