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PESQUISA Bactérias Lácticas

AS BACTÉRIAS LÁCTICAS NO CENTRO DOS NOVOS DESAFIOS TECNOLÓGICOS


Jean-Christophe Piard, Yves Le Loir, Isabelle Poquet e Philippe Langella*
Pesquisadores doutores do Institut National de la Recherche Agronomique, Unité de
Recherches Laitières et de Génétique Appliquée,
78350 Jouy-en-Josas, France.
*langella@biotec.jouy.inra.fr
Traduzido pelos professores doutores Vasco Azevedo e
Ana Lúcia Brunialti Godard.
Depto de Biologia Geral/ICB-UFMG

Utilização das bactérias lácticas 1989). Por exemplo, em animais de cria- da lactose. Esse açúcar, presente em abun-
na atualidade ção cuja alimentação foi suplementada dância nos produtos lácticos, pode indu-
com certas bactérias, estas agem no au- zir fenômenos de intolerância nos consu-
principal função das bactéri- mento da taxa de crescimento desses midores que possuam deficiência congê-
as lácticas nos alimentos é a nita em lactase, a enzima que o degrada.
animais. Essa noção já havia sido suscita-
acidificação dos produtos ali- da por Metchnikof, em 1908. Entretanto, O quadro clínico pode ser traduzido por
mentares em um pH próximo diarréias, cólicas abdominais ou flatulên-
ela só despertou interesse há poucos anos
de 4, que impede o desenvol- e se inscreve no quadro de evolução cia. Curiosamente esses sintomas apare-
vimento de bactérias indesejáveis pela pro- comportamental dos consumidores em cem quando a lactose é absorvida do
dução de ácidos orgânicos, majoritaria- busca de uma alimentação benéfica à leite, mas são ausentes quando absorvi-
mente ácidos lácticos. Isso permite que o das do iogurte nas mesmas proporções.
saúde. As indústrias agroalimentares inte-
período de conservação dos produtos fer- graram esse novo desafio e assistimos aoExistem duas explicações para o fenôme-
mentados seja muito maior que a dos aparecimento quase quotidiano de novos no: a flora bacteriana do iogurte (Strepto-
produtos onde a matéria-prima não seja produtos, sobretudo lácticos, aos quais coccus thermophilus e Lactobacillus bul-
fermentada. garicus) (1º) suplementaria a deficiência
são atribuídas qualidades probióticas nem
Um dos papéis principais das bactérias sempre comprovadas. em lactase do hospedeiro com a sua
lácticas é a higiene. Outro papel é desen- própria; (2º) estimularia, na mucosa intes-
volver as propriedades organolépticas dos As atividades probióticas tinal do hospedeiro, a produção endóge-
alimentos fermentados. Por meio da pro- na atualidade na da lactase.
dução de um grande número de enzimas Uma outra atividade probiótica exer-
glicolíticas, lipolíticas e proteolíticas, as BL Três tipos de atividades probióticas cida pelas BL é higienizar o tubo digesti-
transformam os nutrientes fundamentais foram estabelecidas cientificamente. A vo, que hospeda uma flora microbiana
dos produtos agricolas em compostos com primeira é relacionada à digestibilidade abundante, sendo que parte dela perten-
propriedades organolépticas ce ao grupo das bactérias lácti-
complexas. Essas atividades cas. Essa flora exerce uma fun-
bioquímicas permitem às BL A fermentação láctica constitui uma das formas mais ção importante na capacidade
modificar pouco a pouco a antigas de conservação de produtos oriundos da do hospedeiro de se defender
estrutura e o aroma dos ali- agricultura ou da indústria agroalimentar. Esse tipo de contaminações digestivas
mentos fermentados e de con- de fermentação está relacionado, em primeiro lu- causadas pelas bactérias pato-
tribuir para o desenvolvimen- gar, com os produtos lácteos (iogurte, queijos, man- gênicas. Assim, a flora endóge-
