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O Caminho Menos Percorrido

M. Scott Peck

Uma nova psicologia do amor,

dos valores tradicionais

e do desenvolvimento espiritual

Digitalização e arranjos:

Ângelo Miguel Abrantes

Tradução Maria Isabel Cardoso

CD Sinais de Fogo

Título original: The Road Less Traveled Copyright (c) M. Scott Peck, M.D., 1978 Introdução
Copyright (c) M. Scott Peck, M.D., 1985 Tradução: Maria Isabel Cardoso Revisão: Rita Quintela

Projecto Gráfico: Graça Castanheira + Inês Nogueira Foto da capa: Image Bank - Luis Veiga
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos, Lda

Reservados todos os direitos para Portugal incluindo o direito

de reprodução do todo ou de partes sob qualquer forma, por:

Sinais de Fogo Publicações, Lda.

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e-mail. geral@sinaisdefogo.pt

site: www.sinaisdefogo.pt

1:1 edição, Março- 1999

2a edição, Novembro - 2000

3" edição, Janeiro - 2002

Depósito legal n." 175003/02

ISBN: 972-8541-00-7

Aos meus pais,

Elizabeth e David,

cuja disciplina e amor

me deram olhos

para ver a graça

To my parents, Elizabeth and David, whose discipline and love gave me the eyes to see grace

índice

Introdução 11

Secção I- Disciplina 13

Problemas e Dor 15

Adiamento da Gratificação 19

Os Pecados do Pai 21
Resolução de Problemas e Tempo 28

Responsabilidade 34

Neuroses e Perturbações de Personalidade 36

Fuga da Liberdade 42

Dedicação à Realidade 47

Transferência: o Mapa Ultrapassado 49

Abertura ao Desafio 54

Omissão da Verdade 62

Manutenção do Equilíbrio 68

O Lado Salutar da Depressão 74

Renúncia e Renascimento 77

Secção II • Amor 85

O Amor Definido 87

Apaixonar-Se 90

O Mito do Amor Romântico 98

Mais Sobre as Fronteiras do Ego 101

Dependência 106

Catexia Sem Amor 115

"Auto-Sacrifício" 121

O Amor Não é um Sentimento 127

O Trabalho de Atenção131

O Risco da Perda 143

O Risco da Independência 147

O Risco do Compromisso 153

O Risco da Confrontação 164


O Amor é Disciplinado 170

O Amor é Separação 176

Amor e Psicoterapia 186

O Mistério do Amor198

Secção III • Desenvolvimento e Religião 201

Visões do Mundo e Religião 203

A Religião da Ciência 211

O Caso de Kathy 216

O Caso de Mareia 228

O Caso de Theodore 230

O Bebé e a Água do Banho242

Visão Científica em Túnel 277

Secção IV • Graça 255

O Milagre da Saúde 257

O Milagre do Subconsciente 265

O Milagre do Serendipismo 277

A Definição de Graça 284

O Milagre da Evolução 288

O Alfa e o Ómega 294

A Entropia e o Pecado Original 297

O Problema do Mal 304

A Evolução da Consciência 306

A Natureza do Poder 311

A Graça e a Doença Mental:

o Mito de Orestes 3 16

A Resistência à Graça 324


O Acolhimento da Graça 335

POsfácio

Introdução

As IDEIAS AQUI APRESENTADAS emergem, na sua maior parte, do meu contacto profissional
diário com os doentes que lutam por evitar ou alcançar níveis de maturidade cada vez mais
elevados. Em consequência, este livro contém partes de muitos casos verdadeiros. A
confidencialidade é essencial na prática da Psiquiatria, pelo que, em todos os casos, foram
alterados os nomes e outros pormenores para preservar o anonimato dos meus doentes sem
distorção da realidade essencial da nossa experiência comum.

Pode, no entanto, ocorrer alguma distorção em virtude da forma resumida como os casos são
apresentados. A psicoterapia raramente é um processo breve, mas como tive necessariamente
de focar os pontos mais relevantes de cada caso, o leitor pode ficar com a impressão de que o
processo é de drama e esclarecimento. O drama é real e o esclarecimento pode eventualmente
ser alcançado, mas deve considerar-se que, para facilitar a leitura, os relatos dos longos
períodos de confusão e de frustração, inerentes à maior parte da terapia, foram omitidos
nestas descrições.

Gostaria também de pedir desculpa pelas constantes referências a Deus na imagem masculina
tradicional, mas fi-lo a bem da simplicidade e não devido a qualquer conceito rígido de género.

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Como psiquiatra, penso ser importante referir logo de início dois pressupostos em que este
livro assenta. Um é que não faço distinção entre a mente e o espírito nem, portanto, entre o
processo de consecução de desenvolvimento espiritual e o de consecução de desenvolvimento
mental. É o mesmo e um só.

O outro pressuposto é que este processo constitui uma tarefa complexa, árdua e para toda a
vida. A psicoterapia, para contribuir substancialmente para o processo de desenvolvimento
mental e espiritual, não é um procedimento rápido nem simples. Não pertenço a nenhuma
escola de Psiquiatria ou de psicoterapia em particular; não sou simplesmente um Freudiano,
um Jungiano, um Adleriano, um behaviorista ou um gestaltista. Não acredito que existam
respostas únicas e fáceis. Penso que há formas curtas de psicoterapia que podem ser úteis e
não devem ser menosprezadas, mas a ajuda que proporcionam é inevitavelmente superficial.

A jornada do desenvolvimento espiritual é longa. Quero agradecer aos meus doentes, que me
deram o privilégio de os acompanhar na maior parte da sua jornada. Porque a sua jornada tem
sido também a minha, e muito do que é aqui apresentado foi aprendido em conjunto. Quero
também agradecer a muitos dos meus professores e colegas. Entre eles, principalmente, à
minha mulher, Lily. Tem-me dado tanto que quase não é possível distinguir da minha a sua
inteligência como cônjuge, mãe, psicoterapeuta e pessoa.

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Secção I

Disciplina

Problemas e Dor

A VIDA É DIFÍCIL. Esta é uma grande verdade, uma das maiores verdades*. É uma grande
verdade porque, uma vez que vejamos realmente esta verdade, transcendemo-la. Quando
sabemos verdadeiramente que a vida é difícil - quando o compreendemos e aceitamos
verdadeiramente - a vida deixa de ser difícil. Porque assim que é aceite, o facto de a vida ser
difícil deixa de ter importância.

A maior parte das pessoas não vê inteiramente esta verdade de que a vida é difícil. Em vez
disso, lamenta-se mais ou menos incessantemente, ruidosa ou subtilmente, da enormidade
dos seus problemas, encargos e dificuldades, como se a vida fosse fácil de um modo geral,
como se a vida devesse ser fácil. Proclamam a sua crença, ruidosa ou subtilmente, de que as
suas dificuldades representam uma espécie única de atribulação que não deveria mas de
algum modo lhes foi especialmente dirigida, ou às suas famílias, à sua tribo, à sua classe, à sua
nação, à sua raça ou até à sua espécie, e não a outros. Eu conheço esta lamentação porque já
fiz a minha parte.
A vida é uma série de problemas. Queremos lamentar-nos ou resolvê-los? Queremos ensinar
os nossos filhos a resolvê-los?

*A primeira das "Quatro Verdades Nobres" dos ensinamentos de Buda diz que "Viver é sofrer".

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A disciplina é o jogo de ferramenta essencial para resolver os problemas da vida. Sem disciplina
nada podemos resolver. Com apenas alguma disciplina, resolvemos só alguns problemas. Com
disciplina total, podemos resolver todos os problemas.

O que torna a vida difícil é que o processo de confrontação e resolução de problemas é


doloroso. Os problemas, consoante a sua natureza, evocam em nós frustração, ou desgosto, ou
tristeza, ou solidão, ou culpa, ou remorso, ou ira, ou medo, ou ansiedade, ou angústia, ou
desespero. Estes sentimentos são desconfortáveis, frequentemente muito desconfortáveis,
muitas vezes tão dolorosos como qualquer tipo de dor física, por vezes igualando o tipo mais
extremo de dor física. Na verdade, é devido à dor que os acontecimentos ou conflitos geram
em nós que lhes chamamos problemas. E uma vez que a vida coloca uma infindável série de
problemas, é sempre difícil e plena de dor, assim como de alegria.

No entanto, é neste processo de confrontação e resolução de problemas que a vida adquire


significado. Os problemas são o fio de distinção entre o sucesso e a falha. Os problemas apelam
à nossa coragem e sabedoria; na verdade, criam a nossa coragem e a nossa sabedoria. É
unicamente devido aos problemas que crescemos mental e espiritualmente. Quando
queremos fomentar o crescimento do espírito humano, desafiamos e encorajamos a
capacidade humana de resolver problemas, tal como na escola apresentamos deliberadamente
problemas para as crianças resolverem. É através da dor de confrontar e resolver problemas
que aprendemos. Como disse Benjamin Franklin, "As coisas que magoam, ensinam-nos." Esta é
a razão porque as pessoas sábias aprendem não a temer mas, de facto, a encarar
positivamente os problemas e até a encarar positivamente a dor dos problemas.

A maior parte de nós não é assim tão sábio. Receando a dor, quase todos nós, em maior ou
menor grau, tentamos evitar pro-
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blemas. Procrastinamos, esperando que desapareçam. Ignoramo-los, esquecemo-los, fingimos


que não existem. Chegamos a tomar drogas que nos ajudam a ignorá-los para que,
anestesiando-nos contra a dor, possamos esquecer os problemas que causam a dor.

Tentamos rodear os problemas em vez de os encarar de frente. Tentamos sair deles em vez de
sofrermos o seu percurso.

Esta tendência para evitar problemas e o sofrimento emocional que lhes é inerente é a base
primária de toda a doença mental humana. Uma vez que a maior parte de nós tem esta
tendência em maior ou menor grau, a maior parte de nós está mentalmente doente em maior
ou menor grau, não dispondo de saúde mental total. Alguns de nós irão a extremos para evitar
os problemas e o sofrimento que causam, ultrapassando tudo o que é claramente bom e
aconselhável para encontrar uma saída fácil, construindo as mais intrincadas fantasias para
viverem, por vezes com total exclusão da realidade. Nas palavras sucintamente elegantes de
Carl Jung, "A neurose é sempre um substituto do sofrimento legítimo."*

Mas o próprio substituto acaba por se tornar mais doloroso que o sofrimento legítimo que se
destinava a evitar. A própria neurose torna-se o maior problema. De acordo com o padrão,
muitos tentarão evitar essa dor e esse problema, construindo camada após camada de
neuroses. Felizmente, no entanto, alguns têm a coragem de enfrentar as suas neuroses e
começam - com a ajuda da psicoterapia - a aprender a suportar o sofrimento legítimo. Em todo
o caso, quando evitamos o sofrimento legítimo que resulta do confronto com os problemas,
também evitamos o crescimento que os problemas

(Nota)

'"Collected Works of C.C. Jung, Bollingen Ser., N". 20, 2a ed. (Princeton, N.J.: Princeton Univ.
Press, 1973), trad. R.F.C. Hull, Vol.II, Psychology and Religion: West and East, 75.

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nos exigem. É esta a razão porque nas doenças mentais crónicas deixamos de evoluir, ficamos
bloqueados. E sem se curar, o espírito humano começa a mirrar.
Vamos portanto inculcar em nós próprios e nos nossos filhos os meios para conseguir a saúde
mental e espiritual. Quero com isto dizer, ensinemos a nós próprios e aos nossos filhos a
necessidade do sofrimento e do seu valor, de enfrentar directamente os problemas e passar
pela dor que acarretam. Afirmei que a disciplina é o jogo de ferramentas de base de que
necessitamos para resolver os problemas da vida. Tornar-se-á claro que estas ferramentas são
técnicas de sofrimento, meios através dos quais experimentamos a dor dos problemas de
forma a analisá-los e resolvê-los com sucesso, aprendendo e evoluindo ao mesmo tempo.
Quando ensinamos a nós próprios e aos nossos filhos a disciplina, estamos a ensinar-lhes e a
nós próprios a sofrer e também a crescer.

Que ferramentas são estas, estas técnicas de sofrimento, esta forma construtiva de passar pela
dor dos problemas a que chamo disciplina? Há quatro: o adiamento da gratificação, a aceitação
da responsabilidade, a dedicação à verdade e o equilíbrio. Como é evidente, não são
ferramentas complexas cuja utilização requeira um treino aprofundado. Pelo contrário, são
ferramentas simples e quase todas as crianças estão aptas a utilizá-las quando chegam aos dez
anos. No entanto, presidentes e reis muitas vezes se esquecem de as utilizar, causando a sua
própria queda. O problema não está na complexidade destas ferramentas mas na vontade de
as usar. Porque são ferramentas em que a dor é enfrentada e não evitada e, se se procura
evitar o sofrimento legítimo, evita-se a utilização destas ferramentas. Portanto, depois de
analisar cada uma destas ferramentas, examinaremos no próximo capítulo a vontade de as
utilizar, que é o amor.

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Adiamento da Gratificação

NÃO HÁ MUITO TEMPO, uma analista financeira com cerca de trinta anos queixava-se-me,
durante alguns meses, da sua tendência para procrastinar na sua função. Tínhamos analisado
os seus sentimentos em relação aos patrões e como se relacionavam com os sentimentos
sobre a autoridade em geral e especificamente com os pais. Examinámos as suas atitudes face
ao trabalho e ao sucesso e como se relacionavam com o seu casamento, a sua identidade
sexual, o seu desejo de competir com o marido e os seus receios dessa competição. No
entanto, apesar de todo este trabalho psicanalítico minucioso, ela continuava a procrastinar na
mesma medida. Finalmente, um dia, atrevemo-nos a encarar o que era óbvio. "Gosta de
bolo?", perguntei-lhe. Respondeu-me que sim. "De que parte do bolo gosta mais", continuei,
"da massa ou da cobertura?" "Oh, da cobertura!", respondeu com entusiasmo. "E como é que
come uma fatia de bolo?", inquiri, sentindo-me o mais pateta dos psiquiatras que já existiu.
"Como primeiro a cobertura, claro", respondeu ela. Dos hábitos de comer bolo passámos para
os hábitos de trabalho e, como era de esperar, descobrimos que, diariamente, ela dedicava a
primeira hora à metade mais gratificante do seu trabalho e as outras seis horas ao restante, de
que não gostava. Sugeri-lhe que, se se forçasse a executar a parte desagradável do trabalho na
primeira hora, ficaria livre para tirar partido das restantes seis. Parecia-me, disse-lhe eu, que
uma hora de dor seguida de seis de prazer era preferível a uma hora de prazer seguida de seis
de dor. Ela concordou e, sendo basicamente uma pessoa dotada de força de vontade, deixou
de procrastinar.

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O adiamento da gratificação é um processo de programação da dor e do prazer da vida de


forma a aumentar o prazer, enfrentando e vivendo primeiro a dor e acabando com ela. É a
única forma decente de se viver.

Esta ferramenta ou processo de programação é aprendida pela maior parte das crianças numa
fase precoce da vida, por vezes até por volta dos cinco anos. Por exemplo, ocasionalmente,
uma criança de cinco anos, ao jogar com um companheiro, sugerirá ao companheiro que seja o
primeiro a jogar para poder ter o prazer de jogar mais tarde. Aos seis anos, as crianças poderão
começar a comer o bolo primeiro e a cobertura depois. Em todo o percurso escolar primário
esta capacidade precoce de adiar a gratificação é exercitada diariamente, particularmente
através dos trabalhos de casa. Por volta dos doze anos, as crianças já conseguem,
ocasionalmente e sem ser por ordem dos pais, sentar-se e fazer os trabalhos de casa antes de
verem televisão. Pelos quinze ou dezasseis anos este é o comportamento esperado do
adolescente e considerado normal.

Torna-se evidente para os educadores que, nesta idade, um número substancial de


adolescentes ficam aquém desta norma. Enquanto muitos detêm uma capacidade bem
desenvolvida de adiamento da gratificação, alguns, na casa dos quinze ou dezasseis anos,
parecem quase não ter desenvolvido essa capacidade; de facto, alguns parecem nem a ter de
todo. Estes são os estudantes problemáticos. Apesar de possuírem uma inteligência média ou
mais elevada, têm notas baixas, simplesmente porque não se esforçam. Faltam às aulas ou
mesmo à escola por capricho momentâneo. São impulsivos e a sua impulsividade reflecte-se
também na sua vida social. Envolvem-se frequentemente em lutas, nas drogas, e começam a
ter problemas com a polícia. Goza agora, paga depois, é o seu lema. Aí, entram os psicólogos e
os psicoterapeutas. Mas, a maior parte das vezes, parece demasiado tarde. Estes adolescentes
reagem
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negativamente a qualquer tentativa de interferência no seu estilo de vida de impulsividade e,


mesmo quando essa reacção consegue ser ultrapassada com uma atitude calorosa e amigável e
não de julgamento por parte do terapeuta, a sua impulsividade é frequentemente tão forte,
que os impede de participar no processo de psicoterapia de uma forma significativa. Faltam às
consultas. Evitam todas as questões importantes e dolorosas. Portanto, habitualmente estas
tentativas de intervenção falham e estas crianças abandonam a escola, para prosseguir um
padrão de insucessos que os leva frequentemente a casamentos desastrosos, acidentes,
hospitais psiquiátricos ou à cadeia.

Porquê isto? Por que razão a maioria desenvolve a capacidade de adiar a gratificação,
enquanto uma minoria substancial não consegue, muitas vezes irrecuperavelmente,
desenvolver essa capacidade? A resposta não é absoluta nem cientificamente conhecida. O
papel dos factores genéticos não é claro. As variáveis não são suficientemente controláveis
para servirem de prova científica. Mas a maior parte dos sinais aponta claramente para a
qualidade do acompanhamento parental como determinante.

Os Pecados do Pai

NÃO É QUE EM CASA destas crianças auto-indisciplinadas não exista qualquer espécie de
disciplina parental. Na maioria dos casos, estas crianças são frequente e severamente punidas
durante a infância - recebem bofetadas, murros, pontapés, pancada e chicotadas dos pais, até
por infracções menores. Mas esta disciplina não tem significado. Porque é uma disciplina
indisciplinada.

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Uma das razões por que não tem significado é que os próprios pais são auto-indisciplinados e
servem portanto de modelos de indisciplina para os filhos. São os pais "Faz como eu digo, não
faças como eu faço". Provavelmente, embebedam-se frequentemente na presença dos filhos.
Discutem em frente às crianças sem comedimento, dignidade ou racionalidade. São
desleixados. Fazem promessas que não cumprem. As suas próprias vidas estão óbvia e
frequentemente em desordem e desarranjo, e as suas tentativas de ordenar as vidas dos filhos
são por eles vistas como sem sentido. Se o pai espanca a mãe regularmente, que sentido faz
para um rapaz a mãe bater-lhe porque ele bateu na irmã? Faz sentido quando lhe dizem que
tem que aprender a controlar-se? Se não temos o benefício da comparação enquanto
pequenos, os nossos pais são semelhantes a deuses aos nossos olhos. Quando os pais fazem as
coisas de determinada maneira, para a criança essa é a maneira de as fazer, a maneira como
devem ser feitas. Se a criança vê os pais comportarem-se no dia-a-dia com auto-disciplina,
comedimento, dignidade e capacidade de ordenar as suas vidas, sentirá nas mais íntimas fibras
do seu ser que essa é a maneira de viver. Se a criança vê os pais viverem o dia-a-dia sem auto-
domínio ou auto-disciplina, virá a acreditar no mais íntimo do seu ser que essa é a maneira de
viver. Ainda mais importante do que os modelos é o amor. Porque mesmo em lares caóticos e
desordenados o amor está por vezes presente, e desses lares podem resultar crianças auto-
disciplinadas. E, não poucas vezes, os pais com profissões liberais médicos, advogados,
mulheres dirigentes de associações e filantropos - que levam vidas rigidamente ordenadas e
decorosas mas onde falta o amor, trazem ao mundo crianças que são tão indisciplinadas,
destrutivas e desorganizadas como uma criança de um lar pobre e caótico.

No limite, o amor é tudo. O mistério do amor será objecto de exame mais adiante neste
trabalho. No entanto, por uma

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questão de coerência, poderá ser útil fazer-lhe uma referência breve, ainda que limitada, bem
como à sua relação com a disciplina, neste ponto.

Quando amamos alguma coisa, ela tem valor para nós, e quando algo tem valor para nós
gostamos de passar tempo a tê-lo connosco, a apreciá-lo e a tratá-lo. Observe-se um
adolescente apaixonado pelo seu carro e repare-se no tempo que ele gasta a admirá-lo, poli-lo,
repará-lo e afiná-lo. Ou uma pessoa mais velha com um roseiral amado, e o tempo passado a
podar, a adubar, a fertilizar e a estudá-lo. Assim é quando amamos as crianças; passamos
tempo a admirá-las e a tratar delas. Damos-lhes o nosso tempo.

A boa disciplina requer tempo. Quando não temos ou não estamos na disposição de dar tempo
aos nossos filhos, nem sequer os observamos suficientemente de perto para perceber quando
a necessidade que têm da nossa ajuda disciplinar é subtilmente expressa. Se a sua necessidade
de disciplina for tão flagrante que colida com a nossa consciência, podemos ainda ignorar essa
necessidade com o argumento de que é mais fácil fazer-lhes a vontade - "Hoje não estou com
energia para os confrontar." Ou, finalmente, se somos compelidos a agir pelo seu mau
comportamento ou pela nossa irritação, imporemos a disciplina, muitas vezes brutalmente,
mais pela ira do que por deliberação, sem analisar o problema ou sequer perder tempo a
considerar que forma de disciplina é a mais adequada àquele problema em particular.

Os pais que dedicam tempo aos filhos, mesmo quando não é solicitado por notório mau
comportamento, apercebem-se de necessidades de disciplina subtis, a que responderão com
insistência, reprimenda, crítica construtiva ou elogio, ministrados com sensatez e afecto.
Observam como os filhos comem bolo, como estudam, quando dizem pequenas mentiras,
quando fogem dos problemas em vez de os enfrentar. Dedicarão tempo

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a fazer estas pequenas correcções e ajustes, ouvindo os filhos, respondendo-lhes, apertando


um pouco aqui, alargando um pouco ali, fazendo-lhes pequenas prelecções, contando-lhes
histórias, dando-lhes pequenos abraços e beijos, pequenos ralhetes, palmadinhas nas costas.

A qualidade da disciplina ministrada por pais que amam é superior à disciplina de pais que não
amam. Mas isto é apenas o princípio. Ao disporem do tempo para observar e pensar sobre as
necessidades dos filhos, os pais que amam com frequência se angustiam quanto a decisões a
tomar e, num sentido muito real, sofrem juntamente com os filhos. Os filhos não estão cegos
em relação a isto. Apercebem-se quando os pais estão na disposição de sofrer com eles e,
embora possam não corresponder com gratidão imediata, aprenderão igualmente a sofrer. "Se
os meus pais estão na disposição de sofrer comigo," dirão a si próprios, "o sofrimento não
pode ser assim tão mau, e eu tenho que estar disposto a sofrer comigo mesmo." Este é o
princípio da auto-disciplina.

O tempo e a qualidade do tempo que os pais lhes dedicam indicam às crianças o grau de
avaliação que os pais lhes atribuem. Alguns pais que basicamente não amam, na tentativa de
encobrir a sua falta de afecto, fazem frequentes declarações de amor aos filhos, em que lhes
dizem, repetitiva e mecanicamente, como os apreciam, mas não lhes dedicam tempo de
elevada qualidade. Os filhos nunca se deixam enganar totalmente por tais palavras ocas.
Conscientemente, podem agarrar-se a elas, querendo acreditar que são amados, mas,
subconscientemente, sabem que as palavras dos pais não condizem com os seus actos.
Por outro lado, as crianças verdadeiramente amadas, embora possam, em momentos de
ressentimento, sentir conscientemente ou proclamar que estão a ser negligenciadas, no
subconsciente sabem que são apreciadas. Este conhecimento vale mais que

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ouro. Quando as crianças sabem que são apreciadas, quando se sentem verdadeiramente
apreciadas no mais profundo do seu ser, sentem-se válidas.

O sentimento de ser válido - "Sou uma pessoa válida" - é essencial à saúde mental e um pilar
da auto-disciplina. É um produto directo do amor parental. Essa convicção deve ser adquirida
na infância; é extremamente difícil adquiri-la na idade adulta. Inversamente, quando os filhos
aprendem a sentir-se válidos através do amor dos pais, é quase impossível que as vicissitudes
da vida adulta lhes destruam o espírito.

Este sentimento de ser válido é um pilar da auto-disciplina porque, quando nos consideramos
válidos, tomamos conta de nós de todas as formas necessárias. A auto-disciplina é auto-estima.

Por exemplo - já que estamos a discutir o processo de adiamento da gratificação, de programar


e ordenar o tempo examinemos a questão do tempo. Se nos sentimos válidos, sentimos que o
nosso tempo é valioso, e se sentimos que o nosso tempo é valioso, queremos utilizá-lo bem. A
analista financeira que procrastinava não valorizava o seu tempo. Se o fizesse, não se teria
permitido passar a maior parte do dia infeliz e improdutiva. Não deixou de ter consequências
para ela o facto de, durante toda a sua infância, ter sido "exportada" durante todas as férias
escolares para as passar com pais "alugados", apesar de os pais poderem perfeitamente ter
tomado conta dela se quisessem. Eles não a apreciavam. Não queriam tomar conta dela.
Portanto, ela cresceu sentindo-se sem valor, sem merecer que se importassem com ela;
portanto, não se importava consigo própria. Não achava que valesse a pena auto-disciplinar-se.
Apesar de ser uma mulher inteligente e competente, necessitava da instrução mais elementar
em auto-disciplina, porque lhe faltava a avaliação realista do seu próprio valor e do valor do
seu tempo. Quando se apercebeu de que o seu

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tempo era valioso, a sequência natural foi querer organizá-lo, protegê-lo e tirar dele o máximo
proveito.

Em resultado da experiência do amor e carinho parentais sólidos durante a infância, essas


crianças afortunadas chegarão à idade adulta não só com um profundo sentido do seu próprio
valor, mas também com um sentido profundo de segurança. Todas as crianças sentem o terror
do abandono, e com razão. Este medo do abandono surge por volta dos seis meses, logo que a
criança se reconhece como um indivíduo, em separado dos pais. Porque com esta percepção
da sua individualidade, apercebe-se de que, como indivíduo, é completamente vulnerável,
totalmente dependente e está totalmente à mercê dos pais para todas as formas de sustento e
meios de sobrevivência. Para a criança, o abandono pelos pais é equivalente à morte. A maior
parte dos pais, mesmo quando relativamente ignorantes ou rudes noutros aspectos, são
instintivamente sensíveis ao medo do abandono dos seus filhos e, no dia-a-dia, centenas e
milhares de vezes, tranquilizam-nos: "Sabes que a mamã e o papá não te deixam ficar"; "Claro
que a mamã e o papá te vêm buscar"; "A mamã e o papá não se esquecem de ti". Se estas
palavras corresponderem aos actos, mês após mês, ano após ano, por altura da adolescência a
criança terá perdido o seu medo do abandono e, por sua vez, terá um profundo sentido de que
o mundo é um lugar seguro e de que a protecção está presente quando é precisa. Com este
sentido da solidez da segurança do mundo, essa criança sente-se à vontade para adiar
qualquer espécie de gratificação, sentindo-se segura porque sabe que a gratificação, tal
como a casa e os pais, está sempre ali, disponível quando é preciso.

Mas muitas não têm essa sorte. Um grande número de crianças é abandonado pelos pais
durante a infância por morte, por deserção, por pura negligência ou, como no caso da analista
financeira, por simples falta de afecto. Outras, embora não

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abandonadas de facto, não recebem dos pais a tranquilização de que não serão abandonadas.
Há pais, por exemplo, que no desejo de aplicar a disciplina da forma mais fácil e rápida,
utilizam mesmo a ameaça de abandono, aberta ou subtilmente, para conseguirem esse
objectivo. A mensagem que passam aos filhos é: "Se não fizeres exactamente aquilo que eu
mando, não gosto mais de ti e podes adivinhar o que isso quer dizer." Quer dizer,
evidentemente, abandono e morte. Estes pais sacrificam o amor pela necessidade de controlar
e dominar os filhos e a retribuição são filhos que têm um medo excessivo do futuro. E é assim
que estas crianças, abandonadas psicologicamente ou de facto, chegam à idade adulta sem o
profundo sentido de que o mundo é um lugar seguro e protector. Pelo contrário, vêem o
mundo como perigoso e assustador e não estão na disposição de prescindir de qualquer
gratificação ou segurança no presente em troca da promessa de maior gratificação e segurança
no futuro, uma vez que, para elas, o futuro aparece deveras duvidoso.

Em suma, para que as crianças desenvolvam a capacidade de adiar a gratificação, é necessário


que tenham modelos de auto-disciplina, sentido de valor pessoal e um grau de confiança na
segurança da sua existência. Estes "bens" são adquiridos, idealmente, através da auto-
disciplina e do afecto sólido e genuíno dos pais; são as dádivas mais preciosas que mães e pais
podem legar. Quando estas dádivas não partem dos nossos pais, podemos obtê-las de outras
fontes, mas, nesse caso, o processo de aquisição é, invariavelmente, um enorme esforço,
muitas vezes dura a vida inteira e é muitas vezes infrutífero.

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Resolução dos Problemas e Tempo

TENDO ABORDADO ALGUMAS das formas em que o amor parental, ou a sua falta, pode
influenciar o desenvolvimento da auto-disciplina de uma forma geral, e a capacidade de
adiamento da gratificação em particular, vamos analisar algumas das maneiras mais subtis mas,
no entanto, devastadoras, como as dificuldades de adiamento da gratificação afectam a vida da
maior parte dos adultos. Enquanto a maior parte de nós, felizmente, desenvolve a capacidade
suficiente de adiamento da gratificação para completar os estudos liceais ou universitários e
iniciar a vida adulta sem ir parar à cadeia, o nosso desenvolvimento tende, no entanto, a ser
imperfeito e incompleto, e, em resultado, a nossa capacidade de resolver os problemas da vida
continua a ser imperfeita e incompleta.

Aos trinta e sete anos aprendi a arranjar coisas. Até lá, quase todas as minhas tentativas de
fazer pequenas reparações de canalização, arranjar brinquedos ou montar móveis embalados
de acordo com a folha de instruções hieroglíficas que os acompanhavam, terminavam em
confusão, insucesso e frustração. Apesar de ter conseguido sobreviver até ao fim do curso de
Medicina e sustentar uma família como executivo e psiquiatra mais ou menos bem sucedido,
considerava-me um idiota em termos de mecânica. Estava convencido de que tinha uma
deficiência em qualquer gene, ou que, por maldição da Natureza, me faltava a qualidade
mística responsável pela aptidão pela mecânica. Até que um dia, no final do ano em que fiz
trinta e sete anos, ao passear num Domingo de Primavera, dei com um vizinho que estava a
arranjar uma máquina de cortar relva. Depois de o cumprimentar, comentei, "Sabe, tenho
grande

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admiração por si. Nunca consegui arranjar esse tipo de coisas nem fazer nada do género." O
meu vizinho, sem nenhuma hesitação, ripostou "Isso é porque não lhe dedica tempo."
Continuei o meu passeio, algo inquieto com a simplicidade, espontaneidade e determinação da
resposta. "Será que ele tem razão?", perguntei a mim mesmo. De qualquer maneira, ficou-me
na memória, e na primeira oportunidade que surgiu de fazer uma pequena reparação, lembrei-
me que era preciso dar-lhe tempo. O travão de mão do carro de uma doente tinha colado e ela
sabia que havia qualquer coisa que se puxava por baixo da consola para o soltar, mas não sabia
o quê. Deitei-me no chão, por baixo do assento da frente do carro. Levei o tempo necessário a
acomodar-me. Quando me senti confortável, examinei a situação tranquilamente. Olhei
durante alguns minutos. Inicialmente só vi uma confusão de cabos e tubos e hastes cujo
significado não conhecia. Mas gradualmente, sem pressa, consegui focar o olhar no dispositivo
de travagem e seguir o seu percurso. Então tornou-se claro que havia uma pequena alavanca
que não deixava soltar o travão. Estudei a alavanca vagarosamente até se tornar claro que, se a
empurrasse para cima com a ponta do dedo, a movimentaria com facilidade e soltaria o travão.
Foi o que fiz. Um único movimento, alguns gramas de pressão de um dedo, e o problema ficou
resolvido. Eu era um mestre mecânico! Na verdade, nem tenho conhecimentos - nem sequer
tempo para os adquirir - que me permitam resolver a maior parte das avarias mecânicas, dado
que escolhi concentrar o meu tempo em assuntos não mecânicos. Portanto, continuo a ir a
correr à oficina mais próxima. Mas agora sei que é uma escolha feita por mim, que não fui
amaldiçoado, nem tenho uma deficiência genética, nem sou de outra forma incapaz ou
impotente. E sei que eu ou qualquer outra pessoa, que não seja deficiente mental, podemos
resolver qualquer problema se nos dispusermos a dedicar-lhe tempo.

29

A questão é importante, principalmente porque muitas pessoas não se dispõem


simplesmente a gastar o tempo necessário para resolverem muitos dos problemas
intelectuais, sociais ou espirituais da vida, tal como eu não o gastava para resolver problemas
mecânicos. Antes da minha iluminação mecânica, teria enfiado a cabeça desastradamente por
baixo da consola do carro da minha doente, teria imediatamente puxado por uma data de fios
sem ter a menor ideia do que estava a fazer e depois, não obtendo nenhum resultado
construtivo, deitaria as mãos à cabeça e diria, "Não sou capaz." E esta é precisamente a forma
como muitos de nós abordamos outros dilemas da vida do dia-a-dia. A analista financeira
que já foi referida era, basicamente, uma mãe afectuosa e dedicada para os dois filhos
pequenos, mas pouco eficaz. Era suficientemente atenta e preocupada para perceber quando
os filhos tinham qualquer problema emocional ou algo não funcionava na forma como os
educava. Mas depois, inevitavelmente, actuava de uma de duas maneiras: ou fazia a primeira
alteração que lhe vinha à cabeça numa questão de segundos - obrigando-os a comer mais ao
pequeno-almoço ou mandando-os para a cama mais cedo, independentemente do facto de
essa alteração ter ou não ter alguma coisa a ver com o problema, ou então chegava à sessão
seguinte de terapia comigo (o mecânico), e desesperava: "Não sou capaz. O que hei-de fazer?"
Esta mulher tinha uma mente perfeitamente lúcida e analítica e, quando não procrastinava, era
perfeitamente capaz de resolver problemas complexos no seu trabalho. No entanto, quando
confrontada com um problema pessoal, comportava-se como se não possuísse qualquer
espécie de inteligência. A questão era de tempo. Assim que se apercebia de um problema
pessoal, sentia-se tão perturbada que exigia uma solução imediata e não estava disposta a
tolerar esse desconforto o tempo suficiente para analisar o problema. A solução do problema
representava a grati-

30

ficação, que ela não era capaz de adiar mais de um ou dois minutos, com o resultado de que as
suas soluções eram habitualmente inadequadas e a família vivia em turbilhão crónico.
Felizmente que, perserverando na terapia, conseguiu aprender gradualmente a auto-
disciplinar-se de forma a dedicar o tempo necessário à análise dos problemas familiares para
poder aplicar soluções ponderadas e eficazes.

Não falamos aqui de deficiências esotéricas na resolução de problemas associadas apenas a


pessoas que manifestam perturbações psiquiátricas. A analista financeira é toda a gente. Qual
de nós pode afirmar que dedica infalivelmente tempo suficiente à análise dos problemas ou
tensões das crianças da família? Qual de nós é tão auto-disciplinado que nunca diga
resignadamente face aos problemas, "Não sou capaz"?

De facto, existe uma deficiência na abordagem da resolução de problemas, mais primitiva e


destrutiva do que as tentativas precipitadas de encontrar soluções instantâneas, uma
deficiência ainda mais omnipresente e universal. É a esperança que os problemas desapareçam
por sua própria iniciativa. Um vendedor de trinta anos, solteiro, que fazia terapia de grupo
numa pequena cidade, começou a sair com uma mulher, recentemente separada de um dos
outros membros do grupo, um banqueiro. O vendedor sabia que o banqueiro era um revoltado
crónico que se ressentia profundamente por a mulher o ter deixado. Também sabia que era
quase inevitável que, mais cedo ou mais tarde, o banqueiro viesse a saber da sua relação. Sabia
que a única solução para o problema seria confessar a relação ao grupo e suportar a zanga do
banqueiro com o apoio do grupo. Mas não fez nada. Passados três meses, o banqueiro
descobriu a amizade, ficou furioso como era de prever e aproveitou o incidente para deixar a
terapia. Quando confrontado pelo grupo quanto ao seu comportamento destrutivo, o
vendedor disse: "Eu sabia que falar sobre o assunto ia criar uma

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confusão e achei que, se não fizesse nada, talvez escapasse sem confusão. Acho que me
convenci que, se esperasse o tempo suficiente, o problema desapareceria."

Os problemas não desaparecem. Têm que ser resolvidos, caso contrário permanecerão,
constituindo sempre uma barreira à evolução e desenvolvimento do espírito.

O grupo manifestou ao vendedor em termos muito claros que a sua tendência para evitar a
resolução dos problemas, ignorando o problema na esperança que ele desaparecesse,
constituía em si o seu maior problema. Quatro meses mais tarde, no início do Outono, o
vendedor concretizou uma fantasia, despedindo-se do lugar de vendedor e montando o seu
próprio negócio de reparação de mobiliário, que não o obrigava a viajar. O grupo criticou o
facto de ele estar a pôr os ovos todos num só cesto e pôs em causa a sensatez de fazer a
mudança tão próximo do Inverno, mas o vendedor assegurou-lhes que ganharia o suficiente
para, sobreviver com o seu novo negócio. O assunto caiu no esquecimento. No início de
Fevereiro, ele anunciou que teria de deixar o grupo porque não podia continuar a pagar a
mensalidade. Estava sem um tostão e tinha que começar a procurar outro emprego. Em cinco
meses, tinha consertado um total de oito peças de mobiliário. Quando lhe perguntaram
porque não tinha começado a procurar emprego mais cedo, a resposta dele foi: "Há seis
semanas que sabia que o dinheiro se estava a esgotar rapidamente, mas não queria acreditar
que chegaria a este ponto. Tudo isto não parecia muito urgente mas agora, caramba, é mesmo
urgente." Tinha, claro, ignorado o problema. Gradualmente, foi-se apercebendo de que até
resolver o problema de ignorar os problemas não passaria da estaca zero - mesmo com toda a
psicoterapia do mundo.

Esta tendência para ignorar os problemas é, mais uma vez, uma simples manifestação de
relutância em adiar a gratificação.
32

A confrontação dos problemas é, como já disse, dolorosa. Para enfrentar um problema de


início, de livre vontade, antes de sermos forçados a fazê-lo pelas circunstâncias, significa trocar
algo agradável ou menos doloroso por algo mais doloroso. É escolher sofrer agora na
esperança da gratificação futura, em vez de escolher a continuação da gratificação do presente
na esperança que o sofrimento futuro não venha a ser necessário.

Pode parecer que o vendedor que ignorava problemas tão óbvios era emocionalmente imaturo
ou psicologicamente primário, mas mais uma vez vos digo, ele é toda a gente e a sua
imaturidade e primitivismo existem em todos nós. Um grande general, comandante de um
exército, disse-me uma vez: "O maior problema neste exército, ou creio eu, em qualquer
organização, é que a maior parte dos executivos sentam-se a olhar para os problemas nas suas
unidades, encarando-os de frente, sem fazer nada, como se os problemas desaparecessem se
eles lá ficarem tempo suficiente." O general não se referia a débeis mentais ou anormais.
Falava de outros generais e coronéis, homens maduros com capacidades comprovadas e
treinados em disciplina.

Os pais são executivos e, apesar de normalmente não estarem muito bem preparados para ela,
a sua tarefa pode ser tão complexa como dirigir uma companhia ou uma empresa. E, como os
executivos militares, a maior parte dos pais apercebe-se dos problemas dos seus filhos ou da
sua relação com eles durante meses ou anos antes de agirem, se o chegam a fazer. "Pensámos
que lhe passasse com a idade," dizem os pais quando consultam um psiquiatra infantil devido a
um problema que dura há cinco anos. E com respeito à complexidade da acção parental, devo
dizer que as decisões dos pais são difíceis e muitas vezes os problemas infantis "passam com a
idade". Mas quase nunca faz mal algum tentar ajudá-los a ultrapassar o problema ou analisá-lo
mais de perto. E enquanto há crianças a quem

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"passa com a idade", outras há a quem frequentemente não passa; e, como com tantos
problemas, quanto mais tempo os problemas das crianças forem ignorados, maiores se tornam
e mais dolorosos e difíceis de resolver.
Responsabilidade

NÃO PODEMOS RESOLVER os problemas da vida senão resolvendo-os. Esta afirmação pode
parecer idioticamente tautológica ou evidente, no entanto parece estar aquém da
compreensão de grande parte da raça humana. Isto porque temos que aceitar a
responsabilidade por um problema antes de o conseguirmos resolver. Não podemos resolver
um problema dizendo, "O problema não é meu." Não podemos resolver um problema tendo
esperança de que alguém o resolva por nós. Só posso resolver um problema quando digo "Este
problema é meu e compete-me resolvê-lo." Mas muitos, tantos, tentam evitar a dor dos seus
problemas dizendo para consigo: "Este problema foi-me causado por outros, ou por
circunstâncias sociais fora do meu controle, portanto compete aos outros ou à sociedade
resolver-me este problema. Não é um problema pessoal meu."

O ponto a que as pessoas chegam psicologicamente para fugir a assumir a responsabilidade de


problemas pessoais, embora sempre triste, é por vezes quase ridículo. Um sargento de carreira
no exército, destacado em Okinawa e numa situação grave devido a excesso de consumo de
álcool, foi-me enviado para avaliação psiquiátrica e, se possível, eventual tratamento. Negou
que era alcoólico, e até que o seu consumo de álcool fosse um problema pessoal, dizendo,
"Não há nada para fazer à noite em Okinawa excepto beber."

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"Gosta de ler?", perguntei-lhe.

"Ah, sim, claro, gosto de ler."

"Então porque não lê à noite, em vez de beber?"

"Há barulho a mais no quartel para se conseguir ler."

"Bom, então porque não vai para a biblioteca?"


"A biblioteca fica muito longe."

"A biblioteca fica mais longe que o bar onde costuma ir?"

"Bem, não sou grande leitor. Tenho outro tipo de interesses."

"Gosta de pescar?" perguntei então.

"Claro, adoro pescar."

"Porque não vai à pesca em vez de beber?"

"Porque tenho de trabalhar o dia todo."

"Não pode ir à pesca de noite?"

"Não, não se faz pesca à noite em Okinawa."

"Olhe que faz," disse eu. "Conheço várias organizações que pescam aqui à noite. Quer que o
ponha em contacto com elas?"

"Bom, na verdade, eu não gosto de ir à pesca."

"O que o ouço dizer," resumi, "é que há outras coisas para fazer em Okinawa sem ser beber,
mas o que você mais gosta de fazer em Okinawa é beber."

"É, acho que sim."


"Mas beber está a causar-lhe problemas, portanto você tem um problema para enfrentar, não
tem?"

"Esta maldita ilha conduz seja quem for a beber."

Continuei a tentar durante algum tempo, mas o sargento não estava minimamente interessado
em encarar o seu hábito de beber como um problema pessoal que podia resolver com ou sem
ajuda, pelo que comuniquei, lamentando, ao seu comandante que ele não estava receptivo a
assistência. Continuou a beber e foi dispensado do serviço a meio da carreira.

Uma jovem esposa, também em Okinawa, cortou o pulso ligeiramente com uma lâmina de
barba e foi conduzida ao serviço de urgência, onde a vi. Perguntei-lhe porque o tinha feito.

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"Para me matar, claro."

"Porque se quer matar?"

"Porque já não aguento esta estúpida ilha. Tem que me mandar de volta para os Estados
Unidos. Vou-me matar se tiver de ficar aqui mais tempo."

"O que é que tem viver em Okinawa de tão doloroso para si?", perguntei.

Ela começou a chorar, enquanto se lamentava "Não tenho cá amigos e estou sempre sozinha."

"Isso é mau. Mas como é que ainda não conseguiu arranjar amigos?"
"Porque tenho de viver numa estúpida zona residencial Okinawiana e nenhum dos meus
vizinhos fala inglês."

"Porque não vai até à zona residencial americana ou até ao clube das senhoras durante o dia,
para fazer algumas amizades?"

"Porque o meu marido tem de levar o carro para o trabalho."

"Não pode levá-lo ao serviço, já que está sozinha e aborrecida o dia inteiro?"

"Não. É um carro com caixa de velocidades e eu não sei guiar carros com caixa de velocidades,
só automáticos."

"Porque não aprende a conduzir um carro com caixa de velocidades?"

"Nestas estradas? O senhor deve ser doido."

Neuroses e Perturbações de Personalidade

A MAIOR PARTE DAS pessoas que vem consultar um psiquiatra sofre daquilo a que se chama
uma neurose ou uma perturbação de personalidade. Posto da forma mais simples, estas duas
condições são perturbações de responsabilidade e, como tal, são estilos opostos de
relacionamento com o mundo e os seus

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problemas. O neurótico assume demasiada responsabilidade; a pessoa com uma perturbação


de personalidade não assume a suficiente. Quando os neuróticos entram em conflito com o
mundo, assumem automaticamente que a culpa é sua. Quando os que têm perturbações de
personalidade entram em conflito com o mundo, assumem automaticamente que a culpa é do
mundo. Os dois indivíduos atrás descritos tinham perturbações de personalidade: o sargento
achava que o seu hábito de beber era culpa de Okinawa e não sua, e a mulher via-se como não
tendo papel nenhum no seu próprio isolamento. Uma mulher neurótica, por outro lado, que
também sofria de solidão e isolamento em Okinawa, queixava-se: "Desloco-me todos os dias
ao Clube das Mulheres de Sargentos à procura de amizades, mas não me sinto lá à vontade.
Acho que as outras mulheres não gostam de mim. Deve haver algo de errado comigo. Devia ser
capaz de fazer amigos com maior facilidade. Devia ter mais iniciativa. Quero descobrir o que
me faz ser tão pouco procurada." Esta mulher assumia responsabilidade total pela sua solidão,
sentindo que a culpa era toda sua. O que descobriu no decurso da terapia foi que era uma
pessoa invulgarmente inteligente e ambiciosa e que se sentia pouco à vontade com as outras
mulheres de sargentos e com o seu marido, porque era consideravelmente mais inteligente e
ambiciosa que eles. Passou a ser capaz de ver que a sua solidão, embora sendo um problema
seu, não era necessariamente devido a um erro ou deficiência da sua parte. Por fim, divorciou-
se, tirou um curso universitário ao mesmo tempo que educava os filhos, tornou-se produtora
de revistas e casou com um editor de sucesso.

Até os padrões de discurso dos neuróticos e os dos doentes de perturbações de personalidade


são diferentes. O discurso do neurótico é marcado por expressões tais como "Eu devia" e "Eu
não devia", que indicam a imagem que o indivíduo tem de si como um homem ou mulher
inferior, ficando sempre aquém

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do objectivo, fazendo sempre as escolhas erradas. O discurso de uma pessoa com uma
perturbação de personalidade, no entanto, está recheado de "não posso", "não pude", "tenho
de" e "tive de", demonstrando a imagem de um ser que não tem poder de escolha, cujo
comportamento é completamente orientado por forças externas totalmente fora do seu
controle. Como se pode imaginar, é fácil trabalhar com neuróticos em psicoterapia, em
comparação com pessoas com perturbações de personalidade, porque assumem a
responsabilidade das suas dificuldades e portanto reconhecem-se como tendo problemas. É
muito mais difícil, senão impossível, lidar com os que têm perturbações de personalidade,
porque não se vêem como tendo problemas; vêem o mundo, e não eles, a necessitar de
mudança, e portanto não reconhecem a necessidade de autoanálise. Na verdade, muitos
indivíduos têm uma neurose e uma perturbação da personalidade e são designados por
"neuróticos de personalidade", que indica que nalgumas partes das suas vidas se vêem
carregados de culpas por terem assumido responsabilidades que na realidade não são deles,
enquanto que noutras áreas não assumem uma responsabilidade realista. Felizmente, quando
a f é e a confiança desses indivíduos no processo de psicoterapia são estabelecidas pela ajuda
que ela lhes presta no lado neurótico das suas personalidades, consegue-se frequentemente
levá-los a examinarem e corrigirem a sua indisponibilidade para assumir responsabilidades
onde é necessário. Poucos de nós escapamos a ser neuróticos ou a ter perturbações de
personalidade pelo menos até certo ponto (razão porque essencialmente toda a gente pode
beneficiar da psicoterapia se estiver seriamente disposta a participar no processo). A razão
para isso é que o problema de distinguir entre aquilo por que somos ou não somos
responsáveis nesta vida é um dos maiores problemas da existência humana. Nunca fica
completamente resolvido; durante toda a nossa vida, temos de avaliar

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e reavaliar continuamente onde estão as nossas responsabilidades no decurso constantemente


em mudança dos acontecimentos. A avaliação e a reavaliação não deixam de ser dolorosas por
serem feitas adequada e conscienciosamente. Para executar quer um quer outro processo
adequadamente, devemos possuir a vontade e a capacidade de nos submetermos a uma auto-
avaliação contínua. E essa capacidade ou vontade não é inerente a nenhum de nós. Num certo
sentido, todas as crianças têm distúrbios de personalidade, pela sua tendência instintiva de
negar a responsabilidade por muitos conflitos em que se encontram envolvidas. Assim, dois
irmãos que lutam culpar-se-ão sempre mutuamente por ter começado a briga e cada um
negará peremptoriamente ter sido o culpado. Da mesma forma, todas as crianças têm
neuroses, uma vez que instintivamente assumirão a responsabilidade por certas privações
porque passam mas que ainda não compreendem. Assim, a criança que não é amada pelos
pais assumir-se-á sempre como não sendo passível de ser amada em vez de reconhecer nos
pais uma deficiente capacidade de amar. Ou os adolescentes mais jovens que ainda não são
convidados para sair ou não são bem sucedidos nos desportos, que se vêem como seres
humanos gravemente deficientes e não como as flores tardias mas perfeitamente normais que
normalmente são. Só através de uma grande experiência e de uma longa e bem sucedida
maturação adquirimos a capacidade de ver o mundo e o nosso lugar nele de uma forma
realista e assim somos capazes de avaliar realisticamente a nossa responsabilidade por nós e
no mundo.

Os pais podem fazer muito para ajudar os filhos neste processo de maturação. Ocorrem
milhares de oportunidades, enquanto os filhos crescem, em que os pais os podem confrontar
com a sua tendência para evitar ou escapar à responsabilidade pelos seus actos ou em que
podem tranquilizá-los em como certas situações não decorrem de falta sua. Mas agarrar

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essas oportunidades, como já disse, requer dos pais sensibilidade às necessidades dos filhos e
disposição de lhes dedicar o tempo e o esforço, muitas vezes desconfortável, de fazer face a
essas necessidades. O que, por sua vez, exige amor e vontade de assumir a responsabilidade
adequada pela melhoria do desenvolvimento dos filhos.

Por outro lado, mesmo para além da simples insensibilidade e negligência, há muito que os
pais podem fazer para prejudicar este processo de maturação. Os neuróticos, pela sua
disposição de assumir responsabilidade, podem ser pais excelentes se as suas neuroses forem
relativamente ligeiras e não estiverem tão sobrecarregados de responsabilidades
desnecessárias que pouca energia lhes reste para as responsabilidades necessárias da
paternidade. As pessoas com perturbações de personalidade, no entanto, tornam-se pais
desastrosos, perfeitamente alheios ao facto de muitas vezes tratarem os filhos duma forma
terrivelmente destrutiva. Diz-se que "os neuróticos tornam-se infelizes; os que têm
perturbações de personalidade tornam todos os outros infelizes". Acima de tudo, os pais com
perturbações de personalidade tornam infelizes os seus filhos. Como noutras áreas das suas
vidas, não assumem a devida responsabilidade pela paternidade. Tendem a sacudir os filhos de
mil e uma maneiras, em vez de lhes prestarem a atenção de que precisam. Quando os filhos
são delinquentes ou têm dificuldades nos estudos, os pais com perturbações de personalidade
automaticamente atribuirão a culpa ao sistema da escola ou a outras crianças que, insistem,
exercem "má influência" nos seus filhos. Esta atitude, claro, ignora o problema. Por fugirem à
responsabilidade, os pais com perturbações de personalidade servem de modelos de
irresponsabilidade aos filhos. Finalmente, nos seus esforços de fugir à responsabilidade pelas
suas próprias vidas, os pais com perturbações de personalidade muitas vezes atribuem-na aos
filhos: "Vocês põem-me doido", ou "A única

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razão porque continuo casada com o vosso pai (ou casado com a vossa mãe) é por vossa
causa", ou "A vossa mãe tem os nervos em franja por vossa causa", ou "Podia ter tirado um
curso e ser uma pessoa de sucesso se não tivesse que vos sustentar". Desta forma, os pais
estão de facto a dizer aos filhos, "Vocês são responsáveis pela qualidade do meu casamento,
pela minha saúde mental e pela minha falta de sucesso na vida." Uma vez que não têm a
capacidade de avaliar quão inadequada é essa atitude, as crianças aceitam muitas vezes a
responsabilidade, e na medida em que a aceitam, tornam-se neuróticas. É assim que os pais
com perturbações de personalidade quase invariavelmente dão origem a crianças com
perturbações de personalidade ou neuróticas. São os próprios pais que fazem recair os seus
pecados sobre os filhos.
Não é apenas no seu papel de pais que os indivíduos com perturbações de personalidade são
ineficazes e destrutivos; estes mesmos traços de carácter reflectem-se normalmente no
casamento, nas amizades e nos negócios - em todas as áreas da existência em que eles
recusam assumir responsabilidade pela respectiva qualidade. Isto é inevitável já que, como foi
dito, nenhum problema pode ser resolvido até que o indivíduo assuma a responsabilidade de o
resolver. Quando os indivíduos com perturbações de personalidade culpam uma outra pessoa

- cônjuge, filho, amigo, pai, patrão - ou outra coisa - as más influências, as escolas, o governo, o
racismo, o sexismo, a sociedade, o "sistema" - pelos seus problemas, eles persistem. Nada se
conseguiu. Ao rejeitar a responsabilidade eles podem sentir-se bem consigo próprios, mas
deixaram de resolver os problemas da vida, de crescer espiritualmente e tornaram-se um peso
morto para a sociedade. Passaram a sua dor para a sociedade. A frase dos anos sessenta
(atribuída a Eldridge Cleaver) fala a todos nós para sempre: "Se não fazes parte da solução,
fazes parte do problema."

