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Um cavalo que foge de uma famosa estátua eqüestre beija

e ampara na sarjeta o cavaleiro delirante. Don Augusto


Sombra, o biógrafo de vidas desperdiçadas, colhe relatos
nas tabernas, onde encontra don Macedonio Fernández
e o incrível sr. Knut. Esperanza, marcada por agulhas
de fabriquetas coreanas e a febre da selva, pisoteia los
hombres em la calle. A insone Viridiana, chica buñuelistica,
desconfia que tudo não passa de uma fábula envenenada
com boa-noite-cinderela. A essa altura, o portunhol selvagem
é a nova língua da Babilônia. Preparem seus corazones,
senhoras e senhores, as aventuras nos chacos existenciales
de San Pablo estão apenas começando. Tudo acontece na
mais longa noche deste pueblo, quando os Gângsteres do
Sol Quadrado impõem o toque de recolher na metrópole-mor
de latinoamérica.
“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele
que desce à sepultura nunca tornará a subir.
Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu
lugar o conhecerá mais.” (Jó 7:9-10)
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CABALLEROS SOLITÁRIOS RUMO AO SOL POENTE

{romance}

xico sá
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Imprimatur

ANO DA GRAÇA DE 2007

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CABALLEROS SOLITÁRIOS RUMO AO SOL POENTE

{romance}

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PRÓLOGO {ON THE ROCKS} PARA O LEITOR SALTA-PÁGINAS

Até a mais analfabeta das traças dos sebos deste pueblo sabe que os prólogos são
feitos para serem pulados como cercas de um latifúndio, cancelas de rodagem ou
barreiras de provas hípicas.
Um volume que tem como personagem principal um cavalo, jamais um bípede,
nem mesmo um corvo miserável e agourento, é para ser lido mais aos pulos ainda.
(...)
Insisto, porém. A teimosia é a espada nua de um escriba, na velha lição de
Lazarillo de Thormes, parente muy longínquo pero distante apenas no tempo e nos
mapas, insisto, digo, em uma nobre e cerimoniosa advertência:
“No hay libro, por malo que sea, que no tenga alguna cosa buena”.
Ou seja, em livre tradução deste portunholista selvagem que não vale um falso
guarany em cédula rasgada: até mesmo no mais odiável dos compêndios poderemos
pescar alguma nobre manjuba perdida nos mares gutenberguianos.
Eu bebo sim em Lazarillo de Thormes e em todos os pícaros que os castelhanos
estrelados ostentam.
Bebo sem culpa alguma porque o misterioso autor de fabuloso volume picaresco
já estava a beber no sábio Plínio, o Velho, naturalista romano, algo semelhante cuja
memória carcomida por bebedeiras tantas não me permite um registro mais honesto.

(...)

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“Só o leitor que salta me importa”, disse, pelo que entendemos do seu escorreito
castelhanês, voz miúda, o recém-chegado à taberna dos bravos cavaleiros forjados a ferro,
bronze e esquecimento.
“Ao leitor que pula páginas me dirijo. Asseguro-te que lestes todo o meu romance
sem te dares conta, te tornastes leitor seguido à tua revelia, à medida que vou te contando
tudo dispersamente e antes de iniciar o romance. Comigo, o leitor que salta é quem mais se
arrisca a ler seguido”, deu tintas finais à tese-chiste, era de fala pouca, voz miúda, don
Macedonio Fernández, egresso da província de Buenos Aires, ainda com cheiro de estradas e
margens perdidas.
Don Diegues de la Verga, muy amable, astronauta dos chacos paraguayos, bebia o
seu composto de sete ervas guaranys ao lado do impagable Domador de Yacarés, filósofo
rupestre, verdadeiro xamã como todo poeta da tríplice fronteira.
El Domador hablava algo sobre a verossimilhança ou não do amor e as suas
possibles malasartes.
Bievenidos, comancheros!
Donde outro forasteiro, novidade em nuestra tertúlia, pula do seu místico biombo
com os segredos típicos daquelas criaturas que vêm de longe, muito longe, ponha longe
nisso, de las tabernas do fim dos mundos:
“Se vocês quiserem que eu conte, eu conto, mas têm de me pagar uma bebida
antes, para que eu possa molhar a prosódia e agradar mi suerte”, diz o sr. Steven Brust,
chamemos assim o distinto viajante igualmente empoeirado.
Sabe-se que o sr. Steven Brust toca bateria e dumbek, aquele tambor árabe da
dança do ventre, numa banda gypsi-punk dos mundos também finais. O distinto
cavaleiro, conforme a mística, sempre muda de nome para fugir das groupies-
motosserras, aquelas garotas selvagens dos trópicos que decepam todos os paus, troncos e
membros dos seus ídolos estrangeiros.
Na tempestade, Steven Brust estica a mão na janela com o seu copo longo de
uísque, enchendo-o de granizo até as bordas. Celebra a vida nos trópicos, onde se diverte,
deixando para trás o passado de menino criado num castelo escuro. Agora tem o sol o dia
inteiro para brincar com as mungangas da própria sombra.
Steven também bebe previsíveis cowboys quando a melancólica besta-fera do
lusco-fusco embaça seus óculos verdes com a poeira do amor ou da ira.
Steven Brust tem aquele jeitão de cigano húngaro, é o que dizem, mas como
nunca vi um cigano húngaro na minha frente, Steven continua a ser apenas aquele escriba
vagabundo que encontrei na secção Luz, sítio deste pueblo, do Sandman´s Drinks, célebre
no recinto por trocar boas histórias e solos de dumbeck por bebida e sexo. O que mais o
diverte nesta vida é contar com a musa da encomenda e a velha da foice a bafejarem
prazos fatais no juízo, pequenas biografias de assombrações nocturnas. Tínhamos a
mesma impressão sobre o mundo, além do mesmo ofício, pelo menos é o que me ficou
como areia especulativa na ampulheta do enferrujado cocoruto.

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“Anjos e demônios habitam as coincidências”, disse a nuestra garota predileta, de


cujos olhos saltavam melancólicos peixes de água doce e aquela fagulha de beleza que
habita a alma dos esquizofrênicos desta selva. Tinha o dom também, igualmente
extraordinário, de fazer pedras de gelo virarem betas, rumble fish, nos drinques coloridos
dos forasteiros.
Viejo cigano, te pago todas, nos vemos mais adiante na taberna do sr. Knut, ninho
das melhores narrativas dos seres fantásticos aos quais restam apenas histórias
esburacadas como os seus próprios fígados bolaños.
Cavaleiros nativos e viejos freqüentadores, perdoem-me, mas queria fazer as
honras bíblicas, imbatíveis filhos pródigos, aos recém-chegados de outras fronteiras
perdidas. O amor aos deserdados cativos, porém, é o de sempre. Aguardem os próximos
informes de la calle e as aventuras de um cavaleiro que sabia, mais do que nunca, que a
vida, a cada dia, tem cada vez menos o aroma do triunfo e cada vez mais o gosto de
pólvora de um perigoso beijo em uma comprometida dama deste e de qualquer outro
pueblo dos orgulhosos e destemidos bigodes de latinoamérica sangue-quente.
Esta é a verdadeira história, balada, fulgor e quase morte, dantes fosse, dos
cavaleiros solitários.

Don Augusto Sombra, cronista de costumbres, biógrafo e andarilho, San Pablo de


Piratininga, maio do ano da graça de 2006, uma das noites pontuadas pelos massivos
ataques dos Gângsteres do Sol Quadrado.

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PARTE I - Na escadaria do manicômio iluminado


eu ouço o sino com farpas sacudindo a pradaria

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Cap. I - Donde lentamente adentramos o bosque e especulamos


sobre nossos próprios demônios

Não havia sequer um cão desplumado e lazarento a lamber a bocarra do cavaleiro


solitário. A dentição mais parecia uma espiga de milho atacada pelos famintos pássaros do
bosque escuro.
Se o ilustríssimo Satã se fazia presente, pouco sabemos, não havia nada de
extraordinário que o entregasse àquela altura. Muito menos algum pacto secreto.
É evidente que o cavaleiro gostava de contar para os desalmados da taberna do sr. Knut
a história de O Mestre e Margarida(1), na qual o diabo se apossa, elegantemente, de todas as
freguesias e criaturas daquele pueblo mui distante, mui gelado...
Até o gato preto do sr. Knut miava como se cantasse um indecifrável blues nessa hora,
de maneira a assombrar mais ainda aqueles refugos bêbados na taberna da chance alguma.
Os desalmados ouviam gargalhadas nervosas, mas tinham dúvidas se lhes
pertenciam tais gargalhadas.
Ali sobravam apenas ecos de gargalhadas antigas guardados entre o destampar e outra
das pingas que comem fígados e memórias como burgueses franceses devoram foie-gras.
As cobras dos garrafões de envelhecidas bagaceiras faziam daquele antro um pesadelo
desenhado sob encomenda, antes do sono impossível.
Quem estivesse encostado às paredes ouvia vozes com sotaque típico de quem voltou ao
mundo, mas ainda vaga sem corpo por esse vale de lágrimas doravante conhecido como
Baixada do Glicério y arredores.
O diabo, porém, não estava por perto, aquelas almas não mais lhe interessavam, melhor
comprar seus fajutos faustos, como se gabava o aliteratoso elemento, nas baciadas do exército
de reserva das filas de segunda ou na Bolsa de Mercadorias & Futuro.

(1) “Il Maestro e Margherita”, como preferia traduzir o cavaleiro, trata-se de um romance do ucraniano Mikhail
Afanasievich Bulgakov (1891-1940).

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Nem mesmo os morcegos em festim sob as copas das árvores do bosque noticiavam,
àquela noite, a presença do demo, no que o cavaleiro de alma perra, na inércia da sua ressaca
monstruosa, mirava, calmamente, o cavalo lunar de São Jorge refletido na poça em câmera
lenta. Tentava montá-lo a todo custo, debalde, en vano, como narraria tempos depois a este
biógrafo de mal-assombradas criaturas de la noche.

“O silêncio é a zoada mais demoníaca e buliçosa dentro da cabeça de um homem”,


pensava coisas siberiosas, odiava aquela hora, lusco-fusco, ângelus, além muito além do
jiboiamento precioso, as vozes no juízo de todos os pentecostes não-ditos, benzia-se num gesto
automático das mãos ainda governadas por forças do mamulengo de Édipo.

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“A vida é um pangaré paraguayo que nos pega na curva”, cismava ainda o cavaleiro
solitário, desembestadamente, capaz de transformar a mais encorpada bílis que escorria pelo
canto da boca em gracejo ou chiste; eis a vantagem suprema de quem já havia perdido tudo
que um homem pode perder neste deserto.
As gargalhadas nervosas não escondiam lágrimas russas. Era a vida-vidinha, senhores,
ordinária, minúscula como um anzol de pegar manjubas como se fossem Moby Dicks, baleias
para a fartura de nuestra língua gracilianíssima.
“Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante”(2), ouviu uma voz ao longe. A voz
se aproximava com as correntes da friaca. “Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante”,
a voz se repetia. “Nin-nin-guém-guém... am-am-pa-ra...”, agora como se o vento fizesse um
scratch sobre um vinil, 75 rotações por minuto, na vitrola da ante-sala do inferno.
Não havia um cão feridento a lamber-lhe os beiços e muito menos um problema a
atormentar a vida do cavaleiro que se despedira, há tempos, das marmotas da glória e da
maciez das falsas plumas.
Não havia uma testemunha com olhos de sugadores corvos, apenas este biógrafo à
espreita, por dever de ofício, e um gigante e leso traveco recém-chegado de Espanha que ali
batia ponto na parte mais erma do bosque.
“Bem-aventurados os que perdem de vez o rumo, estes herdarão apenas o desassossego
particularíssimo dos seus próprios e solenes blues”, o cavaleiro tangia os morcegos com o seu
chapéu negro de cowboy sem nome. ”No máximo ouvirão uma voz ou outra a lembrar-lhes a
inútil verdade dos poemas”, agora o cavaleiro dava um tapa em uma ratazana que roía-lhe as
dobradiças das janelas d´alma e suas remelas pessoanas.
Agora o cavaleiro imagina-se tocando um banjo melancólico que ri da vida, como uma
balada de Bob Dylan no paraíso perdido.
Agora o cavaleiro pensa que é Tom Sawyer, pescando no rio do Bronx.
Agora o cavaleiro copia a autobiografia de Lawrence Ferlinghetti e ouve um sermão de
rock´n´roll com direito a trombone no solo desta noche.
O cavaleiro viaja todos os mundos, quando lava os olhos nas turvas águas do bosque
do parque da Luz.
Agora o cavaleiro leva uma vida mansa, lendo os classificados das criaturas que não
levam jeito para a coisa doravante denominada bida nueves fuera nada.
“Restaurar sonhos não me interessa, minha ourivesaria é outra”, o cavaleiro resmunga
para o olhão do Monstro da Piedade que pastoreia nos derredores, disposto a gastar toda a
remela cristã com os piores trastes da área.
Profissão: tenho vagueado nas pradarias de la noche.

(2) Embora o cavaleiro atribuísse a Jorge de Lima (1893-1953), a memória havia sido carcomida pela síndrome de
Korsacov, trata-se de um verso de “Overmundo”, poema de Murilo Mendes (1901-1975)

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Uma mulher ainda sem nome, pernas não tão grandes pero alongadas por lindas botas
em couro de lagartos vulcânicos, ojos cortados com navalha de cão andaluz...
Esta mujer está por perto e é capaz de fazer boiar na travessia melancólica dos seus
zolhinhos até mesmo o mais babilonizado dos cavaleiros deste pueblo.
Se o desejo envelhecido dos kabrones por esta chica destilasse de uma hora para outra...
daria no melhor uísque cowboy do fim dos mundos.
Ela traz marcas de agulhas, fabriquetas coreanas de confecções e uma tatuagem de
Simon Bolívar nas costas.
O nome de um filho também tatuado pelo próprio pai, que se perdeu na selva escura de
Cochabamba.
Juan, eis o batismo do chico.
Não, ela não está triste, mesmo ouvindo uma canción desesperada de La Lupe.
“Teatro, tu és puro teatro... falsidade ensaiada, estudiado simulacro”.
Agora ela ouve Johnny Cash ladeira acima, como num trote de uma bela égua que foge
do barulho dos fogos de artifício:
“Cry,Cry,Cry...”

(...)
Benvenido Granda, um bolero:

“Eu vengo a la barra a tomar un trago


A ver si con eso puedo disipar
La angustia que llevo dentro de mi alma
a ver se consigo tu amor olvidar...”

Uma guarânia...

O relato desde o manicômio do grupo Querembas, rock pesado da sua Bolívia natalícia.
(...)
Chavela Vargas canta “Luz de luna”, ela não imaginava que a faixa estava na lista, não
pode ouvi-la sem machucar-se um pouco mais.

Os céus minguam por alguns minutos, “Saturno em virgem”, ela especula com os astros.
Su horóscopo naquele dia, Sagitário, segundo um ex-astrólogo del Clarin com o qual
teve um romancito acá en San Pablo:
“Amor: Auspicioso. Deja atrás el rancor y expone sus necesidades sin perder la
confianza. El amor fluye con naturalidad. Despejar dudas logra suavizar tensiones y ayudará a
los reencuentros que permiten abandonar la soledad. Busque encuentros sin mucha exigência.
Salud: Haga ejercicios de elongación. Sopresa: Com um cambio de actitud supera escollos.”

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Agora renova o gloss-urucum no espelho das ruas.


Pensa nos homens como um cemitério de sapatos que poderiam estar naquela vitrine.
Os homens são apenas um cemitério de sapatos que ficam embaixo das camas,
enquanto nos comem ou nem isso.
Sapatos de bicos finos.
Sapatos bem engraxados.
Sapatos sujos na poeira do trabalho e dos dias.
Sapatos cujos bicos já pedem água.
Sapatos de todos os números.
Quantas vezes, como num mergulho, numa vertigem, avistara aquele cemitério de
homens mortos de véspera na sua memória.
“Os homens já sobem mortos para as nossas camas”, pensava ela.
Ela sempre gostou de dormir bem na beirada da cama, quase como se imaginasse que
cairia dali em sonhos e seria levada por mares artificiais de filmes de Fellini.

(...)

“Naci para llorar”, com Roberto Carlos, no portuñol levemente selvagem e casto de
vossa majestade enquanto rei de la juventud brasileña.
(...)

Agora, como se o lindo rabo fosse la rendeción das dores do mundo, a pequena criatura
rebola, saltos no horizonte, com “Walk On The Wild Side”, do viejo Lou Reed, o hino de todas
las calles do universo, seu mundo.
Ela ouve uma antologia eclética que abarca várias fases do seu quarto de século sob o
signo de Sagitário.
Quando vai se aproximando mais uma vez dos becos das trevas, volta a ouvir aquela de
Roy Orbinson, que descobriu recentemente em uma película:
“Llorando por ti,/ llorando por ti,/ y tú lo dijiste tan claro/ y me deixaste tan solo/ solo e
llorando/ llorando, llorando, llorando...”

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O inferno sobre botas se aproxima.

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Cap. III - Do recurso do método ou como escrever a biografia


dos fracassados

É tempo de tudo, menos de contar as desventuras dos perdedores, melhor, dos refugos
que vagam no mundo sem encontrar mais sequer o rodízio inglês das suas operárias camas
quentes. O destino, todavia, com a sua mão peluda e invisível, delegou a este cronista de
costumbres o penoso ofício, ofício por sua vez tão obsoleto quanto o jejuador profissional, o
homem-bala, o calígrafo, o faroleiro, o amolador de facas, o taxidermista...
Apresento-me orgulhosamente como biógrafo possível dos refugos do mundo que
encontraremos pelas ruas, nuvens de cachimbos fatais, becos e tabernas deste pueblo.
Velho Charles Dickens, aqui não haverá esperanza, a não ser que algo, no calor da hora
deste repórter-biógrafo, mude o rumo das coisas.
Um biógrafo.
Não um simples catalogador ou fria alma com pendores estatísticos.
Um biografo passional, por supuesto.
“Um Daniel Defoe no seu Diário do Ano da Peste?”(3), provoca o amigo inseparável
don Fracasso Morales, que faz temporal de perdigotos nos meus óculos-pára-brisa de modo a
obnubilar-me. “Te gusta los miserables, non?, sempre a copiar algum modelito, hein, seu
aproveitador de assombraciones da Zumbilândia”, o desgraçado ainda fala no portunhol que,
aos poucos, ainda inexplicavelmente, tomava conta de la calle àquela altura.
“Não basta os lambe-lambes que retratam o miserere-nóbis?”, seca os beiços com a
língua depois de mais uma aguardente envelhecida nas ancoretas do sarcasmo.
Donde Fracasso Morales aproveita para humilhar mais ainda este biógrafo:
“Seu Maníaco do Trechinho, sempre a copiar, sample ao infinitum, pedaços,
fragmentos, intimidades, delicadezas... Que coisa feia: até o teu Complexo de Édipo é com a
mãe alheia!”

(3) Naquele instante, don Fracasso Morales, capaz de decifrar em segundos qualquer truque ou armadilha de
escolha narrativa do amigo biógrafo, acabara de tirar o pirulito da boca de uma criança, no que o biógrafo, puto da bida,
é obrigado a mudar de rumo e referências, por supuesto, bamus nessa, trata-se de um invencible caballero.

Desde já peço-lhes as devidas desculpas, perdões e cerimoniosas vênias pela demão de


romantismo que possa empregar nos retratos destas criaturas. Não aceitaria o peso da
encomenda sagrada caso estes galões de tinta fresca me fossem subtraídos.
Se um desalmado, numa noite de inverno, toca a sua caneca de aguardente em outra
caneca de aguardente e celebra, à beira de uma fogueira, o fiapo de vida que teima em mantê-
lo vivo, é lá que estarei por perto doravante, onipresente, melhor, ubíquo qual Santo Antônio de
Pádua, testemunha bipolar da história, donde as duas canecas fazem o brinde qual o fiat lux de
Shazan, aquele milagroso berro selvagem de um sítio mui distante.

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Cap. IV - Dos esquecidos, los olvidados

Quis o destino, este virtuoso maestro do óbvio, que o velho e negro gato fosse
esquecido no sótão da casa pelos donos sem memória. Ali sobrou também um rato, o mesmo
que agora avança sobre a ratoeira armada cuja isca é um corte de queijo atacado pelos vermes.
O gato, com o seu apuradíssimo senso de justiça, impede a morte do inimigo histórico. Não é
justo morrer por um pedaço de queijo apodrecido. Para salvá-lo da morte injusta, o gato foi
obrigado, porém, como determina a ordem natural das coisas, a devorar o rato.
Os mal-assombros da taberna do sr. Knut, Knut Petersen(4), onde o crachá de acesso é
um rosário de fracassos nem sempre naturais e explicáveis, ouvem a historieta ali contada por
um ex-funcionário da firma responsável pela demolição do antigo imóvel dos arredores.
O ex-funcionário chegou ao local do suposto crime quando o gato ainda sufocava o rato e
entendeu que não havia o que fazer diante da ordem natural das coisas, apenas salvar o felino
da demolição do antigo imóvel.
Ninguém na taberna toma como fábula moralista o episódio. Era apenas a historieta de
um velho e negro gato abandonado pelos donos sem memória que salva da morte injusta um
rato atraído por um pedaço de queijo da ratoeira esquecida no sótão. Os zumbis apenas
miram, agora em silêncio, o velho e negro gato que salta sobre o balcão por desconfiar que
era sobre ele que girava a conversa na taberna, naquele instante.

(4) Por mais que se esforçasse, o sr. Knut não convencia os místicos admiradores de Knut Hamsun (1859-1952) de
que não haviam laços, nem sanguíneos e muito menos espirituais, entre ele e o autor dos lendários “Fome” e “Um vagabundo
toca em surdina”. Além de ser um batismo comum na Noruega, dizia, o nome original de Hamsun é Knut Petersen, não bate
com a tal criatura em jogo.

Cap. V - Do cavaleiro e por acaso o seu cavalo

O cavaleiro solitário lambia o solo dos seus próprios infortúnios como se lambesse,
numa manobra de homem-borracha, a sola dos seus desconfortáveis pés rachados e
empretecidos pelo negrume das calçadas nada serenosas.
Como um felino, com sua língua áspera, lambe a mão de quem o ampara sob
escombros, mesmo com toda a empáfia dessa zoologia fantástica e inegociável. Como el gato
niegro dançaria, se precisasse, uma milonga do adiós para la vieja de la foice, única maneira de
driblar la muerte como don Diego Maradona a los ingleses durante el segundo tiempo da
batalha das Ilhas Malvinas... tal qual Sherezade a enfileirar um batalhão de árabes a comê-los
pelos ouvidos...
Há melhor maneira de comer um homem do que pelas beiradas das suas próprias orejas?

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...Como erristir, gracias a la bida, como las desimportâncias todas de quem insiste em
tecer narrativas como se a aranha pudesse um dia reverter el juego e reinvertar seu próprio
herói imbatível, agora na pele do aranha-homem.
(...)
Lambia este caballero, doravante conhecido como Fodasno(5), a resina dos perdedores, o
sobejo dos torpes, o vômito de um junkie sem estômago, o cuspe final visguento dos ninjas de la
calle, a gosma dos rastros mais trôpegos, las penas de las gallinas y sus niños olvidados, chicos
buñuelitos de méxicos e de todas las Américas alhures y desconhecidas... Diós, que madres crueles,
inescrupolosas, que madres de nobellas, que película sem piedad, mi virgem de Guadalupe...
Lambia com esta língua de dragão da maldade las perebas dos rejeitados até miesmo por las moscas
famintas da taberna do sr. Knut, quando aquele bravo pangaré paraguayo derrubou o orgulhoso
herói(6) na laje da praça e correu até a margem esquerda de la sarjeta-blues, amparando este
cavaleiro solitário que rastejava, réptil de tudo, yacaré del amor e de la suerte.
O suposto cavaleiro recebeu o apelido Fodasno por não conseguir, depois de fazer
ranger dolorosamente a velha engenhoca de madeira da memória, lembrar-se de algo mais
próximo do seu batismo verdadeiro, que seguramente passava longe deste ora posto e firmado
como marca de fantasia para a nuestra viagem, ora, tiene que tener um nombre, desalmado,
pensas que vais sair desta para outra com a leveza dos animais anônimos?.
O cavaleiro confabulava, confabulava, e não conseguia reconstituir a sua trajetória.
(Faltavam-lhes os dados elementares, por mais relapso que fosse este biógrafo).

Devolvido às quatro patas originais e inevitáveis da existência humana, Fodasno


debatia-se como um vira-lata que tenta curar as dores de barriga, esfregando-se no terreiro
quente de chão poeirento de uma fazenda do fim do mundo.
Ao mau-jeito de existir - desamparado e só como na hora em que viu pela primeira vez
o clarão da bida a ofuscar-lhe a mínima certeza de nascença - juntava-se a porrada
propriamente dita, nada de metaforazinhas pequeno-burguesas bem vestidas nas boutiques
metafísicas deste pueblo, porrada mesmo, de regurgitar, de pôr os bofes, as tripas para fora,
socos com anelões de caveira, socos ingleses na boca do estômago, jornal de sangue, no
lombo, no toitiço, nos chifres, nas costelas, nos bagos, nas ventas, chutes de coturnos da Gang
dos Carecas Mestiços dos Trópicos que Lucham pela Raça Pura.
No mínimo, uns sete carecas mestiços dos trópicos, justamente sete, pois se tratavam
pelos nomes dos dias da semana.

(5) Salvo melhor juízo, o cavaleiro Fodasno foi gerado por Maubrun, que gerou Hacquelebac, que gerou Grelepixa,
que gerou Grandebocarra, que gerou Gargantua, que gerou Pantagruel, entre outras grandezas não garantidas, uma vez que
o cavaleiro apreciava mesmo era el viejo Panurge.

(6) Na versão espalhada à época nas tabernas daquele pueblo, tudo indica que se tratava de uma estátua de Duque
de Caxias, situada na praça Princesa Isabel, centro de San Pablo, donde o celebrado herói brasileiro vem a ser um dos
responsáveis pelo genocídio da Grande Guerra do Paraguai (1864-1870), quando foram assassinados 606 mil paraguaios,
sendo praticamente extinta a população masculina. Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança para derrotar o
país vizinho, o mais moderno e avançado da América Latina à época.

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Especulava-se toda sorte de simbolismo a respeito, mania de ociosos losers-iluministas


que invadiram as pradarias babilônicas.
Havia também, na linguagem rasteira dos boletins de ocorrências, quem tratasse a
história como um mero disfarce para ocultar os verdadeiros nomes.
“Dá-lhe nos testículos, Sexta-Feira”, urravam, para delírio da arena.
“Tua especialidade, Quinta, é chegada a tua hora”, no que o demo-Barbadilha(7)...”
Neste momento, o cavaleiro intuiu que pudesse ser apenas um pesadelo, donde a
esfera do seu olho esquerdo saltou como uma bola de gude sangrenta, quebrou a vidraça de
um hotel em frente e cegou, na sala 101, um contrabandista que contava o seu dinheiro,
amarrando em vigorosas ligas negras, como aquelas borrachas de estilingues e baladeiras,
montes e montes de reais, dólares, pesos e guaranys que eram devidamente acomodados em
delicadas caixinhas de pandora.
Dali partiria, mal chegasse a manhã, para a tríplice fronteira, Foz do Iguaçu, por
supuesto, onde o aguarda até hoje, com seu interminável i-pod de boleros sua orgulhosa e
fundamentalista Penélope, sob linda burca que esconde para todos os hombres do planeta,
inclusive para os terroristas adormecidos, um sorriso de pelo menos sete dentes de ouro e todos
os mistérios do Tigre e do Eufrates.
Aquele hombre também era um terrorista adormecido, como são tratados os kabrones
que largam por um tempo as atividades e se transvestem de bons e prósperos comerciantes.

Quarta-Feira usava um chicote de aço, que fazia fogo com os seus açoites na mal-iluminada
noite deste pueblo...
Terça-Feira, tetraplégico, policial afastado pela corregedoria da polícia, estava em uma
noite de suprema generosidade: só pingou chumbo quente no olho direito do cavaleiro delirante.
Segunda-Feira fez o cavaleiro beber gasolina...
Domingo e Sábado preparavam a chama...
“Aí, Fim-de-Semana!!!”, os dias de trabalho duro deram a senha e o salve! para a dupla.

(7) “Entrectanto Barbadilha, ardiloso e revoltoso, quer a todo transe desthronar Plutão, para tanto architeta
uma revolução no inferno”, pensava enquanto era surrado o nobre cavaleiro, mal sabendo que se tratava de um texto
de don Valêncio Xavier, no seu “O mez da grippe”.

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Como se ateassem fogo, cinzas-de-índio, fazer cinzas de caboclos ainda era costumbre
deste pueblo...
O pangaré paraguayo largou o herói de araque e saltou en la calle...
Donde o solípede distribuiu coices de cimento e bronze de alto calibre técnico e afastou
os assassinos escalados para aquele macabro evento.
Agora o cavalo beija, com o beijo da compaixão deveras sentida, o rosto refratário do
cavaleiro, um beijo de garoto quase puro e capaz de milagres à beira de um caminho.
Com o beijo, o cavalo retoma a sua carne, a sua alma e a sua fortaleza óssea de
outros pastos, despede-se do cimento e do bronze aos quais se acomodara... e parte, afável,
muy amable, com o tal mal-assombro são e salvo sobre o lombo em uma interminável
viagem ao fim da noite.

O acontecimento se deu aos pés de uma solitária testemunha ocular, imagina-se, um


gigante travesti, maior até mesmo do que o poste onde esperava los austeros barões coreanos
do nuevo capitalismo têxtil dos arredores do Bom Retiro. Havia morado, o traveco e não o
pobre cavaleiro monoglota, cumprindo o destino óbvio, em França, Itália e Espanha. Retornara
ao Brasil atraída pelo avanço e modernidade das clínicas de cirurgias plásticas.
“Yo no creo en las pregas, mas que las hay, las lay, las pliegue, dobladillo, por
supuesto...”, diz la miesma giganta mirando la luna minguante de la existência selvagem e
tosca. Si, el travesti, testemunha ocular dos maus bocados del caballero, vuelveu a su pátria
amada com o sotaque espanholito impregnado até nas ventosidades del cullo, si, si, si, “dali és
que sai el esperanto da nueva humanidad, de los sustenidos hablares do que outrora já fora la
derradera flor do Lácio”.

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Cap. VI - Do bravo cavalo que derrubou o orgulhoso herói nacional

O tombo do herói nacional provocou correria e interrompeu o jogo de futbol entre os


bolivianos, que relaxavam do trabalho das oficinas de costura do Bom Retiro - bairro judeu
agora sob domínio dos nuevos imigrantes da Coréia - e a equipe do Resto de las Américas,
formada por brasileiros molambudos, peruanos, colombianos, um chileno... e um mexicano,
um mexicano mascarado mais conhecido como El Vingador-Surpresa, si, jogava com aquelas
máscaras das lutas livres do México DF, havia sido, a levarmos em conta suas verdades
absolutas encobertas pela crema del banzo de la erristência, um gran luctador, quase imbatível.
Os bolivianos, que treinam ali todos os dias, mesmo depois de seguidos sóis de labuta
diária, venciam por 1x0, gol de Tupac Katari, segundo a súmula(8) à qual teve acesso este
biógrafo de alma ludopédica. O time tem dois craques da Venezuela, aliança bolivarista
espontânea - um no ataque e outro como primeiro suplente, curinga que juega em todas las
posiciones, inclusive de trombador -meliante de um ou outro desavisado pedestre que resolve
atravessar no meio do clássico.

(8) Certamente um batismo em homenagem ao herói boliviano homônimo, responsável por um dos primeiros
movimentos insurgentes dos índios do país vizinho, ainda em 1870.

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Rente ao chão, rastejante, o cavaleiro Fodasno enxerga as canelas de los niños


peloteros como se fossem finas estacas sustentando uma mal-ajambrada palafita móvel em
deslocamentos bruscos pela cidade. Era deste ângulo que gostava de ver os jogos de futebol
disputados de forma sangrenta neste pueblo.
“Se os pés nesta lucha moderna são mais importantes que la cabeza, que eu veja ao rés
do chão, como as lutas que travo, por que non?”, pensava Fodasno.
Pensava, com dúvidas e emendas:
“Se bem que alguns são tão elevados, nas suas jogadas e pensamentos, que durante
muito tempo do jogo mal vejo seus miraculosos répteis-cambitos”.