to das suas qualidades gas- teiga, creme), mas também com carnes, frios, pão de na do hospedeiro estimularia
tronômicas. levedo, chá, sidra, cerveja e vinho (fermentação as respostas imunitárias e teria
Além dessas funções de maloláctica). A fermentação láctica é feita por diver- uma função de barreira prote-
ordem tecnológica, atribuí- sas bactérias chamadas bactérias lácticas (BL) devi- tora ao ocupar os nichos pro-
mos também ‘as BL, que nós do à sua atividade principal, que é a conversão dos curados pelos patógenos. Além
ingerimos vivas, atividades açúcares do meio em ácido láctico. As espécies de servir de barreira protetora,
probióticas. Dizemos que bacterianas em questão pertencem a cinco gêne- certas BL mostraram-se capa-
uma bactéria possui uma ati- ros: Lactococcus, Streptococcus, Lactobacillus, Leu- zes de diminuir os sinais clíni-
vidade probiótica quando, se conostoc e Pediococcus. São cocos ou bacilos gram- cos ligados a infecções intesti-
ingerida viva por um hospe- positivos que possuem uma percentagem em G+C nais. Os resultados mais signi-
deiro determinado, exerce no genoma inferior a 54. Devido a essa caracteriza- ficativos foram obtidos com
sobre este um efeito benéfi- ção, existe uma controvérsia em se a espécie Bifido- certos tipos de lactobacilos e
co direto ou indireto (Füller, bacterium pertence ou não a esse grupo, pois ela também com os bífidos que se
possui mais de 55% de G+C no genoma.
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seqüência de genomas de diversas
Figura 1. Detecção da nuclease produ- espécies de BL está sendo feito.
zida por clones de Lactococcus lactis. O A idéia é utilizar as BL como
meio de detecção contém DNA, ágar e veículo de diversas atividades bio-
um corante metacromático básico, o lógicas a serem introduzidas no
azul de toluidina. A interação do DNA tubo digestivo. Uma dessas poderá
com o azul de toluidina faz com que o ser a de produzir enzimas para
estado nativo do meio seja azul. Em suplementar deficiências pancreáti-
presença da nuclease, a degradação do cas ou vitamínicas para melhorar a
DNA libera o corante que se fixa sobre saúde do hospedeiro ou oferecer-
o ágar do meio e a coloração torna-se lhe um melhor conforto intestinal.
rosa. Os clones azuis expressam, mas Essas aplicações se situam na área
não exportam a nuclease; o acréscimo de desenvolvimento de produtos
de um sinal de secreção permite a ex- de um novo tipo de alimento, o
pressão do fenótipo Nuc+ revelado pela “alimento-saúde”. Nessa categoria
aparição de halos rosa em torno das de produtos, as BL não serão so-
colônias. mente escolhidas pelas suas apti-
dões tecnológicas, mas também pe-
mostraram particularmente eficazes no essas atividades in vivo (Marteau & Ram- las suas atividades probióticas. Podemos
tratamento das diarréias do recém-nasci- baud, 1993). pensar que, no futuro, um tipo de produto
do. Em resumo, existem evidências de fermentado poderá ter várias versões,
Enfim, está bem estabelecido que cer- que as BL ingeridas vivas e em quantida- segundo o conteúdo das BL adaptadas a
tas linhagens de BL possuem atividades des importantes (cerca de 10 8 bactérias diferentes deficiências o que, por exem-
adjuvantes que estimulam a resposta imu- por grama de alimento fermentado) são plo, facilitaria a digestão de certos glicídi-
nitária do hospedeiro contra antígenos. capazes de exercer efeitos biológicos so- os ou suplementariam nutrientes raros, e
Dos lactobacilos, a espécie casei mostrou- bre o hospedeiro. Como acabamos de outros.