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Fuga da Liberdade

QUANDO UM PSIQUIATRA diagnostica uma perturbação de personalidade é porque o padrão


de evasão à responsabilidade é relativamente flagrante no indivíduo sob diagnóstico. No
entanto, quase todos nós, de vez em quando, tentamos escapar - por formas por vezes
bastante subtis - à dor de assumir a responsabilidade dos nossos problemas. Pela cura da
minha própria perturbação de personalidade, aos trinta anos, estou em dívida para com Mac
Badgely. Na altura, Mac era director da clínica de Psiquiatria ambulatória onde eu estava a
fazer o estágio. Nessa clínica, os doentes eram distribuídos pelos outros internos e por mim,
em regime de rotação. Talvez porque eu fosse mais dedicado aos meus doentes e à minha
própria formação do que a maior parte dos meus colegas internos, dei por mim a trabalhar
muito mais horas do que eles. Eles normalmente viam doentes só uma vez por semana. Eu,
muitas vezes, via os meus doentes duas ou três vezes por semana. Em consequência, via os
meus colegas sairem da clínica todas as tardes às quatro e meia para irem para casa, enquanto
que eu tinha consultas marcadas até às oito ou nove da noite, o que me enchia de
ressentimento. À medida que me fui ressentindo cada vez mais e ficando cada vez mais
exausto, percebi que havia alguma coisa a fazer. Fui falar com o Dr. Badgely e expliquei-lhe a
situação. Perguntei-lhe se podia ser dispensado da rotação na aceitação de novos doentes
durante algumas semanas de maneira a poder recuperar, se ele achasse que era possível, ou se
ele via outra solução qualquer para o problema. Mac ouviu-me atenta e receptivamente, sem
me interromper uma única vez. Quando terminei, após um momento de silêncio, ele disse-me,
simpaticamente,

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"Bom, vejo que tem mesmo um problema."

Sorri amplamente, sentindo-me compreendido. "Obrigado," disse eu. "O que acha que se deve
fazer?"

Ao que Mac respondeu, "Já lhe disse, Scott, você tem um problema."

Esta não era bem a resposta que eu esperava. "Sim," disse eu, ligeiramente aborrecido, "eu sei
que tenho um problema. Foi por isso que vim falar consigo. O que acha que devo fazer a esse
respeito?"

Mac respondeu: "Scott, parece-me que não ouviu o que eu lhe disse. Eu ouvi-o e estou de
acordo consigo. Você tem um problema."

"Caramba," disse eu, "eu sei que tenho um problema. Já sabia quando aqui cheguei. A questão
é, o que é que vou fazer?"

"Scott," respondeu Mac, "quero que ouça. Ouça com atenção e eu vou repetir. Concordo
consigo. Tem um problema. Especificamente, tem um problema de tempo. O seu tempo. Não o
meu tempo. É o seu problema, com o seu tempo. Você, Scott Peck, tem um problema com o
seu tempo. É tudo o que vou dizer sobre o assunto."

Virei as costas e saí do gabinete de Mac, furioso. E continuei furioso. Detestava Mac Badgely.
Durante três meses, odiei-o. Achava que ele tinha uma perturbação grave de personalidade.
Senão, como podia ter sido tão insensível? Eu tinha ido ter com ele humildemente para lhe
pedir uma pequena ajuda, um pequeno conselho, e o estupor nem sequer tinha querido
assumir a responsabilidade de tentar ajudar-me, até como director da clínica. Se não lhe
competia ajudar a gerir este tipo de problemas como director da clínica, então que diabo lhe
competia?

Mas, três meses depois, lá me apercebi de que Mac tinha razão, que era eu, e não ele, que
tinha a perturbação de personalidade. O meu tempo era da minha responsabilidade.

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Competia-me a mim e só a mim decidir como queria utilizar e organizar o meu tempo. Se
queria investir mais tempo no trabalho que os meus colegas, a escolha era minha e as
consequências dessa escolha eram da minha responsabilidade. Podia ser doloroso para mim
ver os meus colegas sair duas ou três horas antes de mim, e podia ser doloroso ouvir as
reclamações da minha mulher por eu não me dedicar suficientemente à família, mas essas
eram as consequências da escolha que eu tinha feito. Se eu não as quisesse sofrer, tinha a
liberdade de escolher não trabalhar tanto e de organizar o meu tempo de maneira diferente. O
meu esforço no trabalho não era uma carga imposta por má sina ou por um director clínico
sem coração; era a forma como eu tinha escolhido viver e ordenar as minhas prioridades. De
facto, escolhi não mudar o meu estilo de vida. Mas com a mudança de atitude, desapareceu o
ressentimento contra os meus colegas. Já não fazia sentido continuar ressentido com eles por
terem escolhido um estilo de vida diferente do meu, quando eu tinha toda a liberdade de
escolher ser como eles se quisesse. Ressentir-me com eles era ressentir-me com a minha
escolha de ser diferente deles, uma escolha que me satisfazia.

A dificuldade que temos em aceitar a responsabilidade do nosso comportamento está no


desejo de evitar a dor das consequências desse comportamento. Ao pedir ao Mac Badgely que
assumisse a responsabilidade da estruturação do meu tempo, eu estava a tentar evitar a dor de
trabalhar muitas horas, ainda que trabalhar muitas horas fosse a consequência inevitável da
minha escolha de me dedicar aos meus doentes e à minha formação. No entanto, ao fazê-lo, eu
estava inconscientemente a tentar aumentar a autoridade de Mac sobre mim. Estava a dar-lhe
o meu poder, a minha liberdade. Com efeito, estava a dizer-lhe, "Toma conta de mim. Sê o
chefe!" Sempre que procuramos evitar a responsabilidade pelo nosso comportamento,
fazemo-lo tentando passar essa responsabilidade

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para outro indivíduo, organização ou entidade. Mas isto significa que estamos a entregar o
nosso poder a essa entidade, seja o "destino" ou a "sociedade", o governo, a empresa ou o
chefe. Esta é a razão porque Erich Fromm atribuiu o título, tão bem escolhido, de Fuga da
Liberdade ao seu estudo sobre o Nazismo e o autoritarismo. Ao tentar fugir à dor da
responsabilidade, milhões e até biliões de pessoas tentam diariamente fugir da liberdade.

Conheço um indivíduo brilhante mas reservado que, quando o deixo, fala eloquentemente e
sem parar das forças opressivas na nossa sociedade: o racismo, a desigualdade entre os sexos,
o sistema militar-industrial e a polícia local, que embirra com ele e com os amigos por causa do
cabelo comprido. Repetidamente, tenho tentado fazer-lhe ver que ele não é uma criança.
Quando crianças, em virtude da nossa real e enorme dependência, ou nossos pais têm um real
e enorme poder sobre nós. De facto, têm uma grande responsabilidade pelo nosso bem-estar e
encontramo-nos na verdade, em grande medida, à sua mercê. Quando os pais são opressivos,
como é frequente, os filhos não têm praticamente nenhum poder de reacção; as escolhas são
limitadas. Mas como adultos, quando fisicamente saudáveis, as nossas escolhas são quase
ilimitadas. Isto não quer dizer que não sejam dolorosas. Com frequência, as nossas escolhas
situam-se entre o menor de dois males, mas continua a estar ao nosso alcance fazê-las. Sim,
concordo com o meu conhecido, existem forças opressivas em acção no mundo. Temos, no
entanto, a liberdade de escolher a cada passo a forma como vamos responder e manobrar
essas forças. Ele escolheu viver numa zona do país onde a polícia não gosta dos "tipos de
cabelo comprido" e continua a deixar o cabelo crescer. É livre de se mudar para a cidade, ou de
cortar o cabelo, ou até de se candidatar a comissário da polícia. Mas, apesar do seu
brilhantismo, ele não reconhece essas liberdades. Opta por se lamentar

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da sua falta de poder político em vez de aceitar e exultar com o seu imenso poder pessoal. Fala
do amor à liberdade e das forças opressivas que o restringem, mas de cada vez que fala de
como é vitimado por essas forças está de facto a entregar a sua liberdade. Espero que um dia,
em breve, ele deixe de se revoltar contra a vida só porque algumas das escolhas são
dolorosas*.

A Dra. Hilde Bruch, no prefácio do seu livro Aprendendo Psicoterapia, afirma que, basicamente,
todos os doentes vão ao psiquiatra com "um problema comum: a sensação de desamparo, o
receio e a profunda convicção de ser incapaz de 'lidar' com as coisas e mudá-las"**. Uma das
raízes desta "sensação de impotência" na maioria dos pacientes é o desejo de escapar, parcial
ou completamente, à dor da liberdade e, portanto, a falta, parcial ou total, de aceitação da
responsabilidade pelos seus problemas e pelas suas vidas. Sentem-se impotentes porque, de
facto, alienaram o seu poder. Mais cedo ou mais tarde, se se quiserem curar, terão que
aprender que toda a vida adulta consiste numa série de escolhas e decisões pessoais. Se
aceitarem isso na totalidade, tornar-se-ão pessoas livres. Enquanto não o aceitarem, sentir-se-
ão vítimas para sempre.

* O psiquiatra Allen Wheelis foi, a meu ver, quem mais eloquentemente e até mais
poeticamente definiu a questão da liberdade de escolha entre dois males, no capítulo
"Freedom and Necessity" do seu livro How People Change (Nova Iorque: Harper ÔC Row,
1973). Estive tentado a citar o capítulo na totalidade, e recomendo-o a todos os que quiserem
explorar esta questão mais a fundo.

(Nota)

** Learning Psychotherapy, Cambridge, Mass., Harvard Univ. Press,

1974, p. ix.

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Dedicação à Realidade

O TERCEIRO INSTRUMENTO de disciplina ou da técnica de gerir a dor da resolução dos


problemas, que tem que ser continuamente aplicada se queremos que as nossas vidas sejam
saudáveis e que os nossos espíritos evoluam, é a dedicação à verdade. Superficialmente, isto
seria óbvio. Porque a verdade é a realidade. Aquilo que é falso, é irreal. Quanto mais
claramente virmos a realidade do mundo, melhor preparados estaremos para nos
relacionarmos com ele. Quanto menos clara for a nossa visão da realidade do mundo - quanto
mais a nossa mente for confundida por falsidades, mal-entendidos e ilusões

- menos capazes seremos de determinar as linhas de actuação correctas e de tomar decisões


acertadas. A nossa visão da realidade é como um mapa com o qual transpomos o terreno da
vida. Se o mapa for verdadeiro e rigoroso, sabemos em geral onde estamos e, se decidirmos
para onde queremos ir, sabemos em geral como lá chegar. Se o mapa for falso e pouco preciso,
em geral perdemo-nos.

Embora tudo isto seja óbvio, constitui algo que a maioria das pessoas, em maior ou menor
grau, tende a ignorar. Ignoram-no porque o nosso caminho para a realidade não é fácil.
Primeiro, não nascemos com mapas; temos que os fazer, e fazê-los exige esforço. Quanto mais
esforço fizermos para apreciar e compreender a realidade, tanto maiores e mais precisos serão
os nossos mapas. Mas muitos não querem fazer esse esforço. Alguns deixam de o fazer no fim
da adolescência. Os mapas deles são pequenos e mal desenhados, a sua visão do mundo
estreita e enganadora. No fim da meia-idade, a maior parte das pessoas desiste. Têm a certeza
de que os seus mapas estão com-

47

pletos e que o seu Weltanschauung está correcto (na verdade, até sacrossanto), e deixam de se
interessar por novas informações. Como se estivessem cansadas. Apenas relativamente poucas
e afortunadas pessoas continuam, até ao momento da morte, a explorar o mistério da
realidade, sempre aumentando, refinando e redefinindo o seu entendimento do mundo e do
que é verdadeiro.

Mas o maior problema da feitura dos mapas não é ter de começar do zero, mas o ter de os
rever constantemente, se queremos que sejam rigorosos. O próprio mundo está em constante
mudança. Os glaciares vão e vêm. As culturas vão e vêm. Há muito pouca tecnologia, há
demasiada tecnologia. Duma forma ainda mais dramática, o ponto privilegiado de onde vemos
o mundo está constante e rapidamente em mudança. Quando somos crianças, somos
dependentes, desamparados. Como adultos, podemos ser poderosos. No entanto, por doença
ou velhice, podemos tornar-nos novamente desamparados e dependentes. EnQuanto temos
crianças de quem cuidar, o mundo parece-nos diferente do que quando não temos; quando
criamos bebés, o mundo é diferente de quando criamos adolescentes. Quando somos pobres,
o mundo parece diferente de quando somos ricos. Somos diariamente bombardeados com
novas informações quanto à natureza da realidade. Se queremos incorporar essa informação,
temos de rever os nossos mapas continuamente, e, por vezes, quando se acumula informação
suficiente, temos que proceder a revisões alargadas. O processo de fazer revisões,
principalmente revisões alargadas, é doloroso, por vezes tremendamente doloroso. E eis a
maior fonte de muitos dos males da humanidade.

O que acontece quando se lutou longa e arduamente para desenvolver uma visão funcional do
mundo, um mapa aparentemente útil e utilizável, e se é depois confrontado com nova
informação que sugere que essa visão está errada e que o mapa

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tem de ser substancialmente refeito? O doloroso esforço exigido parece assustador, quase
inultrapassável. O que fazemos, na maior parte das vezes, e normalmente inconscientemente,
é ignorar a nova informação. Muitas vezes, este acto de ignorar é muito mais do que passivo.
Podemos denunciar a nova informação como falsa, perigosa, herética, um acto do diabo.
Podemos fazer campanha contra ela e até tentar manipular o mundo para o ajustar à nossa
visão da realidade. Em vez de tentar mudar o mapa, o indivíduo pode tentar destruir a nova
realidade. Lamentavelmente, essa pessoa pode gastar muito mais energia, no limite, a
defender uma visão ultrapassada do mundo, do que a que seria necessária para a rever e
corrigir desde o início.

Transferência: o Mapa Ultrapassado

ESTE PROCESSO DE SE agarrar activamente a uma visão ultrapassada da realidade é a base de


muitas doenças mentais. Os psiquiatras designam-na por transferência. Existem provavelmente
tantas variantes subtis da definição de transferência como há psiquiatras. A minha definição
pessoal é: transferência é o conjunto de formas de percepção e reacção ao mundo, que é
desenvolvido na infância e que normalmente é totalmente adequado ao ambiente da infância
(na verdade, muitas vezes vital), mas que é inadequadamente transferido para o ambiente
adulto.

As formas de manifestação da transferência, embora sempre invasoras e destrutivas, são


muitas vezes discretas. No entanto, os exemplos mais claros devem ser explícitos. Um desses
exemplos foi o de um doente cujo tratamento não resultou por força da sua transferência. Era
um técnico de computadores brilhante, mas mal sucedido, com trinta e poucos anos, que me
consultou porque a mulher o tinha deixado, levando com ela

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os dois filhos. Ele não estava especialmente infeliz por a ter perdido, mas estava destroçado
pela perda dos filhos, a quem era profundamente dedicado. Foi na esperança de os reaver que
iniciou a psicoterapia, uma vez que a mulher tinha declarado firmemente que não voltaria para
ele se não se submetesse a tratamento psiquiátrico. As suas maiores queixas contra ele eram
de que ele manifestava continuamente um ciúme irracional a seu respeito, no entanto
mantinha-se simultaneamente indiferente, frio, distante, não comunicativo e não afectuoso.
Também se queixava das suas mudanças de emprego frequentes. A vida dele desde a
adolescência tinha sido marcadamente instável. Durante a adolescência, tinha-se envolvido
repetidamente em pequenas altercações com a polícia, e tinha sido detido três vezes por
embriaguez, beligerância, "vagabundagem" e por "interferir com os deveres de um polícia".
Não acabou a universidade, onde estava a tirar o curso de engenharia eléctrica, porque, dizia
ele, "Os meus professores eram uma cambada de hipócritas, pouco diferentes da polícia."
Devido ao seu brilhantismo e criatividade no campo das tecnologias de informação, os seus
serviços eram muito procurados pela indústria. Mas nunca tinha sido capaz de progredir ou
conservar um emprego durante mais de um ano e meio, sendo despedido ocasionalmente,
mas despedindo-se muitas vezes na sequência de disputas com os chefes, que descrevia como
"mentirosos e traidores, interessados apenas em se protegerem a si próprios". A sua expressão
mais frequente era "Não se pode confiar em ninguém". Descrevia a sua infância como
"normal" e os pais como "medianos". No breve período que passou comigo, no entanto, referiu
casualmente e sem emoção inúmeras situações em que os pais lhe tinham falhado.
Prometeram-lhe uma bicicleta pelo aniversário, mas esqueceram-se e deram-lhe outra coisa
qualquer. Uma vez, esqueceram-se completamente do seu aniversário, mas ele não achava que
isso

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estivesse drasticamente errado porque "eles tinham muito que fazer". Prometiam-lhe fazer
coisas com ele ao fim-de-semana, mas depois estavam normalmente "demasiado ocupados".
Inúmeras vezes, esqueceram-se de o ir buscar a reuniões ou festas porque "tinham muito em
que pensar".

O que aconteceu a este homem foi que, em criança, sofreu dolorosas desilusões, uma após
outra, devido à falta de afecto por parte dos pais. Gradual ou repentinamente - não sei como -
chegou à angustiante conclusão, a meio da infância, que não podia confiar nos pais. Quando
compreendeu isso, no entanto, começou a sentir-se melhor e a vida tornou-se mais
confortável. Já não alimentava expectativas em relação aos pais, nem esperanças quando lhe
faziam promessas. Quando deixou de confiar nos pais, a frequência e a gravidade das
desilusões diminuiu dramaticamente.

Este ajuste, no entanto, é a base de problemas futuros. Para uma criança, os pais são tudo;
representam o mundo. A criança não tem perspectiva para ver que outros pais são diferentes e
muitas vezes melhores. Parte do princípio que a forma como os pais fazem as coisas é a forma
como devem ser feitas. Em consequência disso, a conclusão - a "realidade" a que esta criança
chegou não foi "Não posso confiar nos meus pais", mas "Não posso confiar nas pessoas". Não
confiar nas pessoas tornou-se o mapa com que entrou na adolescência e na idade adulta. Com
este mapa e uma acumulação abundante de ressentimento que resultou das suas muitas
desilusões, era inevitável que entrasse repetidamente em conflito com as figuras da autoridade
- polícia, professor, patrões. E estes conflitos só serviram para reforçar o seu sentimento de que
não podia confiar nas pessoas que tinham alguma coisa para lhe dar no mundo. Teve muitas
oportunidades de rever o mapa, mas deixou-as passar todas. Por um lado, a única maneira
como podia aprender que havia pessoas no mundo em quem podia

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confiar seria arriscar-se a confiar nelas e isso exigiria um desvio no mapa, para começar. Por
outro, essa reaprendizagem exigir-Ihe-ia rever a visão que tinha dos pais - compreender que
não o amavam, que não teve uma infância normal e que os pais não eram medianos na sua
indiferença às suas necessidades. Essa compreensão teria sido extremamente dolorosa.
Finalmente, porque a sua desconfiança das pessoas era uma adaptação realista à realidade da
sua infância, era uma adaptação que funcionava em termos de lhe diminuir a dor e o
sofrimento. Uma vez que é extremamente difícil desistir duma adaptação que funcionou tão
bem, ele continuou o seu percurso de desconfiança, criando inconscientemente situações
que serviam para a reforçar, alienando-se de todos, tornando impossível a fruição do amor, do
carinho, da intimidade e do afecto. Nem sequer se permitia aproximar-se da mulher; ela
também não merecia confiança. As únicas pessoas com quem se podia relacionar intimamente
eram os dois filhos. Eram os únicos que controlava, que não tinham autoridade sobre ele, os
únicos em todo o mundo em quem podia confiar.

Quando estão envolvidos problemas de transferência, como é habitual, a psicoterapia é, para


além de outras coisas, um processo de revisão de mapas. Os doentes procuram a terapia
porque os seus mapas realmente não funcionam. Mas como se agarram a eles e lutam contra o
processo a cada passo! Frequentemente, a necessidade de se agarrarem aos mapas e de
lutarem para não os perderem é tão grande que a terapia se torna impossível, como aconteceu
no caso do técnico de informática. Inicialmente, pediu a consulta aos Sábados. Depois de três
sessões deixou de vir porque tinha arranjado um emprego a tratar de relvados aos Sábados e
Domingos. Propus-lhe a consulta às Qumtas-feiras à noite. Veio a duas sessões e parou porque
estava a fazer horas extraordinárias na fábrica. Reorganizei então a minha agenda de forma a
recebê-lo às Segundas

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à noite, dia em que era, segundo ele dizia, improvável haver horas extraordinárias. Depois de
duas sessões, no entanto, deixou de vir porque as horas extraordinárias à Segunda-feira
pareciam estar a aumentar. Confrontei-o com a impossibilidade de fazer terapia nestas
circunstâncias. Ele admitiu que não lhe era exigido fazer horas extraordinárias. No entanto,
declarou que precisava do dinheiro e que, para ele, o trabalho era mais importante do que a
terapia. Estipulou que podia vir às consultas apenas nas Segundas à noite em que não
houvesse trabalho extra e que me telefonaria às quatro da tarde todas as Segundas-feiras para
me avisar se podia vir à consulta na mesma noite. Disse-lhe que não podia aceitar essas
condições, que não estava disposto a alterar os meus planos todas as Segundas-feiras à noite
pela possibilidade de ele vir à consulta. Ele achou que eu estava a ser demasiado rígido, que
não me preocupava com as suas necessidades, que só me interessava o meu tempo e que
claramente não me importava nada com ele e, portanto, que não merecia confiança. Foi nesta
base que a nossa tentativa de trabalharmos juntos terminou, e eu passei a constar do seu
mapa como mais um marco.

O problema da transferência não é simplesmente um problema entre os psicoterapeutas e os


seus doentes. É um problema entre pais e filhos, maridos e mulheres, patrões e empregados,
entre amigos, entre grupos e até entre nações. É interessante reflectir, por exemplo, no papel
que as questões de transferência representam nas relações internacionais. Os nossos líderes
nacionais são seres humanos que tiveram infâncias e experiências na infância que os
moldaram. Que mapa seguia Hitler e de onde surgiu? Que mapa seguiam os líderes americanos
ao iniciar, executar e manter a guerra no Vietname? Era, evidentemente, um mapa muito
diferente do da geração que se seguiu. De que formas contribuiu a experiência nacional da
Depressão para o mapa deles, e a experiência dos anos cin-

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quenta e sessenta para o mapa da geração mais nova? Se a experiência nacional dos anos
trinta e quarenta contribuiu para o comportamento dos líderes americanos no lançamento da
guerra no Vietname, como se adequava essa experiência à realidade dos anos sessenta e
setenta? Como poderemos rever os nossos mapas mais rapidamente?

Tanto a verdade como a realidade são evitadas quando dolorosas. Só podemos rever os nossos
mapas quando possuímos a disciplina para ultrapassar essa dor. Para ter essa disciplina,
devemos ser totalmente dedicados à verdade. Isso quer dizer que devemos sempre considerar
a verdade, na medida em que a podemos determinar, mais importante, mais vital para o nosso
interesse pessoal, do que o nosso conforto. Inversamente, devemos sempre considerar o nosso
desconforto pessoal relativamente sem importância e até encará-lo positivamente ao serviço
da busca da verdade. A saúde mental é um processo permanente de dedicação à realidade a
todo o custo.

Abertura ao Desafio

O QUE SIGNIFICA UMA vida de dedicação total à verdade? Significa, antes de mais, uma vida de
auto-exame contínuo e infinitamente rigoroso. Só conhecemos o mundo através da nossa
relação com ele. Portanto, para conhecermos o mundo, não só temos de o examinar como,
simultaneamente, temos de examinar o examinador. Os psiquiatras aprendem isto durante a
sua formação e sabem que é impossível compreender realisticamente os conflitos e
transferências dos seus pacientes sem entenderem as suas próprias transferências e conflitos.
Por essa razão, os psiquiatras são encorajados a submeter-se a psicoterapia ou a psicanálise
como parte da sua formação e desenvolvi-

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mento. Infelizmente, nem todos os psiquiatras correspondem a esta solicitação. Há muitas


pessoas, entre elas psiquiatras, que analisam o mundo com rigor mas que não se analisam a
elas próprias tão rigorosamente. Podem ser indivíduos competentes, na medida em que o
mundo considera a competência, mas nunca são sábios (ou não possuem bom senso). A vida
de sabedoria deve ser uma vida de contemplação aliada a acção. No passado, na cultura
americana, a contemplação não foi muito considerada. Na década de cinquenta, as pessoas
classificaram Adiai Stevenson como um "intelectual" e achavam que ele não daria um bom
Presidente precisamente por ser um homem contemplativo, dado a meditação profunda e com
dúvidas. Já tenho ouvido pais dizerem aos filhos, com toda a seriedade, "Pensas demais." O
que é um absurdo, dado que são os nossos lobos frontais, a nossa capacidade de pensar e de
nos examinarmos, que nos torna humanos. Felizmente, esse tipo de atitude parece estar a
mudar e começamos a compreender que as fontes de perigo para o mundo se encontram mais
dentro de nós do que fora, e que o processo de constante auto-análise e contemplação é
essencial para a nossa sobrevivência. No entanto, refiro-me a um número relativamente
pequeno de pessoas que estão a mudar de atitude. A análise do mundo exterior nunca é
pessoalmente tão dolorosa como a análise do mundo interior, e é certamente devido à dor que
envolve uma vida de auto-exame que a maioria se desvia dela. No entanto, quando se é
dedicado à verdade, esta dor parece relativamente sem importância - e cada vez menos
importante (e portanto cada vez menos dolorosa) à medida que se avança no caminho da auto-
análise.
Uma vida de dedicação total à verdade significa também uma vida disposta a aceitar o desafio
pessoal. A única maneira de termos a certeza de que o nosso mapa da realidade é válido é
expô-lo à crítica e ao desafio dos outros fabricantes de mapas. Caso contrário, vivemos num
sistema fechado - dentro de

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uma redoma, utilizando a analogia de Sylvia Plath, em que respiramos só o nosso próprio ar
fétido, cada vez mais sujeitos a alucinações. No entanto, devido à dor inerente ao processo de
revisão do nosso mapa da realidade, tentamos a maior parte do tempo evitar ou afastar
quaisquer desafios à sua validade. Aos filhos dizemos, "Não me respondas, sou teu pai." Ao
cônjuge enviamos a mensagem, "Vamos viver e deixar viver. Se me criticares, serei insuportável
e vais arrepender-te." Às famílias e ao mundo, os mais velhos enviam a mensagem, "Sou velho
e frágil. Se me desafiares, posso morrer ou pelo menos ficarás com o peso da responsabilidade
de tornar infelizes os meus últimos dias." Aos nossos empregados comunicamos, "Se tiverem o
descaramento de me desafiar de alguma maneira, é melhor fazerem-no de forma comedida ou
terão de ir procurar outro emprego."*

* Não só os indivíduos mas também as organizações são notórias em proteger-se contra o


desafio. Uma vez, o Chefe de Pessoal do Exército solicitou-me que preparasse uma análise das
causas psicológicas das atrocidades de My Lai e o seu posterior encobrimento, com
recomendações para proceder a uma investigação que pudesse evitar tal comportamento no
futuro. As recomendações foram reprovadas pelo quadro geral do Exército, com a justificação
de que a investigação recomendada não poderia ser mantida em segredo. "A existência de uma
tal investigação pode abrir portas a um desafio posterior. O Presidente e o Exército não têm
necessidade de mais desafios, neste momento." Foi o que me disseram. Assim, uma análise das
razões dum incidente que fora encoberto foram, por sua vez, encobertas. Este comportamento
não se limita ao Exército ou à Casa Branca; pelo contrário, é comum ao Congresso, a outras
agências federais, empresas, até universidades e organizações de caridade - em resumo, a
todas as organizações humanas. Tal como é necessário aos indivíduos aceitar e até bendizer os
desafios colocados aos seus mapas de realidade e modi operandi, se quiserem evoluir em
sabedoria e em eficiência, também é necessário às organizações aceitar e bendizer desafios, se
quiserem ser viáveis e progressivas. Este facto tem vindo a ser cada vez mais reconhecido por
indivíduos como John Gardner da Causa Comum, para quem é claro que uma das tarefas mais
excitantes e essenciais que a nossa' sociedade enfrenta nas próximas décadas é construir, na
estrutura burocrática das nossas organizações, uma abertura e uma resposta
institucionalizadas ao desafio que substituirá a resistência institucionalizada que é típica
correntemente
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A tendência para evitar o desafio está tão omnipresente nos seres humanos que pode ser
considerada uma característica da natureza humana. Mas, por lhe chamarmos natural, não
quer dizer que seja um comportamento essencial, benéfico ou imutável. Também é natural
defecar nas calças e nunca lavar os dentes. No entanto, ensinamo-nos a fazer o que não é
natural até que se torne uma segunda natureza. Na verdade, a auto-disciplina podia ser
definida como o ensinarmo-nos a fazer o que não é natural. Outra característica da natureza
humana talvez a que nos torna mais humanos - é a nossa capacidade de fazermos o que não é
natural, de transcendermos e daí transformarmos a nossa própria natureza.

Nenhum acto é menos natural, e portanto mais humano, que o acto de nos submetermos à
psicoterapia. Porque, por esse acto, abrimo-nos deliberadamente ao mais profundo desafio por
parte de outro ser humano e até lhe pagamos pelo serviço de escrutínio e discernimento. Este
colocarmo-nos abertos ao desafio é uma das coisas que o deitarmo-nos no sofá do psicanalista
pode simbolizar. Submetermo-nos à psicoterapia é um acto da maior coragem. A razão
principal porque as pessoas não fazem psicoterapia não é a falta de dinheiro, mas sim a falta de
coragem. Isto inclui mesmo muitos psiquiatras que, por qualquer razão, nunca acham
conveniente submeterem-se a terapia, apesar de terem ainda mais razões que os outros para
se sujeitarem à disciplina que ela envolve. Por outro lado, é por possuírem essa coragem que
muitos doentes, mesmo no início da terapia e contrariamente à sua imagem estereotipada, são
mais fortes e saudáveis que a média.

Sendo a psicoterapia uma forma limite de nos abrirmos ao desafio, as nossas interacções mais
banais oferecem diariamente oportunidades de arriscar a abertura: junto da máquina da água,
em reunião, no campo de golfe, à mesa de jantar, na cama com as luzes apagadas; com os
nossos colegas, chefes e

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empregados, com os nossos companheiros, amigos, amantes, com os nossos pais ou filhos.
Uma senhora muito bem penteada, que se tratou comigo durante algum tempo, começou a
pentear-se de cada vez que se levantava do sofá no fim de uma sessão. Comentei este novo
padrão de comportamento. "Há umas semanas atrás o meu marido reparou que eu tinha o
cabelo achatado atrás quando regressei da sessão," explicou ela, corando. "Eu não lhe disse
porquê. Tenho medo que faça troça de mim se souber que me deito no sofá aqui." Portanto,
tínhamos outra questão para analisar. O grande valor da psicoterapia deriva do grau em que a
disciplina envolvida durante a "hora de cinquenta minutos" passa para os afazeres e relações
diários do paciente. A cura do espírito não fica completa até que a abertura ao desafio seja
uma forma de vida. Esta mulher não estaria completamente bem enquanto não conseguisse
ser tão directa com o marido como era comigo.

Entre todos os que vão ao psiquiatra ou ao psicoterapeuta, muito poucos procuram


inicialmente, de uma forma consciente, o desafio ou a educação na disciplina. A maior parte
procura apenas "alívio". Quando percebem que vão ser desafiados, mas também apoiados,
muitos fogem, e outros sentem-se tentados a fugir. Ensinar-lhes que o único alívio verdadeiro
advirá através do desafio e da disciplina é uma tarefa delicada, muitas vezes longa e
frequentemente sem sucesso. Falamos, portanto, de "seduzir" os doentes para a psicoterapia.
E podemos referir-nos a doentes a quem tratamos há um ano ou mais, dizendo "Ainda não se
iniciaram realmente na psicoterapia".

Na psicoterapia, a abertura é especialmente encorajada (ou exigida, dependendo do ponto de


vista) através da técnica de "livre associação". Quando se utiliza esta técnica, diz-se ao doente:
"Traduza em palavras o que quer que lhe venha à mente, por mais insignificante, embaraçoso,
doloroso ou sem significado que pareça. Se lhe vier à mente mais de uma coisa

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de cada vez, deve escolher aquela da qual sente mais relutância em falar." É mais fácil dizer do
que fazer. Apesar de tudo, os que se esforçam conscienciosamente, duma maneira geral,
progridem rapidamente. Mas alguns resistem de tal maneira ao desafio que se limitam a fingir
que fazem livre associação. Pairam muito sobre isto e aquilo, mas omitem os pormenores
cruciais. Uma mulher é capaz de falar durante uma hora de experiências desagradáveis da
infância, mas não mencionar que o marido a confrontou de manhã com o facto de ela ter
deixado a conta no banco a descoberto em mil dólares. Estes doentes tentam transformar a
hora de psicoterapia numa espécie de conferência de imprensa. Na melhor das hipóteses,
estão a perder tempo nesse esforço de evitar o desafio e, normalmente, caem numa forma
discreta de mentira.

Para que os indivíduos e organizações se encontrem abertos ao desafio, é necessário que os


seus mapas da realidade estejam verdadeiramente abertos à inspecção do público. É preciso
mais do que conferências de imprensa. A terceira coisa que uma vida de total dedicação à
verdade significa é, portanto, uma vida de total honestidade. Significa um processo contínuo e
sem fim de auto-monitorização a fim de assegurarmos que as nossas comunicações - não só as
palavras que dizemos mas também a forma como as dizemos - invariavelmente reflictam, duma
forma tão precisa quanto humanamente possível, a verdade ou a realidade tal como as
conhecemos.

Uma tal honestidade não surge sem dor. A razão porque as pessoas mentem é evitar a dor do
desafio e as suas consequências. A mentira do Presidente Nixon sobre Watergate não foi mais
sofisticada nem diferente em espécie da de um miúdo de quatro anos que mente à mãe sobre
a maneira como o candeeiro caiu da mesa e se partiu. Na medida em que a natureza do desafio
é legítima (e normalmente é), mentir é uma tentativa de driblar o sofrimento legítimo e, assim,
provoca doença mental.

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O conceito de driblar levanta a questão do "atalho". Sempre que tentamos driblar um


obstáculo, procuramos um caminho para o nosso objectivo que seja mais fácil e portanto mais
rápido: um atalho. Crendo que o desenvolvimento do espírito humano é o objectivo da
existência humana, sou obviamente dedicado à noção de progresso. Está certo que, como
seres humanos, devemos evoluir e progredir tão rápido quanto possível. Está, portanto, certo
que nos sirvamos de qualquer atalho legítimo para o desenvolvimento pessoal. A palavra chave
no entanto, é "legítimo". Os seres humanos têm tanta tendência para ignorar os atalhos
legítimos como para procurar os ilegítimos. E, por exemplo, um atalho legítimo estudar a
sinopse de um livro, em vez de ler todo o livro original, na preparação de um exame de curso.
Se a sinopse for boa, e a matéria for absorvida, podem adquirir-se os conhecimentos essenciais
duma forma que poupa muito tempo e esforço. Copiar, no entanto não e um atalho legítimo.
Pode poupar ainda mais tempo e, se for bem sucedido, pode fazer com que o autor tenha nota
para passar no exame e obtenha a cobiçada licenciatura. Mas não adquiriu os conhecimentos
essenciais. Portanto, a licenciatura e uma mentira, uma farsa. Na medida em que a licenciatura
se torna a base da vida, a vida daquele que copiou transforma-se numa mentira e numa farsa e
é, muitas vezes, dedicada a proteger e preservar a mentira.

A verdadeira psicoterapia é um atalho legítimo para o desenvolvimento pessoal, que é muitas


vezes ignorado. Um dos raciocínios mais frequentes para a ignorar é pôr em causa a sua
legitimidade, dizendo: "Receio que a psicoterapia se torne uma muleta. Não quero ficar
dependente de uma muleta." Mas isto constitui normalmente uma forma de encobrir outros
receios mais significativos. O uso da psicoterapia não é mais uma muleta do que a utilização de
um martelo e de pregos para construir uma casa. Pode-se construir a casa sem martelo e sem
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pregos, mas o processo é geralmente pouco eficiente ou desejável. Poucos carpinteiros


entrarão em desespero devido à sua dependência do martelo e dos pregos. Da mesma forma,
é possível conseguir o desenvolvimento pessoal sem recorrer à psicoterapia, mas a tarefa é
muitas vezes desnecessariamente aborrecida, longa e difícil. Geralmente, faz sentido utilizar os
instrumentos disponíveis como atalho. Por outro lado, a psicoterapia pode ser procurada como
um atalho ilegítimo. Isto acontece mais vulgarmente em certos casos de pais que procuram
psicoterapia para os filhos. Querem que os filhos mudem de alguma maneira: que deixem a
droga, que deixem de fazer birras, que deixem de ter más notas, etc.. Alguns pais esgotaram já
os seus recursos na tentativa de ajudar os filhos e consultam o psicoterapeuta na genuína
disposição de se aplicarem na resolução do problema. Outros vêm com manifesto
conhecimento da causa do problema da criança, na expectativa de que o psiquiatra possa fazer
algo de mágico para a criança mudar sem ter que mudar a causa básica do problema. Por
exemplo, alguns pais dirão abertamente: "Sabemos que temos um problema no nosso
casamento e que é provável que isso tenha algo a ver com o problema do nosso filho. Apesar
disso, não queremos interferências no nosso casamento; não queremos que faça terapia
connosco; queremos que trabalhe só com o nosso filho, se possível, para o ajudar a ser mais
feliz." Outros são menos abertos. Apresentam-se professando a vontade de fazer tudo o que
for necessário, mas quando se lhes explica que os sintomas da criança são a expressão do
ressentimento que tem pelo seu estilo de vida, que não deixa espaço para a sua educação,
dirão, "É ridículo pensar que nos devemos virar do avesso por ele," e irão procurar outro
psiquiatra, que lhes possa oferecer um atalho sem dor. Mais tarde dirão provavelmente aos
amigos e a si próprios, "Fizemos tudo o que era possível pelo nosso filho; até já consultámos
quatro psiquiatras diferentes, mas nada ajudou."

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Mentimos, claro, não só aos outros mas também a nós próprios. Os desafios à nossa adaptação
- os nossos mapas das nossas próprias consciências e das nossas percepções realistas podem
ser tão legítimos e dolorosos como qualquer desafio do público. Da miríade de mentiras que as
pessoas frequentemente dizem a si próprias, duas das mais comuns, potentes e destrutivas são
"Nós amamos verdadeiramente os nossos filhos" e "Os nossos pais amavam-nos
verdadeiramente". Pode ser que os nossos pais nos amassem e que amemos os nossos filhos,
mas quando não é esse o caso, as pessoas dão-se a um extraordinário trabalho para fugir à
compreensão. Refiro-me frequentemente à psicoterapia como o "jogo da verdade" ou o "jogo
da honestidade" porque o seu objectivo é, entre outros, ajudar os doentes a confrontar essas
mentiras. Uma das raízes da doença mental é invariavelmente uma rede de mentiras que nos
foram ditas e de mentiras que dissemos a nós próprios. Estas raízes só podem ser expostas e
extirpadas numa atmosfera de total honestidade. Para criar essa atmosfera, é necessário que
os terapeutas tragam para a sua relação com os doentes uma capacidade total de abertura e
de verdade. Como podemos esperar que um doente suporte a dor de confrontar a realidade se
não suportarmos a mesma dor? Só podemos conduzir na medida em que caminharmos à
frente.

Omissão da Verdade

As MENTIRAS PODEM SER divididas em dois tipos: mentiras brancas e mentiras negras. A
mentira negra é uma afirmação que fazemos sabendo que é falsa. A mentira branca é uma
afirmação que fazemos, que não é falsa em si, mas que omite uma parte significativa da
verdade. O facto de uma mentira ser

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branca não a torna menos mentira nem mais desculpável. As mentiras brancas podem ser tão
destruidoras como as negras.* Um governo que esconde do povo informações essenciais
através da censura não é mais democrático do que o que fala falsamente. A doente que não
mencionou que tinha deixado a descoberto a conta familiar, estava a impedir o seu
desenvolvimento terapêutico tanto quanto se tivesse mentido directamente. Na verdade, por
parecer menos repreensível, a omissão de informação essencial é a forma mais comum de
mentir, e por ser mais difícil de detectar e confrontar, é frequentemente mais perniciosa do
que a mentira negra.

A mentira branca é considerada socialmente aceitável em muitas das nossas relações porque
"não queremos magoar as pessoas". No entanto, somos capazes de lamentar o facto de as
nossas relações sociais serem geralmente superficiais. Quando os pais contam às crianças uma
quantidade de mentiras brancas, não só é considerado aceitável como se acha amoroso e
benéfico. Mesmo maridos e mulheres que tiveram a coragem suficiente de serem frontais um
com o outro têm por vezes dificuldade em o serem com os filhos. Não dizem aos filhos que
fumam marijuana, ou que discutiram um com o outro na noite anterior sobre a sua relação, ou
que se ressentem com os avós por serem manipuladores, ou que o médico disse a um deles ou
a ambos que têm perturbações psicossomáticas, ou que estão a fazer um investimento
arriscado, ou até quanto dinheiro têm no banco. Normalmente, essa omissão e falta de
abertura é racionalizada com o argumento de desejarem proteger e defender os filhos de
preocupações desnecessárias. No entanto, a

* A CIA, que tem uma especialização particular nesta área, usa naturalmente um sistema de
classificação mais elaborado e falará de propaganda branca, cinzenta e negra. A propaganda
cinzenta seria uma única mentira negra, e a propaganda negra seria uma mentira negra
atribuída falsamente a outra fonte.

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maior parte das vezes, essa "protecção" é mal sucedida. Os filhos sabem, de qualquer maneira,
que a Mamã e o Papá fumam erva, que discutiram na véspera, que estão ressentidos com os
avós, que a Mamã anda nervosa e que o Papá está a perder dinheiro. O resultado, então, não é
protecção mas privação. Os filhos são privados do conhecimento que podiam adquirir sobre o
dinheiro, a doença, as drogas, o sexo, o casamento, os pais, os avós e as pessoas em geral. São
também privados da tranquilização que poderiam ter se estes assuntos fossem discutidos mais
abertamente. Finalmente, são privados de modelos de abertura e de honestidade e, em vez
disso, fornecem-lhes modelos de honestidade parcial, abertura incompleta e coragem limitada.
Para alguns pais, o desejo de "proteger" os filhos é motivado por amor genuíno, embora mal
orientado. Para outros, no entanto, o desejo "afectuoso" de proteger os filhos serve mais de
cobertura e racionalização de um desejo de evitarem ser questionados pelos filhos, e um
desejo de manter a sua autoridade sobre eles. Esses pais estão, de facto, a dizer, "Olhem,
meninos, continuem a ser crianças com preocupações infantis e deixem as preocupações
adultas connosco. Vejam-nos como protectores fortes, que vos amam. Essa imagem é boa para
ambos, portanto, não a desafiem. Faz-nos sentir fortes, e a vocês seguros, e será mais fácil para
todos se não analisarmos estas coisas demasiado a fundo."

Apesar de tudo, pode surgir um verdadeiro conflito quando o desejo de honestidade total é
contrariado pela necessidade que algumas pessoas têm de certo tipo de protecção. Por
exemplo, mesmo os pais que têm casamentos excelentes podem, ocasionalmente, considerar o
divórcio como opção possível, mas informar os filhos numa altura em que não é nada provável
optarem pelo divórcio é colocar-lhes um fardo desnecessário. A ideia de divórcio é
extremamente ameaçadora para o sentido de segurança de uma criança - na verdade, tão
amea-

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çadora que as crianças não têm a capacidade de a apreenderem com grande perspectiva.
Sentem-se gravemente ameaçadas pela possibilidade de divórcio mesmo quando é remota. Se
o casamento dos pais estiver definitivamente desfeito, os filhos lidarão com a ameaçadora
possibilidade de divórcio quer os pais falem ou não sobre ele. Mas se o casamento for
basicamente são, os pais estariam a prejudicar os filhos se dissessem com total abertura, "A
Mamã e o Papá conversaram ontem à noite sobre a possibilidade de nos divorciarmos, mas
desta vez não é nada a sério." Um outro exemplo é que os psicoterapeutas têm muitas vezes
que resguardar dos doentes os seus pensamentos, opiniões e critérios na fase inicial da
psicoterapia, por os doentes não se encontrarem ainda em condições de os apreender ou de
lidar com eles. Durante o meu primeiro ano de formação psiquiátrica, um doente, à quarta
consulta, relatou um sonho que exprimia obviamente uma preocupação com a
homossexualidade. No meu desejo de parecer um terapeuta brilhante e de avançar
rapidamente, disse-lhe, "O seu sonho indica que está preocupado por poder ser homossexual."
Ficou visivelmente ansioso e não apareceu nas três consultas seguintes. Foi à custa de muito
trabalho e ainda de mais sorte que o consegui persuadir a regressar à terapia. Tivemos mais
umas vinte sessões até ele ter de sair da zona por ter sido destacado em serviço. Essas sessões
foram-lhe extremamente benéficas apesar de nunca mais termos levantado a questão da
homossexualidade. O facto de o seu subconsciente estar preocupado com a questão não
significava que ele estivesse apto a lidar com ela conscientemente e, por não ser capaz de não
lhe revelar o meu raciocínio, não fiz um bom trabalho, e quase o perdi não só como meu
doente como de qualquer outro colega.

A retenção selectiva das opiniões de cada um também tem que ser praticada de vez em
quando no mundo dos negócios ou da política se se quiser ser benvindo aos centros do poder.
Se as

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pessoas dissessem sempre o que pensam sobre as grandes e as pequenas questões, seriam
consideradas insubordinadas pelo comum dos chefes, e uma ameaça para a organização pela
gestão. Adquiririam a reputação de mordazes e seriam consideradas demasiado indignas de
confiança para alguma vez serem nomeadas como representantes de uma organização. Não há
volta a dar ao facto de que, para se ser bem sucedido dentro de uma organização, tem que se
tornar parcialmente uma "pessoa da organização", circunspecta na expressão de opções
individuais, fundindo por vezes a identidade pessoal com a da organização. Por outro lado, se
consideramos a nossa eficácia numa organização o único objectivo do comportamento
organizacional, permitindo apenas a expressão das opiniões que não levantam ondas, estamos
a permitir que o fim justifique os meios e a perder integridade e identidade pessoal tornando-
nos pessoas totalmente da organização. O caminho que um grande executivo tem que
percorrer entre a conservação e a perda da sua identidade e integridade é extraordinariamente
estreito e muito, muito poucos conseguem levar a viagem a bom termo. É um enorme desafio.

Portanto, a expressão das opiniões, dos sentimentos, das ideias e até do conhecimento deve
ser suprimida nestas e em muitas outras circunstâncias nas relações humanas. Que regras se
podem então seguir quando se é dedicado à verdade? Primeiro, nunca pronunciar falsidades.
Segundo, ter em conta que o acto de omitir a verdade é sempre, potencialmente, uma mentira
e que, em cada situação em que a verdade é omitida, há que tomar uma decisão moral
significativa. Terceiro, a decisão de omitir a verdade não deve ser nunca baseada em
necessidades pessoais, tais como a necessidade de poder, de que gostem de nós ou de
proteger o nosso mapa contra desafios. Quarto, e ao contrário, a decisão de omitir a verdade
deve ser sempre baseada inteiramente nas necessidades da pessoa ou

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pessoas a quem se omite a verdade. Quinto, a avaliação das necessidades de outrem é um acto
de responsabilidade tão complexo que só pode ser executado sabiamente quando se age com
verdadeiro amor pelo outro. Sexto, o factor principal na avaliação das necessidades de outrem
é a avaliação da capacidade dessa pessoa utilizar a verdade para o seu próprio
desenvolvimento espiritual. Finalmente, ao avaliar a capacidade de outrem de utilizar a
verdade para desenvolvimento espiritual pessoal, deve ser tido em conta que a nossa
tendência é geralmente de subavaliar mais do que sobreavaliar essa capacidade. Tudo isto
pode parecer uma tarefa extraordinária, impossível de alguma vez se vir a completar
perfeitamente, um peso crónico e infinito, uma verdadeira chatice. E é de facto um peso
infinito de auto-disciplina, razão pela qual a maior parte das pessoas opta por uma vida de
honestidade e abertura limitadas e relativa reserva, escondendo-se a elas próprias e aos seus
mapas do mundo. É mais fácil assim. No entanto, as compensações da vida difícil de
honestidade e dedicação à verdade são mais do que proporcionais às exigências. Em virtude do
facto de os seus mapas serem continuamente questionados, as pessoas abertas são pessoas
que se desenvolvem continuamente. Através da sua abertura, são capazes de estabelecer e
manter relações íntimas duma forma muito mais eficaz do que as pessoas mais reservadas.
Porque nunca dizem falsidades, estão seguras e orgulhosas por saberem que nada fizeram para
contribuir para a confusão do mundo, mas que serviram de fontes de iluminação e clarificação.
Finalmente, são totalmente livres. Não estão sobrecarregadas pela necessidade de se
esconderem. Não têm que passar envergonhadamente pelas sombras. Não têm que fabricar
novas mentiras para esconder as antigas. Não precisam de se esforçar a apagar rastos ou a
manter disfarces. E, por fim, descobrem que a energia necessária à auto-disciplina da
honestidade é muito menor do que a

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exigida pelo secretismo. Quanto mais honesto se é, mais fácil é continuar a ser-se honesto, tal
como quanto mais mentiras se dizem, mais necessário se torna voltar a mentir. Pela sua
abertura, as pessoas dedicadas à verdade vivem em espaço aberto, e através do exercício da
sua coragem de viver em espaço aberto, libertam-se do medo.

Manutenção do Equilíbrio

POR ESTA ALTURA ESPERO que esteja claro que o exercício da disciplina é não só uma tarefa
exigente como complexa, que requer flexibilidade e bom senso. As pessoas corajosas têm de se
esforçar continuamente para serem inteiramente honestas e ainda assim possuírem a
capacidade de omitir a verdade quando conveniente. Para sermos pessoas livres, temos que
assumir responsabilidade total por nós próprios, mas ao mesmo tempo devemos possuir a
capacidade de rejeitar a responsabilidade que não nos cabe verdadeiramente. Para sermos
organizados e eficientes, para vivermos sensatamente, devemos adiar a gratificação
diariamente e estar alerta em relação ao futuro; no entanto, para vivermos com alegria
devemos ainda possuir a capacidade, quando não destrutiva, de viver no presente e agir
espontaneamente. Por outras palavras, a própria disciplina deve ser disciplinada. O tipo de
disciplina necessário para disciplinar a disciplina é o que eu chamo manter o equilíbrio, e
constitui o quarto e último tipo que pretendo aqui analisar.

Manter o equilíbrio é a disciplina que nos dá flexibilidade. E necessária uma extraordinária


flexibilidade para viver bem em todas as esferas de actividade. Para utilizar só um exemplo,
consideremos a questão da ira e da sua expressão. A ira é uma emoção que nos é incutida (e
em organismos menos evoluídos)

68
por inúmeras gerações da nossa evolução a fim de estimular a nossa sobrevivência. Sentimos
ira sempre que nos apercebemos que outro organismo tenta apoderar-se do nosso território
geográfico ou psicológico ou que tenta, de uma ou doutra forma, diminuir-nos. Leva-nos a
ripostar. Sem a ira, seríamos constantemente espezinhados, até ficarmos completamente
esmagados e exterminados. Só com a ira podemos sobreviver. No entanto, na maior parte das
vezes, quando inicialmente julgamos que outros nos querem invadir, compreendemos ao
analisar mais de perto que não é nada essa a sua intenção. Ou mesmo quando determinamos
que as pessoas têm verdadeira intenção de nos invadir, podemos chegar à conclusão de que,
por uma ou outra razão, não é do nosso melhor interesse corresponder a essa imposição com
ira. Assim, é preciso que os centros mais elevados do nosso cérebro (a razão) sejam capazes de
regular e modular os menos elevados (a emoção). Para funcionar com sucesso no nosso
mundo complexo, é necessário possuir a capacidade não só de exprimir a nossa cólera como
também de não a exprimir. Mais ainda, devemos deter a capacidade de manifestar a nossa ira
de formas diferentes. Há alturas, por exemplo, em que é necessário exprimi-la após prolongada
deliberação e auto-avaliação. Noutras, é mais benéfico manifestá-la imediata e
espontaneamente. Às vezes é melhor exprimi-la fria e calmamente; outras vezes, ruidosa e
ardentemente. Portanto, não só precisamos de saber como lidar com a nossa cólera de formas
diferentes em circunstâncias diversas, como também como adequar o estilo de expressão a
cada circunstância. Para gerirmos a ira adequada e competentemente, precisamos de um
sistema de resposta elaborado e flexível. Não é portanto de admirar que a aprendizagem da
gestão da ira seja uma tarefa complexa, que normalmente não se consegue completar antes da
idade adulta, ou até da meia idade, e que muitas vezes nunca chega a ser completada.

69

Em maior ou menor grau, toda a gente sofre de imperfeições dos seus sistemas de resposta
flexíveis. Muito do trabalho da psicoterapia consiste em tentar ajudar os doentes a permitir ou
a tornar os seus sistemas de resposta mais flexíveis. Geralmente, quanto mais tolhidos pela
ansiedade, culpa ou insegurança são os doentes, mais difícil e rudimentar se torna este
trabalho. Por exemplo, trabalhei com uma esquizofrénica corajosa de trinta e dois anos para
quem foi uma verdadeira revelação ficar a saber que havia homens que não devia deixar entrar
em casa, alguns que podia deixar entrar para a sala mas não para o quarto, e outros que podia
deixar entrar para o quarto. Antes disso, tinha actuado com um sistema de resposta pelo qual
ou deixava toda a gente entrar para o quarto ou, quando essa resposta parecia não funcionar,
não deixava ninguém entrar em casa. Assim, saltava entre uma promiscuidade degradante e
um árido isolamento. Com a mesma mulher, tivemos que passar várias sessões a
concentrarmo-nos na questão dos cartões de agradecimento. Ela sentia-se na obrigação de
escrever cartas elaboradas, manuscritas, perfeitas nas frases e palavras, em resposta a cada
presente ou convite que recebia. Inevitavelmente, não podia carregar continuamente um fardo
tão pesado, com o resultado de que ou não escrevia cartão nenhum ou rejeitava todos os
presentes e convites. Mais uma vez, ficou espantada ao saber que alguns presentes não
requeriam cartões de agradecimento e que, quando eram esperados, uma breve nota era por
vezes suficiente.