Não era incomum la muerte de um ou outro artilheiro que entrava com la pelota e tudo
no fundo das redes inimigas. Uma desonra que carecia de justiça imediata, “pois que nos
vazem, mas que não nos humilhem”, era o código daqueles honestíssimos hombres sobre os
ladrilhos da praça.

Havia quem dissesse, sem fazer muito mistério, que o cavaleiro se comportava dessa
forma por habitar, há tempos, o mundo do vai-sem-volta onde vivem as criaturas abençoadas
pelos gigantes cogumelos sebastianistas cultivados no melhor estrume fantasmagórico dos
cavalos dos belos bandidos gnósticos.
Decerto o cavaleiro havia sido visto, na sua busca pelo Santo Graal dos cogumelos
recentes, em currais agripinícos nos arredores de Embu das Artes (9), pueblo vizinho a San Pablo.
Los rovens ofereciam las nuevas pastilhas químicas de las pistas de baile ao caballero, ele
ingeria todas, sem culpa, mas era um ingrato no pronunciamento em relación a las nobidades:
“Fraquinha, fraquinha, mucha velocidad para la pista de baile e poca viarrem para el
cabeçote de um Caballero que carece despirocar-se”, balbuciava o inssurreito.

(9) Teria sido visto pelos escribas Roca Tejon y Rosé Bressaldo na companhia de José Agripino de Paula (1937-2007),
autor de “Panamérica”. A dupla foi responsável pela última entrevista com o iluminado vagabundo.

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Cap. VII - Do Pentecostes e dos oxímoros primários

Um buraco vazio sem nome tinha-se instalado na parte posterior do cérebro deste
cavaleiro(10) e um pesadelo era majoritário àquela altura: uma junta de médicos-carrascos
fazia uma contagem regressiva para que batizasse urgentemente o buraco vazio sem nome na
parte posterior do cérebro.
Soltava palavras em línguas estranhas, como os apóstolos no Pentecostes, além de
oxímoros primários, lógico, seu vício menos perigoso neste deserto onde é solitário andar por
entre as gentes.

(...)

Havia perdido a mulher da sua vida, a mulher do mês, a mulher da quinzena e a mulher
da semana e a mulher da noite por causa dos malditos oxímoros ditos com bafo de imoderável
bagaceira envelhecida em barris de flor-do-Lácio, no seu delirium havia uma tomada definitiva
do portunhol selvagem e adeus ao solitário português de latinoamérica sangue-quente.
No delirium tremens piorava: baixavam-lhes os maiores palíndromos do universo, como
aquele clássico atribuído ao poeta Manuel du Bocage, que lhe chegava como uma despedida,
numa gare melancólica, da língua portuguesa isolada:

LUZIA ROCELINA, A NAMORADA DO MANUEL, LEU NA “MODA DA


ROMANA”: “ANIL É COR AZUL”.

(10) Na Praça Roosevelt e nos seus arredores havia, entre as belas e sábias gazelas das artes dramáticas, quem
atribuísse a origem do pesadelo a alguma influência enviesada e mal-compreendida de escritos avulsos do francês Antonin
Artaud (1896-1948), especialmente as cartas sobre o ópio e da sua relação com as chocantes tremelicas da abstinência.

Cap. VIII - Donde o que está embaixo, seja homem ou seja cavalo,
é o que está em cima

Agora o solípede, em fuga daquela maldita estátua eqüestre, voa pelos becos soturnos
do centro de San Pablo e a sombra magra, esticada como um super-herói de borracha, projeta-
se sobre as laterais dos prédios como a única prova verossímil de que este cavaleiro se encontra
vivo, depois de décadas nas veredas do excesso.
Eufórico com a nueva vida, o pangaré-caxias só tem uma breve queixa: a sina de estátua
eqüestre. Mesmo em alta velocidade e vida nueva no pueblo, não há fuerza neste mundo que o
livre das cagadas constantes dos pombos. Os pombos de San Pablo, cisma o panga, cagam
césio e urânio.
Maldita sina de estátua.

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Afeito a animações, porém, o danoso diverte o seu novo cavaleiro ao fazer cinema da
sua caveira mal-assombrada em altas mungangas e manobras pelas paredes. Visto por uma
criança, porém, parece que Fodasno monta um cavalo de pau, de tão duro que é Fodasno em
cima do seu honesto pangaré de guerra. Fazia tempo que Fodasno não sentia o prazer e a
crença em uma dança, um bailado, o fabuloso cavaleiro Fodasno nos últimos anos só havia
treinado quedas, tombos, desacertos, nado livre e revesamento quatro-por-quatro em sarjetas,
atos falhos e pesadelos do gênero, perseguição seguida de violência gratuita.

O cavaleiro também se reflete gigante no chão do Vale do Anhangabaú, entre velhos


espíritos indígenas que perambulam depois que a cidade dorme, depois que apenas a taberna
do sr. Knut, a taberna dos Irmãos Benuthe - os nada-apostólicos Marcos & Pedro - e a taberna
da Última Chance permanecem com alguma vida n´alma dos seus diletos freqüentadores.

Phedra de Córdoba ainda está na janela do seu prédio nesta hora.


O gato Primo, que ela acaba de ganhar na Praça Roosevelt, é todo cócegas de felicidade
nos seus braços.
O gato mira o vale e ri das assombrações dos índios.
A atriz Phedra, honrado e glorioso travesti egresso de Cuba, disfarça o arrepio na pele e
dança um tcha-tcha-tcha de Célia Cruz para la luna caliente.

O vento frio do deserto de San Pablo, em silvos cortados, recita algo que só podemos
atribuir a Hermes Trimegisto, orai-vos, destemidos:
“O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que
está embaixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa...”

BIENVENIDOS TODOS A LA NOCHE DE SAN PABLO, COMANCHEROS!

Cap. IX - Dos papéis de um recém-chegado e das estátuas sem saída

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As estátuas de Luiz Vaz de Camões y Miguel de Cervantes Saavedra, ali nos arredores
da Biblioteca Mário de Andrade, também no centro deste pueblo, como não dependiam de
seres eqüestres nas heróicas poses, apenas ajeitaram seus belos saiotes de época e continuaram
a fingir que estão de olhos fechados para os novos tempos, gracias.
A essa altura este biógrafo não havia lido os seus “Papeles de recienvenido”, don
Macedonio Fernández, que me acabam de chegar por mãos finas de moça, babo por elas qual o
cãozinho viciado na sineta alimentar de Pavlov, don Macedonio, mãos finas de moça, talvez as
mais lindas falanges, falanginhas e falangetas que já presenciei, empunhando um nobre volume
da grandiosa e retumbante literatura de Latino América.
Bravíssima, dê-mo aqui, hermosa chica, na bandeja iluminada, por supuesto.
Don Macedonio, impressiona-me o vosso desgosto pelas estátuas. Este biógrafo está
deveras orgulhoso de tamanha coincidência de pensamento. Quem dera fosse plágio ou pelo
menos uma ressonância tardia e involuntária. Ah, bastava uma osmose sovacal, dava-me por
eleito, desses pedaços de livros que, de tanto exibirmos debaixo dos sobacos por aí, a
engambelarmos as poucas gazelas que ainda se impressionam com tais brochuras, acabam por
furar-nos a pele e juntar-se ao álcool que corre nas veias em moto-perpétuo, contínuo,
combustível da última diligência do espírito.

Don Macedonio, antes que partas, um breve alerta: todo cuidado é pouco neste
Mercosul fantasmagórico, se não estão respeitando autores vivos... muito menos os mortos.
Que mantenhas las ideas próprias em buelsillo costurado e secreto das tuas vestes, espero que
la esposita tenha te costurado los buelsillos internos, porque las nuestras mujeres adoram
proteger nuestro patrimônio simbólico, porque lo patrimônio materiale é delas miesmas, non?
Agora hablando sério, seriíssimo, don Macedonio, la gangue dos Trombadiñas
Metalingüísticos está a suelta em todo el pueblo, nas pradarias, nos aeroportos, nos
manicômios, nas aduanas, nas carreteras, en las fronteras... um bater de pestana e já era aquela
idea gordinha cevada há anos nos melhores pastos das fazendas metafísicas y gaúchas, aquela
Idéia, aquele fiat lux pronto para o abate, aquela idéia com quatro, cinco dedos de toucinho das
fazendas uruguayas de Brizola... Aquele cordeiro-mote, entonces, seja uruguaio ou dos pastos
escassos dos sertões, pode ser vítima de um seqüestro-relâmpago, principalmente ali nas
cercanias do Martin Fierro, bravíssima cozinha argentina de la Vila Madalena nesta supracitada
San Pablo de Piratininga, si, don Macedonio, estão a subtrair las ideas de nuestros visitantes,
los gracejos, los chistes, boutades, las frases de efecto, até miesmo las próprias mierdas estón a
usar para florescimentos de burreguitos futuros e cogumelos naturales.
Os nativos, então, bastam ter a mínima redação própria, motivo suficiente para serem
humilhados pelo fisco e terem as carteiras apanhadas no vuco-vuco mental de la calle, como
me sopra el deflorador-mor, el Visconde hodedor de Amparo, señor Marçal y Aquino.

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Nas cadeias, don Macedonio, faltam tantos que, se faltar mais um, não vai caber.

Aos “Papeles de recienvenido”, pois, que hay me presenteado hermosa chica que
acaba de volver de Buenos Aires, cidade invadida pelos brasileiros, portunholistas selvagens
inveterados e principalmente los habitantes de San Pablo, que vuelvem orgulhosos com las
camisetas de Maradona, para desguesto-mor de Edson Arantes, el Pelé, rei das artes
ludopédicas.
Las chicas mais finas, todavia, nos trazem regalitos muy nobres, pricipalmente las
chicas enamoradas de Los Tres Hombres, viejo e tradicionale conjunto roqueiro deste pueblo,
que hay lhes trazido todas las estantes contemporâneas.
Aos “Papeles de recienvenido”, don Macedonio, é com mucha honra que llamamos ao
micrófono de nuestra taberna, ao micrófono de nuestra mais prestirriada tertúlia lítero-
borrachesca, o nuestro sarau Quinta dos Infiernos, Jueves de los Infiernos, por supuesto,
donde don Macedonio recita em apurado lusitanismo sem que houvesse sequer um sopro do
seu renial traductor nestas plagas:
“Tenho um temperamento tão pedagógico que não posso deixar de lhes informar que
todos os povos existentes - ou inexistentes doentios - devem possuir uma estátua do inventor
dos lados direito e esquerdo e dos de frente e verso, distinção da qual somente os buracos se
eximem. Não me perguntem agora porque os comissários mais abusivos sempre se abstiveram
de prender quaisquer estátuas, que vivem nas praças como os vagabundos, ostentando o mau
exemplo da vadiagem. Abomino as estátuas: quase sempre são homens envergando manto
grego ou ampla sobrecasaca de mármore. Se o traje atual masculino costuma ser absurdo, esses
botões e galões de mármore, esse troço grossíssimo de mármore que simula as pontas
levemente roçadas pela brisa são intoleráveis, e tudo isso para um homem que fica ali
assegurando-nos com a mão e com a boca que vai nos dizer coisas eloqüentes, mas não dá um
pio o dia todo.”

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Cap. X - Do “Caderno de Alumbramentos Diários”

Não é que a biografia da moça ainda sem nome caiba na lista do arquivo musical que
embala os seus passos reboladores en la calle.
Agora ela escuta, por exemplo, um batuque de candomblé, deuses que dançam, por
supuesto, e aquela bunda governa mais ainda o universo.
Tem aquele rabo que não dá tempo os homens pensarem direito, simplesmente não dá
tempo os homens refletirem sobre o perigo da hora.
Ela sabe-se dona do melhor traseiro das Américas, rainha-mor dos torcicolos deste pueblo.
“É a maior vendedora de emplastro do mundo”, diz don Fracasso Morales, “deve ter
uma comissão da indústria farmacêutica para flanar assim pelas ruas”.
Permitam-me uma breve confissão: este biógrafo devota-se à tal fêmea desde os
primeiros estudos para o seu “Caderno de Alumbramentos Diários”(11), no qual descrevia
minuciosamente as raparigas que abalavam os seus sentidos durante as andanças en San Pablo
de Piratininga.
Lá, no supracitado caderno, estavam os melhores pescoços, as melhores titelas, as
saboneteiras mais cavadas, os ilíacos, os mais incríveis perônios deste pueblo, os joelhos com
aquelas marquinhas de quedas da infância, os melhores rádios, as cicatrizes mais amadas, as
melhores covinhas de fáceis sorrisos, as coxas mais possantes, aqueles dois buraquinhos nas
costas antes de chegar nas belas bundas, os mais polidos cotovelos de infindáveis esperas, as
tatuagens mais incendiárias, as metonímias todas de uma costela, los mamilos, las mejores
colunas, las omoplatas, as pintinhas nas costas que deixam louco um exímio apanhador do
campo sem fim de sardas...

Cap. XI - Da cabeça de Goethe e do amor que não mata

A cabeçorra de Goethe, pesando umas vinte arrobas, na mesma área del pueblo de San
Pablo em que todas as estátuas se mexeram esta noche, tentou sair bolando pela Praça Don
José Gaspar, mas já era tarde demais.
Gângsteres o levaram para derreter o mármore em alguma oficina de desmanche de
estátuas, bustos e cabeças de literatos ilustres deste sítio.
(...)
“Ah, ninguém morre de amor tão fácil assim nos tristes trópicos”, relinchou o pangaré
paraguayo ao tomar conhecimento de que se tratava da cabeça de onde saiu “O Jovem Werther”.
Um raro relincho de Chivas desprovido, gracias, do já insuportable portunhol selvagem.
Muy amable, don Chivas, muy amable.

(11) Composto e impresso na Typographia da Donzela Guerreira, Barra Funda, São Paulo, por ocasião da virada
do século XX para o XXI. Trata-se do primeiro livro de vulto de don Augusto Sombra, el biógrafo de mal-assombros de la
calle e de las tabernas.

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Supõe-se, neste pueblo, que haveria, naturalmente, outras maneiras mais divertidas de se
estragar a pele, jovem Werther.
“Com esse solzão danado sobre os olhos, qualquer suicídio de ordem amorosa é,
para dizer o mínimo, de uma deselegância imperdoável, perigas inclusive borrar feio a
maquiagem”, Phedra de Córdoba teria soprado mais um chiste no redemoinho do seu jardim
suspenso sobre o abismo do vale que nos interessa.
Phedra conta que mantém réstias de espanholito cubano na sua fala porque tal cantiga
comove los brasileños.
“Ao ouvido de um militar, durante las fuedas, és irresistible”, morre de rir a chica.
“En la transición lenta e graduallll de la dictadura para la democracia, diós, foi um sucesso!”
Phedra hay devorado muchos y muchos do gênero. Suerte deles, por supuesto.

Cap. XII - De como os chifres épicos não têm cura

Não se morre de amor nos trópicos, mas corre também neste pueblo a versão de que a
mala suerte e o infortúnio do cavaleiro solitário tinha como origem uma trágica e mal-contada
história de amor.
O cavaleiro, porém, em vez de precipitar-se no abismo das flores finales, atirou-se à
milagrosa lama das ruas e das tabernas.
Só a lama cura.
“Não se morre de amor nos trópicos”, uma voz parecia encorajá-lo en la noche, dessas
tantas vozes que lhe chegam cortadas como vinis sob rigoroso regime de scratchs ou como se o
vento desta Carençolândia do Oeste fosse gago.
“Só a la-la-la-ma cu-cu-ra”.
Era tudo que ele queria ouvir mesmo, uma vez perturbado pela síndrome de Korsakov
que o atacara cedo. (12)
Só a lama cura.
Este cavaleiro tem a lama como purgante e remate dos males, pero los chifres épicos,
aqueles que doem para o resto da bida, estes levam às grandes obras e às mais conhecidas
aventuras humanas.

(12) A síndrome de Korsakov (ou Korsakoff), segundo as enciclopédias em voga aqui livremente copiadas, é uma
neuropatologia associada à carência de Vitamina B1 (tiamina), traumas cranianos, encefalite herpética, intoxicação pelo
monóxido de carbono e indiretamente, mas muito comumente ao alcoolismo agudo, pois o álcool prejudica a capacidade do
organismo de absorver a Vitamina B1. Essa vitamina está associada à transformação do ácido pirúlico, que por sua vez
realiza transformações bioquímicas de proteínas, gorduras e especialmente hidratos de carbono, sendo que em sua ausência
as células nervosas são as mais afetadas. Os sintomas da Síndrome de Korsakov são a amnésia anterógrada, amnésia
retrógrada e muito comumente a confabulação e uma desorientação temporoespacial. Acompanham esses sintomas uma
severa apatia e desinteresse por parte do doente, que muitas vezes não é capaz de ter consciência de sua condição. A amnésia
anterógrada está relacionada com o comprometimento da memória de curto prazo, ou seja, o doente se torna incapaz de
formar novas memórias, a partir do momento em que desenvolve a doença, e a amnésia retrógrada está relacionada à
memória de longo prazo, assim o doente perde grande parte da memória que havia se formado antes da doença. É baseado
nessa severa condição que o neurologista Oliver Sacks (em "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu", relaciona
a síndrome de Korsakov à perda da identidade, pois vítima de uma amnésia retro-anterógrada o doente perde por inteiro

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sua linha biográfica, sua história, e permanece incapaz de construir outra, sendo obrigado a viver como uma pessoa sem
história de vida. Essa linha seria fundamental para a formação do senso de identidade na consciência. Como conseqüência
desse severo quadro é que ocorre a confabulação, que seria uma tentativa do doente de preencher suas lacunas mnemônicas
com imaginações e ficções aparentemente verossímeis, nas quais ele próprio poderia acreditar. Outra conseqüência seria a
desorientação temporoespacial, claramente causada pela incapacidade da pessoa de marcar sua existência no tempo.

Nesta hora é falha a aspirina, mesmo cabralina, e talvez incertos todos os sóis de bolso,
como don Paulo Henriques Britto, nestes mesmos tristes trópicos, denominou as pílulas
antidepressivas.
Muito menos com divãs virá a cura, muito menos zen-budismos, pseudo-orientalismos
ou carmas-colas possíveis, por que os chifres crescem e avançam mais do que a gaia ciência e a
crendice que fura nuvens, os chifrados ruminam o milagroso capim pantagruélico com o qual a
respeitável senhora Bicaberta hay alimentado seu mitológico filho milagrosamente gerado em
seu ventre gigante, amém, e que venha o próximo chifre a enfeitar-nos a fronte longeva e triste.
Gracias que os chifres épicos não têm nem nunca tiveram cura. Levamos os tais ao fim
da existência, ao túmulo, aos vermes vorazes que sentem o gosto dos chifres como gongonzola
infiltrado nos miolos da memória e do juízo.

Como um touro que governa, entre a vida e a morte, a sorte de um toureiro, os chifres
são indispensáveis, porque um hombre sem chifre é um animal desprotegido.
Os mongóis, comandados por Gengis Khan, dominaram quase toda a Ásia graças aos
poderosos arcos de chifres, embora histórias do gênero se tornem inteiramente dispensáveis a
essa altura da desgraça humana.
Se não fossem os chifres épicos, por erremplo, não teria habido la braba revuelta de
Canudos, onde reinou o sebastianismo de Antônio Conselheiro (1828-1897), porque los
hombres, mesmo os mais vocacionados para o heroísmo, carecem de uns cornos para
enfrentarem o mundo.
Pai de dois lindos hijos, Conselheiro, como era conhecido Antônio Vicente Mendes
Maciel, rábula dos pobres e dos lascados como maxixe em cruz, caixeiro viarrante, Antônio é
traído, supostamente traído, como diriam nos dias que correm los periodistas inseguros, por um
furriel, patente antiga e intermediária entre cabo e sargento.
Natural de Quixeramobim, desierto de Siryará, encontrava-se, na ocasião, em Ipu, nos
arredores, quando o destino, qual uma daquelas mãozinhas de madeira japonesa para solitários
coçarem as costas, quis ungir-lhe justamente na fronte luminosa.

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Desiludido, Conselheiro corre para o então sítio Tamboril, também nas proximidades,
onde dedica-se a alfabetizar aquela gente. Sua missão ajudava-lhe a esquecer dos
acontecimentos, donde se sabe que muitos cornudos, para voltarmos ao mundo de hoje, correm
a fundarem ONGs, organizações não-governamentais, para salvar o universo da fogueira
gigante que se aproxima, donde também tem que ser dito que nem todo ongueiro és um
chifrudo, por supuesto, que a sentença valha apenas para quem a essa altura já enfiou a
carapuça sobre os incatáveis piolhos da desconfiança.

No caso do bravíssimo Conselheiro, por supuesto, havia mesmo por trás uma mulher
daquelas capazes de arruinar uma vida, desgraçar com nuestra existência, hoder com tudo,
daquelas que nos deixam a nadar no seco, pensando em solamente duas coisas: dar um tiro no
toitiço ou salvar o mundo na mais ingrata das luchas perdidas como são todas as lutas épicas.
Esta mulher se chamava...
Nunca houve um batismo mais hermoso!, preparem-se.
Esta mulher, senhoras e senhores...
Donde esta mulher se chamava Joana Imaginária.
Si, reparem o que vem a ser o destino, uma fêmea cuja pia batismal da paróquia de
Santa Quitéria havia banhado, naqueles idos dos mil e oitocentos y macaúbas, com o santo
nome de... Joana Imaginária.
Com Joana Imaginária, além dos dois meninos antes relatados, tivera mais um
comedorzinho-de-favas sob fartos-sóis semi-áridos, pelo que supõe o inquérito biográfico deste
que vos bafeja o cangote. Sim, Joana fertilizara outra criatura no seu ventre-massapê
cacimboso, molhadinho meu deus, fogosa, barro liguento, favas debulhadas na pouca chuva
de março, por amor, fêmea de responsa, era a própria chuva no lugar que nem o divino, como
seria dos seus afazeres, molhava o roçado de nuncas.
No baú de couro de onça curtida pelos sóis dos poucos sorrisos do avô deste
biógrafo de sertanejas miragens, encontra-se até os dias que correm um folheto de feira
que diz, entre outras sextilhas:
Do barro que sobrou de Eva
Deus reproduziu uma binária,
Moldou, esculpiu, ave, benzeu...
Aquela costela das arábias...
E daquela fôrma nunca mais saiu
Uma fêmea como Joana Imaginária!

A sina de Conselheiro, porém, era correr desertos. Um homem infinitamente maior do


que os chifres todos do mundo, isso é pilhéria, prosa de quinta diante da sua fortuna
passarinhosa que o puxava pelas unhas para largar mundos e aprofundar-se, castelo dentro de
castelo, casca dentro de casca dos couros dos répteis da existência tatuzosa y garatuja.
Um desses homens sem acostamentos, desses homens maiores do que a vereda que
aparece na vista escura em noite erma e desvagaluminada de um tudo e para sempre, glosa.

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Cap. XIII - Da sina maldita ou corno em rastro de corno ad infinitum

Não bastasse o infortúnio de Antônio Conselheiro, coube ao escriba Euclydes da


Cunha, d´Os Sertões, autor do catatau desta nobre saga, a mesma sina.
Trato de encurtar a noubella para abreviar enredo que não conta nessa história: Euclydes
acabaria assassinado pelo oficial do Exército Dirlermando de Assis, mancebo de 17 anos,
amante da sua mulher Ana Ribeiro, que, em um republicanismo bucetístico involuntário, o
esqueceu depois da temporada de Canudos.
Em 1906, ano em que nasceu o avô deste biógrafo, importantíssimo em páginas mais
adiante, Euclydes voltará ao Rio de Janeiro, onde morava com a família.
Quis o destino, esse rato existencial que rói por dentro o ossobuco de nós todos, que o
repórter de “O Estado de S.Paulo”, enviado especialíssimo, encontrasse a mulher grávida.
Não era o pai, naturalmente, estivera no front.
Apenas três anos depois, descobriu tudo.
Pegou um revólver...
Fatídico 15 de agosto do ano da graça de 1909, no tempo em que agosto ainda caia
em agosto, e saiu para "lavar a honra com sangue".
Cruzou com o oficial na estrada Real de Santa Cruz, no bairro da Piedade.
Apertou o gatilho.
Uma, duas vezes...
As balas se perderam no caminho.
Errou feio os dois tiros.
Uma faísca e já tomou um balaço no centro da testa.
O mancebo oponente era de tiro certeiro.
Euclydes tombou aos 43 de idade, depois de fazer grande obra pero não labrar a
obra-mor da existência: o amor de las mujeres.

De Cervantes contam lo miesmo, pero tambíen não importa aqui nesta narración
vertiginosa rumo ao nada.
O que são os moinhos se não chifres em cabeças de pangarés nervosos que incorporam
las dores de sus distintos caballeros?
Los chifres son ficciones laboriosas.

Para muitos, os chifres representam a desgraça; no que tange ao rebanho dos iluminados
em chamas, os chifres representam a glória, a glória que desce um certo dia na tempestade e
gruda aos cornos como relâmpagos encomendados por infalíveis pára-raios. Que assim seja,
amém, para siempre.

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Quanto ao biógrafo oficial dos mal-assombros deste pueblo, vos digo, confesso, os
chifres são tantos que o sr. Knut, que chegou aos trópicos por causa de seguidos chapéus de
deuses vikings, faz questão de consolar-me com lendas e contos populares nórdicos cheios
destes semelhantes chifrudos.
Não passa nada.
“Non passaran”, grasna o corvo urubuzento do sr. Knut, que fica o tempo todo bicando
as cobras das garrafas das melhores aguardientes da taberna.
“Non passarán los chifres en la puerta”, explica o famigerado.
Mal sabe este miserável que, por exemplo, no Nordeste brasileño, essa história de corno
é mais paródia e dionisíaca do que qualquer onda que se tire nesse mundo sobre quaisquer uma
destas sagradas personagens, que Deus os tenha, por supuesto.
Em algumas ocasiões pode dar em morte, óbvio, a faca alumiada em noite obscura a
puxar as tripas do adúltero mais destemido. Costuma-se beber o sangue do desalmado nestes
episódios, pelo menos um daqueles copos engana-bêbados pelas bordas. Poesia pura, crimes de
honra; os gracejos, porém, reza a ciência, costumam encobrir com uma demão de sátira as
tintas mais berrantes da tragédia.
Como diz a filosofia de pára-choque de caminhão das carreteras daquele mundo semi-
árido que engana a vista como no deserto das miragens infinitas: chifre é para homem, o touro
usa de enxerido.
Mesmo o touro de épicas touradas, viejo Manolo madrileno de imbatíveis pelejas.

Cap. XIV - Do redemoinho empoeirado e da cisterna demoníaca

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O agora fabuloso cavaleiro Fodasno desconfia que a sua viagem não se trata de uma
viagem qualquer ao fim da noite, como as outras tantas, embora el caballero houvesse
percorrido, em contornos semelhantes, as mesmas vielas do estrago e da sorte vezes infinitas.
Se havia uma busca, era uma busca comum a todos os poetas, assassinos, ladrões e
sangue-ruins da cidade nesta mesma hora.
Os malassombros, cujas molas dos colchões de hotéis baratos estão sempre a ejetá-
los para as tabernas mais imundas onde possa acontecer ao menos uma boa encrenca para
recarregar o ódio e pôr em dia as munhecas.
Os colchões são buenos para los amantes ou para los enfermos, non para los heróis
e destemidos.
A la noche, comancheros!

O que é um homem sem um redemoinho empoeirado na cabeça?


Nesta noite, todos os inquietos saímos a la calle dispostos a riscar a caixa de fósforo das
angústias no tanque inflamável de testosterona e solidão que há no subsolo deste pueblo, a
demoníaca cistema encravada debaixo dos nossos pés.

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A busca seria mais ou menos comum: preencher o buraco vazio instalado na parte
posterior do cérebro.
Uns com álcool, outros com mulheres, alguns com a caspa do capeta(13) na Estrada das
Lágrimas e outros simplesmente estourando os miolos dos suspeitos de sempre.
Os faroestes particulares variam conforme a extensão de deserto que cada um carrega
no velho oeste da caixa torácica, amigos.
Neste faroeste há poeira nos sonhos, neste faroeste supostamente freudiano nem mesmo
nuestras madres escapam dos nuestros próprios canos fumegantes.

Tequila para todos, señores!

(13) Como don Fracasso Morales, que se dizia amigo do cavaleiro solitário, batizou a cocaína em uma taberna
da Estrada das Lágrimas, zona sul deste pueblo, segundo relato de don Claudio Rúlio, reportero desta mesma freguesia.

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Cap. XV - Dos Gângsteres do Sol Quadrado e do perigo da hora

Naquela noite única, noite do Dia das Mães, maio do ano da graça de 2006, a mais
perigosa falange do crime havia feito o primeiro ataque em massa a San Pablo de Piratininga.
A cidade-refém do que se contava, não obrigatoriamente do que se vivia.
Donde...
Cada um contava um rio a dar numa Guarapiranga de histórias, a enchente suprema
com os sofás da acomodación e da desgraceira boiando sobre as águas dos tietês,
tamanduateís e pirajuçaras.
Quem pára no meio, quem não conta, se afoga, caso deste biógrafo, sempre a melhorar
os objetos de estudo com a demão do malditismo romântico e primário.

“É uma doença”, persegue don Fracasso Morales, esse traste que cavalga não ao meu
lado, mas sempre por perto. Numa distância que seja possível fiscalizar vacilos, quedas,
lapsos, citações e samples, don Fracasso Morales não perdoa o free-style, o repente, o jazz
reinventado, don Fracasso Morales persegue a matriz única, como se isso ainda fosse possible
hoy, simbora don Fracasso, já já te pego na curva com meu pangaré nervoso.

Os Gângsteres do Sol Quadrado tocavam o terror telepático dos subsolos das sibérias
caipiras de erres arrastados como o matraquear de metralhadoras, as penitenciárias do interior
hablavam metralhandês àquele instante e a velha da foice se multiplicava como se reproduzida
num poderoso gravador de CDs piratas de um caubói high-tech coreano recém-chegado a estas
plagas babilônicas.

“Esse aí queria achar o amor no baile, uma bala perdida encontrou ele antes”, aponta
don Fracasso Morales para mais um defunto na vala-comum deste desierto. “O amor é uma
bala perdida, rapay, ponto, deixa desse teu romantismo de mierda”.

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“Tudo isso aconteceu, mais ou menos. As partes da guerra, pelo menos, são bem
verdadeiras”, sopra o ladrão Dimas, ali na cruz, ao lado do cabeludo, na beira dos chiqueiros
de porcos do Jardim Damasceno, na zona norte deste pueblo.

Cap. XVI - Donde o cavaleiro se distrai com a poesia dos ares


e perde seu caballo

Sempre aluado, com um déficit de atención incomensurável, o caballero não amarra su


caballo derecho no poste.
Muito menos o lesado hermano flanelito eqüino se ligou no quadrúpede que
pastoreava, carajo.
São tantas las coisitas de la bida para pensar, por supuesto, pensou em portunhol
selvagem -agora, como se não bastasse, também pensava na língua da tríplice fronteira.
E o caballo, como se na pior das desgracias, no mais impensável de los infortúnios e de
la malasuerte de uma noche semi-invernosa, se encanta justamente por um relincho de uma
guapíssima égua militar da tropa que combatia os Gângsteres del Sol Quadrado na mais
perigosa e hermosa de las madrugas.
Lá vai o cavalo do cavaleiro solitário com a primeira égua militar que aparece, foi o que
ele pensou no instante, biscaite. Não era uma biscaite qualquer, se tratava mesmo de uma bela
de uma égua, ancuda, rabo descomunal e uma marcha elegante capaz de fazer desandar um
faroeste inteiro nos desertos do México.
O cavaleiro, paranóico, ainda pensou:
“A síndrome de Caxias ainda bate fundo n´alma desse pangaré nervoso”.
Estava outra vez perdido no bosque escuro o solitário cavaleiro.
Agora o cavaleiro... Como digo no portuñol maldito que contaminava aos poucos todas
as criaturas de la noche? Agora o cavaleiro... encontra-se muy hodido de nuevo.