se capaz de estimular a resposta imunitá- ver, algumas dessas atividades são bem Uma outra perspectiva particularmen-
ria das crianças quando vacinadas por via estabelecidas. Outras ainda necessitam te atraente é utilizar as BL como vacinas
oral contra o rotavírus, vírus responsável de demonstração clara e reprodutível, vivas (Daugen, 1994). Nesse caso, tenta-
pela diarréia aguda infantil nos países em como o uso de recursos como os testes de remos fazer com que as BL produzam
desenvolvimento (Isolauri et al., 1995). duplo cego e a inclusão de um grupo antígenos ou peptídeos imunogênicos ca-
Nós veremos que a atividade adjuvante placebo. A dificuldade desse tipo de estu- pazes de induzir uma resposta imunitária
das BL abre caminhos interessantes para do é que freqüentemente, as linhagens contra um certo patógeno. Essa seria uma
aplicações na área médica. bacterianas presentes nos produtos fer- solução promissora para controlar doen-
Outras atividades probióticas para as mentados são selecionadas por meio de ças endêmicas causadas por numerosos
BL foram propostas, e as mais interessan- critérios tecnológicos e não probióticos. vírus ou bactérias patogênicas que entram
tes são as atividades anticolesterolêmicas Além disso, as atividades procuradas são, no organismo pela via oral (como, por
e antitumorais. No entanto, mais experi- frequentemente de pouca intensidade, exemplo, água potável e alimentos) e se
ências ainda são necessárias para de- ficando difícil evidenciá-las em um ecos- desenvolvem na mucosa digestiva. A mu-
monstrar que as BL exercem, de fato, sistema complexo como o tubo digestivo. cosa digestiva é um órgão linfóide impor-
tante e a indução de imunidade de muco-
...e no futuro sa permite uma luta precoce contra nume-
rosas infecções. A noção de vacina viva
A partir do acúmulo administrada oralmente é também atraen-
dessas constatações, vári- te no âmbito sócio econômico: essas
os laboratórios, há alguns seriam vacinas de fácil administração e de
anos, tentaram superpro- baixo custo. Esses argumentos incitaram a
duzir moléculas com efei- Organização Mundial de Saúde (OMS) a
tos probióticos nas BL. colocar o desenvolvimento desse tipo de
Essa perspectiva começou vacinas como objetivo prioritário de saú-
lentamente a se tornar re- de pública. Nesse tipo de aplicação, as BL
alidade graças aos conhe- constituiriam uma nova categoria de pro-
cimentos acumulados nos dutos: “bactérias-medicamentos”.
últimos 15 anos sobre a
genética das BL, e, sobre- Dos genes às proteínas:
tudo, da Lactococcus lac- pesquisas em andamento
tis. Muitas técnicas genéti-
cas estabelecidas para essa Para desenvolver essas novas aplica-
bactéria foram adaptadas ções com as BL, as linhas de pesquisa
para as outras espécies de seguiram basicamente os seguintes eixos:
BL. Hoje, podemos intro- l Seleção de linhagens de BL
Figura 2. Secreção das proteínas duzir DNA em um grande número de BL;
pela via Sec-dependente. Ver texto foram também desenvolvidos instrumen- É a seleção das linhagens de BL mais
com a descrição do mecanismo. tos genéticos de um amplo espectro de adaptadas para as aplicações desejadas.
SS, seqüência sinal, Sinal Pase , hospedeiros (plasmídios, transposons, sis- Um dos critérios importantes é sua resis-
peptídeo sinal. temas de expressão indutíveis, etc.) e a tência à forte acidez gástrica (~pH 2). Essa

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deve deixar o compartimento citoplasmá-
tico e ser dirigida para a parede celular ou
para o meio externo. Essa proteína está
sujeita a encontrar vários obstáculos,tais
como proteases, que podem degradá-la
ainda no citoplasma, a necessidade de
atravessar a membrana citoplasmática e,
posteriormente, a parede celular. Após
essas etapas serem vencidas, a atividade
desejada dependerá das moléculas esta-
rem em sua conformação nativa.
Nosso laboratório está engajado nos
estudos desses mecanismos de exporta-
ção, etapa obrigatória para controlar a
Figura 3A. A estrutura das proteínas ancoradas nas bactérias gram-positivas: estas produção de moléculas dotadas de ativi-
proteínas são sintetizadas sobre a forma de precursor com uma seqüência sinal N- dades biológicas nas BL. Para facilitar
terminal e uma seqüência de ancoramento C-terminal; esta última tem uma estrutura nosso trabalho, escolhemos uma proteína
composta de três partes, de um motivo LPXTGX, de um fragmento transmembrânico modelo, NUC. Ela é uma nuclease de
e de uma extremidade C-terminal com carga, freqüentemente, positiva. Staphylococcus aureus, enzima esta que
degrada ácidos nuclêicos e cuja atividade
pode ser detectável por um teste de
resistência ao ácido é variável de uma possuem uma atividade fraca ou nula colorimetria (fig.1). Exploramos esse teste
espécie para outra, mas podemos fazer mas, quando sobre a ação de um estímu- para detectar os clones de BL capazes de
adaptações ou modificações genéticas para lo, iniciam ou aumentam fortemente a expressar e de exportar essa nuclease.