A saúde mental madura exige, portanto, uma extraordinária capacidade de manter flexível e
continuamente um equilíbrio delicado entre necessidades, objectivos, deveres,
responsabilidades, instruções, etc., em conflito. A essência desta disciplina de manter o
equilíbrio é "prescindir". Lembro-me da primeira vez que me ensinaram isto, numa manhã de
Verão, tinha eu nove anos. Tinha aprendido recentemente a andar de bicicleta e

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explorava alegremente as dimensões da minha nova habilidade. A cerca de uma milha da nossa
casa, a estrada descia por uma colina íngreme e curvava abruptamente ao fundo. Ao descer a
colina em roda livre naquela manhã, sentia-me extasiado à medida que aumentava a
velocidade. Prescindir do êxtase, usando os travões, parecia um castigo auto-infligido absurdo.
Portanto, resolvi manter simultaneamente a velocidade e empreender a curva ao fundo. O
meu êxtase terminou segundos mais tarde quando fui projectado meia dúzia de metros para
fora da estrada e para o meio da mata. Fiquei todo arranhado e a sangrar, e a roda da frente da
bicicleta torcida e inútil, após o embate numa árvore. Tinha perdido o equilíbrio.

Manter o equilíbrio é uma disciplina precisamente porque o acto de prescindir de alguma coisa
é doloroso. Neste caso, eu não estava disposto a sofrer a dor de prescindir da minha extasiante
velocidade a favor de manter o equilíbrio na curva. Fiquei a saber, no entanto, que a perda de
equilíbrio é no limite mais dolorosa do que o prescindir necessário para manter o equilíbrio.
Duma forma ou doutra, é uma lição que tenho tido que reaprender continuamente pela vida
fora. Como toda a gente, porque à medida que empreendemos as curvas e esquinas das nossas
vidas, temos que prescindir continuamente de partes de nós. A única alternativa é não viajar
de forma nenhuma na estrada da vida.

Pode parecer estranho, mas a maior parte das pessoas escolhe esta alternativa e decide não
continuar a viagem da vida - fica pelo caminho - para evitar a dor de prescindir de partes de si
própria. Se parece estranho, é porque não se compreende o alcance da dor que pode estar
envolvida. Nas suas formas mais agudas, a renúncia é a mais dolorosa das experiências
humanas. Até agora referi apenas formas menores de renúncia - prescindir da velocidade, do
luxo da cólera espontânea, da segurança da ira retida ou da simplicidade de um
71

cartão de agradecimento. Vamos agora abordar a renúncia a traços de personalidade, a


padrões de comportamento perfeitamente estabelecidos, ideologias e até estilos inteiros de
vida. Estas são formas maiores de renúncia que são necessárias se se quer ir muito longe na
viagem da vida.

Uma noite, recentemente, decidi passar algum tempo livre a construir uma relação mais feliz e
mais próxima com a minha filha de catorze anos. Há várias semanas que ela insistia comigo
para jogarmos xadrez, por isso sugeri um jogo. Ela aceitou com entusiasmo e sentámo-nos para
um jogo muito equilibrado e motivador. Era véspera de dia de escola, no entanto, e às nove
horas a minha filha perguntou-me se podia apressar as jogadas, porque ela tinha de ir para a
cama; tinha que se levantar às seis da manhã. Eu sabia que ela era extremamente disciplinada
nos seus hábitos de sono e achei que ela devia ser capaz de prescindir de alguma dessa rigidez.
Disse-lhe, "Ora, por uma vez podes ir para a cama um bocadinho mais tarde. Não se devem
começar jogos que não se podem acabar. Estamos a divertir-nos." Jogámos mais uns quinze
minutos, durante os quais ela foi ficando visivelmente incomodada. Finalmente, implorou, "Por
favor, papá, por favor, despacha-te a jogar." "Não, caramba," respondi eu. "O xadrez é um jogo
sério. Se se quer jogar bem, tem que se jogar devagar. Se não se quer jogar a sério, mais vale
não jogar de todo." E assim, com ela a sentir-se profundamente infeliz, continuámos por mais
dez minutos, até que de repente a minha filha se desfez em lágrimas, gritou que me deixava
ganhar aquele estúpido jogo e correu a chorar pela escada acima.

Senti-me imediatamente como se tivesse outra vez nove anos, deitado a sangrar no meio do
mato à beira da estrada, ao lado da bicicleta. Era evidente que tinha cometido um erro. Era
evidente que tinha calculado mal a curva da estrada. Tinha começado o serão querendo passar
um bom bocado com a

72

minha filha. Noventa minutos depois ela estava desfeita em lágrimas e tão zangada comigo que
mal podia falar. O que tinha corrido mal? A resposta era óbvia. Mas eu não queria ver a
resposta, por isso levei duas horas a lidar com dificuldade com a dor de aceitar o facto de que
tinha estragado a noite por permitir que o meu desejo de ganhar um jogo de xadrez se
tornasse mais importante que o meu desejo de construir uma relação com a minha filha. Então
fiquei seriamente deprimido.

Como é que tinha perdido o equilíbrio daquela maneira? Gradualmente, fui-me apercebendo
de que o meu desejo de ganhar era demasiado forte e que tinha que renunciar a parte desse
desejo. No entanto, até essa pequena privação parecia impossível. Toda a minha vida, o desejo
de ganhar tinha-me servido para bem, porque tinha ganho muitas coisas. Como era possível
jogar xadrez sem querer ganhar? Nunca me tinha sentido bem a fazer as coisas sem
entusiasmo. Como era concebível poder jogar xadrez com entusiasmo sem ser a sério? No
entanto, tinha de mudar de alguma maneira, porque sabia que o meu entusiasmo,
competitividade e seriedade faziam parte de um padrão de comportamento que funcionava e
continuaria a funcionar no sentido de afastar de mim os meus filhos e que, se eu não fosse
capaz de modificar esse padrão, haveria outras ocasiões de lágrimas e amargura
desnecessárias. A minha depressão continuou.

Agora a minha depressão passou. Prescindi de parte do meu desejo de ganhar jogos. Essa parte
de mim desapareceu. Morreu. Tinha que morrer. Matei-a. Matei-a com o desejo de ganhar na
paternidade. Quando era criança, o meu desejo de ganhar jogos foi vantajoso para mim. Como
pai, reconheci que se me atravessava no caminho. Os tempos mudaram. Para os acompanhar,
tive de prescindir. Não sinto falta. Pensei que iria sentir, mas não sinto.

73

O Lado Salutar da Depressão

O QUE SE SEGUE É UM pequeno exemplo daquilo a que as pessoas que têm a coragem de
chamar a si próprias doentes têm que se sujeitar de formas mais acentuadas, e frequentes
vezes, no processo da psicoterapia. O período de psicoterapia intensiva é um período de
desenvolvimento intensivo, durante o qual o paciente pode sofrer mais mudanças do que
outras pessoas experimentam numa vida inteira. Para que ocorra este surto de
desenvolvimento, tem que se renunciar a uma quantidade proporcional do "velho Eu". É uma
parte inevitável da psicoterapia com êxito. De facto, este processo de privação começa
normalmente antes de o doente ir à primeira consulta com o psicoterapeuta. Frequentemente,
por exemplo, o acto de decidir procurar cuidados psiquiátricos só por si representa a renúncia
à imagem do "Estou bem". Esta renúncia pode ser particularmente difícil, na nossa cultura,
para indivíduos do sexo masculino para quem "Não estou bem e preciso de ajuda para
perceber porque não estou bem e para ficar bem" é frequente e lamentavelmente
equacionada com "Sou fraco, pouco masculino e imperfeito". Na verdade, o processo de
renúncia começa muitas vezes mesmo antes de o doente ter chegado à decisão de procurar
conselho psiquiátrico. Referi que, durante o processo de renúncia ao meu desejo de ganhar
sempre, fiquei deprimido. Isso porque o sentimento associado a privarmo-nos de algo que
amamos - ou pelo menos, algo que é parte de nós e familiar - é a depressão. Uma vez que os
seres humanos mentalmente saudáveis têm que evoluir, e já que a privação ou a perda do
antigo Eu é uma parte integrante do processo de desenvolvimento mental e espiritual, a
depressão é um fenó-

74

meno normal e basicamente saudável. Torna-se anormal ou nocivo só quando algo interfere
com o processo de privação, com o resultado de a depressão ser prolongada e não poder ser
resolvida pela conclusão do processo*.

Uma das razões principais porque as pessoas pensam em procurar conselho psiquiátrico é a
depressão. Por outras palavras, os doentes muitas vezes já estão envolvidos num processo de
privação, ou desenvolvimento, antes de considerarem a psicoterapia, e são os sintomas desse
desenvolvimento que os impelem a procurar o gabinete do terapeuta. O trabalho deste é,
portanto, ajudar o doente a completar um processo de desenvolvimento que ele já iniciou. Isto
não quer dizer que os doentes saibam muitas vezes o que lhes está a acontecer. Pelo contrário,
frequentemente desejam apenas alívio dos sintomas da depressão "para que as coisas voltem
a ser como eram". Mas o subconsciente sabe. É precisamente porque o subconsciente na sua
sabedoria sabe que "como as coisas eram" já não é sustentável ou construtivo, que o processo
de desenvolvimento se inicia ao nível do subconsciente e se sente a depressão. Muito
provavelmente, o doente dirá "Não faço ideia nenhuma

* Há muitos factores que podem interferir com o processo de renúncia e, assim, transformar
uma depressão normal e saudável numa depressão crónica e patológica. De todos os factores
possíveis, um dos mais vulgares e potentes é um padrão de experiências na infância em que os
pais, ou o destino, sem considerar as necessidades da criança, tiraram "coisas" à criança antes
de ela estar psicologicamente preparada para renunciar a elas, ou suficientemente forte para
aceitar verdadeiramente a sua perda. Um padrão de experiências assim na infância sensibiliza a
criança para a experiência da perda e cria uma tendência muito mais forte do que a que se
encontra em indivíduos mais afortunados para se agarrar às "coisas" e procurar evitar a dor da
perda ou da renúncia. Por este motivo, apesar de todas as depressões patológicas envolverem
algum bloqueio no processo de renúncia, acredito que há um tipo de depressão neurótica
crónica que tem a raiz principal numa lesão traumática da capacidade básica do indivíduo de
prescindir seja do que for. A este subtipo de depressão eu chamaria "neurose da renúncia".

75

de porque estou deprimido", ou atribuirá a depressão a factores irrelevantes. Uma vez que os
doentes ainda não estão conscientemente dispostos ou prontos a reconhecer que o "velho Eu"
e "como as coisas eram" estão ultrapassados, não se apercebem de que a sua depressão lhes
indica que é necessária uma grande mudança para conseguir uma adaptação bem sucedida e
evolutiva. O facto de o subconsciente estar um passo à frente do consciente pode parecer
estranho aos leitores leigos; é, no entanto, um facto que se aplica não só neste caso em
particular, mas duma forma tão genérica, que é um princípio básico do funcionamento mental.
Será analisado em maior profundidade na última parte deste trabalho.

Temos ouvido falar recentemente da "crise da meia-idade". Na verdade, esta é apenas uma de
muitas "crises", ou fases críticas de desenvolvimento, na vida, como nos ensinou Erik Erikson
há trinta anos atrás. (Erikson traçava oito crises; talvez haja mais.) O que torna críticos estes
períodos de transição no ciclo da vida - ou seja, problemáticos e dolorosos - é que, para os
atravessarmos com êxito, temos que prescindir de apreciados conceitos e formas antigas de
fazer e olhar as coisas. Muitas pessoas não estão dispostas ou sentem-se incapazes de sofrer a
dor de prescindir do ultrapassado que tem que ser posto de parte. Em consequência agarram-
se, por vezes para sempre, aos seus velhos padrões de pensamento e de comportamento,
deixando assim de ultrapassar qualquer crise, de crescer verdadeiramente, e de experimentar
a alegre sensação de renascer que acompanha a transição conseguida para a maior
maturidade.

Embora se pudesse escrever um livro inteiro sobre cada uma, vou apenas enumerar, mais ou
menos por ordem de ocorrência, algumas das condições, desejos e atitudes a que temos de
renunciar no decurso de uma vida evolutiva verdadeiramente conseguida:

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O estado da infância, em que não é necessário corresponder


a solicitações exteriores. A fantasia da omnipotência. O desejo de posse total (incluindo sexual)
dos pais. A dependência da infância. Imagens distorcidas dos pais. A omnipotência da
adolescência. A "liberdade" de não compromisso. A agilidade da juventude. A atracção sexual
e/ou potência da juventude. A fantasia da imortalidade. A autoridade sobre os filhos. Diversas
formas de poder temporal. A independência da saúde física. E, por fim, o Eu e a própria vida.

Renúncia e Renascimento

RELATIVAMENTE À ÚLTIMA das condições, pode parecer a muitos que a condição final -
prescindir do Eu e da vida - representa uma espécie de crueldade por parte de Deus ou do
destino, que faz da nossa existência uma espécie de anedota sem graça e que nunca pode ser
completamente aceite. Esta atitude é especialmente verdadeira na cultura ocidental dos
nossos dias, em que o Eu é considerado sagrado e a morte um insulto indescritível. No entanto,
a realidade é exactamente o oposto. É na renúncia ao Eu que os seres humanos conseguem
encontrar a mais extasiante, prolongada, sólida e duradoura alegria de viver. E é a morte que
dá à vida todo o seu sentido. Este "segredo" é a sabedoria central da religião.

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O processo de renúncia ao Eu (que está relacionado com o fenómeno do amor, como veremos
na próxima secção deste livro) é para a maior parte de nós um processo gradual, em que nos
envolvemos de forma espasmódica. Há uma forma de renúncia temporária do Eu que merece
menção especial, porque a sua prática é uma exigência absoluta para a aprendizagem
significativa durante a idade adulta e, portanto, para o desenvolvimento significativo do
espírito humano. Refiro-me a um subtipo da disciplina de manutenção do equilíbrio a que
chamo "pôr entre parênteses" (ou agrupar). Pôr entre parênteses é essencialmente o acto de
equilibrar a necessidade de estabilidade e afirmação do Eu com a necessidade de novos
conhecimentos e maior compreensão pela renúncia temporária ao Eu

- pôr-se de lado, por assim dizer - de modo a dar lugar à incorporação de nova matéria no Eu.
Esta disciplina foi bem descrita pelo teólogo Sam Keen em A um Deus que Dança:

O segundo passo exige que eu vá para além da percepção idiossincrática e egocêntrica da


experiência imediata. O conhecimento maduro só é possível depois de ter digerido e
compensado as tendências e os preconceitos que são o resíduo da minha história pessoal. O
conhecimento do que se me apresenta envolve um movimento duplo de atenção: silenciar o
familiar e receber o estranho. Cada vez que me aproximo de um objecto, pessoa ou
acontecimento estranho, tenho a tendência de deixar que as minhas necessidades presentes,
experiências passadas ou expectativas de futuro determinem o que vejo. Se quero apreciar a
unicidade de cada dado, devo ter suficiente noção das minhas ideias preconcebidas e
distorções emocionais características, para as pôr entre parênteses o tempo suficiente para
receber a estranheza e a novidade no meu mundo perceptivo. Esta disciplina de pôr entre
parênteses, compensar ou silenciar requer um sofisticado conhecimento de si próprio

78

e honestidade corajosa. No entanto, sem esta disciplina, cada momento presente é apenas a
repetição de algo já visto ou vivido. Para que surja a genuína novidade, para que a presença
única das coisas, pessoas ou acontecimentos se enraíze em mim, devo empreender a
descentralização do ego. *

A disciplina de pôr entre parênteses ilustra o facto mais consequente da renúncia e da


disciplina em geral: nomeadamente, que por tudo aquilo de que se prescinde se ganha ainda
mais. A auto-disciplina é um processo de engrandecimento pessoal. A dor da renúncia é a dor
da morte, mas a morte do velho é o nascimento do novo. A dor da morte é a dor do
nascimento, e a dor do nascimento é a dor da morte. Para que uma ideia, conceito, teoria ou
entendimento melhor possa ser desenvolvido significa que uma ideia, conceito, teoria ou
entendimento antigo deve morrer. Assim, na conclusão do seu poema Viagem dos Magos, T. S.
Eliot descreve os Três Reis Magos como sofrendo a renúncia à sua visão anterior do mundo
quando abraçaram a Cristandade.

Tudo isto foi há muito tempo, recordo-me,

E fá-lo-ia outra vez, mas ficou

Isto ficou

Isto: levaram-nos por todo aquele caminho para o


Nascimento ou para a Morte? Este era um Nascimento,

[certamente, Tínhamos a prova e nenhuma dúvida. Eu tinha visto nascer

lê morrer,

Mas pensava que eram diferentes; este Nascimento era Uma agonia dura e amarga para nós,
como a Morte,

[a nossa morte.

(nota)

* Toa Dancing God (Nova Iorque: Harper & Row), 1970, p. 28.

79

Regressámos a nossas casas, estes Reinos, Mas já não nos sentimos bem aqui, no antigo
regime, Com um povo estranho agarrado aos seus deuses. Eu ficaria satisfeito com outra
morte. *

Uma vez que o nascimento e a morte parecem ser lados opostos da mesma moeda, não deixa
de ser razoável dedicar maior atenção do que é usual no Ocidente ao conceito de reincarnação.
Mas quer estejamos ou não dispostos a encarar seriamente a possibilidade de ocorrer alguma
espécie de renascimento simultâneo com a nossa morte física, está suficientemente
esclarecido que esta vida é uma série de mortes e nascimentos simultâneos. "Durante toda a
vida, tem que se continuar a aprender a viver," dizia Séneca, há dois milénios atras, "e, o que
vos espantará ainda mais, durante toda a vida tem de se aprender a morrer."** É também
evidente que quanto mais longe se chega na viagem da vida, mais nascimentos se viverão, e
portanto mais mortes - mais alegria e mais dor.

Isto levanta a questão de se alguma vez é possível libertar-se da dor emocional na vida. Ou,
pondo-o de uma forma mais suave, é possível evoluir espiritualmente até um nível de
consciência em que a dor de viver pelo menos diminua? A resposta e sim e não. A resposta é
sim, porque quando o sofrimento é completamente aceite, cessa, num certo sentido, de ser
sofrimento. Também é sim porque a prática jamais interrompida da disciplina leva ao domínio,
e a pessoa espiritualmente evoluída e dominante, no mesmo sentido em que o adulto é
dominante em relação à criança. Questões que representam grandes problemas para a criança
e lhe causam grande dor podem não ter

(Nota)

* The Complete Poems and Plays, 1909-1950 (Nova Iorque: Harcourt Brace^l952),pp. 69.

* Cit. in Erich Fromm, The Sane Society ( Nova Iorque: Rinehart, 1955).

80

qualquer importância para o adulto. Finalmente, a resposta é sim porque o indivíduo


espiritualmente evoluído é, como será explicado na secção seguinte, um indivíduo com uma
extraordinária capacidade de amar e do seu extraordinário amor advém extraordinária alegria.

A resposta é não, no entanto, porque existe um vácuo de competência no mundo que tem de
ser preenchido. Num mundo que clama desesperadamente por competência, uma pessoa
extraordinariamente competente e amante não pode omitir a sua competência, da mesma
forma que essa mesma pessoa não poderia negar alimento a uma criança com fome. As
pessoas espiritualmente evoluídas, em virtude da sua disciplina, domínio e amor, são pessoas
de extraordinária competência e, pela sua competência, são chamadas a servir o mundo e, por
amor, correspondem à chamada. São assim, inevitavelmente, pessoas de grande poder,
embora o mundo possa geralmente encará-las como pessoas assaz vulgares, porque na maioria
das vezes exercem o seu poder de forma discreta ou mesmo escondida. Apesar disso, exercem
mesmo o poder, e nesse exercício sofrem grandemente, até mesmo terrivelmente. Porque
exercer o poder é tomar decisões, e o processo de tomada de decisão com plena consciência é
infinitamente mais doloroso do que tomar decisões com uma consciência limitada ou
embotada (que é como a maior parte das decisões são tomadas, acabando por se mostrarem
erradas). Imagine-se dois generais, cada um tendo de decidir enviar ou não uma divisão de dez
mil homens para o campo de batalha. Para um, a divisão é apenas uma coisa, uma unidade de
pessoal, um instrumento de estratégia e nada mais. Para o outro é todas estas coisas, mas
também tem consciência de cada uma das dez mil vidas e das vidas das famílias de cada um
dos dez mil. Para quem é mais fácil a decisão? É mais fácil para o general que embotou a sua
consciência precisamente porque não pode

81
tolerar a dor de uma consciência mais total. Podemos ser tentados a dizer, "Ah, mas um
homem espiritualmente evoluído nunca se tornaria general, para começar." Mas a mesma
questão está envolvida quando se é presidente de uma empresa, médico, professor, pai. As
decisões que afectam as vidas de outros têm sempre que ser feitas. Os melhores decisores são
os que estão mais dispostos a sofrer com as suas decisões mas que mantêm a sua capacidade
de decidir. Uma das medidas - e talvez a melhor medida - da grandeza de uma pessoa é a
capacidade de sofrimento. No entanto, os grandes são também alegres. Este é, então, o
paradoxo. Os budistas tendem a ignorar o sofrimento de Buda e os cristãos a alegria de Cristo.
Buda e Cristo não eram homens diferentes. O sofrimento de Cristo morrendo na cruz e a
felicidade de Buda sob a árvore são um só.

Portanto, se o vosso objectivo é evitar a dor e escapar ao sofrimento, não vos aconselho a
procurar níveis mais elevados de consciência ou de evolução espiritual. Primeiro, não
conseguem alcançá-los sem sofrimento, e segundo, na medida em que os alcançarem, poderão
ser chamados a servir de formas mais dolorosas, ou pelo menos mais exigentes do que agora
podem imaginar. Então, desejar evoluir para quê, podem perguntar. Se fazem esta pergunta,
talvez não conheçam o suficiente da felicidade. Talvez encontrem uma resposta no resto deste
livro; talvez não.

Uma última palavra quanto à disciplina de manutenção do equilíbrio e a sua essência de


renúncia: tem que se ter alguma coisa para se prescindir dela. Não se pode prescindir de algo
que já não se tenha. Se se prescindir de ganhar sem nunca se ter ganho, fica-se como se estava
no princípio: um perdedor. Tem que se forjar por si próprio uma identidade antes de se
prescindir dela. Tem que se desenvolver um ego antes de o poder perder. Isto pode parecer
incrivelmente elementar, mas penso que é necessário dizê-lo, porque conheço muitas pessoas
que

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possuem uma visão da evolução mas parece faltar-lhes a vontade de evoluir. Querem, e
acreditam que é possível, saltar por cima da disciplina, encontrar um atalho fácil para a
santidade. Muitas vezes, tentam atingi-la simplesmente através da imitação das
superficialidades dos santos, retirando-se para o deserto ou dedicando-se à carpintaria. Alguns
até acreditam que, através dessa imitação, se tornam realmente santos e profetas e não
conseguem reconhecer que são ainda crianças e enfrentam o doloroso facto de que têm de
começar pelo princípio e passar pelo meio. A disciplina foi definida como um sistema de
técnicas para enfrentar construtivamente a dor da resolução de problemas em vez de evitar
essa dor - de forma que todos os problemas da vida possam ser resolvidos. Distinguiram-se e
analisaram-se quatro técnicas básicas: o adiamento da gratificação, o assumir da
responsabilidade, a dedicação à verdade ou realidade e a manutenção do equilíbrio. A
disciplina é um sistema de técnicas, porque estas técnicas estão fortemente interrelacionadas.
Num único acto, podem-se utilizar duas, três ou até todas as técnicas ao mesmo tempo e de tal
forma que se podem distinguir umas das outras. A força, energia e vontade de usar estas
técnicas são fornecidas pelo amor, como será explicado na próxima secção. Esta análise da
disciplina não pretende ser exaustiva e é possível que eu tenha deixado de parte uma ou mais
técnicas básicas adicionais, embora julgue que não. Também é razoável perguntar se processos
como o biofeedback, a meditação, o ioga e a própria psicoterapia não são técnicas de
disciplina, mas a isto eu responderia que, na minha forma de pensar, são instrumentos técnicos
mais do que técnicas básicas. Como tal, podem ser muito úteis, mas não são essenciais. Por
outro lado, as técnicas básicas aqui descritas, se praticadas sem interrupção e com verdade,
são suficientes só por si para permitir ao praticante da disciplina, ou "discípulo", evoluir para
níveis espiritualmente mais elevados.

83

Secção II

Amor

O Amor Definido

A DISCIPLINA, COMO FOI já sugerido, é o meio para a evolução espiritual humana. Esta secção
examinará o que está por detrás da disciplina - o que fornece o motivo, a energia para a
disciplina. Eu creio que esta força é o amor. Tenho plena consciência de que, ao tentar
examinar o amor, começaremos a jogar com o mistério. Num sentido muito real, estaremos a
tentar examinar o não examinável e conhecer o que não pode ser conhecido. O amor é
demasiado abrangente, demasiado profundo para alguma vez ser verdadeiramente
compreendido, medido ou limitado dentro de uma estrutura de palavras. Não escreveria isto
se não acreditasse que a tentativa tem valor, mas independentemente desse valor, começo
com a certeza de que a tentativa será de algumas formas imperfeita.

Um dos resultados da natureza misteriosa do amor é que ninguém, que eu saiba, chegou ainda
a uma definição verdadeiramente satisfatória do amor. Na tentativa de o explicar, portanto,
dividiu-se o amor em várias categorias: eros, philia, ágape; amor perfeito e amor imperfeito, e
daí por diante. Eu tomo a liberdade, no entanto, de dar uma única definição, mais uma vez com
a noção de que provavelmente será de alguma ou algumas formas imperfeita. Eu defino o
amor assim: a vontade de expandir o Eu com o objectivo de alimentar o seu próprio
desenvolvimento espiritual ou o de outrem.

87

Para começar, gostaria de fazer um breve comentário sobre esta definição antes de prosseguir
para uma análise mais completa. Primeiro, pode notar-se que é uma definição teleológica; o
comportamento é definido em termos do objectivo ou propósito que parece servir - neste
caso, o desenvolvimento espiritual. Os cientistas tendem a considerar suspeitas as definições
teleológicas e talvez considerem assim esta. Não cheguei a ela, no entanto, através de um
processo de raciocínio claramente teleológico. Foi através da observação, na minha prática
clínica de Psiquiatria, que incluí a auto-observação, na qual a definição do amor é um assunto
de considerável importância. Isto porque os doentes se sentem geralmente muito confusos
quanto à natureza do amor. Por exemplo, um jovem tímido relatava-me: "A minha mãe amava-
me tanto que não me deixava ir de autocarro para a escola até ao meu último ano do liceu.
Mesmo nessa altura, tive de lhe implorar que me deixasse ir. Acho que ela tinha medo que eu
me magoasse, portanto levava-me à escola de carro e ia-me buscar todos os dias, o que era
difícil para ela. Ela amava-me de verdade." No tratamento da timidez deste indivíduo foi
necessário, como em muitos outros casos, ensinar-lhe que a mãe podia ter sido motivada por
outra coisa que não amor, e que aquilo que aparenta ser amor muitas vezes não é amor
nenhum. Foi a partir dessa experiência que acumulei um conjunto de exemplos do que
pareciam ser actos de amor e do que parecia não ser amor. Um dos principais factores de
distinção entre os dois parecia ser o propósito consciente ou inconsciente na mente do amante
ou do não amante. Segundo, pode verificar-se que, como definido, o amor é um processo
estranhamente circular. Porque o processo de expansão do Eu é um processo evolutivo.
Quando se consegue alargar os seus próprios limites com êxito, atingiu-se o desenvolvimento
para um estado mais expandido do ser. Assim, o acto de amar é um acto de auto-evolução
mesmo quando o

objectivo do acto é o desenvolvimento de outra pessoa. É pela tentativa de alcançar a


evolução que evoluímos.

Terceiro, esta definição unitária do amor inclui o amor próprio com o amor pelo outro. Se eu
sou humano e tu és humano, amar os humanos significa amar-me a mim assim como a ti. Ser
dedicado ao desenvolvimento espiritual humano é ser dedicado à raça de que fazemos parte, e
isto significa, portanto, dedicação ao nosso próprio desenvolvimento e ao "deles". De facto,
como foi salientado, somos incapazes de amar outro se não nos amarmos a nós mesmos, tal
como somos incapazes de ensinar auto-disciplina aos nossos filhos a menos que sejamos auto-
disciplinados. É verdadeiramente impossível renunciar ao nosso desenvolvimento espiritual a
favor do de outrem. Não podemos abandonar a auto-disciplina e ao mesmo tempo ser
disciplinados no nosso afecto por outro. Não podemos ser uma fonte de força se não
alimentarmos a nossa própria força. À medida que avançarmos na exploração da natureza do
amor, creio que se tornará claro que não só o amor próprio e o amor por outros andam de
mãos dadas como, no limite, não se conseguem distinguir.

Quarto, o acto de alargar os seus limites implica esforço. Só se alargam os limites excedendo-
os, e exceder os limites exige esforço. Quando amamos alguém, o nosso amor só se torna
demonstrável ou real através do nosso empenho - pelo facto de que por alguém (ou por nós
próprios) damos um passo a mais ou caminhamos mais uma milha. O amor não acontece sem
esforço. Pelo contrário, o amor é trabalhoso.

Finalmente, utilizando a palavra "vontade" tentei transcender a distinção entre desejo e acção.
O desejo não se traduz necessariamente em acção. A vontade é um desejo duma tal
intensidade que é traduzido para acção. A diferença entre os dois é a mesma que a diferença
entre dizer "Gostava de ir nadar hoje à noite" e "Vou nadar hoje à noite". Toda a gente

89

na nossa cultura deseja, em certa medida, amar, no entanto muitos não amam de facto.
Concluo, portanto, que o desejo de amar não é em si amor. O amor é como o amor age. O
amor é um acto de vontade - ou seja, uma intenção, bem como uma acção. A vontade também
implica escolha. Não temos de amar. Escolhemos amar. Não importa quanto possamos pensar
que amamos. Se de facto não amamos é porque escolhemos não amar e portanto não
amamos, apesar das nossas boas intenções. Por outro lado, sempre que de facto nos
esforçamos pela causa do desenvolvimento espiritual, é porque assim escolhemos. Foi feita a
escolha de amar.

Como indiquei, os doentes que vêm à psicoterapia encontram-se invariavelmente mais ou


menos confusos quanto à natureza do amor. Isto porque, perante o mistério do amor,
abundam as concepções erradas. Embora este livro não vá retirar ao amor o seu mistério,
espero que seja suficientemente esclarecedor para eliminar essas concepções erradas, que
podem causar sofrimento não só aos doentes como a todas as pessoas que tentam encontrar
sentido nas suas próprias experiências. Algum deste sofrimento parece-me desnecessário, uma
vez que estas populares concepções erradas podiam ser tornadas menos populares através do
ensino de uma definição mais precisa do amor. Optei, portanto, por começar a explorar a
natureza do amor examinando aquilo que o amor não é.

Apaixonar-Se

DE TODOS os FALSOS juízos sobre o amor, o mais poderoso e infiltrado é a crença de que
"apaixonar-se" é amor ou, pelo menos, uma das manifestações de amor. É uma concepção
fortemente errada, porque apaixonar-se é experimentado subjectiva-

90

mente duma forma poderosa como uma experiência de amor. Quando uma pessoa se
apaixona, o que ele ou ela sentem de certeza é "Amo-o" ou "Amo-a". Mas dois problemas são
imediatamente aparentes. O primeiro é que a experiência de se apaixonar é especificamente
uma experiência erótica ligada ao sexo. Não nos apaixonamos pelos nossos filhos embora os
amemos profundamente. Não nos apaixonamos por amigos do mesmo sexo - a menos que
tenhamos tendências homossexuais - por muito que gostemos deles. Apaixonamo-nos só
quando somos, consciente ou inconscientemente, motivados sexualmente. O segundo
problema é que a experiência da paixão é invariavelmente temporária. Independentemente de
por quem nos apaixonamos, mais cedo ou mais tarde deixamos de estar apaixonados se a
relação durar o tempo suficiente. Isto não quer dizer que invariavelmente deixemos de amar a
pessoa por quem nos apaixonámos. Mas quer dizer que o sentimento de amor extático que
caracteriza a experiência da paixão passa sempre. A lua-de-mel chega sempre ao fim. O
florescer do romance murcha.

Para compreender a natureza do fenómeno da paixão e a inevitabilidade do seu termo, é


necessário examinar aquilo que os psiquiatras designam por fronteiras do ego. Pelo que
podemos concluir por evidência indirecta, parece que o recém-nascido, durante os primeiros
meses de vida, não distingue entre si e o resto do Universo. Quando mexe os braços e as
pernas, o mundo está a mexer. Quando tem fome, o mundo tem fome. Quando vê a mãe
movimentar-se, é como se se estivesse a movimentar. Quando a mãe canta, o bebé não sabe
que não é ele que produz o som. Não se distingue do berço, do quarto e dos pais. O animado e
o inanimado são o mesmo. Não há distinção entre eu e tu. Ele e o mundo são um só. Não há
limites, nem separações. Não há identidade.
Mas, com a experiência, a criança começa a sentir-se ela mesma - ou seja, como uma entidade
separada do resto do

91

mundo. Quando tem fome, a mãe não aparece sempre para lhe dar de comer. Quando quer
brincar, a mãe nem sempre quer brincar. A criança tem então a experiência de os seus desejos
não serem ordens para a sua mãe. A sua vontade é sentida como algo separado do
comportamento da sua mãe. O sentido do Eu começa a desenvolver-se. Esta interacção entre o
recém-nascido e a mãe é considerada como a base a partir da qual o sentido de identidade da
criança se começa a desenvolver. Observou-se que, quando a interacção entre o recém-nascido
e a mãe é fortemente perturbada - por exemplo, quando não há mãe, nenhum substituto
satisfatório da mãe ou quando devido a doença mental a mãe esteja completamente alheia ou
desinteressada - o recém-nascido transforma-se numa criança ou adulto cuja noção de
identidade tem falhas graves na maior parte das formas básicas.

Quando o recém-nascido reconhece a sua vontade como sendo a sua e não a do Universo,
começa a fazer outras distinções entre si e o mundo. Quando quer movimento, agita os braços
em frente aos olhos, mas nem o berço nem o tecto se movem. Assim, a criança aprende que o
seu braço e a sua vontade estão ligados, e portanto que o braço é seu e não outra coisa ou
doutra pessoa. Desta maneira, durante o primeiro ano de vida aprendemos os fundamentos de
quem somos e quem não somos, o que somos e o que não somos. Ao fim do primeiro ano,
sabemos que este é o meu braço, o meu pé, a minha cabeça, a minha língua, os meus olhos e
até o meu ponto de vista, a minha voz, os meus pensamentos, a minha dor de estômago e os
meus sentimentos. Conhecemos o nosso tamanho e limites físicos. Estes limites são as nossas
fronteiras. O conhecimento destes limites dentro da nossa mente é o que se designa por
fronteira do ego.

O desenvolvimento das fronteiras do ego é um processo que continua pela infância até à
adolescência e mesmo até à

92

idade adulta, mas as fronteiras estabelecidas mais tarde são mais psíquicas que físicas. Por
exemplo, a idade entre os dois e os três anos é tipicamente uma altura em que a criança
reconhece os limites do seu poder. Enquanto que, antes disso, a criança aprendeu que o seu
desejo não é necessariamente uma ordem para a mãe, ainda se agarra à possibilidade de o seu
desejo ser uma ordem para a mãe e o sentimento de que o seu desejo devia ser uma ordem
para ela. É devido a esta esperança e este sentimento que a criança de dois anos normalmente
tenta agir como um tirano e autocrata, dando ordens aos pais, irmãos e animais de estimação
como se fossem serventes no seu exército particular, e responde com fúria real quando eles
não acatam as suas instruções. Por isso, os pais chamam a esta idade "os terríveis dois anos".
Aos três anos, a criança torna-se normalmente mais tratável e dócil em resultado da aceitação
da realidade da sua relativa impotência. Mesmo assim, a possibilidade de omnipotência é um
sonho tão doce, que não podem desistir dele completamente mesmo depois de vários anos de
dolorosa confrontação com a sua própria impotência. Embora uma criança de três anos tenha
aceite a realidade das fronteiras do seu poder, continuará a escapar-se durante alguns anos
para um mundo de fantasia onde a possibilidade da omnipotência (particularmente da sua)
ainda existe. Este é o mundo do Super-Homem e do Capitão Marvel. No entanto,
gradualmente, renuncia-se até aos superheróis e, quando chegam a meio da adolescência, os
jovens sabem que são indivíduos, restringidos às suas fronteiras físicas e aos limites do seu
poder, cada um deles um organismo relativamente frágil e impotente, que só existe
cooperando com um grupo de organismos semelhantes chamado sociedade. Dentro deste
grupo, não se distinguem particularmente, mas estão isolados doutros pelas suas identidades,
fronteiras e limites individuais.

93

Fora destas fronteiras, existe a solidão. Algumas pessoas particularmente aquelas que os
psiquiatras classificam como esquizóides - devido a experiências desagradáveis e traumáticas
de infância, vêem o mundo em redor como irremediavelmente perigoso, hostil, confuso e não
estimulante. Essas pessoas sentem as suas fronteiras como protectoras e reconfortantes e
retiram uma sensação de segurança da sua solidão. Mas a maior parte de nós acha a solidão
dolorosa e deseja escapar dos muros da nossa identidade individual para uma condição em
que possamos estar mais unificados com o mundo em redor. A experiência de nos
apaixonarmos permite este escape - temporariamente. A essência do fenómeno de se
apaixonar é o colapso repentino de uma parte das fronteiras do ego de um indivíduo, que
permite que a sua identidade se funda com a de outra pessoa. A libertação repentina de si
mesmo, a dádiva explosiva de si ao amado e a interrupção dramática da solidão que
acompanham este colapso das fronteiras do ego são para a maior parte de nós uma
experiência extática. Nós e o objecto do nosso amor somos um! A solidão já não existe! Em
certos aspectos (mas não em todos, certamente) o acto de se apaixonar é um acto de
regressão. A experiência da fusão com o amado tem em si ecos do tempo em que nos
fundíamos com as nossas mães na infância. Juntamente com a fusão, re-experimentamos
também o sentido da omnipotência de que tivemos que prescindir na nossa passagem pela
infância. Tudo parece possível! Em união com o objecto do nosso amor, sentimos que podemos
conquistar todos os obstáculos. Acreditamos que a força do nosso amor fará com que as forças
da oposição se verguem em submissão e desapareçam na escuridão. Todos os problemas serão
ultrapassados. O futuro será luminoso. A irrealidade destes sentimentos quando nos
apaixonamos é essencialmente a mesma que a da criança de dois anos que se sente o rei da
família e do mundo, com poder ilimitado.

94

Assim como a realidade se introduz na fantasia de omnipotência da criança de dois anos,


também a realidade se introduz na fantástica unidade do casal de apaixonados. Mais cedo ou
mais tarde, em resposta aos problemas da vida diária, a vontade individual reafirma-se. Ele
quer ter relações sexuais; ela não quer. Ela quer ir ao cinema; ele não. Ele quer pôr dinheiro no
banco; ela quer uma máquina de lavar louça. Ela quer falar do emprego; ele quer falar do dele.
Ela não gosta dos amigos dele; ele não gosta dos dela. Assim, ambos, na privacidade dos seus
corações, começam a chegar à angustiante conclusão de que não são um só com o objecto do
seu amor, e que o objecto do seu amor tem e continuará a ter os seus próprios desejos, gostos,
preconceitos e ritmos diferentes dos do outro. Uma a uma, gradual ou repentinamente, as
fronteiras do ego regressam ao seu lugar; gradual ou repentinamente, deixam de estar
apaixonados. São novamente dois indivíduos separados. Chegados a este ponto, começam a
dissolver os laços da sua relação ou iniciam o trabalho do verdadeiro amor.

Ao utilizar a palavra "verdadeiro" estou a inferir que a percepção de que amamos quando nos
apaixonamos é falsa - que o nosso sentido subjectivo de amar é uma ilusão. A análise
detalhada do amor verdadeiro será feita mais adiante nesta secção do livro. No entanto, ao
afirmar que é quando um casal deixa de estar apaixonado que pode começar a amar
realmente, estou também a concluir que o amor verdadeiro não tem as suas raízes num
sentimento de amor. Pelo contrário, o amor verdadeiro acontece muitas vezes num contexto
em que o sentimento do amor está ausente, quando agimos com amor apesar de não nos
sentirmos a amar. Assumindo a realidade da definição de amor com que começámos, a
experiência de "se apaixonar" não é amor verdadeiro pelas diversas razões que se seguem.

Apaixonar-se não é um acto de vontade. Não é uma escolha consciente. Independentemente


do nosso grau de abertura ou

95

de ansiedade por nos apaixonarmos, a experiência pode fugir-nos. Inversamente, a


experiência pode capturar-nos em alturas em que não estamos definitivamente à procura,
quando é inconveniente e indesejável. É tão provável que nos apaixonemos por alguém com
quem não temos nenhuma ligação como por alguém mais adequado. Na verdade, podemos
até nem gostar ou admirar o objecto da nossa paixão, no entanto, por muito que tentemos,
podemos não ser capazes de nos apaixonarmos por uma pessoa que respeitamos
profundamente e com quem um relacionamento aprofundado seria desejável em todos os
sentidos. Isto não quer dizer que a experiência de se apaixonar seja imune à disciplina. Os
psiquiatras, por exemplo, apaixonam-se com frequência pelas suas doentes, assim como as
doentes se apaixonam por eles, no entanto, por dever para com a doente e pelo papel que
detêm, conseguem normalmente abortar o colapso das fronteiras do seu ego e renunciar à
doente como objecto romântico. A luta e o sofrimento da disciplina envolvida podem ser
enormes. Mas a disciplina e a vontade só podem controlar a experiência; não a podem criar.
Podemos escolher como responder à experiência de nos apaixonarmos, mas não podemos
escolher a experiência em si.

Apaixonar-se não é uma dilatação dos nossos limites ou fronteiras; é um colapso parcial e
temporário. A expansão dos nossos limites requer esforço; apaixonar-se não. Os indivíduos
preguiçosos e indisciplinados podem apaixonar-se tanto como os que são enérgicos e
dedicados. Depois de passado o precioso momento de se apaixonar e de as fronteiras terem
voltado ao lugar, o indivíduo pode estar desiludido, mas normalmente não se engrandeceu
com a experiência. Quando os limites são dilatados ou esticados, no entanto, a tendência é
para se manterem esticados. O amor verdadeiro é uma experiência permanentemente
engrandecedora. Apaixonar-se não é.

96

Apaixonar-se tem pouco a ver com a educação propositada do nosso desenvolvimento


espiritual. Se temos algum objectivo em mente quando nos apaixonamos, é o de acabar com a
nossa solidão e talvez assegurar esse resultado através do casamento. Não estamos
certamente a pensar em desenvolvimento espiritual. De facto, depois de nos termos
apaixonado e antes de nos desapaixonarmos sentimos que chegámos, que atingimos as
alturas, que não é preciso nem há possibilidade de subir mais alto. Não nos sentimos
necessitados de desenvolvimento; estamos perfeitamente satisfeitos por estar onde estamos.
O nosso espírito está em paz. Nem consideramos que a pessoa amada esteja necessitada de
desenvolvimento espiritual. Pelo contrário, vemo-la como perfeita, como tendo sido
aperfeiçoada. Se vemos alguns defeitos na pessoa amada, consideramo-los insignificantes -
pequenas peculiaridades ou deliciosas excentricidades que só acrescentam cor e encanto.

Se apaixonar-se não é amor, então o que é para além de um colapso temporário e parcial das
fronteiras do ego? Não sei. Mas a especificidade sexual do fenómeno leva-me a suspeitar que é
um componente instintivo geneticamente determinado do comportamento de acasalamento.
Por outras palavras, o colapso temporário das fronteiras do ego que constitui o estado de se
apaixonar é uma resposta estereotipada dos seres humanos a uma configuração de impulsos
sexuais internos e de estímulos sexuais externos, que serve para aumentar a probabilidade de
parceria e ligação sexual de modo a aumentar as probabilidades de sobrevivência da espécie.
Ou, pondo de maneira talvez mais grosseira, apaixonar-se é um truque que os nossos genes
aplicam à nossa mente, normalmente perceptiva noutros sentidos, para nos iludir ou
armadilhar levandonos ao casamento. Frequentemente, o truque corre mal duma maneira ou
doutra, como quando os impulsos e estímulos sexuais são homossexuais ou quando outras
forças - inter-

97

ferência dos pais, doença mental, responsabilidades contraditórias ou auto-disciplina madura -


surgem para impedir a ligação. Por outro lado, sem este truque, esta regressão ilusória e
inevitavelmente temporária (não seria prático se não fosse temporária) à fusão e omnipotência
infantis, muitos de nós que somos bem ou mal casados hoje, teríamos retrocedido em total
terror perante a realidade dos votos matrimoniais.

O Mito do Amor Romântico

PARA SERVIR ASSIM TÃO BEM para nos apanhar no casamento, a experiência de se apaixonar
tem provavelmente como uma das suas características a ilusão de que a experiência irá durar
sempre. Esta ilusão é fomentada na nossa cultura pelo mito vulgarmente cultivado do amor
romântico, que tem as suas origens nas nossas histórias infantis favoritas, em que o príncipe e
a princesa, uma vez unidos, vivem felizes para sempre. O mito do amor romântico diz-nos, com
efeito, que para cada rapaz no mundo há uma rapariga que "foi feita para ele" e vice-versa.
Além disso, o mito implica que há um só homem destinado a uma mulher e uma só mulher
para um homem e que isso foi predeterminado "nas estrelas". Quando conhecemos a pessoa a
quem estamos destinados, o reconhecimento advém do facto de nos apaixonarmos.
Encontrámos a pessoa a quem os céus nos tinham destinado, e uma vez que a união é perfeita,
seremos capazes de satisfazer as necessidades um do outro para sempre, e portanto viver
felizes para sempre em perfeita união e harmonia. Se acontecer, no entanto, não satisfazermos
ou não irmos de encontro a todas as necessidades um do outro surgem atritos e
desapaixonamo-nos. Está claro que cometemos um erro terrível, interpretámos as estrelas
erradamente, não nos entendemos com

98
o nosso único par perfeito, o que pensámos ser amor não era amor real ou "verdadeiro", e não
há nada a fazer quanto à situação a não ser viver infelizes para sempre ou obter o divórcio.

Embora eu pense que, de um modo geral, os grandes mitos são grandes precisamente porque
representam e incorporam grandes verdades universais (serão explorados vários destes mitos
mais adiante neste livro), o mito do amor romântico é uma terrível mentira. Talvez seja uma
mentira necessária por assegurar a sobrevivência da espécie, por estimular e validar
convenientemente a experiência de nos apaixonarmos que nos leva ao casamento. Mas, como
psiquiatra, o meu coração chora quase todos os dias pela horrível confusão e sofrimento que
este mito gera. Milhões de pessoas desperdiçam enormes quantidades de energia tentando
desesperada e futilmente fazer com que a realidade das suas vidas se ajuste à irrealidade do
mito. A Sra. A submete-se absurdamente ao marido devido a um sentimento de culpa. "Eu não
amava verdadeiramente o meu marido quando nos casámos," diz ela. "Fingia que sim. Acho
que o enganei para se casar comigo, portanto não tenho o direito de me queixar dele, e devo-
lhe fazer tudo o que ele quiser." O Sr. B lamenta: "Estou arrependido de não me ter casado com
a Menina C. Penso que poderíamos ter tido um bom casamento. Mas não me sentia
perdidamente apaixonado por ela, portanto parti do princípio que ela não era a pessoa certa
para mim." A Sra. D, casada há dois anos, fica gravemente deprimida sem causa aparente e
começa a fazer terapia, afirmando: "Não sei o que se passa de errado. Tenho tudo o que
preciso, incluindo um bom casamento." Só meses mais tarde consegue aceitar o facto de se ter
desapaixonado do marido, mas que isso não significa que tenha cometido um horrível erro. O
Sr. E, também casado há dois anos, começa a sofrer de dores de cabeça intensas à noite e não
acredita que sejam psicossomáticas. "A minha vida doméstica corre bem. Amo tanto a minha
mulher como no dia

99

em que casei com ela. Ela é tudo o que eu sempre quis." Mas as dores de cabeça continuaram
até que, um ano mais tarde, conseguiu admitir, "Ela dá-me cabo da cabeça porque está sempre
a querer, querer, querer coisas sem se preocupar com o meu ordenado," e foi então capaz de a
confrontar com a sua extravagância. O Sr. e a Sra. F reconhecem que deixaram de estar
apaixonados e passam a fazer-se infelizes um ao outro por mútua infidelidade galopante à
medida que procuram o "verdadeiro amor", sem se aperceberem que o seu próprio
reconhecimento podia marcar o início da obra do seu casamento em vez do fim. Mesmo
quando os casais reconhecem que a lua-de-mel terminou, que já não estão romanticamente
apaixonados um pelo outro e ainda conseguem empenhar-se na sua relação, continuam a
agarrar-se ao mito e tentam adaptar-lhe as suas vidas. "Apesar de já não estarmos
apaixonados, se agirmos por força de vontade como se estivéssemos apaixonados, pode ser
que o amor romântico regresse às nossas vidas," segundo o seu raciocínio. Estes casais
privilegiam o estar juntos. Quando iniciam a terapia de grupo para casais (que é o cenário em
que a minha mulher e eu e os nossos colegas mais próximos exercemos o aconselhamento
matrimonial mais crítico), sentam-se juntos, falam um pelo outro, defendem os defeitos um do
outro e tentam apresentar ao resto do grupo uma frente unida, acreditando que esta unidade
seja um sinal de saúde relativa do seu casamento e um pré-requisito para a sua melhoria. Mais
cedo ou mais tarde, normalmente mais cedo, temos que dizer à maior parte dos casais que
estão demasiado casados, demasiado próximos, e que têm de estabelecer alguma distância
psicológica entre si antes de começarem a tratar construtivamente os seus problemas. Por
vezes, é mesmo necessário separá-los fisicamente, dando-lhes instruções para se sentarem
longe um do outro no círculo do grupo. Repetidamente, temos que dizer, "Deixe a Mary falar
por si própria, John" e "O John é capaz de se defen-

100

der, Mary, é suficientemente forte." Por fim, se continuam na terapia, todos os casais
aprendem que a verdadeira aceitação da sua própria individualidade e da do outro e a
independência são as únicas fundações sobre as quais se pode basear um casamento adulto e
o verdadeiro amor pode crescer*.

Mais Sobre as Fronteiras do Ego

TENDO PROCLAMADO QUE a experiência de "se apaixonar" é uma espécie de ilusão que de
nenhuma forma constitui amor real, irei concluir fazendo marcha atrás e chamando a atenção
para o facto de que o apaixonar-se está realmente muito, muito próximo do verdadeiro amor.
De facto, a ideia errada de que apaixonar-se é um tipo de amor é muito potente exactamente
porque contém um grão de verdade.

A experiência do amor verdadeiro também tem a ver com as fronteiras do ego, já que envolve
a expansão dos nossos limites. Os nossos limites são as nossas fronteiras do ego. Quando
expandimos os nossos limites através do amor, fazemo-lo estendendo os braços, por assim
dizer, para o ser amado, cujo desenvolvimento queremos alimentar. Para sermos capazes de o
fazer, o objecto do nosso amor tem primeiro que se tornar amado por nós; por outras palavras,
temos que ser atraídos por, investir em e comprometer-nos com um objecto exterior a nós,
para além das fronteiras do Eu. Os psiquiatras chamam a este processo

* Quem leu o livro de O'Neil Open Marriage reconhecerá isto como um princípio básico do
casamento aberto, em oposição ao fechado. Os O'Neils eram de facto muito suaves e contidos
no seu proselitismo quanto ao casamento aberto. O meu trabalho com casais levou-me à crua
conclusão de que o casamento aberto é a única forma de casamento maduro que é saudável e
não seriamente destrutivo para a saúde espiritual e a evolução dos parceiros individuais.

101

de atracção, investimento e compromisso "catexia" e dizem que "calcetamos" o objecto


amado. Mas quando catectamos um objecto exterior a nós, também incorporamos
psicologicamente uma representação desse objecto em nós. Por exemplo, consideremos um
homem que faz jardinagem como passatempo. É um passatempo gratificante e que ocupa o
tempo. Ele "ama" a jardinagem. O seu jardim tem um grande significado para ele. Este homem
catecta o jardim. Acha-o atraente, investiu algo de si nele, está comprometido com ele - tanto
que é capaz de saltar da cama cedo ao Domingo de manhã para voltar para ele, é capaz de se
recusar a viajar para longe dele e pode até dar pouca atenção à mulher por causa dele. No
processo da sua catexia e para criar as suas flores e arbustos ele aprende muito. Fica a saber
muito de jardinagem - sobre solos e fertilizantes, transplantar e podar. E conhece o seu jardim
em particular - a sua história, os tipos de flores e plantas que tem, a sua disposição, os seus
problemas e até o seu futuro. Apesar de o jardim existir fora dele, através da sua catexia
também passa a existir dentro dele. A forma como o conhece e o significado que tem fazem
parte dele, parte da sua identidade, parte da sua história, parte do seu conhecimento. Ao amar
e catectar este jardim, ele incorporou, duma forma bastante real, o jardim dentro de si, e por
esta incorporação o seu Eu expandiu-se e as fronteiras do seu ego alargaram-se.

O que resulta então no decurso de muitos anos de amor, de alargarmos os nossos limites pelas
nossas catexias, é um engrandecimento gradual mas progressivo do Eu, uma incorporação
interior do mundo exterior, e o desenvolvimento, a extensão e o estreitamento das nossas
fronteiras do ego. Desta maneira, quanto mais e por mais tempo nos expandimos, mais
amamos e mais difusa se torna a distinção entre o Eu e o mundo. À medida que as fronteiras
do ego se tornam mais finas e indistintas, começamos a sentir cada vez mais a mesma

102

espécie de êxtase que temos quando as nossas fronteiras do ego caem parcialmente e nos
"apaixonamos". Só que, em vez de nos fundirmos temporariamente e de forma irrealista com
um só objecto amado, fundimo-nos de forma realista e mais permanente com uma grande
parte do mundo. Pode estabelecer-se uma "união mística" com todo o mundo. A sensação de
êxtase ou de graça associada a esta união, embora mais suave e menos dramática do que a
associada à paixão, é no entanto muito mais estável, duradoura e por fim gratificante. É a
diferença entre a experiência de topo, tipificada pelo apaixonar-se, e o que Abraham Maslow
referiu como a "experiência do planalto"*. As alturas não se vêem por momentos para se
perderem novamente; atingem-se para sempre.

