O cinema árabe é ainda hoje bastante desconhecido do público português,
neste breve artigo dermos uma visão geral da obra de Youssef Chahine, um dos grandes nomes desse cinema. Chahine nasceu, no seio de uma família cristã, de pai sírio e mão grega, corria o ano de 1926, na cidade eterna de Alexandria. Frequentou o Victoria College, escola tipicamente britânica, onde concluiu os estudos secundários. Em 1946, embarcou para a Califórnia e foi na costa oeste americana que estudou arte dramática e realização, durante dois anos, no Passadena Playhouse. De regresso à terra natal, realiza a sua primeira longa-metragem, hoje marco da cinematografia egípcia, “Papá Amine” (Baba Amine), em 1950. Ainda nessa década, vai realizando filmes à razão de, sensivelmente, um por ano, o que, para a realidade estrutural do cinema egípcio, era estrondoso. Em 1958, roda o filme “Estação Central” (Bab al-Hadid), onde Chahine, ele próprio, interpreta a personagem central Kenaoui, assinalando o seu encontro com a crítica. Kenaoui, disforme vendedor de jornais rejeitado por uma vendedora de bebidas e sexualmente inadaptado, assume-se como metáfora, tanto das ânsias existenciais do seu criador, como das contradições da sociedade machista do Egipto e da generalidade do mundo árabe. “Saladino” (Al-Nasir Salah al-Din), rodado em 1963, época de galvanização política do Egipto e de Caricatura de Youssef Chahine Gamel el-Nasser, conta a épica história da reconquista publicada pelo jornal El Safir de Jerusalém aos cruzados, o escritor Naguib Mafouz, foi um dos argumentistas. Denota-se, claramente aí, um olhar que vai ser constante na obra de Chahine, o da busca de uma verdade na história, que não a verdade, mas tão só uma versão da verdade. Se nesta obra épica o comprometimento com o poder é claro, a liberdade, cânone de Youssef Chahine, cedo entrará em conflito com as necessidades desse poder. Na sequência dessas disputas com o poder e com a censura, que impediu a rodagem de “Areias de Ouro”, parte em 1965 para o exílio, no Líbano. “Quando deixei o Egipto percebi que era egípcio por escolha. Uma vaca pode nascer no Egipto e não ser egípcia”, declarou vinte anos mais tarde numa entrevista a Yours Nasrallah. Regressa, em 1968, e um ano depois, filma de novo uma obra magistral, “A Terra” (al- Ard), libelo acusatório de um progresso cego, de uma guerra, em suma de um sistema político que se exprimia na exploração dos camponeses tradicionais, os fella. Os anos setenta irão ser não tanto uma viragem, mas antes um agudizar da cáustica crítica à sociedade egípcia contemporânea, com películas como “A Escolha” (al-Ikhtiyar), “O Pardal” (al-Asfour), ou “O Regresso do Filho Pródigo” (Awdat al ibn al dal). O início da trilogia chave da obra de Chahine, centrada na sua vida e percurso pessoal encerra essa década. Falamos de “Alexandria... porquê?” (Iskanderiya... lih?), laureado em Berlim com o urso de prata. Este filme constitui um balanço de vida e uma declaração apaixonada de amor eterno à cidade imperial, que o viu nascer, seguem-se lhe os outros dois capítulos da trilogia, “A Memória”(Hadduta Três cenas de “Alexandria... porquê?” misriya) e “Alexandria Ainda e Sempre”(Iskanderiya, (Iskanderiya... lih?) kaman w kaman), que completam esse indagar de si próprio, essa necessidade de forjar memórias do comum dos mortais. Desde primeiro filme, em 1979, ao último, em 1990, vão mais de dez anos, o início e o fim de um ciclo. Nesses anos, Chahine não pára de filmar como se o disparar da câmara não fosse, para ele, mais do que outra forma de respirar e em 1985, volta a questionar de forma particular, os fantasmas da história, na produção francesa, “Adeus Bonaparte”(Al-Waad ya Bonaparte), ao evocar outro dos “imperadores” do Egipto. Se “Alexandria... Porquê?” recebeu o Urso de Prata, “O Emigrante” (al- Mohager) encantou Cannes, em 1994. Trata-se de um embate decisivo com a História, a história de uma vida, baseada, apesar de tudo, na história bíblica (e corânica) de José e seus irmãos, que Chahine coloca no reinado de Amenófis IV (Akenhaton). De novo, o poder guardião de memórias falsas, ou melhor, convenientes, neste caso, à fé fanática entra em conflito com a palavra livre da câmara de Chahine. Da longa batalha judicial nos tribunais religiosos e civis, a liberdade sai vencedora e “O Emigrante”, constitui ainda hoje o maior sucesso comercial do cinema egípcio. O golpe de má fé das autoridades religiosas, que teve a sua origem na denúncia de um eminente advogado, mostra quão fechada é a sociedade do Egipto hodierno. Nascido talvez como denúncia, na linha de François Truffat, do poder desmedido e sedento de imolar ideias, o último filme de fundo histórico de Chahine, falamos de “O Destino” (al-Massir). Realizado em 1997, relata a vida do filósofo medieval Averróis (ibn Rush) a braços com a perseguição de uma seita radical islâmica na Córdova do século XII. Contudo as ideias têm asas e são livres de voar contra todas as formas de violência e o amor e a liberdade acabam por vencer. Depois de “O Destino”, em 1999, Chahine roda o “O Outro” (al-Akhar), drama amoroso, onde se denuncia a corrupção e os laços sórdidos de um capitalismo selvagem com o terrorismo fundamentalista. Em 2001, estreia “Silence... On Tourne” (Skoot... Hansawar), uma obra leve, com música de Omar Khairat, que nos mostra o mundo de fadas dos famosos. Colaborou ainda, recentemente, no projecto Lumiére e Companhia (Lumiére et Compagnie), projecto que propôs a quarenta cineastas filmar uma curta-metragem nas mesmas condições dos irmãos Lumiére. Já em 2002, participou em “11 de Setembro”, projecto que envolveu onze realizadores no repúdio a onzes vozes dos atentados e da guerra subsequente. A película de Chahine voltou a gerar polémica ao filmar as vítimas americanas do Vietname ou da Somália, como para nos mostrar que são sempre os outros a morrer. Temos Youssef Chahine na conta de um dos grandes mestres da arte cinematográfica e naturalmente, um contador de histórias, já que as histórias, tal como as ideias, tem asas e não morrem, voam.