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PARTE II - Das viagens de um salta-vida nas margens de outras aldeias


e riachos dionisíacos

Cap. I - Da menina e por acaso da fábula para ninar a menina

Dois nomes balançavam na rede ciganosa do alpendre do cocuruto do teu pai naquele
momento, hija:
Soledad ou Esperanza.
Corria por fora Tristessa, que yo achava a cara de tu melancólica madre muito antes de
saber que o tio Jack tinha uma aventura mexicana homônima.
E não me perguntes porque diabos chama-se Viridiana, filha.
Acordara certa manhã tu padre de uma monstruosa ressaca(14) e já ouvia vozes no
sótão e por toda a casa a lhe chamar Viridiana, o cachorro a latir Veridiana, com E, vê
que tonto, e enroscar nas suas pernas, o gato, sempre mais sábio que o cachorro, com
feições de quem sabia que já se chamava Viridiana havia séculos, com todos os pingos
nos IS, por supuesto.

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Queria que visse as fotos de tu madre nas noites em que vagamos pela Espanha, hija.
Olhos iluminados além do rrrrumm, rrrrom, e do biño que corria em nossas goelas
como riachos de beiras férteis, distantes e generosas.
Avistas o ribeirinho de Rioja? Mira, mira, logo ali depois das janelas d´alma dos ojos
melancólicos de tu madre, si, aquela aguazita vermelha a cair sobre los piés de las árbores, los
arbustos, las marejadas perdizes de la erristência mula-manca.

(14) Donde tanto o cavaleiro quanto o biógrafo concluem que a ressaca depois dos quarent´anos não é apenas uma
ressaca. Trata-se de, no mínimo, uma dengue existencialista, donde a epidemia tropical que amolece os ossos, como se um
trator tivesse passado por cima, encontra a náusea sartreana numa harmonia inexplicável.

Cap. II - Da possible madre de la niña e suas lendas sevilhanas

Sinos a tocar flamenco para os viúvos, para os ateus e, quizas, quizas, quizas, para os
tementes de Alá, quen tiene cullo tiene medo, hija querida.
Paco de Lucia cumprimenta Camarón de la Isla em uma encruzilhada niegra...
Mais um jerez, compay, bulerias.
(...)
Tu madre, jambo-girl dos tristes trópicos, a blasfemar contra o destino, como uma
Carmen a roer os caroços imaginários das pitombas ancestrais, em vez de apanhar facilmente
as amargas naranjas sevilhanas.
Nas margens do Guadalquivir los ojos de tu madre derramavam lágrimas de
Capibaribes, Beberibes, Paraybas, Jaguaribes, Tietês, Tamanduateís...
De tão cética, tu madre não acreditava que houvesse, en la bida, seja em que sítio
estivesse, pelo menos una naranja de graça.
“Ou está birrada, Rosé, ou tiene marimbuendo nel pié”, como no samba da nuestra rente
inzoneira, aqui na versão que ela entoou em plena Espanha, tirando la buena onda, kabrones.
Tu madre sequer pensava na possibilidad real de uma bomba terrorista no trem, como se
temia naquele momento.
A crença no noticiário e nos seus infortúnios nunca fizeram parte dos seus olhares
longínquos.
Se dependesse de tu madre, los abutres e los periodistas morreriam de hambre com
suas manchetes garrafales.
La realidade non passa de una opinón, non?, como dizia o titio-abuelito Timothy
Leary, mi hija.
O máximo que dizia tu madre, quando mostrava-lhe o El País nas bancas, era algo
como, perdoname em caso de infidelidad na reprodución de las palabras maternas:
“Pior é nos trópicos, adonde a febre da selva mata o que sobrou das chacinas...”

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Quando eu tentava acertar o passo trôpego a usar meus primeiros óculos multifocales,
teu padre já viejo, ela, de nuevo:
“Pior é nos trópicos...”
E completava sempre como alguma comparación selvagem maluca.

Meu anjo, não havia dialógo possível com tu madre quando o assunto era o amor ou o perigo.
“Terrorismo é o luxo da história”, blasfemava tu madre, com a sua pele índia a
enfeitiçar os branquelos que transitavam borrachos na Calle de la Cruz.
Ela tinha simplesmente la noción exacta de que o terrorismo já fazia parte da sua
origem há séculos seculorum, desde a matança dos Tabajaras e dos Kariris, além, muito além
de todas las chacinas de las missiones redundantemente assassinas & jesuíticas sobre los tupys
y guaranys.

Difícil era na hora em que ela, já passionária ao extremo, clamava por uma certa
matemática, nunca o fuerte de tu padre:
“Quantos índios foram mortos pelos europeus, aí incluindo espanhóis e portugueses, na
América Latina?”.
Décimo rrrummmmmm, por favor.
Devia até saber uma certa conta exagerada feita pelos cuervos marxistas, evidentemente,
mas, ao décimo primeiro rrrrommm, hija, só mirei tu madre, mirei com cara de um hombre
que amava de verdad. Lá estão os zolhões vermelhos estourados na foto que não me deixam
ser inverossímil a esta hora de la noche. Filha, amo fotos com los ojos vermelhos, me gusta
também la falta de fueco para la erristência, entendes? Ojos de um amor entorpecido, porque
o amor é sempre borrado de riscos incompreensíveis.

“Vai, diga-me, quantos índios?”


Tu padre sempre cordiale, digo, cobarde no último, sussurrava:
“Fala baixo, que coisa mais incômoda”.
Mal sabia tu padre que los espanhóis, asi como todos los europeus, amam purgar el
passado, não temem o assunto, bailam lindamente la dança da culpa.
Asi como los brasileños metropolitaníssimos dançam folguedos e maracatus.
Filha, mas peraí, tu madre borracha a querer uma revanche àquela hora, haja paciência!
Tua mãe, sangue de holandeses e índios, nunca esteve tão linda naquela viarrem.
Sim, corriam riachos de Rioja sobre nuestros pezitos.
O mais espirituoso, no entanto, era pedir rrrom nas tabernas.
Sabe como a gente tinha que hablar, hija?
Rrrrrruuuuummmmmmm, rrommm, algo asi. Quase como o suspiro metafísico do gato,
rrrrrummmmmm, se não, ninguém nos trazia rrrruummm...
Rrrrrrrroooooommmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm...
rooommmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
Repita comigo, hija: rummmrommrummromrumrommmmm...

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Cap. III - De como la hija foi gerada numa banheira de um hotel da Gran Via

Tu padre e tu madre adoravam emborracharse, hay notado en las corrientes mais


animadas del sagrado útero, non, hermosa chica?
“Oceanos tão lindos como nos documentários da National Geographic, mi padrecito
amado, mares tão azuis, mergulhos incríveis, léguas e léguas submarinas na quentinha
soledad de mi madre y sus drinques coloridos”.
Estávamos doidos demais, por erremplo, quando te fizemos na banheira daquele hotel
na Gran Via - agora já estamos em Madrid, por supuesto, mi hija, deixamos Sevilha para trás,
na poeira de la carretera perdida.
“Quantos dias a pé demoramos de Sevilha a Madrid?” Tu madre de novo com
preguntas difíceis.
“Chegamos”, tu padre dizia apenas.
Tu padre e tu madre crente que habiam feito o Caminho de Santiago.
Qualquer chão que tu padre e tu madre pisavam en España, até mesmo nos brejos-secos
de Castela e arredores de la Mancha, acreditavam, después de borrachos, que haviam feito mil
vezes el Camiño de Santiago, por supuesto, se sentiam puros, almas leves e inegociáveis,
pobres desalmados.
Tu padre, todavia, hija, num se achava, digamos assim, um Pablo Conejo, famoso
escriba da época. Tu padre continuava acreditando apenas nas parábolas das quedas perfeitas e
da arte de nadar no seco, técnica assimilada do mestre cubano Virgílio Piñera(15).
(...)
Alguém bateu na puerta da habitación número cento e uno para cobrar la cuenta e
indagar se não íamos mais embora, “como puede estes maltrapilhos a usufruir disso tudo e a
sujar nuestros lençóis de tanto gozo sem travas”, era a cabeça de tu madre paranóica com los
espanolitos desbravadores y colonialistas.
Se bem que acho que estávamos numa banheira...
No rádio-relógio fanhoso, umas seis, sete de la noche, tocava Candy... Quando
acordamos era a vez de Angel, do titio Iggy Pop, de certa forma tu padrinho, mira ele aqui no
álbum da família. Achaste esquisito o titio recortado del periódico? Caprichei na tesoura,
embora a ressaca fosse monstra para enquadrá-lo. Hay cortado alguna costela del tio, chica?
Como consegue ser tão magro, apesar de los anos, el titio Iggy Pop, carajo!

(15) “Aprendi a nadar no seco. Acaba sendo mais vantajoso do que fazê-lo na água. Não há o temor de afundar, pois
você já está no fundo e, pela mesma razão, está afogado de antemão. Também se evita que tenham que nos pescar sob a luz
de um farol ou da deslumbrante claridade de um lindo dia. Por último, a ausência de água evitará que fiquemos inchados.”

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Cap. IV - Do poeta e por acaso da poesia

“O que é um poeta, pai?”, Viridiana e a sua primeira pergunta difícil.

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Cap. V - Da poesia apenas como um descuido e de uma bicicleta


que se pedala ao infinitum

A poesia é como andar de bicicleta pela primeira vez, mi hija, escoriações nos joelhos
para siempre.
No que Viridiana faz dos aros dos óculos gigantes do seu pai as rodas de uma bicicleta e
pedala ao infinito.
Montada na sua bicicleta, transpassa as telhas e goteiras por onde pinga a vida e alcança
os céus como a bicicleta do filme E.T., é isso que ela lembra de imediato, ainda a subir ao cielo.
Viridiana percorre as galáxias em um segundo.
Viaja, viaja... e volta cheia de histórias e confabulações.
Ficou impressionada com a hora do rush dos discos voadores.
Viridiana só conseguiu voltar para casa gracias a uma busca no Google Earth!

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Eis a sua piadinha recorrente e sem graça quando narra a sua viagem verdadeira.
Mi hija, por favor, mas amor e devoção aos verdadeiros sueños.

Somente sete luas depois tentei te responder a contento, Viridiana, puxando na memória
quando eu tinha ouvido pela primeira vez na vida a palavra poeta.
Não, filha, andar de bicicleta pela primeira vez é comovente, um acontecimento do
outro mundo, mas ainda não é poesia.
Poesia é apenas um descuido, mi hija, está mais para a queda mesmo, por supuesto.
Quando um prato de feijão e sonho, quente, caía descuidadamente da mão de alguém,
plaft no cimento vermelho do chão da nossa casa, tua abuellita gritava:
“Ah, o poeta, o poeta outra vez a me dar prejuizo!”
Portanto, o poeta é alguém com a cabeça nas nuvens, lesadito, distante e que quebra
pratos como um grego involuntário, entiendes?
Quando tu abuella chamou teu pai de poeta pela primeira vez, já sabia que estava
perdendo o seu pintassilgo para el corazon das chicas, perdendo para las rodoviárias, os tantos
pneus dos caminhões e ônibus, la calle, los desiertos, las carreteras, as partidas que furtam os
pobres hijos de las madres e os põem no acostamento de la erristença, las margens de la bida.
Filha, hay una maldición, assombración, na palabra poeta!
Mal saía dos cueros, tu padre já provava que era um andarilho.
O primeiro medo de mi madre foi com os ciganos, cujos bandos eram muito comuns
nos anos 1970 nos sertões brasileños.
Quando ela dava fé, teu futuro padre ao longe, lombo de jegue, ou pangaré tocado
pelos ciganitos.
Mas como tu abuello, sempre estava, por mero acaso, no ponto futuro do caballero
delirante...
Teu padre era resgatado.
Todas as vezes em que teu padre ia fugindo, morto de feliz, deu-se dos ciganos pararem
justo no povoado onde teu abuello estava bebendo.
Mas se meu pai emborrachou-se em todos os cantos dos sertões ao mesmo tempo,
pensava quando mi madre fazia escândalos, claro que tu padre sempre estaria, infelizmente,
salvo dos amables e manhosos ciganos.
Talvez teu padre confiasse nisso naquelas fugas primárias.
Meu pai borracho morria de rir quando me via nos lombos dos pangarés dos gipsys-punks.

Um poeta que não derruba pratos no chão e que nunca está nas nuvens, hija, chama-se
gângster, de tão preciso e necessário nos seus versos fumegantes.

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Cap. VI - Do sol e por acaso da falta de foco

O cavalo relincha lá fora na cocheira de la erristência, é sinal que o lusco-fuesco está


formando aquela camada pastosa nos ojos amarillos, a remela de diós, como diria o cavaleiro
com a sua recente queda para o místico.
Fará silêncio por instantes o pangaré nervoso, sonha o cavaleiro, a lua cheia o deixa com
vontade de marchar sobre el pueblo, repare como entendo a alma do velho Chivas, pangaré
uma ueva, és um lerritimo mangalarga marchador nel mezzo del camin de Santiago de nuestras
bidas suadas y otras picaretagens tantas às quais nos sujeitamos, hoy e para siempre.
Em cismar sozinho em uma estrebaria das redondezas, abaixo do jardim suspenso y
babilônicos, Chivas parece divertir o seu Caballero ao longe:
“Foco, digo, fueco, é coisa do século XIX”, alardeia, histeria eqüina. “Los ojos não
vêem los próprios ojos nem miesmo com espelhos”.
Ouviremos agora dois, três relinchos, e terá chegada a hora de mais uma viagem ao fim
da noite, partiremos, Liliput à vista, repare, meu anjo, no tamanho dos hombrezitos diante de
nosotros, não duermes minha menina, já é tarde e a noite assombra o mundo la fuera. Chivas
ampara o seu caballero e avança sobre a estepe, safo, ri do jeito com o qual o cavaleiro rumina
o portunhol selvagem.(16).

(16) La grand lengua da tríplice fronteira, Brasil, Paraguay y Argentina, cuja reinvenção em escrita fina o cavaleiro
e o seu pangaré nervoso devem a un astronauta del chaco, poeta de la tríplice fronteira, conhecido como don Diegues De la
Verga ou simplesmente don Douglas Diegues. Além do português chulo de las tabernas e do castelhano de la calle, el
portunhol selbage diegueano é pontuado com um hermosito guarany daquelas aldeias perdidas en comezo del mundo. Em su
libro “Uma flor na solapa da miséria”(Buenos Ayres, 2005, Eloísa Cartonera), em virtuosíssimo portuñol salvaje, o majestoso
escriba define o portunhol salbaje como la língua falada por la gente simples que increiblemente sobrevive de teimosia, brisa,
amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca: “Es la lengua de las putas que de noite vendem seus sexos en la linha de
la fronteira. Brota como flor de la bosta de las vakas. Es una lengua bizarra, transfronteiriza, rupestre, feia, bella, diferente.
Pero tiene uma graça salvaje que impacta. Es la lengua de mi mãe y de la mãe de mis amigos de infância. Es la lengua de mis
abuelos. Porque ellos sempre falaram em portunhol salbaje comigo. Us poetas de vaguarda primitibos, ancestrales de los
poetas contemporâneos de vanguarda primitiba, non conociam u lenguague poético, justamente porque llos solo conocian un
lenguaje, ele lenguaje poético. Con los habitantes de las fronteras du Brasil com u Paraguay acontece mais ou menos la
misma coisa. Ellos solo conocen u lenguaje poético, porque ellos no conocen, non conhecem, outro lenguaje. El portunhol
salbaje es una música diferente, feita de ruídos, rimas nunca bistas, amor, água, sangre, árboles, piedras, sol, ventos,
fuego, esperma.”

Cap. VII - Da taberna dos perdedores e não por acaso os feiticeiros


da taberna

Mesmo de olhos abertos e em plena luz do dia, o fabuloso cavaleiro Fodasno


fantasiava com o seu cavalo desaparecido como um menino inconformado com a perda
repentina do brinquedo.
Sem a solípede e dadivosa criatura, o cavaleiro solitário de las pradarias de San Pablo
de Piratininga rastejaria eternamente como um réptil fossilizado na fria pedra azul de amolar
o desprezo e la suerte.

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A mesma piedra, si si si, que amola, lâmina e contralâmina, as facas da desalmada


atiradora do circo que sempre acaba, seguramente, por acertar el corazón de um palhaço.
E el caballero sempre foi um palhaço, um palhaço borracho sabotador de romances e
possibles nobellitas amorosas, por supuesto.
Merecia mesmo lamber, com a língua que agora dá nos poucos dentes, a resina dos
perdedores, o cuspe final dos hombres de la calle, a gosma dos rastros, a baba do fim da feira
ou os farelos da taberna do sr. Knut, para citar o seu antro predileto e lembrar a prosódia do
diabo aliteratoso que aparece na cumeeira deste informe do biógrafo de mal-assombros.
El caballero sempre perseguiu o fracasso, quase como caricatura ou pose de maldito,
mas esta pode ser apenas uma acusação desprovida de fundamentos, levantada por donzelas
guerreiras que o preferiam em seus leitos perfumados com a lavanda e a alfazema dos
campos mais frescos.
Pode ser apenas mais uma calúnia de amantes mais ricas que o preferiam nos seus leitos
de algodão egípcio e jamais no frenesi das tabernas-finales, com suas luzinhas vermelhas a
piscarem os orgulhosos mantras dos derrotados. Os orgulhosos mantras dos supostos
derrotados deixam las burguesitas loucas do juízo.
Mas a acusação é muito dura, por supuesto, coisa mesmo de quem deseja arrancar-lhe
de todo modo a aura de perdedor irresistible. Tal aspecto ainda se encontra sob suspeita e
apuración deste biógrafo de mal-assombros, que ora fareja as pulgas lombares dos sem-afagos.
“Ninguna fêmea resiste a un chico con una infância difícil”, costumbra chistear en las
esquinas, donde se supõe que o cavaleiro solitário inventa várias histórias, não somente sobre
os verdes anos, mas sobre toda a trajetória, inclusive acerca do reumatismo precoce que lhe
gasta as juntas e dobradiças d´alma.
Uma biografia tão complicada quanto a do feiticeiro Carlos Castañeda, que pode ter
nascido, inclusive, neste pueblo de San Pablo, como espalhava nos seus primeiros escritos e
orejas. Não descartamos, porém, Argentina e Peru como sítios natalinos. Assim como Bob
Dylan, Castañeda, o guerreiro tolteca, nasceu em vários lugares ao mesmo tempo, sempre a
falsear la própria trarretória.

Donde Carlos Cesar Araña Castañeda encontra numa tarde de relâmpagos - era preciso
chover um pouco em nuestra história tão árida e sem umidade alguma - Don Juan Matus, el
viejo índio yaqui, que também não faz idéia onde nasceu, nuvens baixas.
Usted hablou Datura inoxia?
Usted hablou Ayahuasca?
O encontro chamou a atenção dos conquistadores espanhóis. O sangue de Cristo, mais
uma vez, contra os feiticeiros.
Eles não sabem ainda que o mundo é como uma cebola, mestre Juan, em camadas.

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Ninguna fêmea resiste a un chico esquisofrênico e com dificuldades para o sono


tranqüilo, daqueles que estão sempre a retornar para o útero rock´n´roll da Cantareira, muy
agradable e arejado sítio deste pueblo para adonde hay partido nuestro amigo don Arnaldo
Baptista, com quem me encontro nesta exata hora.
Ninguna fêmea resiste às mais tristes biografias de assombrações nocturnas, como hay
dicho este biografo oficiale de la cancha.
Quase todas las chicas nasceram com la vocación para la Cruz Vermelha del amor
e da suerte.
Las chicas todas son madres Teresas de perdidas Calcutares.
Donde se conclui que las chicas son sobretudo muy humanas, freiras, Viridianas
bueñuelitas em carne e osso.
Ou, como diria Chivas, caballo del caballero Fodasno, no seu relincho mais poético:
“Las mujeres son las mujeres, los hombres son los hombres”.

Cap. VIII - Da mal-assombrada nuvem de moscas que voa de cima daquele


ser disforme

“Vê esse quibe, Sr. Knut, e um conhaque”, o cavaleiro Fodasno aponta na pequena
vitrine do balcão de fórmica, batendo fortemente no vidro escurecido.
O sr. Knut pega primeiro a bebida, na mesma prateleira daquela garrafa de aguardente
com raízes e uma pequena cobra mística da Amazônia peruana, sobre a qual falava lendas e
atribuía o poder fabulador dos beberrões da sua maloca.
O taberneiro das sobras gerais do Largo do Glicério, no epicentro miserável da
cidade de San Pablo, vai com a sua mão branca de veias azuladas em direção ao salgado...
Os vagabundos contam suas histórias esburacadas.
(...)
O caballero dá um gole no conhaque e lembra daquela máxima, irlandesa, crê, de algum
santo: vinho para as mulheres, uísque para os homens, conhaque para os heróis.
Quando a mão branca de veias azuladas e norueguesas do sr. Knut toca a iguaria, uma
mal-assombrada nuvem de moscas voa de cima daquele ser disforme, que os presentes
imaginavam ser um maltratado quibe, e a assombrada nuvem se debate contra o vidro.

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Tratava-se de uma esverdeada coxa de frango, encoberta secularmente pelas moscas


mais famintas daquela taberna que abrigava os farrapos humanos da área.

Cap. IX - Da bondade do taberneiro com os corpos dos mal-assombros

O sr. Knut, no entanto, era mui generoso.


Ele bancava os caixões e as taxas burocráticas do enterro de todas as criaturas que
freqüentavam o seu estabelecimento.
“Não é justo que esses desalmados paguem os tributos dos seus próprios vermes”, dizia,
sem a vaidade dos piedosos e muito menos o arroto dos imodestos.
O sr Knut, é bom que se firme nos melhores papiros, era mesmo mui generoso. Havia
enterrado milhares de pés-de-cana e jurava nunca ter ouvido o soluço de uma viúva.
Quando muito, um parente distante ou um inimigo daquele que se fora apareciam para
reclamar o cadáver.
O parente, por ruindade e orgulho, desejava testemunhar aquela criatura aos farrapos; o
inimigo queria a chance de poder jogar-lhe a última pá de cal sobre os olhos.
“Uns desalmados que já faziam hora extra no mundo”, dizia o sr. Knut ao velho gato
branco que passeava sobre o balcão de fórmica vermelha rachada pelo sol da fresta da telha de
vidro. “Ninguém mais para chorar por estes morimbundos”.
Quando eu for desta, pensava o sr. Knut com a sua gravatinha estreita quadriculada
sobre a camisa marrom de flanela, só os gatos devem chorar por mim, ninguém mais. Isso o
confortava, passara a vida a fugir do choro de parentes e de mulheres.
Por este motivo resolveu estrangeirar-se, mudar de condado, distrito, país. Embora
continuasse triste, sempre desejou habitar uma nação dos trópicos onde as dores profundas
fossem supostamente mais leves. Era o que cismava sozinho à noite.
Na vitrola portátil da taberna ouvia-se, quem tivesse as oiças mais apuradas, um
único disco desde 1973, Berlin, de Lou Reed, herança das suas dores guardadas no bolso
do capote mais antigo, puído e trágico, aquele capote que guarda histórias como um cão
que não vive mais sem a fidelidade das pulgas.

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“Só se ama uma vez na vida?”, don Isaías questionava, sério, todos os cavaleiros da taberna.
“Que idéia fazem do suicídio?”, don Isaías de novo, antes de qualquer resposta dos
bebuns eutanásicos.
O sr. Knut cortou a prosa bem antes que o primeiro desalmado da távola respondesse.
“Quantas vezes preciso dizer que tais assuntos aqui são terminantemente proibidos?!”
Sempre que o taberneiro se dirigia de forma ríspida aos mal-assombros, o gato
branco roçava a sua perna esquerda, como se tentasse amaciar as possíveis tragédias que ali
fizeram seu ninho permanente.
“Sossega, mi señor, desse faroeste ninguém sai vivo”, ronronava el gatito, “nem miesmo
nuestras santas madrezitas de Guadalupe e outras madres santas de altares alhures”.

Aconteciam pelejas horríveis entre o sr. Knut e os deserdados que bebiam na sua
taberna a bagaceira envelhecida nos barris dos desistentes.
Bastava uma das duas partes puxar pela memória alheia.
De um lado e outro do balcão, ninguém ali queria saber do passado imperfeito.
O sr. Knut, questão de origem, mantinha a luta inglória, em um didatismo medonho,
entre civilização & barbárie.

Cap. X - Donde se sabe que cavalo de bandido não tem nome

Sempre a fraudar o par ou ímpar com o destino, o cavaleiro solitário seguia com o seu
cavalo que lembrava, inicialmente, as feições de Tony, o quadrúpede que justificaria a
existência de Tom Mix, e também do cavalo de Roy Rogers, Trigger. Lembrava também, de
alguma forma, Silver, porque todo cavalo de mocinho tem nome e todo cavalo de bandido não
passa de um animal anônimo. Não foi à toa que o cavaleiro cuidou logo de batizar de Chivas o
seu garboso mamífero que ainda se encontra desaparecido, menos nos seus sonhos e delírios
em San Pablo de Piratininga.

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A imagem mais triste de qualquer faroeste é a do cavalo que parte sozinho depois da
morte do seu dono.
Ali o solípede, mesmo pertecente a um mocinho, perde o seu nombre, ali morre a memória.
O cavalo, nada metafísico, nada sabedor da possibilidade da morte, fica condenado a
vagar e obter um novo nome de um novo dono.
Esse rebatismo, porém, é a sua única idéia de morte e desmemória.

Nunca vi maior desamparo do que o do cavalo que parte solitário e sem nome.
Muito maior do que a nossa dor de amor mal-resolvido, aquele pé-na-bunda numa noite
de inverno, com todas as tabernas de portas cerradas ao mesmo tempo, quando só nos resta os
passos trôpegos e cambaleantes, além de mal-ajambrados decassílabos camonianos que nos
chegam inexplicavelmente bêbados ao juízo em poeirento redemoinho que tange uma cambada
de paródias chinfrins, como esta que ocorreu ao cavaleiro nesta mesma noite, quando tentava,
inultimente, resistir à melancolia do seu português definitivamente tomado pelo portunhol
selvagem, que lhe deixou de herança o foragido pangaré rocambalesco y recitoso:

O amor é fogo que arde... um caralho;


É ferida que dói... uma buceta;
É um contentamento só de esteta;
É dor que faz o clitóris um chocalho.

É um não querer mais que atalho;


É solitário andar e não tem seita;
É nunca contertar-se, é uma pêta;
É uma dor que murcha até o malho.

É querer estar preso a uma peste;


É servir a quem narra, o narrador;
É ter com quem nos trai um deleite.

Mas como “cismar” pode ser amor...


Nos corações humanos só um teste,
Se tão contrário a si eu já estou? (17)

(17) Ao delirar com a péssima paródia ao nobre Soneto 11 de Luis de Camões, de maneira nada solene, o cavaleiro
parece acreditar na cura da sua obsessão por oxímoros e pelo portunhol mais tosco.

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Chivas não tinha dono.


O pangaré fora fixado na praça por um desses azares que pesam sobre o destino das
estátuas eqüestres.
Pena que não se tratava de uma estátua qualquer deste pueblo.
Chivas, mesmo um pangaré anônimo de bronze e cimento, havia sido o maior cavalo da
maior estátua eqüestre de todos os tempos, de todo o mundo, não é pouco.
Na barriga de Chivas havia uma sala de jantar para ocasiões especiais,
especialíssimas, dos militares cujos fantasmas ainda vagavam no continente, reencarnadas
nos seguidores do realismo fantástico.
Jantares nobres, haja gala.

Na noite em que Chivas se jogou na vida, te juega, comemorava-se lá dentro do seu ventre
alguma efeméride da memória do Conde D´Eu, o sanguinário comandante da Grande Guerra do
Paraguay.
Quando o caballo saltou, sangre do demo, de lá se jogaram não se sabe quantos velhos
ditadores enferrujados da América, como se no ventre del pangaré selvagem bolassem nuevos
planos e reiventassem o realismo fantástico ao qual foram condenados no fogo dos infernos.
De lá voaram pelos ares deste pueblo, por exemplo, o mexicano Antonio López de Santa Anna,
o gallero, velho amante de rinhas de galo; Juan Vicente Gómez, presidente de la Venezuela
durante trinta anos; Maximiliano Hernandez Martinez, de El Salvador; o boliviano Enrique
Peñaranda... além dos anfitriones brasileños, a começar por Castello Branco e a terminar por
João Baptista de Oliveira Figueiredo, famoso por dizer que preferia o cheiro de cavalo ao
cheiro do povo.

Havia séculos que este bravo pangaré suava de vergonha daquele suposto herói brasileño

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sobre as suas patas cansadas.


Não faltou quem atribuísse ao sobrenatural o acontecimento da sua fuga, embora a
maioria dos que opiniram nos jornais, rádio e tevês tenha seguido o prisma frio, técnico e
desalmado da engenharia e do jornalismo contemporâneos.
Solamente el diario Crónica, tablóide supostamente sensacionalista, sangrento y sexuale
de Assunción, hay dado la manchete mais verossímil, em portuñol selvagem, claro, a língua
oficial da tríplice fronteira do Paraguay, Brasil y Argentina:

!CABALLO PARAGUAYO SE VENGA DE FALSO HERÓI DA RAPAILÂNDIA!

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Cap. XI - Dos cavalos tangidos ao ritmo de Johnny Cash

Nem mesmo a dor amorosa tem a nobreza de montar esse cavalo que parte sem destino
e sem dono como os cavalos perdidos e sem nome na poeira dos faroestes, sempre tangidos
pela melodia Cry Cry Cry, de Johnny Cash, porque todos os cavalos e todos os homens em
desespero correm sob regime de tal trilha sonora; mesmo aqueles que nunca ouviram Johnny
Cash, desandam a trotar Cry Cry Cry pelas pradarias possíveis, meus bares, meus mares, meus
cavalos marinhos, nuestros faroestes de poeiras imaginárias, mesmo debaixo d´água ou sob os
choques elétricos dos manicômios.

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Nem o skate que se dilacera solitário contra a parede, quando o respeitável skatista
quebra os ossos da cara como um boxeur peso-pesado decadente, consegue ser mais dramático
que o cavalo que parte triste, solitário e final, sina, acaso e sorte, contra os ventos
supostamente leves do oeste. O cavalo é aquela imagem que os pintores de la calle
emprestaram como símbolo de popularesca liberdade, anda-lhe anda-lhe anda-lhe, anda, peste.
Não há um desfile mais triste do que o cavalo que vaga sem o peso do cavaleiro de
costume, como quem se adaptou, mesmo no calor dos trópicos, a dormir como quem dorme
com o peso e a leveza de outrem sobre as costelas mais bíblicas.

Precisamos ver um faroeste clássico, mi hija, aí entenderás os homens, filha, mas


não agora, ainda és muy pequeñita para tal suerte, mantenha distância dessa raça, tu padre
es muy ciumento.
Nem o nariz sangrando de Muhammad Ali, para continuar nas diversões de machos, dói
mais do que a imagem de um cavalo desnorteado, sem rumo.
Nem o escriba Albert Camus, na sua vida de goleiro do Racing Universitaire d'Alger, na
angústia de apanhar a indesejada das pelotas no fundo das redes, era mais triste nesta hora.
Nem os gemidos de uma terra desolada depois de perder a estação de trem, a rotina, as
sombras dos habitantes, as últimas almas mortas e suas almas que duram, pelo menos, tanto
quanto os vagões ferroviários e as sombras das feiras perdidas às baciadas dos fins estragados
dos tomates que não servem nem mais para as xepas sentimentais dos bloodys-maries.

O que não hei de te mostrar, hija, é O Grande Golpe, do viejo Kubrick, el cineasta. Ali o
cavalo é que se sai de vítima e tomba no sétimo páreo milionário, tiro certeiro de um bandido
contratado para tal épico na curva do Jocquey.
Pensando bem, hija, ali está o sentido da vida, do truque, de la picaretagem, te exibirei
si, desde que oportuno, que clássico, tu padre ficou passado, non passa nada, non passarán,
quando viu pela primeira vista.
Hija, sabe o que aprendi com este filme?
Nada.
Tudo que se aprende na vida.
De que não adianta bolar planos bolaños.
De que na vida temos que ser invisíveis e leves como el viejo Yañez, el lucho loco,
grand jockey chileno que fez história neste pueblo.

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“O acaso é que nos governa, mi padre?”

Quase isso, hija, basta un perro, de uma velhota que habla com perros como se perro
gente fosse, para que la fortuna, mesmo a fortuna crítica, vá para o espaço [vide la película
supracitada].

“Donde se conclui, padre, la vida és una ficción científica, non?”