É óbvio e do entendimento geral que a actividade sexual e o amor, embora possam ocorrer em
simultâneo, estão frequentemente dissociados, porque são basicamente fenómenos
independentes. Por si só, fazer amor não é um acto de amor. Mesmo assim, a experiência de
relação sexual, e particularmente do orgasmo (mesmo na masturbação), é uma experiência
também associada a um maior ou menor grau de colapso das fronteiras do ego e ao êxtase a
ele ligado. É devido a este colapso das fronteiras do ego que somos capazes de gritar, no
momento do clímax, "Amo-te" ou "Oh, meu Deus" a uma prostituta por quem, momentos mais
tarde, depois de as fronteiras do ego terem voltado ao seu lugar, não sentimos qualquer
vestígio de afecto, gosto ou investimento. Não quero com isto dizer que o êxtase da
experiência orgásmica não possa ser aumentado pela partilha com alguém que se ama; pode.
Mas mesmo sem um parceiro amado ou qualquer parceiro, o colapso das fronteiras do ego
conjuntamente com o orgasmo pode ser total; por um segundo podemos esquecer totalmente
quem somos, perdermo-

(Nota)

* Religions, V alues and Peak-Experiences (N.Iorque: Viking, 1970), prefácio.

103

-nos, no tempo e no espaço, ficarmos fora de nós, ser transportados. Podemos unir-nos ao
Universo. Mas só por um segundo. Ao descrever a prolongada "unicidade com o Universo"
associada ao amor verdadeiro comparada com a união momentânea do orgasmo, utilizei as
palavras "união mística". O misticismo é essencialmente a crença de que a realidade é
unicidade. Os mais literais dos místicos acreditam que a nossa visão comum do Universo como
contendo multidões de objectos distintos - estrelas, planetas, árvores, pássaros, casas, nós

- todos separados uns dos outros por fronteiras é uma percepção errada, uma ilusão. Para
designar esta concepção errada consensual, este mundo de ilusão que a maior parte de nós crê
erradamente ser real, os Hindus e os Budistas utilizam a palavra "Maya". Eles e outros místicos
sustentam que a verdadeira realidade só pode ser conhecida através da experiência da
unicidade pela renúncia às fronteiras do ego. É impossível ver de facto a unidade do Universo
enquanto se continua a ver a si próprio como um objecto distinto, separado e distinguível do
resto do Universo de qualquer modo, forma ou feitio. Os Hindus e os Budistas sustentam
frequentemente, por isso, que o recém-nascido, antes do desenvolvimento das fronteiras do
ego, conhece a realidade, enquanto que os adultos não. Alguns até sugerem que o caminho
para o esclarecimento ou conhecimento da unicidade da realidade exige a nossa regressão ou
que nos tornemos como recém-nascidos. Esta doutrina pode ser perigosamente tentadora
para certos adolescentes e jovens adultos que não estão preparados para assumir
responsabilidades adultas, que parecem assustadoras, esmagadoras e exigindo mais do que as
suas capacidades. "Não tenho que passar por tudo isto," pode pensar uma dessas pessoas.
"Posso desistir de tentar ser adulto e escapar às exigências adultas e entrar na santidade."
Agindo com base nesta suposição, atinge-se mais depressa a esquizofrenia que a santidade.

104

A maior parte dos místicos compreende a verdade que foi analisada no final da discussão da
disciplina: ou seja, que devemos possuir ou conseguir algo antes de podermos renunciar a ele
e conservar a nossa competência e viabilidade. O recém-nascido, sem as suas fronteiras do
ego, pode estar em contacto mais próximo com a realidade que os pais, mas é incapaz de
sobreviver sem os cuidados dos pais e incapaz de comunicar a sua sabedoria. O caminho para a
santidade passa pela idade adulta. Não há atalhos rápidos nem fáceis. As fronteiras do ego têm
de ser reforçadas antes de poderem ser enfraquecidas. A identidade tem de ser estabelecida
antes de poder ser transcendida. Temos que encontrar o nosso Eu antes de o podermos perder.
A libertação temporária das fronteiras do ego associada ao estado de paixão, relação sexual ou
ao uso de certas drogas psico-activas podem deixar-nos entrever o Nirvana, mas não nos levam
ao Nirvana propriamente dito. É uma tese deste livro que o Nirvana, ou o esclarecimento
duradouro, ou o verdadeiro desenvolvimento espiritual, só podem ser alcançados através do
exercício persistente do verdadeiro amor.

Em suma, a perda temporária das fronteiras do ego associada ao estado de paixão e à relação
sexual não só nos leva a assumir compromissos com outras pessoas, a partir dos quais o
verdadeiro amor pode surgir, mas dá-nos também o gosto antecipado (e portanto um
incentivo) do êxtase místico mais durável que pode ser nosso depois de uma vida de amor.
Como tal, portanto, embora apaixonar-se não seja amor em si, é uma parte do grande e
misterioso esquema do amor.

105

Dependência

O SEGUNDO ERRO MAIS comum sobre o amor é a ideia de que dependência é amor. É um
conceito errado com o qual os psicoterapeutas se confrontam diariamente. O seu efeito
verifica-se de um modo mais dramático em indivíduos que tentam ou ameaçam suicidar-se ou
se tornam incapacitantemente deprimidos em reacção à rejeição ou a uma separação do
cônjuge ou de um amante. Essa pessoa diz "Eu não quero viver, eu não posso viver sem o meu
marido (mulher, namorada, namorado), eu amo-o(a) tanto". E quando eu respondo, como faço
frequentemente, "Isso é um erro, não ama o seu marido (mulher, namorada, namorado)," "O
que é que quer dizer?" é a pergunta em tom irritado, "Acabei de lhe dizer que não posso viver
sem ele (ou ela)." Tento explicar, "O que me descreve é parasitismo, não amor. Quando precisa
de outra pessoa para a sua sobrevivência, é um parasita dessa pessoa. Não existe escolha nem
liberdade na vossa relação. É mais uma questão de necessidade do que de amor. O amor é o
exercício da escolha livre. Duas pessoas sentem amor uma pela outra apenas quando são
capazes de viver uma sem a outra mas escolhem viver uma com a outra."

Defino a dependência como a incapacidade de se sentir realizado ou de agir adequadamente


sem a certeza de que se é motivo de cuidado para outra pessoa. A dependência em adultos
fisicamente saudáveis é patológica - é doentia, sempre uma manifestação de doença ou
problema mental. Deve ser distinguida daquilo que é referido normalmente como necessidade
ou sentimentos de dependência. Todos nós - e cada um de nós

- mesmo que tentemos aparentar para os outros e para nós

106

próprios o contrário - temos carências afectivas. Todos nós desejamos ser mimados, que
tomem conta de nós sem esforço da nossa parte, e que pessoas mais fortes do que nós e para
quem os nossos interesses são realmente importantes gostem de nós. Por muito fortes,
cuidadosos, responsáveis e adultos que sejamos, se olharmos bem para dentro de nós,
encontraremos sempre o desejo de que cuidem de nós para variar. Cada um de nós,
independentemente da idade e da maturidade, procura e gostaria de ter na sua vida uma boa
imagem materna e paterna. Mas, para a maior parte de nós, estes desejos ou sentimentos não
regem a nossa vida; não são o tema predominante da nossa existência. Quando governam as
nossas vidas e ditam a qualidade da nossa existência, temos então algo mais do que meras
carências afectivas; somos dependentes. Especificamente, uma pessoa cuja vida é governada e
ditada pelas necessidades da dependência sofre de uma disfunção de ordem psiquiátrica a
que, em termos de diagnóstico, damos o nome de "disfunção de personalidade dependente
passiva". É talvez a mais comum de todas as perturbações de ordem psiquiátrica.

As pessoas com esta disfunção, pessoas dependentes passivas, estão tão empenhadas na
procura de serem amadas que não lhes resta nenhuma energia para amar. São como pessoas
esfomeadas, esgravatando onde podem por comida, sem partilharem a sua comida com os
outros. É como se dentro delas houvesse um vazio interior, um poço sem fundo clamando por
ser cheio mas que nunca se consegue encher completamente. Nunca se sentem "preenchidos"
nem têm a sensação de realização. Sentem sempre "falta-me qualquer coisa". Quase não
toleram a solidão. Devido à sua ausência de realização não têm um sentido real de identidade
e definem-se a si próprios apenas pelas relações que têm. Um operador gráfico de trinta anos,
extremamente deprimido, veio ver-me três dias depois de a mulher o ter deixado, levando os
seus dois filhos. Ela já tinha

107

ameaçado deixá-lo por três vezes, queixando-se da sua total falta de atenção para com ela e as
crianças. De cada vez ele tinha-lhe pedido para ficar e prometido modificar-se, mas essa
mudança nunca durava mais de um dia e, dessa vez, ela tinha levado a ameaça em frente. Ele
não dormia há dois dias, tremia de ansiedade, as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo e
pensava seriamente em suicidar-se. "Não consigo viver sem a minha família," disse a chorar,
"Amo-os tanto."

"Estou confuso," disse-lhe eu. "Disse-me que a sua mulher tinha razão nas suas queixas, que
nunca fazia nada por ela, que só ia a casa quando lhe apetecia, que não se sentia atraído por
ela nem sexual nem emocionalmente, que chegava ao ponto de não falar com as crianças
durante meses, que nunca brincava ou saía com elas. O senhor não tem nenhuma relação com
ninguém da sua família, por isso não entendo porque é que está tão deprimido por ter perdido
um relacionamento que nunca existiu."

"Não está a ver?" respondeu, "Eu agora não sou nada. Nada. Não tenho mulher, não tenho
filhos. Não sei quem sou. Posso não me preocupar com eles, mas devo gostar deles. Sem eles
não sou nada."

Por ele estar tão deprimido - tinha perdido a identidade que a família lhe dava - marquei-lhe
uma nova consulta para dois dias mais tarde. Não esperava grandes melhoras. Mas quando
voltou, irrompeu pelo meu gabinete com um largo sorriso e anunciou, "Agora está tudo bem."

"Voltou para a sua família?" perguntei.

"Oh, não," respondeu feliz, "não soube nada deles desde que estive consigo. Mas conheci uma
rapariga ontem à noite num bar. Ela disse-me que gosta realmente de mim. Está separada,
como eu. Vamo-nos encontrar de novo hoje à noite. Sinto-me novamente um ser humano.
Acho que não vou precisar mais de vir ter consigo."
108

Esta rápida mutação é característica nos indivíduos dependentes passivos. Não é importante
de quem dependem, desde que haja alguém. Não interessa qual a sua identidade desde que
exista alguém que lha forneça. Consequentemente as suas relações, embora aparentemente
dramáticas na sua intensidade, são na verdade extremamente ligeiras. Devido à forte sensação
que têm de vazio interior e na ânsia de o preencher, as pessoas dependentes passivas não
demoram a gratificar a sua necessidade de outras. Uma mulher jovem, bonita, muito
inteligente e extremamente saudável em determinados aspectos, teve, entre os dezassete e os
vinte e um anos, uma série quase infinita de envolvimentos sexuais com homens de um modo
geral inferiores a ela em termos de inteligência e capacidades. Passava de um perdedor para
outro. O problema, quando surgiu, era a sua incapacidade de esperar o tempo necessário para
procurar um homem adequado ou mesmo de escolher entre os muitos imediatamente
disponíveis. Vinte e quatro horas depois de terminar uma relação ela agarraria o primeiro
homem que encontrasse num bar e entraria na sessão seguinte de terapia a cantar-lhe
louvores. "Sei que ele está desempregado e que bebe demais, mas no fundo tem muito talento
e gosta verdadeiramente de mim. Sei que esta relação irá correr bem."

Mas nunca correu bem, não só por ela não ter feito uma boa escolha mas também porque se
tornaria cada vez mais absorvente em relação ao homem, pedindo cada vez mais provas do seu
afecto, querendo estar constantemente com ele, recusando-se a ficar sozinha. "É por eu gostar
tanto de ti que não suporto estar longe de ti," dir-lhe-ia ela, mas mais cedo ou mais tarde ele
sentir-se-ia completamente sufocado e preso, sem espaço para se mover, pelo seu "amor".
Haveria uma violenta explosão, a relação terminaria e o ciclo iniciar-se-ia todo de novo no dia
seguinte. A mulher tornou-se capaz de quebrar o ciclo após três anos de terapia, durante os
quais começou a apreciar a

109

sua própria inteligência e qualidades, a identificar o seu vazio e ansiedade e a distingui-los do


amor verdadeiro, a compreender que a sua ansiedade a levava a iniciar e a depender de
relacionamentos que lhe eram prejudiciais e a aceitar a necessidade de disciplinar rigidamente
a sua ansiedade para poder tirar proveito das suas capacidades.

No diagnóstico é utilizada a palavra "passivo" juntamente com a palavra "dependente" porque


estes indivíduos se preocupam tanto com o que os outros podem fazer por eles que até
chegam ao ponto de excluir o que eles próprios poderão fazer. Uma vez, quando trabalhava
com um grupo de cinco pacientes solteiros, todos dependentes passivos, pedi-lhes para
falarem dos seus objectivos em termos da situação em que gostariam de estar na vida daí a
cinco anos. De um modo ou de outro cada um respondeu "Quero estar casado com alguém
que goste mesmo de mim". Nem um mencionou manter um emprego estimulante, criar uma
obra de arte, fazer uma contribuição para a comunidade ou estar numa posição em que ele ou
ela pudesse amar ou até ter filhos. A noção de esforço não estava incluída nos seus sonhos;
visavam apenas um estado passivo e sem esforço de receber atenção e cuidados. Disse-lhes,
como digo a muitos outros: "Se o vosso objectivo é serem amados, não vão conseguir alcançá-
lo. A única forma de se ter a certeza de ser amado é ser uma pessoa merecedora de amor, e
não se pode ser uma pessoa merecedora de amor quando o principal objectivo na vida é ser
amado passivamente." Isto não significa que as pessoas dependentes passivas nunca fazem
nada pelos outros, mas o seu motivo ao fazer é cimentar a ligação que prende os outros a elas
para garantirem a sua retribuição. E quando não está envolvida a hipótese de afecto por parte
do outro, têm muita dificuldade em "fazer coisas". Todos os membros do grupo acima referido
achavam angustiantemente difícil comprar uma casa, separar-se dos

110

pais, procurar um emprego, deixar um emprego totalmente insatisfatório ou mesmo dedicar-


se a um passatempo.

No casamento há normalmente uma diferenciação dos papéis dos dois esposos, uma divisão
do trabalho entre os dois, normalmente eficiente. A mulher normalmente cozinha, trata da
limpeza da casa, das compras e cuida das crianças; o homem normalmente garante o emprego,
trata das finanças, corta a relva e faz reparações. Os casais saudáveis trocam de papéis
instintivamente de vez em quando. O homem é capaz de cozinhar uma refeição de vez em
quando, passar um dia por semana com as crianças, limpar a casa para fazer uma surpresa à
mulher; a mulher pode arranjar um emprego a tempo parcial, cortar a relva no dia do
aniversário do marido, ou encarregar-se da conta bancária e dos pagamentos durante um ano.
O casal pode considerar esta troca de papéis como uma espécie de brincadeira que acrescenta
condimento e variedade ao casamento. É isso, mas talvez mais importante (mesmo se feito
inconscientemente), é um processo que diminui a sua dependência mútua. De certo modo,
cada membro do casal está a treinar-se para a sobrevivência no caso de perda do outro. Mas,
para as pessoas dependentes passivas, a perda do outro é uma perspectiva tão assustadora
que não conseguem enfrentar a preparação para ela, nem tolerar um processo que diminuiria
a dependência ou aumentaria a liberdade do outro.

Em consequência disso, uma das marcas comportamentais das pessoas dependentes passivas
no casamento é que a sua diferenciação de papéis é rígida, e tentam aumentar em vez de
diminuir a dependência mútua, de modo a tornar o casamento, cada vez mais e não cada vez
menos, uma armadilha. Ao agir assim, em nome do que apelidam de amor mas que é na
realidade dependência, diminuem a sua liberdade e estatura e as do outro. De vez em quando,
como parte deste processo, as pessoas dependentes passivas, quando casadas, chegam a

111

renunciar a capacidades adquiridas antes do casamento. Um exemplo é o não invulgar


síndroma da mulher que não "pode" conduzir. Metade das vezes, ela pode nunca ter
aprendido, mas nos restantes casos, por vezes alegadamente devido a um pequeno acidente,
desenvolve uma "fobia" acerca da condução numa altura qualquer depois do casamento e
deixa de conduzir. O efeito desta "fobia" em zonas rurais e suburbanas, onde vive a maior parte
das pessoas, é torná-la quase totalmente dependente do marido e acorrentá-lo a ela através
do seu desamparo. Então ele tem que fazer as compras todas para a família ou servir-lhe de
motorista em todas as expedições de compras. Porque este comportamento normalmente
gratifica as necessidades de dependência dos dois esposos, quase nunca é visto como doentio
ou mesmo como um problema a ser resolvido pela maior parte dos casais. Quando sugeri a um
banqueiro, extremamente inteligente em todas as outras questões, que a mulher, que deixou
de guiar aos quarenta e seis anos devido a uma "fobia", talvez tivesse um problema que
merecia atenção psiquiátrica, ele disse, "Oh, não, o médico disse-lhe que era devido à
menopausa e quanto a isso não há nada a fazer." Ela sentia-se segura por saber que ele não
teria um caso nem a deixaria, porque estava tão ocupado depois do trabalho a levá-la às
compras e a transportar as crianças. Ele sentia-se seguro, sabendo que ela não teria um caso
nem o deixaria porque não tinha mobilidade para conhecer outras pessoas quando ele não
estava com ela. Com este comportamento, os casamentos dependentes passivos podem
tornar-se duradouros e seguros, mas não podem ser considerados saudáveis nem de amor
verdadeiro, porque a segurança é adquirida pelo preço da liberdade e a relação serve para
retardar ou destruir o desenvolvimento dos parceiros individuais. Dizemos repetidamente aos
nossos casais que "um bom casamento só pode existir entre duas pessoas fortes e
independentes".

112

A dependência passiva tem a sua génese na falta de amor. O sentimento íntimo de vácuo de
que sofrem as pessoas dependentes passivas é o resultado directo da falha dos seus pais em
preencher as suas necessidades de afecto, atenção e cuidados durante a infância. Foi referido
na primeira parte, que as crianças que são amadas e a quem é dada atenção com uma
consistência relativa durante a infância, entram na idade adulta com um sentimento profundo
de que são passivas de ser amadas e valiosas e que, portanto, continuarão a ser amadas e
continuará a ser-lhes dedicada atenção enquanto se mantiverem fiéis a si mesmas. As crianças
que crescem num ambiente onde o amor e a atenção estão ausentes ou são dados com
enorme inconsistência, entram na idade adulta sem esse sentido de segurança íntima. Em vez
disso, têm um sentimento de insegurança íntima, um sentimento de "não tenho o suficiente" e
de que o mundo é imprevisível e avarento, bem como o sentimento de que não são passíveis
de ser amadas e consideradas valiosas. Não é de admirar portanto, que sintam a necessidade
de procurar ansiosamente amor, cuidado e atenção onde quer que os encontrem e, quando os
encontram, se agarrem a eles com um desespero que os leva a um comportamento sem amor,
manipulativo e maquiavélico que destrói essas mesmas relações que tentam preservar. Como
também foi indicado na parte anterior, o amor e a disciplina andam de mãos dadas, pelo que
pais que não amam nem se importam com os filhos são pessoas a quem falta a disciplina, e
quando falham em fazer sentir aos filhos que são amados, também falham em lhes dar a
capacidade da auto-disciplina. Assim, a dependência excessiva dos indivíduos dependentes
passivos é apenas a principal manifestação da sua perturbação de personalidade. Às pessoas
dependentes passivas falta a auto-disciplina. Não querem ou são incapazes de adiar a
gratificação da sua fome de atenção. No seu desespero por formar e manter

113

ligações, atiram a honestidade pela janela. Agarram-se a relações desgastadas quando deviam
renunciar a elas. Mais importante, falta-lhes o sentido de responsabilidade por si próprias.
Esperam passivamente que os outros, frequentemente até os próprios filhos, sejam a fonte da
sua felicidade e preenchimento, e portanto, quando não se sentem basicamente felizes e
preenchidos, sentem que os outros são responsáveis. Em resultado, estão interminavelmente
zangados, porque se sentem interminavelmente traídos pelos outros que, na realidade, nunca
conseguem preencher todas as suas necessidades nem "fazê-los" felizes. Tenho um colega que
muitas vezes diz às pessoas, "Olhe, permitir-se ser dependente doutra pessoa é a pior coisa
possível que pode fazer a si mesmo. Estaria melhor se fosse dependente de heroína. Enquanto
estiver fornecido, a heroína nunca o deixa ficar mal; se lá estiver, fá-lo-á sempre feliz. Mas se
está à espera que outra pessoa o faça feliz, ficará interminavelmente desiludido." De facto, não
é por acaso que a perturbação mais comum manifestada pelas pessoas dependentes passivas,
para além do seu relacionamento com os outros, é a dependência das drogas e do álcool. A sua
personalidade é "viciada". São viciados em pessoas, sugam-nas e engolem-nas, e quando as
pessoas não estão disponíveis para serem sugadas e engolidas, viram-se para a garrafa, ou para
a agulha ou para a pastilha, como substitutos das pessoas.

Resumindo, a dependência pode parecer amor porque é uma força que obriga as pessoas a
agarrarem-se ferozmente umas às outras. Mas, na verdade, não é amor; é uma forma de anti-
amor. Tem a sua génese numa falta de amor por parte dos pais e perpetua essa falha. Procura
receber em vez de dar. Alimenta a infantilidade em vez do crescimento. Funciona de forma a
armadilhar e restringir em vez de libertar. Por fim, destrói em vez de construir relações e
destrói em vez de construir pessoas.

114

*/*

Catexia Sem Amor

UM DOS ASPECTOS DA dependência é que não se preocupa com o desenvolvimento espiritual.


As pessoas dependentes estão interessadas no seu próprio alimento e nada mais; desejam a
plenitude, desejam ser felizes; não desejam desenvolver-se, nem estão dispostas a tolerar a
infelicidade, a solidão e o sofrimento envolvidos no desenvolvimento. As pessoas dependentes
também não se preocupam com o desenvolvimento espiritual do outro, do objecto da sua
dependência; importam-se apenas que o outro ali esteja para as satisfazer. A dependência é só
uma das formas de comportamento a que incorrectamente aplicamos a palavra "amor"
quando a preocupação com a evolução espiritual está ausente. Consideremos agora outras
formas, e esperamos demonstrar mais uma vez que o amor nunca é alimento nem catexia sem
atentar ao desenvolvimento espiritual.

Referimo-nos frequentemente a pessoas que amam objectos inanimados ou actividades.


Dizemos "Ele adora o dinheiro" ou "Ele adora o poder", "Ele adora jardinar" ou "Ele adora jogar
golfe". É certo que um indivíduo pode esforçar-se muito além dos limites pessoais vulgares,
trabalhando sessenta, setenta, oitenta horas por semana para acumular riqueza ou poder. No
entanto, apesar da extensão da fortuna ou da influência de cada um, todo este trabalho e
acumulação podem não ser nada engrandecedores. De facto, podemos muitas vezes dizer de
um magnata que se fez por si próprio, "É uma pessoa menor, má e mesquinha." Embora
possamos falar sobre o quanto essa pessoa ama o dinheiro ou o poder, frequentemente não o
vemos como uma pessoa que ama. Porque é assim? É porque a riqueza

115

ou o poder se tornaram, para essa pessoa, fins em si, em vez de meios para um objectivo
espiritual. O único fim verdadeiro do amor é o desenvolvimento espiritual ou a evolução
humana.
Os passatempos são actividades auto-educativas. Ao nos amarmos a nós próprios - ou seja,
educando-nos para o propósito do desenvolvimento espiritual - temos que nos apetrechar com
toda a espécie de coisas que não são directamente espirituais. Para alimentar o espírito, o
corpo tem também de ser alimentado. Precisamos de comida e abrigo. Independentemente da
nossa dedicação ao desenvolvimento espiritual, também precisamos de descanso e repouso,
exercício e distracção. Os santos têm que dormir e até os profetas têm que se divertir. Assim,
os passatempos podem ser um meio através do qual nos amamos a nós próprios. Mas se o
passatempo se transforma num fim em si, então torna-se um substituto em vez de um meio de
desenvolvimento pessoal. Às vezes, é precisamente por serem substitutos do desenvolvimento
pessoal que os passatempos são tão populares. Nos campos de golfe, por exemplo, encontram-
se homens e mulheres de idade para quem o objectivo principal que lhes resta na vida é retirar
mais umas tacadas do seu jogo. Esse esforço de melhorar a sua habilidade serve para lhes dar a
sensação de progressão na vida e, assim, ajuda-os a ignorar a realidade de terem de facto
deixado de progredir, por terem desistido do esforço de se melhorarem como seres humanos.
Se se amassem mais a eles próprios, não se permitiriam contentar-se apaixonadamente com
um objectivo tão pequeno e um futuro tão mesquinho.

Por outro lado, o poder e o dinheiro podem ser meios para um objectivo de amor. Uma pessoa
pode, por exemplo, suportar uma carreira política com o principal objectivo de utilizar o poder
político para melhoria da raça humana. Ou há pessoas que podem ansiar pela riqueza, não
pelo dinheiro, mas para os filhos poderem frequentar a universidade e para eles próprios

116

poderem ter a liberdade e o tempo de estudo e reflexão necessários ao seu desenvolvimento


espiritual. Não é o poder nem o dinheiro que essas pessoas amam; é a humanidade.

Entre as coisas que aqui refiro e em toda esta secção do livro, diria que a forma como
utilizamos a palavra "amor" é tão generalizada e inespecífica que pode interferir seriamente
com o nosso entendimento do amor. Não tenho grande esperança em que a linguagem mude
neste aspecto. No entanto, enquanto continuarmos a usar a palavra "amor" para descrever a
nossa relação com algo que é importante para nós, algo que catectamos, sem atender à
qualidade dessa relação, continuaremos a ter dificuldade em ver a diferença entre o sensato e
o tolo, o bom e o mau, o nobre e o ignóbil.

Utilizando a nossa definição mais específica, é claro, por exemplo, que só podemos amar seres
humanos. Porque, de acordo com o nosso conceito geral das coisas, só os seres humanos
possuem um espírito apto a um desenvolvimento substancial. Consideremos a questão dos
animais de estimação. "Adoramos" o cão da família. Damos-lhe de comer, damos-lhe banho,
damos-lhe mimos e carícias, disciplinamo-lo e brincamos com ele. Quando está doente, somos
capazes de largar tudo para ir com ele a correr para o veterinário. Quando foge ou morre,
ficamos desgostosos. Na verdade, para algumas pessoas sós, sem filhos, os animais de
estimação podem tornar-se a sua única razão de existir. Se isto não é amor, então o que é?

* Reconheço a possibilidade de que este conceito possa ser falso; de que toda a matéria,
animada e inanimada, possa possuir um espírito. A distinção que fazemos entre nós próprios
como humanos e os animais e plantas "inferiores", a terra e as pedras inanimadas, é uma
manifestação de maya, ou ilusão, no quadro de referência místico. Há níveis de compreensão.
Neste livro trato do amor a um certo nível. Infelizmente as minhas competências de
comunicação são inadequadas para abarcar mais de um nível ao mesmo tempo ou para fazer
mais do que fornecer um vislumbre ocasional de um nível que não seja aquele sobre o qual
estou a comunicar.

117

Mas, examinemos as diferenças entre a nossa relação com um animal de estimação e com
outro ser humano. Primeiro que tudo, a extensão da nossa comunicação com os animais de
estimação é extremamente limitada em comparação com aquela em que podemos comunicar
com outros seres humanos, se nos empenharmos nisso. Não sabemos o que pensam os nossos
animais de estimação. Esta falta de conhecimento permite-nos projectar neles os nossos
pensamentos e sentimentos e sentir por isso uma afinidade emocional com eles que pode
nada corresponder à realidade. Segundo, só achamos os nossos animais satisfatórios enquanto
as suas vontades coincidem com a nossa. Esta é a base em que geralmente escolhemos os
animais de estimação e, se as suas vontades começam a divergir significativamente da nossa,
livramo-nos deles. Não os mantemos muito tempo por perto quando protestam ou lutam
contra nós. A única escola para onde os mandamos para desenvolvimento da mente e do
espírito é a escola de obediência. No entanto, conseguimos desejar que outros humanos
desenvolvam uma "vontade própria"; na verdade, é este desejo de diferenciação do outro que
é uma das características do amor genuíno. Finalmente, na nossa relação com os animais de
estimação, tentamos fomentar a sua dependência. Não queremos que cresçam e saiam de
casa. Queremos que fiquem ali, dependentemente deitados ao pé da lareira. É o seu apego a
nós, e não a independência de nós, que valorizamos nos animais de estimação.

Este assunto do "amor" dos animais de estimação tem imensa importância porque muitas,
muitas pessoas só são capazes de amar animais de estimação e são incapazes de amar
verdadeiramente outros seres humanos. Inúmeros soldados americanos tiveram casamentos
idílicos com "noivas de guerra" alemãs, italianas ou japonesas com quem não conseguiam
comunicar verbalmente. Mas quando as noivas aprenderam inglês, os casamentos começaram
a desfazer-se. Os solda-

118

sentimentos, desejos e objectivos e a sentir a mesma proximidade que se sente em relação a


um animal de estimação. Em vez disso, como as mulheres aprenderam inglês, começaram a
perceber que elas tinham ideias, opiniões e objectivos diferentes dos seus. À medida que isso
foi acontecendo, para alguns o amor começou a crescer; para a maior parte, talvez, terminou.
A mulher liberada tem razão em acautelar-se em relação ao homem que lhe chama
afectuosamente o seu "bichinho". Pode, de facto, ser um indivíduo cuja afeição dependa de ela
ser um bichinho de estimação, a quem falta a capacidade de respeitar a força, independência e
individualidade dela. O exemplo mais triste deste fenómeno é, provavelmente, o grande
número de mulheres que só "amam" os filhos enquanto bebés. Encontram-se dessas mulheres
em todo o lado. Podem ser mães ideais até os filhos chegarem aos dois anos - infinitamente
ternas, amamentando-os alegremente, aconchegando e brincando com os bebés,
consistentemente afectuosas, totalmente dedicadas à sua criação e extremamente felizes na
maternidade. Depois, quase que de um dia para o outro, muda o cenário. Assim que a criança
começa a manifestar a sua vontade - a desobedecer, a choramingar, a recusar-se a brincar, a
não se deixar afagar de vez em quando, a prender-se a outras pessoas, a entrar no mundo um
pouco por si -, o amor da mãe termina. Perde o interesse pela criança, "descatecta-a",
considera-a apenas um aborrecimento. Ao mesmo tempo, muitas vezes sente novamente um
desejo quase esmagador de engravidar outra vez, de ter outro bebé, outro bicho de estimação.
Normalmente é bem sucedida e o ciclo repete-se. Se não, é provável que tente avidamente
tomar conta dos bebés dos vizinhos enquanto ignora quase na totalidade os pedidos de
atenção do seu filho ou filhos, mais crescidos. Para os seus filhos, "os terríveis dois anos" são
não só o fim da infância,

119

mas também o fim da experiência de serem amados pela mãe. A dor e a privação por que
passam são óbvias para todos menos para a mãe, ocupada com o novo bebé. O efeito dessa
experiência normalmente surge quando as crianças entram na idade adulta num padrão de
personalidade depressiva e/ou dependente passiva.

O que isto sugere é que o "amor" aos bebés e animais de estimação e até às esposas
dependentemente obedientes é um padrão de comportamento instintivo ao qual se aplica
perfeitamente o termo "instinto maternal". Podemos comparar este com o comportamento
instintivo de "apaixonar-se": não é uma forma genuína de amor pelo facto de não implicar
qualquer esforço, nem é inteiramente um acto de vontade ou de escolha; aproxima-se do amor
por ser uma forma de se estender aos outros e servir para iniciar laços interpessoais dos quais
pode nascer o amor verdadeiro; mas é preciso muito mais para desenvolver um casamento
saudável e criativo, criar uma criança saudável e cujo espírito se desenvolve, ou para contribuir
para a evolução da humanidade.

A questão é que criar pode e normalmente deve ser muito mais do que simplesmente
alimentar, e que a educação do desenvolvimento espiritual é um processo infinitamente mais
complicado do que qualquer um que possa ser orientado por instinto. A mãe que referi no
início desta secção do livro, que não deixava o filho ir de autocarro para a escola, é um caso
típico. Transportá-lo de e para a escola era criá-lo, num certo sentido, mas era uma educação
de que ele não precisava e que retardava claramente, em vez de desenvolver, o seu
desenvolvimento espiritual. Abundam outros exemplos: mães que empanturram de comida
crianças já com excesso de peso; pais que compram aos filhos brinquedos que davam para
encher um quarto e às filhas roupas que encheriam um armário; pais que não estabelecem
limites nem negam desejos. Amor não é

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simplesmente dar; é dar criteriosamente e não dar criteriosamente também. É elogiar


criteriosamente e criticar criteriosamente. É discutir, lutar, confrontar, animar, empurrar e
puxar, para além de reconfortar, criteriosamente. E liderança. A palavra "criterioso" significa
que requer juízo, e o juízo requer mais do que o instinto; requer tomada de decisão ponderada
e muitas vezes dolorosa.

"Auto-Sacrifício"

SÃO MUITOS OS MOTIVOS por trás do dar sem critério e da educação destrutiva, mas esses
casos têm invariavelmente uma característica básica comum: o "dador", sob o disfarce do
amor, responde e vai de encontro às suas próprias necessidades sem atentar às necessidades
espirituais do que recebe. Um pastor protestante veio consultar-me, relutantemente, porque a
mulher sofria de depressão crónica e os dois filhos tinham deixado a universidade e estavam
em casa, sob cuidados psiquiátricos. Apesar do facto de a família inteira estar "doente",
inicialmente ele estava completamente incapaz de compreender que podia ter um papel nas
suas doenças. "Faço tudo o que posso para cuidar deles e dos seus problemas," relatava. "Não
há um único momento que eu passe acordado sem me preocupar com eles." A análise da
situação revelou que este homem de facto esforçava-se até à exaustão para obedecer aos
desejos da mulher e dos filhos. Tinha dado carros novos aos dois filhos e pago o respectivo
seguro, apesar de sentir que os rapazes se deviam esforçar mais por serem auto-suficientes.
Todas as semanas levava a mulher à ópera ou ao teatro, na cidade, apesar de detestar ir à
cidade e de a ópera o aborrecer de morte. Apesar de muito ocupado no seu cargo, passava a

121

maior parte do seu tempo livre em casa, a arrumar e limpar o que a mulher e os filhos
largavam, uma vez que eles não tinham a menor preocupação com a limpeza doméstica. "Você
não se cansa de se anular constantemente perante eles?" perguntei-lhe. "Claro," respondeu
ele, "mas o que hei-de fazer? Gosto deles e fico penalizado se não tomar conta deles.
Preocupo-me tanto com eles que não me permitirei nunca ficar a ver enquanto eles tiverem
necessidades a preencher. Posso não ser um homem brilhante, mas pelo menos tenho amor e
preocupação."

Foi interessante descobrir que o seu pai tinha sido um intelectual brilhante, de considerável
renome, mas também um alcoólico e um galanteador que não se preocupava nada com a
família e a negligenciava grosseiramente. Gradualmente, ajudei o meu doente a ver que, em
criança, tinha jurado ser tão diferente do pai quanto possível, ser tão compassivo e preocupado
quanto o pai era impiedoso e desligado. Algum tempo depois até conseguiu compreender
que tinha feito uma tremenda aposta em manter uma imagem de si próprio como carinhoso
e compassivo e que muito do seu comportamento, incluindo a sua carreira no sacerdócio, tinha
sido dedicado a promover essa imagem. O que ele não compreendeu com a mesma facilidade
foi o grau de "infantilização" a que reduzia a família. Referia-se continuamente à mulher como
"a minha gatinha" e aos filhos bem crescidos e atléticos "os meus miúdos". "Como é que hei-de
ter outro comportamento?" implorava. "Eu posso ser carinhoso em reacção ao meu pai, mas
isso não quer dizer que vá deixar de o ser e transformar-me num estupor." O que ele teve
literalmente que aprender foi que amar é uma actividade complicada e não simples, que exige
a participação de todo o seu ser - a cabeça tanto como o coração. Devido à sua necessidade de
ser tão diferente do pai quanto possível, não tinha sido capaz de desenvolver um sistema de
resposta flexível

122

para exprimir o seu amor. Teve que aprender que não dar na altura certa é mais compassivo
do que dar na altura errada e que fomentar a independência é mais uma manifestação de
amor do que cuidar de pessoas que podem perfeitamente tomar conta de si próprias. Teve
ainda que aprender que expressar as suas próprias necessidades, ira, ressentimentos e
expectativas era tão necessário para a saúde mental da sua família como o seu sacrifício e,
portanto, que o amor tem que ser manifestado tanto em confrontação como em aceitação
beatífica.

À medida que se foi apercebendo de como infantilizava a família, começou a efectuar


mudanças. Deixou de andar atrás de toda a gente a arrumar e limpar e zangava-se
abertamente quando os filhos não participavam no arranjo da casa. Recusou-se a continuar a
pagar os seguros dos carros dos filhos, dizendo-lhes que se queriam andar de carro tinham que
pagar eles. Sugeriu à mulher que passasse a ir sozinha à ópera em Nova Iorque. Ao efectuar
estas mudanças, teve de se arriscar a fazer o papel de "mau da fita" e prescindir da
omnipotência do seu papel anterior como responsável por todas as necessidades da família.
Mas apesar de o seu comportamento anterior ter sido motivado principalmente pela
necessidade de manter uma imagem de quem ama, tinha no íntimo a capacidade de amar
verdadeiramente, e foi devido a essa capacidade que conseguiu modificar-se. Tanto a mulher
como os filhos reagiram inicialmente com ira a estas mudanças. Mas em breve um dos filhos
voltou para a universidade e o outro arranjou um emprego melhor e um apartamento. A
mulher começou a apreciar a sua nova independência e a desenvolver-se de formas só suas. O
homem deu por si a tornar-se mais eficiente como pastor e, ao mesmo tempo, a vida tornou-se
mais agradável.

O amor mal orientado do pastor raiava a perversão mais grave do amor que é o masoquismo.
Os leigos tendem a asso-

123

ciar o sadismo e o masoquismo com a actividade puramente sexual, interpretando-os como o


prazer sexual derivado de infligir ou sofrer dor física. Na verdade, o verdadeiro sado-
masoquismo sexual é uma forma relativamente invulgar de psico-patologia. Muitíssimo mais
vulgar e, no limite, mais grave, é o fenómeno do sado-masoquismo social, em que as pessoas
desejam inconscientemente magoar e ser magoadas umas pelas outras através das suas
relações interpessoais não sexuais. Tipicamente, uma mulher irá procurar apoio psiquiátrico
por depressão ao ser abandonada pelo marido. Oferecerá ao psiquiatra uma interminável
história de repetidos maus tratos do marido: ele não lhe dava atenção, tinha amantes umas
atrás das outras, jogava com o dinheiro que devia ser gasto em alimentação, desaparecia dias a
fio sempre que lhe apetecia, chegava bêbado a casa e batia-lhe, e agora, por fim, abandonou-a
e às crianças na véspera de Natal - ainda por cima na véspera de Natal! O terapeuta neófito
tende a reagir em relação a esta "pobre mulher" e à sua história com imediata simpatia, mas
não tarda que a simpatia se evapore à medida que fica melhor esclarecido. Primeiro, o
terapeuta descobre que este padrão de maus tratos existe há vinte anos e que, embora a pobre
mulher se tenha divorciado do bruto do marido por duas vezes, voltou a casar com ele por
duas vezes, e que às inúmeras separações se seguiram inúmeras reconciliações. A seguir,
depois de trabalhar com ela durante um mês ou dois para a ajudar a ganhar independência,
quando tudo parece estar a correr bem e a mulher aparenta estar a apreciar a tranquilidade da
vida separada do marido, o terapeuta vê repetir o ciclo novamente desde o início. Um dia, a
mulher entra alegremente no consultório para anunciar, "Bem, o Henry voltou. Telefonou-me
uma noite destas a dizer que me queria ver, por isso encontrei-me com ele. Implorou-me que o
deixasse regressar e parece realmente mudado, portanto aceitei-o de volta." Quando o

124

terapeuta faz notar que parece ser a repetição de um padrão que tinham concordado ser
destrutivo, a mulher diz, "Mas eu amo-o. Não se pode negar o amor." Se o terapeuta tenta
analisar este "amor" com alguma energia, a doente deixa a terapia.

Que se passa aqui? Tentando entender o que aconteceu, o terapeuta recorda o óbvio deleite
com que a mulher tinha relatado a longa história de brutalidade e maus tratos do marido. De
repente, nasce-lhe uma ideia estranha; talvez esta mulher suporte os maus tratos do marido, e
até os procure, pelo mero prazer de falar sobre eles. Mas de que natureza seria esse prazer? O
terapeuta recorda o farisaísmo da mulher. Será que a coisa mais importante na vida da mulher
é ter um sentido de superioridade moral e que, para o poder manter, precisa de ser
maltratada? A natureza do padrão torna-se agora clara. Ao permitir ser maltratada, sente-se
superior. No limite, pode mesmo ter o prazer sádico de ver o marido implorar e pedir para
voltar e reconhecer momentaneamente a sua superioridade sobre a posição de humildade em
que ele se encontra, enquanto decide magnanimamente aceitá-lo de volta ou não. E nesse
momento, ela consegue a sua vingança. Quando se analisam estas mulheres, normalmente
descobre-se que foram particularmente humilhadas em crianças. Em consequência, procuram
a vingança através do seu sentido de superioridade moral, o que requer humilhação e maus
tratos repetidos. Se o mundo nos tratar bem, não temos necessidade de nos vingarmos dele.
Se a procura da vingança é o nosso objectivo de vida, temos que arranjar forma de o mundo
nos tratar mal para justificar o nosso objectivo. Os masoquistas encaram a sua submissão aos
maus tratos como amor, enquanto que, de facto, é uma necessidade na sua interminável
procura da vingança e é basicamente motivada pelo ódio.

A questão do masoquismo realça ainda outra das principais concepções erradas sobre o amor -
que é o auto-sacrifício.

125
Em virtude desta crença, a masoquista típica via a sua tolerância dos maus tratos como auto-
sacrifício e portanto como amor, e assim não tinha que reconhecer o seu ódio. O pastor
também via o seu comportamento sacrificado como amor, embora na verdade fosse motivado,
não pelas necessidades da sua família, mas pela sua própria necessidade de manter uma
determinada imagem. No início do tratamento, contava constantemente como "fazia coisas"
pela mulher e pelos filhos, levando-nos a crer que ele nada retirava desses actos em proveito
próprio. Mas retirava. Sempre que pensamos em nós a fazer algo por outra pessoa, estamos de
alguma forma a negar a nossa própria responsabilidade. O que quer que façamos, fazemo-lo
porque escolhemos fazê-lo, e fazemos essa escolha porque é a que mais nos satisfaz. O que
quer que façamos por outra pessoa, fazemo-lo porque preenche uma necessidade nossa. Os
pais que dizem aos filhos, "Devias estar agradecido por tudo o que temos feito por ti" são,
invariavelmente, pais a quem falta um grau significativo de amor. Qualquer pessoa que ame
genuinamente conhece o prazer de amar. Quando amamos genuinamente, fazemo-lo porque
queremos amar. Temos filhos porque queremos ter filhos, e se somos pais que amam, é porque
o queremos ser. É verdade que o amor envolve uma mudança do Eu, mas que é uma extensão
do Eu, mais do que um sacrifício. Como veremos mais tarde, o amor genuíno é uma actividade
auto-compensadora. De facto, é ainda mais; engrandece em vez de diminuir o Eu; preenche o
Eu, em vez de o esgotar. No sentido real, o amor é tão egoísta como o não-amor. Eis
novamente um paradoxo, em que o amor é egoísta e desprendido ao mesmo tempo. Não é o
egoísmo ou a ausência de egoísmo que distingue o amor do não-amor, é o objectivo da acção.
No caso do amor genuíno, o objectivo é sempre o desenvolvimento espiritual. No caso do não-
amor, o alvo é sempre outra coisa qualquer.

126

O Amor Não é um Sentimento

JÁ AFIRMEI QUE o AMOR é uma acção, uma actividade. Isto leva-nos à última das principais
concepções erradas que temos de abordar. O amor não é um sentimento. Muitas pessoas que
possuem um sentimento de amor, e que até agem em resposta a esse sentimento, actuam de
todas as formas destrutivas e de falta de amor. Por outro lado, um indivíduo que ama
genuinamente age com amor e de forma construtiva para com uma pessoa de quem
conscientemente não gosta, sem na verdade sentir amor pela pessoa nessa altura e talvez até
achando a pessoa de alguma maneira repugnante.

O sentimento do amor é a emoção que acompanha a experiência da catexia. A catexia, como


se devem lembrar, é o processo pelo qual um objecto se torna importante para nós. Uma vez
catectado, o objecto, vulgarmente designado por "objecto do amor", torna-se alvo da nossa
energia como se fizesse parte de nós, e esta relação entre nós e esse objecto chama-se catexia.
Uma vez que temos muitas dessas relações ao mesmo tempo, falamos das nossas catexias. O
processo de retirada da nossa energia de um objecto de amor de modo a que ele perca a sua
importância para nós é chamado de descatexia. O conceito errado de que o amor é um
sentimento existe porque confundimos catexia com amor. Esta confusão é compreensível
porque são processos semelhantes, mas têm também diferenças notáveis. Em primeiro lugar,
como foi já referido, podemos catectar qualquer objecto, animado ou inanimado, com ou sem
espírito. Assim, uma pessoa pode catectar o mercado de acções ou uma jóia e pode sentir
amor por essas coisas. Segundo, o facto de termos catectado outro ser

127

humano não significa que nos importemos com o desenvolvimento espiritual dessa pessoa. A
pessoa dependente, de facto, normalmente receia o desenvolvimento espiritual de um cônjuge
catectado. A mãe que teimava em levar o filho adolescente à escola catectava claramente o
rapaz; ele era importante para ela - mas o seu desenvolvimento espiritual não. Terceiro, a
intensidade das nossas catexias muitas vezes nada tem a ver com sabedoria ou empenho. Dois
estranhos podem encontrar-se num bar e catectar-se um ao outro de tal forma que nada - nem
compromissos anteriormente marcados, promessas feitas nem a estabilidade familiar - é mais
importante naquele momento que a sua consumação sexual. Por último, as nossas catexias
podem ser passageiras e momentâneas. Imediatamente a seguir à consumação sexual, cada
um dos membros do casal atrás referido pode achar o outro pouco atraente e indesejável.
Podemos descatectar algo quase imediatamente a seguir a o catectarmos.

O amor genuíno, por outro lado, implica empenhamento e o exercício da sabedoria. Quando
nos preocupamos com o desenvolvimento espiritual de alguém, sabemos que a falta de
empenho poderá ser nociva e que o compromisso com essa pessoa é provavelmente
necessário para mostrarmos efectivamente a nossa preocupação. É por essa razão que o
compromisso é a pedra de base da relação psicoterapêutica. É quase impossível o doente
alcançar um desenvolvimento significativo da sua personalidade sem uma "aliança terapêutica"
com o terapeuta. Por outras palavras, antes de o doente se poder arriscar a uma mudança
radical, tem que sentir a força e a segurança que advêm de acreditar que o terapeuta é o aliado
permanente e estável do doente. Para que esta aliança se concretize, o terapeuta tem que
demonstrar ao doente, normalmente no decurso de um período considerável, a preocupação
sólida e consistente que só pode provir da capacidade de
128

assumir compromissos. Não quer isto dizer que apeteça sempre ao terapeuta ouvir o doente. O
compromisso significa que o terapeuta ouve o doente, quer goste quer não. O casamento não
é diferente. Num casamento construtivo, tal como na terapia construtiva, os parceiros têm de
dar atenção um ao outro e à sua relação, regular e previsivelmente, como rotina,
independentemente de como se sentem. Como referi, os casais deixam, mais cedo ou mais
tarde, de estar apaixonados, e é no momento em que o instinto de acasalamento terminou o
seu percurso que se inicia a oportunidade do amor genuíno. É quando os esposos já não
precisam de estar sempre na companhia um do outro, quando preferem estar noutro sítio por
algum tempo, que o amor começa a ser testado e se verificará se está presente ou ausente.

Não significa isto que os parceiros de uma relação estável e construtiva, tal como a psicoterapia
intensiva ou um casamento, não se catectam um ao outro e à relação de formas diversas; isso
acontece. O que quer dizer é que o amor verdadeiro transcende a questão das catexias.
Quando o amor existe, existe com ou sem catexia e com ou sem o sentimento de amar. É mais
fácil - na verdade, é divertido - amar com catexia e o sentimento do amor. Mas é possível amar
sem catexia e sem o sentimento de amor, e é na concretização desta possibilidade que o amor
genuíno e transcendente se distingue da simples catexia. A palavra chave nesta distinção é
"vontade". Defini o amor como a vontade de extensão de si próprio com o propósito de
acalentar o seu desenvolvimento espiritual e o do outro. O amor genuíno é mais voluntário do
que emocional. A pessoa que ama verdadeiramente, fá-lo porque tomou a decisão de amar.
Essa pessoa assumiu o compromisso de amar, quer o sentimento de amor esteja ou não
presente. Se estiver, tanto melhor; mas se não estiver, o empenhamento no amor, a decisão de
amar, mantêm-se e são exercidos da mesma

129

forma. Por outro lado, não só é possível como necessário que uma pessoa que ama evite agir
com base em sentimentos de amor. Posso encontrar uma mulher por quem me sinta
fortemente atraído, a quem me apetece amar, mas porque seria destrutivo para o meu
casamento ter uma ligação nessa altura, direi alto ou no silêncio do meu coração, "Apetece-me
amar-te, mas não o vou fazer." Da mesma forma, posso recusar-me a aceitar uma nova doente
extremamente atraente e com boas probabilidades de obter bons resultados com a terapia,
porque o meu tempo está já comprometido com outros doentes, alguns dos quais poderão ser
menos atraentes e mais difíceis. Os meus sentimentos de amor podem não ter limites, mas a
minha capacidade de amar tem. Portanto, tenho que escolher a pessoa em quem vou
concentrar a minha capacidade de amar, a quem a minha vontade de amar será dirigida. O
verdadeiro amor não é um sentimento pelo qual sejamos ultrapassados. É uma decisão
empenhada e ponderada.

A vulgar tendência para confundir o amor com o sentimento de amor permite às pessoas todas
as formas de se enganarem a si próprias. Um alcoólico, cuja mulher e filhos podem precisar
desesperadamente da sua atenção naquele preciso momento, é capaz de estar sentado num
bar, com os olhos cheios de lágrimas, a dizer ao empregado do bar, "Eu amo mesmo a minha
família." Há pessoas que negligenciam os filhos das maneiras menos aceitáveis e que se
consideram os mais afectuosos dos pais. Está claro que pode existir uma forma de proveito
próprio nesta tendência para confundir o amor com o sentimento do amor; é fácil e nada
desagradável encontrar provas de amor nos sentimentos de cada um. Pode ser difícil e
doloroso procurar provas de amor nas acções de cada um. Mas, porque o verdadeiro amor é
um acto de vontade que transcende muitas vezes sentimentos de amor efémeros ou catexia, é
correcto dizer, "O amor é como o amor age."

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O amor e o não-amor, como o Bem e o Mal, são fenómenos objectivos e não puramente
subjectivos.

O Trabalho de Atenção

DEPOIS DE TERMOS ANALISADO algumas das coisas que o amor não é, vamos examinar
algumas que são amor. Referiu-se, na introdução desta secção do livro, que a definição do
amor implica esforço. Quando nos esforçamos, quando damos mais um passo ou andamos
mais um quilómetro, fazemo-lo em oposição à inércia da preguiça ou à resistência do medo. Ao
nosso esforço ou acção contra a inércia da preguiça, chamamos trabalho. À acção face ao
medo, chamamos coragem. O amor, então, é uma forma de trabalho ou uma forma de
coragem. Especificamente, é o trabalho ou a coragem orientados para acalentar o nosso
desenvolvimento espiritual ou o de outro. Podemos trabalhar ou mostrar coragem sem ser
dirigida ao desenvolvimento espiritual e, por isso, nem todo o trabalho e nem toda a coragem
são amor. Mas porque exige o nosso esforço, o amor é sempre ou trabalho ou coragem. Se um
acto não for de trabalho ou de coragem, então não é um acto de amor. Não há excepções.
A principal forma assumida pelo trabalho do amor é a atenção. Quando amamos alguém,
damos-lhe a nossa atenção; estamos atentos ao desenvolvimento dessa pessoa. Quando nos
amamos a nós próprios, estamos atentos ao nosso próprio desenvolvimento. Quando damos
atenção a alguém, estamos a preocuparmo-nos com essa pessoa. O acto de dar atenção exige
que façamos o esforço de pôr de lado as nossas preocupações existentes (como foi descrito em
relação à disciplina

131

dos parênteses) e mudemos activamente a nossa consciência. A atenção é um acto de vontade,


de trabalho contra a inércia da nossa própria mente. Como diz Rollo May, "Quando analisamos
a vontade com todas as ferramentas que a psicanálise moderna põe ao nosso dispor,
encontramo-nos de novo ao nível da atenção ou intenção como a sede da vontade. O esforço
devotado ao exercício da vontade é de facto um esforço de atenção; o esforço de querer é o de
manter a clareza de consciência, ou seja, de manter a concentração da atenção."*

A forma mais vulgar e mais importante de exercermos a nossa atenção é, de longe, ouvindo.
Passamos uma enorme quantidade de tempo a ouvir, a maior parte da qual desperdiçamos,
porque, de uma maneira geral, a maior parte de nós ouve muito mal. Um psicólogo industrial
chamou-me uma vez a atenção para o facto de a quantidade de tempo que dedicamos a
ensinar certas matérias às crianças nas escolas ser inversamente proporcional à frequência
com que as crianças farão uso da matéria quando crescerem. Assim, um gestor de negócios
passa mais ou menos uma hora do dia a ler, duas a falar e oito a ouvir. No entanto, na escola,
passamos uma grande parte do tempo a ensinar as crianças a ler, uma pequena parte a ensiná-
las a falar e normalmente nenhum tempo a ensiná-las a ouvir. Não creio que seja bom
tornarmos o que ensinamos na escola exactamente proporcional ao que fazemos depois da
escola, mas penso que seria sensato darmos alguma instrução às crianças quanto ao processo
de ouvir - não para que ouvir se torne fácil, mas para que elas entendam como é difícil ouvir
bem. Ouvir bem é um exercício de atenção e, necessariamente, de trabalho árduo. É por não
compreenderem isso ou porque não têm vontade de ter o trabalho que a maior parte das
pessoas não ouve bem.