aumentá-la. expressão do gene que eles controlam. As Expressamos o gene da nuclease (nuc)
Um outro critério é a capacidade de a BL presentes dentro do tubo digestivo em L. lactis ( Le Loir et al, 1994). Quando
linhagem se manter por menor ou maior recebem um grande número de estímulos somente a porção do gene nuc codifican-
tempo no tubo digestivo; certas BL, como físico-químicos (temperatura de 37°C, pre- do para a enzima madura é expressa, a
as L. Lactis, transitam dentro do tubo sença de sais biliares, estados sucessivos nuclease é produzida no citoplasma e os
digestivo e são rapidamente evacuadas de carência e abundância nutricional de clones recobertos do meio de detecção,
nas fezes; outras, como certos lactobaci- acordo com o trânsito do bolo alimentar, aparecem sobre fundo azul (fig.1). Por
los, são capazes de colonizar o tubo etc...) e numerosos estudos são feitos no outro lado, quando a mesma porção de
digestivo. Uma ou outra dessas duas nosso laboratório para caracterizar pro- nuc é expressa em fusão com um sinal de
situações pode ser preferida, de acordo motores que respondem a estas variações secreção, a nuclease produzida pode ser
com a aplicação que pretendemos utili- do meio exterior. detectada pelo aparecimento de halos
zar. rosa em torno das colônias (fig.1). A
Um último critério a ser considerado é l Exportação de proteínas nuclease utilizada nesse experimento é
o caráter imunoestimulante das linha- heterólogas chamada de repórter, pois sua atividade
gens. Nós vimos que certas BL têm uma nos permite localizar as proteínas expor-
atividade adjuvante que potencializa a Se a presença de um promotor “ad tadas entre uma população heterogênea,
resposta imunitária. Mas o nível dessa hoc” permite
imunoestimulação varia segundo as li- a expressão
nhagens e esse parâmetro deve ser levado de um deter-
em consideração na elaboração de linha- minado gene,
gens vacinais. é necessário
que, em segui-
l Expressão (indutível) de genes da, o produto
heterólogos desse gene
(enzima ou
No desenvolvimento de “alimentos- antígeno) seja
saúde”, procuramos identificar enzimas produzido em
de BL cuja super expressão permitirá um local que
induzir efeitos benéficos para o hospedei- lhe facilite o
ro. Neste caso fazemos uma autoclona- contato com o
gem ou pelo menos clonagem semi-ho- seu substrato
móloga (gene proveniente da mesma es- ou seu alvo.
pécie ou do mesmo grupo microbiano). Na maioria
No caso de desenvolvimento de vacinas dos casos, ten-
vivas o caso é oposto, porque procura- tamos que
mos produzir antígenos virais ou bacteri- essa enzima
anos. ou antígeno
Para estas aplicações, nós desenvol- produzido seja apresentado no meio ex- Figura 3B. O mecanismo de expor-
vemos técnicas para identificação de si- terno em sua forma livre (secreção), ou tação das proteínas ancoradas, ver
nais (chamados promotores) que contro- ligada aos envelopes bacterianos (anco- texto com descrição do mecanismo.
lam a expressão gênica nas BL. Procura- rada). Nos dois casos, a proteína recém- CWA, Cell Wall Anchor para a região
mos promotores ditos indutíveis. Estes sintetizada deve ser exportada, ou seja, de ancoramento à parede celular.