Hija!!!, que hermoso, que lindo, vais ganhar um sorvete de...
“Pode ser duas bolas com casquinha e tudo?, mi padre querido, sabor Tapioca-Isaac
Asimov?”
Tudo és una ficción científica, non, hija...
“Si, papá, andas se queixando mucho de tu próprio espácio, non?”
Si, hija querida... com alguna razon, non?
“Por supuesto, papá, la bida és una eterna reclamación do Dr. Smith...”
Ó dor, ó dor!
“Quanto custa o sorvete, moço?”

Cap. XII - De um pintor chamado Tom Castro e ainda sobre cavalos em fuga

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Chivas ainda não sabe que podemos acreditar no sorriso de um cavalo como apostamos
na metafísica de um gato vira-lata que ronrona parábolas, na ligeireza de um rato perseguido
por um homem a imitá-lo, como o don Fracasso Morales, que imitava um rato como um
homem de verdade deve imitar um rato, naquele armazém de milho no meio do vale quase
deserto, e o rato caía no jogo como um patinho cujo lago evapora de uma hora para outra em
paisagem semi-árida.

O caso de Chivas não era único, naquele pueblo, de um cavalo que pula da sua estátua
ou paisagem e ampara um cavaleiro do mundo delirante.
Um amigo pintor chamado Tom Castro contara outro episódio do gênero.
Quando ouvi, apenas tirei onda e guardei no embornal de caçador e biógrafo para não
humilhar o cavaleiro Fodasno. Guardei junto com as perdizes que bicam gramíneas nas veredas
dos motoboys, no fundo do embornal das lendas urbanas dos vagabundos desta praça.
Era a história de um desalmado cuja vida foi salva por um cavalo azul de um quadro
popular da Praça da República.
O vagabundo estava a lamber a lua minguante na sarjeta, quando o cavalo saltou, ainda
na montagem da feira republicana, e lhe deu amparo ímpar.
Tom Castro, quando bebe muito, tem sempre uma tese sobre tal ocorrência, não
carecem ouvi-lo ainda, não derretam as ceras dos juízos:
“Todas aquelas pinturas, de tão rejeitadas desde o nascimento pela Gang do Bom-
Gostismo, uma das tantas que serão exterminadas mais adiante, não percam, costumam
ganhar vida de verdade en la calle”.

Cap. XIII - Das gazelas bulímicas e anoréxicas que saltam como boterinhas
espevitadas

Outro amigo, um místico pintor colombiano, dizia viver um pesadelo diário naqueles
mesmos derredores: pintava mulheres supermagras, anoréxicas até, bulímicas, gazelas,
giseles, giselíssimas, e elas ganhavam as ruas com mais de 200 quilos cada uma, boterinhas
faceiras, fogosas, satisfeitíssimas que em nada contribuem, há uma certa isonomia nas
ventosidades de magros e gordos, para o aquecimento do planeta.
“As criaturas dos pincéis ditos populares se vingam, à vera, com sangue, sem
populismos”, insiste Tom Castro.
Outro pintor, cujo nombre és recomendable não mencioná-lo, tinha como tema a
guerra urbana, la biolência, como nas mais elementares películas brasileñas, e viu sair
dos seus quadros o horror das terríveis falanges.
“Dá azar mexer com a realidade”, dizia ele, “é pior que emparedar sete gatos
niegros sete seguidas vezes”.

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Cap. XIV - Donde o biógrafo de mal-assombros tentava esquecer aquele


rabo-de-peixe

Nem sei se tentava à vera ou se francamente não conseguia.


Nem, nada, n´algum, ninguém.
O rabo daquela mestiça, mais para índia, que subia a Barão do Rio Branco, vinda do
Bom Retiro, agora já se encontra no Largo do Paissandu... São João, atravessa as Grandes
Galerias, carajo, Praça da República, Consolación, depois de horas de trabalho com agulhas
industriales dos coreanos, que linda, pelo menos duzentos homens seguem seu rabo pela calle.
Os lábios daquela mujer...
Gloss dos desalmados...
Aquele corte do olho...
A pele lisa daquela pequeña...

Aquele rabo que se mexe por toda a cidade, mais tarde no Love Story, boate-mor de San
Pablo, a casa de todas as casas, como hay bisto outra madruga, diós de todos los meus
infiernos-alabamas...

Cap. XV - Da arte de pintar deitado

Sem Chivas, el caballero Fodasno, delirante no último, voltaria a ser apenas um antigo
pintor de rodapés, um homem pequeno que, de tão entregue à inércia e ao pântano das
monstruosas ressacas, só pintaria deitado, caído, como as arrastadas e preguiçosas barras das
paredes de todo el pueblo.
Repare, meu anjo, esse quadrúpede que foge é tudo na vida de um outrora afundado
hombre, este cavalo, o último dos cavalos que riem no planeta, ri mais do que o gato de Alice
depois do ácido supremo, este cavalo pôs de pé, devolveu a la bida, o cavaleiro que avistas
antes de dormir em sombras gigantes nos edifícios, como teu pai hay mostrado pelos buracos
dos combongós de tua pequenita erristência.

O desalmado carecia apenas de um rápido amparo do mundo, do mundo que não


acolhe nem o mais saudável e cristão dos cavaleiros que deliram.

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Sem o pangaré paraguayo, o cavaleiro não passava de um bicho minúsculo, uma pulga
do próprio caballo, dessas pulgas de cadeiras dos últimos cinemas do centro das cidades
grandes, lesadas, perdidas, incapazes de atrapalhar a percepção de qualquer filme, mesmo uma
película vagaba.
Não passa de um carrapato, melhor dizendo, daqueles que atraem bem-te-vis para o
lombo de quadrúpedes que pastam na morta natureza e sobem nos ares nos seus bicos
cantantes como maçãs piratas de Cezzanes, voando nas domingueiras da Praça da República.

Não lhe gusta de la condición de bípede e o cavalo subtrai essa pobreza humana,
como dita ao gravador deste biógrafo lo próprio caballero:

“...a condição de bípede me faz lembrar das pernas tomadas pela crônica sensação de
dormência, como se todos os formigueiros do mundo habitassem os membros inferiores nas
manhãs de ressacas abomináveis. Tantos caminhos para se perderem essas formigas e fazem
das minhas veias suas melhores roças de nuncas e fábulas, como se tivessem seguido todos
os Jecas Tatus do universo, de modo que nem meu angiologista, o qual não procurei ainda
por medo de diagnóstico apocalíptico, sabe mais o que fazer com esse formigueiro que
festeja sobre meu corpo a existência do açúcar da desgraça, a diabetes do fim de feira de
um alcoólatra. Sempre sinto que uma banda do corpo está muerta. Resta-me apenas o lado
izquierdo, corazones, esse músculo cafona e sensacionalista, eternamente denunciador e
cheio das suas palpitaciones fora de lugar e hora, sempre a ler Fernando Pessoa em
qualquer gare ou despedida, corazón entreguista, por mais que eu tente manter distância
das comociones baratas.”

El corazón que nomeia, de longe, as lacunas, os buracos todos, não somente o da parte
posterior do cérebro, é o que guarda os segredos e os batismos dos seus futuros donos.
Melhor não dar ouvidos aos nomes de gente soprados por nuestros corazones.
Nuestros corazones não passam de cupidos malucos que nos flecham de dentro para
fuera, como aqueles pescadores que vêem as cidades de dentro dos seus Tietês, Tejos, Paraybas,
Paraguays, Jaguaribes, Guadalquavires, Capibaribes...
Morte a los cupidos.
Cupidos do mundo inteiro, fudei-vos uns aos outros com as suas infalíveis e priápicas
flechas que não matam uma mosca.
Não se morre de amor nos trópicos.
Como diz don Estebito, agora um caçador de formigas gigantes d´Áfricas - segundo me
contou sua própria abuellita -, “estoy amando, estoy a mando do demo!”

Cap. XVI - Donde a poesia não passa de uma maçã caramelada e derretida

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El pangaré supostamente paraguayo avança e cresce a cada dia muitos metros e fica
cabeça a cabeça com o roncinante de São Jorge, meu anjo, minha menina, chance de te levar
para conhecer a lua, la luna caliente, por supuesto, a morada dos poetas, mi hija, mi musita
precoce, já foste a la luna, hija?
Sabia, minha menina, que teu avô morreu sem acreditar que o homem foi a la luna?
Com este cavalo gigante que avisto ao longe posso te levar para conhecê-la,
independentemente de quaisquer sospechas!
Irás tocar la luna e chegar em casa com os dedinhos melados de tantos adjetivos que os
poetas lhe dedicam, adjetivos são doces como pirulitos, filha, e derretem sobre la camada externa
de la luna. La luna, hija, non passa de una maçã caramelada do parque de diversiones de los poetas
e demais enamorados, mi hija, não caia nessa, quer dizer, mi hija, faças o que quiseres, mil
desculpas, foi mal, ciúmes...
Domingo é um bom dia para irmos a la luna, quieres ou não quieres, hija amada e única?

Cap. XVII - Donde o cavaleiro cai e não cai das nuvens e muito menos
em cima do seu cavalo

Sem o cavalo, talvez o único ofício que me restaria, digamos assim, fosse mais baixo
ainda do que um pintor de rodapés... Eu não passaria de um mecânico de skates, minha
menina, entraria abaixadinho na vida qual um mecânico do gênero, azeitando o eixo do sol dos
rolamentos que tiram fogo do asfalto e dores-rolimãs dos joelhos, sabe aquele barulho
iluminado, aquele relâmpago de carne contra o cimento?
Cresce, mas somente à noite, o pangaré, qual o seu novo dono, que durante o dia é mais
réptil que a sua própria sombra, um tatu-peba perdido diante de vira-latas magros e farejadores.
Teu abuello, meu anjo, ainda hoje é um grande caçador de tatus, os tatus que rastejam sobre
mosaicos lisos e barrocos da guerra do tempo com os seus cascos-caos pré-históricos.

Cap. XVIII - Donde os sonhos diurnos são filmes inacabados


de cineastas mortos

Durante o dia, o suposto pangaré nervoso e existencialíssimo pasta no quintal na


companhia de Ressacón, um velho e nada cansado bode, capricorniano no último, mal-cheiroso
e tarado pai-de-chiqueiro com perfurme de macho das antigas, Ressacón engole pedra e cacos
de vidros e rumina pará-brisas quebrados pela força da mente urbana mordida, um místico e
insensível macho, no que sobra para a pobre Quimera, a cabra que pasta lindos sonhos de
varejo e caga pílulas milagrosas, toda a responsa lírica de continuarem juntos.

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Ressacón tem um mantra infalible:


LA BIDA ÉS COMO LA RESSACA, LA BIDA ÉS EN SLOW MOTION, LA
RESSACA ÉS UMA DENGUE SARTREANA.
O cavaleiro mal se mexe durante a luz solar, dorme intermináveis siestas.

Mesmo sendo um destemível e fabuloso cavaleiro, o cavaleiro é um hombre, portanto o


cavaleiro rumina fábulas rasteiras, pobres, primárias, por supuesto, sempre entre el fulgor e la
muerte, num passa de um Joaquín Murieta sem ver a cor do ouro da Califórnia, como o
lendário chileno que também poderia ser um lendário mexicano, mas nos livremos da tal
questão místico-diplomática fantasmagórica cheia de ouro e fandangos melodramáticos.

A sorte do cavaleiro Fodasno é que os seus sonhos diurnos são fragmentos de rolos de
filmes inacabados de cineastas mortos.
Seus sonhos não guardam a mínima ligação com o inconsciente ou delírios do
tiozinho Jung e sua assombrada bodega de miniaturas.
Às siestas, os sonhos não pasam de uma maneira de deus ocupar os cineastas no
purgatório, fornecendo-nos alguns pesadelos exemplares que ficaram adormecidos na rede
armada no cocoruto de senhores como don Luis Buñuel - rolos e rolos não editados de
Viridiana e de Los Olvidados - e Pierre Paolo Pasolini, Uccellacci e Uccellini, Gaviões e
Passarinhos, uma fábula sobre a crise dos perdedores de sempre, segundo o próprio corvo do
filme, e assim todas as horas não editadas que formam uma nova película em sonhos e
pesadelos vespertinos, chance única de nosotros, principalmente os cegos, podermos também
cevar los cuervos e comê-los como boníssimos tira-gostos para los ojos embriagados.

Nunca confiem nos sonhos diurnos, nada é verossímil ou contável, e nada mais intenso
do que saber narrar seus sonhos como se fossem filmes incompletos, cheios de buracos e
reticências, como quem conta algo na parada de ônibus. O ônibus passa e leva o sujeito que
estava contando a história e só nos resta emendá-la com as pistas precariamente deixadas,
enquanto não vem o próximo ônibus.
Falar em don Buñuel, outro dia revi, nada como um ocioso biógrafo numa tarde-noite
de inverno, assim meio na esticada siesta, revi com una hermosa niña-costela, que também
poderia ser mi hija Viridiana...
Embora a gente tenha visto, como é próprio dos sueños das siestas, o primeiro copião
da película, concluímos: que tara a de fazer da freira la nobia!
Mas o que és mais amable mesmo em la película é aquele maluco, do banquete dos
mendigos, que perguntado sobre o que sabe fazer, diz apenas:
“Sei fazer rir, señorita!”

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“Nas rugas do palhaço involuntário, no que não carece pintar a cara, está a grande arte,
senhoras e senhores”, bolinou os lençóis azuis uma voz que veio com o vento frio, persiânico
e combogóstico, naquele acochegante quarto de ácido que nos dava abrigo.

Cap. XIX - Da gosmenta ninja da culpa de cócoras num canto


da sala sem cortina

O pesadelo é, sobretudo, quando alguém, não chamado, se mete a ser a memória das
nossas jornadas.
Nunca me contem o que se passou ontem, nem eu nem o sr. Knut e muito menos as
criaturas daquela taberna carecem dessa narrativa enevoada.
O monstro da ressaca nessa luta contra o monstro da memória... E a gosmenta ninja
cristã de cócoras num canto da sala sem cortina a esperar-nos com suas lições inoportunas.
As acontecências enevoadas são para serem revistas apenas sob as lentes grossas da
ressaca, que nos repassam as noites aos poucos, em câmera lenta, slow motion iraniano, no
máximo a sensação demorada de um punheteiro de Cabul, um guerrilheiro, o gozo na guerra,
demorado ou nem tanto, além, muito além dos vagarosos limpadores dos pára-brisas da culpa
que nos repetem, automaticamente, as certezas da guerra, para um lado e para o outro na
neblina - como uma teimosa criatura que diz não com a cabeça -, as imagens das merdas
dantes cometidas e, principalmente, nos senões esquisitos de quem não sabe assumir as coisas.

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Em sendo mulher, então, não nos conte nada nunca. Faz de conta que todas nasceram
com Alzheimer, porque a narrativa feminina dos infernos anteriores é mais cruel ainda e já nos
prescrevem os infernos futuros, o que há de lobotomizar-se no percurso entre uma dobra ou
outra de tempo, como se dobra um guardanapo para entender as distâncias dos pontos ou dar
uma exemplar aula de física nas mesas dos bares, como hay hecho el compay don Niltola en la
cumeeira madalenística deste pueblo.

Cap. XX - Do ponteiro deslizante no verde-lodo do tiempo

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O cavalo Chivas fica mais crescido do que todos os prédios del pueblo e sua auto-
estima, mesmo ele odiando essa palavra composta e feita sob encomenda para os ricos foderem
mais ainda com los pobrezitos, alcança as galáxias mais infinitas. La luna caliente às vezes não
passa de um néon minguante, uma vírgula de luz sob o palato que ele suga como um
tamanduá-bandeira comeria pontinhos e sinais eletrônicos de uma fachada, imaginando
formigas se mexendo numa chino-luminosa roça de pernas.
O pangaré devora principalmente os relógios do alto dos edifícios, quer parar o ponteiro
deslizante do tempo para agradar seu velho dono, que tem fome de viver, ou se iludir
bravamente com esse tema, pouco importa, anda-lhe, anda-lhe, anda-lhe...
O cavaleiro Fodasno não teve escolha, tem metade da vida, a vida nocturna, como se
Deus parasse o cronômetro na parte ensolarada, e não falamos aqui da tradição romena ou
vampiresca, o cavaleiro cisma com o aparente das coisas como um judeu que responde uma
pergunta com outra.
Como como?
Por que por que?

Simplesmente era uma vez na encruzilhada, há muitos e muitos anos, num tempo em
que nem um de nós éramos nascidos, gracias, nem mesmo a árvore que daria no cabo de
vassoura, que daria nos cavalos-de-pau da infância, e o diabo perguntou, na bucha, para o
cavaleiro ibérico que tempos depois iniciaria a sucessão de gametas que daria origem à estirpe
deste cavaleiro solitário:
- Blanco ou niegro?
Metade branca ou metade preta, escolha!, um anjo e um demônio, desses que andam
juntos para confundir o universo, mostravam uma coisa assim como uma bolacha de chope,
como o SIM ou NÃO da carne, verde e vermelho, numa churrascaria estilo brasileña.
Como adorava lesar os sóis e celebrar las lunas, foi fácil o antepassado deste cavaleiro
dizer que ficaria com as viagens ao fim da noite, sem ao menos se importar que isso teria
implicações e lendas urbanas, os homens e suas inocentes escolhas primárias, para muitas e
muitas gerações futuras.
Um homem não pode amar o dia e a noite igualmente, sob pena de ser desprezado por
ambos, pensou ao decidir por um dos lados da bolacha, repetia o avô deste cavaleiro a
história do seu tataravô durante a cachaça com teju cozido à beira do fogão da avó índia,
uma sábia cabocla de Águas Belas, Pernambuco, que apenas ria das aventuras repetidas -
brigara com onças vermelhas, onças pintadas, onças comedoras dos seus bodes e filhos,
sempre estava a matar uma onça por dia nas suas simples buscas por lenha verde antes das
raras chuvas sertanejas, uma panela no fogo sempre representava mortes anteriores ou
futuras, todos os tempos eram cozidos nos mesmos vapores, morreu a tanger onças na rede
em que foi enterrada numa tarde chuvosa em que os homens embriagados e velozes a
tocaram, desabalada carreira, para o cemitério cujos defuntos eram comidos por tatus-pebas
que, por sua vez, eram caçados por nuestros perros famintos que, ao fim das refeições,
ficavam apenas com os ossos.

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O pior é que Deus descumpriu o seu trato com nuestro longínquo parente, meu
anjo, mi hija querida.
Pense na ressaca, ao saber deste acontecimento.

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Cap. XXI - Da segunda interrogación complicada da hija querida


desta história toda

“És o caballero, mi padre?”


Ouvira naquele instante a segunda pergunta difícil de Viridiana.
“...como ia contando, um poeta é uma criatura que...”

Cap. XXII - Donde voltamos ao trato dos antepassados com Deus

O correto, pelo acordo ao fio do bigode vassoural suado e nervoso de Diós, era parar o
cronômetro, como em um jogo de basquete, todas as vezes que a noite acabasse.
Pela herança sanguínea, este cavaleiro continuaria usufruindo até hoje deste beneplácito.
Em chegando a manhã, Deus delisgaria o relógio para este cavaleiro, mas sem essa

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frescura obrigatória de ser vampiro, repito, sem caixão, sem velas, sem nada, apenas cortinas
baixas e ventilador de teto no último volume dos trópicos, os moinhos possíveis dos campos
dos sonhos.

O certo é que caímos nesse conto-tamanho-família e fomos condenados, menina, como


numa maldição, a seres noctívagos, sonâmbulos quase sem nenhuma classe, falsos vampiros,
M.C.S.J., Movimento dos Cavaleiros Sem-Jugulares, quando muito uma bela ciganita e seus
mares vermelhos que formam niágaras além, muito além de las tensiones mortales d´alma.

Castigo, mas essa é uma explicação ainda muito barata, prefiro acreditar em algumas
outras lendas particulares.

Alguns dos nuestros são rotineiramente acusados de lobisomens nos confins dos
sertões, um tio acredita incorporar uma Rasga-Mortalha, aquela agourenta ave que risca
as unhas nos telhados antes da morte de um ente querido da casa, teu abuello sai a la
noche, apenas com a sua espingarda caçadora e a vira-lata com nome de peixe ou de
grandes mamíferos marítimos, todos os cães de pobres têm nomes de nadadores, minha
menina, teu abuellito sai ao encontro de botijas, que são tesouros de monedas, potes de
ouro escondidos nas veredas e encruzilhadas que são os seus mares, mas que exigem,
mesmo nas madrugas mais sossegosas, uma longa conversa com o diabo, como todos los
contratos, porque Deus só dá a inutilidade da paz e o descuido da poesia, um prato no
chão vermelho do inferno idem, plaft.
Em um desses encuentros, o demo narrou ao teu abuello Niildemar [um certo niilismo
marítimo na origem do nome segundo o latim do vigário Cristhiano, de Santana do Cariri, à
sombra da Chapada do Araripe, a terra dos maiores fósseis do mundo] o motivo pelo qual o
Divino havia quebrado o trato e por que estamos condenados a vagar pela noite, seja nos
sertões, seja na mais moderna das metrópoles babilônicas.

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Cap. XXIII - Do Pangaball ou Pangabol, o legítimo juego da vida-pangaré

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Até inventei, com o meu bom cavalo Chivas, uma nova modalidade para ver se Diós,
que só compreende metáforas esportivas, entendia como recado ou indireta mensagem aqui da
sua pobre alma penada.
O Pangaball ou simplesmente pangabol, espécie de basquete jogado nos arrabaldes
del chaco deste pueblo por destemidos cavaleiros em cima dos seus belos pangarés ou de
faunos obscurantistas.
No calor dos minutos finais dos embates, o pangabol guarda uma certa semelhança com
as batalhas do Rei Arthur e a dramaturgia das Cruzadas, Lancelot, o feio, ora, assim imaginei o
jogo, porque homem que é homem roteiriza o jogo antes mesmo de fazer o filho para
brincarem juntos, mi hija, e talvez esse seja um jogo de homens fracos. Não te importes, rogue
el juego, por supuesto, neste game mora a clave dos que se saberão perdedores e nada perderão
com isso doravante. Perder de um, perder de dez, tanto faz, a vida é cada vez menos, no
calendário, na pele e nos cabelos.

E não é que Chivas, sabe Chivas?!, mi hija, foi coroado recentemente como o melhor
cavalo de Pangaball do mundo! Mas, sou sincero, não é nos esportes que ele me orgulha,
embora já se enquadre no que batizamos vulgarmente como heróico, o gênero, embora por
outras causas marginales.
Até agora Diós não entendeu nada, não sabe que o pangabol se trata de uma forma de
avisar-lhe que o cronômetro, assim como num jogo de basquete, deve ser paralisado durante o
dia, como rezava o seu trato com os meus antepassados ibéricos.
Deve ser paralisado quando a vida não vale a pena, quando se torna melodramática
ou sóbria.
A moral do pangabol é esta, hija.
Mas é difícil mesmo fazer Deus entender minimamente os que começam perdendo de
muito. Deus não acredita na lucha de classes, minha pequeña.

Cap. XXIV - Donde o Supremo proíbe o jogo de amarelinhas

Deus não aposta nas voltas por cima, mi hija.


Deus não seca os favoritos.
Deus sabe jogar um, dois, três jogos no máximo.
Deus não faz fé no cavalo azarão que atropela na curva.
Deus não joga nos próprios bichos a quem impôs o dilúvio.
Mesmo sabendo que foi Ele quem os embarcou na arca de Noé apenas para
garantir a futura roleta do jogo.

(...)

Deus blefa no pôquer.

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Deus pôs a zebra de castigo: trata-se de um quadrúpede obrigado a dormir em pé até


hoje e de lá de cima ele despeja renovadas e aleatórias demãos de tinta sobre tal quadrúpede.
Deus castiga, hija.
Deus é um ser esquisitão, meu anjo.
Deus tem caspa, como diz nosso don Júlio Henriques, titio ultra-marinho, e pêlos gigantes
no nariz, que emendam com os pêlos do saco e os pêlos de todos os buraquinhos perfeitos de
Deus, por supuesto.

As filhinhas de Deus, hija, são terminantemente proibidas de pular o jogo de amarelinha.


Não pelo céu e inferno do jogo, simplesmente porque as boas meninas não podem
mostrar logo cedo a calcinha.
Deus condena ao fogo do infierno, hija, te deixo aqui o conselho à guisa de um
guisadinho com farofa de ovo e banana, ovo molinho por cima, como rima materna, derreteu...
Pega junto com o arroz, minha criaturinha, eita, olha o aviãozinho...!
Deus está sempre a dizer “já para dentro, menina”.
Deus é o vento que levanta a saia e sopra coisas diretamente en la bucetita, lo mejor de
los oubidos de una chica.
“Do jeito que brincas vais acabar virando puta”, Deus sempre com seu verbo
condenoso e impoluto de quem fala em segunda pessoa, tu tu tu tu, como um telefone
ocupado en noche de desgracia.
“Deus te oiça, Deus te oiça”, no que a menina má brinca lembrando de um poema de
um dos seus muitos tios-abuellitos, o folgazão e pantagruélico Ascenso Ferreira, Palmares,
Pernambuco, capaz de comer uma sucuri inteira que acaba de engolir um boi, depois dormir o
sono dobrado dos dois, o sono dele e o sono que seria da cobra, bufando para o mundo em
estrodosos e metrificados peidos decassílabos, bocageanos, inocentemente imorais como los
peidos de las siestas em redes gigantes armadas sobre o Atlântico, entre um coqueiro do Brasil
e outro coqueiro d´África.

Cap. XXV - Donde um pangaré solar em uma noite de inverno ou quase

Quando algo de muito desimportante está em andamento, como se um pangaré solar


numa noche de inverno, Deus congela o tempo e sua pata dianteira, como o cavalo dos heróis
nacionais das estátuas eqüestres, e a pata fica suspensa no ar, como num eterno retorno para a
mais falsa das guerras, a pata, joelho dobrado, suspensa, a pata no despenhadeiro, depois da
base de cimento e bronze, quando o cavalo pensa em fugir da imortalidade a todo custo.
A pata erguida, nas estátuas eqüestres, significa, mi hija, que o filho de una putana do
herói nacional de araque não morreu na guerra.

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Cap. XXV - Donde El Domador de Yacarés habla sobre la cobiça,


el rancor e la ignorância

Por ocasión de la bisita ao país hermano, mi Paraguay querido, El Domador de Yacarés


hay dicho una das suas maiores sabedorias rupestres:
“És más fácil domar un yacaré do que un hombre. Para domar el yacaré, arrancarle del
corazón selbagem de lo viejo réptil encoraçado trés cosas: la cobiça, el rancor e la ignorância...
De un corazón de un hombre és quase impossible arrancarle las miesmas cositas.”
E así El Domador hay me ensinado técnicas e recitado fábulas para los poetas
durante los dias que passei em Assunción, esta ciudad renial e muy agradable, amable...
Quatro poetas e un sábio domador de yacarés emborrachando-se de biño e oubindo
cumbias antiapostolicas y Camarón de la Isla pelas calles quilombeskas y
fantamasgóricas daquele guapíssimo pueblo guarany.
Así, en la miesma ocasión, hay ocorrido el gran encuentro cosmolórrico del portunhol
selvagem, lengua elaborada pelo inimitable Douglas Diegues, nuestro don Diegues de la Verga,
que lavrou a ata do fabuloso simpósio e nos brindou com um lerrítimo White Horse.
Na maravilhossa viarrem alejocarpetiana a Assunción, terra de chicas calientes e los
ojos mais enigmáticos de todas las tribos da globolândia, jodeado pelas más guapas
paraguasitas, el astronauta de los chacos, el kurupi manhoso, el miesmo don Diegues,
apresentou-nos su más nuebo libro, lo renialíssimo “Rocio - sem trampas entres pindovys y
cataratas del Yguazú”.

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Pra finalizar a viagem, una frase de Rocio que causa ondas jigantescas na baia de
Asunción: “Me gusta que me deixem halagada!”

Cap. XXVI - Do Emparedado Corazón e das bistecas dinossáuricas de San Pablo

-Por que matou tua própria mulher, elemento?


-Dotô, ela queria fazer sexo toda hora, de manhã, de tarde, de noite, eu não podia entrar
em casa que...
-Como assim, seu nóia?
-Dotô, eu não agüentava mais.
-Né macho não, seu viado? Pra que serve o que tem entre as pernas?

Primeira coronhada na cabeça do pedreiro.

-Pensa que eu sou palhaço!


-Dotô, o pior era de manhã, eu querendo manter o trampo... sair na hora certa de casa,
três conduções, lotação, metrô, busão...
Segunda coronhada.

Risos na Delega.

Um tira diz “baianinho viado” e passa a mão na bunda do sujeito.

-Peraí, também não esculhamba - adverte o delega -, mas precisava emparedá-la, porra?
-Dotô, se não cimentasse, ela saía de qualquer canto e não me deixava em paz.
-Como você teve essa idéia, caralho?
-Dotô, as idéias vêm de um canto esquisito, um buraco aqui atrás da cabeça que não
tem e nunca terá reboco...
-Fala, porra!!!
(...)
-Mas era tua mulher, idiota!

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-Era minha mulher... Sabe o João-de-barro, um...


-Pássaro?
-Carecia emparedá-la?
-A idéia veio da infância, o lugar esquisito, avoando com as asas da desgraça como um
urubu maldito que avoa alto...
-O que tem a ver o pássaro?
-O João-de-barro quando está doente de ciúme empareda a sua mulher em um dos
quartos daquela casa de argila que ele mesmo constrói no bico.

-Agora, além de viado está se confessando corno?


-Não, dotô, fiz antes que acontecesse... Minha mulher não tinha fastio hora nenhuma,
não tinha homem que desse conta.
(...)
Os tiras rasgavam as fartas, sangrentas e pré-históricas bistecas do restaurante Sujinho,
bairrio de la Consolación, e narravam essa história que acabavam de testemunhar numa Delega
da ZL, Zona Leste, em pleno ataque dos gângsteres.

Cap. XXVII - Donde os mortos vagam em busca dos seus espíritos dubladores

Ela diz algo no ouvido esquerdo do cavaleiro solitário e segue antes mesmo que a
última sílaba quente derreta a cera dos adiamentos amorosos, talvez seja ela, a moça sem nome
da cumeeira, com muitas goteiras, dessa história toda.
O desejo do cavaleiro, preso e envelhecido, acaba de ser destilado nos alambiques
particulares das idéias inatas. Lá onde se escondem da luz os morcegos, de ponta-cabeça nas
ripas e caibros do sótão, criaturas que geram ratos e recalques que fazem cair nossos cabelos e
fichas do insconsciente como “D´ont be cruel”, música do Elvis, cai desavisada de tudo numa
juke box, plaft, da Rua Augusta, cabarezito del Rapariguero Preguiçoso, también conhecido
como La Galeguita das Flores Fatales, neste exato momento.

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Como uma agulha suja cai lentamente sobre um vinil de Billie Holliday ou sobre o
pássaro preto de Nina Simone.
Suefre, desalmado, quem mandou ser gente! Se foste ator estaria a salvo.
Porque sempre é melhor ser ator do que ser gente, negociações de possíveis falsidades.

Deixem las ilusiones na chapelaria, senhoras e senhores, kabrones, pelo menos esta
noite: não se trata da pobre superstição do amor à primeira vista.
Se fosse assim, seria fácil, facílimo, mas fácil que empurrar bêbado em ladeira.
Não era apenas um desejo, suponho, tratava-se de uma resina lenta que ia
derretendo como o choro do tronco de uma árvore que teima, depois de morta, em
assombrar a floresta escura.
Esperanza disse um verso, tinha um ritmo, e sumiu como um lento e compassado
inferno sobre botas.

“Hell on hells”, me sugere aqui o gringo viejo da área que nos deixa tonto de
trocadilhos babélicos por minuto. La globalización”, repete o puto, “la globalización...”
“La globalizacíon de cu és ruela”, relincha ao longe o velho Chivas.

Conheceria esse verso, o que Esperanza acaba de soprar nos ouvidos dos homens da
noite, de algum tardio flash back, aquele ácido com o sorriso de Mao Tsé-Tung que
imperava na cidade São Paulo dos anos 1990.

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Não, creio que seja apenas um dos meus tantos zumbidos, os mesmos que perseguem
o cavaleiro na noite de inverno, vozes dos mortos em busca de novos dubladores.