(Nota)

* Love and Will (Nova Iorque: Delta Books, Dell Pub., 1969), p. 220.

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Não há muito tempo, assisti a uma conferência de um homem famoso sobre um aspecto da
relação entre a Psicologia e a religião, pelo qual me interesso desde há muito tempo. Devido ao
meu interesse, tinha um certo número de conhecimentos sobre o assunto e reconheci
imediatamente o conferencista como um grande sábio. Também senti amor no esforço
tremendo que ele fazia em comunicar, com todo o tipo de exemplos, conceitos extremamente
abstractos que eram difíceis de entender para nós, a sua audiência. Por isso, ouvi-o com toda a
atenção de que era capaz. Durante a hora e meia em que ele falou, o suor caía-me literalmente
pela cara abaixo, num auditório com ar condicionado. Quando ele terminou, eu tinha uma
terrível dor de cabeça, os músculos do pescoço rígidos do esforço de concentração e sentia-me
completamente vazio e esgotado. Embora calculasse ter percebido não mais de cinquenta por
cento do que aquele grande homem nos tinha dito naquela tarde, fiquei espantado pelo
elevado número de esclarecimentos brilhantes que me tinha dado. A seguir à conferência, a
que assistiram muitos indivíduos amantes da cultura, vagueei entre a assistência durante um
intervalo para café, ouvindo os comentários. Duma forma geral, estavam desiludidos.
Conhecendo a sua reputação, esperavam mais. Não era um orador tão competente como
esperavam ouvir. Uma mulher proclamava, perante acenos de concordância, "Ele, na verdade,
não nos disse nada."

Ao contrário dos outros, eu pude ouvir muito do que este grande homem disse, precisamente
porque quis ter o trabalho de o ouvir. Estava disposto a ter esse trabalho por duas razões: uma,
porque reconhecia a sua grandeza e que o que ele tinha para dizer teria provavelmente grande
valor; segundo, porque, dado o meu interesse na área, queria absorver profundamente o que
ele tinha a dizer de forma a incrementar o meu entendimento e o meu desenvolvimento
pessoal. Ouvi-lo foi para mim

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um acto de amor. Amei-o porque compreendi que era uma pessoa de grande valor, a quem
valia a pena dar atenção e amei-me a mim mesmo porque estava disposto a trabalhar em prol
do meu desenvolvimento. Sendo ele o professor e eu o aluno, ele o dador e eu o receptor, o
meu amor era principalmente dirigido a mim próprio, motivado pelo que eu podia retirar da
nossa relação e não pelo que eu lhe podia dar a ele. Em todo o caso, é inteiramente possível
que ele sentisse no meio da audiência a intensidade da minha concentração, a minha atenção,
o meu amor, e sentir-se por isso recompensado. O amor, como veremos uma e outra vez, é
invariavelmente uma rua de dois sentidos, um fenómeno recíproco pelo qual o receptor
também dá e o dador também recebe.

Depois deste exemplo de ouvir no papel do receptor, vamos prosseguir com a nossa
oportunidade mais comum de ouvir no papel do dador: ouvir as crianças. O processo de ouvir
as crianças difere conforme a idade da criança. Para já, vamos considerar uma criança de seis
anos, na primeira classe. Se tiver oportunidade, uma criança da primeira classe fala quase
incessantemente. Como podem os pais reagir a esta tagarelice sem fim? Talvez a maneira mais
fácil seja proibi-la. Quer acreditem quer não, há famílias em que quase não é permitido às
crianças falar, onde o ditado "As crianças são para ser vistas e não ouvidas" se aplica vinte e
quatro horas por dia. Vêem-se essas crianças, sem nunca intervirem, olhando silenciosamente
os adultos dum canto, espectadores mudos nas sombras. Uma segunda forma é permitir a
tagarelice, mas simplesmente não a escutar, de maneira que o seu filho não interage consigo, e
fala literalmente para o boneco ou para si próprio, criando um ruído de fundo que pode ou não
ser incómodo. A terceira forma é fingir que o ouve, continuando com o que estiver a fazer ou a
pensar da melhor maneira possível, aparentando prestar atenção ao seu filho, fazendo ruídos
ocasionais como

134

"ha, ha" ou "isso é bom", em alturas mais ou menos apropriadas, em resposta ao monólogo. A
quarta forma é a escuta selectiva, uma forma particularmente atenta de fingir ouvir, em que os
pais espevitam as orelhas quando o filho parece estar a falar de alguma coisa com significado,
esperançados em separar o trigo do joio com o mínimo de esforço. O problema com esta forma
é que a capacidade da mente humana para filtrar selectivamente não é assim tão competente
ou eficiente, com o resultado de que retém uma quantidade apreciável de joio e perde uma
grande parte do trigo. A quinta e última forma, claro, é ouvir mesmo a criança, dando-lhe toda
a sua atenção, pesando cada palavra e compreendendo cada frase.

Estas cinco maneiras de reagir à conversa dos filhos foram apresentadas numa ordem de
esforço crescente, em que a quinta forma, ouvir verdadeiramente, exige do pai ou da mãe uma
grande quantidade de energia, comparada com as outras que requerem menos esforço. O
leitor pode supor ingenuamente que eu recomendo aos pais que sigam sempre a quinta forma
e ouçam sempre verdadeiramente os filhos. Nem por isso! Antes de mais, a propensão das
crianças de seis anos para falar é tão grande, que um pai que ouvisse sempre verdadeiramente
não teria quase tempo nenhum para fazer outra coisa. Por último, seria incrivelmente
aborrecido porque, de facto, a tagarelice de uma criança de seis anos é geralmente aborrecida.
O que é portanto necessário é o equilíbrio destas cinco formas. Por vezes, é preciso dizer às
crianças simplesmente que se calem - por exemplo, quando a sua conversa nos distrai em
situações em que a nossa atenção é crítica, ou quando representa uma interrupção grosseira
de outras pessoas e uma tentativa de conseguir um domínio hostil e irrealista. As crianças de
seis anos falam muitas vezes pela pura alegria de tagarelar, e nada se ganha em lhes dar
atenção

135
quando nem sequer a solicitam e estão obviamente felizes a falar sozinhas. Há outras alturas
em que as crianças não se satisfazem em falar sozinhas e querem interagir com os pais, e
mesmo assim essa necessidade pode ser preenchida eficazmente com a pretensão de ouvir.
Nessas alturas, o que as crianças querem da interacção não é comunicação, mas simplesmente
proximidade, e fingir que os ouvimos é suficiente para lhes dar a sensação de "estar com" que
elas pretendem. Além disso, as próprias crianças gostam muitas vezes de divagar e
compreendem a escuta selectiva dos pais, uma vez que também comunicam selectivamente.
Compreendem que esta é a regra do jogo. É, portanto, durante uma proporção relativamente
pequena do seu tempo de conversa que as crianças de seis anos precisam ou desejam ser
verdadeira e totalmente ouvidas. Uma das muitas tarefas extremamente complexas dos pais é
serem capazes de conseguir um equilíbrio próximo do ideal dos estilos de ouvir e não ouvir,
correspondendo com o estilo adequado às necessidades variáveis da criança.

Este equilíbrio nem sempre é conseguido porque, muito embora a duração possa não ser
prolongada, muitos pais não estão dispostos ou são incapazes de gastar a energia necessária
para ouvir verdadeiramente. Talvez a maior parte dos pais. Podem pensar que estão mesmo a
ouvir quando o que fazem é fingir que ouvem ou, na melhor das hipóteses, ouvir
selectivamente, mas estão a enganar-se a si próprios, escondendo a sua própria preguiça.
Porque ouvir verdadeiramente, mesmo por breves momentos, exige um esforço tremendo. Em
primeiro lugar, exige concentração total. Não se pode escutar verdadeiramente alguém e estar
a fazer outra coisa ao mesmo tempo. Se um dos pais quer ouvir verdadeiramente o filho, tem
que pôr tudo o resto de lado. O tempo de ouvir verdadeiramente deve ser dedicado
unicamente à criança; deve ser o tempo da criança. Se não se estiver disposto a pôr de lado
tudo, inclu-

136

indo aborrecimentos e preocupações pessoais, durante esse tempo, então não se está
disposto a ouvir verdadeiramente. Segundo, o esforço necessário para concentração total nas
palavras de uma criança de seis anos é consideravelmente maior do que o exigido para ouvir
um grande orador. Os padrões de discurso da criança são irregulares - torrentes de palavras
ocasionais, interrompidas por pausas e repetições o que torna difícil a concentração. Depois, a
criança normalmente fala de assuntos que não têm nenhum interesse inerente para o adulto,
enquanto que a audiência do grande orador está especificamente interessada no tópico do seu
discurso. Por outras palavras, é desinteressante escutar uma criança de seis anos, o que torna
duplamente difícil manter focada a concentração. Em consequência, ouvir verdadeiramente
uma criança desta idade é um trabalho de amor real. Sem amor para motivar o pai ou a mãe,
não poderia ser feito.
Mas maçar-se para quê? Para quê todo este esforço de se concentrar inteiramente na
tagarelice maçadora de uma criança de seis anos? Primeiro, a sua disposição para o fazer é a
melhor prova concreta de estima que pode conceder ao seu filho. Se der ao seu filho a mesma
estima que concederia a um grande orador, a criança perceberá que lhe é atribuído valor e
sentir-se-á valiosa. Não há melhor forma nem, por último, outra forma de ensinar aos filhos
que são pessoas de valor, do que dando-lhes valor. Segundo, quanto mais valiosas se sentem as
crianças, mais começam a dizer coisas de valor. Corresponderão às suas expectativas. Terceiro,
quanto mais ouvir o seu filho, melhor entenderá que, no meio das pausas, dos gaguejes, da
tagarelice aparentemente inocente, o seu filho tem de facto coisas valiosas para dizer. O ditado
que diz que a verdade sai "da boca das crianças" é reconhecido como um facto absoluto por
quem quer que ouça verdadeiramente as crianças. Ouça bastante o seu filho e compreenderá
que ele é um indivíduo

137

extraordinário. E quanto mais extraordinário achar o seu filho, mais estará disposto a ouvi-lo. E
mais aprenderá. Quarto, quanto mais souber sobre o seu filho, mais poderá ensinar. Se souber
pouco sobre os seus filhos, normalmente ensinar-lhes-á coisas que ainda não estão prontos
para aprender, ou que já sabem e se calhar entendem melhor do que você. Por último, quanto
mais as crianças sabem que lhes dá valor, que as considera pessoas extraordinárias, mais
dispostas estarão a ouvi-lo a si e a conceder-lhe a mesma estima. E quanto mais adequados os
seus ensinamentos, baseados no seu conhecimento dos seus filhos, mais ansiosos eles ficarão
por aprenderem consigo. E quanto mais aprenderem, mais extraordinários se tornarão. Se o
leitor se apercebe do carácter cíclico deste processo, tem toda a razão e está a apreciar a
verdade da reciprocidade do amor. Em vez de um ciclo vicioso descendente, é um ciclo criativo
ascendente de evolução e desenvolvimento. O valor cria valor. O amor gera amor. Pais e filhos,
em conjunto, rodopiam em frente, cada vez mais depressa, na pás de deux do amor.

Temos estado a considerar o caso de uma criança de seis anos. Com crianças mais novas ou
mais velhas o equilíbrio adequado de ouvir e não ouvir difere, mas o processo é basicamente o
mesmo. Com as crianças mais novas a comunicação é cada vez mais não-verbal mas também
exige idealmente períodos de total concentração. Não se pode jogar muito bem às cantigas de
roda quando se tem a cabeça noutro lado. E se só se joga às cantigas de roda
indiferentemente, corre-se o risco de ter um filho indiferente. Os adolescentes requerem
menos tempo de escuta total dos pais do que uma criança de seis anos, mas muito mais em
termos de ouvir verdadeiramente. É muito menos provável que falem incessantemente, mas
quando falam, querem toda a atenção dos pais, ainda mais do que as crianças mais novas.

138
A necessidade de que os nossos pais nos escutem nunca passa com a idade. Um profissional
liberal de talento, de trinta anos, em tratamento por ansiedade relacionada com falta de auto-
estima, lembrava-se de numerosas ocasiões em que os pais, também profissionais liberais, não
tinham querido ouvir o que ele tinha para dizer ou tinham-no considerado sem valor e
inconsequente. Mas, de todas essas memórias, a mais vívida e dolorosa era de quando, aos
vinte e dois anos, tinha escrito uma extensa e provocadora tese que lhe concedeu o diploma
universitário com honra. Sendo ambiciosos em relação a ele, os pais ficaram absolutamente
deliciados com as honras que recebeu. No entanto, apesar de ter deixado uma cópia da tese
bem à vista na sala-de-estar da família e de sugerir frequentemente aos pais que "talvez
gostassem de lhe dar uma vista de olhos", nenhum deles se deu ao trabalho de a ler. "Atrever-
me-ia a dizer que a teriam lido," disse ele, perto do fim do tratamento, "diria que até me
teriam elogiado sobre ela se eu tivesse ido ter com eles e lhes pedisse assim mesmo 'Por favor,
importam-se de ler a minha tese? Quero que conheçam e apreciem as coisas que eu penso'.
Mas isso teria sido implorar-lhes que me ouvissem, e eu, aos vinte e dois anos, não estava para
lhes andar a implorar atenção. Ter que implorar não me teria feito sentir ter mais valor."

Ouvir verdadeiramente, ter total concentração no outro, é sempre uma manifestação de amor.
Uma parte essencial de ouvir verdadeiramente é a disciplina dos parênteses, prescindir
temporariamente ou pôr de lado os nossos preconceitos, quadros de referência e desejos, por
forma a entrar tanto quanto possível no interior do mundo do orador, pondo-nos no seu lugar.
Esta unificação do orador e do ouvinte é, na verdade, uma extensão e um engrandecimento do
Eu, e traz sempre consigo novos conhecimentos. Para além disso, como ouvir verdadeiramente
implica os parênteses, um pôr de lado do Eu,

139

também envolve temporariamente uma total aceitação do outro. Ao sentir esta aceitação, o
orador sentir-se-á menos vulnerável e cada vez mais inclinado a abrir ao ouvinte os recantos
mais íntimos da sua mente. À medida que isto vai acontecendo, o orador e o ouvinte começam
a apreciar-se cada vez mais um ao outro, iniciando-se de novo o dueto de dança do amor. A
energia exigida pela disciplina dos parênteses e a focagem de total atenção é tão grande que só
pode ser conseguida por amor, pela vontade de se prolongar pelo desenvolvimento mútuo. A
maior parte do tempo, falta-nos essa energia. Mesmo que achemos, nas nossas relações
profissionais ou sociais, que estamos a ouvir com muita atenção, o que fazemos normalmente
é ouvir selectivamente, com uma agenda pré-estabelecida em mente, pensando enquanto
ouvimos como poderemos obter determinados resultados pretendidos e acabar com a
conversa o mais depressa possível ou reorientá-la de formas para nós mais satisfatórias.
Dado que o ouvir verdadeiramente é o amor em acção, não existe para ele lugar mais
adequado do que no casamento. No entanto, a maior parte dos casais não se ouvem
verdadeiramente um ao outro. Consequentemente, quando casais nos procuram para
aconselhamento ou terapia, uma das tarefas principais que nos incumbem para que o processo
seja bem sucedido é ensiná-los a ouvir. Não é pouco frequente falharmos, já que a energia e a
disciplina envolvidas são mais do que as que estão dispostos a gastar ou a submeter-se. Há
casais que ficam surpreendidos, e até horrorizados, quando sugerimos que, entre as coisas que
devem fazer, é conversar um com o outro por marcação. Parece-lhes rígido, sem romantismo e
sem espontaneidade. No entanto, ouvir verdadeiramente só pode acontecer quando se reserva
tempo para o fazer e se criam condições de suporte. Não acontece quando as pessoas estão a
conduzir, a cozinhar, cansadas, ansiosas por dormir, ou podem

140

ser facilmente interrompidas, ou estão com pressa. O "amor" romântico não exige esforço e os
casais sentem-se frequentemente relutantes em empreender o esforço e a disciplina do amor e
do ouvir verdadeiros. Mas quando e se o fazem, os resultados são enormemente gratificantes.
Temos a experiência, vezes sem conta, de ouvir um membro do casal dizer ao outro, com
verdadeira alegria, depois de iniciado o processo de ouvir verdadeiramente, "Estamos casados
há vinte e nove anos e nunca soube isso a teu respeito antes." Quando isso acontece, sabemos
que começou o desenvolvimento no casamento.

Embora seja verdade que a nossa capacidade de ouvir verdadeiramente melhora gradualmente
com a prática, nunca se torna um processo sem esforço. O principal requisito de um bom
psiquiatra talvez seja a capacidade de ouvir verdadeiramente. No entanto, uma meia dúzia de
vezes durante a "hora de cinquenta minutos" média, dou por mim a não ouvir
verdadeiramente o que o meu doente está a dizer. Às vezes, perco inteiramente o fio às
associações do doente e tenho então que dizer, "Desculpe, mas deixei-me levar pelos
pensamentos por um momento e não estava verdadeiramente a ouvi-lo. Importa-se de repetir
as últimas frases?" É interessante constatar que os doentes, normalmente, não ficam
ressentidos quando isso acontece. Pelo contrário, parecem compreender intuitivamente que
um elemento vital da capacidade de escutar verdadeiramente é estar alerta quanto aos
momentos em que não se está a ouvir verdadeiramente, e o meu reconhecimento de ter
desviado a minha atenção tranquiliza-os em como, a maior parte do tempo, estou a ouvi-los
verdadeiramente. Este conhecimento de que se está a ser verdadeiramente ouvido é muitas
vezes, só por si, notavelmente terapêutico. Em cerca de um quarto dos nossos casos, quer os
doentes sejam adultos ou crianças, surgem melhorias consideráveis e até dramáticas nos
primeiros meses de psicoterapia, antes de as raízes dos problemas terem

141
sido expostas ou de se fazerem interpretações significativas. Existem diversas razões para este
fenómeno, mas a principal delas, creio eu, é a sensação do paciente estar a ser
verdadeiramente escutado, frequentemente pela primeira vez em anos, ou talvez pela primeira
vez na vida.

Sendo o ouvir, de longe, a forma de atenção mais importante, são necessárias outras formas na
maior parte das relações de amor, especialmente com crianças. A variedade dessas formas
possíveis é grande. Uma é brincar com jogos. Com o bebé serão as cantigas de roda ou cucu;
com a criança de seis anos serão truques de magia ou às escondidas; com a de doze, será
badminton e jogos de cartas; e por aí adiante. Ler para as crianças mais novas é atenção, assim
como ajudar as mais velhas com os trabalhos de casa. As actividades em família são
importantes: cinema, piqueniques, passeios de automóvel, viagens, feiras, parques de
diversões. Algumas formas de atenção são puros serviços à criança: sentar-se na praia com
uma criança de quatro anos ou servir quase interminavelmente de motorista aos adolescentes
mais novos. Mas o que todas estas formas de atenção têm em comum - e têm em comum
também com o ouvir - é que envolvem tempo passado com a criança. Basicamente, dar
atenção é passar tempo com, e a qualidade da atenção é proporcional à intensidade da
concentração durante esse tempo. O tempo passado com os filhos nessas actividades, se for
bem utilizado, dá aos pais oportunidades sem conta de observarem os filhos e ficarem a
conhecêlos melhor. Se os filhos são bons ou maus perdedores, como fazem os trabalhos de
casa e como estudam, o que os atrai ou não, quando são corajosos e quando se assustam
nessas actividades - são peças vitais de informação para os pais que amam. Este tempo
passado em actividade com os filhos também dá aos pais inúmeras oportunidades de lhes
ensinar as técnicas e os princípios básicos da disciplina. A utilidade da

142

actividade para observar e ensinar a criança é, evidentemente, o princípio básico da terapia a


brincar, e os terapeutas infantis experientes tornam-se extremamente adeptos em utilizar o
tempo passado com os pacientes infantis na brincadeira, para fazer observações e intervenções
terapêuticas significativas.

Tomar conta de uma criança de quatro anos na praia, concentrar-se numa história
desconjuntada e interminável contada por uma criança de seis anos, ensinar um adolescente a
guiar, ouvir verdadeiramente a história do marido ou da mulher sobre o dia passado no
escritório ou na lavandaria, e compreender os seus problemas por dentro, tentando ser tão
paciente e "fazer parênteses" quanto possível - todas estas tarefas são muitas vezes
aborrecidas, frequentemente inconvenientes e implicam sempre dispêndio de energia;
significam trabalho. Se fossemos mais preguiçosos, nem sequer as faríamos. Se fossemos
menos preguiçosos, faríamo-las mais vezes e melhor. Uma vez que o amor é trabalho, a
essência do não-amor é preguiça. A questão da preguiça é extremamente importante. É um
tema escondido que percorre a primeira secção sobre disciplina e esta sobre o amor. Iremos
focá-la especificamente na secção final, quando tivermos uma perspectiva mais clara.

O Risco da Perda

O ACTO DE AMOR - a expansão do Eu - como referi, requer a iniciativa contra a inércia da


preguiça (trabalho) ou a resistência gerada pelo medo (coragem). Vamos passar agora do
trabalho do amor para a coragem do amor. Quando nos expandimos, o nosso Eu entra num
território novo e não familiar, por assim dizer. O nosso Eu torna-se novo e diferente. Fazemos
coisas a que não estamos habituados. Mudamos. A experiência

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da mudança, de actividade não habitual, de estar em território estranho, de fazer as coisas de


modo diferente, é assustadora. Sempre foi e sempre será. As pessoas gerem o seu medo da
mudança de formas diferentes, mas o medo é inevitável se de facto vão mudar. A coragem não
é a ausência de medo; é a tomada de acção apesar do medo, a iniciativa contra a resistência
gerada pelo medo do desconhecido e do futuro. A determinado nível, o desenvolvimento
espiritual, e portanto o amor, requer sempre coragem e envolve risco. É o risco do amor que
vamos agora abordar.

Se frequenta regularmente a igreja, pode ter reparado numa mulher, no fim da casa dos
quarenta que, todos os Domingos, exactamente cinco minutos antes do início da missa, ocupa
discretamente o mesmo lugar numa fila lateral, ao fundo da igreja. No momento em que
termina a missa, dirige-se rápida e silenciosamente para a porta e desaparece antes de
qualquer outro paroquiano e antes do padre vir até à escadaria encontrar-se com o seu
rebanho. Se conseguisse abordá-la - o que seria improvável - e convidá-la para o convívio que
se segue à missa, ela agradecer-lhe-ia polidamente, desviando nervosamente o olhar e dir-lhe-
ia que tinha um compromisso urgente, afastando-se rapidamente em seguida. Se a seguisse até
ao compromisso urgente, verificaria que regressava directamente para casa, um pequeno
apartamento em que as persianas estão sempre descidas, abria a porta, entrava, trancava
imediatamente a porta e ninguém a tornaria a ver nesse Domingo. Se pudesse mante-la em
observação, veria que tem um lugar de dactilógrafa das menos qualificadas num grande
escritório, onde aceita os trabalhos que lhe são entregues, em silêncio, os dactilografa
impecavelmente e devolve o trabalho pronto sem comentários. Almoça à secretária e não tem
amigos. Vai a pé para casa, pára sempre no mesmo supermercado impessoal para comprar
algumas provisões antes de desaparecer atrás da

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porta de casa para reaparecer para o dia de trabalho que se segue. Aos Sábados de tarde vai
sozinha a um cinema local que muda de filme todas as semanas. Tem um aparelho de
televisão. Não tem telefone. Quase nunca recebe correio. Se pudesse comunicar com ela de
alguma maneira e comentar que a vida dela parecia solitária, ela dir-lhe-ia que apreciava
bastante essa solidão. Se lhe perguntasse se não tinha animais de estimação, dir-lhe-ia que
tinha tido um cão de que gostava muito, mas que tinha morrido há oito anos e nenhum cão
podia substituí-lo.

Quem é esta mulher? Não sabemos os segredos do seu coração. O que sabemos é que toda a
sua vida é dedicada a evitar riscos e que, nessa diligência, em vez de expandir o seu Eu,
estreitou-o e diminuiu-o quase até ao ponto da inexistência. Não catecta com nenhum outro
ser vivo. Ora, já referimos que a simples catexia não é amor, que o amor transcende a catexia.
Isto é verdade, mas o amor requer catexia para um começo. Só podemos amar o que, duma ou
doutra maneira, tem importância para nós. Mas com a catexia existe sempre o risco de perda
ou rejeição. Se tomar a iniciativa em relação a outro ser humano, há sempre o risco dessa
pessoa se afastar de si, deixando-o mais dolorosamente só do que estava antes. Ame qualquer
coisa viva - uma pessoa, um animal de estimação, uma planta - e ela morrerá. Confie em
alguém e poderá magoar-se; dependa de alguém e esse alguém pode decepcioná-lo. O preço
da catexia é a dor. Se alguém estiver determinado a não sentir dor, terá de passar sem muitas
coisas: ter filhos, casar-se, o êxtase do sexo, a esperança da ambição, a amizade

- tudo o que torna a vida viva, preenchida e com significado. Tome iniciativas ou desenvolva-se
em qualquer dimensão e a dor, assim como a alegria, serão a sua recompensa. Uma vida
preenchida será cheia de dor. Mas a única alternativa é não viver completamente ou nem viver.

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A essência da vida é a mudança, uma panóplia de desenvolvimento e decadência. Eleja-se a


vida e o desenvolvimento, e eleger-se-á a mudança e a perspectiva da morte. Uma das
determinantes prováveis da vida restrita e isolada da mulher descrita terá sido uma experiência
ou série de experiências ligadas à morte, que ela achou tão dolorosas que decidiu nunca mais
sofrer com a morte, mesmo à custa da vida. Ao evitar a experiência da morte, tinha que evitar
o desenvolvimento e a mudança. Escolheu uma vida sem variações, livre do novo, do
inesperado, uma morte viva, sem riscos nem desafios. Referi que a tentativa de evitar o
sofrimento legítimo se encontra na base de todas as doenças emocionais. Não é
surpreendente que a maior parte dos doentes de psicoterapia (e provavelmente a maior parte
dos não-doentes, já que a neurose constitui mais a norma do que a excepção) tenham
problemas, sejam novos ou velhos, em enfrentar a realidade da morte corajosa e claramente.
O que é surpreendente é que a literatura psiquiátrica só agora comece a analisar o significado
deste fenómeno. Se podemos viver com o conhecimento de que a morte é nossa companheira
constante, viajando sobre o nosso "ombro esquerdo", então a morte pode tornar-se, nas
palavras de Don Juan, a nossa "aliada", ainda aterradora mas continuamente uma fonte de
sábio conselho*. Com o aconselhamento da morte, a constante consciência do limite do nosso
tempo para viver e amar, podemos sempre ser orientados para utilizar o melhor possível o
tempo e viver a vida ao máximo. Mas se não estivermos dispostos a enfrentar decididamente a
terrível presença da morte no nosso ombro esquerdo, privamo-nos do seu conselho e da
possibilidade de viver ou amar com clareza.

(Nota)

* Carlos Castaneda, The Teachings of Don Juan: A Yaqui Way of Knowledge, A Separate Reality,
Journey to Ixtlan, e Tales of Power. A um nível mais elevado, este livros tratam do processo
psicoterapêutico.

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Quando fugimos da morte, da natureza constantemente mutável das coisas, fugimos


inevitavelmente da vida.

O Risco da Independência

ASSIM, TODA A VIDA em si representa um risco, e com quanto mais amor vivermos as nossas
vidas, mais riscos corremos. Dos milhares, talvez mesmo milhões, de riscos que corremos na
vida, o maior é o risco de crescer. Crescer é o acto de passar da infância para a idade adulta. Na
verdade, é mais um salto assustador do que um passo, e é um salto que muitas pessoas nunca
dão na vida. Embora exteriormente possam parecer adultos, mesmo adultos de sucesso, talvez
a maioria dos "crescidos" permaneça até à morte crianças, em termos psicológicos, que nunca
se separaram verdadeiramente dos pais e do poder que os pais têm sobre eles. Talvez por ter
sido tão acutilantemente pessoal para mim, sinto que a melhor maneira como posso ilustrar a
essência de crescer e a enormidade do risco envolvido é descrever o passo de gigante que eu
próprio dei para a idade adulta, no final do ano em que completei quinze anos - felizmente,
muito cedo na vida. Embora esse passo fosse uma decisão consciente, prefaciarei o meu relato
dizendo-vos que, na altura, não tinha nenhuma consciência de que o que estava a fazer era
crescer. Só sabia que dava um salto para o desconhecido.
Aos treze anos, deixei a minha casa para frequentar a Academia Phillips Exeter, uma escola
preparatória para rapazes da mais elevada reputação, onde o meu irmão tinha andado antes
de mim. Sabia que tinha sorte em andar lá, porque a frequência de Exeter fazia parte de um
padrão bem definido que me conduziria para uma das melhores universidades da Ivy

147

League e daí para os escalões mais elevados do Sistema, cujas portas se abririam de par em
par devido à minha formação académica. Considerava ter muita sorte em ter nascido de pais
bem sucedidos que me podiam dar "a melhor educação que o dinheiro pode comprar" e
retirava uma grande sensação de segurança do facto de fazer parte do que era tão obviamente
um padrão correcto. O único problema foi que, logo a seguir a entrar para Exeter, me senti
completamente infeliz. As razões da minha infelicidade eram para mim totalmente obscuras
nessa altura e continuam a ser profundamente misteriosas ainda hoje. Simplesmente, parecia
não me adaptar. Não me adaptava aos professores, aos alunos, às disciplinas, à arquitectura, à
vida social, a todo o ambiente. No entanto, parecia que a única solução era tentar fazer o
melhor possível e tentar moldar as minhas imperfeições de modo a ajustar-me mais conforta
velmente ao padrão que tinha sido estabelecido para mim e que era tão obviamente o padrão
certo. E assim tentei durante dois anos e meio. Apesar disso, a minha vida parecia ter
diariamente menos significado e eu sentia-me mais infeliz. No último ano pouco mais fiz que
dormir, pois só no sono encontrava algum conforto. Em retrospectiva, penso que descansava
durante o sono e me preparava inconscientemente para o salto que me preparava para dar.
Dei-o quando voltei a casa nas férias da Primavera, no terceiro ano, e anunciei que não voltava
para o colégio. O meu pai disse, "Mas não podes desistir - é a melhor educação que se pode
ter. Não vês o que estás a desperdiçar?"

"Sei que é um bom colégio," respondi, "mas não volto."

"Porque não te adaptas, porque não fazes mais uma tentativa?" perguntaram os meus pais.

"Não sei," respondi, sentindo-me completamente incapaz. "Nem sei porque o detesto tanto,
mas detesto-o e não volto."

"Bem, então o que vais fazer? Uma vez que pareces querer brincar com o teu futuro, o que é
que pensas fazer?"
148

Respondi novamente, profundamente infeliz, "Não sei. Só sei que não volto para lá."

Os meus pais ficaram compreensivelmente alarmados e levaram-me logo de seguida a um


psiquiatra, que afirmou que eu estava deprimido e recomendou um mês de internamento num
hospital, dando-me um dia para decidir se era isso que eu queria ou não. Essa noite foi a única
vez que considerei a hipótese de suicídio. Ser internado num hospital psiquiátrico parecia-me
apropriado. Eu estava, como disse o psiquiatra, deprimido. O meu irmão tinha-se adaptado a
Exeter. Porque é que eu não conseguia? Eu sabia que a minha dificuldade em me adaptar era
unicamente culpa minha, e sentia-me completamente incapaz, incompetente e sem valor. Pior
ainda, acreditava estar provavelmente demente. O meu pai não tinha dito "Deves estar doido
para desperdiçar uma educação tão boa"? Se voltasse para Exeter, regressaria a tudo o que era
resguardado, seguro, certo, adequado, construtivo, comprovado e conhecido. Mas não era eu.
No mais íntimo do meu ser sabia não ser esse o meu caminho. Mas qual era o meu caminho?
Se não voltasse, tudo o que me esperava era desconhecido, indeterminado, inseguro,
desprotegido, marginal e imprevisível. Quem quer que enveredasse por um caminho desses
devia estar louco. Eu estava aterrado. Então, no momento de maior desespero, veio do meu
subconsciente uma sequência de palavras, como um oráculo estranho e sem corpo com uma
voz que não era a minha: "A única segurança real na vida está em apreciar a insegurança da
vida." Mesmo que significasse estar doido e descompassado em relação a tudo o que parecia
sagrado, tinha decidido ser eu. Descansei. De manhã, fui falar novamente com o psiquiatra e
disse-lhe que nunca voltaria para Exeter e que estava pronto para ser internado no hospital.
Tinha dado o salto para o desconhecido. Tinha tomado o destino nas minhas mãos.

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O processo de crescimento decorre normalmente de forma muito gradual, com pequenos


saltos múltiplos para o desconhecido, tal como quando um menino de oito anos arrisca pela
primeira vez ir de bicicleta, sozinho, até à mercearia ou um rapaz ou uma rapariga de quinze
anos saem pela primeira vez à noite com um par. Se duvida dos verdadeiros riscos que
representam, então não se lembra da ansiedade envolvida. Se observar mesmo as crianças
mais saudáveis, verá não só a ânsia de arriscar actividades novas e adultas mas também, lado a
lado, relutância, retrocesso, agarrar-se ao que é seguro e conhecido, a tentativa de preservar a
dependência e a infância. Mais ainda, a níveis mais ou menos subtis, encontra-se a mesma
ambivalência num adulto, incluindo em si próprio, especialmente na terceira idade, que tende
a agarrar-se ao que é antigo, conhecido e familiar. Aos quarenta anos, aparecem-me quase
diariamente oportunidades de me arriscar a fazer as coisas de maneira diferente,
oportunidades para me desenvolver. Ainda estou a amadurecer, e não tão depressa como
poderia. Entre todos os pequenos saltos que podemos dar, há também alguns enormes, como
quando deixei o colégio, renegando um padrão global de vida e de valores de acordo com os
quais tinha sido educado. Muitos nunca chegam a dar estes grandes saltos potenciais e,
consequentemente, nunca chegam a amadurecer. Apesar da sua aparência exterior, continuam
a ser, psicologicamente, muito filhos dos pais, vivendo de acordo com valores passados de
geração em geração, motivados principalmente pela aprovação ou não dos pais (mesmo depois
de os pais estarem há muito mortos e enterrados), não se tendo jamais atrevido a tomar o
destino nas suas próprias mãos.

Embora esses grandes saltos sejam vulgarmente dados durante a adolescência, podem sê-lo
em qualquer idade. Uma mãe de três filhos, com trinta e três anos, casada com um marido
controlador, redutor, inflexível e chauvinista chega à

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conclusão, gradual e dolorosa, de que a sua dependência em relação a ele e ao casamento é


uma morte em vida. Ele bloqueia todas as tentativas dela para mudar a natureza da relação.
Com uma coragem incrível, ela divorcia-se dele, suportando o fardo das suas recriminações e
as críticas dos vizinhos, e arrisca um futuro desconhecido, sozinha com os filhos, mas pela
primeira vez na vida, livre de ser ela própria. Deprimido na sequência de um ataque cardíaco,
um executivo de cinquenta e dois anos revê a sua vida de ambição frenética por ganhar cada
vez mais dinheiro e subir cada vez mais na hierarquia da empresa e considera-a sem
significado. Após prolongada reflexão, conclui ter sido movido pela necessidade de aprovação
por parte de uma mãe dominadora e permanentemente crítica; quase se matou a trabalhar
para aparecer vitorioso aos olhos dela. Arriscando e ultrapassando a sua reprovação pela
primeira vez na vida, enfrentando corajosamente a ira da mulher e dos filhos, renitentes em
prescindir do seu estilo de vida dispendioso, muda-se para o campo e abre uma pequena
oficina de restauro de móveis antigos. Estas grandes mudanças, estes saltos para a
independência e auto-determinação, são imensamente dolorosos em qualquer idade e exigem
extrema coragem, no entanto são resultado não raro de psicoterapia. De facto, dada a
grandeza dos riscos envolvidos, exigem muitas vezes a psicoterapia para serem concretizadas,
não porque a terapia diminua o risco, mas porque apoia e ensina a coragem.

Mas o que tem a ver esta questão de amadurecer com o amor, para além do facto de o
prolongamento do Eu envolvido no acto de amar ser um prolongamento do Eu para novas
dimensões? Primeiro que tudo, os exemplos de mudança descritos e todas as outras grandes
mudanças são actos de amor próprio. Foi precisamente por dar valor a mim próprio que não
quis continuar a ser infeliz num colégio e num ambiente social que não se adequavam às
minhas necessidades. Foi por ter con-
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sideração por si própria que a dona de casa se recusou a continuar a tolerar um casamento
que lhe limitava a liberdade e reprimia inteiramente a personalidade. Foi por gostar de si
próprio que o executivo não quis continuar a matar-se a trabalhar para ir de encontro às
expectativas da mãe. Segundo, o amor próprio não só fornece o motivo para as grandes
mudanças, como é também a base da coragem para correr o risco de as fazer. Foi apenas por
os meus pais me terem claramente amado e dado valor em criança que me senti
suficientemente seguro de mim para desafiar as suas expectativas e desviar-me radicalmente
do padrão que me tinham destinado. Embora me sentisse incapaz, inútil e possivelmente louco
ao fazer o que fiz, pude tolerar esses sentimentos só porque, ao mesmo tempo, a um nível
ainda mais profundo, sentia-me boa pessoa independentemente de quão diferente pudesse
ser. Ao ousar ser diferente, mesmo que isso significasse ser louco, estava a corresponder a
anteriores mensagens de amor dos meus pais, centenas delas, que diziam, "És um indivíduo
belo e amado. É bom seres tu. Amar-te-emos independentemente do que fizeres, enquanto tu
fores tu." Sem a segurança do amor dos meus pais, reflectida no meu amor próprio, teria
escolhido o conhecido em vez do desconhecido, e continuado a seguir o padrão preferido pelos
meus pais, à custa da unicidade básica do meu Eu. Por último, só quando se deu o salto para o
desconhecido da total consciência do Eu, independência psicológica e individualidade única, é
que se fica livre para seguir caminhos ainda mais elevados de desenvolvimento pessoal e de
manifestar amor em maior grau de dimensão. Enquanto se casar, se iniciar uma carreira ou se
tiverem filhos para se satisfazer os pais ou as expectativas de outras pessoas, incluindo a
sociedade em geral, o compromisso será, pela sua própria natureza, pouco profundo. Enquanto
se amarem os filhos principalmente porque é suposto os pais amarem os filhos, os pais serão
insensíveis às necessidades mais

152

ocultas dos filhos e incapazes de exprimir amor das formas mais subtis que, no entanto, são
muitas vezes as mais importantes. As formas mais elevadas de amor são, inevitavelmente,
opções livres e não actos de conformismo.

O Risco do Compromisso

SEJA OU NÃO POUCO profundo, o compromisso é a base, o pilar de qualquer relação


genuinamente amorosa. O profundo empenhamento não garante o sucesso da relação mas
ajuda, mais que qualquer outro factor, a assegurá-lo. Compromissos inicialmente ligeiros
podem, com o tempo, vir a aprofundar-se; senão, a relação cairá provavelmente aos pedaços
ou então tornar-se-á doentia ou cronicamente frágil. É frequente não termos consciência da
imensidão do risco envolvido em assumir um forte compromisso. Já referi que uma das
funções do fenómeno instintivo de nos apaixonarmos é fornecer aos participantes um manto
mágico de omnipotência que os cega caridosamente aos riscos do que fazem quando se casam.
Pela minha parte, estive razoavelmente calmo até ao momento em que a minha mulher se
juntou a mim em frente ao altar, em que todo o meu corpo começou a tremer. Fiquei tão
aterrado que não me lembro de quase nada da cerimónia nem da recepção que se seguiu. De
qualquer maneira, é o nosso sentido de compromisso, depois da boda, que torna possível a
transição do estar apaixonado para o amor genuíno. E é o nosso compromisso após a
concepção que nos transforma de pais biológicos em pais psicológicos*. O compromisso é
inerente a

(Nota)

* A importância da distinção entre pais biológicos e psicológicos encontra-se elegantemente


elaborada e concretizada na obra Beyond the Best Interests ofthe Child, de Goldstein, Freud e
Solnit (Macmillan, 1973).

153

qualquer relação de amor genuíno. Qualquer pessoa verdadeiramente interessada no


desenvolvimento espiritual doutra sabe, consciente ou instintivamente, que só pode promover
significativamente esse desenvolvimento através de uma relação de constância. As crianças
não podem atingir a maturidade psicológica num ambiente de imprevisibilidade, perseguidas
pelo espectro do abandono. Os casais não podem resolver de nenhuma forma saudável as
questões universais do casamento

- dependência e independência, domínio e submissão, liberdade e fidelidade, por exemplo -


sem a segurança de saber que o acto de discutirem estas questões não destruirá, por si, a
relação.

Os problemas de compromisso são uma parte considerável e inerente à maior parte das
perturbações psiquiátricas e as questões de compromisso são cruciais no decurso da
psicoterapia. Os indivíduos com perturbações de personalidade tendem a assumir apenas
compromissos pouco profundos e, quando as perturbações são graves, tais indivíduos parecem
não ter nenhuma capacidade de assumir compromissos. Não é tanto por recearem o risco de
se comprometerem, mas porque basicamente não entendem de que trata o compromisso.
Porque os pais não assumiram compromissos para com eles enquanto crianças, de forma
significativa, cresceram sem a experiência do compromisso. O compromisso representa para
eles uma abstracção fora do seu alcance, um fenómeno que não conseguem conceber
completamente. Os neuróticos, por outro lado, têm normalmente consciência da natureza do
compromisso, mas este paralisa-os de medo. Normalmente, a sua experiência na infância foi a
de os pais se comprometerem com eles o suficiente para que eles assumissem em troca um
compromisso com os pais. Posteriormente, no entanto, a cessação do amor paterno devido a
morte, abandono ou rejeição crónica tem o efeito de tornar o compromisso não retribuído da
criança

154

numa experiência intoleravelmente dolorosa. Receiam-se então, naturalmente, novos


compromissos. Estes danos só podem ser reparados se for possível à pessoa ter uma
experiência basilar e mais gratificante com um compromisso que ocorra posteriormente. É por
essa razão, entre outras, que o compromisso é o pilar da relação psicoterapêutica. Há alturas
em que tremo perante a enormidade do que faço quando aceito mais um doente para terapia
a longo prazo. Para que a cura de base tenha lugar, é necessário que o psicoterapeuta
introduza na sua relação com o novo doente o mesmo elevado sentido e grau de compromisso
que os pais que amam verdadeiramente dão aos filhos. O sentido de compromisso e interesse
constante do terapeuta serão postos à prova e inevitavelmente manifestados ao doente de
inúmeras formas, no decurso de meses ou anos de terapia.

Rachel, uma jovem fria, composta e distante de vinte e sete anos, veio consultar-me no final de
um breve casamento. O marido, Mark, tinha-a deixado devido à sua frigidez. "Eu sei que sou
frígida," reconhecia Rachel. "Pensei que com o tempo me sentisse estimulada pelo Mark, mas
nunca aconteceu. Não creio que seja culpa dele. Nunca gostei de sexo com ninguém. E para
dizer a verdade, nem tenho a certeza se quero. Parte de mim quer, porque gostava de ter um
dia um casamento feliz, e gostava de ser normal - as pessoas normais parecem encontrar algo
de maravilhoso no sexo. Mas outra parte de mim contenta-se em ser como sou. O Mark dizia
sempre 'Relaxa e deixa-te ir'. Bem, talvez eu não queira relaxar nem deixar-me ir, mesmo que
fosse capaz."

No terceiro mês de trabalho em conjunto, chamei a atenção de Rachel para o facto de me dizer
"Obrigado" pelo menos duas vezes, ainda antes de se sentar para começar a sessão primeiro,
quando ia ao seu encontro na sala de espera, e novamente quando passava pela porta de
acesso ao meu gabinete.

155
"Que há de errado em ser bem educada?" perguntou ela.

"Nada, em si," respondi. "Mas neste caso particular parece tão desnecessário. Comporta-se
como se fosse uma visita que não tivesse a certeza de ser benvinda."

"Mas eu aqui sou uma visita. É a sua casa."

"É verdade," disse eu. "Mas também é verdade que me paga quarenta dólares à hora pelo
tempo que aqui está. Comprou esse tempo e este espaço e, por tê-lo comprado, tem direito a
ele. Não é uma visita. Este gabinete, esta sala de espera e o tempo que passamos juntos são
um direito seu. Seu. Pagou-me por esse direito, portanto porque há-de agradecer-me o que é
seu?"

"Não posso acreditar que pense mesmo assim," exclamou Rachel.

"Então deve acreditar que a posso enxotar daqui para fora sempre que me apetecer,"
contrapus. "Deve pensar que pode chegar aqui um dia de manhã e ouvir-me dizer-lhe 'Rachel,
o trabalho consigo tornou-se maçador. Decidi não a tratar mais. Adeus e boa sorte!'"

"E precisamente assim que penso," concordou Rachel. "Nunca pensei que alguma coisa fosse
direito meu, até agora, pelo menos não em relação a uma pessoa. Quer dizer que não podia
pôr-me a andar?"

"Oh, suponho que podia. Mas não o faria. Não quereria fazê-lo. Não seria ético, entre outras
coisas. Repare, Rachel," disse eu, "quando aceito um caso como o seu para terapia a longo
prazo, assumo um compromisso para com esse caso e essa pessoa. E assumi um compromisso
consigo. Trabalharei consigo o tempo que for necessário, quer leve um ano ou cinco ou dez, ou
seja o que for. Não sei se vai abandonar o nosso trabalho em conjunto quando estiver
preparada ou antes de estar preparada. Mas, seja como for, será você a terminar a nossa
relação. A menos que eu morra, os meus serviços estão à sua disposição enquanto os quiser."

156
Não me era difícil perceber o problema de Rachel. No início do tratamento, o ex-marido, Mark,
tinha-me dito: "Penso que a mãe de Rachel tem muito a ver com isto. É uma mulher notável.
Daria uma grande presidente da General Motors, mas não tenho a certeza de que seja muito
boa mãe." Isso mesmo. Rachel tinha sido educada, ou melhor, governada, com a sensação de
que podia ser despedida a todo o momento se pisasse o risco. Em vez de dar a Rachel a noção
de que o seu lugar em casa, enquanto criança, era seguro - uma noção que só pode advir de
pais comprometidos - a mãe de Rachel comunicava-lhe constantemente o oposto: como se se
tratasse de uma empregada, a posição de Rachel só era garantida enquanto produzisse o que
lhe era solicitado e se comportasse de acordo com as expectativas. Se o lugar dela em casa não
era seguro em criança, como podia ela sentir que o lugar dela comigo era seguro?

Os danos causados pela ausência de compromisso por parte dos pais não se curam com
algumas palavras ou formas de tranquilização superficiais. A níveis progressivamente mais
fundos, têm que ser analisados repetidamente. Um desses trabalhos de análise, por exemplo,
teve lugar mais de um ano depois. Tínhamos focado o facto de Rachel nunca ter chorado na
minha presença - uma outra forma em que não conseguia "deixar-se ir". Um dia, quando falava
da terrível solidão que provinha de ter que estar constantemente em guarda, senti que ela
estava à beira do choro, mas que precisava dum pequeno empurrão meu, pelo que fiz algo fora
do comum: estendi o braço para o sofá onde ela estava deitada e afagueilhe suavemente a
cabeça, murmurando, "Pobre Rachel. Pobre Rachel." O gesto falhou. Rachel ficou
imediatamente hirta e sentou-se, com os olhos secos. "Não consigo" disse ela. "Não consigo
deixar-me ir." Isto aconteceu perto do fim da sessão. Na sessão seguinte, Rachel entrou e
sentou-se no divã, em vez de se deitar. "Bom, agora é a sua vez de falar," anunciou.

157

"Que quer dizer?" perguntei.

"Vai dizer-me tudo o que há de errado comigo."

Eu estava intrigado. "Continuo a não perceber o que quer dizer, Rachel."

"Esta é a nossa última sessão. Vai resumir tudo o que está errado em mim, todas as razões
porque não pode continuar a tratar-me."
"Não faço a menor ideia do que se passa," disse eu.

Foi a vez de Rachel ficar intrigada. "Bem," disse ela. "Na última sessão, queria que eu chorasse.
Há muito tempo que quer que eu chore. Na última sessão fez tudo o que pôde para me ajudar
a chorar e mesmo assim não consegui, portanto vai desistir. Não consigo fazer o que quer que
eu faça. É por isso que hoje é a nossa última sessão."

"Acredita mesmo que a vou mandar embora, não acredita, Rachel?"

"Sim. Qualquer pessoa o faria."

"Não, Rachel, qualquer pessoa não. A sua mãe seria capaz de o fazer. Mas eu não sou a sua
mãe. Nem toda a gente neste mundo é como a sua mãe. Não é minha empregada. Não está
aqui para fazer aquilo que eu quero que faça. Está aqui para fazer aquilo que quer fazer,
quando o quer fazer. Posso pressioná-la, mas não tenho poder sobre si. Nunca a despedirei.
Está aqui o tempo todo que quiser."

Um dos problemas que as pessoas têm habitualmente nas suas relações adultas, se nunca
receberam um compromisso firme por parte dos pais é o síndroma do "Vou-te abandonar
antes que me abandones". Este síndroma assume muitas formas e disfarces. Uma das formas
era a frigidez de Rachel. Embora nunca fosse a nível consciente, o que a frigidez de Rachel
transmitia ao marido e namorados anteriores era, "Não me vou entregar a ti porque sei muito
bem que um dia destes me vais rejeitar." Para Rachel, "deixar-se ir", sexual-

158

mente ou de outra forma, representava um compromisso seu e não estava disposta a


comprometer-se quando o mapa da sua experiência passada mostrava como certo que não
receberia nenhum compromisso em troca.

O síndroma do "Vou-te abandonar antes que me abandones" torna-se tanto mais poderoso
quanto mais próxima uma pessoa como Rachel se torna em relação a outra. Depois de um ano
de terapia, duas vezes por semana, Rachel comunicou-me que não podia continuar a suportar
os oitenta dólares semanais. Desde o divórcio, disse-me ela, tinha dificuldades económicas e
portanto, ou deixava de ir à consulta ou tinha que reduzir para uma vez por semana. Num
plano realista, isto era ridículo. Eu sabia que Rachel tinha recebido uma herança de cinquenta
mil dólares para além do modesto salário que recebia no emprego, e na comunidade era
sabido que ela provinha de uma família antiga e abastada. Em condições normais, tê-la-ia
confrontado energicamente com o facto de ela poder pagar os meus serviços mais facilmente
do que muitos outros doentes e que estava a usar claramente a questão monetária para fugir
de uma crescente proximidade em relação a mim. Por outro lado, também sabia que a herança
representava para Rachel mais do que dinheiro; era dela, algo que não a abandonaria, uma
linha de defesa segura num mundo não comprometido. Embora fosse razoável da minha parte
pedir-lhe que tirasse da herança a importância dos meus honorários, calculei que seria um
risco que ela não estava ainda preparada para correr e que, se insistisse, fugiria mesmo. Ela
tinha-me dito que, com o rendimento que tinha, me poderia pagar cinquenta dólares por
semana e ofereceu-me esse valor por uma só sessão. Disse-lhe que reduziria os meus
honorários para vinte e cinco dólares por sessão e continuaria a recebê-la duas vezes por
semana. Ela olhou para mim com um misto de medo, incredulidade e alegria. "Faz mesmo
isso?" perguntou. Acenei afirmativamente. Seguiu-se um

159

longo período de silêncio. Por fim, mais próxima das lágrimas do que alguma vez tinha estado,
Rachel disse, "Por pertencer a uma família rica, os comerciantes locais levam-me sempre os
preços mais caros do mercado. O senhor está a dar-me uma oportunidade. Ninguém me tinha
dado uma oportunidade até agora."

De facto, Rachel abandonou a terapia várias vezes durante o ano seguinte, na luta sobre se
devia permitir que o nosso compromisso mútuo se desenvolvesse. Em cada uma dessas vezes,
consegui persuadi-la a voltar através de uma combinação de cartas e telefonemas durante uma
ou duas semanas. Por fim, no final do segundo ano de tratamento, pudemos abordar mais
directamente as questões envolvidas. Soube entretanto que Rachel escrevia poesia e pedi-lhe
para me mostrar. De início, recusou. Depois concordou mas, semana após semana, "esquecia-
se" de a trazer. Fiz-lhe notar que esconder-me os seus poemas tinha o mesmo significado que
esconder a sua sexualidade de Mark e dos outros homens. Porque sentia que mostrar-me os
poemas representava um compromisso total da sua parte? Porque achava que a partilha da
sua sexualidade era um compromisso total idêntico? Mesmo que eu não apreciasse os seus
poemas, isso significaria uma rejeição total? A nossa amizade tinha que terminar por ela não
ser uma grande poetisa? Talvez a partilha da poesia estreitasse a nossa relação. Porque tinha
ela medo desse estreitamento? Etc., etc., etc..
Quando finalmente aceitou o facto de ter um compromisso da minha parte, no terceiro ano de
terapia, Rachel começou a "deixar-se ir". Finalmente arriscou-se a deixar-me ver os poemas.
Conseguiu começar a rir e a troçar. A nossa relação, que tinha sido rígida e formal até aí,
tornou-se calorosa, espontânea e com frequência divertida e alegre. "Nunca soube o que era
sentir-me assim à vontade com outra pessoa," disse ela.