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que contém também proteínas citoplas- interrompido pelo transposon) ou hiper- uma seqüência sinal N-terminal e um
máticas. Esse sistema repórter é usado no secretores de nuclease (no caso onde a sinal de ancoramento C-terminal. Este
nosso laboratório em diferentes linhas de inserção do transposon tenha desregula- último é constituído de cerca de trinta
pesquisa. do um gene constituinte ou um colabora- aminoácidos, sendo 20 deles hidrofóbi-
dor da maquinaria de secreção). Os genes cos, que formam um fragmento trans-
l Pesquisa de sinais de atingidos são em seguida sequenciados membrânico. O processo de exportação
exportação nas BL para construir, gradativamente, o quebra- desse tipo de proteína é quase idêntico
cabeça dos componentes celulares impli- ao das proteínas secretadas que possuem
Em todo o organismo vivo, as prote- cados na secreção das proteínas. Como o um sinal que interage com a maquinaria
ínas que serão exportadas para fora da genoma da linhagem IL 403 de L. lactis foi de secreção celular. Entretanto, neste
célula possuem sinais que indicam ao inteiramente sequenciado no nosso labo- caso, a translocação da proteína é incom-
organismo a sua localização final. Esses ratório, procuramos por homologia, os pleta devido ao fato de o fragmento
sinais podem ser de três tipos, mas todos genes que podem intervir no processo de trasmenbrânico C-terminal impedir a sua
os tipos são constituídos principalmente exportação no sentido mais amplo das transferência. (fig.3). A última etapa do
por aminoácidos hidrofóbicos. Eles são suas etapas mais precoces às mais tardias: processo de exportação é o corte da
reconhecidos pela maquinaria de secre- da conformação e estabilidade da prote- proteína a nível do motivo LPXTG e a
ção celular que encaminha a proteína em ína, antes e depois da translocação. formação de uma ligação peptídica entre
direção à membrana através da qual ela é o C-terminal da proteína e um aminoáci-
translocada (fig.2). O sinal hidrofóbico l Caracterização da maquinaria do do peptídioglicano. O complexo enzi-
pode ser clivado por uma peptidase, sinal de ancoramento das proteínas mático que faz a hidrólise ao nível do
que tem o efeito de liberar a proteína em L. lactis motivo LPXTG e sua ligação à parede foi
madura no meio extracelular (é a secre- denominado de sortase e, por enquanto
ção mostrada na fig.2) ou ser clivado no Nas bactérias gram-positivas, as pro- ainda não foi caracterizado. Com esse
momento em que a proteína madura é teínas ancoradas à parede são sintetizadas objetivo, o mesmo vetor de transposição
modificada pelos ácidos graxos, o que sob a forma de um precursor que possui é utilizado para fazer mutagênese dos
leva à sua associação com a clones capazes de ancorar a
membrana ou, então, ficar nuclease e então procuramos
inserida dentro da membra- os transposantes capazes de
na, o que resulta em uma secretá-la. O sequenciamento
proteína transmembrânica. dos genes atingidos deve per-
Para identificar as proteínas mitir identificar os componen-
de L. lactis que possuam um tes do sistema de ancoramen-
tal sinal de exportação, utili- to das proteínas em L. lactis.
zamos as propriedades de Esse estudo é importante em
nuc como repórter (ver vários níveis. Permitirá o do-
fig.1). Pela construção de míno da apresentação na su-
uma biblioteca de DNA re- perfície das moléculas úteis.
presentativa do genoma bac- Deverá também ter impacto
teriano, construída na extre- importante na terapia das do-
midade 5’ do gene nuc, po- enças infecciosas. Por analo-
demos identificar fragmen- gia das estruturas C-terminais
tos de DNA que codificam das proteínas ancoradas nas
sinais de exportação, pois bactérias gram positivas, su-
os clones que integrarem pomos que o mecanismo mo-
esses fragmentos de DNA lecular de ancoramento das
tornam-se capazes de ex- proteínas parietais seja con-
portar a nuclease e de de- servado em todas essas bacté-
senvolver, então, halos rosa. rias. Entre as proteínas que se
Caracterizamos desta manei- ancoram utilizando essa via,
ra um grande número de algumas são fatores de viru-
sinais que permitem a ex- lência de bactérias patogêni-
portação da nuclease (Po- cas como Staphylococcus au-
quet et al., 1998). reus ou Streptococcus pyoge-
nes. O complexo sortase nas
l Caracterização da bactérias gram-positivas po-
maquinaria de secreção de L lactis Figura 4. Os sistemas de expressão dem ser um novo alvo na luta contra
(A), de secreção (B) e de ancoramento esses patógenos que, nos últimos anos,
Desenvolvemos no nosso laboratório (C) e a localização final da nuclease A desenvolveram mecanismos de multire-
um vetor para mutagênese aleatória por dentro da célula. P, promotor; SS, se- sistência aos antibióticos.