Cap. XXVIII - Da Penélope que tece o interminável manto e nada espera

A primeira vez que vi Esperanza foi no Parque da Luz, belo bosque, nos meus
primeiros dias de pré-cavaleiro neste pueblo também denominado, nas internas, el desierto
final de Carençolândia do Oeste & seus labirínticos arredores de vales assombrados,
anhangabaús, tamanduateís, pirajussaras, córregos de desejos represados, tietês y sus piratas
laertísticos de responsa, estradas de lágrimas e sorrisos sem gatos aliciosos.
Ela chorava ao lusco-fusco, de amor, banzo ou ambos, depois de mais uma jornada em
um subsolo do bairro do Bom Retiro, rovem entregue ao trabalho-escravo em uma oficina de
costura daquele sítio.
Esperanza, que se faça justiça com as suas lágrimas, não se achava sob jugo de
escravidão alguma:

“...”,
Foi tudo que soluçou numa entrevista meio forçada pela vereança aos jornais, na
ocasião fora ouvida e nada disse e nada mais foi perguntado na Comissão Parlamentar de
Inquérito que investigava o tema na cidade de San Pablo.
“...”.
Da sua boca não choviam bandeirosas aspas, apenas as reticências capazes de, pontinho
a pontinho, levar-lhe de volta, dormente a dormente, para seu pueblo de origem em
Cochabamba ou numa selva alhures.
Em certas noites ela tinha essa vontade, espalhar suas reticências ao largo dos trilhos
do trem da morte.
Se também suas lágrimas represadas, voltaria fácil, Esperanza crê que hay llorado pelo
menos duas bacias amazônicas.

Tempos depois este cavaleiro saberia, pela bocarra indiscreta do biógrafo, que se tratava
de uma dessas Penélopes que tecem o interminável manto da inadaptação e da estranheza.
Nada querem ou esperam dos mares, nem mesmo o rateio final do nunca dantes.

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Não havia nada lá, por supuesto, ou lá já era o rio de outros banhos.
Não havia nada lá, mas isso não significava que não houvesse espera capaz de roer
até fazer pó dos cotovelos cor de cinza sobre a janela nostálgica e ventaniosa da Polaroid
do nunca mais.

Uma Penélope que, ao contrário de todas aquelas Penélopes charmosas ou caricatas,


cagou para os seus Ulysses que se demoram sobre as buenas ondas ou a emborrachar-se nas
esquinas de la calle, porque todos los Ulysses son uns malas que se demoram como uns
machões de mierda que deixam las fêmeas a esperá-los e nem as sereias comem, brochas, só
fazem um suspense da puerra, mesmo os que não viajam, mesmo os que nunca saíram ali do
pé-sujo da esquina.
“Mitologia de cullo és ruella”, relincha o pangaré ao longe, agora retomando o lerrítimo
portunhol das selvas enquanto as caieiras possíveis queimam os tijolos, los tirruelos batidos
dos seus sonhos ao rés da lama.

O cavaleiro oferece ajuda e toca no rosto de Esperanza:


”Por que choras?”

Ela mira como uma desconfiada guarany boliviana da região de Chaco, de lá viera ainda
de colo, apenas com a mãe, para esta Babilônia, em busca do ouro da estrangeirice mais
próspera, pero quando o trem parou em Santa Cruz de la Sierra... suas lágrimas já tinham gosto
de tempestade de granizo.
El Caballero monta em su pangaré e segue, desperado, como se estivesse saído da
carcaça e apenas se importasse com a sombra magra delirante nas pradarias nocturnas
deste pueblo.
Sua alma tinha dono e isso, de alguma forma, era o seu batismo em San Pablo.
“Ainda mais nesta hora fatídica em que enfrentamos um certo buraco psíquico por causa
do desmantelamento das ideologias em suposta ruína”, dizia ao cavaleiro o xamã da vizinhança,
um amigo sempre a caminho dos jardins que se bifurcam, don Alltunes de la Augusta.

Cavalgava rumo ao condado de la Consolación e o vento gelado nas orejas queria dizer
coisas, fragmentos que chegavam mais cortados ainda, como num sinal falho de aparelho
eletrônico, como um DJ virtuoso no scratch sobre vinis de legítima carnaúba, palmeira-mor
dos trópicos que rebola horrores ao simples vento:

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“Uma noite...”
“Uma noite... sen...”
“Uma noite...”
“Uma noite, sentei a...”
“Uma noite, sentei a Beee
lezaaaaaaa...”
“Uma
Uma noite, sentei a Beleza nos nos nos
meus...”
“Uma noite... sen... sen... sentei...
“Uma noite...”
“Uma noite, sentei a beleza nos meus...”
“Uma noite, sentei a beleza nos meus joelhos.”(18)

(18) O cavaleiro acreditava ser um sample livremente inspirado na vida e obra de Arthur Rimbaud (1854-1891)

Da mesma forma acabo de ouvir o verso que ela grudou com os lábios, gloss-urucum do
desespero avulso da floresta perdida, na passagem da calçada, ouvido esquerdo, o que sempre
deixo para o lado de la calle esperando mesmo ouvir a voz dos possíveis mal-assombros.
“A cidade tosse como um índio com febre” ou quase isso, talvez apenas um barulho de
boca nervosa ou efeito de uma espinha de peixe que lhe atravessa a garganta desde a infância na
selva como uma agulha desavisada e suja sobre um vinil de blues ou uma chica perdida no bar
de Las Amistosas a gritar em alto e bom sonido “non hay banda, non hay banda, non hay banda...”
“O blues se toca por si só, chica caliente, como nas canciones del viento”, diz el viejo
Charles Bronson, el bigode que llora, el proprietário, também conhecido como don Libanio.

Teu avô, meu anjo, mi hija, contava que passou uns dez anos ouvindo, todas as noites,
um mesmo estribilho misterioso, que el viejo não sabia mais se era zumbido na mente do
deserto sertanejo do vale do Kariri ou essas coisitas sem importância que dizem haver entre o
céu e a terra.
O vento chegava às suas oiças, nos idos dos anos 1970, todas as noites, como se
antecipasse os scratchs comuns aos DJs de hoje:
“Fi-fi-fi-fica-com-com-comigo-essa-noite...
E-e... não-naum-te-te-arre-pen-pen-de-de-rásss...”
Somente à beira da morte, já nos seus 90, teu abuello, depois de percorrer todo o deserto
do semi-árido à sua volta, percorrer mil e uma noches dos arredores, desvendou o mistério.
“Lá-la-lá... fo-fo-fora o frio é-é um-um açoi-te-te... Calor aqui tu-tu te-rás”.
Tratava-se de um pedaço de um vinil de um cantante brasileiro de nome Nelson
Gonçalves sob caprichoso espinho de mandacaru, um cactus nordestino por excelência, que
funcionava como agulha de vitrola perdida na caatinga.

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Conforme o vento vinha, o naco de vinil girava e a agulha do cactus reproduzia el


sonido possível naquela faixa.
Repetidas noites de vento.
Principalmente no mês de agosto, quando os sertões do meu mundo vivem as mais
assombradas das noites, um ventão medonho dos desertos de dentro, perros a lamber nuestros
fígados sob a lua nueva dos ditos loucos.
Era sempre o mês cruel para Maria de la Encarnación, também da nuestra mesma
família gigante, uma tia trancada num quarto escuro, sob a pecha de louca, acorrentada, los
ninõs buenuelitos da área lhe atiravam pedras e gritavam loas malditas a todos os pulmones. Eu
chorava os agostos e roía as pitombas da angústia e da pouca carne da existenciazinha toda
fiapo e sobejo.
Na ocasião da mais cheia das luas, Encarnación rompeu las corrientes e pulou para todo
o siempre nas águas de um açude que sangrava as bagaceiras do mundo todo.
Habia sido casada com um caixeiro viajante, um galego com origem árabe que percorria
os sertões daquela época, e antes de afogar-se por completa, hay gritado algo así que ainda hoje
ecoa naquele vale dos Kariris e é reprisado até pelas pedras quando se batem umas nas outras:
“Non hay memoria a quien el tiempo no acabe, ni dolor que muerte no le consuma.”

Cap. XXIX - Do amor encoberto por nuvens baixas e escuras

Teria visto Esperanza outras vezes, sobretudo nas bundas que se multiplicam nos
espelhos da boate Love Story.
O objeto de desejo, quando encoberto por nuvens baixas e escuras, que nos fazem
lembrar o algodão doce azulado da infância dos dias em que o mascate fraquejava no ponto do
azul claro, se multiplica feito praga bíblica e vaga pelas cidades e pelos campos derredores
tomando como máscara o rosto de todas as fêmeas e também as nuvens mais baixas a nos
embaçar los ojos e la pobrezita de la conciênscia que sempre foi pouca.
Havia visto, ao longe, na Praça Kantuta, no bairro do Canindé, San Pablo, desta
vez sorrindo, saltenha e cerveza com o nobio, carajo, mierda, que inveja, na feira
boliviana dos domingos.
Naquele mesmo dia enchi a cara na barraca de Berta Valdés, cerveja, aguardiente,
espetinhos de coração de boi com amendoim apimentado, de dor amorosa estoy farto,
ancho, que venga o vômito.
Careço devolver ao esgoto as dores que só um esgoto é capaz de escutar.
San Pablo tossia como um índio com febre quando Esperanza cruzou de novo a linha
da vida da palma da mão esquerda deste cavaleiro na cartografia mais nervosa, el sub-bairro da
luz vermelha.
Ela agora trafega, menina perdida na selva, na palma da minha mão direita:

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“Posso tocá-la como o king-kong no alto do prédio do Banespa, el edifício mais


alto da ciudad?”

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Se for tocada quem acorda primeiro:


Ela ou este Caballero?

...Ainda é cedo, talvez nunca.


Suas botas fazem cócegas numa vicinal, uma estrada perdida de terra da minha mão
izquierda, apenas um desvio para evitar o pedágio da highway da vida, mais uma vereda, ela
agora pega rumo ao norte, rumo ao pulso, ai mi corazón que não entende os ralis amorosos, os
Paris-Dakar da existência, os ralis dos Sertões mentais, as buscas com poeira nos olhos a
grudar na remela dos olhos do cavalo, a cegueira de quem parte atrás de um outro como se o
outro existisse, pelo menos enquanto pontilhão ou pinguela de um metafísico faroeste do tédio,
procura-se.
No que vemos a ponte implodir ao longe, dinamitada pelos cantis de sabotagem da
cobardia amorosa que carregamos no coldre junto com as armas para matar bandoleiros.

Cap. XXX - De como Esperanza perdeu as graças de latinoaméricas

O Chile, pelo que se sabe, tomou o litoral da Bolívia, depois da Guerra do


Pacífico, em 1879.
No que Esperanza, longe de ser nascida, já sentia o golpe e voltava para os seus desertos
de vastidões interiores.
O mar, no entanto, sempre esteve presente nos sonhos de Esperanza.
Suas lágrimas também são salgadas.
Devolvam a janela de Esperanza para el mar, señores.
Cap. XXXI - Do Poeta-Hippie-Punk-Rajneesh

“A cidade lateja nos pulmões a efizema do inevitável”. O Poeta-Hippie-Punk-Rajneesh


dá uma baforada e solta essa, solene como um bardo.
El caballero gosta do verso e pensa em roubá-lo: “Bato sempre a carteira lírica
desses vagabundos.”
Seu biógrafo, porém, saca primeiro:
“Quando sei que é bom mesmo, morro com um drinque, um maço de cigarro, uma
carreira montanhosa de caspa do capeta, nevada, algumas partidas de sinuca ou crédito na lan-
house da área, algo que comove um viciado em qualquer coisa”.

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As vozes da noite não têm dono, infinito fabulário.

Se acredito no destino?, me pergunta uma destas assombrações aqui da Rua Augusta,


nuestro Red Light District, que bafejam na nuca de todos interrogações ou sentenças hediondas.
Caguei pro destino.
“E em Shakespeare, pões alguma ficha?”, indaga outro comédia, um sebista de rua
como no meu passado, “ou cagaste pra ele também?”, me desafia o traste, don Bakunin cagado
e cuspido, que passeia aqui por perto.
O cara sem um dente na boca e pagando de habeas-corpus preventivo de Shakespeare,
essa máquina de fortunas e fábulas, vê se pode?!
Essas assombrações de chinelos devem ser todas reproduções do mesmo velho escriba
don Plínio Marcos, gozando da cara de nós todos, gozando dos idiotas que às vezes flanam
neste pueblo como se estivessem em Paris do século XIX ou, pior ainda, pagando pau de
maldito de araque.

Cap. XXXII - De la incoveniência de haber nascido ou os sóis sobre


os bifões das putas

“Agora paguem, seus feridentos, seus farrapos, seus dorme-sujos, seus baianos, suas
latas de sardinhas ao sol dos trópicos, seus paraybas, seus bolivianos, seus paraguayos, seus
peruanos, seus tronchos, seus ponchos, seus malditos, seus caçadores de pseudo-biografias
para vender filmes inacabados, vender projetos e livros, morte a todos, a todos os perdedores,
de todas as tabernas, porque os perdedores de verdade não se vendem, morte a todos que
cismam à noite com as suas desgraças que se multiplicam como pulgas em sujos lençóis de
pensões e aqueles colchões finos quais lâminas de giletes. Fim aos que usam ponchos, seus

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gauches, cucarachos, seus índios, embolorados, mendigos de olhos baixos e nada altivos,
vendedora de flores letales, putinha do lindo cabaré da Galega... Bem sabes que depois dos 12,
13 já és mulher se estiveres en la calle e sob o olhar bestial dos imbecis dos homens de sempre,
nunca tiveres pai? Bem sabes que depois que botas o dedinho e assombra a mãe, bem sei que
dás no mínimo para o pastor do bairro, para o traficante de la calle, não me enganas, pensas
que vou cair na tua e no truque politicamente correto combinado com a polícia, com a ONG,
com o jornalista que finge proteger-te e só enche de sorriso a gerente e a conta bancária dele
miesmo?... Porque a fêmea já nasce com 30 anos para cima, não existe criança-mulher, a
mulher já nasce balzaquiana, minha mãe me teve aos 14, debaixo de um sol para lá de árabe,
dane-se cigana vagaba de Itapevi, essa Andaluzia deslocada aqui na perifa de San Pablo, que
sempre me diz a mesma coisa, “tem uma chica morena que te ama, mas cuidado com a loira,
fica esperto também com alguém que te odeia na firma”, por que não adivinhas as mierdas de
tu própria erristência sua Carmen fuleira? Como se eu ainda tivesse trabalho depois dos 44,
caguei pro fim do trabalho e dos dias, fodam-se Marx, o corvo de Pasollini e Hesíodo juntos na
mesma tumba, morra velhinha escrota e chantagista de esmolas, você também filho da puta
que me mostra essa costura de uma cirurgia na barriga, marketing da miséria, porra, e diz que
precisa de dinheiro para comprar remédio e comida, pois só te encho a mão suja de moedas
porque sei que é para a cachaça, para o conhaque mais ordinário, para a anestesia possível,
aquele conhaque de gengibre que, na companhia da caspa do capeta, te esquenta o lado ruim
das idéias, ou para a catuaba selvagem do pau duro que vai te obrigar a dormir de valete nas
ruas com outros machos, o cachimbo final de crack, tomara, vagabundos, quem manda terem
vidas passadas de nababos, miseráveis, projenetas, conheço vossa raça, seus refugos, tartarugas
ninjas do esgoto das saúnas, Mister Subsolo, pensas que reina?, faxineiras de porras dessa rua
gosmenta, criaturas imundas, respeitem e chorem pelo menos as mortes dos inocentes policiais
tombados pelos Gângsteres do Sol Quadrado.

(...)

Vontade de atirar esses ladrilhos soltos nesses cafetões e em toda essa raça imunda,
essas putas escravas que ficam acorrentadas nos porões tão logo os néons de la calle apagam,
ai ficam todas sonsas e santinhas, sonsas, até para ver o sol elas pagam uma taxa a Cristo.
Gosto de vê-las no almoço, às cinco, seis, o crepúsculo incidindo sobre a gema dos ovões
estrelados sobre os bifões dos pratos-feitos, os pê-efes dos botecos aqui da área, mesas repletas
dos seus possíveis sóis internos, duvido que sóis elas tenham à vera.
Dores baratas que não me comovem mais, de vós me despeço, amém.”

(...)

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Cap. XXXIII - De uma bala perdida que deseja um refugo humano


na madruga de San Pablo como um demo deseja uma alma

Yo soy una bala perdida envenenada pela pólvora do ressentimento e o chumbo do


fatalismo barato. Yo me multiplico a cada ratatatá, en Colômbia e en Brasil, tanto faz, eu
sou a febre do rato, a epidemia, eu vim para acabar com as assombrações que já estão no
lucro sobre a terra.
Existem refugos que chamam, farejam, pedem, rezam involuntariamente por uma
bala perdida.
Acabar com a vida de um refugo é mais que fazer-lhe um favor, é ser um bálsamo,
riscar o fósforo final e forçar a vela já entre as suas mãos postas e duras de quem acabou de
esticar as botas sete-léguas dos eternos inadaptados, amém, já vai tarde, antes ele do que eu,
que ainda tenho um ego zerinho com trações nas quatro rodas da picape.

Cap. XXXIV - Das Passagens ou Reformar calçadas é enterrar a memória


dos nossos passos

Emputeço, digo, o cavaleiro, quando um alcaide muda os ladrilhos das calçadas, como
acontece neste exato momento do fim da noite em que os operários fazem cara de coitadinhos,
cara de desabrigo, mortos de inveja das meninas da Rua Augusta, que ganham em uma foda
mal-dada de meia hora os copeques que eles só amealham em uma quinzena.
“Pelo menos trabalhando aqui tenho um estoque de punhetas para o ano inteiro”, diz um
crápula, macacão chamativo azul e amarelo com sigla de uma dessas empreiteiras que
superfaturam até poema concreto de Augusto de Campos em São Paulo, “e, quem sabe, uma
loira dessas não me faz uma caridade?!”
Ri, macaco, na evolução da espécie nunca serás um King Kong, no máximo chegarás a
uma Monga no mais fajuto jogo dos espelhos.
“Caridade de cu é rola, te emenda, baiano”, vejo o balãozinho entre a cabeça da
puta e a lua que míngua todos os sonhos proletários e torna inviável até mesmo o capital
de enredos para as punhetas.
“Reformar calçadas é enterrar a memória dos nossos passos errantes, nossas passagens”,
completa na minha oiça esquerda um zumbido, o zumbido número 1, a primeira
antisonata que grudou no tímpano esquerdo quando ouvi o primeiro Frank Zappa. Esse
zumbido, entre os muitos que reverberam na pista do meu cérebro desde os anos 1970, é o que
comenta ou sopra acerca dos acontecimentos dos arredores, um narrador que me desfoca das
teorias obsessivas e dos desejos apodrecidos e pretensiosamente épicos, gracias. É o zumbido
mais reles, o zumbido baixo, que pode seguir qualquer um cavaleiro que flana, como se numa
noite de inverno um doce pangaré paraguayo com um i-pod de rock´n´roll autêntico no ouvido
invocasse o demo ou Iggy Pop.

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Até achei que fosse Don Isaías, que é outra das vozes guardadas na minha cabeça como
abelhas operárias num cortiço apertado de madeira da mais antiga memória de mi abuellito do
sitío das Cobras. Isaías sempre passa por aqui, mendigo altivo que presenteia as moças com
raridades do lixo, que cata os restos dos potinhos de cremes de beleza e dá às mulheres que
vivem ou moram en la calle como ele, que classe esse fodido. Acha restos de Lancômes de
madames e outros remédios modernos para o rosto das mulheres e nesse escambo consegue
dengos quase Ovídios.

Cap. XXXV - De uns misteriosos sulcos de fabulosos pés no cimento novo


da calçada

O Santo Graal dos pés, os pés, solas e dedos, nervuras, os pés cimentados de todas as
buscas da floresta, os pés inteiros naqueles sulcos para um ensaio de obra-prima, litogravura do
acaso e da sorte.
Parecem uns pés em fuga, rapidamente inclinados, unhas perfeitas de manicures baratas,
vincos de muitas histórias pendentes, classe.
Um monumento aos eternos flanadores de ofício, um poema cimentado para todos os
dons juans e seus amores de passagens.
Os céus derramam granizo.
Os sulcos viram duas fôrmas de gelo.

O cavaleiro solitário bebe o mais sentido dos uiscões na vida de um drugstore caubói.
Play again, Johnny Cash:
“Cry, cry, cry...”
Um copo gigante com um pezinho de gelo boiando dentro.
O uiscão acaba e o pezinho esquerdo não derrete.
Mais um, duplo, por supuesto.
Os dedos estão intactos sob aquela luz fluorescente levemente esverdeada.
O terceiro uísque e apenas o esmalte vermelho parece fazer um lento “s” até o
fundo do copo.

Várias putas tiram as suas sandálias transparentes e testam o pé esquerdo no buraco.


Noites sem fim, pé de lótus, uma mestiça vinda do rumo do bairro da Liberdade, cria-se a
lenda, pisou naquele cimento fresco da calçada e hoje aqueles sulcos obram milagres a pampa.
Donde tal mestiça, que havia migrado para o reino do vai-sem-volta na última casa
de ópio do nuestro bairro oriental de San Pablo, mereceu a canonização das ruas como
protetora dos zumbis e vagabundos deste pueblo, como atesta o parecer dos desalmados da
taberna do sr. Knut.

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Miss Soledad era o batismo da mestiça, rainha de karaokês e sinucas perdidas, musa dos
subsolos possíveis neste mundo tão-somente de rasos e ranhuras, tocava de ouvido la canción
desperada de todos os que vagam em busca de um sentido para este faroeste sem don Sergio
Leone como guia-mor dos amores achados, balas perdidas e da poeira do deserto que cospem
las chicas nervosas.
Miss Soledad sempre deu um nó cego no cabeçote deste biógrafo oficial de las
assombraciones de la noche.
Miss Soledad era uma típica bipolar apaixonante, mucho mais que isso, capaz de dar
um nó em Nieztsche e ainda bailar um drum´m´bass - a trilha sonora daquele tempo, os 1990,
o tempo em que nos conhecemos - como nenhuma outra fêmea daquela espécie.
Vezes beijo,
Vezes coice...

Cap. XXXVI - Donde a litogravura dos pés na calçada vira templo


de romaria da cidade

Não demorou sequer duas luas cheias para que o local daqueles sulcos se transformasse
em um sítio de romaria e milagres.
A mulher que conseguisse encaixar os seus pezinhos à imagem e semelhança estava
feita para o resto da vida. Seria capaz de ver todos os homens e também todas as mulheres, se
assim desejasse, aos seus pés.
Os mais empedernidos cavaleiros dominados pela cartilha de don Juan não passariam de
mansos cornos periquitosos ao inteiro dispor. Os mais sonhadores se transformariam nos mais
práticos trocadores de lâmpadas e chuveiros do oeste. Os mais entediados acordariam solícitos
e bobos a dizerem diminutivos idiotas com queijos saudáveis e derretidos nos próximos cafés
da manhã.
Periquitosos corazones chilreadores...

Cap. XXXVII - Do redemoinho de mantras, Esperanza


Buenas noche, Esperanza, ela seguiu, um redemoinho de mantras nos ouvidos dos
vagabundos e dos cavaleiros delirantes, como se tirasse a sorte de todos nós enquanto soprava
um verso para cada homem sob o sereno de la calle. Ela sabia, onde estivesse a essa altura, que
o grande segredo da humanidade continua e continuava sendo solamente este:
O abafado chá de sumiço.

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“A cidade tosse como um índio com febre”, ela disse, língua trôpega a obnubilar-me,
mal um beijo, partiu-se, um cheiro de cocaína vagabunda nas narinas, raspa de parede, longe
de ser o pó mais bíblico que sai da sua Bolívia querida, os cabelos cheirando a maconha das
beiradas do Rio São Francisco, alma comovente por flores e erros, pele riscada à faca e agulhas
de costura das fabriquetas coreanas do bairro do Bom Retiro.
“Eu preciso cortar os cabelos da minha alma”, disse mais adiante para um rapaz
xamânico de mesma calle.
Feras enfeitavam-lhe as sobrancelhas.
Os olhos obedeciam ao corte clássico que nos faz pensar que os orientais deram mesmo
origem às tribos sul-americanas. Nada me faz cair nas modernas teorias, fico com a tese do
estreito de Beiring, embora sempre tenha coisa nova sobre tal assunto, ah..., mas os olhos não
negam, o corte, o desenho, que classe, parecem assim uma pincelada de um surrealista ou
propriamente o corte da navalha do cão andaluz. No olho, lâmina que corta o rio das
lágrimas como quem inventa o caminho sobre o Mar Vermelho.

Quando montei no cavalo, Parque da Luz, avistei Esperanza, já ao longe, era uma onça
que saltava sobre os veículos até chegar à toca, capôs amassados pelos joelhos da beleza.

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Cap. XXXVIII - Donde o cavalo do supuesto cavaleiro anda emparelhado


ao fusca de Mr. Abelha

Só os cavaleiros que perdem diariamente desconhecem o fracasso, meu anjo, vamos a la


luna domingo? Só os cavaleiros que cospem os dentes fora como boxeurs derrotados e seguem,
seguem nos seus faroestes particulares, os saloons obscuros que cada hombre esconde do outro
hombre, os sótãos onde as ratazanas, os inimigos e as mulheres fazem a festa sobre os farelos
das nossas fraquezas.
Foi o que pensei, assombrado, quando deslizei o copo sobre o balcão de fórmica
vermelho imitando o Johnny Guittar, um western no qual as mulheres mandam, aquela fêmea
num poder sobre todos os machos recebe os inimigos tocando piano, que classe, que belo
vestido, senhores.
Desço a Avenida Rebouças, não, acho que a Cardeal Arcoverde, pueblo de San Pablo,
deserto de uma noite fatídica, emparelho meu cavalo ao fusca azul de Mr. Abelha, ouvindo Abba
Zabba, música 8 de uma fita cassete do Captain Beefheart, os mortos ali das cercanias, os mortos
setentões, digo, riram das nossas caras nervosas, como tem cemitérios nas nuestras vistas.
Uma faixa amarela anunciava promoções de túmulos num dos campos dos mortos, não
no cemitério de luxo, o do Senhor Redenctor, decente, por supuesto, limpo, suaves prestações,
morte a crédito, varejões que nos esperam além, muito além da marmota física.
Vamos nessa, don Zangóvsky?
Com seu sotaque Mooca-roots Mr. Abelha disse: “tô fora”, benzeu-se.
“Vamos a um baile de bacanas, champa, canapés e belas buças”, disse ele, “não para o
nosso bico”, completou o chapa. “Ah, danem-se, que guardem para os vermes burgueses de
outros cemitérios e catacumbas.”

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Cap. XXXIX - No que Chivas relincha seus batidos mantras noite alta:

Quando a vida dói,


drinque caubói.

Cap. XL - Da ilusão do pangaré que se diverte com guapíssima égua

Não fosse uma cena que o deixou entre a pasmaceira e o alumbramento, o cavaleiro
continuaria iludido que havia recuperado o seu Chivas-panga.
Donde o verdadeiro e legítimo Chivas com o seu potentoso membro, a sombra do
membro fazia cinema em preto e branco no prédio vizinho e este era o ângulo pelo qual este
biógrafo de almas sebosas o avistara, penetrava de forma selvagem, na égua militar por
quem arriaria as quatro patas civis.
O membro priápico atravessava uns dois, três edifícios com a sua sombra.
As cortinas se balançavam todas nos arredores.
Mal-assombroooooooo.
Aquela pica gigante era capaz de preencher o buraco do metrô da Sé, o jardim dos
caminhos que se bifurcam neste pueblo de Careçolândia do Oeste Perdido y outros Serafins
y Tamanduateís.
A égua remexia as ancas como quem dançava um imponente e dramático flamenco
saído das miraculosas cordas vocales de Camarón de la Isla.
Agora a mais safada e fuleira das cúmbias.
Agora de novo mais lento, uma guarânia com a pica ritmada qual a noite morna do
lago azul de Yparacai, a derramar o caudaloso gozo de todas las galáxias.
Agora Chivas sussurrava ao ouvido da égua:

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“Tenta desenhar um oito com o rabo na vara”.

Cap. XLI - Donde um dublê de Moisés surfava sobre as ondas gigantes da


Barra Funda
Quando o cavaleiro solitário dizia “não está batendo”, confesso, eu saía de perto,
distanciamento de um razoável biógrafo.
Daí vinha merda, a mesma boa merda que dá os férteis estrumes de onde emergem os
mais nobres cogumelos dos currais da bida.
Era a senha.
“Não está batendo”.
Como a da maioria dos desalmados deste pueblo.
“Não está batendo...”
Donde vemos a criatura surfando sobre uma chuvinha de nada na Barra Funda, bairro
deste pueblo, a dizer, melhor, a berrar:
“Eu sou o Moiséssss”.
“Eu sou o Moisés da Barra Funda!!!”
Tudo bem que tinha ouvido uma banda uruguaya tocando um punk-rock tenro como uma
perna dianteira de carneiro sem molhinhos aviadados, ali numa moderna taberna das cercanias,
Casa Belfiori, ouvira uma banda de los niños de infâncias difíceis, los olvidados, por supuesto.
Para um hombre com fome de viver, aquele concierto saiu como uma frase de don Juan
Carlos Onetti no baço.
“Eu sou o Moisés...”
Crente que caminhava sobre as águas que mal encobriam os paralelepípedos.
Jogou las alpercatas de Lampião no infierno e berrou mais outra vez:
“Yo soy Moisés da Barra Fundaaaaaaaa”.
Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante.
Este biógrafo, de forma muy irresponsable, tomara um ácido ou uma dessas pastilhas
modernas - não havia encontrado mesmo, por impossibilidades espirituais, com o cavaleiro
delirante dos agripínicos quintales e meias-águas telhas depois.
El biógrafo não puede ter intimidades do gênero, vivemos o tempo do não-
envolvimento, por supuesto, los tempos friacos.
Tempos de imparcialidades supremas.
Tempos de isopor, meninos.
El biógrafo és un ser neutro, não está mais aqui quem estava coxixando opiniones,
hablando, ainda bem que las testemunhas tambíem estabam a cantar “você está pensando que
soy loki, bicho?” aquela do Arnaldo Baptista - vide los Mutantes.
Don Melqui de la Vila Roaniza tirava abelhas da moita black power... Sua distinta dama

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londrinense, Miss P., queria pescar pessoas nos afundados mares, “na segunda pessoa do
plural”, ela dizia, “anzóis a laser, please.”
Miss Cara de Formiga, guapíssima, Diós, ria disso tudo e navegava sobre los chinelos
do vagabundo em manobras mais terríveis ainda, la sofista prateada, por supuesto.
Acontece que o biógrafo és um ser neutro, um narrador tão gelado quanto o coração de
um urso de pelúcia das nuestras inventadas Sibérias particularíssimas, aqueles ursos amados
pelas putanas de la calle do infierno do centro desta e de otras Careçolândias perdidas de lo
miesmo oeste.
Um homem que conta jamais pode sequer embriagar-se com o seu material de estudo,
refletia o biógrafo-borracho.
Tiene que ser austero, neutro, idiota e metafísico como um gato, frio, jornalístico,
por supuesto, choramingava o demo, com las manos e la lengua amarrada para los
pensamientos aliteratosos.
Sabe aquela dupla caipiro-sartreana O Ser e o Nada? Assim tiene que ser, asi era el
Caballero e el diablo.
E apagamos todos, para suerte del biógrafo-detetive, todos caíram desmemoriados,
por supuesto.
Non hay banda...
No habia nada!!!

“Vocês pensam que estão nos anos 1970, amigos fuleiros?” Chivas relincha ao longe
vestido com os seus mantos coloridos.
Chivas é pangaré mas tambiém siente saudade nas quatro patas infernales multiplicadas
como emboás gigantes.
Há quanto tempo não ficamos juntos reunidos numa pessoa só?, alguém levanta o braço
e diz, sobacos já desprovidos de outros pêlos, acorda, menina, ri Arnaldo Baptista, denuevo,“eu
vou voltar pra Cantareiraaaaaa...”.

Onda.

Moisés da Barra Funda, sim, ele ainda surfava sobre as águas sujas del pueblo, las águas
que desaguariam, dali a pouco, sobre os ratos dos tietês y tamanduateís...

“Não está batendo nada”, dizia o cavaleiro.