160

"Este lugar é o primeiro em que me senti segura na vida." Da segurança do meu gabinete e do
tempo que passávamos juntos, ela conseguiu aventurar-se rapidamente a ter outras relações.
Compreendeu que o sexo não era uma questão de compromisso mas de expressão pessoal, de
jogo, exploração, aprendizagem e alegre abandono. Sabendo que eu estava sempre ao dispor
dela se se magoasse, como a boa mãe que nunca teve, sentiu-se livre para deixar explodir a sua
sexualidade. A frigidez derreteu-se. Quando terminou o tratamento no quarto ano, Rachel
tinha-se tornado uma pessoa vivaz e abertamente apaixonada que se empenhava em gozar
tudo o que as relações humanas têm para oferecer.

Felizmente, eu tinha podido oferecer a Rachel um grau de compromisso suficiente para


compensar os efeitos adversos da falta de compromissos que tinha sofrido na infância. Nem
sempre tenho tido a mesma sorte. O técnico de informática que referi na primeira secção como
exemplo de transferência foi um desses casos. A sua necessidade de um compromisso da
minha parte era tão completa que eu não fui capaz de a suprir, ou não quis fazê-lo. Se o
compromisso do terapeuta for insuficiente para ultrapassar as vicissitudes da relação, a cura de
base não terá lugar. No entanto, se o compromisso do terapeuta for suficiente, normalmente -
embora não inevitavelmente - o paciente responderá mais cedo ou mais tarde desenvolvendo
um compromisso da sua parte, em relação ao terapeuta e à terapia em si. O ponto em que o
paciente começa a demonstrar esse compromisso é o ponto crucial da terapia. No caso de
Rachel, penso que ocorreu quando me mostrou os poemas. Por estranho que pareça, há
doentes que vêm à terapia fielmente duas ou três horas por semana, durante anos, e nunca
atingem esse ponto. Outros podem alcançá-lo logo nos primeiros meses. Mas, para se curarem,
têm que o alcançar. Para o terapeuta, este é um momento maravilhoso de alívio e alegria,

161

porque sabe então que o paciente assumiu o risco de se comprometer a curar-se e portanto a
terapia será bem sucedida.
O risco do compromisso com a terapia não é só o risco do compromisso em si, mas também o
risco da auto-confrontação e da mudança. Na secção anterior, na discussão da disciplina de
dedicação à verdade, referi em detalhe as dificuldades de mudar o nosso mapa da realidade,
visão do mundo e transferências. No entanto, há que mudá-los, se se quiser viver uma vida de
amor, com frequentes extensões do Eu para novas dimensões e territórios de envolvimento. Há
muitos pontos da jornada de desenvolvimento pessoal, quer se esteja só ou se tenha um
psicoterapeuta como guia, quando se tem que agir de formas novas e desconhecidas, em
consonância com a sua nova visão do mundo. Essa tomada de acção - comportando-se de
forma diferente da que era habitual - pode representar um risco pessoal extraordinário. O
jovem homossexual que pela primeira vez toma a iniciativa de convidar uma rapariga para sair;
a pessoa que nunca confiou em ninguém e se deita pela primeira vez no divã do analista,
permitindo que este esteja fora do seu campo de visão; a mulher anteriormente dependente
que anuncia ao marido controlador que vai arranjar emprego quer ele goste quer não, que tem
que viver a sua própria vida; o menino da mamã cinquentão que diz à mãe para deixar de o
chamar pelo diminutivo de criança; o homem "forte" e auto-suficiente, emocionalmente
distante, que chora pela primeira vez em público; ou Rachel a "deixar-se ir" e a chorar pela
primeira vez no meu gabinete: estas acções, e muitas outras, implicam um risco mais pessoal e
por isso frequentemente mais terrível e assustador que o de um soldado que se prepara para o
combate. O soldado não pode fugir porque tem a arma apontada às costas e ao peito. Mas o
indivíduo que tenta evoluir pode sempre retirar-se para os padrões fáceis e familiares dum
passado limitado.

162

Já se disse que o psicoterapeuta bem sucedido tem que trazer para a relação psicoterapêutica
a mesma coragem e o mesmo sentido de compromisso que o doente. O terapeuta tem
também que arriscar-se à mudança. De todas as regras boas e úteis da psicoterapia que me
ensinaram, há poucas que eu não tenha optado por infringir numa ou noutra altura, não por
preguiça, mas antes a tremer de medo, por a terapia do meu paciente parecer exigir, de uma
ou de outra forma, que eu saísse da segurança do papel tradicional do analista, fosse diferente
e arriscasse o anticonvencional. Quando olho para todos os casos bem sucedidos do meu
passado, vejo que em determinada altura, em cada um, tive que pôr a cabeça no cepo. A
disposição do terapeuta para sofrer nesses momentos é talvez a essência da terapia, e quando
é captada pelo doente, como é habitual, é sempre terapêutica. É também através dessa
vontade de se prolongarem e sofrerem por e com os seus pacientes que os terapeutas evoluem
e mudam. Mais uma vez, quando revejo os meus casos que tiveram êxito, não há um único que
não tenha resultado numa mudança muito significativa, muitas vezes radical, das minhas
atitudes e perspectivas. Tem que ser assim. É impossível compreender verdadeiramente outra
pessoa sem lhe dar espaço dentro de si próprio. Esta concessão de espaço, que mais uma vez é
a disciplina dos parênteses, requer a extensão e portanto a mudança do próprio.
É assim com os bons pais e também com a boa psicoterapia. Ao ouvir os nossos filhos, estão
envolvidos os mesmos parênteses e extensão de nós próprios. Para corresponder às suas
necessidades saudáveis, temos que mudar. Só quando nos dispomos a passar pelo sofrimento
dessa mudança, podemos tornar-nos os pais de que os nossos filhos precisam. E como os filhos
crescem constantemente e as suas necessidades vão mudando, somos obrigados a mudar e a
crescer com eles. Toda a gente conhece pais, por exemplo, que conseguem educar efi-

163

cientemente os filhos até à adolescência e depois se tornam completamente ineficazes como


pais porque não são capazes de mudar e adaptar as suas atitudes em relação aos filhos agora
mais velhos e diferentes. E, como em todas as outras circunstâncias do amor, seria incorrecto
encarar o sofrimento e a mudança decorrentes do papel de pais como uma espécie de
sacrifício ou martírio; pelo contrário, os pais têm mais a ganhar com o processo do que os
filhos. Os pais que não estão dispostos a arriscar-se ao sofrimento de mudar, desenvolver-se e
aprender com os filhos, escolhem o caminho da senilidade quer o saibam quer não - e os filhos
e o mundo deixá-los-ão ficar bem para trás. Aprender com os filhos é a melhor oportunidade
que a maior parte das pessoas tem de assegurar uma velhice bem vivida. Infelizmente, a maior
parte não aproveita a oportunidade.

O Risco da Confrontação

O ÚLTIMO E TALVEZ o MAIOR risco do amor é o risco do exercício do poder com humildade. O
exemplo mais comum é o acto da confrontação no amor. Sempre que confrontamos alguém,
estamos essencialmente a dizer-lhe, "Tu não tens razão, eu tenho." Quando um pai ou uma
mãe confronta um filho, dizendo "Estás a ser dissimulado", está a dizer com efeito "A tua
dissimulação está errada. Tenho o direito de a criticar porque eu não o sou e tenho razão".
Quando um marido confronta a mulher com a sua frigidez, está a dizer-lhe "És frígida, porque é
errado da tua parte não me retribuíres sexualmente com maior calor, uma vez que sou capaz
sexualmente e de outras formas. Tu tens um problema sexual; eu não". Quando a mulher
confronta o marido com a opinião de que ele não lhe

164

dedica tempo suficiente nem aos filhos, está a dizer-lhe "O teu investimento no trabalho é
excessivo e errado. Apesar de não ter o teu emprego, consigo ver as coisas de uma forma mais
clara do que tu e tenho como certo que devias dedicar-te de maneira diferente". Muitas
pessoas não têm qualquer dificuldade em exercer a capacidade de confrontar, de dizer "Eu
tenho razão, tu não tens, devias ser diferente". Os pais, os casais e pessoas em muitos outros
papéis fazem-no casualmente e por rotina, atirando críticas à direita e à esquerda, como calha.
A maior parte dessas críticas e dessa confrontação, vulgarmente feitas sob zanga ou despeito,
faz mais pelo aumento da confusão no mundo do que pelo esclarecimento.

Para a pessoa que ama verdadeiramente, o acto de crítica ou de confrontação não surge com
facilidade; para ela, é evidente que o acto contém um grande potencial de arrogância.
Confrontar quem se ama é assumir uma posição de superioridade moral ou intelectual sobre o
amado, pelo menos no que respeita ao assunto em causa. No entanto, o amor genuíno
reconhece e respeita a individualidade única e a identidade separada da outra pessoa. (Terei
mais a dizer sobre isto, mais tarde.) A pessoa que ama verdadeiramente, que valoriza a
unicidade e a diferença do objecto do seu amor, terá relutância em assumir "Eu tenho razão, tu
não tens; sei melhor do que tu o que é melhor para ti". Mas a realidade da vida é tal que, por
vezes, uma pessoa sabe mesmo melhor do que a outra o que é bom para ela, e está de facto
numa posição de conhecimento ou sabedoria superiores, relativamente ao assunto em causa.
Nestas circunstâncias, o mais sensato dos dois tem de facto a obrigação de confrontar o outro
com o problema. A pessoa que ama, portanto, encontra-se frequentemente num dilema, entre
o respeito pelo caminho da vida da pessoa amada e a responsabilidade de exercer liderança
quando a pessoa amada parece necessitar dessa liderança.

165

O dilema só pode ser resolvido através de um exame de consciência escrupuloso, em que


quem ama analisa rigorosamente o valor da sua "sabedoria" e os motivos por trás dessa
necessidade de assumir a liderança. "Estou mesmo a ver as coisas com clareza ou estou a partir
de pressupostos obscuros? Compreendo mesmo a pessoa que amo? Será que o caminho que
essa pessoa está a tomar é sensato e que o facto de eu o entender como insensato é devido a
uma visão limitada da minha parte? Estarei a ser egoísta ao acreditar que a pessoa que amo
precisa de reorientação?" São estas as questões que quem ama verdadeiramente se deve
colocar continuamente. Esta análise interior, tão objectiva quanto possível, é a essência da
humildade. Nas palavras de um monge inglês anónimo do século XIV, mestre espiritual, "A
humildade em si não é mais do que o verdadeiro conhecimento e sentimento do próprio tal
qual é. O homem que se vê e sente verdadeiramente como é, tem que ser humilde."*

Há, portanto, duas formas de confrontar ou criticar outro ser humano: com a certeza
espontânea e instintiva de que se tem razão, ou acreditando que provavelmente se tem razão
depois de auto-análise escrupulosa. A primeira é a via da arrogância; é a forma mais vulgar
adoptada por pais, esposos, professores e pessoas em geral no seu dia-a-dia; não é
normalmente bem sucedida, porque causa mais ressentimento do que desenvolvimento e
outros efeitos não pretendidos. A segunda é a via da humildade; não é comum, exigindo uma
extensão genuína de si próprio; tem mais probabilidades de ter êxito e nunca é, de acordo com
a minha experiência, destrutiva.

Existe um número considerável de indivíduos que, por qualquer razão, aprenderam a inibir a
sua tendência instintiva para criticar ou confrontar com arrogância espontânea, mas

(Nota)

* The Cloud of Unknowing, trad. Ira Progoff (Nova Iorque: Julian Press,

1969), p. 92.

166

não vão mais longe, escondendo-se na segurança moral da humildade e sem se atreverem a
assumir o poder. Era o caso de um pastor, pai de uma paciente de meia-idade que sofria desde
sempre de neurose depressiva. A mãe da minha doente era uma mulher azeda e violenta, que
dominava o ambiente familiar com ataques de mau génio e manipulações e que, muitas vezes,
agredia o marido fisicamente em frente da filha. O pastor nunca reagia violentamente e
aconselhava a filha a responder à mãe oferecendo a outra face e, em nome da caridade cristã,
a ser totalmente submissa e respeitadora. Quando iniciou a terapia, a minha paciente
reverenciava o pai pela sua brandura e "capacidade de amar". Não levou muito tempo, porém,
a concluir que essa humildade era fraqueza e que, com a sua passividade, a tinha privado tanto
de uma relação paternal capaz quanto a mãe com o seu egoísmo mesquinho. Acabou por ver
que ele nada tinha feito para a proteger da maldade da mãe, nem para confrontar o Mal, não
lhe deixando outra alternativa senão incorporar a manipulação amarga da mãe e a pseudo-
humildade do pai como modelos. Deixar de confrontar quando a confrontação é necessária
para alimentar o desenvolvimento pessoal representa uma falta de amor, tanto quanto a crítica
despropositada, a condenação ou outras formas activas de privação de afecto. Se amam os
filhos, os pais devem confrontá-los e criticá-los de vez em quando, cuidadosa e
parcimoniosamente talvez, mas activamente, assim como devem permitir que os filhos os
confrontem e critiquem por sua vez. Da mesma forma, os casais que se amam devem
confrontar-se um ao outro para que a relação matrimonial sirva a função de promover o
desenvolvimento espiritual dos parceiros. Nenhum casamento pode ser considerado
verdadeiramente bem sucedido a menos que o marido e a mulher sejam os melhores críticos
um do outro. O mesmo se aplica à amizade. Existe um conceito tradicional de que a

167
amizade deve ser livre de conflitos, um acordo de "tu coças-me as costas, eu coço-te as tuas",
apoiada apenas numa troca mútua de favores e elogios, como mandam as boas maneiras.
Essas relações são superficiais, fogem à intimidade e não merecem o nome de amizade que se
lhes aplica tão vulgarmente. Felizmente, há sinais de que o nosso conceito de amizade começa
a aprofundar-se. A confrontação mútua e afectuosa é uma parte significativa de todas as
relações humanas bem sucedidas e válidas. Sem ela, a relação não tem êxito ou é pouco
profunda.

Confrontar ou criticar é uma forma de exercício da liderança ou do poder. O exercício do poder


é nem mais nem menos do que a tentativa de influenciar o curso dos acontecimentos,
humanos ou outros, através de acção previamente determinada, quer consciente quer
inconscientemente. Quando confrontamos ou criticamos alguém é porque queremos mudar o
curso da vida da pessoa. É evidente que há muitas outras formas, até superiores, de influenciar
o curso dos acontecimentos sem ser pela confrontação ou pela crítica: por exemplo, pela
sugestão, pela parábola, pela recompensa e pelo castigo, questionando, proibindo ou
permitindo, criando experiências, organizando-se com outros, etc.. Podem escrever-se livros
sobre a arte de exercer o poder. Para os efeitos que se pretendem, basta dizer que os
indivíduos que amam devem interessar-se por esta arte, já que quando se deseja alimentar o
desenvolvimento espiritual de outro, têm que se interessar pela via mais eficaz de o conseguir
em quaisquer circunstâncias. Os pais que amam, por exemplo, devem primeiro analisar-se
rigorosamente a si próprios e aos seus valores antes de estabelecerem com exactidão que
sabem o que é melhor para o filho. Depois de fazerem essa determinação, têm que ponderar o
carácter e as capacidades da criança antes de decidir se ela responderá mais favoravelmente à
confrontação

168

do que ao elogio, a maior atenção, a contar-lhe uma história ou a outra forma de influência.
Confrontar alguém com algo que não é capaz de gerir é, na melhor das hipóteses, uma perda
de tempo, e terá provavelmente um efeito desmoralizador. Se quisermos ser ouvidos, temos
que falar numa linguagem que o ouvinte possa compreender e a um nível em que o ouvinte
seja capaz de funcionar. Se queremos amar, temos que nos esforçar por adaptar a nossa
comunicação às capacidades da pessoa que amamos.

É claro que exercer o poder com amor exige muito trabalho, mas o que é isso do risco
envolvido? O problema é que, quanto mais se ama, mais humilde se é; porém, quanto mais
humilde se é, mais se receia o potencial de arrogância do exercício do poder. Quem sou eu para
influenciar o curso dos acontecimentos humanos? Com que autoridade tenho o direito de
decidir o que é melhor para o meu filho, o meu marido ou a minha mulher, o meu país ou a
raça humana? Quem me dá o direito de me atrever a acreditar no meu entendimento e
pretender exercer a minha vontade sobre o mundo? Quem sou eu para fazer de Deus? Esse é o
risco. Porque sempre que exercemos poder, estamos a tentar influenciar o curso do mundo, da
humanidade, e portanto a fazer de Deus. A maior parte dos pais, professores, líderes - aqueles
de nós que exercem poder - não têm essa noção. Na arrogância de exercer o poder sem o total
conhecimento de si exigido pelo amor, estamos abençoada mas destrutivamente alheios ao
facto de que fazemos o papel de Deus. Mas, os que amam verdadeiramente, e trabalham
portanto para a sabedoria que o amor requer, sabem que agir é fazer de Deus. No entanto,
sabem também que não há alternativa senão a inacção e a impotência. O amor leva-nos a fazer
de Deus, com plena consciência da enormidade do facto de que é isso que estamos a fazer.
Com essa consciência, a pessoa que ama assume a responsabi-

169

lidade de tentar ser Deus e não de fazer de Deus irresponsavelmente, para cumprir sem erro a
vontade de Deus. Chegamos assim a outro paradoxo: só através da humildade do amor podem
os homens atrever-se a ser Deus.

O Amor é Disciplinado

MENCIONEI QUE A ENERGIA para o trabalho da auto-disciplina deriva do amor, que é uma
forma de vontade. Segue-se, portanto, que a auto-disciplina não só é amor, traduzido em
acção, como também que todo o que ama verdadeiramente se comporta com auto-disciplina e
qualquer relação de amor verdadeiro é uma relação disciplinada. Se amo verdadeiramente
outra pessoa, é evidente que orientarei o meu comportamento no sentido de contribuir o mais
possível para o seu desenvolvimento espiritual. Um casal jovem, inteligente, artista e
"boémio", com quem em tempos tentei trabalhar, contava quatro anos de um casamento
marcado por zangas quase diárias em que gritavam, atiravam com a louça e se esgatanhavam
um ao outro, para além de infidelidades semanais e separações de mês a mês. Pouco depois de
iniciarmos o trabalho, cada um deles apercebeu-se correctamente de que a terapia os levaria a
uma auto-disciplina cada vez maior e, em resultado, a uma relação menos desordenada. "Mas
quer retirar a paixão da nossa relação," diziam. "As suas noções de amor e de casamento não
deixam espaço para a paixão." Quase logo a seguir, abandonaram a terapia e eu soube que,
três anos mais tarde, depois de vários episódios com outros terapeutas, as cenas diárias de
gritaria e o padrão caótico do casamento se mantinham inalterados, bem como a
improdutividade das suas vidas. Não há dúvida que, num certo sentido, a união deles é muito

170
colorida. Mas é como as cores primárias nos desenhos das crianças, atiradas para o papel com
abandono, por vezes não sem encanto, mas demonstrando na generalidade a uniformidade
que caracteriza a arte das crianças mais novas. Nos tons difusos e controlados de Rembrandt
vemos a cor, no entanto infinitamente mais rica, única e com significado. A paixão é um
sentimento muito profundo. O facto de um sentimento ser descontrolado não indica que seja
mais profundo do que um sentimento disciplinado. Pelo contrário, os psiquiatras conhecem
bem a verdade dos velhos provérbios "Os ribeiros pouco profundos fazem muito barulho" e
"As águas paradas são profundas". Não devemos assumir que alguém cujos sentimentos são
modulados e controlados não é uma pessoa apaixonada.

Embora não se deva ser escravo dos próprios sentimentos, a auto-disciplina não significa
esmagar os sentimentos até quase não existirem. Digo muitas vezes aos meus doentes que os
sentimentos são escravos deles e que a arte da auto-disciplina é como a arte de ter escravos.
Primeiro, os sentimentos são a fonte de energia de cada um; fornecem os cavalos, ou a força
dos escravos, que nos permite levar a cabo as tarefas da vida. Como trabalham para nós,
devemos tratá-los com respeito. Há dois erros comuns que os proprietários de escravos podem
cometer e que representam formas opostas e extremas de liderança executiva. Um tipo de
proprietário não disciplina os escravos, não lhes dá estrutura, não impõe limites, não lhes dá
orientação e não lhes mostra claramente quem manda. O que acontece, claro, é que a certa
altura os escravos deixam de trabalhar e começam a mudar-se para a mansão, dão conta das
bebidas e partem a mobília e, em breve, o proprietário vê-se escravo dos seus escravos, a viver
no mesmo tipo de caos que o casal "boémio" que atrás referi.

No entanto, o estilo oposto de liderança, que o neurótico carregado de culpa tantas vezes
exerce sobre os seus sentimen-

171

tos, é igualmente auto-destrutivo. Neste estilo, o proprietário está tão obcecado com medo de
perder o controle dos escravos (sentimentos) e tão decidido a que eles não lhe levantem
problemas, que os espanca regularmente e os castiga severamente ao primeiro sinal de
qualquer energia. O resultado deste estilo é que, dentro de pouco tempo, os escravos se
tornam cada vez menos produtivos à medida que a sua vontade se esgota pelo duro
tratamento a que são submetidos. Ou então, a sua vontade transforma-se cada vez mais em
revolta contida. Se o processo se prolongar pelo tempo suficiente, uma noite a previsão do
proprietário torna-se realidade e os escravos revoltam-se e incendeiam a mansão, muitas vezes
com o dono lá dentro. Esta é a génese de certas psicoses e neuroses opressivas. A gestão
adequada dos sentimentos situa-se claramente num complexo (portanto, nem simples nem
fácil) caminho intermédio e equilibrado, que requer o uso constante das faculdades de
julgamento e adaptação contínua. Aqui, o proprietário trata os sentimentos (escravos) com
respeito, fornece-lhes boa alimentação, abrigo e cuidados médicos, escuta e responde às suas
vozes, encoraja-os, pergunta-lhes pela saúde, ao mesmo tempo que os organiza, limita,
decidindo claramente entre eles, orientando-os e ensinando-os, nunca deixando dúvidas sobre
quem manda. É este o caminho da auto-disciplina saudável.

Entre os sentimentos que têm que ser disciplinados, encontra-se o sentimento do amor. Como
indiquei, este não é em si o amor genuíno, mas o sentimento associado à catexia. Deve ser
respeitado e alimentado, devido à energia criativa que aporta, mas se for deixado à solta, o
resultado não será amor genuíno mas confusão e improdutividade. Envolvendo o amor
genuíno o prolongamento de si próprio, são necessárias grandes quantidades de energia e,
quer se goste quer não, as nossas reservas de energia são tão limitadas como as horas de cada
dia.

172

Não podemos amar toda a gente. É verdade que podemos ter um sentimento de amor em
relação à humanidade, e esse sentimento também pode ser útil fornecendo-nos a energia
necessária para manifestar amor genuíno por alguns indivíduos específicos. Mas o amor
genuíno por relativamente poucos indivíduos é tudo o que está no nosso poder. Tentar exceder
os limites da nossa energia é oferecer mais do que podemos dar, e há um ponto sem regresso
para além do qual a tentativa de amar toda a gente se torna fraudulenta e prejudicial para
aqueles que queremos ajudar. Portanto, se tivermos a sorte de estar numa posição em que
muitas pessoas solicitam a nossa atenção, temos que escolher entre elas quais as que vamos
mesmo amar. Não é uma escolha fácil; pode ser martirizante, tal como assumir o poder à
imagem de Deus. Mas tem que ser feita. Há muitos factores a considerar, principalmente a
capacidade do potencial objecto do nosso amor de corresponder a esse amor com
desenvolvimento espiritual. Esta capacidade é diferente de pessoa para pessoa, facto que
iremos examinar mais adiante. É, no entanto, inquestionável que há muita gente cujo espírito
está tão fechado por detrás de uma armadura impenetrável que mesmo os maiores esforços
para alimentar o desenvolvimento desses espíritos estão destinados a falhar. Tentar amar
alguém que não beneficiará do nosso amor com desenvolvimento espiritual é um desperdício
de energia, é lançar a semente em solo estéril. O amor genuíno é precioso e os que são
capazes de amar genuinamente sabem que o seu amor tem que ser concentrado tão
produtivamente quanto possível através da auto-disciplina.

O inverso do problema de amar demasiadas pessoas também tem que ser analisado. É
possível, pelo menos para algumas pessoas, amar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo e
manter simultaneamente várias relações de amor genuíno. Isto em si é um problema por várias
razões. Uma
173

delas é o mito americano ou ocidental do amor romântico, que sugere que certas pessoas
foram "feitas uma para a outra"; assim, por extrapolação, não se destinam a mais ninguém. O
mito, portanto, prevê a exclusividade nas relações de amor, particularmente a exclusividade
sexual. No todo, o mito é provavelmente útil por contribuir para a estabilidade e produtividade
das relações humanas, uma vez que a grande maioria dos seres humanos é desafiada até ao
limite das suas capacidades para se esforçarem em desenvolver relações de amor genuínas só
com o marido ou a mulher e com os filhos. De facto, quem puder dizer que construiu relações
de amor genuínas com o seu marido ou a sua mulher e com os filhos, já conseguiu mais do que
a maior parte das pessoas consegue na vida toda. Há por vezes algo de patético no indivíduo
que não conseguiu construir uma relação de amor com a família e que, no entanto, procura
sem descanso relações de amor fora da família. A primeira obrigação de uma pessoa que ama
genuinamente será sempre em relação às suas relações maritais ou parentais. Mesmo assim,
há algumas pessoas cuja capacidade de amar é suficientemente grande para construírem
relações de amor bem sucedidas dentro da família e ainda lhes sobrar energia para outras
relações. Para elas, o mito da exclusividade não só é obviamente falso, como também
representa uma limitação desnecessária da sua capacidade de se darem fora da família. É
possível ultrapassar esta limitação, mas é necessária uma grande auto-disciplina no
prolongamento do Eu para evitar "esticar-se de mais". Era a esta questão extraordinariamente
complexa (aqui abordada apenas de passagem) que se referia Joseph Fletcher, teólogo
Episcopaliano, autor de A Nova Moralidade, quando dizia a um amigo meu, "O amor livre é um
ideal. Infelizmente, é um ideal de que muito poucos de nós é capaz." O que ele queria dizer era
que muito poucos de nós têm a capacidade de auto-disciplina sufi-

174

ciente para manter relações construtivas de amor genuíno tanto dentro como fora da família. A
liberdade e a disciplina são de facto criadas; sem a disciplina do amor genuíno, a liberdade é
invariavelmente sem amor e destrutiva.

Por esta altura, alguns leitores estarão saturados do conceito de disciplina e terão concluído
que defendo um estilo de vida de sombrio Calvinismo. Auto-disciplina constante! Auto-análise
constante! Dever! Responsabilidade! Poderão chamar-lhe neopuritanismo.
Independentemente do que lhe chamarem, o amor genuíno, com toda a disciplina que exige, é
o único caminho nesta vida para a alegria suprema. Siga-se outro caminho e poderão
encontrar-se raros momentos de alegria extática, mas serão passageiros e cada vez mais
fugidios. Quando amo verdadeiramente estou a prolongar-me, e ao prolongar-me estou a
desenvolver-me. Quanto mais amo, quanto mais tempo amo, maior me torno. O amor genuíno
é autocompensador. Quanto mais fomento o desenvolvimento espiritual doutros, mais o meu
desenvolvimento espiritual é fomentado. Sou um ser humano totalmente egoísta. Nunca faço
nada por ninguém a não ser aquilo que faço por mim. E ao crescer através do amor, assim
cresce a minha alegria, cada vez mais presente, cada vez mais constante. Talvez seja
neopuritano. Sou também viciado na alegria. Como canta John Denver:

O amor está em toda a parte, eu vejo-o. És tudo o que podes ser, vai e sê-o. A vida é perfeita,
eu acredito. Vem jogar o jogo comigo. *

(Nota)

* Love is Everywhere, de John Denver, Joe Henry, Steve Weisberg e John Martin Sommers,
Copyright (c) Cherry Lane Music Co. Usado com permissão.

175

O Amor é Separação

EMBORA o ACTO DE FOMENTAR o desenvolvimento espiritual de outro tenha o efeito de


fomentar o próprio, uma das características principais do amor genuíno é manter-se e
preservar-se a distinção entre si próprio e o outro. O amante genuíno considera a pessoa
amada como tendo uma identidade inteiramente separada. Mais ainda, o amante genuíno
respeita e incentiva essa separação e a individualidade única da pessoa amada. É
extremamente vulgar, no entanto, a falta de percepção e respeito por esta separação, que é
causa de muitas doenças mentais e sofrimento desnecessário.

Na sua forma mais extrema, a falta de percepção da separação do outro é chamada narcisismo.
Os indivíduos francamente narcisistas não conseguem ver os filhos, esposos ou amigos como
independentes de si a nível emocional. A primeira vez que comecei a compreender do que
trata o narcisismo foi durante uma entrevista com os pais de uma doente esquizofrénica, a
quem chamarei Susan X. Na altura, Susan tinha trinta e um anos. Desde os dezoito, tinha feito
várias tentativas de suicídio e tinha estado hospitalizada quase continuamente numa série de
hospitais e sanatórios durante os treze anos anteriores. No entanto, em grande parte devido
aos excelentes cuidados psiquiátricos que tinha recebido doutros psiquiatras durante esses
anos, estava finalmente a começar a melhorar. Durante alguns meses, enquanto trabalhámos
juntos, ela tinha demonstrado uma capacidade progressiva de confiar em pessoas merecedoras
de confiança, de distinguir as que mereciam confiança das que não mereciam, de aceitar o
facto de que tinha uma doença esquizofrénica e que teria de exercer
176

uma grande dose de auto-disciplina para o resto da vida para lidar com a doença, de se
respeitar e de fazer o necessário para ser auto-suficiente sem ter que esperar que os outros
tratassem dela. Em vista deste grande progresso, senti que se aproximava o momento em que
Susan estaria capaz de deixar o hospital e, pela primeira vez na vida, levar uma existência
independente. Foi nessa altura que conheci os pais, um casal bonito e abastado, a meio da casa
dos cinquenta. Foi com grande satisfação que lhes descrevi os enormes progressos de Susan e
lhes expliquei em detalhe as razões do meu optimismo. Mas, para minha grande surpresa,
pouco depois de eu começar a falar a mãe de Susan começou a chorar silenciosamente e
continuou enquanto eu prosseguia na minha mensagem de esperança. Ao princípio, pensei
que fossem lágrimas de alegria, mas era evidente pela sua expressão que se sentia triste. Por
fim, eu disse-lhe, "Estou intrigado, Sra. X. Tenho estado a contar-lhe coisas cheias de esperança
e, no entanto, parece estar triste."

"Claro que estou triste," respondeu. "Não posso deixar de chorar quando penso em tudo o que
a pobre Susan tem de sofrer."

Expliquei-lhe então, exaustivamente, que embora fosse verdade que Susan tinha sofrido muito
no decurso da doença, também tinha aprendido muito com esse sofrimento, tinha dado a volta
por cima e, calculava eu, era pouco provável que no futuro viesse a sofrer mais do que
qualquer outro adulto. De facto, até podia sofrer menos do que qualquer de nós, pelo
conhecimento que tinha adquirido na sua luta contra a esquizofrenia. A Sra. X continuou a
chorar silenciosamente.

"Francamente, continuo espantado, Sra. X," disse eu. "Nos últimos treze anos participou pelo
menos numa dúzia de conversas destas com os psiquiatras de Susan e, pelo que sei, nenhuma
foi tão optimista como esta. Não sente contentamento, para além da tristeza?"

177

"Só consigo pensar em como a vida é difícil para Susan," respondeu ela, chorosa.
"Olhe, Sra. X," disse eu, "há alguma coisa que eu lhe possa dizer sobre a Susan que a faça sentir
encorajada e feliz por ela?"

"A vida da pobre Susan é tão dolorosa," choramingou a senhora.

De repente, apercebi-me de que a Sra. X não chorava por Susan, mas por si própria. Chorava
pela sua dor e sofrimento. No entanto, a conversa era sobre Susan, não sobre ela, e ela estava
a chorar em nome de Susan. Como podia ela fazer isso? Então apercebi-me de que a Sra. X não
conseguia distinguir entre Susan e ela própria. O que ela sentia, Susan tinha de sentir também.
Estava a usar Susan como veículo de expressão das suas necessidades. Não o fazia consciente
ou maliciosamente; a nível emocional não conseguia, de facto, entender que Susan tinha uma
identidade separada da sua. Susan era ela. Na sua mente, Susan como indivíduo único e
diferente, com um caminho de vida único e diferente, simplesmente não existia - nem
provavelmente mais ninguém. Intelectualmente, a Sra. X reconhecia as outras pessoas como
sendo diferentes dela. Mas num plano mais básico, as outras pessoas não existiam para ela.
Nas profundezas da sua mente, o mundo inteiro era ela, a Sra. X, e só ela.

Em experiências posteriores, encontrei frequentemente mães de crianças esquizofrénicas que


eram extraordinariamente narcisistas como a Sra. X. Isto não significa que essas mães sejam
sempre narcisistas ou que as mães narcisistas não possam educar filhos não esquizofrénicos. A
esquizofrenia é uma perturbação extremamente complexa, com determinantes genéticas e
ambientais evidentes. Mas podemos imaginar o grau de confusão que o narcisismo da mãe
provocou na infância de Susan, e podemos ver objectivamente essa confusão

178

ao observar mães narcisistas a interagir com os filhos. Numa tarde em que a Sra. X se sentisse
infeliz, Susan chegava a casa, trazendo da escola desenhos que a professora tinha classificado
com A. Se ela dissesse à mãe, com orgulho, como estava a fazer progressos na escola, a Sra. X
podia muito bem responder: "Susan, vai dormir um bocadinho. Não te devias cansar tanto com
os trabalhos da escola. O sistema escolar já não é nada bom. Já não se importam com as
crianças." Por outro lado, numa tarde em que a Sra. X estivesse muito bem disposta, Susan
podia chegar a casa desfeita em lágrimas, por ter sido arreliada por uns quantos rapazes no
autocarro da escola, e a Sra. X poderia dizer: "Não é uma sorte o Sr. Jones ser tão bom
motorista? É tão simpático e paciente convosco e com a vossa turbulência. Acho que lhe devias
dar um lindo presente no Natal."
Como não reconhecem os outros como outros, mas como extensões deles próprios, os
indivíduos narcisistas não têm capacidade de empatia, que é a capacidade de sentir o que
outro sente. Faltando-lhes empatia, os pais narcisistas reagem inadequadamente aos filhos a
nível emocional, e não mostram reconhecimento ou constatação dos sentimentos dos filhos.
Não admira, portanto, que essas crianças cresçam com dificuldade em reconhecer, aceitar e daí
gerir os seus próprios sentimentos.

Embora normalmente não tão narcisistas como a Sra. X, a grande maioria dos pais não
reconhece devidamente nem aprecia completamente a individualidade singular dos filhos.
Abundam exemplos comuns. Os pais dirão dum filho "Sai mesmo ao pai" ou a um filho "És tal e
qual o teu tio Jim", como se os filhos fossem uma cópia genética deles ou da família, quando
pela combinação genética, todas as crianças são extremamente diferentes, geneticamente,
tanto dos pais como de todos os seus antepassados. Pais desportistas empur-

179

ram os filhos intelectuais para o futebol e os pais intelectuais empurram os filhos desportistas
para os livros, provocando-lhes sentimentos de culpa e inquietação desnecessários. A mulher
de um general queixa-se da filha de dezassete anos: "Quando está em casa, Sally senta-se no
quarto o tempo todo a escrever poesia. É mórbido, Doutor. Recusa-se terminantemente a ter
uma festa de apresentação à sociedade. Tenho receio que esteja gravemente doente." Depois
de entrevistar Sally, uma rapariga jovial e encantadora que está no quadro de honra da escola e
tem muitos amigos, disse aos pais que a considerava perfeitamente saudável e sugeri-lhes que
fizessem menos pressão sobre ela para ser uma cópia deles próprios. Saíram para ir procurar
outro psiquiatra, um que estivesse disposto a pronunciar as diferenças de Sally como desvios.

Os adolescentes queixam-se frequentemente que lhes impõem disciplina, não porque os pais
se preocupem verdadeiramente com eles, mas porque receiam que lhes prejudiquem a
imagem. "Os meus pais andam sempre atrás de mim para eu cortar o cabelo," diziam os
rapazes adolescentes há alguns anos. "Não conseguem explicar porque é que o cabelo
comprido é mau para mim. Só não querem é que os outros saibam que eles têm filhos de
cabelo comprido. Estão-se nas tintas para mim. Só se importam com a sua própria imagem."
Esse ressentimento adolescente é normalmente justificado. Os pais de facto não apreciam a
individualidade única dos filhos e, em vez disso, vêem os filhos como prolongamentos deles
próprios, da mesma forma que as suas roupas caras, os relvados meticulosamente tratados e
os carros brilhantes são prolongamentos de si próprios que representam o seu estatuto para o
mundo. É a estas formas de narcisismo mais ligeiras mas de qualquer forma destrutivas, que se
dirige Kahlil Gibran, no que são talvez as mais belas palavras jamais escritas sobre a educação
dos filhos:

180

Os teus filhos não são os teus filhos.

São os filhos e as filhas do desejo da Vida por si própria.

Vêm através de ti mas não de ti,

E embora estejam contigo, não te pertencem.

Podes dar-lhes o teu amor, mas não os teus pensamentos, Porque eles têm os seus próprios
pensamentos. Podes alojar-lhes os corpos mas não as almas, Porque as almas deles vivem na
casa do amanhã, que tu

[não podes visitar, nem sequer em sonhos. Podes lutar por ser como eles, mas não tentes fazê-
los ser

[como tu.

Porque a vida não anda para trás nem espera pelo passado Tu és o arco a partir do qual são
disparados os teus filhos

[como setas vivas.

O arqueiro vê o alvo no caminho do infinito, e arqueia-te [com a Sua força para que a Sua
flecha
[possa ir longe e veloz.

Deixa que o teu arquear às mãos do arqueiro seja de satisfação; Porque assim como Ele ama a
seta que voa, ama também

[o arco que é firme. *

A dificuldade que os humanos têm normalmente em apreciar inteiramente a separação


daqueles que lhes são próximos não só interfere com o seu papel de pais como com todas as
suas relações íntimas, incluindo o casamento. Não há muito tempo, num grupo de casais, ouvi
um dos membros afirmar que o "objectivo e função" da mulher era ter a casa bem arranjada e
alimentá-lo bem. Fiquei horrorizado com o que me pareceu o seu espalhafatoso chauvinismo
masculino. Pensei poder-lho demonstrar pedindo aos outros membros do grupo que

(Nota)

* The Prophet (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1951), pp. 17-18.

181

dissessem como entendiam o objectivo e a função dos seus parceiros. Para meu horror, os
outros seis, tanto homens como mulheres, deram respostas semelhantes. Todos eles definiram
o objectivo e função dos maridos ou mulheres em relação a si próprios; nenhum deles se
apercebia de que os seus parceiros tinham uma existência basicamente separada da sua ou
qualquer destino que não o do seu casamento. "É um espanto," exclamei eu, "não admira que
tenham todos problemas no casamento, e vão continuar a tê-los até conseguirem reconhecer
que cada um de vós tem um destino independente a cumprir." O grupo sentiu-se não só
penalizado como profundamente confuso pela minha declaração. Com alguma beligerância,
pediram-me que definisse o objectivo e a função da minha mulher. "O objectivo e a função de
Lily," respondi, " é evoluir tanto quanto for capaz, não em meu benefício mas no dela e para a
glória de Deus." No entanto, o conceito continuou a parecer-lhes estranho durante algum
tempo.

O problema da separação nas relações íntimas tem infernizado a humanidade através dos
tempos. No entanto, tem recebido mais atenção do ponto de vista político do que do marital. O
comunismo puro, por exemplo, exprime uma filosofia não diferente da dos casais que atrás
referi - nomeadamente, que o objectivo e função do indivíduo é servir a relação, o grupo, o
colectivo, a sociedade. Só é considerado o destino do Estado; o destino do indivíduo é
considerado sem importância. O capitalismo puro, por outro lado, apoia o destino do indivíduo
mesmo quando é à custa da relação, do grupo, do colectivo ou da sociedade. As viúvas e os
órfãos podem morrer à fome, mas isso não deve impedir o empresário individual de colher
todos os frutos da sua iniciativa. Devia ser óbvio para qualquer mente esclarecida que
nenhuma destas soluções puras para o problema da separação dentro das relações pode ter
êxito. A saúde do indivíduo depende da saúde da sociedade; a saúde

182

da sociedade depende da saúde dos indivíduos que a compõem. Quando lidamos com casais, a
minha mulher e eu fazemos a analogia entre o casamento e um acampamento de apoio de
montanhismo. Se se quer fazer montanhismo, tem que se ter um bom acampamento de apoio,
um lugar onde haja abrigo e provisões, onde se recebem cuidados e se descansa antes de se
aventurar a subir a outro pico. Os montanhistas de sucesso sabem que têm que passar tanto
tempo, ou mais, a tratar do acampamento como a subir às montanhas, porque a sua
sobrevivência depende do cuidado que têm em assegurar que o acampamento é bem
montado e aprovisionado.

Um problema comum e tradicionalmente masculino é o criado pelo marido que, depois de


estar casado, dedica todo o tempo a subir às montanhas e nenhum a tratar do casamento, ou
acampamento de apoio, esperando que ele esteja em perfeita ordem sempre que decidir
voltar para ele, para o seu descanso e lazer, sem assumir nenhuma responsabilidade pela sua
conservação. Mais cedo ou mais tarde, esta abordagem "capitalista" falha e ele regressa ao
acampamento para o encontrar num caos, tendo a sua mulher, a quem deu tão pouca atenção,
sido hospitalizada com um esgotamento nervoso, ou fugido com outro homem, ou renunciado
de qualquer outra forma ao lugar de supervisora do acampamento. Outro problema
igualmente vulgar e tradicionalmente feminino é criado pela mulher que, assim que se casa,
acha que atingiu o seu objectivo de vida. Para ela, o acampamento de apoio é o pico. Não
entende e não aceita a necessidade de o marido se realizar e ter outras experiências para além
do casamento e reage com ciúme e exigências infindas para que ele dedique cada vez mais
energia à casa. Como outras soluções "comunistas" do problema, esta cria uma relação
sufocante e estagnadora em que o marido, sentindo-se preso e limitado, pode bem fugir numa
altura de "crise da meia idade". O movimento de libertação da

183
mulher tem sido útil em mostrar o caminho que é obviamente a solução ideal: o casamento
como uma instituição realmente cooperante, que exige grandes contribuições e cuidados
mútuos, tempo e energia, mas que existe principalmente com o objectivo de apoiar cada um
dos participantes na sua jornada individual em direcção ao seu pico individual de
desenvolvimento espiritual. Tanto o homem como a mulher têm que cuidar do lar e ambos têm
que se aventurar.

Em adolescente, encantavam-me as palavras de amor que a poetisa americana Ann Bradstreet


dirigia ao marido: "Se jamais dois forem um, então nós."* À medida que fui crescendo, fui-me
apercebendo que é a separação dos parceiros que enriquece a união. Os bons casamentos não
podem ser construídos por indivíduos que têm tanto medo da sua solidão básica, como é tão
vulgarmente o caso, que procuram uma fusão no casamento. O amor genuíno não só respeita a
individualidade do outro como, de facto, procura cultivá-la, mesmo com o risco de separação
ou perda. O objectivo final de vida continua a ser o desenvolvimento espiritual do indivíduo, a
jornada solitária até aos picos onde só se pode ir sozinho. As jornadas significativas não podem
ser empreendidas sem o apoio dado por um casamento ou uma sociedade bem sucedidos. O
casamento e a sociedade existem para o objectivo básico de apoiar essas jornadas individuais.
Mas, como no caso do amor genuíno, os "sacrifícios" pelo desenvolvimento do outro resultam
num desenvolvimento igual ou superior de si próprio. É o regresso do indivíduo ao casamento
ou sociedade de apoio, vindo dos picos para onde viajou sozinho, que serve para elevar esse
casamento ou sociedade a novas alturas. Desta forma, o desenvolvimento individual e o da
sociedade são interdependentes, mas o cume

(Nota)

* To My Dear and Loving Husband, 1678, incluído em The Literature of the United States, de
Walter Blair et ai, eds. (Glenview, 111.: Scott Foresman

1953), p. 159.

184

do desenvolvimento é sempre e inevitavelmente solitário. É da solidão da sua sabedoria que


nos fala outra vez o profeta de Kahlil Gibran, sobre o casamento:

Mas que haja espaços na vossa união,

E que os ventos dos céus dancem entre vós.


Amai-vos um ao outro, mas não façam do amor um elo: Deixem-no antes ser um mar que se
move entre as praias

[das vossas almas.

Encham a taça um do outro mas não bebam só duma taça. Dêem do vosso pão um ao outro
mas não comam

[do mesmo pão. Cantem e dancem juntos e alegrem-se, mas deixem

[que cada um esteja só, Tal como as cordas duma harpa estão sós embora vibrem

[com a mesma música.

Dêem os vossos corações, mas não para que cada

[um os guarde.

Porque só a mão da Vida pode conter os vossos corações. E mantenham-se juntos mas não
demasiado próximos: Porque os pilares do templo estão afastados, E o carvalho e o cipreste
não crescem na sombra

[um do outro. *

(Nota)TheProphet, pp. 15-16.

185

Amor e Psicoterapia
É-ME DIFÍCIL RECONSTITUIR a motivação e o entendimento com que entrei na área da
Psiquiatria há quinze anos. É certo que eu queria "ajudar" as pessoas. O processo de ajudar as
pessoas nos outros ramos da Medicina envolvia tecnologias com que não me sentia à vontade
e que me pareciam demasiado mecânicas para o meu gosto. Também gostava mais de falar
com as pessoas do que de apalpá-las e explorá-las, e os subterfúgios da mente humana
seduziam-me mais do que os do corpo e dos germes que o infestam. Não fazia nenhuma ideia
de como os psiquiatras ajudavam as pessoas, exceptuando a fantasia de que possuíamos
palavras mágicas e técnicas mágicas de interacção com os doentes com que desatávamos os
nós da psique. Talvez eu quisesse ser mágico. Tinha muito pouca noção de que o trabalho
envolvido tinha que ver com o desenvolvimento espiritual dos pacientes, e certamente
nenhuma noção de que envolveria o meu próprio desenvolvimento espiritual.

Durante os primeiros dez meses de estágio, trabalhei com doentes internados altamente
perturbados, em quem pareciam ter muito melhores resultados os comprimidos ou os
tratamentos de choque e bons cuidados de enfermagem do que os meus, mas aprendi as
palavras mágicas e as técnicas de interacção tradicionais. Depois desse período, comecei a
tratar a minha primeira doente neurótica em regime ambulatório de longa duração. Chamar-
lhe-ei Mareia. Mareia vinha à consulta três vezes por semana. Era uma verdadeira luta. Não
falava sobre as coisas de que eu queria que ela falasse, ou não falava delas da maneira que eu
queria e às vezes nem falava de

186

todo. Dalguma forma os nossos valores eram bastante diferentes; durante a luta ela modificou
um pouco os dela e eu modifiquei os meus. Mas a luta continuou, apesar da minha reserva de
palavras, técnicas e posturas mágicas, e não havia sinais de melhoras por parte de Mareia. Na
verdade, pouco depois de começar o tratamento, entrou num padrão de promiscuidade quase
ultrajante, e durante meses relatava continuamente inúmeros incidentes de "mau
comportamento". Por fim, passado um ano, perguntou-me no meio de uma sessão, "Acha que
eu sou uma porcaria?"

"Parece que me está a pedir que lhe diga o que penso a seu respeito," respondi, tentando
brilhantemente ganhar tempo.
Era isso mesmo que ela queria, disse-me. E agora, o que é que eu ia fazer? Que palavras,
técnicas ou posturas mágicas me iam valer? Eu podia dizer "Porque é que pergunta?" ou "Quais
são as suas fantasias sobre o que eu penso a seu respeito?" ou "O que é importante, Mareia,
não é o que eu penso de si mas o que você pensa de si". No entanto, tinha a sensação
demolidora de que estas jogadas eram evasivas e que, depois de um ano inteiro a consultar-me
três vezes por semana, o mínimo a que Mareia tinha direito era uma resposta honesta da
minha parte sobre o que pensava dela. Mas não tinha nenhum precedente para isso; dizer a
uma pessoa cara a cara, honestamente, o que se pensa dela não fazia parte das palavras e
técnicas mágicas que os meus professores me tinham ensinado. Era uma interacção que nunca
tinha sido sugerida nem recomendada durante a minha formação; o próprio facto de nunca ter
sido mencionada era para mim indicação de que era uma interacção que se reprovava, uma
situação em que nenhum psiquiatra idóneo se deixaria cair. Como agir? Com o coração aos
pulos, agarrei-me ao que parecia ser um ramo muito precário. "Mareia," disse eu, "há mais de
um ano que vem à minha consulta. Durante este

187

longo período, as coisas não correram muito bem connosco. Muito desse tempo foi passado a
lutar, e a luta foi por vezes maçadora, ou arrasadora ou irritante para ambos. No entanto,
apesar disso, você continuou a vir à consulta, com considerável esforço e transtorno para si,
sessão após sessão, semana após semana, mês após mês. Não teria sido capaz de o fazer se
não fosse o tipo de pessoa que está decidida a evoluir e disposta a esforçar-se muito para se
tornar uma pessoa melhor. Não me seria possível considerar uma pessoa que se esforça tanto
como você uma porcaria. Não, não acho que seja uma porcaria. De facto, admiro-a muito."

Das dúzias de amantes, Mareia escolheu imediatamente um e estabeleceu com ele uma
relação com significado que acabou por levar a um casamento muito bem sucedido e
gratificante. Nunca mais foi promíscua. Começou imediatamente a falar das coisas boas que
tinha. A sensação de luta improdutiva que havia entre nós desvaneceu-se instantaneamente e
o nosso trabalho tornou-se fluente e alegre, com um progresso incrivelmente rápido.
Estranhamente, o ter-me arriscado a revelar os meus sentimentos genuinamente positivos a
seu respeito algo que sentia que não devia fazer - em vez de a magoar, pareceu ter um grande
efeito terapêutico e representou claramente a grande mudança no nosso trabalho conjunto.

Que significa isto? Significa que para praticar a boa Psiquiatria nos basta dizer aos doentes que
pensamos bem deles? Nem por isso. Primeiro, é necessário ser sempre honesto em terapia. Eu
admirava e gostava verdadeiramente de Mareia. Segundo, a minha admiração e simpatia
tinham para ela verdadeiro significado precisamente porque nos conhecíamos há muito tempo
e pela profundidade das nossas experiências na terapia. De facto, a essência deste ponto de
mudança não tinha a ver com a minha simpatia e admiração; tinha a ver com a natureza da
nossa relação.

188

Um ponto de mudança igualmente dramático surgiu na terapia de uma jovem, a quem


chamarei Helen, que vinha à consulta há nove meses, duas vezes por semana, com uma
considerável ausência de resultados e por quem eu não nutria sentimentos muito positivos. Na
verdade, depois desse tempo todo, nem sequer tinha uma vaga ideia de quem Helen era.
Nunca tinha tratado um doente durante tanto tempo sem ter adquirido ideias sobre o
indivíduo e a natureza do problema a resolver. Ela confundia-me completamente e passei
grande parte de várias noites a tentar, sem sucesso, encontrar algum sentido no caso. A única
coisa que era clara era que Helen não confiava em mim. Ela clamava que eu não me interessava
verdadeiramente por ela de nenhuma maneira e feitio e que só me interessava pelo seu
dinheiro. Após nove meses de terapia, falava assim durante uma sessão: "O senhor não
imagina, Dr. Peck, como é frustrante tentar comunicar consigo, quando se mostra tão
desinteressado e por isso tão desligado dos meus sentimentos."

"Helen," respondi-lhe, "é frustrante para ambos. Não sei como é que isto a vai afectar, mas o
seu é o caso mais frustrante que já tive numa década de prática de psicoterapia. Nunca conheci
ninguém com quem fizesse menos progressos em tanto tempo. Talvez tenha razão em crer que
não sou a pessoa indicada para trabalhar consigo. Não sei. Não quero desistir, mas estou
verdadeiramente intrigado consigo e dou voltas à cabeça quase até dar em doido para
perceber que diabo se passa com o nosso trabalho em conjunto."

O rosto de Helen iluminou-se num sorriso. "Afinal de contas o senhor importa-se mesmo
comigo," disse ela.

"Ha?" perguntei.

"Se não se importasse mesmo comigo não se sentiria tão frustrado," respondeu ela, como se
fosse perfeitamente óbvio.
Logo na sessão seguinte, Helen começou a contar-me coisas que antes tinha escondido ou
sobre as quais tinha mesmo

189

mentido e, passado uma semana, eu já tinha uma noção clara do problema dela, pude fazer
um diagnóstico e soube genericamente como a terapia devia avançar.

Aqui também, a minha reacção para com Helen teve peso e significado precisamente devido à
profundidade do meu envolvimento com ela e a intensidade do nosso esforço. Vemos agora o
ingrediente essencial que torna a psicoterapia eficaz e bem sucedida. Não é "consideração
positiva incondicional", nem palavras, técnicas ou posturas mágicas, é envolvimento humano e
esforço. É a vontade do terapeuta de se prolongar com o objectivo de apoiar o
desenvolvimento do paciente - a vontade de se arriscar, de se envolver verdadeiramente a
nível emocional, de se esforçar com o paciente e consigo próprio. Em suma, o ingrediente
essencial da psicoterapia profunda, bem sucedida e com significado é o amor.

É notável, quase incrível, que a abundante literatura profissional do Ocidente sobre


psicoterapia ignore a questão do amor. Os gurus hindus não escondem o facto de o seu amor
ser a fonte do seu poder. O máximo que a literatura ocidental se aproxima da questão é nos
artigos que tentam analisar as diferenças entre psiquiatras bem e mal sucedidos e que
normalmente acabam por mencionar características dos psiquiatras bem sucedidos tais como
"calor humano" e "empada". Basicamente, parecemos ficar constrangidos pela questão do
amor. Há várias razões para isso. Uma é a confusão entre amor genuíno e amor romântico que
é tão difundida na nossa cultura, bem como as outras confusões que foram tratadas nesta
secção. Outra é a nossa propensão para o racional, tangível e mensurável na "medicina
científica", sendo muito por fora da "medicina científica" que a profissão de psicotera-

(Nota)

* Ver Peter Brent, The Goa Men of índia (Nova Iorque: Quadrangle Books, 1972).

190
peuta tem evoluído. Sendo o amor um fenómeno intangível, incompletamente mensurável e
supraracional, não se presta a análise científica.