transposição, que nos permitiu identificar qüência sinal, nucA, porção do gene
genes implicados na secreção de proteí- da nuclease especificando a nuclease Das proteínas aos
nas (Maguin et al, 1996). O postulado A; CWA, ver Fig. 3B; ter, terminador de “alimentos-saúde” e vacinas vivas
inicial é que a inserção do transposon nos transcrição; MCS, Múltiplos sítios de
vários loci do genoma pode gerar clones clonagem destinados à inserção de Se a caracterização das maquinarias
hiposecretores (caso um gene constituti- genes que codificam para peptídios e de exportação das proteínas devem, no
vo da maquinaria de secreção tenha sido proteínas desejadas. futuro, permitir otimizar os sistemas de

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exportação de moléculas úteis, os sistemas de confinamento que impeçam
GÉNETICA DE BACTÉRIAS LÁCTICAS conhecimentos atuais permitem pensar a sobrevivência das bactérias no ambien-
nas suas aplicações. Dentro desse pano- te devem ser procurados.
rama, desenvolvemos vetores de expres-
Os trabalhos feitos no Brasil com são, de secreção e de ancoramento ( Le Referências Bibliográficas
bactérias lácticas são essencial- Loir et al, 1998; Piard et al., 1997 a-b). Dougan G. 1994. The molecular basis
mente aplicados à indústria de ali- Concebemos esses vetores com “casse- for the virulence of bacterial pathogens :
mentos e envolvem a utilização tes” que nos permitem trocá-las entre si, o implications for oral vaccine develop-
dessas bactérias em produtos fer- que possibilita modular o nível de expres- ment. Microbiol. 140 : 215-224.
mentados, principalmente aque- são do gene de interesse e determinar a Fuller R. 1989. Probiotics in man and
les derivados do leite. Alguns gru- localização final do seu produto dentro animals. J. Appl. Bacteriol. 66 : 365-378.
pos estão realizando estudos de da célula. O esquema do princípio desses Isolauri E., Joensuu J., Suomalainen
taxonomia clássica e molecular, vetores está representado na figura 4. H., Luomala M. et Veskari T. 1995. Impro-
análises da diversidade genética Esses vetores são atualmente utiliza- ved immunogenicity of oral DxRRV reas-
entre as espécies isoladas de um dos para construir linhagens de BL produ- sortant rotavirus vaccine by Lactobaci-
mesmo meio ou de meios diferen- toras de antígenos que serão administra- llus casei GG. Vaccine 13 : 310-312.
tes, análises da diversidade das dos por via oral em modelos animais para Le Loir Y., Gruss A., Ehrlich D. et
espécies presentes dentro de caracterizar: (i) o nível de expressão ne- Langella P. 1994. Direct screening of
ecossistemas microbianos que cessário para gerar uma resposta imunitá- recombinants in Gram positive bacteria
contêm bactérias lácticas (produ- ria, (ii) a relação entre a localização celu- using the secreted Staphylococcal nucle-
tos alimentícios fermentados) e o lar do antígeno testado (localização cito- ase as a reporter. J. Bacteriol. 176 : 5135-
papel desta diversidade dentro do plasmática, na parede ou extracelular) e a 5139.
funcionamento dos ecossistemas natureza da resposta imune, (iii) o perío- Le Loir Y., Gruss A., Ehrlich S.D. et
(manutenção ou desaparecimen- do necessário de permanência do vetor Langella P. 1998. A nine-residue synthe-
to das populações, atividade meta- bacteriano no tubo digestivo para induzir tic propeptide enhances secretion effici-
bólica, expressão de genes especí- uma resposta imune no hospedeiro. Nes- ency of heterologous proteins in Lacto-
se último ponto, utilizamos animais com coccus lactis. J. Bacteriol. 180 : 1895-
ficos).
a flora digestiva controlada, o que nos 1903.