Como escrever a biografia da criatura, pensava o biógrafo, que, sabe-se lá, fora
enganado pelo entrevistado e engolira mais pastilhas coloridas ainda para a fuga inventada.

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Cap. XLII - De un muambeiro corazón em branco e preto ou


Jim Jarmusch na direção de nuestras bidas de sueños não-tributáveis

“Pai, ou o que quer que sejas, não sei mais se estás por perto ou sobre as águas, mas o
que tu achas de saxofone no rock´n´roll?”, perguntou la niña Viridiana, agora de volta no meu
sueño em um hotelzinho barato da Tríplice Fronteira, para onde levei apenas o sonhado e
jamais o vivido, Foz do Iguazu, por supuesto compromisso de cambiar sonhos por vícios ou o
contrário, dane-me por supuesto.
“Pai, não morra tão cedo como o titio Mark Sandman!”
Donde tiraste esta idéia, creeeeeeeeeeeeeeeeeeannnnnça?, acabei de comprar um nuevo
corazón en Ciudad del Este/Taiwan, un corazón a válvulas, como os das antigas tevês em preto
& branco, minha filha, pode obscurecer, obnubilar-se, enfim, fuder-se a qualquer hora.
“Medo, pai..., essas coisas”.
Medo é coisa de velho, mi hija, vamos a bailar que hoje mais uma vez tu padre
renasceu, antes dos gametas cósmicos se dissiparem no lilás veadoso do lusco-fusco.
Hija, el passado das vávulas, do tempo em que dr. Smith procurava o seu espacio, ô dor,
ô dor, larairará...

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PARTE III - Donde a vida era como se um grande pintor tivesse mergulhado
seu pincel na escuridão do terremoto e do eclipse

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Cap. I - Do observatório dos roedores

Cansado de tantas abstrações noturnas, este biógrafo voltou para a sua diversão zen
predileta: observar tranqüilamente os ratos gigantes da beira do Tietê, o rio desta aldeia que
ali escoa suas horas perdidas.
Ele cataloga os ratos, os gabirus, as ratazanas que põem as oiças a escutar o
gemido do progresso que range nas margens sobre caminhões e caminhoneiros que
também são rios-correntes de histórias podres sobre muitas rodas levadas adiante até
donde ninguém sabe mais da vista.
Chegou o desalmado biógrafo a liderar um grupo, prefiro chamá-lo de seita, donde
chicas y kabrones ficavam horas a mirar os ratos, a fotografá-los, a espiá-los num
voyeurismo venenoso, os gestos, os dramas, a vertigem...

Cap. II - Do punheteiro com Alzheimer e/ou Ninguém morre de amor


nos trópicos, de nuevo

Derramei uma para o santo, o cavaleiro disse outro dos seus mantras: NINGUÉM
MORRE DE AMOR NOS TRÓPICOS. Sim, agora o cavaleiro, em voz alta, diante do sorriso
enferrujado de compaixão de algumas vacas que já não vêem el caballero solitário sob poeira
nocturna das mesmas pradarias onde reinou quando tinha las platas, graças aos golpes de
contrabandista de cigarros de Ciudad del Este, crimes primários enquanto adormecia sob o
espírito de terrorista adormercido.
O cavaleiro Fodasno já tentou de tudo, inclusive mudou o seu nome sete vezes, como
os dias da semana: lunes, martes, miércoles...
Pena que não se recorda do último batismo.
Donde tem que carregar a pantagruélica sina fodástica y fodesnosa.
Foi também, este mais ou menos ilustre cavaleiro, um velhaco sebista que aplicava golpes
em lindas viúvas que não tinham menor noção do valor de suas caras bibliotecas enlutadas.
Um minuto de silêncio para uma negra viúva capaz de fazer das coroas de flores os
bosques mais animados do planeta selvagem.

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Nunca pergunte “o que fazes, cavaleiro?”


Mas por que essa confusão justo no velório?
Tem gente que é capaz de indagar sobre isso até mesmo diante dos olhos de um defunto
atacado pelas traças dos seus preciosos livros e gorgonzolas verminosos no juízo.
Fodasno pouco sabe de queijos e vermes. Coitado de Fodasno, que nem nome tem e
muito menos procura batistérios perdidos na selva.
Fodasno já fez e faz de tudo, costura para fora, homem de encomendas, mortes a
crédito, señor de patrones muchos, valas comuns para onde iremos todos, mesmo as peles
tratadas com os mejores cremes que também serão carcomidas verminosamente, com ou sem
terra sobre os olhos, muito além do vidro do paletó de madeira.
Si, podemos também ser lindamente moídos como as pimentas-do-reino que despertaram
os navegantes para o Caminho das Índias perdidas que deram nas latinoaméricas de sangue
quentíssimo, moídos, cremados, jogados aos mares ou cheirados como a caspa do capeta pelos
nuestros próprios parentes viciados nas indigestas das gentes capazes das artes peixeirais.

Fodasno inclusive já cravou a sua espada na maioria dos desavisados que lhe fazem essa
pergunta incoveniente nos tempos de refugos:
“De preferência uma rápida estocada no sovaco”, confessa o cavaleiro.
“Para morrer sorrindo, por supuesto, é justo, justíssimo”.
Mas eis que numa noite fria de fogueira e cachaça, numa madruga em que tocaram
fogo em mendigos também sem nome, Fodasno, nome de fantasia outorgado por este don
Augusto Sombra que lhes conta a mierda finale, missão de todo biógrafo, recuerda mais
ou menos seu batismo e vaga história.
Porras...
Assim foi voltando a memória perdida.
Seu nome era Raúl Porras Barrenechea.
Será mesmo?
O cavaleiro blefa.

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O velhaco sebista do qual tratamos anteriormente não era assim tão expert, mas tinha a
manha da pesquisa, igual um pescador que descobre, pelo cheiro, o valor do peixe grande, mas
juro que o cavaleiro trocaria aquelas obras pelas bucetas enlutadas todinhas. A perversão do
cavaleiro era vê-las, ainda em vestes negras, fodam-se todas as capas duras e os manuscritos
raros do Mar Morto, adiós Alexandrias perdidas. Se os tesouros estão no fundo dos oceanos,
eu estou ao rés do chão babilônico de las buças de la calle.

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Pena que a síndrome de Korsakov desligara o cavaleiro do seu centro nervoso do desejo,
o cavaleiro, podemos dizer assim, tinha um certo Alzheimer punhetístico.
Uma vez, quase cometera o suicídio por não se recordar de umas coxas magníficas que
acabara de ver na esquina, donde suas masturbaciones eram verdadeiras torturas, papéis
avulsos, fragmentos, partes pelo todo, quando lembrava do rosto não lembrava do pescoço para
baixo e vice-versa, um castigo.
Esquecido por que coxas?
Coxas por que esquecido?

Cap. III - Das mulheres que roubam a memória de outras mujeres

Algumas mujeres aparecem nas nuestras bidas não para comer nuestros ojos, como los
cuervos, pero fazem algo pior ainda: nos levam a memória de todas las outras mulheres,
inclusive das que acabam de passear na nossa frente, num ritual para lá de todos os catimbós e
antologias de ressacas.
“A cidade tosse como um índio com febre.”

Não faço a menor idéia porque e como Esperanza sussurrou justamente aquele verso e
seguiu faceira como quem negocia almas na balança comercial mais favorable de las
maldiciones.

Talvez nunca tenha lido nada na vida, melhor para ela, só há beleza e susto numa certa
cota de treva e ignorância.

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Lá estão, deixa eu limpar meus óculos, lá estão, como é linda, Esperanza, ela, colada ao
poeta Roberto Piva e seu amigo Píer Paolo, esquina do bairro de Santa Cecília, caras de
formigas de tanto doce comerem, doces que precedem quaisquer sobremesas.

Escutas o que diz o poeta, meu anjo:


“Não acredito na dialética, o que existe são oposições irreconciliáveis”.

É o que te digo, menina, só há beleza nos ofícios que não arrotam o ovo podre da bufa
do ego, como na lida de um açougueiro, por exemplo, facão em punho, o corte nada
epistemológico, pernil traseiro ou dianteiro de um cabrito, coxão mole, maminha, picanha,
coração se for possível, chorizo, como nos recomenda o açougueiro don Marcelito Coppola,
tradicionalíssimo homem de carnes da Baixa Calábria doravante instalada em San Pablo.
Cap. IV - No que don Rasteira...

“A cidade tosse como um índio com febre”.


Foi o que disse, pelo menos foi o que ficou dependurado no último fio da baba da
memória naquela madruga, a baba dos que vão sem volta... korsakovinianos no último.
Meu pícaro predileto e fraudulento, meu velho don Rasteira, sempre por perto, soprou:
“não caia nessa, usted tira poesia de onde não deve, uma queda é uma queda, pronto, por que
vês tanto romantismo nestes ninjas, nestes seres sujos, nestes ratos e travecos, ó santo
biógrafo, pelamor de Santo Agostinho!”
“São apenas perdedores babilônicos, refugos, pronto, seu pícaro de mierda, refugos,
vidas desperdiçadas, acampamentos de refugiados urbanos. Levanta-te e anda, meu bom
Lázaro, a vida é como andar pela primeira vez de carrinho de rolimã, de skate ou de
bicicleta”, tirou onda com a minha cara, e ainda fez um discurso contra as escoriações
primárias do amor, como as tais quedas iniciais e cimentosas, sabia que, na buena, residia ai o
meu câncer de estômago, porque todo câncer é de estômago, ali adonde o boxeur do destino
solta seus uppers mortais para nuestras dolores na corda, mas ainda não abra contagem, amor,
estarei de vuelta, nem que seja para o beijo final na lona.

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“NINGUÉM MORRE DE AMOR NOS TRÓPICOS”, grasnou como um corvo


miserável, de nuevo, Lazarilho, como se cagasse de risa a imitar a minha voz no bosque, antes
dos pássaros famintos deceparem a espiga da boca.

Quantas aguardentes por esta frase, don Rasta?, o cavaleiro berrou, nervoso, intimou o
vagaba de quem costumava saquear a diligência sempre lotada de sábios aforismos e boutades
e saía a dizer por aí como se fossem as melhores patentes e lembranças empoeiradas do vento
maldito, a dizer até para hombres, não solamente para hoder mujeres, que és o grande motivo
de la vivência.
“A frase é tua, maconheiro desmemoriado”, ele quis agradar o seu viejo biógrafo de
tantas noches, mesmo assim me levou de lambuja dois comprimidos de anfetamina, um patuá
de haxixe, matou um litro de catuaba selbaje, meu giz de sinuca importado de la máfia -
presente do amigo Don Campos Viejo - e algunas platas no más.

Don Rasteira é uma dessas assombrações permanentes da viagem ao fim da noite


do deserto.
Um desses fodidos de vidas passadas que voltam aos romances vivos das esquinas
cheios de pulgas moralistas no capote, tocam no teu ombro, ditam, não querem nem saber
se os losers, os tronchos, os desajustados de hoje também são dignos ou, no mínimo,
idiotas nostálgicos.
A merda é que são esses perdedores de nascença que viram nosso coro grego.
Quando conheci Don Rasteira, num concierto de um trovador punk-brega dos
charcos gaúchos, doravante conhecido como Pablo, o cara costumava ser menos xarope e
mais infra-realista:
“De que um homem precisa nesse mundo? Talvez uma capa, uma espada e um lenço
vermelho para enxugar as lágrimas, mesmo aquelas lágrimas mais vagabundas, o gol contra do
zagueiro com Alzheimer que cabeceia, de propósito, contra as próprias redes aos 49 do
segundo tempo, a dor-de-corno que não passa com cachaça, bagaceira ou aspirina, uma topada
numa pedra de uma freguesia aparentemente sem obstáculos, aquela pedra que já nasce dentro
do branco do olho, de gesso, gesso, ou aquela pedra fundamental que se adquire no primeiro
porre, a da sabedoria, que vai te ensinar a razão da queda para todo o sempre.”

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Cap. V - Donde conhecemos don Leseira de las Bagas

Testemunha da prosa alheia e filador-mor das drogas legais e ilegais da cidade, don Leseira
de las Bagas disputava com ele, don Rasteira, a atenção das damas da noite e dos demais refugos e
assombrações:
“Si, si, una capa, una espada, justo, pero carecemos de algo más, alguna cosita de nada
para alterar la consciência, desde que não a llamem de droga, non, mais apropriado batizá-la,
mira que vierbo apropriado, batizá-la tão-somente EXCREMENTO DOS DEUSES INCAS,
cogumelo da merda dos bois santos e onomatopéicos dos currais dos Grandes Sertões de
Manuelzão, Diadorins e arredores, chá-de-zabumba dos índios Kariris, cabrobrós-roots-
cigarrets, jurubebas-da-flora-intestinale, salineiras aguardentes e bagaceiras d´além-mares,
cocaine-blues, Johnny Cash y Lirinhas de cordéis Y fuegos tantos, barbitúricos-corazones, Miss
Lexotans, tarjas pretas, florais del diablo, sangre do divino, peyotes-castañedas, viagens sempre
são buenas, pupilas dilatadas, a morfina de Tristessa minha índia mexicana”.
Rimos e morremos com o que tínhamos nos alforjes: uma farinha da quinta dos
infernos, um haxixe incapaz de alterar a consciência de um camundongo viciado e treinado
para cobaia-modelo, umas bagas, uns tarjas pretas de contrabando, um skank de Ciudad del
Este, mi pátria fundamentalista...

Cap. VI - Do ácido chamado Gogol

Agora que minha filha Viridiana descobriu todo mistério, pelas trepidações e falhas
no que eu lhe contava, reforço, confesso:
Um buraco vazio sem nome tinha-se instalado mesmo na parte posterior do cérebro,
como prevenira toda a humanidade o sr. Antonin Artaud ao rabiscar as suas duas cartas
exemplares sobre o vício do ópio, em 15 de setembro do ano da graça de 1947.
Não sabia como contar tudo à minha filha, ente único que sobrou na minha vida de
sobejos improváveis.
Um hombre com síndrome de Korsacov...
Donde só nos resta confabular com os desvãos da memória...
Confabulário...
Tentativas medíocres de tornar verossímeis os buracos da autobiografia...
Memórias para além de alcoólicas, que ainda hoje azulam no horizonte como
Iracema alencarina.

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(...)
Agora me falta, de nuevo, vinho, aguardente, o seu riso triste, o seu riso triste
desconfiando das minhas desventuras, minha menina, como não crês?, se és apenas um anjo e
se te conto histórias de la noche por um simples motivo:

Não me lembro de nada fantasioso que tu padre tenha visto antes do lusco-fusco do fim
do dia deste onzembro, nuestro mês por excelência, onzembro é o mês dos que devem e não
pagam, o mês dos que têm milhagem de sobra no cartão das ilusões perdidas.
Que tédio dominical, hija, sei, você cresceu e tenta, aonde estiver a essa hora, se
confortar ou pular da janela com o breviário de Cioran entre os dentes, calma, quanto tempo,
faz isso não, pequeña, vai ao cinema, já és uma moça, uma mujer que não puedes mais ir a la
luna, já que crescente, já tivemos la luna ao alcance de nuestros falsos sueños pangarés,
lembras, o solzão, caldinhos, brejas, canciones, morrer assim é coisa de francês entediado, hija.
Teu pai bebe em todas as fontes de la madre naturaleza, mais uma vez, toma um ácido
chamado Gogol e tenta contar uma história para que durmas onde quer que estejas, dane-se, é
só esperar e o cavaleiro gigante passará sobre os prédios como no cinema ou nos sonhos de
uma menina.

Sorte que tengo meu belo pangaré azul de nome Chivas que salva alucinados na sarjeta.
Queria te contar algo mais nobre, hija, para ouvires, donde estiveres, como sonata ao
longe, pero, daqui ninguém sai vivo, minha criatura, o máximo que podemos hacer és cambiar
tu nombre, Viridiana, Veridiana, cambiar para Angel ou Candy, titio Iggy Pop ficaria comovido
na sua próxima visita aos trópicos, faríamos lindos retratos, titio Knut lembra tu nombre na
taberna dos perdedores, donde bato três vezes na madeira para que nem passes por perto. Ali é
sítio pra quem, de tanto perder, agüenta as dores do mundo.

Cap. VII - Da ressaca monstruosa que faz rir os mortos do outro lado do
muro do cemitério

Seguramente, depois daquelas noites brancas, o cavaleiro Fodasno estava mais morto do
que todas aquelas criaturas d´outro mundo.
Arrastava a carcaça, suava frio e doía justamente naquele lugar do coração que nunca
vai ser preenchido, como diz um poema do velho Charles, quase com estas mesmas palabras:
“There is a place in the heart that/ will never be filled.”
Esse aí estragou a vida, mas ela, la bida, teima em segui-lo, dizia a voz dum morto
franzino do outro lado do muro da Cardeal Arcoverde, neste pueblo de San Pablo.
A vida gosta das suas piadas e ri dos seus passos. E eles se divertem juntos lambendo o
rés do chão e os pés de lindas almas perras.

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Coitado, demente!
Esse aí dormiu ao lado de uma bela bunda, mas as pernas não encaixaram à
perfeição, como dantes.
Ele notou que ela já não tinha mais aquele sorriso capaz de incendiar de manhã o calendário.

Ela, a bunda ou qualquer parte pelo todo de la mujer, estava chateada, mas sempre é
muito fácil uma mulher ficar chateada, e sempre começa por uma parte dela, por supuesto,
uma omoplata, um cotovelo assassino, um joelho serial-killer...
Uma vez quase fui morto por um ilíaco serial-lover, um ilíaco afiado, pura lâmina,
um ilíaco que saltou da bacia da moça e tentou decepar minhas pernas, no que pulei o
ilíaco como quem pula... cordas... como quem pula... como quem não passa de uma
mortadela que escapa do corte.

A falange, falanginha e a falangeta também são um perigo mortal. O registro de óbitos


deste sítio é farto de casos do gênero.

Cap. VIII - Da resistência a Fernando Pessoa e dos alpistes de la emoción


engaiolada

Um homem não precisa de nada porque la emoción, principalmente a emoção


barata, o persegue desde Caim e Abel, me disse el Caballero Solitário muito antes de
denominar-se Fodasno.
Desde Adão e Eva, quando fomos condenados à la mierda do trabarro e do drama,
insiste lo miesmo, toda emoção é barata.
Resista a Fernando Pessoa e serás um forte, auto-indulgência estoy fuera, agora o
pangaré, el falador, mesmo sem o seu portunhol selvagem afiado, mas decididamente avesso
aos fumos metafísicos dos poetas portugueses, o pangaré desconfia bravamente de Fernando
Pessoa, que diabos, mesmo que o Caballero o ame, carajo, guerra!
Ningum hombre carece de nada além de uns farelos, os mesmos que alimentam um
pombo ou um don Leseira, e de um cantil de tequila ou cachaça.
Resista também aos heterônimos e encha o eu profundo e os outros eus de bagaceira ou
de qualquer droga barata, pica, dedo, vibrador ou chumbo, desde que sejam drogas acima de
45º alcoólicos ou dos 220 volts.
Chega de dar chance ao azar e às sobreposições metafísicas e à auto-indulgência de segunda.

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NINGUÉM MORRE DE AMOR NOS TRISTES TRÓPICOS.

No mais, sempre aparecerá um intruso ou uma intrusa para dar emoção à nossa viagem
até então apaziguada e livre de flechas venenosas.
Play again, Elvis!, exalta o cavaleiro agora nada metafísico.
Guadalajara, Guadalajara, Guadalaraja!
Play again, Elvis, fase México!
Que grand disco, viejo Elvis!
Voltemos a Guadalajara, por supuesto, onde hay começado toda la aventura contra los
erristencialistas franceses e os darks portugas.
Adiós, Sartre, Guadalajara nos espera, adeus Pessoa e seus trezentos heterônimos.
Adiós, Bergman, adiós Antonioni, faz muito sol nos trópicos a essa altura e vocês já se
foram, gracias, vocês já eram.
Vocês, ufa, não acabaram com nuestros corazones incendiados.
Faz sol até dentro do bolso de forma a dissolver o antidepressivo.
Somos solares, por supuesto, relincha o pangaré paraguayo, religare.
Arriba, comancheros!

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Cap. IX - De la dinâmica de la bida

...como se fosse uma quarta-feira cheia de futebol na qual somos os gandulas da


existência, sempre a devolver a bola para que Diós não pare lo juego nunca.

Cap. X - Do desce e sobe com Tex Willer no deserto de Carençolândia

Um gesto em falso e tomamos chumbo, como me ensinou o velho Tex, Tex Willer, de
quem li todos os gibis quando era ascensorista, mamífero inútil dos 25 andares do Edifício
Martinelli, aqui neste mesmo sítio febril de San Pablo de Piratininga, emprego de temporada,
como todos nesta bida.

Cap. XI - Das mulheres e das ruínas possíveis

Miesmo se usted estiver nas cinzas finales, lúmpem do lúmpem, debarro del último de
los minhocones, miesmo asi llogo aparecerá no teu esperro de afeitar, como un retrovissor de la
erristência, assombración, susto!, una murrer das más hermosas, magrinha, só cuero e el
osso como recomenda a etiqueta moderna de las gazelas anoréjicas, com a qual se
amancebarás loucamente debarro de teus derraderos molambos e cobertores Paraybas.
Hable com ella, si?
Que suerte, irás cismar sozinho en la noche.

Ella contará uma história triste e comovente, todo mundo tiene una narrazión deste
calibre em buelsillo del capote furado e sem copeques, si, si, si, usted cairá feito um pateño na
lagoa, afinale de cuentas estás hodido también e nada que una murrer que venga a cambiar los

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aceites, trocar el nuestro óleo, se é que me entiendes, num puessa conquistar, estas puedem,
puedem tudo, rapay, compreendes?
Donde se conclui:
Las mujeres non son interesseras, meu anjo.
Son capazes de levar à ruína non somente los patrones, los milionários, los
herderos, mas también los últimos dos miserables de la calle, o lumpem do lumpem do
lumpem do molambo final do proletariado.
Epidermicamente democráticas, abismo para todos, passa-me el baseado e la
aguardiente envelhecida em barris de cromossomos...
Cabrón, te ligas: Non hay lucha de classes en corazón de las fêmeas.
QUIEN NO JODE BIEN QUE NO MOLESTE!
E dejemos de marear la perdiz.

Até naquela feira das sobras finais dos homens de la calle, ali debaixo do viaduto do
Largo do Glicério, colado na taberna do sr. Knut, onde os zumbis molambentos fazem escambo
das derradeiras pulgas que restaram dos seus corpos sem sangue, passeiam mulheres capazes
de amá-los.
Mujeres y perros magros e pulguentos.
Menos na taberna do sr. Knut, que não permite que elas adentrem o recinto, por supuesto.
Lá, entre as palavras malditas, pelo que me recuerdo... estão, pela ordem de importância:

SAUDADE

FAMÍLIA

PERROS

“Elas são capazes de nos arrancar memórias das nossas piores ruínas e traumas!”,
diz o sr. Knut, mas apenas nas confissões para o seu gato branco.

Cap. XII - De como la mano de Diós és la mano de Maradona

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Viajar é perder lugares, mujeres, coisas, assim como perdemos, mesmo que fiquemos la
bida inteira ao derredor somente dos nuestros quartos e umbigos, a noción de Latino América,
como hay me dicho el pintor de quadros populares da Praça da República, aquele, lembra, meu
anjo, como era mesmo su nombre, colombiano, querido?
Para nosotros, principalmente os mais metidos deste pueblo de San Pablo, os quintais
afetivos son Londres e Nova York, un poco Paris, por supuesto, mesmo que estejamos muito
mais para Cidade do México, linda Assumpción, Bogotá, Pedro Juan Caballero, a Colombia do
compay Efrain Medina Reys.
Por isso me juego, seguro na mano de Diós, que es tan sagrada quanto la mano de
Maradona, aquela del golaço na Copa, o segundo tempo de la Guerra das Malvinas, a
Copa eterna, e bamus. Sim, quem tem culo tiene medo, mas después que la se bão algunas
pregas, las pregas jesuísticas por excelência, vale o latim de missa imposto na tragédia
católica perpetrada nesta selva escura de toda sulamérica:

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ANUS BEBORIUS NULUS PROPIETARIUNS.

Cap. XIII - Das previsões do astrólogo peronista

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Antes de seguirmos viagem, porém, um rápido e alvissareiro informe do meu célebre


Astrólogo Peronista, aqui entre nós brasileños desde o plano econômico Cavallo II, quando
perdeu a clientela do elegante bairro de Flores, Buenos Aires, e foi obrigado a ganhar seus
cobres em outro idioma selvagem.
Donde Cavallo II, la missión, plano cujo batismo advém do ministro homônimo del
solípede portenho, por supuesto, o condenou ao rude portunhol tosqueira, sublíngua que nem
mesmo seus perdigotos entendem, vamos ao supracitado informe alvissareiro do Astrólogo
Peronista, antes de tudo los astros, que estão acima de todos, por supuesto:

“Plutón fue para el espacio, non?, hay perdido su condición de astro, non passa de uno
perro vira-lata que miesmo assi brilha além, mucho além de todas las constelaciones e da sierra
azulada de Iracema. Enquanto isso Vênus adentra tu cassssa do dezerro, anda-lhe, anda-lhe,
anda-lhe, grand fase, cassa de tu carajo, compreendes?”.

Gracias, amigo, tentarei aproveitar neste galope, gracias, gracias, amigo, por existir a
sábia ciência planetária da qual fazes o melhor dos usos e me orienta nas encruzilhadas de mi
pobre bida, quando todos los camiños se bifurcam como uma estación do metrô Sé de San Pablo
às seis de la noche, se bifurcam e me dêrram mais confuso ainda, embaraçado, como hablo?,
embarazado de incertezas, por supuesto, barrigudo de dudas, sospechas, incertidumbres,
indecisiones, vacilaciones de siete mieses...

Cap. XIV - Dos arrepios místicos do cavaleiro da aventura verdadeira

O delírio de ruína perseguia este inominável cavaleiro qual a gigante sombra magra que
o refletia montado no seu orgulhoso caballo panga.
Sob aquela luna minguante do imenso deserto da província de San Pablo de Piratininga,
Fodasno farejava uma mudança de ares, pelo menos para esta noche. Tudo, menos dormir,
chicas e kabrones, deixem as ilusões na chapelaria, apostem suas fichas, o sol cor de gema de
pê-efe de puta mal se pôs nos nuestros horizontes.
Eu sinto coisas, meu anjo, mi hija.
Constatei, igualmente, além do que me segredaram os astros, indícios sobrenaturais, eu
sinto coisas como uma mística miss Mundo venezuelana - como miss e modelo sentem coisas!
-, e entorto meus garfos qual o Padre Brown ou Uri Gueller, meus amigos do outro mundo, nas
suas refeições baratas, a quilo, e com talheres de plástico.

Eu sinto coisas.

O mais são acasos que me fazem gastar à toa os cotovelos de Jó sobre parapeitos de
janelas quase à altura das cumeeiras da própria espera, além dos desejos que viram
destilados mais fortes do que qualquer vodka fuleira.

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Eu sinto coisas, vede como meus pêlos se arrepiam nessa hora, senhores!
Quem sabe uma hermosa barbarella, daquelas que blafesmam contra os homens
maus e outras lendas?
“Os anjos, Barbarella, não têm memória”, diz o safado do ícaro humaníssimo que
avoa com a galega e a morena pelo céu cinesmacope.
Ela se aproxima.
Eu sinto coisas.
Quem sabe?
Que entre uma mestiça como Vênus, que entre uma negra gigante pantagruélica,
chutando a porta do saloon de mi corazón, com suas lindas botas de couro de lagartos
vulcânicos fossilizados na pedra fria da pós-cornitude absoluta.

Cap. XV - De una milonga para um hombre de poucos dentes

Quando entreguei meu hermoso pangaré paraguayo para o flanelinha perneta pastorear,
todo cuidado é pouco, kabrones, este caballo es mi bida sobre quatro patas, el trovador dos
pampas entoava sua “Milonga para um hombre de poucos dentes”. Dei uma olhadinha para
trás, Chivas sorria com aquele seu ímpar focinho de cavalo dado, pero orgulhoso como nunca
dantes, dublando la canción que tocava àquela hora:

“Mordo com vontade a carne que me sobra com os poucos dentes que me restam”.

El trovador punk, el rey do punk-brega, evolui na milonga.


Cisos, molares e caninos que caem e não contamos.
Só os cavaleiros que sabem perder diariamente desconhecem o fracasso.

Por todos los diablos.


IAAH-AAHH! EIAA!

SOBE.

DESCE.

Vinte e duas tequilas e volto como um fantasma claustrofóbico do elevador do Edifício


Martinelli, armado de Tex Willer até as esporas, tiros e mais tiros no centro nervoso de San Pablo.

Impossível fingir-se de cool quando a vida à vera atinge a veia bufante e amorosa
dos nuestros infernos.

Tudo, cavaleiro, menos metáforas nessa hora!

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Cool de cu é rola, diz o eco que vem do Vale do Anhangabaú, como aqueles ventos
antigos dos índios mal-assombrados.
Ali correra o rio do mau espírito, segundo os caboclos, há 500 e tantos anos, antes de
caírem na conversa abaitolada dos jesuítas.
O cavalo, viejo Chivas, relincha e o seu decassílabo entra como um sample numa versão
dos Ramones ora cantada pelo amigo Pablo, vezes conhecido como Wander Wildner, el
cantante dos charcos gaúchos desta taberna camaleônica.

Cap. XVI - Donde finalmente chegamos ao Vale das Serpentes, desculpem


pelo atraso, amigos cavaleiros solitários

O sol se punha, fim de jornada, eu não sabia nunca, no meu tempo automático de
ascensorista do Edifício Martinelli, se estava na cumeeira ou se estava no solo.
Passara mais um dia com Tex Willer em perigosas missões nos desertos e na fronteira
EUA/México.
No Vale das Serpentes, los hombres tiram a poeira da garganta com canecas de tequila,
quebram a tensão com vinho Sangre de Toro e falam sobre alquimia, enquanto entornam
baldes e mais baldes de qualquer coisa líquida.
Em cada caneca, Hermes Trimegistus a escorrer pelos beiços.

SOBE.

DESCE.

Em um livro proibido, colhido pelos vigilantes de la inquisición, está a chave da


história de “A Marca da Serpente”, com o velho Tex Willer, uma das minhas preferidas durante
aquele ofício de apertar botões e fazer falsos amigos.
Um ajudante da biblioteca de um mosteiro foge com o misterioso volume.
Debaixo do braço, o fugitivo carrega nada mais nada menos do que os segredos da
pedra filosofal.
Alquimista amador, o canalha se associa a um grupo de bandoleiros.
Agora passa a viver o sonho de fabricar ouro, seguindo a receita do livro roubado.
Quando o elevador lotava sempre coincidia com a leitura de uma página de assalto de trem.
Ali eu aprendi a velocidade entre um cumprimento aparentemente honesto e uma
bala nas costas.

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Odiava a impossibilidade de solidão, o entra-e-sai, as piadas repetidas, as mulheres


falando que estavam gordas, falando dos carnês de prestações carcomidos pelas traças da
inadimplência, “perdi dois quilos”, da ginástica prometida para a próxima segunda, e o velho
elevador a gemer “perdeu dois quilos porra nenhuma”, falando da yoga das menos pobres, bom
dia, boa tarde, boa noite... O deserto de Tex Willer era a única saída rumo ao solitário sol
poente ou o melancólico lusco-fusco.
Mas como, pensava o cavaleiro nas suas cismarias nocturnas, como a solidão seria
possível se nem em Shane, a fita, o clássico, essa solidão foi viável.

"Um homem tem que ser o que é. Não pode dobrar o destino. Eu tentei. Não funcionou
para mim", diz Shane.
Não adianta mesmo fugir dos desertos internos, em outras secas graciliánicas
desaguaremos.

Cap. XVII - Do forasteiro errante sempre desapontado

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“I´m a Lonely boy


I'm a Lonely boy”, canta ao longe Pablo, o trovador punk-brega.

O filme é sempre o mesmo.


O forasteiro errante é desapontado.
Querem arrancar-lhe o luxo, a estrela e a empáfia da condição de cavaleiro solitário.
Tequila, saloon, bienvenido aos desiertos interiores.
“Oh baby can't you see. Oh baby please like me”.