Outra razão é a força da tradição psicanalítica, na Psiquiatria, do analista desprendido e


distante, uma tradição pela qual os seguidores de Freud parecem ser mais responsáveis do que
o próprio Freud. Nesta mesma tradição, quaisquer sentimentos de amor que o paciente possa
ter pelo terapeuta são normalmente classificados como "transferência" e quaisquer
sentimentos de amor do terapeuta pelo paciente como "contra-transferência", com a
implicação de que esses sentimentos são anormais, constituem parte do problema e não da
solução, e que devem ser evitados. Isto é tudo um absurdo. A transferência, como referido na
secção anterior, refere-se a sentimentos, percepções e respostas inadequados. Nada há de
inadequado nos pacientes que acabam por amar um terapeuta que os escuta
verdadeiramente, durante horas e horas, sem fazer juízos, que os aceita como provavelmente
ninguém os aceitou antes, que se coíbe completamente de os usar e que os tem ajudado a
aliviar o sofrimento. Na verdade, a essência da transferência, em muitos casos, é o que evita
que o paciente desenvolva uma relação de amor com o terapeuta, e a cura consiste em
trabalhar através da transferência, de modo a que o paciente possa ter uma relação de amor
bem sucedida, muitas vezes pela primeira vez. De igual modo, não há nada de impróprio nos
sentimentos de amor que um terapeuta desenvolve em relação ao paciente quando este se
submete à disciplina da psicoterapia, coopera no tratamento, se dispõe a aprender com o
terapeuta e começa a desenvolver-se com êxito através da relação. A psicoterapia intensiva, de
várias formas, é como a repetição da função de pais. Não é mais impróprio que um terapeuta
tenha sentimentos de amor para com o paciente do que um bom pai ou uma boa mãe pelo

191

filho ou filha. Pelo contrário, é essencial que o terapeuta ame o paciente para que a terapia
tenha bons resultados e, se a terapia tiver bons resultados, a relação terapêutica tornar-se-á de
amor mútuo. É inevitável que o terapeuta tenha sentimentos de amor coincidentes com o
amor genuíno que demonstrou para com o paciente.

Na sua maior parte, a doença mental é provocada pela ausência ou falta do amor de que uma
determinada criança necessitava por parte de determinados pais para amadurecer com êxito e
se desenvolver espiritualmente. É óbvio, assim, que para se curar através da psicoterapia o
doente tem que receber do terapeuta pelo menos uma porção do amor genuíno de que foi
privado. Se o psicoterapeuta não for capaz de amar verdadeiramente o paciente, a verdadeira
cura não se verificará. Por muito boas que sejam as credenciais e a formação dos
psicoterapeutas, se não forem capazes de se prolongar através do amor até aos doentes, o
resultado da sua prática psicoterapêutica terá, de uma maneira geral, poucos resultados. Pelo
contrário, um psicoterapeuta sem credenciais e com um mínimo de formação que tenha uma
grande capacidade de amar obterá resultados psicoterapêuticos idênticos aos dos melhores
psiquiatras.

Uma vez que o amor e o sexo estão tão próximos e interrelacionados, convém mencionar aqui
resumidamente a questão das relações sexuais entre os psicoterapeutas e os seus doentes,
uma questão que tem atraído presentemente muita atenção por parte da imprensa. Devido à
natureza necessariamente amorosa e íntima da relação psicoterapêutica, é inevitável que tanto
os pacientes como os terapeutas desenvolvam com frequência uma atracção sexual forte ou
muito forte um pelo outro. As pressões para consumar sexualmente essa atracção podem ser
enormes. Suspeito que alguns profissionais da psicoterapia que atiram pedras ao terapeuta
que se envolveu

192

sexualmente com um paciente, não são terapeutas capazes de amar e portanto não
conseguem entender verdadeiramente a enormidade das pressões envolvidas. Mais ainda, se
eu tivesse um caso em que concluísse, depois de cuidadosa ponderação, que o
desenvolvimento espiritual da minha doente beneficiaria largamente por termos relações
sexuais, eu tê-las-ia. Em quinze anos de prática, no entanto, ainda não tive um caso desses e
acho difícil imaginar que pudesse existir. Primeiro, como disse, o papel do bom terapeuta é
principalmente o do bom pai, e os bons pais não consumam relações sexuais com os filhos por
razões variadas e muito fortes. A função de um pai é ser útil ao filho e não usá-lo para
satisfação pessoal. A função de um terapeuta é ser útil ao paciente e não usar o paciente para
servir as necessidades do terapeuta. A função de um pai é encorajar o filho ao longo do
caminho para a independência, e a função de um terapeuta com um doente é a mesma. É
difícil ver como um terapeuta que se relaciona sexualmente com um paciente não o usaria para
satisfazer as suas próprias necessidades ou como encorajaria a independência do paciente.

Muitos pacientes, especialmente os mais sedutores, sexualizaram ligações aos pais que tolhem
claramente a sua liberdade e desenvolvimento. Tanto a teoria como as poucas provas
existentes sugerem fortemente que uma relação sexual entre um terapeuta e um doente terá
maior probabilidade de cimentar as ligações imaturas do doente do que de as soltar. Mesmo
que a relação não seja consumada sexualmente, é penalizador para o terapeuta "apaixonar-se"
pelo doente uma vez que, como vimos, o apaixonar-se envolve a queda das fronteiras do ego e
a diminuição da noção normal da separação que existe entre os indivíduos.
O terapeuta que se apaixona por um doente não consegue ser objectivo quanto às
necessidades do doente nem separar

193

essas necessidades das suas. É por amor aos pacientes que os terapeutas não se deixam
apaixonar por eles. Uma vez que o amor genuíno exige o respeito pela identidade separada do
amado, o terapeuta que ama verdadeiramente reconhece e aceita que o caminho do paciente
na vida é e deve ser separado do seu. Para alguns terapeutas, isto significa que o seu caminho e
o do paciente nunca se devem cruzar fora da hora terapêutica. Embora eu respeite esta
posição, considero-a desnecessariamente rígida. Embora tenha tido uma experiência em que o
meu relacionamento com uma ex-doente pareceu ser-lhe decididamente prejudicial, tive várias
outras experiências em que as relações sociais com ex-pacientes pareceram claramente
benéficas tanto para eles como para mim. Também tive a sorte de analisar diversos amigos
muito próximos. De qualquer maneira, o contacto social fora da hora de terapia, mesmo depois
de a terapia ter terminado formalmente, é algo que só deve ser iniciado com grande cuidado e
rigorosa análise interior para estabelecer se são as necessidades do terapeuta que serão
preenchidas pelo contacto, em detrimento das do paciente.

Temos estado a analisar o facto de a psicoterapia dever ser (ter de ser, para dar bons
resultados) um processo de amor genuíno, uma noção algo herética nos círculos psiquiátricos
tradicionais. O outro lado da moeda é pelo menos igualmente herético: se a psicoterapia é
amar genuinamente, o amor deve ser sempre psicoterapêutico? Se amamos verdadeiramente
o nosso parceiro, pais, filhos, amigos, se nos estendemos para alimentar o seu
desenvolvimento espiritual, devíamos praticar psicoterapia com eles? A minha resposta é: Com
certeza. De vez em quando, num cocktail, alguém me diz, "Deve ser-lhe difícil, Dr. Peck, separar
a sua vida social da sua vida profissional. Afinal de contas, não se pode passar a vida a analisar
os familiares e os amigos, pois não?" Normalmente, quem o diz

194

está só a fazer conversa de circunstância e não está interessado nem disposto a assimilar uma
resposta séria. De vez em quando, no entanto, essa situação dá-me a oportunidade de ensinar
ou praticar psicoterapia ali mesmo, explicando porque nem sequer tento, nem quereria tentar,
separar a minha vida profissional da pessoal. Se me apercebo de que a minha mulher, os meus
filhos, os meus pais ou os meus amigos sofrem de uma ilusão, falsidade, ignorância ou
impedimento desnecessário, tenho tanta obrigação de me estender para eles e corrigir a
situação dentro do possível, como faço com os meus pacientes, que me pagam pelos meus
serviços. Devo negar os meus serviços, o meu saber e o meu amor à família e aos amigos
porque não me contrataram especificamente nem me pagaram para atender às suas
necessidades psicológicas? Não me parece. Como posso ser bom amigo, pai, marido ou filho se
não aproveitar as oportunidades que surgem para tentar, com a arte de que for capaz, ensinar
a quem amo o que sei, e dar toda a assistência que está no meu poder à sua jornada pessoal
de desenvolvimento espiritual? Além disso, eu espero o mesmo esforço por parte dos meus
amigos e da minha família até ao limite das suas capacidades. Embora a forma como me
criticam seja por vezes desnecessariamente brusca e os seus ensinamentos não tão
ponderados como os de um adulto, ajuda-me muito o que aprendo com os meus filhos. A
minha mulher orienta-me tanto quanto eu a ela. Não chamaria amigos aos meus amigos se
eles me escondessem a honestidade da sua reprovação e o seu interesse afectuoso quanto à
sensatez e segurança dos sentidos da minha própria jornada. Não posso desenvolver-me mais
rapidamente com a ajuda deles do que sem ela? Qualquer relação de amor genuíno é de
psicoterapia mútua.

Nem sempre vi as coisas desta maneira. Há alguns anos, apreciava mais a admiração do que as
críticas da minha mulher,

195

e fazia tanto por incentivar a sua dependência como o seu poder. A minha imagem como
marido e pai era a do provedor; a minha responsabilidade terminava quando trazia o sustento
para casa. Queria que o lar fosse um lugar de conforto, não de desafio. Nessa altura, teria
concordado com a sugestão de que seria perigoso, não ético e destrutivo que um
psicoterapeuta praticasse a sua arte com os amigos e a família. Mas a minha concordância era
motivada tanto por preguiça como por medo de utilizar erradamente a minha profissão.
Porque a psicoterapia, como o amor, é trabalho, e é mais fácil trabalhar oito horas por dia do
que dezasseis. Também é mais fácil amar uma pessoa que procura a nossa sabedoria, que se
desloca ao nosso território para a obter, que nos paga pela nossa atenção e cujas exigências se
limitam a cinquenta minutos de cada vez, do que amar alguém que considera a nossa atenção
um direito, cujas exigências podem não ser limitadas, que não nos vê como uma figura de
autoridade e não solicita os nossos ensinamentos. Fazer psicoterapia em casa ou com os
amigos requer a mesma intensidade de esforço e auto-disciplina que no consultório, mas em
condições muito menos ideais, o que quer dizer que em casa exige ainda mais esforço e amor.
Espero, portanto, que outros psicoterapeutas não tomem estas palavras como uma exortação a
começarem imediatamente a praticar a psicoterapia com os seus parceiros e filhos. Se nos
mantivermos numa jornada de desenvolvimento espiritual, a nossa capacidade de amar não
cessa de crescer. Mas é sempre limitada, e não se deve tentar a psicoterapia para além da
capacidade de amar de cada um, porque a psicoterapia sem amor não resulta e pode ser
mesmo prejudicial. Se puder amar seis horas por dia, contente-se com isso de momento,
porque a sua capacidade já é bem maior do que a da maior parte das pessoas; a jornada é
longa e requer tempo para que a sua capacidade aumente. Praticar a psicoterapia com os
amigos e a família, amarem-se

196

uns aos outros a tempo inteiro, é um ideal, um objectivo pelo qual lutar, mas que não é
atingido instantaneamente.

Uma vez que, como referi, os leigos podem praticar psicoterapia com êxito sem grande
formação, desde que sejam seres humanos que amam verdadeiramente, os comentários que
fiz relativamente à prática de psicoterapia com os amigos e a família não se aplicam somente a
terapeutas profissionais; aplicam-se a toda a gente. Às vezes, quando os pacientes me
perguntam quando estarão em condições de terminar a terapia, eu respondo-lhes, "Quando
for capaz de ser um bom terapeuta." Esta resposta é mais útil na terapia de grupo, onde os
pacientes praticam a psicoterapia uns com os outros e onde lhes podem ser apontadas as suas
falhas ao assumirem o papel de psicoterapeutas. Muitos pacientes não gostam desta resposta
e alguns dirão mesmo, "Isso dá muito trabalho. Para fazer isso teria que estar sempre a pensar
nas minhas relações com as pessoas. Não quero pensar assim tanto. Não quero ter tanto
trabalho. Só me quero divertir." Há pacientes que respondem da mesma maneira quando lhes
faço notar que todas as interacções humanas são oportunidades de aprender ou de ensinar (de
dar ou receber terapia), e quando não aprendem nem ensinam numa interacção, estão a
perder uma oportunidade. A maior parte das pessoas tem razão ao dizer que não quer atingir
um objectivo tão alto nem trabalhar tanto na vida. A maioria dos pacientes, mesmo nas mãos
dos terapeutas mais qualificados e dedicados, terminam o tratamento sem terem chegado a
preencher o seu potencial. Podem ter feito um percurso curto ou longo na jornada de
desenvolvimento espiritual, mas a viagem completa não é para eles. É ou parece ser
demasiado difícil. Contentam-se em ser homens e mulheres comuns e não tentam ser Deus.

197
O Mistério do Amor

ESTA ANÁLISE COMEÇOU, há muitas páginas atrás, por referir que o amor é um assunto
misterioso e que até agora o mistério tem sido ignorado. As questões levantadas até aqui
foram respondidas. Mas há outras questões, a que não é tão fácil responder.

Um conjunto de questões deriva logicamente da matéria até agora discutida. Ficou claro, por
exemplo, que a auto-disciplina se desenvolve a partir da base do amor. Mas isto não responde
à questão de onde vem o amor em si. Se fizermos essa pergunta, devemos perguntar também
quais são as fontes da ausência do amor. Foi também sugerido que a ausência de amor é a
causa principal das doenças mentais e que a presença do amor é portanto o elemento
essencial da cura na psicoterapia. Assim sendo, como é que alguns indivíduos, nascidos e
criados num ambiente sem amor, de negligência contínua e brutalidade gratuita, conseguem
transcender a infância, por vezes sem ajuda de psicoterapia, e tornam-se pessoas maduras,
saudáveis e até santas? Pelo contrário, como é que alguns pacientes, aparentemente não mais
doentes do que outros, não conseguem corresponder parcial ou totalmente ao tratamento
psicoterapêutico do mais conhecedor e afectuoso terapeuta?

Tentarei responder a este conjunto de questões na secção final, tentativa que não satisfará
completamente seja quem for, incluindo eu próprio. Espero, contudo, que o que escrevo preste
algum esclarecimento.

Há outro conjunto de questões que tem que ver com assuntos deliberadamente omitidos ou
encobertos na discussão do amor. Quando vejo a minha amada nua pela primeira vez,
completamente exposta ao meu olhar, há um sentimento que me

198

percorre: reverência. Porquê? Se o sexo não é mais do que um instinto, porque não fico apenas
"excitado" ou esfomeado? Essa simples fome seria suficiente para assegurar a propagação da
espécie. Porquê reverência? Porque se há-de complicar o sexo com isso? E já agora, o que é
que determina a beleza? Já disse que o objecto do amor genuíno tem que ser uma pessoa,
uma vez que só as pessoas têm espíritos capazes de se desenvolverem. Mas então a criação
mais bela dum mestre da escultura em madeira? Ou as melhores esculturas das madonnas
medievais? Ou a estátua de bronze do condutor de quadriga grego em Delfos? Esses objectos
não eram amados pelos seus criadores e a sua beleza não está de algum modo relacionada
com o amor dos seus criadores? E a beleza da Natureza - a Natureza, a que damos às vezes o
nome de "criação"? E porque temos tantas vezes a reacção estranha e paradoxal de tristeza ou
de lágrimas na presença da beleza ou da alegria? Como é que certos compassos de música
tocados ou cantados de algumas formas nos comovem tanto? E como é que se me
humedecem os olhos quando o meu filho de seis anos, na primeira noite em casa depois de
sair do hospital onde foi submetido a uma amigdalectomia, ainda doente, vem ter comigo,
deitado no chão de cansaço, e começa a massajar-me as costas suavemente?

Há claramente dimensões do amor que não foram discutidas e que são extremamente difíceis
de compreender. Penso que a sociobiologia não terá resposta para questões sobre estes
aspectos (e muitos outros). A Psicologia vulgar, com o seu conhecimento das fronteiras do ego,
pode ajudar - mas pouco. As pessoas que mais sabem sobre estas coisas são as que, entre os
religiosos, estudam o Mistério. É a elas e à questão da religião que nos devemos dirigir para
obter mesmo os mais ténues esclarecimentos sobre estes assuntos.

O resto deste livro é dedicado a certas facetas da religião. A secção que se segue analisa, de
forma muito limitada, a rela-

199

cão entre a religião e o processo de desenvolvimento. A secção final focará o fenómeno da


graça e o papel que ela tem neste processo. O conceito de graça é familiar na religião há
milénios, mas é estranho à ciência, incluindo a Psicologia. De qualquer forma, creio que a
compreensão do fenómeno da graça é essencial para completar a compreensão do processo
de desenvolvimento dos seres humanos. O que se segue representa, espero, uma contribuição
para a interligação, que cresce lentamente, entre a religião e a ciência da Psicologia.

200

Secção III
Desenvolvimento e Religião

Visões do Mundo e Religião

À MEDIDA QUE OS SERES humanos evoluem na disciplina, no amor e na experiência de vida, o


seu entendimento do mundo e do lugar que nele ocupam cresce naturalmente a par. Pelo
contrário, quando as pessoas não evoluem em termos de disciplina, amor e experiência de
vida, o seu entendimento também não se desenvolve. Assim, entre os membros da raça
humana existe uma extraordinária variabilidade de amplitude e sofisticação do nosso
entendimento do que é a vida.

Esse entendimento é a nossa religião. Uma vez que toda a gente tem algum entendimento -
uma visão global, mesmo que limitada, primitiva ou inexacta -, toda a gente tem uma religião.
Este facto, que não é amplamente reconhecido, é da maior importância: toda a gente tem uma
religião.

Sofremos, creio eu, da tendência de definir a religião duma fornia demasiado restrita. Ternos
tendência a pensar que a religião tem que compreender a fé em Deus ou uma prática ritual ou
a filiação num grupo religioso. Dizemos de alguém que não frequenta a igreja ou não acredita
num ser superior, "Ele não é religioso." Até já ouvi intelectuais dizerem coisas corno: "O
Budismo não é bem uma religião" ou "Os Unitários excluíram a religião da sua fé" ou ainda "O
Misticismo é mais uma filosofia do que uma religião". Tendemos a encarar a religião como algo
de monolítico, cortado de uma peça inteira e assim, com este conceito simplista, ficamos
intrigados em como duas

203
pessoas muito diferentes se podem apelidar de Cristãos. Ou Judeus. Ou como um ateu pode
ter uma noção de moralidade cristã muito mais desenvolvida do que um católico que vai
regularmente à missa.

Ao orientar outros psicoterapeutas, tenho verificado duma maneira geral que não prestam
muita atenção, se é que prestam alguma, à visão que os pacientes têm do mundo. Há várias
razões para isso, mas entre elas está a convicção de que se os pacientes não se consideram
religiosos por força da sua fé em Deus ou filiação numa igreja, não têm religião e portanto não
é necessário analisar mais o assunto. Mas a questão é que toda a gente tem um conjunto de
ideias e crenças, explícitas ou implícitas, quanto à natureza essencial do mundo. Os pacientes
encaram o Universo como basicamente caótico e sem significado, portanto só tem sentido
aproveitarem todos os pequenos prazeres que podem e quando podem? Vêem o mundo como
um lugar em "que se comem uns aos outros" e em que a crueldade é essencial para a
sobrevivência? Ou vêem-no como um lugar de acolhimento em que acontece sempre qualquer
coisa boa e em que não têm que se preocupar muito com o futuro? Ou um lugar que lhes deve
uma forma de vida independentemente de como orientam a sua? Ou um Universo de leis
rígidas em que serão abatidos e marginalizados se pisarem o risco? Et caetera. As pessoas têm
todas as espécies diferentes de visões do mundo. Mais cedo ou mais tarde, no decurso da
psicoterapia, a maior parte dos terapeutas reconhece a visão que o paciente tem do mundo,
mas se estiver atento a ela, tê-la-á mais cedo. E é essencial que os terapeutas detenham esse
conhecimento, porque a visão do mundo dos doentes é sempre uma parte essencial dos seus
problemas, sendo necessária uma correcção dessa visão do mundo para se curarem. Portanto
digo àqueles que oriento: "Descubram a religião dos vossos doentes, mesmo que eles digam
que não têm nenhuma."

204

DESENVOLVIMENTO E RELIGIÃO

Normalmente a religião ou visão do mundo de uma pessoa é, na melhor das hipóteses, apenas
incompletamente consciente. Os pacientes não têm muitas vezes a noção de como vêem o
mundo, e por vezes até pensam que possuem uma religião quando de facto são possuídos por
outra coisa muito diferente. Stewart, um engenheiro industrial de sucesso, teve uma depressão
grave na casa dos cinquenta. Apesar do seu sucesso profissional e do facto de ter sido um
marido e pai exemplar, sentia-se inútil e mau. "O mundo estaria melhor se eu estivesse morto,"
dizia ele. E falava a sério. Stewart fez duas tentativas de suicídio extremamente graves. Não
havia tranquilização realista que rompesse o irrealismo da sua auto-imagem de inutilidade.
Para além dos sintomas normais das depressões profundas, como insónia e agitação, Stewart
tinha muita dificuldade em engolir a comida. "Não é só a comida saber mal," dizia. "Isso
também. Mas é como se tivesse uma lâmina de aço espetada na garganta e só pudessem
passar líquidos." As radiografias e análises não conseguiram mostrar uma causa física para essa
dificuldade. Stewart não escondia a sua posição relativamente à religião. "Sou um ateu,
simplesmente," declarava. "Sou um cientista. As únicas coisas em que acredito são aquelas que
posso ver e tocar. Pode ser que fosse melhor para mim se tivesse fé num Deus tolerante e
afectuoso, mas francamente não aguento esse tipo de asneiras. Fartei-me quando era criança e
ainda bem que me livrei disso." Stewart tinha crescido numa pequena comunidade do Oeste
Central, filho de um rígido pregador fundamentalista, e de uma mulher igualmente rígida e
fundamentalista e tinha saído de casa e abandonado a igreja na primeira oportunidade.

Alguns meses depois de iniciar o tratamento, Stewart relatava o sonho seguinte: "Era na casa
da minha infância no Minesota. Era como se eu ainda fosse criança e lá vivesse, no entanto,
sabia que tinha a idade que tenho agora. Era de noite.

205

Um homem entrou na casa. Ia cortar-nos o pescoço. Nunca tinha visto aquele homem antes,
mas, estranhamente, eu sabia quem ele era: o pai de uma rapariga com quem eu tinha saído
umas vezes no tempo do liceu. Foi tudo. Não houve conclusão. Acordei cheio de medo,
sabendo que este homem nos queria cortar o pescoço."

Pedi a Stewart que me contasse tudo o que pudesse sobre o homem do sonho. "Não tenho
nada para lhe contar," disse ele. "Nunca conheci o homem. Só saí com a filha umas duas vezes

- não foi mesmo sair, só a acompanhei à porta de casa depois das reuniões do grupo de jovens
da igreja. Roubei-lhe um beijo, às escuras, atrás duns arbustos, num desses passeios." Aqui
Stewart deu uma risada nervosa e continuou, "No sonho, tinha a sensação de nunca ter visto o
pai, embora soubesse quem ele era. De facto, vi-o na vida real - à distância. Era o chefe da
estação da nossa cidade. De vez em quando, via-o quando ia à estação ver os comboios a
chegar, nas tardes de Verão."

Algo disparou na minha mente. Eu também tinha passado tardes preguiçosas de Verão a ver
passar comboios. A estação era onde havia acção. E o chefe da estação era o Director da Acção.
Sabia quais eram os lugares longínquos de onde vinham os grandes comboios que passavam
pela nossa cidadezinha e os lugares distantes para onde eles iam. Accionava os interruptores,
os sinais. Recebia o correio e expedia-o. E quando não estava a fazer essas coisas maravilhosas,
sentava-se no escritório a fazer uma coisa ainda mais maravilhosa: a bater numa tecla mágica
numa linguagem rítmica misteriosa, enviando mensagens para todo o mundo.

"Stewart," disse eu, "disse-me que era ateu, e eu acredito em si. Há uma parte da sua mente
que acredita não existir Deus. Mas começo a suspeitar que há outra parte da sua mente que
acredita em Deus - um Deus perigoso e bandido."

206

A minha suspeita estava certa. Gradualmente, à medida que trabalhávamos em conjunto,


relutantemente, lutando contra a resistência, Stewart começou a reconhecer em si uma fé
estranha e feia: um pressuposto, para além do seu ateísmo, de que o mundo era controlado e
dirigido por uma força malévola, uma força que não só lhe podia cortar o pescoço como estava
ansiosa por o fazer, ansiosa por o punir pelas suas transgressões. Gradualmente, começámos a
concentrar-nos nas suas "transgressões", na sua maior parte incidentes sexuais menores
simbolizados pelo "roubo de um beijo" à filha do chefe da estação. Mais tarde, tornou-se
evidente que (entre outras razões para a depressão) Stewart fazia penitência e cortava o
pescoço em termos figurativos, na esperança de que, ao fazê-lo, impedisse Deus de o fazer
literalmente.

Donde veio a noção de Stewart de um Deus cruel e de um mundo malévolo? Como evoluem as
religiões das pessoas? O que determina a visão do mundo de uma pessoa em particular?
Existem vários complexos de determinantes, mas não vamos explorá-los em profundidade
neste livro. Mas o factor mais importante na evolução da religião da maior parte das pessoas é,
obviamente, a cultura. Se somos europeus, acreditamos provavelmente que Cristo era um
homem branco, e se somos africanos, que era um homem negro. Um indiano nascido e criado
em Benares ou Bombaim, provavelmente tornar-se-á hindu e terá o que é descrito como uma
visão pessimista do mundo. Para um americano nascido e criado no Indiana, é mais provável vir
a ser cristão do que hindu e ter uma visão do mundo algo mais optimista. Tendemos a acreditar
no que as pessoas que nos rodeiam acreditam e tendemos a aceitar como verdade o que essas
pessoas nos dizem da natureza do mundo, quando as ouvimos ao longo dos nossos anos de
formação.
Mas menos óbvio (excepto para os psicoterapeutas) é o facto de a parte mais importante da
nossa cultura ser a nossa

207

família. A cultura mais básica em que nos desenvolvemos é a da nossa família e os nossos pais
são os "líderes da cultura". Além disso, o aspecto mais significativo dessa cultura não é o que
os nossos pais nos dizem sobre Deus e a natureza das coisas, mas aquilo que fazem - como se
comportam um com o outro, com os nossos irmãos e, acima de tudo, connosco. Por outras
palavras, o que aprendemos sobre a natureza do mundo enquanto crescemos é determinado
pela verdadeira natureza da nossa experiência no microcosmo da família. Não é tanto o que os
nossos pais dizem que determina a nossa visão do mundo, mas o mundo único que criam
através do seu comportamento. "Concordo que tenho essa noção de um Deus bandido," disse
Stewart, "mas donde vem? Os meus pais acreditavam mesmo em Deus - falavam nisso
incessantemente

- mas o deles era um Deus de Amor. Jesus ama-nos. Deus ama-nos. Amamos Deus e Jesus.
Amor, amor, amor, era só o que eu ouvia."

"Teve uma infância feliz?" perguntei.

Stewart fixou-me nos olhos. "Não se faça de parvo," disse ele. "Sabe bem que não. Sabe que foi
infelicíssima."

"Porque foi infelicíssima?"

"Também sabe isso. Sabe como foi. Batiam-me constantemente. Cintos, tábuas, vassouras,
escovas, tudo o que tivessem à mão. Não havia nada que eu fizesse que não merecesse uma
sova. Uma sova por dia dá saúde e torna-te um bom cristão."

"Alguma vez o tentaram estrangular ou cortar-lhe o pescoço?"


"Não, mas tenho a certeza de que o fariam se eu não tivesse cuidado." Houve um longo
silêncio. O rosto de Stewart mostrava-se extremamente deprimido. Por fim, disse "Começo a
compreender."

Stewart não era a única pessoa a acreditar no que eu passei a chamar "deus-monstro". Tive
vários pacientes com conceitos

208

semelhantes sobre Deus e ideias igualmente sinistras e aterradoras quanto à natureza da


existência. O que é de espantar é que o deus-monstro não seja mais vulgar na mente dos
humanos. Na primeira secção deste livro foi referido que, quando somos crianças, os pais são
aos nossos olhos infantis figuras semelhantes aos deuses, e que a forma como fazem as coisas
parece ser a forma como devem ser feitas no Universo inteiro. A nossa primeira (e,
tristemente, muitas vezes a única) noção da natureza de Deus é uma simples extrapolação da
natureza dos nossos pais, uma simples mistura dos caracteres das nossas mães e pais ou dos
seus substitutos. Quando se tem pais afectuosos e tolerantes, é provável que acreditemos num
Deus afectuoso e tolerante. E na nossa perspectiva adulta, o mundo parecerá ser tão acolhedor
como a nossa infância. Se os nossos pais são ríspidos e punitivos, provavelmente cresceremos
com um conceito de um deus-monstro ríspido e punitivo. E se não nos manifestarem afecto,
encararemos o Universo como igualmente desinteressado.

O facto de a nossa religião ou visão do mundo ser de início largamente determinada pela nossa
experiência única de infância confronta-nos com um problema central: a relação entre

* Frequentemente (mas nem sempre) a essência da infância de um doente e


consequentemente a essência da sua visão do mundo é recolhida da "primeira memória". Peço
muitas vezes aos meus doentes, "Diga-me qual é a primeira coisa de que se consegue lembrar."
Podem protestar que não conseguem fazê-lo, que têm várias memórias iniciais. Mas quando os
forço a escolher uma, a resposta varia entre "Bom, lembro-me de a minha mãe me pôr ao colo
e me levar para a rua para me mostrar um pôr-do-sol lindo" e "Lembro-me de me sentar no
chão da cozinha. Tinha feito chichi nas calças e a minha mãe estava à minha frente a agitar uma
grande colher e a gritar comigo". É provável que estas primeiras memórias, como o fenómeno
das memórias selectivas, que é o que são tantas vezes, sejam recordadas precisamente porque
simbolizam exactamente a natureza da primeira infância da pessoa. Não é de admirar,
portanto, que o sabor destas memórias iniciais seja frequentemente o mesmo que o dos
sentimentos mais profundos do paciente sobre a natureza da existência.

209

a religião e a realidade. É o problema do microcosmo e do macrocosmo. A visão do mundo de


Stewart como um lugar perigoso, onde lhe podiam cortar o pescoço se não tivesse cuidado, era
perfeitamente realista em termos do microcosmo do lar da sua infância; vivia sob o domínio de
dois adultos cruéis. Mas nem todos os pais são cruéis nem todos os adultos são cruéis. No
mundo maior, no macrocosmo, há muitas espécies diferentes de pais, pessoas, sociedades e
culturas.

Para desenvolver uma religião ou uma visão realista do mundo - ou seja, adaptada à realidade
do cosmo e ao papel que nele temos, tanto quanto conhecemos essa realidade temos
constantemente que rever e aumentar o nosso entendimento para compreender novos
conhecimentos do mundo maior. Estamos então a lidar com as questões da elaboração de
mapas e transferência, que discutimos alargadamente na primeira secção. O mapa da realidade
de Stewart era exacto no microcosmo da família, mas tinha transferido erradamente esse mapa
para um mundo maior adulto, onde estava consideravelmente incompleto e portanto
deficiente. Até certo ponto, a religião da maior parte dos adultos é um produto de
transferência.

A maior parte de nós funciona a partir de um quadro de referência mais restrito do que somos
capazes, não transcendendo a influência da nossa cultura, dos nossos pais e da nossa
experiência de infância particular sobre o nosso entendimento. Não é de admirar, portanto,
que o mundo da humanidade esteja tão cheio de conflitos. Temos uma situação em que os
seres humanos, que têm de lidar uns com os outros, têm visões substancialmente diferentes
sobre a natureza da realidade, no entanto cada um acredita ser a sua visão a correcta, uma vez
que se baseia no microcosmo da experiência pessoal. Para piorar as coisas, a maior parte de
nós nem sequer tem plena consciência das suas visões do mundo, quanto mais da unicidade da
experiência donde derivam. Bryant Wedge, um

210
psiquiatra que se está a especializar na área de relações internacionais, estudou negociações
entre os Estados Unidos e a U.R.S.S. e delineou um conjunto de pressupostos de base quanto à
natureza dos seres humanos, da sociedade e do mundo em que acreditam os americanos,
dramaticamente diferentes dos pressupostos dos russos. Estes pressupostos ditaram o
comportamento negociai das duas partes. No entanto, nenhuma das partes tinha consciência
dos seus pressupostos ou do facto de a outra parte se basear num conjunto de pressupostos
diferente. O resultado inevitável foi que o comportamento negociai dos russos pareceu aos
americanos disparatado ou deliberadamente maldoso, e claro que os russos consideraram os
americanos igualmente disparatados ou maldosos. Somos, na verdade, como os três cegos do
provérbio, cada um em contacto com uma parte diferente do elefante e no entanto
pretendendo conhecer a natureza do animal no seu todo. Assim nos disputamos sobre visões
microcósmicas diferentes e todas as guerras são guerras santas.

A Religião da Ciência

O DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL é uma jornada a partir do microcosmo para um


macrocosmo cada vez maior. Nas suas fases iniciais (que são aquelas a que este livro se dedica)
é uma jornada de conhecimento e não de fé. Para escaparmos ao microcosmo da nossa
experiência anterior e nos libertarmos

(Nota)

* Bryant Wedge e Cyril Muromcew, Psychological Factors in Soviet Disarmament Negotiation,


Journal of Conflict Resolution, 9, N°. l (Março,

1965), pp. 18-36. (Ver também Bryant Wedge, A Note on Soviet-American Negotiation,
Proceedings of the Emergency Conference on Hostility, Agression, and War, American
Association for Social Psychiatry, Nov. pp. 17-18, 1961.)

211

de transferências, é necessário aprender. Temos que aumentar continuamente o nosso


manancial de conhecimentos e o nosso campo de visão através da digestão e incorporação
exaustivas de novas informações.

O processo de expansão do conhecimento tem sido um dos principais temas deste livro.
Recorde-se que, na secção anterior, se definiu o amor como uma extensão - ou seja, uma
expansão - de nós próprios, referindo-se que entre os riscos do amor se contava o risco de
entrar no desconhecido de uma nova experiência. No fim da primeira secção, sobre disciplina,
foi também mencionado que a aprendizagem de algo de novo exige que se prescinda do Eu
anterior e a morte do conhecimento ultrapassado. Para desenvolver uma visão mais ampla,
temos que nos dispor a abandonar, a matar a nossa visão mais restrita. A curto prazo, é mais
confortável não o fazer - ficar onde se está, continuar a usar o mesmo mapa microcósmico,
evitar o sofrimento da morte de conceitos que se apreciam. O caminho do desenvolvimento
espiritual, contudo, está na direcção oposta. Começamos por desconfiar daquilo em que já
acreditamos, por procurar activamente o que é ameaçador e desconhecido, desafiando
deliberadamente a validade do que nos ensinaram anteriormente e que estimamos. O caminho
para a santidade passa por questionar tudo.

Num sentido muito real, começamos pela ciência. Começamos por substituir a religião dos
nossos pais pela religião da ciência. Temos que nos revoltar e rejeitar a religião dos nossos pais,
porque inevitavelmente a sua visão do mundo é mais restrita do que aquela que podemos ter
se tirarmos todas as vantagens da nossa experiência pessoal, incluindo a nossa experiência
adulta e a experiência de mais uma geração da história da humanidade. Não existe uma boa
religião que passa de geração em geração. Para ser vital, para ser a melhor de que somos
capazes, a religião tem que ser inteiramente pessoal,

212

totalmente forjada no fogo das nossas questões e dúvidas, no cadinho da nossa própria
experiência da realidade. Como disse o teólogo Alan Jones:

Um dos nossos problemas é que muito poucos desenvolvem uma vida pessoal distinta. Tudo
em nós parece em segunda mão, até as emoções. Em muitos casos, temos que nos valer de
informação em segunda mão para funcionarmos. Aceito a palavra dum médico, dum cientista,
dum agricultor, na base da confiança. Não gosto de o fazer. Tenho que o fazer, porque eles
detêm conhecimentos da vida em que eu sou ignorante. Sou capaz de conviver com a
informação em segunda mão sobre o estado dos meus rins, os efeitos do colesterol e a criação
de galinhas. Mas quando toca a questões de significado, propósito e morte, a informação em
segunda mão não serve. Não consigo sobreviver com uma fé em segunda mão num Deus em
segunda mão. Tem que haver uma palavra pessoal, uma confrontação única, para poder sentir-
me vivo. *
Portanto, para a nossa sanidade mental e desenvolvimento espiritual, temos que desenvolver a
nossa religião pessoal e não ficarmo-nos pela dos nossos pais. Mas o que é isso de "religião de
ciência"? A ciência é uma religião, porque é uma visão do mundo de considerável
complexidade, com vários dogmas principais. A maior parte destes dogmas principais são os
seguintes: o Universo é real e, como tal, um objecto válido para análise; tem valor para os seres
humanos examinar o Universo; o Universo faz sentido - ou seja, obedece a determinadas leis e
é previsível; mas os seres humanos são maus analistas, sujeitos a superstições, influências,
preconceitos e uma

(Nota)

* Journey Into Cbrist (Nova Iorque: Seabury Press, 1977), pp. 91-92.

213

profunda tendência para verem o que querem em vez do que lá está realmente; em
consequência, para examinar e compreender exactamente, é necessário que os seres humanos
se sujeitem à disciplina do método científico. A essência dessa disciplina é a experiência, pelo
que não podemos considerar que sabemos algo a menos que o tenhamos experimentado;
apesar de a disciplina do método científico começar com a experiência, não se deve confiar
apenas na simples experiência; para ser de confiança, a experiência deve poder ser repetida,
normalmente sob a forma de ensaio; além disso, a experiência deve ser constatável, ou seja,
outras pessoas devem passar pela mesma experiência nas mesmas circunstâncias.

As palavras chave são "realidade", "exame", "conhecimento", "desconfiança", "experiência",


"disciplina". Estas são as palavras que temos sempre utilizado. A ciência é uma religião de
cepticismo. Para escapar ao microcosmo da nossa experiência infantil, ao microcosmo da nossa
cultura e aos seus dogmas, às meias verdades que os nossos pais nos disseram, é essencial que
sejamos cépticos sobre o que pensamos que aprendemos até agora. É a atitude científica que
nos permite transformar a nossa experiência pessoal do microcosmo numa experiência pessoal
do macrocosmo. Temos que começar por nos tornarmos cientistas.

Muitos pacientes que já passaram por este começo dizem-me: "Não sou religioso. Não vou à
igreja. Já não acredito em muita coisa que a igreja e os meus pais me disseram. Não tenho a fé
dos meus pais. Acho que não sou muito espiritual." É muitas vezes um choque para eles
quando questiono a realidade do pressuposto de que não são seres espirituais. "Você tem uma
religião," poderei dizer-lhes, "bastante profunda. Venera a verdade. Acredita que pode evoluir
e melhorar: a possibilidade de progresso espiritual. Com a força da sua religião, está disposto a
sofrer as dores do desafio e as agonias de
214

desaprender. Assume o risco da terapia, e fá-lo pela sua religião. Não me parece nada realista
dizer que é menos espiritual do que os seus pais; pelo contrário, suspeito que a realidade é que
evoluiu espiritualmente mais do que os seus pais, que a sua espiritualidade é
consideravelmente mais avançada do que a deles, que é insuficiente para que tenham coragem
sequer para questionar."

Uma coisa que sugere que a ciência como religião representa uma melhoria, um salto
evolutivo, relativamente a outras visões do mundo, é o seu carácter internacional. Falamos da
comunidade científica mundial. E começa a aproximar-se de uma verdadeira comunidade, a
tornar-se mais coesa do que a igreja católica, que é provavelmente o que mais se aproxima de
uma verdadeira irmandade internacional. Os cientistas de todo o mundo conseguem, muito
melhor do que o resto das pessoas, falar uns com os outros. Até certo ponto, conseguiram
transcender o microcosmo da sua cultura. Até certo ponto, estão a tornar-se sábios.

Até certo ponto. Embora eu pense que a céptica visão do mundo das mentes científicas é uma
clara melhoria em relação à visão do mundo baseada na fé cega, superstição local e
pressupostos inquestionáveis, também creio que a maior parte das mentes científicas apenas
começou a jornada de desenvolvimento espiritual. Especificamente, penso que a perspectiva
da maior parte das mentes científicas no que respeita à realidade de Deus é quase tão
paroquial como a de simples camponeses que seguem cegamente a fé dos seus antepassados.
Os cientistas têm muita dificuldade em lidar com a realidade de Deus.

Quando olhamos, com a vantagem do nosso cepticismo sofisticado, para o fenómeno da


crença em Deus, não nos deixamos impressionar. Vemos dogmatismo e, a partir do
dogmatismo, vemos guerras, inquisições e perseguições. Vemos hipocrisia: pessoas que
professam a irmandade dos homens matando

215
os seus companheiros em nome da fé, enchendo os bolsos à custa dos outros e praticando
brutalidades de todas as espécies. Vemos uma multiplicidade espantosa de rituais e imagens
sem consenso: este deus é uma mulher com seis braços e seis pernas; aquele é um homem
sentado no trono; este é um elefante; aquele a essência do nada; panteões, deuses
domésticos, trindades, unidades. Vemos ignorância, superstição, rigidez. Os antecedentes da
crença em Deus parecem deixar muito a desejar. É tentador pensar que a humanidade estaria
melhor sem acreditar em Deus. Parece razoável concluir que Deus é uma ilusão das mentes
humanas - uma ilusão destrutiva - e que crer em Deus é uma forma comum de psicopatologia
humana que tem de ser curada.

Assim, temos uma questão: acreditar em Deus é uma doença? É uma manifestação de
transferência - um conceito dos nossos pais, derivado do microcosmo, indevidamente
projectado para o macrocosmo? Ou, por outras palavras, essa crença é uma forma de
pensamento primitiva e infantil que devíamos ultrapassar à medida que tentamos alcançar
níveis mais elevados de consciência e maturidade? Se quisermos ser científicos na tentativa de
responder a esta pergunta, é essencial que nos apoiemos na realidade de dados clínicos
verdadeiros. O que acontece à fé que uma pessoa tem em Deus, à medida que se desenvolve
através do processo da psicoterapia?

O Caso de Kathy

KATHY ERA A PESSOA MAIS assustada que conheci. Quando entrei no quarto dela pela primeira
vez, estava sentada no chão murmurando o que parecia um cântico. Olhou para mim, de pé
junto da porta, e os seus olhos esbugalharam-se de terror.

216

Gemeu e arrastou-se para o canto, encostando-se com força às paredes como se as quisesse
atravessar. Eu disse, "Kathy, sou psiquiatra. Não te vou fazer mal." Puxei uma cadeira, sentei-
me a uma certa distância dela e esperei. Durante mais um minuto, continuou a encostar-se ao
canto. Depois, começou a relaxar, mas apenas o suficiente para começar a chorar
incontrolavelmente. Passado um bocado, parou de chorar e começou a entoar o cântico
novamente. Perguntei-lhe o que tinha. "Vou morrer," desabafou, quase sem interromper a
cadência da cantilena. Não tinha mais nada para me dizer. Continuou a cantar. De cinco em
cinco minutos, mais ou menos, parava, aparentemente exausta, choramingava por momentos e
recomeçava a cantoria. A todas as perguntas que lhe fazia respondia apenas "Vou morrer", sem
nunca quebrar o ritmo do canto. Parecia que podia evitar a morte com o cântico e não se podia
deixar descansar nem dormir.

Do marido, Howard, obtive o mínimo dos factos. Kathy tinha vinte anos. Estavam casados há
dois. Não havia problemas no casamento. Kathy dava-se bem com os pais. Nunca tinha tido
dificuldades psiquiátricas antes. Era uma surpresa total. Nessa manhã, estava perfeitamente
bem. Tinha-o levado de carro ao emprego. Duas horas mais tarde, a irmã dele tinha-lhe
telefonado. Tinha ido visitar Kathy e tinha-a encontrado naquele estado. Tinham-na trazido
para o hospital. Não, não tinha tido nenhum comportamento estranho ultimamente. Excepto
talvez uma coisa. Desde há quatro meses que parecia ter medo de ir a lugares públicos. Para a
ajudar, Howard fazia as compras no supermercado, enquanto ela ficava no carro. Também
parecia ter medo de ficar sozinha. Rezava muito - mas isso ela sempre tinha feito desde que a
conhecia. A família era muito religiosa. A mãe ia à missa pelo menos duas vezes por semana.
Estranho - Kathy tinha deixado de ir à missa desde que se casaram. O que para ele

217

não tinha problema nenhum. Mas ainda rezava muito. Saúde física? Oh, era excelente. Nunca
tinha estado hospitalizada. Desmaiou uma vez, num casamento, uns anos antes.
Contraceptivos? Tomava a pílula. Espere aí. Há cerca de um mês disse-me que ia parar com a
pílula. Tinha lido algures que era perigoso ou coisa assim. Ele não se tinha preocupado muito
com isso.

Dei a Kathy quantidades maciças de tranquilizantes e sedativos para ela dormir de noite, mas
durante os dois dias seguintes o seu comportamento não se alterou: o cântico incessante,
incapacidade de comunicar outra coisa que não fosse a sua morte iminente, e um terror sem
limites. Finalmente, no quarto dia, dei-lhe uma injecção intravenosa de sódio amital. "Esta
injecção vai fazer-lhe sono, Kathy," disse-lhe eu, "mas não vai adormecer. Nem vai morrer. Vai
conseguir parar de cantar. Vai sentir-se muito relaxada. Vai conseguir conversar comigo. Quero
que me conte o que aconteceu na manhã em que veio para o hospital."

"Não aconteceu nada," respondeu Kathy.


"Levou o seu marido ao emprego?"

"Sim, depois fui para casa. E então soube que ia morrer."

"Foi a conduzir para casa como faz todas as manhãs depois de deixar o seu marido no serviço?"

Kathy começou outra vez a cantar.

"Pare de cantar. Kathy," ordenei-lhe. "Está completamente segura. Está a sentir-se muito
tranquila. Houve alguma coisa diferente quando voltou para casa naquela manhã. Vai dizer-me
o que foi diferente."

"Fui por outro caminho."

"Porque fez isso?"

"Fui pela rua onde fica a casa do Bill."

"Quem é o Bill?" perguntei.

Kathy começou a cantar mais uma vez.

218

"O Bill é um namorado seu?"


"Foi. Antes de me casar."

"Tem muitas saudades do Bill, não tem?"

Kathy gemeu, "Ai, meu Deus, vou morrer."

"Viu o Bill nesse dia?"

"Não."

"Mas queria vê-lo?"

"Vou morrer," respondeu Kathy.

"Acha que Deus a vai castigar por querer ver o Bill?"

"Sim."

"É por isso que pensa que vai morrer?"

"Sim." Mais uma vez, Kathy começou a cantar.

Deixei-a cantar uns dez minutos, enquanto me concentrava.

Por fim, disse-lhe, "Kathy, acha que vai morrer porque julga conhecer a mente de Deus. Mas
está enganada. Porque não conhece a mente de Deus. Tudo o que sabe é o que lhe disseram
sobre Deus. Muito do que lhe disseram sobre Deus está errado. Eu não sei tudo sobre Deus,
mas sei mais que você mais do que as pessoas que lhe falaram de Deus. Por exemplo, vejo
homens e mulheres, todos os dias, que querem ser infiéis, e alguns são, e não são castigados
por Deus. Sei, porque eles continuam a vir ter comigo. E conversam comigo. E sentem-se mais
felizes. Tal como você se vai sentir mais feliz. Porque vamos trabalhar juntos. E vai aprender
que não é uma pessoa má. E vai saber a verdade - sobre si e sobre Deus. E vai sentir-se mais
feliz, consigo e com a vida. Mas agora vai dormir. E quando acordar, já não vai ter medo de
morrer. E quando me vir outra vez amanhã de manhã, vai conversar comigo e vamos falar de
Deus e vamos falar de si."

De manhã, Kathy tinha melhorado. Ainda estava com medo e não estava convencida de que
não ia morrer, mas já não tinha a certeza. Gradualmente, nesse dia e por muitos dias daí em
diante, a história dela foi surgindo, aos bocados.

219

Durante o último ano do liceu, tinha tido relações sexuais com Howard. Ele queria casar com
ela e ela concordou. Duas semanas depois, no casamento de uma amiga, veio-lhe de repente à
ideia que não se queria casar. Desmaiou. Depois sentiu-se confusa sobre se amava Howard.
Mas sentia-se na obrigação de avançar com o casamento porque sabia que já tinha pecado por
ter tido relações pré-matrimoniais com ele, e esse pecado aumentaria se não consagrasse a
relação pelo casamento. No entanto, não queria ter filhos, pelo menos até estar mais segura de
amar Howard. Começou, portanto, a tomar a pílula - outro pecado. Não suportava ter de
confessar esses pecados e foi um alívio deixar de ir à missa depois de casar. Ela gostava do sexo
com Howard. No entanto, quase a partir do dia do casamento, ele deixou de se interessar por
ela sexualmente. Continuava a ser bom marido, comprava-lhe presentes, tratava-a com
deferência, trabalhava muito fora de horas porque não queria que ela trabalhasse. Mas ela
quase tinha que lhe implorar para terem relações sexuais, e as que tinham de quinze em
quinze dias eram a única coisa que lhe aliviava o aborrecimento constante. O divórcio estava
fora de questão; isso era pecado.

Mesmo sem querer, Kathy começou a ter fantasias de infidelidade sexual. Pensou que se livrava
delas se rezasse mais, e começou a rezar cinco minutos de hora a hora. Howard deu conta e fez
troça dela. Por isso, decidiu esconder-se e passou a rezar mais durante o dia, quando Howard
não estava em casa, para compensar o que não rezava à noite quando ele estava. Isto
significava que tinha de rezar mais ou mais depressa. Resolveu fazer as duas coisas. Passou a
rezar de meia em meia hora e, nos cinco minutos de oração, duplicava a velocidade. Apesar
disso, as fantasias de infidelidade continuavam e, gradualmente, tornaram-se ainda mais
frequentes e insistentes. Sempre que saía, olhava para os homens. O que piorava as
220

coisas. Passou a ter medo de sair com Howard e, mesmo quando estava com ele, passou a ter
medo dos lugares públicos onde pudesse ver homens. Pensou em regressar à igreja. Mas
depois percebeu que, se voltasse à igreja, estaria a pecar se não se fosse confessar ao padre
sobre as suas fantasias de infidelidade. Disso não era capaz. Voltou a duplicar a velocidade das
orações. Para facilitar, arranjou um sistema complicado em que a cantilena de uma só sílaba
valia por uma oração completa. Esta foi a génese da sua cantoria. Passado algum tempo,
aperfeiçoou o sistema de maneira que conseguia salmodiar mil orações em cinco minutos. Ao
princípio, quando estava muito ocupada a aperfeiçoar o cântico, as fantasias de infidelidade
pareciam ter diminuído, mas assim que teve o sistema controlado, regressaram em força.
Começou a pensar em como é que podia concretizá-las. Pensou em telefonar a Bill, o antigo
namorado. Pensou em bares onde podia ir de tarde. Aterrorizada com a perspectiva de ser
capaz de o fazer, deixou de tomar a pílula, na esperança que o medo de engravidar a ajudasse a
resistir. Mas o desejo não parava de aumentar. Uma tarde, deu por si a masturbar-se. Ficou
horrorizada. Esse era talvez o pecado pior de todos. Tinha ouvido falar nos duches frios e
tomou um o mais frio que conseguiu aguentar. Mas, no dia seguinte, tudo se repetia.

Por fim, naquela manhã, cedeu. Depois de deixar Howard no emprego, seguiu directamente
para casa de Bill. Estacionou mesmo em frente. Esperou. Nada aconteceu. Parecia não estar
ninguém em casa. Saiu do carro e encostou-se a ele, numa pose sedutora. "Por favor,"
implorou silenciosamente, "por favor faz com que o Bill me veja, que repare em mim."
Continuou sem acontecer nada. "Por favor, faz com que alguém me veja, um qualquer. Tenho
que ir para a cama com alguém. Ai, meu Deus, sou uma prostituta. Sou a Prostituta da
Babilónia. Ai, meu Deus, mata-me, tenho que morrer." Saltou para dentro do

221

carro e dirigiu-se para o apartamento a alta velocidade. Foi buscar uma lâmina para cortar o
pulso. Não foi capaz. Mas Deus era. Deus fá-lo-ia. Deus dar-lhe-ia o que merecia. Ele ia acabar
com tudo, com ela. Sejam vigilantes. "Oh, meu Deus, tenho tanto medo, tanto medo,
despacha-te por favor, tenho tanto medo." Começou a entoar o cântico, à espera. E foi assim
que a cunhada a encontrou.

Só consegui extrair a história completa após meses de trabalho esforçado. Muito desse
trabalho foi concentrado no conceito de pecado. Onde é que ela tinha aprendido que a
masturbação era pecado? Quem lhe disse que era pecado? O que fazia da masturbação um
pecado? Porque é que a infidelidade é pecado? O que faz um pecado? E por aí adiante. Não
conheço outra profissão mais excitante e privilegiada do que a prática da psicoterapia, mas por
vezes consegue ser quase entediante quando se questionam metodicamente as atitudes de
uma vida, uma a uma, em todos os detalhes. Esse questionar muitas vezes já tem resultados
positivos mesmo antes de a história ser totalmente revelada. Por exemplo, Kathy conseguiu
contar-me muitos destes pormenores, como as fantasias e a tentação de se masturbar, só
depois de ter começado a questionar ela própria a validade da sua culpa e o conceito que tinha
destes actos como pecados.

Ao levantar estas questões, também foi necessário que questionasse a validade da autoridade
e sapiência da Igreja Católica, ou pelo menos da Igreja tal como a conhecia por experiência.
Não se ataca a Igreja Católica facilmente. Ela só o conseguiu fazer porque tinha em mim a força
dum aliado, porque gradualmente se apercebeu de que eu estava mesmo do lado dela, que
defendia verdadeiramente os seus interesses e não a levaria ao mal. Esta "aliança terapêutica",
como ela e eu construímos lentamente, é um pré-requisito da psicoterapia com resultados
positivos.