Mundialmente, os estudos genéti-
permite modular o tempo de permanên- Maguin E., Prevost H., Ehrlich S.D. et
cos que utilizam a biologia
cia no tubo digestivo da bactéria apresen- Gruss A. 1996. Efficient insertional muta-
molecular das bactérias lácticas
tadora de antígeno. genesis in Lactococci and other Gram-
começaram na década de oitenta e
positive bacteria. J. Bacteriol. 178 : 931-
resultados importantes começa-
Conclusões e perspectivas 935.
ram a aparecer recentemente. O
Marteau P. et Rambaud J.C. 1993.
repasse dessa tecnologia e o esta-
As práticas alimentares de numerosos Potential of using lactic acid bacteria for
belecimento de colaborações com
grupos de indivíduos os conduzem a therapy and immunomodulation in man.
grupos que já estão trabalhando
ingerir quantidades impressionantes de FEMS Microbiol. Rev. 12 : 207-220.
nessa tecnologia é de extremo in-
BL. Essas bactérias absorvidas vivas são Metchnikoff E. 1908. The prolongati-
teresse para o Brasil, sobretudo
capazes de exercer, na mucosa intestinal, on of life. Optimistic studies. G.P. Putman’s
neste momento em que se discute
atividades biológicas inerentes a elas. A Sons, New York, Londres.
e se regulamenta, no mundo intei-
demonstração de um efeito biológico no Piard J.C., Hautefort I., Fischetti V.A.,
ro, a utilização de microrganis-
hospedeiro é difícil, devido ao fato de o Ehrlich S.D., Fons M. et Gruss A. 1997a.
mos geneticamente modificados.
nível basal dessas atividades ser muito Cell wall anchoring of the Streptococcus
Com esses objetivos, os professo-
baixo. Para remediar esse problema, vári- pyogenes M6 protein in various lactic acid
res Vasco Azevedo e Sérgio Costa bacteria. J. Bacteriol. 179 : 3068-3072.
as pesquisas foram empreendidas super-
Oliveira coordenaram um curso expressando certas atividades nessas bac- Piard J.C., Jimenez-Diaz R., Fischetti
sobre Genética de Bactérias térias para demostrar de maneira absoluta V.A., Ehrlich S.D. et Gruss A. 1997b. The
Lácticas realizado entre os dias 14 os seus efeitos nos hospedeiros. Esse M6 protein of Streptococcus pyogenes and
a 18 de setembro, no Instituto de campo de investigação em saúde pública its potential as a tool to anchor biologi-
Ciências Biológicas da Universida- é fascinante e promissor. cally active molecules at the surface of
de Federal de Minas Gerais. Con- Se o interesse atual por “produtos- lactic acid bacteria. Streptococci and the
tou com o patrocínio e apoio das saúde” é evidente, não devemos esquecer Host, édité par Horaud et al. Plenum
pós-graduações em Bioquímica e o clima de incerteza que envolve o desen- Press, New York.
Imunologia, Genética e volvimento de organismos geneticamen- Poquet I., Ehrlich S. D. et Gruss A.
Microbiologia e das empresas te modificados. Devemos privilegiar as 1998. An export-specific reporter desig-
Pharmacia Biotech, Applied vias de autoclonagem, que evitam a intro- ned for Gram-positive bacteria: applica-
Biosystems Perkin Elmer, Gibco dução de DNA estrangeiro. Dentro desse tion to Lactococcus lactis. J. Bacteriol.
BRL Life Technologies, Nestlé Nu- panorama, devemos distinguir os produ- 180: 1904-1912.
trição Infantil, FIEMG e CAPES. Os tos destinados à alimentação, nos quais Agradecimentos
professores do curso fazem parte devemos procurar “risco zero” para os Agradecemos aos nossos colegas do
da equipe que escreveu este artigo. consumidores, e os produtos oriundos de INRA pelas sugestões e reflexões precio-
Todas as Informações sobre esse bactérias vacinais, para as quais o risco de sas.
evento podem ser obtidas na disseminação horizontal deve ser inferior Queremos também demonstrar o nos-
HOME PAGE: aos riscos de uma população exposta a so reconhecimento à Dra. Alexandra Gruss
http://www.icb.ufmg.br/~vasco/ certo patógeno de sofrer com a doença. pelo seu dinamismo e apoio na realiza-
baclac. Neste último caso, o desenvolvimento de ção dos nossos trabalhos.

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