Cap. XVIII - De como Esperanza sopra novo mantra no ouvido de la calle

“Na escadaria do manicômio iluminado eu ouço o sino com farpas sacudindo a


padraria”. Esperanza sopra de novo no ouvido do cavaleiro delirante, agora um verso de
Gregory Corso, imagina-se, belo vagabundo iluminado, ou apenas mais um sample dos tantos
zumbidos que perseguem um homem livre en la calle.
Querem arrancar-lhe o luxo, a estrela e a empáfia da condição de cavaleiro solitário
como quem arranca a moral de um xerife.
Quando usted menos espera jogam-lhe um uísque coubói sobre o peito, ainda não sobre
os olhos, mas aguarde viejo cavaleiro, a vida é Shane, por supuesto, sempre cowboy, quase
nunca on the rocks.
A vida qual poste demarcado pelos vira-latas do mundo todo, siempre, panga-bida.
A solidão é impossível, o mal até mesmo nas cadeias é a impossibilidade de gozar
sozinho, de mijar sozinho, de cagar só e demoradamente, de cismar sozinho à noite, o mais é
humanamente suportável, menos a falta total de solidão, da punheta mais livre, do pesadelo
abraçado a nuestros próprios infiernos.

Cap. IX - De como nadar no seco e/ou técnica avançada de don Virgílio Piñera

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“Eu digo baby baby baby, você já era


superei, isso eu já sei
baby baby baby você passou...”

El trovador dos charcos pampas entoa uma versão dos Rolling Stones, (by Lady
Aversuck), una canción desperada, para seres desesperados, por supuesto.

Estoy com alguns amigos caballeros, igualmente solitários ou com os seus chips
emocionales falsificados, paraguayos por excelência, rumo ao sol poente.

No que hay mudado las estaciones e lo clima deste sítio e principalmente del riacho del
Anhangabaú, cuja lenda guarda a memória de índios mortos em cheias que ainda hoje
atormentam os alcaides e sua corte meteorológica que prevê ouro e sempre cai mierda e
granizo en sus cabezas.
Solitários juntos, mesmo hombres, eliminam a naturaleza da solidão individual del
facto e del derecho?, Chivas pergunta e ele mesmo responde, enfático, “siiii”, diante de um
faroeste de bolso que eu deixara cair do alforje cujo título me soava meio estranho e
contraditório:
“CABALLEROS SOLITÁRIOS RUMO AO SOL POENTE”, de autoria de una chica,
única no gênero, llamada Evita Uviedo, pelo que recuerdo.
“Se são muitos... como podem ser tão solitários?”, repito para Chivas.
“Cada um carrega o seu deserto cosmológico en cabecita!”, ele relincha, como se tirasse
onda de sábio. “Hoy, por erremplo, escorpión manda en la luna caliente!”

Cap. X - De una chica hablando um virtuoso espanholito da selva

Em homenagem à suada discussão na távola, pedimos uma garrafa de uísque que tivesse
a mesma índole do bravo solípede, sim, Chivas, Chivas Las Vegas, como uma vieja banda de
rock´n´roll da cidade de San Pablo, faz favor, que a água da vida seja falsa como a gente, aqua
vitae, a de sempre, e una chica hablando um virtuoso espanhol da selva nos apareceu
milagrosamente, com sotaque que mais pareceia o de um poeta visceralista, el inventor del
portuñol selvagem, hermosso e inigualable idioma de fronteira, sendo a guapa mais guapa e
interessante nos inigualáveis ditongos e airbags edipianos, adonde qualquer um de nós
dormiríamos para sempre.
A chica nos mirou com los orros mais andaluzes das pradarias nocturnas deste deserto
reservado, pelo menos nesta noche, aos fuertes e destemidos.
“Vai una flor na solapa da miséria?”, hay preguntado.
Paralisei, meu anjo, mi hija.
Cap. X - Dos nuevos tiempos de moinhos acanhados

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“Te juega!”, só ouvi o silvo rápido, “te juega”, quase um mantra, soprado lá dos caninos
tingidos de melopéia e nicotina do amigo Don Pedro A. Caballero, espanhol de Calzada de
Calatrava, cuja boca também rebelava desiertos, Calzada de Calatrava de La Mancha e aqui
chegado para trabalhar numa companhia telefônica do seu país de origem, las privatizaciones,
los mercados globales, nuevo amigo com ganas de vivir la vida, isso é o que importa, nuevos
tempos de moinhos acanhados, o que também reduz nossas miragens a, no máximo,
ventiladores de teto de las tabernas românticas de nuestras últimas chances.
“Te juega, rapay”, mais precisamente foi o que o cavaleiro disse ao chico, no que
atirei-me ao solo pátrio, a velha arte de répteis pré-históricos, mais conhecida pela minha livre
tradución como Técnica Avançada do Mestre Virgílio Piñera de Nadar no Seco, no que agarro-
me aos pés daquela criatura como um romeiro cego que acaba de presenciar o quarto milagre
de Fátima, a cura.
Ela, a dita, cai, de susto e drama, la mujer, sobre o palco improvisado naquele decente
porão-templo do punk-brega.
Luzinhas coloridas, daquelas de enfeite natalino - Jesus Cristo vai voltar? -, piscam no
pedestal do microfone del trovador dos guachos pampas.
Os almas sebosas que me acompanham cospem fuligem e se preparam para o pior,
anteviram la mierda.
Até o don Luxúria de la Champanhota estava nervoso nesta hora.
A inveja testosterônica exala de todos os subacos del mundo.
Adonde tem hombre, o gênero, tem confusione.

Cap. XI - Do sensacional y incrible embate contra O Gigante Tatuado

Aqueles olhos ciganosos, rapidamente aflitos e corretos nos flagrantes captados, como
se editassem na velocidade da luz tudo que alcançam num segundo, como se fossem um
circuito integrado de câmeras de segurança do mais labiríntico dos edifícios, de um arranha-
céu inteligente, sabe, aqueles ojos matadores sacaram primeiro e me aniquilaram naquele
desafio, naquela espécie de duelo ao qual se submetem destemidos homens e mulheres cujas
passagens sobre esse deserto só se justificam na passionalidade à queima-roupa, pistoleiros
corazones de tiroteios e baladas sangrentas.
El toureiro estava muerto e sangrava diante dos ojos daquela possible Carmen.

Ainda aos pés daquela mujer da minha pobre, pero tumultuosa erristência, a mujer de la
bida, ou pelo menos a mujer da quinzena, miro para riba, para ver seus olhos, repetir o milagre,
seria Esperanza?

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E eis quem aparece no retrovisor contra-plongé do cavaleiro solitário, senhoras e


senhores, é o Gigante Tatuado, ainda mais gigante se visto lá de baixo, como na visão das
britadeiras arrancadoras dos dentes da cidade, esse pesadelo que toma conta deste sítio sempre
em obras, reformas e crateras, miro para riba lá do solo, de onde costumamos enxergar os
adversários. O Gigante Tatuado está verde de raiva, clorofilado pelas carregadas tintas do
ciúme, este brinquedo assassino com o qual bolimos assim que nos entendemos por gente, o
Incrível Hulk das nossas fraquezas, que ainda há pouco era apenas uma estrela, uma imensa
tocha antes do mergulho, brinquedo nada pedagógico que quebramos logo que ganhamos o
boneco Édipo ou a boneca Electra, o brinquedo que nos faz de criança até o silêncio-mor das
catacumbas.

“Nada está tão mal assim que una chica não possa piorar más un pouco su pobre bida”.

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Lembrei, tango ao longe, do que havia me dito, em repetidas secciones, a psicanalista


judia-argentina, los hermanos latifundiários de inconscientes son los merrores de la ciudad de
San Pablo, aquellos que vieram tangidos pelo vaquero del exílio. Ela é daquelas sábias, que já
me deixa hablando, aqui no meu futuro do pretérito, um casto espanholito salbaje, não de todo
selvagem, um portunhol, digamos assim... terrible, como numa cierta viaje que parte del puerto
de Antofagasta. Tenho sonhado com a minha psicanalista argentina como um Sandman
vagabundo que sonha porque vive disso como um morcego vive de virar rato ou recalque nos
sótãos do futuro.
Depois que hay conhecido minha psicanalista argentina, empezei a sonhar
profissionalmente, sueños para agradar-lhe, era una vez o Aleph...
Esse não vale, hombre, seja original pelo menos esta noche!

Nada pode andar tão ruim assim na tua miserável vida que uma mulher não possa
piorá-la, se é que me compreendes.

(...)

Ela me adiantou na primeira consulta, que nem fiz ainda, algo que bate com o informe
do meu astrólogo peronista. A única coincidência dos dois em toda la bida.
Saí mascando o novo adágio como um chiclete de jambu que anestesia lábios, gengivas,
caninos e molares de uma alma indígena.
Nada que uma mulher não possa estragar mais ainda.

Gardênia, mi psicanalista, e o seu cachimbo decifrador de existências aliviam minhas


dores supostamente mais extremas, mesmo com este hombre a teimar que seu inconsciente
habia nascido surdo e mudo e jamais falaria nada a não ser para o seu vira-lata, verdadeira
terapia de pobre.
Já viram como os miseráveis de viadutos e becos imundos conversam com seus
perros???
Psicanálise de pobre é falar com seus cachorros pulguentos, que também nada dizem
mas são muy carinhosos.

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Cap. XII - Donde atiramos em aves-petiscos

Com o tempo passamos a perceber o grau de parentesco entre as noitadas pelo rastro de
merdas que deixamos sob luas minguantes e a falta de memória sobre elas nos dias seguintes.
E é fazendo merda, como me avisou, noutro adágio particularíssimo, uma galega de
codinome Miss Norma Culta, é fazendo merda, disse-me, que adubamos a vida. Me gusta
adubar la existência com a merda do perigo, merda esta cujo cheiro abafo com o perfume da
coragem, esse luxo de pequeno frasco que nem sempre trazemos nos nossos alforjes de
matadores borrachos.
Por mais que os cavaleiros aliados tentassem me proteger das garras do inimigo, o
Gigante Tatuado, àquela altura o maior homem do mundo, cara quadrada, olhos amarelos de
assassino viking e hiperbólico, dois metros e tanto, olhos de pistoleiros do Rio Jaguaribe, o rio
mais seco da Terra, não conseguiam os cavaleiros, de tão borratchos que os caballeros já
estabam àquela altura, jornada que habia começado, com brindes de tequila, tilintares aos
montes, tertúlia ao lusco-fusco, quando os ponteiros dividiram o relógio de parede ao meio, em
dois dês, duas luas, duas bundas, quando aquela bruma melancólica prevalece sobre a
existência sem luz, assim pastosa.

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A jornada havia começado, com tragos rebatedores, ali nos arredores do Parque da
Aclimación, primeiro num restaurante coreano, donde comemos língua de vaca no fogãozinho
aceso na própria mesa; depois, bebemos aguardientes e escrevemos nuestros nombres com o
giz do pó bíblico, pelo menos as iniciais, dele viemos a ele voltaremos, já na taberna dos
caçadores, adonde cada freguês recebe, das mãos de uma hostess e ex-vegetariana, uma
espingarda para matar os seus petiscos e tira-gostos, pero só conseguimos acertar uma gigante
avestruz modificada pelos poluentes, que se comporta como se tivesse espírito de uma velha
pomba-ratazana gigante que não dorme nunca. Quando tenta dormir, espinhos enferrujados
debaixo das asas lhe espetam o corpo, como os tetéus, Belonopterus cayennesis, aves que
nunca dormiram o sono dos justos, seres da zoologia fantástica de San Pablo.
Comemos a tal anomalia à passarinho, me gustan las anomalias urbanas com cervejas
pretas e uísques caubóis, nossa celebración preferida aqui neste deserto, como sempre fazemos
para pastorear nuestras perdas diárias, nuestro rebanho de fracassos clonados, fiapos de lãs de
pacatas ovelhinhas losers a tomarem siempre nuestros cérebros, os ponteiros ultrapassam as
seis horas de la noche em San Pablo, tão logo as rádios AMs tocam a “Ave Maria” de Schubert,
nem contando carneirinhos e ovelhinhas dollys dormiremos, nem adianta desejar-nos buenas
noches kabrones.

Cap. XIII - Do cãozinho gospel, vira-lata abençoado

Só escapei do Gigante Tatuado quando meu cãozinho gospel, regallo do amigo


Schiavon, latindo línguas pentencostales as mais intensas, aplicou o mais baixo dos golpes,
baixo até mesmo para o mais amoral dos perros, mesmo para um vira-lata, e o tal engenho e
arte quase deixa o gigante tatuado, tatuado com signos de prisões russas de um raro livro de
sebos de San Petersburgo, e quase deixa o gigante tatuado sem los uevos, compadre, los uevos
de oro. Los testículos, compreendes, como não me deixa mentir, cá está, o compay Pedro A.
Cabballero.
Meu cãozinho gospel se trata de um velho farejador aposentado da Delegacia de
Narcóticos, agora com nariz evangélico incapaz de sentir o cheiro de uma montanha do legítimo
pó colombiano.
Cap. XIV - Donde o vira-lata de Jesus cospe nacos da cueca inimiga

“Buenas noches, kabrones!”, saudou el cantante da “milonga para um hombre de


pocos dentes”, nuestro Pablo, por supuesto, gaúcho de origem alemã, de origem, como
eles orgulhosamente dizem, egresso das curvas do Rio Guaíba, no sul da República
Federativa del Brasillll.

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“Me gustam los caballeros solitários que buscam el suelo puente, mas bamos com calma
que la noche vai longe, comancheros”, disse o rei do punk-brega, numa tentativa de apaziguar
os espíritos sob aquela lua cheia e caliente. Sabia das coisas, tomava um composto diário de
pelo menos sete ervas guaranys e andava sobre águas revoltosas das barragens e dos rios que
banham a aldeia Piratininga, como o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí, rios que haviam se
rebelado e espumavam ondas gigantes das quais voavam sapos como se saíssem da prancheta
de Don Laerte, renomado cartunista e chefe de uma gang de piratas bíblicos.
El concierto no porão del Camhaléon, na subida da Consolación, taberna de los
estudiantes, me gustan los estudiantes, torna-se um clássico do nuestro Elvis, do nuestro
Johnny Guittar que andava sobre as águas, por supuesto.
Meu vira-lata gospel, que latia “Jesus, Jesus, Jesus”, conforme assimilado do compadre
Schiavon, mestre em histórias em quadrinhos de subsolo deste mesmo sítio, cuspiu, senhoras
e senhores, um pedaço da cueca do gigante inimigo no palco. Justo aquele pedaço da cueca
envelhecido com os bagos e a quentura das fodas-não-dadas, das fodas que qualham e
sobem em forma de queijo gorgonzola para o juízo.
A platéia suspirou, riu, muxoxos gerais, e el cantante emendou uma versão dos
Ramones doravante denominada “Eu não acredito em promessas”.
“ENTONCES ME DÊ UM MOTIVO PARA NÃO CHORAR/ ME DÊ UM MOTIVO
PRA NÃO CHEIRAR COLA ESSA NOCHE”.
La noche está apenas começando, bravos comancheros!

Cap. XV - Dos Ramones e dos milagres

Milagrosamente levei aqueles ojos andaluzes, uma mulher com olhos de quem havia
sugado a fria cuia do mate da saudade de um cabloco de selva amazônica distante, una chica
com ojos de quem habia deixado um hombre em farrapos, mas que ainda sofria horrores.
Milagrosamente levei aqueles ojos andaluzes na garupa do meu pangaré da tríplice
fronteira ladeira arriba.
El perro evangélico nos seguia feliz pelo asfalto, latindo “Jesus, Jesus, Jesus...”
De lá de cima do meu rocintosco quadrúpede avistávamos os mortos do Cemitério da
Consolación, que zombeteavam das nossas pobres erristências.
Os mortos e os seus basfond darks, como se tudo fosse uma enorme cidade cheia de
Pedros Paramos y fantasmas guaranys.
Os mortos do Cemitério da Consolación, tentando reaver com os vermes os seus
velhos paus e buças para a última sessão masturbatória do além-túmulo. Talvez em intención
àquela gostosa que colava às minhas costas, que eles conheciam há muito da mesma área, seria
uma Párama Gigante, uma lenda, viejo Pedro?, mas que agora tinham o prazer de vê-la, musa,
alada, sobre um cavalo monstruoso quase a tocar no pangaré de São Jorge num Shazan
imaginário, sejam o que forem las cosas a essa altura das suas conscienciazinhas que
dependem de pilhas para movimentar-se. Coitadas de las cosas que vão se perdendo no vapor
do crack azulado da memória.

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Assim como os mais vivos, los muertos también portam los subacos da testosterona
universale. Com seus corpos enterram os brinquedos assassinos do ciúme, calungas de louça
inquebrável, los muertos são periculosos porque vagam com a máxima imunidade, não puedem
morrir duas vezes nem tampoco serem multados pela companhia municipal del tráfego.
Prefiro meu cavalo a qualquer carroça, de que adianta um BMW que anda, neste
pueblo, abaixo da velocidade de um pangaré que puxava uma diligência do século XIX?
Si, 12 km por hora nas avenidas principales, carajo.
Donde se vê um motorista zen ouvindo Mozart...
Donde se vê um motorista sacando seu revólver...
Donde se vê um motorista lesado ouvindo o boletim do trânsito...
Donde se vê um miserável marketeiro tirando a camisa na Avenida Brasil e mostrando
que não vai assaltar o motorista, quer apenas mostrar que é uma criatura honesta e fodida,
marketing da miséria...
Donde se vê um pai-de-rua explorando los chicos bueñuelitos...
Donde se vê basta abrir o vidro nada glasnot ou transparente a essa altura da viagem.

Como dali estávamos mais pertos de una luna caliente incrible, nem ligamos para aquela
indecência póstuma do cemitério à vista. O cãozinho tão feliz, mi hermoso perro, brincando
com o rabo do cavalo, coisa linda, que nem ligamos para o tufão de fumaça e o cheiro de laranja
podre que lhe jogava na cara o caminhão do lixo do bairro de Higienópolis. Agora falamos dos
vivos, esses seres mofados pelos micróbios das obrigaciones, mas sem mínimas morales, que
nuestras garupas não pesam.
Late o cãozinho e tira uma onda com os garis bêbados, que bebem para suportar o
cheiro da merda humana que lhes sujam as luvas amarelas.

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Quando estão borratchos mesmo sacodem as luvas fuera e amassam a mierda de la


erristência que já se mistura às suas bidas como el barro nas mãos daquela mujer de la
película Ghost.

Cap. XVI - De una lucha de gigantes, ainda

A cigana de ojos andaluzes, que eu arrancara em lucha de gigantes, tenta, ela mesma,
tenta me dizer algo que se torna incompreensíble por causa das lufadas de vento friaca, por
causa do portunhol de mierda, essa praga que hay tomado nuestro mundo, por causa dos latidos
pentencostales, também em portunhol selbaje, si, el pobre perro habia también contaminado
sua língua farejante com el sonido del concierto, el cantante, nos intervalos, hablava apenas
español selbaje, tosqueira, mas também por causa dos uivos dos tarados dos mortos, por causa
do caminhão triturando os detritos e os desejos guardados da classe média do bairro, aqui nas
pradarias babilônicas.
Digo “si, si, si, si, si” a tudo que vem daqueles lábios mestiços e daqueles ojos
andaluzes, assino embaixo no escuro das nossas línguas, mas não era uma índia?, e rumamos
sobre as pradarias nocturnas, não, não era Esperanza.
O cãozinho entende o que ela fala e tenta a todo custo traduzir em mordidas nas canelas
do nuestro pangaré paraguayo, como num braile absurdo. O total de mordidas por vez
corresponde a uma letra no alfabeto, como se passassem torpedos ao telefono, daí cabe ao
sábio pangaré retransmiti-los com um código Morse de su própria cabeza de caballo dado.
Pego o cantil e entorno, agora la aguardiente de fino alambique do Pedro Grammático,
do sítio São Judas Tadeu, São Carlos, interior deste pueblo. Jogo um pouco sobre o asfalto,
para o anjo da guarda desta noche, e descambo a pensar nas letras de algunas canciones del
concierto do ano da graça de 2006, como estes versos, por exemplo:
“Juliana, me fale a teoria do seu Sigmund Freud,
aquele velho louco e cheirador.
Juliana, me fale sobre júpiter em oposição ao sol
e de saturno em quadratura com a lua.

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Juliana, me fale um pouco sobre as sociedades primitivas e o homem no princípio


do universo
Suas palavras me levam sempre ao paraíso
onde o sol que me ilumina é o seu sorriso!!!”

Cap. XVII - Do ataque dos Gângsteres do Sol Quadrado

Avançamos sobre as pradarias até sermos obrigados a nos esconder debaixo de um


túnel, enquanto la policia e una falange de batismo Gângsteres do Sol Quadrado, pelo que
recuerdo, trocavam tiros de indecifrável calibre, a real da guerra sem virgens ou sicários.
Foi aí que perdi o meu pobre cãozinho gospel.
A última vez que o avistei, ele brincava de circo com um pneu em chamas que
atravessava uma ponte sobre o Rio Tamanduateí. Depois, em sonhos de uma siesta
emaconhada, ele reapareceu todo prosa sob a guarda de um mascate de churrasco grego,
adorava também churrasquinho de gato e sentava praça à sombra de todas as barracas e
carroças do gênero.

Cap. XVIII - De como la chica com o seu lindo cachecol colorido limpou
minhas lágrimas em preto e branco

Essa coisa de ter sonhos de uma siesta dirigidos livremente acabam dando em mierda,
meu anjo, mas confesso, me impressionam, quiçá me paralisam. Pior é que quando tiro noites
para o sexo, não para los sueños, também sonho dentro de quem amo ou dentro de quem
invento que amo tanto.
Onde está usted, amigo cão de alma perra?
Ela, mi ojos andaluzes, com mãos fuertes, abraçou-me sobre o caballo. E me deu um
beijo ao vento, daqueles de road-movie. Com seu lindo cachecol colorido limpou minhas
lágrimas alvinegras, como se fossem lágrimas dirigidas por Jim Jarmusch. Seguimos, segue a
vida enfim, rapay.
Arriba comancherossssss! A noite está apenas começando, sempre.

Cap. XIX- Donde o nóia aperta o “S” de subsolo e desce aos infernos

Nem deu tempo de eu berrar calabocafeladaputa, tive que apertar o gatilho e fazer aquele
verme, negro como aquela noite de segunda, negro como a noite que não tem luar da música,
música que eu odiava, quando minha mãe preta cantava, já meio louca, alcoolizada como a mãe

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de Elvis Presley, “Índia teus cabelos...”, entregue, dando para Deus e para o mundo, ou talvez
nem dando, mas perdida, e mulher nem precisa dar... os merdas dos machos já acham que se foi,
já é, deu, não para poucos, fodam-se.
Nem deu tempo, não sou de nove-horas. Calibrei o indicador da mão esquerda, atiro e
jogo sinuca com esse lado do cérebro, foi fácil fazer aquele nóia apertar o “S” de subsolo e
descer direto aos infernos.
Porque os corpos vão para o Instituto Médico Legal, IML, justo, as almas não. As almas
tomam banho de enxofre quente nas profundezas e depois penam, vagam, até encontrarem
outros restos humanos para fazer morada ou encosto.
Besta é quem espera o que vem do outro lado do escuro.
Não temo nenhum vivente. Meu único medo, desde menino, é do mistério do lado
negro da noite.
Meti-lhe bala no toitiço. Caiu estrebuchando como um bode ao levar a primeira paulada
no açougue. Já viram como cai um bode ou um carneiro nessas horas fatais, os caprinos?
Menos uma alma sebosa sobre a terra, foi-se.
O desalmado implorava “eu sou inocente, trabalhador, pai-de-família, pelamordedeus”,
de joelhos. Ah, nessas horas todo mundo é do lado certo da vida, se brincar, cita um versículo
de João, Apocalipse, se brincar, usa a própria Bíblia como escudo, açoite, igual no faroeste que
a moeda, o dólar, salva a vida do homem, o dólar furado, Giulliano Gemma, lembram?, nessa
hora ninguém é criatura das sombras.
Trabalhador? Como se ainda tivesse trabalho para esta mundiça, escória, refugos!!! Pai-
de-família? Pensa que “crescei e multiplicai-vos” é povoar o mundo de ladrão e aumentar a
escória da Terra?
Pelo amor de Deus?
Mais uma bala no juízo por usar o seu santo nome em vão nessa boca de onde só sai o
mal e o sobejo da besta fera do universo.
Estraçalhei o coco do desgraçado, dava para ver os miolos moles, balofos, uma rodilha
de gosma, como se fossem lombrigas, parecia aqueles desenhos, cérebro, cerebelo, como
desenhos da escola, como vejo ensinando a tarefa da minha filha Verônica.

“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura nunca tornará a
subir. Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar o conhecerá mais." (Jó 7:9-10)

SOBE.
DESCE.

Disse alto o meu versículo, como sempre faço quando livro a Terra de um malassombro,
e segui com a consciência limpa de quem tem ajudado a assear o mundo, pelo menos o meu, o
que interessa.
Carandiru foi pouco, desgraçados, pestes bubônicas, istampô-calango, febre do rato,
vômito do demo, 666 escrito a ferro em brasa, tatuagem da besta. Dimas, o ladrão do lado de

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Jesus, que me perdoe, mas hei de acabar com os aloprados aqui da Terra, os que não prestam nem
para esterco, estrume, deles não nascem nem mamona, que é capaz de nascer até sobre pedra.

Nem estava de serviço naquela noite. O que não podia era me acovardar no momento.
Olhei os meus meninos dormindo, Yarley, de dez anos, Daiana, de nove, e Carlitos, de onze
meses, batismo que dei em homenagem ao Carlitos Tevez, até então herói argentino do meu
time, o Sport Club Corinthians Paulista. Eu sei que passa, o cara vai embora, mas como foi
importante aquele título, rapaz de fibra, raça, a cara do meu Timão, fodam-se bambis
tricolores, palmeirenses de merda, viúvas de Pelé, só existe o Corinthians entre o céu e a terra
na terra, vocês sabem seus bostas.
Beijei a testinha de cada um deles, meus meninos, peguei minha toca ninja, minha arma
e fui ajudar os irmãos do lado certo da vida a limpar a bandidagem que tomava conta de São
Paulo, cidade a quem devo a vida, naquela justa hora.

Sim, sou polícia, alma gambé, com muito orgulho.


Sou polícia porque gosto de defender o lado certo da vida.
Se fosse por dinheiro...
Nas folgas, faço bico de segurança para o comércio do bairro.
Não tenho pena de alma troncha.
Esses trastes só merecem formiga na boca e três palmos e meio de terra da mais comum
das valas, indigências.
Sete palmos de terra é pra gente, não para verme como essa laia escrota.
Por mim, nem enterrar enterrava.
Os urubus que arrancassem as tripas em praça pública. Já viram um urubu arrancando
tripas de um boi e subindo no azulzão do céu pra comer, voando lá em cima feito um poeta
condoreiro, Castro Alves, como aprendi no ginásio ainda lá em Vitória da Conquista?

Cap. XX - De Romeu & Julieta e de outros romantismos apropriados

Por causa do pânico nas pradarias nocturnas de San Pablo de Piratininga, nos
escondemos, com muito gosto, nos infiernos da Rua Augusta, bebendo drinques vermelhos, eu
campari, ela um certo bloodymary falso que eu mesmo improvisava com molho de tomate
vagaba, quase Q-Suco, “hacen bien a la fluera intestinale.”
“Diga-me uma coisa sagrada para ti”, provoquei a rapariga, copiando o que acabara
de ler num faroeste.
“Ah, Romeu e Julieta, por exemplo”, ela disse.
Onde estará meu pobre cão que falava a língua dos homens de boa vontade?

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Lá fora, sob a garoa, meu pangaré paraguayo relinchava e era um sinal de que segue a
vida enfim, segue a vida e eu adapto o meu velocímetro.
Chivas ainda soletra uma tese. Segundo o quadrúpede, está na boemia, e não na política,
a resistência, a guarda do espaço público possível nos dias de hoje.
O seu generoso elogio à resistência e à flânerie, às mesas nas calçadas, aos bêbados que
vagam, elogio ao seu próprio dono. Sim, amanhã a cocheira receberá ração inglesa, a mesma
dos cavalos do Príncipe Charles, valeu, grande Chivas, andava mesmo carente de teses que
justiçassem as minhas perdições en la noche, grande prêmio.

Cap. XXI - Donde Ezequiel faz o que pode e o que não pode para encaixar
os cadáveres

Nas margens do Rio Pinheiros, os urubus apuram o faro, como durante todos os dias do
ano. Sobrevoam na companhia da segunda maior frota de helicópteros do mundo, só perdemos
para NY, um shopping-bunker de luxo, revenda das mais importantes grifes do mundo, e
decidem o próximo destino: IML, Instituto Médico Legal, nas proximidades.
Mais de cem corpos, cadáveres de policiais e de suspeitos e supostos suspeitos mortos
em possíveis confrontos da Polícia com os Gângsteres do Sol Quadrado, a supracitada
falange, noticiário à toda, coisas da bida, viejo amigo Kurt.
O tiozinho Ezequiel faz o que pode e o que não pode para encaixar mais uns cadáveres
nas câmaras frigoríficas e foge para tomar umas pingas.

“Diabequeaguenta”, diz no seu cearensês da porra, cabra nascido em Quixeramobim,


terra donde partiu Antônio Conselheiro, no prumo do que daria na sua Canudos.
Alguns corpos apodrecem.
Desde o massacre dos 111 presos do Carandiru, em 2 de outubro do ano da graça de 1992,
o tiozinho Ezequiel não via tanta gente morta numa mesma noite neste deserto de San Pablo.
“É morto demais pra pouca geladeira”, conclui friamente no boteco Sampaio Correia,
ali na Rua Teodoro Sampaio, enquanto pega mais uma breja que neva sobre a pobre realidade
fumegante que queima os dedos.
Três rabos-de-galo depois, para anestesiar as narinas, volta ao serviço.

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Agora os urubus, na fissura da carniça, já sobrevoam o prédio do instituto, mesmo ainda


na fronteira entre noite e dia, madruga, luz confusa, carniça é cocaína de abutre que faz de
hoje um ano de noites brancas.
Ezequiel conta: quando vê urubu assim, a imagem que lhe vem à cabeça é a de sempre.
Uma magote de abutres esgarçando, em segundos, os intestinos de uma vaca só o couro
e osso que havia tombado na seca.
Um tio-avô de Ezequiel, Jó, narra, morreu assim, com os urubus a puxar-lhe os
intestinos. Foi em um dos campos de concentração da Seca de 1932, no município do Crato,
Cariri, sul do Ceará, um dos seis “currais da fome” onde o governo isolava os flagelados, os
molambos, os fiapos de gente para que não levassem doenças para os centros urbanos.
Ezequiel pede mais uma.
Um outro bebum, que conhece a lenda, completa ali dos arredores, puxa conversa sobre
uma certa máfia capilar, coisa antiga. O roubo de cabelo dos mortos do IML, principalmente
das mortas, se virgens sedosas melhor ainda, para vender às fábricas de perucas, lindas, asas
de graúnas, galegas também em alta, pêlos de bonecas.
Outro só resmunga, como num soluço: “COISAS DA VIDA”.
Os urubus voam cada vez mais baixo.
Ezequiel volta na tentativa de congelar os mortos. Ri, no caminho, pensando no tempo
em que também vendia cabelos.
Ezequiel sempre preferiu as chacinas. O rabecão vai lá, recolhe rápido, traz, bota na
geladeira, num tem frescura. Mas chacina de cinco ou seis, como de costume. De mais de cem
dá trabalho ao mais anestesiado dos narizes.
Ele pensa na próxima breja, no próximo rabo-de-galo COISAS DA VIDA, nuestro
amigo Kurt o acompanha ladeira acima.

Cap. XXII - De uns uivos de lobos ao longe e nada mais

Ela, a minha linda e ciganosa criatura, acha que durante o tempo em que nos
esfregamos carinhosamente sobre o cavalo não notei nada.
Acha que isso é motivo de desmanche da nossa comovente história que começou com
requintes bíblicos, Davis & Golias, cartazes clássicos, quase Plaza de Toros, a luta contra o
Gigante Tatuado.
“Pobre perro”, ela diz. “Fofinho”, ela alisa o próprio braço como se fosse o cãozinho gospel.
Comove.
Uivos de lobos ao longe, me sinto na floresta negra, naquelas memórias alcoólicas, o
cara descendo a montanha para votar pelas mulheres, num plebiscito sobre bebedeiras e outros
bafos conservados em barris de crenças, como se fosse possível mudar o DNA dos
alcoólatras de berço ao simples “aleluia” de uma igreja, meu caro primo Jack.

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Cap. XXIII - De Chivas e das suas remelas melancólicas

Chivas guarda remelas melancólicas nos seus zolhões amarelos.


Enquanto ela, a cigana possível, me comove outra vez, de nuevo.
Ayuda-me, justiceiro!!!
Seus ojos andaluzes agora marejados, lembrando do nome e tudo do meu cachorro que
ficou na bruma da guerra urbana.
Chamava-se Cisco, uma homenagem a Cisco Kid, mocinho defensor dos fracos que
começou a vida ainda no cinema mudo, sempre na companhia do simpático gordinho Pancho,
um mexicano.

“Não llora, amor”, ela implora, “não llora bebezito de mi pobre bida”, Marguerita implora.
Donde vem esse portunhol selvagem, maluca?, pergunto de volta.
Ela me fazia dormir las siestas embaladas com incribles lendas guaranys, cunha-taís,
histórias da tríplice fronteira, formigas gigantes viciadas no magnésio de fitas cassetes - com
guarânias e boleros para um amor sincero - e dos carregamentos de VHS.
Marguerita estivera com os Jivaros, uns índios da Alta Amazônia, uns índios abusados
em suas existências, radicalíssimos os Jivaros, anarquistas ao extremo, que fazem de todos os
dias uma viagem sem fim, tribo do Piemonte andino, pelo que me recordo...
“POLÍGAMOS RADICALES”, ela diz.
“MATERIALISTAS!!!,
SENSUALISTAS!!!,
POSITIVISTAS EXTREMOS!!!”, disse sobre eles o padre Vacas Galindo, ela me conta,
belo riso o riso somente dela.
Esse conto do vigário é de 1895, de novo ela, sopra, recita, para a minha cara de leso
maconheiro sem memória, mil oitocentos e quanto mesmo?
Século 18 ou 19?
Como se isso tivesse importância.
Quatro anos después, o abade François-Pierre, ela me ilumina, ah, me gusta da memória
de los viajantes, havia dito:

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"A família Jivaro é um lupanar no qual a devassidão mais desavergonhada é exposta


sem restrições nem pudor!".
Paudurescência na hora, me sentia um jivaro àquela altura diante da minha linda
antropóloga ou, sabe-se lá, me gusta las cientistas picaretas, o que seria essa mulher, será que
ela existe? Será que ela existe uma vez que la própria mujer non erriste, conforme Lacan,
frango!!!, un dia hay surtado?
Continuarei a inventá-la daqui por delante, porque homem que é homem prefere
inventá-las, jamais à sua imagem e semelhança, mas prefere inventá-las a acreditar que a
mulher, mesmo a mulher do padre, seja mesmo uma ficção de nuestras costelas bíblicas.
Mais beijos na boca para compensar la lucha de gigantes.
Como são bons esses beijos que, mesmo se por uma noite, sabe-se lá, já ficam como os
melhores tira-gostos, asinhas de anjos barrocos à passarinho, com vodca pura, como os
operários russos.

“NÃO LLORA AMOR!”.

Fazia tempo que não ouvia, nesse grande deserto doravante denominado Carençolândia
de La Existência Perdida e Sem Vuelta, um “não chora, amor” mais terno, comovido, luna
caliente em taças de requintado conhaque, carajo, fudeu, agora é que entendi la oscuridad,
negrura, escuridón, tinieblas que viene lá do sótão d´alma que pode ser uma noite, apenas uma
noite, nada más, que importa?
Meu portunhol estaba cada vez mais al puento, conforme avançávamos na viarrem al
fim de la calle.
O resto do ácido batendo no juízo, la coca e flores letales nos narizes, e lloramos
como na canción de Roy Orbinson:
LLORANDOOOOOOOOOOOOOOOOOO.
As lágrimas mais legítimas são as lágrimas después de um velho ácido, ou mesmo de
um flash-back, además nem os garçons choram uma gotícula de água escocesa paraguaya por
estas plagas latino-americanas.
Ayuda-me justicero, socuerram-me índios que governam a América, cerram comunistas
miraculosos de verdad, façam com que la água de la bida jorre sobre nuestros copos longos e
cheios do granizo de todas las tempestades.

Cap. XXIV - De uma medusa ofegante nada más

No que encho a mão com gosto no que seria la concha de minha linda criatura ciganosa,
Chivas não agüenta e relincha, entre o riso e o “bem que te avisei, maluco”, la buena onda.

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Ela me beija com mais força ainda.


“Tentei te dizer de todo jeito”, ela sussurra, a partir de agora, não diz nem fala, só
sussurra, medusa ofegante.

Cap. XXV - Do Jornal da Morte, Extra, Extra, Extra!!!

“Carandiru foi pouco, já estamos chegando aos cem”, berra o sr. Oluas, superxerife
da Segurança Pública de la Província de San Pablo.
A reação.
“Mexeram com os nossos brios”, late, como um cão de Pavlov que carece de
sangue, sangue, sangue.
“Fogo neles, é prender e matar OS SUSPEITOS DE SEMPRE, e foda-se a vaca da
Hanna Arendt”.
Trata-se de um señor muy lido e informado.

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“Pára, pára, pára”, grunhe o sr. Oluas.


(...)
“Eu falei PAREM A CONTAGEM, não as mortes!!!”, ele de novo. Está muy
bravo:“Passar dos 111 seria um Carandiru a céu aberto”.

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“É, na outra chacina os caras pelo menos estavam presos”, sussurra um lambe-botas.
“Calabocafeladaputa, num tá vendo que ali está a imprensa?”
“GRANDE MERDA”, diz um velho repórter copiador de B Os e depoimentos à
Justiça, desde o império das velhas Burroughs & Remingtons, copiador ao ponto de já ter
publicado, em algumas ocasiões, até aquele famoso final “nada mais foi dito nem perguntado”,
como me segredara o bravo criminalista don Francisco Carvalho Filho.
Parem as máquinas, riem as próprias rotativas de la prensa, velho Kurt Vonnegut, riem
de si mesmas, riso dentado e mecânico, enquanto motosserras roem as árvores que viram
manchetes garrafais sobre crimes amazônicos, fitzcarráldicas corporações. Nem mesmo las
árvores que viram manchetes acreditam ou choram suas resinas mais encorpadas...
Não compre jornal, minta você mesmo, dizem as árvores como naqueles trabalhos
escolares em que as árvores, no Dia da Árvore, falavam e tinham direito a balõezinhos falantes
desenhados nas cartolinas cor-de-rosa sobre as suas copas.

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Cap. XXVI - Donde Martin Fierro interfere na sinuca

Voltamos a nos beijar, eu e a mulher do Gigante Tatuado, beijar, como se diz, beijar
ardentemente, depois que perdi, mais uma vez, para don Campos Viejo, na Sinuca do Pescador,
no districto do Baixo Augusta, Condado de la Consolación, nuestra geografia afetiva.
Havíamos esquecido quaisquer símbolos e Medusas e também o sorriso sacana de Chivas,
sim, meu pangaré a quem devo a vida y mucho más.

Puerra, don Campos Viejo fica recitando Martin Fierro, fode, esqueço a caçapa, dane-se,
ilusionista, bolas em diagonal, foda-se, perco quase todas, mas com um heroísmo dos gigantes
do ringue, essa noite levamos um baile de don Bortolotto, el grand dramaturgo del cemitério de
los autos, em dupla com su amigo don Amalfi, que tocava Duck Ellington com o taco.

(...)
Voltamos a nos beijar, do jeito mais denso possível, sabe, dentes batendo e língua
muy loca e, ora direis, ouvir céus e estrelas. Ai como é gostoso aqueles peitinhos a bater nas
minhas costas, roçar as omoplatas...
O cavaleiro fazia de conta que não via a sombra do pau dela na parede, sol
adentrando a persiana.
Cantou uma canción del concierto adonde tudo habia começado para ella, cantou do
jeito que veio naquela madruga sem fim ainda incendiada por binte años de álcool en lo
caveirón heróico del Mercosul de la existência:
“Yo tengo un paraquedas para te salbar/ yo tengo un paraquedas em mi corazón”.

Ela me abraçou fuerte.


Nossos narizes havia tempo não estavam mais esquimós, mesmo naquela noche polar
de ano da graça de 2006, noche de ataque de los Gângsteres do Sol Quadrado.

Quando montamos nuestro cavalo mandei outra canción das antigas:

“Tenho 25 anos de sonho e de sangue


E de América do Sul
Mas por força do meu destino
Um tango argentino
Me cai bem melhor que um blues”.

Cap. XXVII - Da bundinha de Brigitte deitada na laje de Saint-Tropez

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Naquela taberna mais esquizofrênica, compramos, dos mascates noctívagos, guerra


dos justos, uns discos e um DVD hermosíssimo:
“...E Deus criou a mulher”.
Sangre de Cristo!
“Um filme envolvente, cheio de sensualidade, que lançou para o mundo a diva Brigitte
Bardot!”, ela lê na capa, imitando o biquinho de BB.
Quase sem escorregar no portunhol, salve!, milagre.
“El enorme successo del filllme ´...Y Diós creoou la murré´, de Joger Vadam,
revolucionou o mercado de filllmes estranrreros e hay transformado Brirrite Bardot em uma
estrella internacionale”, prossegue os meus ojos andaluzes. “Nesta película, ella bibi Juliette,
uma chica huerfana, desamparada, de 18 años, sedienta de satisfacción”.
Seu marido fará de tudo para conquistá-la, mas esta não será uma tarefa fácil. Filme
obrigatório para os amantes da Sétima Arte, contando com um enredo instigante, elenco
competente, grande diretor e, é claro, toda a beleza e sensualidade de uma das maiores
divas do cinema: Brigitte Bardot.”
Quando BB surge, por detrás daquele varal de roupas, com a bunda mais deliciosa do
mundo deitadinha numa laje, meu Deus, antecipo o filme para Margarita ainda a caminho de
casa, adonde nunca chegamos, e Margarita lembra da cena e vira a sua própria bundinha toda
para mim, e diz algo como... “pega, seu vira-lata sem dono”, em ótimo português, “me come
tudo que for possível ser comido por um homem de verdad!”

Subimos ali numa escada abaixo do Saravejo, clube de la mesma calle, quintal de
ruínas da Rua Augusta. Ela fica de quatro em cima duns escombros forrados por jornais de
ontem, que noticiavam a última invasão de Israel ao Líbano, e vem com sua linda bunda em
slow-motion, fica aí, não mexe, fica aí, ela diz, deixa que chego, e vem, aquela linda bunda
que parece a lua cheia que nos cobre de fortunas passageiras, àquela altura sob o céu que, num
relâmpago, já nos nega, embaçados corazones, a visão de tal luna caliente, mete tudo, mete,
agora me beija, a nuvem passa.

Cap XXVIII - Da arte da guerra e do Sol Quadrado

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Na sela solitária 151 da penitenciária de Presidente Bernardes, o Subcomandante do


Crime da falange anteriormente citada, a dos Gângsteres do Sol Quadrado, medita com lições
de “A arte da guerra”, de Sun Tzu:
“Se tiveres próximo de alguma montanha, procura ocupar o lado que dá para o sol. Esta
localização tem grandes vantagens. Estende-te com segurança das encostas até a proximidade
dos vales. Ali encontrarás água e forragem em abundância. Rejubilarás com a vista do sol, te
aquecerás com seus raios e o ar que respirarás será muito mais saudável do que do outro lado.
Se os inimigos irromperem por trás da montanha, informado por sentinelas, fugirás a tempo, se
julgares que estás despreparado. Julgando que podes vencer sem muito risco, espera-os
resolutamente para combatê-los. Entretanto, não combatas em terras elevadas, a menos que
sejas obrigado. Sobretudo, nunca persigas o inimigo em terras altas ou sob sol poente.”

O suposto bibliotecário local do maldito presídio de segurança máxima, o fabuloso


Tom Castro, velho ladrão-de-casaca de bailes grã-finos da outrora romântica São Paulo, um
velho leitor de contos vagabundos e de infâmia, resmunga em direção ao Subcomandante do
Crime, enquanto pinta um quadro, pura terapia ocupacional, é o que diz?, sabe-se lá o que nos
reserva essa arte.
“Que diabos adianta, quase auto-ajuda, assim você vai acabar virando um bandido de
mierrrrdaa, já já estarás lendo Pablo Conejo. Que adianta enfrentar o perigo da vida e acabar
numa esquina sem perigo algum da existência e da linguagem?!”, provoca o malaco.
Puto com o estado das coisas ali dentro, o velho Tom Castro arranja algo mais
espirituoso para leitura do Subcomandante.
“Você morre sozinho, mas vigiado”. Assim começa o livro que ele repassa.
“Videizas?”, indaga o bibliotecário, que às vezes, esnobe, metido, passava a falar
com aquelas palavras que roubava de “Laranja Mecânica”, mó cara dura, para lá de óbvias,
belo picareta.
Soava falso, mas nem sempre, leu de tudo mesmo quando trabalhava como ilustrador
das capas do Clube do Livro, aquelas capas bem..., capas que já matavam o mistério dos contos
e romances todos. A do best-seller “Só o Vento Sabe a Resposta”, por exemplo, era uma
interrogação feita de vento.
O verde violentou o muro”, de Inácio de Loyola Brandão, era um nesga clorofilada
rompendo tijolos e resistências.
As capas eróticas, então, haja dorso explícito, que rico!

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O volume que Tom Castro entregara ao Subcomandante do Crime era a “A LEI QUER
QUE EU MORRA”, de Caryl Chessman, do mesmo autor de “2455 CELA DA MORTE”,
famoso bandido da América.
No mesmo pacote presenteou com “Homero, o junkie”, gravação do grupo de rock
mundo livre s/a cuja letra é inspirada no mesmo Chessman:

“Às vezes uma voz interior insiste no futuro


aí é quando se cai na gargalhada...

Vejam como os homens culpam os deuses


de nós, dizem eles, vem o mal
mas através de sua própria perversidade,
e mais do que merecem,
encontram...
A tristeza.
Assim falou Zeus,
pai dos homens e dos Deuses,
pela boca de Homero,
o Junkie.

Às vezes uma voz interior insiste no futuro


Aí é quando se cai na gargalhada
Porque é o seu futuro

O futuro é uma câmara de gás!


O futuro é uma câmara de gás!
O futuro é uma câmara de gás!

(Seu ódio)
Porque é o seu futuro
(Seu ódio)
Que coisa perfeita é o seu ódio!
Aí ficaremos e o nosso triunfo é saber
É saber
que ninguém entenderá
Nossa vitória não será entendida
(Teremos vencido)
No entanto, teremos vencido!
(Teremos vencido)
No entanto, teremos vencido!
(Teremos vencido)

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No entanto, teremos vencido!

(Teremos vencido)
Poderia ser mais
(Teremos vencido)
poderia ser muito melhor
(Teremos vencido)
Com a destruição flamejante do inferno
(Teremos vencido)
que a sociedade alimenta
alimenta
(Teremos vencido)
e nega indignada que o faz!
(Teremos vencido)
Que o faz!

(Teremos vencido)
Que final, que final,
que final mais adequado
para essa farsa
farsa
que foi planejada por nós,
por nós,
amigo,
amigo ódio”.

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“Sempre fui louco para ver o sol nascer quadrado para poder, finalmente, pôr a minha
leitura em dia”, desfiava as suas pabulagens o velho Tom Castro. Tom Castro que mantinha,
clandestinamente, uma pequeno alambique, pinga destilada de arroz e de bagaço de laranja,
num mocó do presídio.
Segundo o velho Tom Castro, a cadeia, não a escola, CUIDADO ESCOLA, vide placa
de trânsito, a cadeia era o melhor lugar do mundo para formar grandes homens e leitores como
ele. Condenado a pena máxima, por justos roubos a milionários perversos, havia cumprido o
seu tempo além da conta, além do 1/6.
Aproveitou que o Estado esquecera de liberá-lo, conforme previsto nas tábuas, e foi
mofando por ali mesmo, lesma é lesma, encalacrava-se na ilusão de achar-se um leitor de verdade,
o último deles, quando, à vera, não passava de um velho fornecedor, à guisa de terapia prisional,
de quadros para feiras populares, como a da Praça da República, na cidade de São Paulo.
Tom Castro odiava a possibilidade de estar solto outra vez, não havia nada que o
despertasse aqui fora.
Amores?
Ele ria de doer o estômago.
Família?
Ficou no ralo das punhetas e nas clínicas de aborto.
Posses?
Toda propriedade é um roubo, dizia o ladrão, numa entrevista imaginária que respondia,
cada vez com mais perguntas, todas as noites em que os inocentes carneirinhos contabilizados
não davam jeito no seu sono dos justos.
O que vai fazer quando se livrar das grades?
Enquanto tiver livros no mundo, só saio daqui morto. A rua tem mão dupla, terreiro do
demo da ansiedade, gabava-se. Ora, ora, só li Guerra & Paz 42 vezes, que merda, o diabo que
me livre de ser mais um analfabeto lá fora!.
Tom Castro, nascido na Vila Tolstoi, zona leste deste pueblo, defendia umas teses
estranhas, todas para esconder a sua suposta pequenez de pintor de quadros kitsch. Era o
melhor exemplo, há tempos, de um programa de artes plásticas nos presídios da América
Latina. Um programa que combinava pintura naif e redução de penas.
Master dos masters no gênero.
Uma das teses estranhas, não sabemos se era desculpa ou álibi picareta, era a de
que todo homem devia passar pelo menos dez por cento da sua vida na tranca, na cadeia,
assim seria menos idiota.
A única coisa de boa que o Estado poderia fazer por nós, de acordo com a mente
daquele velho ladrão, era essa leitura por força das circunstâncias.
Vigiar e Punir, ele adorava esse título.
“Por baixo, por baixo, o filho-da-puta aqui se vicia em ler a Bíblia,” rosnava, enquanto
não lia, enquanto só pintava telas com cavalos gigantes azulados.

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“É lucro, porque para os bandidos Jesus vale tanto quanto Dimas, o ladrão da cruz ao
lado. Os dois se confundem na mesma persona”, discursava.

Além da invenção da leitura, o grande luxo da existência, como dizia, dizia para
ninguém, ninguém o escutava nessas horas, todos achavam lindas eram suas pinturas, pinturas
também vendidas nas visitas das esposas e filhos aos domingos na penitenciária. Pintava
também uns eróticos de motel barato. Além da leitura, dizia Tom Castro, seria a coragem,
repetia o velho, a coragem, repetia para ninguém na cela, além da leitura seria a coragem o
grande luxo da existência, a coragem como aqueles malucos marinheiros de navios perdidos
de Conrad, dos malucos dos navios de livros de aventuras, seu hobby, espremidos e sob
tufões, como o banditismo por necessidade, como a coragem dos cangaceiros do Rio Pajeú,
homens que atravessam as linhas de sombras, cabras de olhos amarelos como Chivas, o cavalo
de Fodasno, seu amigo, essas criaturas que já nascem com o cheiro de sangue nas ventas, uma
vida-cabidela, como descobrira ao ler “Guerreiros do Sol”, samurais incandescentes.
Muitos bandidos compravam quadros de Tom Castro, na penitenciária, como adorno
provisório das fodas dos encontros íntimos de domingo.
Alguns até confessavam que sem os quadros não teriam aquela paudurescência toda.
Tom Castro se orgulhava e não se orgulhava disso.

Caryl Chessman no corredor da morte...


Tom Castro escrevia também um livro, escrevia não, dizia que, segundo ele o romance
tinha como personagem-chave dos nossos tempos: O HOMEM COM O CU NA MÃO.
Um romance com desenhozinhos, supostamente infantis. E lá estava o homem com o cu
na mão, era assim que ele via os homens da cidade grande:

Cap. XXIX – Da Zumbilândia e das pedras zaratretas da fumaça nada


azulada dos becos pulmonares

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Nóias pedradas no cachimbismo que azula a napa, horizonte possible de nuvens


gosmentas, catota-mor como raspa de parede ou caspa do capeta da Estrada das Lágrimas.
O blimbão ermo da mundana glória arruaceira que se esvai diante de um Pico do
Jaraguá público sierramadrastoso que agora se transmuta em ouro matarazzento sem sequer um
samba de tiro certeiro no miolo privado do juízo.
Ditirambo zaratruta!
Só nos resta ouvir Wagner na Sala San Pablo de Conciertos para celebrar o
massacre na Zumbilândia.
Não há tempo sequer para um tango argentino, espirra de longe o populista e gigante
nariz de miss Evita, tombado na tríplice fronteira.
[“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele que desce à sepultura nunca tornará a
subir. Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu lugar o conhecerá mais." (Jó 7:9-10)]
Do pó ao pó, ainda aparece um austero e zeloso pastor do óbvio para a derradeira récita,
aquele mesmo que ainda há pouco trocava lições de moral por um boquete no cinema pornô
dos travecos da Rua Vitória. Ele encostava na nuca das travas com o fogo dos sermões do
inferno - “La Sida vai te destruir com a força do Satanás”- em troca de um eucarístico perdón
chupetoso. Só fazia silêncio quando a gala esporrava nos lábios iracemosos das meninas e ele
imediatamente rogava uma licença poética a Deus.
(...)
Las madres sem plazas de maio e sus chicos bueñuelitos sem vuelta alguma.
A salvación de los nóias, cantou a pedra, é virarem peças vivas do Museu da Língua
Portuguesa, ali miesmo em Cracolândia City Lights... Senhores e senhoras lingüistas deste
pueblo, eles emitem sinais muito mais guimarães-rososos, nonadas um carajo, esses nóias, se
escrevessem, seriam os novos Joyces, Cucurtos y escambais cumbiosos da niegra latinoamérica
bahiana, o nó de catingueira arcaico na última flor na solapa da miséria.
(...)
Liguei o gravador paraguayo de biógrafo-reportero e mal consegui copiá-los depois...
vômitos de dublinescas cracolândias, melhores que o glossário Nadsat de Laranja Mecânica, o
relógio da Luz, o trem, os vendedores também grunhem, por Bog, pelos meus druguis, pelas
nijnis, amém, o cachimbo aceso, volteio com eles, finitum est.
“Tio, novrungg, tio, noiadex, vrute, tio, tiozim, ~~~~~”, é mais ou menos isso o que
consegue me dizer, como um guimarães-rosé chapado e de roupa branca suja de bosta de
mula-manca, o que me late o pivete por detrás da nuvem azulada e de outros tantos grogotós
cachimbosos possíveis. “Tio, arahãn…” Ainda ouvi alguns sons que pareciam saídos dos
livros de Evandro Affonso Ferreira, novrugg, noiadex, vrute...
...novrugg, noiadex, vrute... zrung, broki, dumdunz, noiabis, bisoqs, soletys, bizungs,
crackzumba, crakbolic, quimec, ghotyk, molerex, cucutz, cerebaq, ventica, pantovis, rolexxx,
vultap, moolamb, gabixag, sengrazante, imprizinido, garoabina, chumbowa, kohu, concriviz,
tretovsky, islambeck, lexiria, sharab,zarba tãnâlain, akhmano, cachimoviz, vigix, pow, zimbre,
choborvz, novisblef, mortajis, tinajeks, ninjavsk, penumbrosys, akijazz, zamux, tanats, doraveliz,
ginsback, delantistic, clickatoa, niilville, ninjobanzu, virialis, junkevoix, muambases...

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ÉPILOGO CAUBÓI PARA O LEITOR AINDA COM POEIRA NO NARIZ

O cavaleiro folgazão, vulgo Fodasno, folgou ao saber do fim da história via Fukwiama,
o que o pilhou, raiowakizou, para buscar las fuerzas dos fundamentalistas da tríplice fronteira.
Donde facilmente, numa aliança naturalíssima entre os violentos justiceiros Alalaôs e os
refugos alcalinizados de todas las bidas desperdiçadas deste pueblo crackolandês, marcharam
para la revancha possible dos akhmanos de San Pablo.
La revolución estaba en las garras invisibles dos ninjas-mores, hombres-molambos sem
cabeças, apenas os vultos de viejos cobertores andarilhos que se multiplicavam como gabirus-
ninjas de esgoto e sufocavam os inimigos em la calle, em suas torres, corporaciones e nos seus
confortáveis leitos.
Daí por delante, nunca mais uma criatura dormiu neste condado babilônico, donde o
biógrafo Augusto Sombra catalogou dois tipos de insones: os que não dormem porque estão
no inferno e os que não dormem com medo destes mesmos credores, que cobram a sua
parte em sonhos, pesadelos e cevadas onças das cédulas de cinqüenta.

[O FIM]

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Muito prazer, EDITORA DO BISPO


Bispo, mas que bispo? Dos bispos surrealistas, aqueles? Ou uma justa homenagem ao
reverendo Richard de Bury, bispo de Durhan, o homem que amava os livros, que ainda no
século XIV foi um dos maiores bibliófilos de que se tem notícia? Por que não o bispo
Sardinha, jesuíta devorado gulosamente pelos bravos caetés? Decifrem-nos ou reclamem
ao bispo! Fundada no ano da graça de 2005, em São Paulo, a editora defende a política
do copyfree ou copyleft, ou seja, é favorável que os seus próprios livros sejam reproduzi-
dos ou copiados livremente. Na linha de atuação editorial, o bispo adotou as quatro
divisões mitológicas que mais interessam aos destinos da humanidade: sexo, drogas,
rock´n´roll & religião, amém.

CONHEÇA NOSSOS LIVROS

Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias


por Xico Sá
Com uma linguagem que usa como modelos os manuais eróticos da antiguidade árabe, a
Bíblia e as sacanagens da escola Carlos Zéfiro, este volume é um tratado de devoção às
mulheres e uma defesa radical do hedonismo e do prazer. As breves e pecaminosas
orações do autor abordam, dos temas mais antigos, como o uso dos espartilhos e a
sodomia, até o sexo virtual dos tempos do Messenger e do Orkut.
400 págs.

TTSSS... A grande arte da pixação em São Paulo/Brasil


org. Boleta
Quem ergue a vista para os céus de SP encontra um verdadeiro jardim suspenso de Babel.
Naquelas pichações – ou pixações, com “x” mesmo, como usado na linguagem das ruas –
há um decifra-me ou te devoro permanente. As gangues e grifes têm as suas tipologias
próprias, como se fossem os novos Gutenbergs do caos urbano. Enquanto o Estado e a
polícia lêem estes rabiscos como vandalismo, a Editora do Bispo apresenta, em fotos,
“agendas” dos pixadores e mostruário de tipos de letras, um grande livro de arte de rua.
edição bilíngüe – português/inglês.
152 págs

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Aurélia, a dicionária da língua afiada


por Fred Libbi e Ângelo Vip
Escândala! A Editora do Bispo orgulhosamente apresenta o primeiro dicionário, ou melhor,
a primeira dicionária publicada no Brasil que contempla palavras, gírias e expressões do
universo gay em língua portuguesa. De A de “ababé” a Z “zuzo bem”. Sem a menor pre-
ocupação com a chatice do politicamente correto, com Aurélia você vai ficar por dentro da
riqueza dos vocábulos GLS de todas as regiões do país, do tosco “cafuçu” ao “axoxique”
das boates modernas. De bônus track, o leitor ainda tem uma série de verbetes de todos
os países que falam o português mais afiado no mundo.
143 págs.

Por que se mete, porra?


Delicadezas de Paulo César Peréio
Gaúcho de Alegrete, 66 anos de vida e 50 anos de carreira, Peréio é um dos mais impor-
tantes atores do país. Atuou em 100 filmes, entre longas e curtas, como “Os Fuzis” (Ruy
Guerra), “Terra em Transe” (Glauber Rocha), “Eu te amo” (Arnaldo Jabor), “Iracema, uma
Transa Amazônica” (Orlando Senna e Jorge Bodanzky), entre outros. Integrante do Teatro
de Arena, em São Paulo, participou de montagens históricas, como “Roda Viva”, nos anos
1960, e dirigiu e protagonizou a peça “O Analista de Bagé”, nos anos 80. O livro é um apa-
nhado afetivo da vida do artista, um carregamento de achados e perdidos, cartas, cartões, con-
têineres de amores e dolores, cantos malditos de guardanapos, delírios e o fabulário em
geral de Peréio.
162 págs.

Manual para fazer das crianças pobres churrasco ou Modesta proposta para
evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para seus pais ou seu país.
por Jonathan Swift
tradução Clarah Averbuck
ilustrações Fabia Bercseck
O renomado e clássico Jonathan Swift, o homem d´As Viagens de Gulliver, nos apresenta
o atualíssimo “Manual para fazer das crianças pobres churrasco”, um texto político e satíri-
co do século XVIII, mas perfeitamente válido para os nossos dias no Terceiro Mundo.
A tradução e apresentação ficaram por conta da escritora Clarah Averbuck, com ilustrações
da artista Fábia Bercseck, o que emprestam ao livro mais luxo ainda. Embalado a vácuo,
como em um frigorífico ou supermercado, o manual é mais um projeto gráfico de Pinky
Wainer que preza, sobretudo, pelo assassinato da caretice editorial.
92 págs.

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Mídias, Máfias & Rock’n’Roll


por Claudio J. Tognolli
Neste livro, Tognolli, que é professor do curso de Jornalismo da Escola de Comunicação e
Artes (ECA), da USP, revela segredos da mídia – o que sai e o que não é publicado por
razões nem sempre ocultas – e os bastidores de grandes escândalos: PC Farias, Daniel
Dantas, PCC, a morte do embaixador e as escutas do governo Lula, etc.
Da política ao jornalismo cultural, o livro é uma bíblia para estudantes de Comunicação e
um legítimo escudo para leitores, ouvintes e telespectadores, que a partir de agora ficarão
mais atentos e saberão desvendar os enigmas nada inocentes de jornais, rádios e tevês.
“Máfia, Mídia & Rock´n´Roll” pode ser lido também como um grande livro de aventuras de
um repórter que atuou em 30 países e, amigo do bruxo Timothy Leary, o guru do LSD, abriu
as portas da percepção para as grandes viagens.
160 págs.

JOSÉ SIMÃO no país da piada pronta


dicionário tucanês, lulês e antitucanês
José Simão

Os dicionários do Simão - tucanês, antitucanês e lulês - publicados neste livro são mais
relevantes para a leitura da história contemporânea brasileira do que muitos compêndios
de sociologia tupiniquim. Com a maior de todas as vantagens humanas: não estão
impregnados pela tinta da chatice e da rabugem.
Porque Simão é um artista pop brasileiro, no sentido de vida e no sentido de popular
mesmo, como queria Andy Warhol, uma das suas tantas influências.
No país da piada pronta, não é nada fácil ser um grande humorista. A concorrência desleal
com a realidade é um terror. Neste livro, lançado orgulhosamente pela Editora do Bispo,
além dos dicionários, Simão desvenda ao leitor os segredos da arte da sua escrita e dos
seus comentários de Rádio e TV. Saiba, entre outros mistérios, porque um banho e um
bom figurino podem ser importantíssimos para fazer um programa radiofônico.
216 págs.

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site: www.editoradobispo.com.br
TV do Bispo: www.videolog.com.br/editoradobispo
Blog do Bispo: www.dobispo.zip.net

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Um cavalo que foge de uma famosa estátua eqüestre beija
e ampara na sarjeta o cavaleiro delirante. Don Augusto
Sombra, o biógrafo de vidas desperdiçadas, colhe relatos
nas tabernas, onde encontra don Macedonio Fernández
e o incrível sr. Knut. Esperanza, marcada por agulhas
de fabriquetas coreanas e a febre da selva, pisoteia los
hombres em la calle. A insone Viridiana, chica buñuelistica,
desconfia que tudo não passa de uma fábula envenenada
com boa-noite-cinderela. A essa altura, o portunhol selvagem
é a nova língua da Babilônia. Preparem seus corazones,
senhoras e senhores, as aventuras nos chacos existenciales
de San Pablo estão apenas começando. Tudo acontece na
mais longa noche deste pueblo, quando os Gângsteres do
Sol Quadrado impõem o toque de recolher na metrópole-mor
de latinoamérica.
“Tal como a nuvem se desfaz e some, aquele
que desce à sepultura nunca tornará a subir.
Nunca mais tornará à sua casa, nem o seu
lugar o conhecerá mais.” (Jó 7:9-10)

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