222

Muito deste trabalho foi conduzido em regime ambulatório. Kathy teve alta do hospital uma
semana depois da sessão com sódio amital. Mas foi apenas ao fim de quatro meses de terapia
intensiva que conseguiu dizer, em relação aos seus conceitos de pecado, "Parece-me que a
Igreja Católica me vendeu gato por lebre." Neste ponto, começou uma nova fase da terapia, em
que perguntámos: Como aconteceu tudo isto? Como se tinha permitido comprar o gato por
lebre? Como é que não tinha conseguido pensar mais por ela e não tinha questionado a Igreja
de alguma forma até agora? "Mas a minha mãe disse-me que não se deve questionar a Igreja,"
disse Kathy. Então, começámos a trabalhar na relação de Kathy com os pais. Com o pai, não
havia relação. Não havia com quem se relacionar. O pai trabalhava; era tudo. Trabalhava,
trabalhava e quando chegava a casa, dormia na cadeira com uma cerveja. Excepto às Sextas-
feiras à noite. Saía para ir beber a cerveja. A mãe dirigia a família. Sozinha, sem ser
questionada, sem a contradizerem, sem oposição, ela mandava. Era bondosa mas firme. Era
generosa, mas nunca cedia. Tranquila, mas implacável. "Não deves fazer isso, querida. As boas
raparigas não fazem isso." "Não vais usar esses sapatos, querida. As meninas de boas famílias
não usam esses sapatos." "Não é uma questão de quereres ir à missa, querida. O Senhor quer
que vamos à missa." Gradualmente, Kathy foi-se apercebendo que, por trás do poder da Igreja
Católica, estava o tremendo poder da mãe, uma pessoa tão suave mas tão completamente
dominadora que era impensável desafiá-la.

A psicoterapia raramente decorre sem sobressaltos. Seis meses depois de ela ter saído do
hospital, Howard telefonou-me, num Domingo de manhã, a dizer que Kathy se tinha fechado
na casa de banho do apartamento deles, a entoar cânticos outra vez. De acordo com as minhas
instruções, ele convenceu-a a voltar ao hospital, onde me encontrei com eles.

223

O C A M IN H O M ENOS P F: R C O R RI D O

Kathy estava com quase tanto medo corno no dia em que a conheci. Mais uma vez, Howard
não fazia ideia da causa. Levei Kathy para o quarto. "Pare de cantar," ordenei-lhe, "e diga-me o
que se passa."

"Não posso."

"Pode, sim, Kathy."

Quase sem respirar pelo meio da cantilena, sugeriu, "Talvez consiga se me der a droga da
verdade."

"Não, Kathy," respondi. "Desta vez está suficientemente forte para o fazer por si."

Ela gemeu. Depois olhou para mim e continuou a cantar. Mas pude ver, nos olhos dela, zanga,
quase fúria, contra mim.
"Está zangada comigo," declarei.

Abanou a cabeça enquanto cantava.

"Kathy," disse eu, "posso pensar numa dúzia de razões para estar zangada comigo. Mas não sei
se não me disser. Pode dizer-me. Não faz mal."

"Vou morrer," gemeu ela.

"Não vai não, Kathy. Não vai morrer porque está zangada comigo. Eu não a vou matar por estar
zangada comigo. Pode estar zangada comigo à vontade."

"Os meus dias não são longos," gemeu Kathy. "Os meus dias não são longos."

Houve algo nestas palavras que me soou estranho. Não eram as palavras que esperava. Não
pareciam naturais. Mas não sabia muito bem o que dizer e acabava por me repetir duma
maneira ou doutra.

"Kathy, eu gosto de si," disse eu. "Gosto de si mesmo que me odeie. O amor é isso. Como é que
a podia castigar por me odiar, se gosto de si, mesmo odiando-me?"

"Não é a si que odeio," soluçou.

De repente, fez-se luz. "Os seus dias não são longos. Não são longos na terra. É isso, não é
Kathy? Honra pai e mãe

224
para que os teus dias sejam longos nesta terra. O Quinto Mandamento. Honra-os ou morre. É o
que está a acontecer, não é?"

"Odeio-a," murmurou Kathy. Depois mais alto, como se o som da própria voz ao dizer as
palavras temidas lhe aumentasse a coragem, "Odeio-a. Odeio a minha mãe. Odeio-a. Nunca
me deu... Nunca me deu... Nunca me deu eu. Nunca me deixou ser eu. Fez-me à imagem dela.
Obrigou-me, obrigou-me, obrigou-me. Nunca me deixou ser eu em nada."

Na verdade, a terapia de Kathy ainda estava na fase inicial. O verdadeiro terror do dia-a-dia
ainda não tinha surgido, o terror de ser ela mesma de mil e uma maneiras. Ao reconhecer o
facto de que a mãe a tinha dominado completamente, Kathy tinha que enfrentar o porquê de
ter deixado que isso acontecesse. Ao rejeitar o domínio da mãe, tinha que se defrontar com o
processo de estabelecer os seus próprios valores e tomar as próprias decisões, e estava muito
assustada. Era muito mais seguro deixar a mãe tomar as decisões, muito mais simples adoptar
os valores da mãe e os da Igreja. Dava muito mais trabalho orientar a sua própria existência.
Mais tarde, Kathy veio a dizer, "Sabe, eu não trocava de lugar com a pessoa que eu era de
maneira nenhuma, mas, às vezes, tenho saudades desse tempo. A minha vida era mais fácil.
Pelo menos duma maneira."

Ao começar a funcionar de forma mais independente, Kathy confrontou Howard com as suas
falhas como amante. Howard prometeu mudar. Mas nada aconteceu. Kathy pressionou-o. Ele
começou a ter ataques de ansiedade. Por minha insistência, quando me consultou quanto a
esses ataques, foi tratar-se com outro psiquiatra. Começou a lidar com sentimentos
homossexuais profundamente recalcados, de que se tinha defendido ao casar com Kathy.
Como ela era muito atraente fisicamente, ele considerava-a uma "grande conquista",

225

um prémio que comprovava a sua competência masculina, tanto para si como para o mundo.
Nunca a tinha amado de forma significativa. Quando aceitaram isso, ele e Kathy concordaram
num divórcio amigável. Kathy começou a trabalhar como vendedora num armazém de
vestuário. Comigo, angustiava-se com as inúmeras pequenas decisões, mas independentes,
que tinha que tomar em relação ao trabalho. Gradualmente, tornou-se mais assertiva e
confiante. Saía com muitos homens, pensando em casar novamente e ter filhos mas, de
momento, gozava a carreira. Passou a compradora assistente no armazém. Quando terminou a
terapia, foi promovida a compradora e, recentemente, disse-me que tinha mudado para outra
firma, maior, com a mesma função, e sentia-se satisfeita com ela própria, aos vinte e sete anos.
Não vai à igreja e já não se considera católica. Não sabe se acredita ou não em Deus, mas diz
francamente que a questão de Deus não lhe parece muito importante nesta altura da vida.

Descrevi o caso de Kathy com este pormenor, precisamente por ser tão típico da relação entre
a educação religiosa e a psicopatologia. Há milhões de Kathys. Eu costumava dizer às pessoas,
em ar de graça, que a Igreja Católica me sustentava como psiquiatra. Podia dizer o mesmo da
Igreja Baptista, da Luterana, Presbiteriana ou outra qualquer. A Igreja não era, evidentemente,
a única causa da neurose de Kathy. Num certo sentido, a Igreja era apenas um instrumento
utilizado pela mãe de Kathy para sedimentar e aumentar a sua autoridade excessiva. Pode
dizer-se, justificadamente, que a natureza dominadora da mãe, ajudada por um pai ausente,
era a causa mais básica da neurose, e também nesse aspecto o caso de Kathy era típico.
Mesmo assim, parte da culpa cabe à Igreja. Nenhuma freira da escola paroquial nem nenhum
padre no catecismo alguma vez encorajou Kathy a questionar razoavelmente a doutrina
religiosa ou a pensar por si própria fosse de

226

que maneira fosse. Nunca houve prova de preocupação por parte da Igreja que a sua doutrina
fosse ensinada ao exagero, irrealisticamente rígida ou sujeita a ser mal utilizada e mal aplicada.
Uma das formas de analisar o problema de Kathy seria afirmar que, enquanto acreditou
piamente em Deus, nos mandamentos e no conceito de pecado, a sua religião e entendimento
do mundo eram do tipo "passagem de testemunho", pouco adequado às suas necessidades.
Não tinha questionado, desafiado, pensado por si. No entanto, a Igreja de Kathy o que também
é típico - não fez o menor esforço para a ajudar a estabelecer uma religião pessoal mais
adequada e original. Parece que, de uma maneira geral, as Igrejas fomentam que a religião e o
entendimento do mundo sejam do tipo "passagem de testemunho".

Devido ao caso de Kathy ser tão típico e outros como ele serem tão vulgares, muitos
psiquiatras e psicoterapeutas encaram a religião como o Inimigo. Podem até considerar a
religião como uma neurose - uma colecção de ideias inerentemente irracionais que servem
para agrilhoar as mentes das pessoas e oprimir os seus instintos de desenvolvimento mental.
Freud, um racionalista e cientista por excelência, aparentemente via as coisas mais ou menos
nesta luz, e dado ser a figura mais influente da Psiquiatria (por muitas e boas razões), as suas
atitudes contribuíram para o conceito da religião como uma neurose. É na verdade tentador
para os psiquiatras verem-se como cavaleiros da ciência moderna, em nobre combate contra as
forças destrutivas de antigas superstições religiosas e dogmas irracionais mas autoritários. E o
facto é que os psicoterapeutas têm de dispender imenso tempo e esforço, lutando por libertar
as mentes dos pacientes de ideias religiosas ultrapassadas e de conceitos claramente
destrutivos.

227

O Caso de Mareia

NEM TODOS os CASOS SÃO semelhantes ao de Kathy. Há muitos outros padrões, alguns
também bastante comuns. Mareia foi um dos meus primeiros casos de terapia a longo prazo.
Era uma jovem bastante rica, de vinte e poucos anos, que me procurou devido a anedonia
generalizada. Embora não pudesse salientar o que estava errado na sua existência, achava-a
inexplicavelmente triste. Ela tinha um aspecto bastante triste. Apesar da fortuna e da educação
universitária, tinha o aspecto de uma imigrante pobre, suja e velha. Durante o primeiro ano de
terapia vestia-se invariavelmente com roupas azuis, cinzentas, pretas ou castanhas que lhe
assentavam mal e trazia um saco de tapeçaria enorme, sujíssimo e roto em tons idênticos. Era
filha única, de pais intelectuais, ambos professores universitários e socialistas, que acreditavam
que a religião era uma treta. Tinham feito troça dela, quando, no início da adolescência, ia à
igreja com uma amiga.

Na altura em que começou a fazer terapia, Mareia estava totalmente de acordo com os pais.
Logo no início, anunciou, orgulhosa e estridentemente, que era ateia - não uma ateia de trazer
por casa, mas a sério, que acreditava que a raça humana viveria muito melhor se pudesse
escapar da ilusão de que Deus existe ou até que possa existir. Curiosamente, os sonhos de
Mareia estavam cheios de símbolos religiosos, como pássaros a voarem para dentro de salas
levando no bico rolos de pergaminho com mensagens obscuras escritas numa língua antiga.
Mas não confrontei Mareia com este aspecto do seu subconsciente. De facto, não abordámos
sequer questões de religião durante os dois anos que durou a terapia. O que

228
focámos principalmente, em detalhe, foi a relação com os pais, duas pessoas extremamente
inteligentes e racionais que lhe tinham proporcionado conforto económico, mas que se
encontravam extraordinariamente distantes dela emocionalmente, da sua maneira
intelectualmente austera. Para além da distância emocional, estavam ambos tão empenhados
nas suas carreiras que lhes sobrava pouco tempo e energia para ela. O resultado era que,
embora tivesse um lar confortável e intacto, Mareia era a "pobre rapariguinha rica" proverbial,
uma órfã psicológica. Mas ela tinha relutância em encarar isso. Ficou ressentida quando sugeri
que os pais a tinham privado bastante, e ficou ressentida quando lhe fiz notar que se vestia
como uma órfã. Era a nova moda, disse ela, e eu não tinha o direito de a criticar.

Os progressos de Mareia na terapia foram dolorosamente graduais, mas dramáticos. O


elemento chave era o calor e a proximidade da relação que construímos lentamente um com o
outro, que contrastava com a relação que tinha com os pais. Uma manhã, no início do segundo
ano de tratamento, Mareia chegou à consulta com uma carteira nova. Tinha apenas um terço
do tamanho do velho saco de tapeçaria e em tons alegremente coloridos. A partir daí, mais ou
menos uma vez por mês, acrescentava uma nova peça colorida - laranja, amarelo, azul e verde
claro - ao guarda-roupa, quase como uma flor a abrir as pétalas. Na penúltima sessão comigo,
reflectia sobre como se sentia bem e disse, "Sabe, é estranho, mas não foi só o meu interior
que mudou; tudo à minha volta parece ter mudado também. Apesar de eu ainda aqui estar, a
viver na mesma casa e a fazer as mesmas coisas, o mundo inteiro parece diferente, sinto-o
muito diferente. Sinto-o acolhedor, seguro, afectuoso, excitante e bom. Lembro-me de lhe dizer
que era ateia. Já não tenho a certeza se continuo a ser. Na verdade, acho que não sou. Às
vezes, quando sinto o mundo

229

bem, digo para mim mesma 'Sabes, aposto que há mesmo um Deus. Acho que o mundo não
podia estar tão bem sem um Deus'. É engraçado. Não sei como falar destas coisas. Sinto-me
ligada, real, como se fosse uma parte verdadeira de um quadro muito grande, e embora não
consiga ver muito do quadro, sei que lá está e que é bom e sei que faço parte dele."

Através da terapia, Kathy passou de um lugar onde a noção de Deus era da máxima
importância para um lugar onde não tinha nenhuma. Mareia, por outro lado, passou de uma
posição em que rejeitava a noção de Deus para uma em que adquiria bastante significado. O
mesmo processo, o mesmo terapeuta, no entanto resultados aparentemente opostos, ambos
positivos. Como explicar isto? Antes de tentarmos, consideremos mais outro tipo de caso. No
caso de Kathy foi necessário que o terapeuta questionasse activamente as suas ideias religiosas
para conseguir mudar para uma influência drasticamente diminuída do conceito de Deus na
sua vida. No caso de Mareia, o conceito de Deus começou a assumir uma influência crescente,
sem que o terapeuta questionasse alguma vez os seus conceitos religiosos. Podemos
perguntar, será necessário que um terapeuta questione activamente o ateísmo ou
agnosticismo dum paciente e o encaminhe deliberadamente na direcção da religiosidade?

O Caso de Theodore

TED TINHA TRINTA ANOS quando me veio consultar, e era eremita. Nos sete anos anteriores
tinha vivido numa pequena cabana bem escondida na floresta. Tinha poucos amigos e ninguém
próximo. Durante três anos não tinha saído com nenhuma rapariga. De vez em quando, fazia
pequenos traba-

230

lhos de carpintaria, mas de resto preenchia os dias a pescar, a ler e a perder imenso tempo a
tomar decisões sem importância, como o que ia fazer para o jantar e se podia ou não comprar
uma ferramenta barata. Na verdade, era bastante rico, devido a uma herança. Também era
intelectualmente brilhante. E, como me disse na primeira sessão, estava paralisado. "Sei que
devia estar a fazer algo de mais construtivo e criativo na vida," queixou-se, "mas nem sequer
consigo tomar decisões menores, quanto mais as grandes. Devia ter uma carreira. Devia ir para
a uma escola aprender um ofício, mas não me consigo entusiasmar com nada. Já pensei em
tudo - ensino, trabalho intelectual, relações internacionais, medicina, agricultura, ecologia mas
nada me excita. Posso-me interessar por um dia ou dois, mas depois todas as áreas parecem
ter problemas intransponíveis. A vida parece ser um problema intransponível."

O problema, disse Ted, começou quando tinha dezoito anos e entrou para a universidade. Até
aí tinha corrido tudo bem. Tinha tido uma infância vulgar numa família abastada e estável, com
dois irmãos mais velhos; pais que gostavam dele, embora não gostassem muito um do outro;
boas notas e satisfações num colégio interno particular. Depois - e talvez tenha sido crucial -
teve uma ligação apaixonada com uma mulher que o rejeitou na semana antes de entrar para a
universidade. Desesperado, passou a maior parte do ano de caloiro bêbado. No entanto,
mantinha boas notas. Depois teve várias outras ligações, cada uma menos empenhada e mais
desastrosa do que a anterior. As notas começaram a descer. Não conseguia decidir o que
escrever nos testes. Um amigo chegado, Hank, morreu num desastre de automóvel a meio do
segundo ano, mas ele tinha-se conformado. Chegou a deixar de beber, nesse ano. Mas o
problema de tomar decisões piorou ainda mais. Era simplesmente incapaz de escolher um
tópico para a sua tese. Terminou o trabalho de curso. Alugou um quarto fora

231

das instalações universitárias. Para se licenciar, faltava-lhe apenas apresentar uma breve tese, o
tipo de coisa que se fazia num mês. Levou os três anos seguintes. Depois, nada. Sete anos
antes, tinha ido para a floresta.

Ted tinha a certeza que o problema estava enraizado na sua sexualidade. Afinal de contas, as
dificuldades tinham começado com uma ligação desfeita, não tinham? Além disso, ele tinha
lido quase tudo o que Freud escreveu (e muito mais do que eu). Portanto, durante os primeiros
seis meses de terapia, vasculhámos a sua sexualidade infantil, mas não chegámos a nenhuma
conclusão especial. Mas durante esse período, emergiram facetas interessantes da sua
personalidade. Uma era a ausência total de entusiasmo. Podia desejar bom tempo e, quando
ele chegava, encolhia os ombros e dizia, "Não faz diferença nenhuma. Basicamente, cada dia é
igual ao seguinte." Enquanto pescava no lago, apanhou um enorme lúcio, "Mas era demais
para eu comer e como não tenho amigos com quem o partilhar, atirei-o novamente para o
lago."

Relacionada com esta falta de entusiasmo havia uma espécie de snobismo global, como se
achasse o mundo e tudo o que ele continha de mau gosto. Tinha o olhar do crítico. Acabei por
suspeitar que utilizava esse snobismo para manter alguma distância de coisas que, doutra
forma, o afectariam emocionalmente. Por último, Ted tinha uma enorme inclinação pelo
secretismo, o que fazia com que a terapia avançasse deveras devagar. Os factos mais
importantes de qualquer incidente tinham que lhe ser extraídos. Tinha tido um sonho: "Estava
numa sala de aula. Havia um objecto - não sei qual - que eu tinha posto dentro duma caixa.
Tinha construído a caixa à volta do objecto, de modo a que ninguém soubesse o que lá estava
dentro. Tinha posto a caixa dentro duma árvore morta, e com uns parafusos de madeira muito
bem feitos tinha voltado a colocar a casca da árvore por cima da caixa. Mas,

232
sentado na aula, lembrei-me de repente que não tinha a certeza de ter nivelado os parafusos
com a casca. Fiquei extremamente ansioso. Fui a correr ao bosque e trabalhei os parafusos de
modo a não se distinguirem da casca. Senti-me melhor e voltei para a aula." Como para muitas
pessoas, a aula e a sala de aula eram símbolos da terapia nos sonhos de Ted. Era evidente que
não queria que eu encontrasse o núcleo da sua neurose.

A primeira pequena amolgadela na armadura de Ted ocorreu durante uma sessão, no sexto
mês de terapia. Tinha passado o serão da noite anterior em casa de um conhecido. "Foi uma
noite horrível," lamentou-se Ted. "Quis que eu ouvisse um disco novo que tinha comprado, a
música de fundo que Neil Diamond compôs para o filme Fernão Capelo Gaivota. Foi uma
tortura. Não percebo como pessoas educadas podem gostar daquela porcaria nem mesmo
como lhe chamam música."

A intensidade desta reacção snob fez-me arrebitar as orelhas. "Fernão Capelo Gaivota é um
livro religioso," comentei. "A música também era religiosa?"

"Acho que tanto se pode chamar aquilo religioso como chamar-lhe música."

"Talvez tenha sido a religião que o ofendeu," sugeri, "e não tanto a música."

"Bem, eu de facto acho aquele tipo de religião ofensivo," respondeu Ted.

"Que tipo de religião?"

"Sentimental. Enjoativa." Ted quase cuspia as palavras.

"Que outros tipos de religião existem?" perguntei.


Ted mostrou-se intrigado, desconcertado. "Não muitos, acho eu. Acho a religião de uma forma
geral desinteressante."

"Foi sempre assim?"

Riu-se tristemente. "Não, quando era um adolescente com ideias pouco claras era muito ligado
à religião. No último ano do colégio, até era acólito na nossa igreja."

233

"E depois?"

"E depois, o quê?"

"Bom, que aconteceu à sua religião?" perguntei.

"Acho que me passou com a idade."

"Como é que lhe passou com a idade?"

"Que quer dizer, como me passou com a idade?" Ted estava a ficar claramente irritado. "Como
é que alguma coisa passa com a idade? Passou, é tudo."

"Quando lhe passou com a idade?"

"Não sei. Aconteceu. Já lhe disse. Na universidade, nunca ia à igreja."


"Nunca?"

"Nem uma vez."

"Então no último ano do colégio, foi acólito na igreja," comentei. "Depois, nesse Verão, teve
uma paixão que acabou. E depois nunca mais voltou à igreja. Foi uma mudança brusca. Acha
que a rejeição da sua namorada teve alguma coisa a ver com isso, ou não?"

"Não acho nada. O mesmo padrão se aplicava a muitos colegas meus. Atingimos a maioridade
numa altura em que a religião não estava na moda. Pode ser que a minha namorada tivesse
alguma coisa a ver com isso, pode ser que não. Como hei-de saber? Só sei que me
desinteressei pela religião."

A abertura seguinte aconteceu um mês mais tarde. Tínhamos estado a concentrar-nos na óbvia
falta de entusiasmo de Ted sobre fosse o que fosse, que ele reconheceu prontamente. "A
última vez que me lembro perfeitamente de me sentir entusiasmado," disse ele, "foi há dez
anos, no segundo ano. Foi em relação a um trabalho que fiz no fim de um curso semestral de
poesia britânica moderna."

"Sobre que era o trabalho?"

"Acho que não me recordo, foi há tanto tempo."

"Conversa," disse eu. "Consegue lembrar-se, se quiser."

234

"Bom, tinha a ver com Gerard Manley Hopkins. Foi um dos primeiros poetas verdadeiramente
modernos. Focava provavelmente o poema Beleza Multicor."
Saí do gabinete, fui à minha biblioteca e voltei com um volume empoeirado de poesia britânica
dos meus tempos da universidade. Beleza Multicor vinha na página 819. Li:

Glória a Deus pelas coisas salpicadas -

Pelos céus de duas cores qual vaca malhada;

Pelos sinais rosados que pontilham as trutas a nadar;

Cascatas de castanhas acabadas de assar; asas de tentilhão; Paisagens divididas e recortadas -


cerca, pousio e

arado;

E todos os ofícios, apetrechos, aparelhos e preparos.

Todas as coisas contrárias, originais, parcas, estranhas; O que é instável, sardento (quem sabe
como?) Depressa, devagar; doce, amargo; brilhante, fosco;

Ele gera aqueles cuja beleza resiste à mudança;

Que seja louvado.

Vieram-me as lágrimas aos olhos. "É, em si, um poema sobre o entusiasmo," disse eu.

"Sim."

"Também é um poema muito religioso."


"Sim."

"Fez o trabalho no fim do primeiro semestre. Foi em Janeiro?"

"Sim."

"Se não estou em erro, foi no mês seguinte, Fevereiro, que o seu amigo Hank morreu."

"Sim."

Sentia uma tensão inacreditável a crescer. Não tinha a certeza do que devia fazer. Esperançado,
continuei. "Portanto foi

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rejeitado pela sua primeira namorada a sério aos dezassete anos e perdeu o entusiasmo pela
igreja. Três anos depois o seu melhor amigo morre e perde o entusiasmo por tudo."

"Eu não o perdi, tiraram-mo." Ted quase gritava, mais tenso do que jamais o vira.

"Deus rejeitou-o, portanto você rejeitou Deus."

"E porque não?" perguntou ele. "É um mundo de merda. Foi sempre um mundo de merda."

"Pensei que tivesse tido uma infância feliz."


"Não, também foi uma merda."

E tinha sido. Sob a aparente calma exterior, o lar da infância de Ted tinha sido um constante
combate sangrento para ele. Os dois irmãos mais velhos embirravam com ele com maldade
sem igual. Os pais, demasiado preocupados com as suas coisas e com o ódio que tinham um
pelo outro para se preocuparem com os problemas aparentemente menores dos filhos, não lhe
tinham dado a ele, o mais pequeno e mais fraco, nenhuma protecção. A sua maior consolação
era fugir para passeios longos e solitários no campo, e concluímos que o padrão de eremita
tinha raízes nos anos anteriores aos dez anos dele. O colégio interno, com as suas pequenas
crueldades, tinha sido um alívio. À medida que falava destas coisas, o ressentimento de Ted
para com o mundo - ou melhor, a sua exteriorização desse ressentimento - foi ganhando
consistência. Nos meses seguintes, reviveu não só a dor da infância e a dor da morte de Hank,
mas também a dor de mil mortes mais pequenas, rejeições e perdas. Toda a vida parecia um
emaranhado de morte e sofrimento, perigo e selvajaria.

Após quinze meses de terapia, chegámos a um ponto de mudança. Ted trouxe um livrinho para
a consulta. "Está sempre a dizer que sou muito reservado - e é claro que sou," disse ele.
"Ontem à noite, estava a remexer numas coisas antigas e encontrei este diário, que escrevi
durante o segundo

236

ano do curso. Nem sequer o reli. Pensei que gostasse de ler a versão integral de como eu era
há dez anos."

Eu disse que sim, e fi-lo nas duas noites seguintes. Na verdade, não era muito revelador, a não
ser por confirmar que o seu padrão solitário, isolado por um snobismo resultante de mágoa, já
nessa altura estava profundamente entranhado. Mas havia uma referência que me chamou a
atenção. Descrevia um passeio solitário a pé num Domingo de Janeiro, em que tinha sido
apanhado por uma tempestade de neve e tinha regressado à residência universitária várias
horas depois de escurecer. "Senti uma certa felicidade," tinha ele escrito, "ao regressar à
segurança do meu quarto, não muito diferente da que senti no Verão passado quando vi a
morte tão perto." No dia seguinte, durante a consulta, pedi-lhe para me contar como é que
tinha estado próximo da morte.
"Ah, já lhe contei," disse Ted.

Por essa altura, já eu sabia bem que sempre que Ted afirmava ter-me contado qualquer coisa,
estava a tentar escondê-la. "Está a ser dissimulado, outra vez," respondi-lhe.

"Bem, tenho a certeza que lhe contei. Devo ter contado. De qualquer maneira, não teve assim
tanta importância. Lembra-se que estive a trabalhar na Florida, no Verão entre o primeiro e o
segundo ano. Houve um furacão. Eu gosto de tempestades, sabe. No auge do temporal, fui até
a um molhe. Fui levado por uma onda e trazido de volta por outra. Foi só isso que aconteceu.
Passou-se muito depressa."

"Foi para a ponta do molhe no auge dum furacão?" perguntei, incrédulo.

"Já lhe disse. Eu gosto de tempestades. Gosto de me sentir perto da fúria dos elementos."

"Isso eu percebo," disse eu. "Gostamos ambos de tempestades. Mas não sei se me iria pôr em
perigo dessa maneira."

"Bem, sabe que eu tenho uma certa tendência suicida,"

237

respondeu Ted, quase em provocação. "E nesse Verão, senti muito essa tendência. Já a analisei.
Francamente, não me lembro de ir até ao molhe com qualquer intenção de suicídio. Mas, na
verdade, não me importava muito com a vida e reconheço a possibilidade de estar com
tendências suicidas." "Foi levado por uma onda?"
"Sim. Nem percebi o que aconteceu. Havia tantos salpicos que não se via quase nada. Julgo
que veio uma onda maior. Senti-a embater em mim, senti-me a ser levado e senti-me perdido
na água. Nada podia fazer para me salvar. Tinha a certeza de que ia morrer. Senti-me
aterrorizado. Passado cerca de um minuto, senti-me a ser empurrado para trás pela água

- deve ter sido uma onda da rebentação - e um segundo depois, fui atirado de encontro ao
molhe. Fui de gatas até à beira do molhe, agarrei-me e, sem nunca o largar, voltei para terra de
gatas. Fiquei com umas nódoas negras. Foi só isso."

"O que sente em relação a essa experiência?"

"Que quer dizer, o que sinto?" perguntou Ted, com a sua maneira de resistir.

"Exactamente o que disse. O que sente em relação a isso?"

"Quer dizer, por me ter salvo?" perguntou.

"Sim."

"Bem, acho que tive sorte."

"Sorte?" questionei. "Só uma coincidência invulgar, aquela onda da rebentação?"

"Sim, só isso."

"Alguns chamar-lhe-iam milagrosa," comentei.

"Acho que tive sorte."

"Acha que teve sorte," repeti, provocando-o.


"Sim, que diabo, acho que tive sorte."

"É curioso, Ted," disse eu, "que sempre que alguma coisa desagradável lhe acontece, insurge-se
contra Deus, insurge-se contra este mundo imundo e terrível. Mas quando lhe acon-

238

tece uma coisa boa, acha que tem sorte. Uma pequena tragédia é culpa de Deus. Uma bênção
milagrosa é um bocadito de sorte. Que acha disso?"

Confrontado com a inconsistência da sua atitude em relação à boa e má sorte, Ted começou a
concentrar-se cada vez mais nas coisas boas do mundo, no doce como no amargo, no brilho
como na obscuridade. Depois de analisar a dor causada pela morte de Hank e pelas outras
mortes que o tinham afectado, começou a examinar o reverso da medalha da vida. Passou a
aceitar a necessidade do sofrimento e a compreender a natureza paradoxal da existência, as
"coisas salpicadas". Esta aceitação ocorreu, claro, no contexto de uma relação calorosa,
afectuosa e progressivamente mais agradável entre nós. Começou a mudar. Com muitas
hesitações, voltou a sair com raparigas. Começou a manifestar algum entusiasmo. A sua
natureza religiosa desabrochou. Para onde quer que olhasse, via o mistério da vida e da morte,
da criação, da decadência e da regeneração. Lia Teologia. Ouvia Jesus Christ Superstar, Godspell
e até comprou o disco de Fernão Capelo Gaivota.

Depois de dois anos de terapia, Ted anunciou-me, certa manhã, que tinha chegado a altura de
andar para a frente. "Tenho andado a pensar em me matricular numa faculdade de Psicologia,"
disse ele. "Já sei que vai dizer que o estou a imitar, mas analisei a questão e não me parece que
seja isso."

"Continue," pedi.

"Bom, pensando nisto, parece-me que devia tentar fazer o que é mais importante. Se vou
voltar a estudar, quero estudar as coisas mais importantes."
"Continue."

"Portanto, decidi que a mente humana é importante. E fazer terapia é importante."

"A mente humana e a psicoterapia, são as coisas mais importantes?" perguntei.

239

"Bem, suponho que Deus é a coisa mais importante."

"Então porque não estuda Deus?" perguntei.

"Que quer dizer?"

"Se Deus é a coisa mais importante, porque não estuda Deus?"

"Desculpe. Simplesmente, não o compreendo," disse Ted.

"Isso é porque se está a impedir de compreender," respondi.

"De facto, não entendo. Como é que se pode estudar Deus?"

"Estuda-se Psicologia numa escola. Estuda-se Deus numa escola," respondi-lhe.


"Refere-se à escola de Teologia?"

"Sim."

"Quer dizer, ir para padre?"

"Sim."

"Ah, não, não era capaz." Ted estava consternado.

"Porque não?"

Ted ficou inquieto. "Não há necessariamente diferença entre um psicoterapeuta e um padre.


Quer dizer, os padres fazem muita psicoterapia. E fazer psicoterapia, bom, é como ser padre."

"Então porque é que não pode ir para padre?"

"Está a pressionar-me," disse Ted, irritado. "A carreira é uma decisão pessoal. Sou eu que tenho
de escolher a carreira que quero. Os terapeutas não devem influenciar os pacientes. O seu
papel não é fazer escolhas por mim. Eu faço as minhas escolhas."

"Olhe," disse eu, "não estou a fazer nenhuma escolha por si. Estou apenas a ser puramente
analítico. Estou a analisar as alternativas que se lhe oferecem. Você é que, por alguma razão,
não quer estudar essas alternativas. É você que quer fazer a coisa mais importante. É você que
acha que Deus é a coisa mais importante. No entanto, quando o empurro para encarar a
alternativa duma carreira em Deus, exclui-a. Diz que não é

240

i
capaz. Se não é capaz, está bem. Mas compete-me estar interessado na razão porque diz que
não é capaz, porque a exclui como alternativa."

"Eu não posso ser padre," disse Ted, pouco convincentemente.

"Porque não?"

"Porque... porque ser padre é ser, publicamente, um homem de Deus. Quero dizer, tinha que
mostrar publicamente a minha fé em Deus. Tinha que ser publicamente entusiasta dessa fé.
Não era capaz, pronto."

"Não, tem que ser em segredo, não é?" disse eu. "Essa é a sua neurose e tem que a conservar.
Não pode ser publicamente entusiasta. Tem que conservar o entusiasmo bem fechado, não é?"

"Olhe," lamentou-se Ted, "não sabe o que isto é para mim. Não sabe o que é ser como eu sou.
Sempre que abria a boca para manifestar entusiasmo sobre qualquer coisa, os meus irmãos
punham-se a fazer troça de mim."

"Até parece que ainda tem dez anos," comentei, "e que os seus irmãos ainda andam por aqui."

Ted já chorava de frustração. "E não é tudo," disse ele, chorando. "Era assim que os meus pais
me castigavam. Sempre que eu fazia uma asneira, tiravam-me uma coisa de que eu gostava.
'Vamos lá ver o que entusiasma mais o Ted. Ah, sim, a visita a casa da tia para a semana. Está
excitadíssimo. Portanto, dizemos-lhe que, por se ter portado mal, não pode ir visitar a tia. É
isso mesmo. Há também o arco e as flechas. Ele adora o arco e as flechas. Vamos tirar-lhas.'
Simples. Um sistema simples. Tudo o que me entusiasmava, eles tiravam-me. Tudo o que
amava, perdia."
Chegámos assim ao núcleo mais íntimo da neurose de Ted. Gradualmente, por um acto de
vontade, a lembrar-se continuamente que já não tinha dez anos, que já não estava sob o jugo
dos pais nem a uma distância dos irmãos em que lhe

241

pudessem bater, forçou-se, aos poucos, a comunicar o seu entusiasmo, o amor pela vida e o
amor a Deus. Decidiu ir para uma escola religiosa. Urnas semanas antes de ele partir, mandou-
me um cheque, referente às consultas do mês anterior. Algo nele me chamou a atenção. Até aí,
ele assinara sempre "Ted". Agora assinava "Theodore". Chamei-lhe a atenção para a mudança.

"Tinha esperança de que reparasse," disse ele. "Acho que, de certa forma, ainda guardo
segredos, não é? Quando era pequeno, a minha tia disse-me que devia ter orgulho no nome
Theodore, porque significava 'amante de Deus'. Eu fiquei orgulhoso. E contei aos meus irmãos.
Meu Deus, como fizeram troça de mim. Chamaram-me maricas de todas as maneiras. 'Menino
de coro maricas. Porque não vais beijar o altar? Porque não vais beijar o chefe do coro?'" Ted
sorriu. "Conhece a rotina. Passei a envergonhar-me do nome. Há umas semanas atrás reparei
que já não me envergonhava. Por isso, resolvi passar a usar o meu nome completo. Afinal de
contas, sou um amante de Deus, não sou?"

O Bebé e a Água do Banho

Os CASOS QUE SE SEGUEM foram apresentados em resposta a uma pergunta: acreditar em


Deus é uma forma de psicopatologia? Se queremos demarcar-nos dos ensinamentos da
infância, da tradição e superstição locais, é uma pergunta que deve ser feita. Mas estes casos
indicam que a resposta não é simples. Às vezes, a resposta é sim. A forma inquestionável como
Kathy acreditava no Deus que a Igreja e a mãe lhe ensinaram, retardou-lhe claramente o
desenvolvimento e envenenou-lhe o espírito. Só depois de questionar e pôr de parte essa
crença é que

242
pôde aventurar-se a uma vida mais ampla, gratificante e produtiva. Só então se pôde
desenvolver livremente. Mas a resposta também é não, por vezes. À medida que Mareia foi
ultrapassando o frio microcosmo da sua infância, para entrar num mundo maior e mais
acolhedor, também a fé em Deus se desenvolveu nela, calma e naturalmente. E a f é renegada
de Ted teve de ser ressuscitada como parte essencial da libertação e ressurreição do seu
espírito.

Que fazer com esta resposta sim e não? Os cientistas dedicam-se a fazer perguntas em busca
da verdade. Mas também são humanos e, como todos os humanos, querem que as respostas
sejam simples, claras e fáceis. No seu desejo de soluções simples, os cientistas têm tendência
para cair em duas armadilhas quando questionam a realidade de Deus. A primeira é atirar fora
o bebé juntamente com a água do banho. E a segunda é a visão em túnel.

Há claramente muita água suja à volta da realidade de Deus. Guerras santas. Inquisições.
Sacrifícios de animais. Sacrifícios humanos. Superstição. Estultificação. Dogmatismo.
Ignorância. Hipocrisia. Farisaísmo. Rigidez. Crueldade. Queima de livros. Queima de bruxas.
Inibição. Medo. Conformismo. Culpa mórbida. Insanidade. A lista é quase interminável. Mas
isto é o que Deus fez aos humanos ou o que os humanos fizeram a Deus? É substancialmente
evidente que a fé em Deus é muitas vezes destruidoramente dogmática. O problema, então, é
os humanos tenderem a acreditar em Deus, ou é os humanos tenderem a ser dogmáticos?
Quem conhecer um ateu convicto, sabe que um indivíduo desses é tão dogmático quanto a
não ter fé quanto um crente quanto à fé. É da fé em Deus que temos que nos libertar, ou do
dogmatismo?

Outra das razões porque os cientistas têm tanta tendência para atirar fora o bebé juntamente
com a água do banho é o facto de a ciência em si, como já referi, ser uma religião.

243

O cientista neófito, recém-chegado ou convertido à visão do mundo da ciência, pode ser tão
fanático como um cruzado cristão ou um soldado de Alá. Isto verifica-se especialmente quando
se chega à ciência a partir de uma cultura em que a fé em Deus está definitivamente associada
a ignorância, superstição, rigidez e hipocrisia. Temos então motivos emocionais e intelectuais
para esmagar os ídolos da fé primitiva. Umas das marcas de maturidade dos cientistas, no
entanto, é a sua consciência de que a ciência pode estar tão sujeita ao dogmatismo como
qualquer outra religião.

Já afirmei que é essencial, para o nosso desenvolvimento espiritual, que nos tornemos
cientistas, cépticos sobre o que nos ensinaram - ou seja, os conceitos e pressupostos comuns
da nossa cultura. Mas as noções da ciência também se tornam muitas vezes ídolos culturais, e
é necessário que sejamos cépticos também em relação a elas. Na verdade, é possível
amadurecermos deixando de acreditar em Deus. O que gostaria de acrescentar agora é que
também é possível amadurecermos passando a acreditar em Deus.

O ateísmo ou agnosticismo cépticos não são necessariamente o mais elevado estado de


compreensão a que os seres humanos podem chegar.

Pelo contrário, há razões para crer que, por detrás de noções espúrias e de falsos conceitos de
Deus, existe uma realidade que é Deus. Foi isso que Paul Tillich quis dizer quando se referiu ao
"deus para além de Deus" e é a razão porque alguns cristãos sofisticados proclamavam
alegremente, "Deus está morto. Viva Deus." Será possível que o caminho do desenvolvimento
espiritual passe da superstição para o agnosticismo e depois do agnosticismo para um
conhecimento exacto de Deus?

Era desse caminho que falava o Sufi Aba Said ibn Abi-1-Khair, há mais de novecentos anos,
quando dizia:

244

Até se desmoronar a universidade e o minarete Este nosso trabalho santo não estará completo.
Até a fé se tornar rejeição, e a rejeição se tornar credo Não haverá nenhum verdadeiro
Muçulmano. *

Quer o caminho do desenvolvimento espiritual passe necessariamente de um ateísmo ou


agnosticismo cépticos para uma verdadeira fé em Deus ou não, o facto é que algumas pessoas
intelectualmente sofisticadas e cépticas, tais como Mareia e Ted, parecem desenvolver-se na
direcção da fé. E note-se que a fé para a qual se desenvolveram não era de forma nenhuma
idêntica àquela que Kathy professava antes de evoluir. O Deus que aparece antes do cepticismo
não tem qualquer semelhança com o Deus que vem depois. Conforme mencionei no início
desta secção, não há uma só religião, monolítica. Há muitas religiões e talvez muitos níveis de
fé. Algumas religiões podem ser pouco saudáveis para algumas pessoas; outras podem ser
saudáveis.

Tudo isto tem particular importância para os cientistas que são psiquiatras ou psicoterapeutas.
Lidando tão directamente com o processo de desenvolvimento, recorre-se a eles, mais do que
a qualquer outra pessoa, para emitir juízos quanto à salutaridade do credo dum indivíduo.
Como os psicoterapeutas fazem normalmente parte duma tradição céptica, se não
estritamente Freudiana, têm a tendência de considerar a fé apaixonada em Deus como
patológica. Em determinadas circunstâncias, essa tendência pode degenerar em franca
parcialidade e preconceito. Não há muito tempo, conheci um finalista universitário que
ponderava seriamente a possibilidade de entrar para um mosteiro dentro de alguns anos.
Tinha feito psicoterapia no ano anterior e continuava. "Mas não consegui falar

(Nota)

* Citado de Idries Shah, The Way of tbe Sufi (Nova Iorque: Dutton,

1970), p. 44.

245

com o meu terapeuta sobre o mosteiro nem sobre a profundidade da minha crença religiosa,"
confessou-me. "Acho que ele não ia entender." Eu não conhecia o jovem suficientemente bem
para avaliar o significado que o mosteiro tinha para ele ou se o desejo de entrar era de origem
neurótica. Gostaria muito de lhe ter dito: "Deve falar com o seu terapeuta a esse respeito. É
essencial para o tratamento que se abra em todos aspectos, especialmente num assunto tão
sério como este. Deve confiar em que o seu terapeuta seja objectivo." Mas não o fiz. Porque
não tinha nenhuma certeza de que o terapeuta seria objectivo, que compreenderia, na
verdadeira acepção da palavra.

Os psiquiatras e os psicoterapeutas que têm atitudes simplistas em relação à religião podem


fazer um mau trabalho com alguns dos seus pacientes. Isto acontece se considerarem todas as
religiões boas ou saudáveis. Também acontece se atirarem fora o bebé com a água do banho e
considerarem toda a religião uma doença ou o Inimigo. E também acontece, por último, se em
face da complexidade da questão se abstiverem de tratar das questões religiosas dos
pacientes, escondendo-se atrás duma tal capa de objectividade que nem sequer consideram
ser o seu papel envolverem-se de alguma forma espiritual ou religiosa. Porque os pacientes
necessitam muitas vezes que estejam envolvidos. Não quero dizer que devam renunciar à
objectividade ou que seja fácil equilibrar a objectividade com a sua própria espiritualidade.
Não é. Pelo contrário, o que defendo é que todos os psicoterapeutas deveriam forçar-se, não a
envolverem-se menos, mas a tornarem-se mais sofisticados nas questões religiosas, do que
muitas vezes são.

246

Visão Científica em Túnel

DE VEZ EM QUANDO, os psiquiatras encontram pacientes com uma estranha perturbação da


visão; esses pacientes só conseguem ver uma área muito estreita exactamente em frente
deles. Não vêem nada à esquerda ou à direita, acima ou abaixo desse ponto de focagem
estreito. Não conseguem ver dois objectos adjacentes ao mesmo tempo, só vêem uma coisa de
cada vez e têm de virar a cabeça para ver outra. Este sintoma é comparado com a visão através
dum túnel, em que só se vê um pequeno círculo de luz e claridade ao fundo. Não se encontra
nenhuma perturbação física no seu sistema de visão que justifique este sintoma. É como se,
por qualquer razão, não quisessem ver mais do que o que está à frente dos olhos, mais do que
aquilo em que focam a sua atenção.

Outra das razões principais porque os cientistas tendem a deitar fora o bebé juntamente com a
água do banho, é não verem o bebé. Muitos cientistas simplesmente não olham para as provas
da realidade de Deus. Sofrem duma espécie de visão em túnel, um par de viseiras imposto
psicologicamente, que os impede de dirigir a sua atenção para os domínios do espírito.

Entre as causas desta visão em túnel, gostaria de analisar duas, que resultam da natureza da
tradição científica. A primeira é uma questão de metodologia. Com a sua louvável insistência
na experiência, observação cuidadosa e verificabilidade, a ciência tem posto grande ênfase na
medição. Medir qualquer coisa é experimentá-la numa certa dimensão, uma dimensão em que
podemos fazer observações de grande precisão, que podem ser repetidas por outros. O uso da
medida tem permitido à ciência grandes avanços na compreensão do

247
universo material. Mas, em virtude do seu sucesso, a medida tornou-se uma espécie de ídolo
científico. O resultado é uma atitude, por parte de muitos cientistas, não só de cepticismo mas
de frontal rejeição do que não pode ser medido. É como se dissessem, "O que não podemos
medir, não podemos conhecer; não vale a pena preocuparmo-nos com o que não podemos
conhecer; portanto o que não pode ser medido não é importante nem merece a nossa
observação." Devido a esta atitude, muitos cientistas excluem da sua consideração todos os
assuntos que são - ou parecem ser - intangíveis. Incluindo, claro, a questão de Deus.

Este estranho mas bastante comum pressuposto de que as coisas que não são fáceis de estudar
não merecem estudo começa a ser questionado por várias evoluções relativamente recentes
na própria ciência. Uma é o desenvolvimento de métodos de estudo cada vez mais sofisticados.
Pela utilização de equipamento electrónico como microscópios de electrões,
espectrofotómetros, computadores e programas como técnicas estatísticas, podemos fazer
medições de fenómenos cada vez mais complexos, que há algumas décadas eram
imensuráveis. O alcance da visão científica está portanto a expandir-se. Como continua a
crescer, talvez possamos dizer em breve: "Nada existe para lá dos limites da nossa visão. Se
decidimos estudar qualquer coisa, podemos sempre achar uma metodologia para o fazer."

O outro desenvolvimento que nos ajuda a escapar da visão científica em túnel é a descoberta
pela ciência, relativamente recente, da realidade do paradoxo. Há cem anos, o paradoxo
significava erro para a mente científica. Mas ao explorar fenómenos como a natureza da luz,
electromagnetismo, mecânica quântica e a teoria da relatividade, a física amadureceu durante
o último século até ao ponto de se reconhecer cada vez mais que, a determinado nível, a
realidade é paradoxal.

248

Assim escreveu J. Robert Oppenheimer:

Ao que parecem ser as perguntas mais simples, tenderemos a não dar resposta ou a dar uma
resposta que, à primeira vista, mais se pareça com um estranho catecismo do que com as
afirmações directas da física. Se perguntarmos, por exemplo, se a posição do electrão se
mantém, devemos dizer "não"; se perguntarmos se a posição do electrão muda com o tempo,
devemos dizer "não"; se perguntarmos se o electrão está parado, devemos dizer "não"; se
perguntarmos se está em movimento, devemos dizer "não". Buda deu estas respostas quando
interrogado sobre as condições do Eu dum homem após a sua morte; mas não são as respostas
familiares na tradição da ciência dos séculos XVII e XVIII. *

Os místicos têm-nos falado através dos tempos em termos de paradoxos. Será possível que
comecemos a ver uma plataforma de encontro entre a ciência e a religião? Quando pudermos
dizer que "um humano é mortal e eterno ao mesmo tempo" e "a luz é uma onda e uma
partícula ao mesmo tempo", começámos a falar a mesma língua. Será possível que o caminho
do desenvolvimento espiritual que procede da religião supersticiosa para o cepticismo
científico nos possa vir a conduzir a uma realidade religiosa genuína?

Esta possibilidade emergente de unificação da religião e da ciência é o acontecimento mais


significativo e excitante da vida intelectual dos nossos dias. Mas está apenas a começar. Na sua
maioria, tanto o religioso como o científico se mantêm em quadros de referência auto-
impostos e estreitos, cada um

(Nota)

* Science and the Common Understanding (Nova Iorque: Simon and Schuster, 1953), p. 40.

249

deles ainda substancialmente prejudicado pelo seu tipo de visão em túnel. Veja-se, por
exemplo, o comportamento de ambos em relação à questão dos milagres. A própria ideia de
milagre é um anátema para a maior parte dos cientistas. Nos últimos quatrocentos anos, a
ciência esclareceu várias "leis naturais", tais como "Dois objectos são atraídos um pelo outro na
proporção da sua massa e na proporção inversa à distância entre eles" ou "A energia não pode
ser criada nem destruída". Mas tendo sido bem sucedidos na descoberta das leis naturais, os
cientistas, na sua visão do mundo, transformaram num ídolo o conceito de lei natural, tal como
fizeram um ídolo da noção de medida. O resultado é que qualquer acontecimento que não
possa ser explicado pela lei natural, como é actualmente entendida, é considerado irreal pelo
sistema científico. Em relação à metodologia, a ciência tem dito: "O que é muito difícil de
estudar, não merece estudo." E a respeito da lei natural, a ciência tende a dizer: "O que é muito
difícil de entender, não existe."

A Igreja tem sido um pouco mais liberal. Para o sistema religioso, o que não pode ser
entendido em termos da lei natural conhecida é milagre, e os milagres existem. Mas, para além
de autenticar a sua existência, a Igreja não se tem mostrado ansiosa por examinar os milagres
muito de perto. "Os milagres não precisam de ser analisados cientificamente," tem sido a
atitude religiosa dominante. "Devem ser aceites simplesmente como actos de Deus." Os
religiosos não querem que a sua religião seja abalada pela ciência, tal como os cientistas não
querem a ciência abalada pela religião.

Casos de curas milagrosas, por exemplo, têm sido utilizados pela Igreja Católica para autenticar
os seus santos, e são comuns em muitas denominações protestantes. No entanto, as Igrejas
nunca disseram aos médicos, "Querem juntar-se a nós para estudar estes fenómenos
fascinantes?" Nem os médicos

250

disseram, "Podemos juntar-nos para examinar cientificamente estas ocorrências que devem ter
tanto interesse para a nossa profissão?" Em vez disso, a atitude da classe médica tem sido de
que as curas milagrosas não existem, que a doença duma pessoa que foi curada não existia, ou
por ser uma doença imaginária, como uma reacção de conversão histérica, ou porque foi mal
diagnosticada. Felizmente, no entanto, alguns cientistas, médicos e investigadores religiosos
sérios começam a examinar a natureza de fenómenos tais como remissões espontâneas em
doentes de cancro e exemplos aparentemente com êxito de cura psíquica.

Há quinze anos, quando me licenciei em Medicina, tinha a certeza de que não existiam
milagres. Hoje, tenho a certeza de que os milagres abundam. Esta mudança de consciência
resultou de dois factores que funcionam em simultâneo. Um é uma grande variedade de
experiências que tive como psiquiatra que, inicialmente, pareciam bastante vulgares mas que,
quando as analisei em maior profundidade, pareceram indicar que o meu trabalho com os
pacientes no sentido do seu desenvolvimento estava a ser notavelmente apoiado de formas
para as quais eu não tinha qualquer explicação lógica - ou seja, formas que eram milagrosas.
Essas experiências, algumas das quais irei relatar, levaram-me a questionar o meu pressuposto
anterior de que as ocorrências milagrosas eram impossíveis. Depois de questionar esse
pressuposto, abri-me à possível existência de milagres. Essa abertura, que constituía o segundo
factor de causa da minha mudança de consciência, permitiu-me passar a olhar para a
existência vulgar, alertado para o milagroso. Quanto mais olhava, mais encontrava.

Se houvesse uma só coisa que eu pudesse desejar do leitor do resto deste livro, seria que
possuísse a capacidade de se aperceber do que é milagroso. Sobre essa capacidade, foi
recentemente escrito:
251

A realização pessoal nasce e amadurece numa espécie de consciência distinta, uma forma de
consciência que foi descrita de muitas maneiras diferentes por muitas pessoas diferentes. Os
místicos, por exemplo, referiram-na como a percepção da divindade e perfeição do mundo.
Richard Bucke referiu-se a ela como consciência cósmica; Buber descreveu-a nos termos da
relação Eu-Tu (I-Thou); e Maslow etiquetou-a como a "cognição do ser". Utilizaremos o termo
de Ouspensky e chamar-lhe-emos a percepção dos milagres. Neste caso, "milagres" designa
não só fenómenos extraordinários mas também vulgares, porque qualquer coisa pode evocar
esta consciência especial desde que lhe seja dada atenção suficiente. Assim que a percepção é
libertada do domínio do preconceito e do interesse pessoal, encontra-se livre para
experimentar o mundo tal qual ele é e ver a sua magnificência inerente... A percepção dos
milagres não requer fé nem pressupostos. É simplesmente uma questão de dar total e
cuidadosa atenção aos dados da vida, ou seja, ao que está sempre tão presente que
normalmente é tomado como garantido. A verdadeira maravilha do mundo está disponível por
toda a parte, na mais ínfima parte dos nossos corpos, nos vastos espaços do cosmo, e na
interligação íntima dessas e de todas as coisas... Fazemos parte de um ecossistema
delicadamente equilibrado em que a interdependência acompanha a individualização. Somos
todos indivíduos, mas somos também partes de um todo maior, unidos em algo
indescritivelmente imenso e belo. A percepção do milagroso é a essência subjectiva da auto-
realização, a raiz a partir da qual crescem os valores e experiências mais altos do homem. *

Michael Stark e Michael Washburn, "Beyond the Norm: A Speculative Model of Self-
Realization", Journal of Religion and Health, Vol. 16, N", l (1977), pp. 58-59.

252

No que respeita aos milagres, penso que o nosso quadro de referência tem sido demasiado
drástico. Temos procurado a sarça ardente, a separação das águas, a voz tonitruante dos céus.
Em vez disso, devíamos procurar a evidência dos milagres nos acontecimentos vulgares do
nosso dia-a-dia, conservando ao mesmo tempo uma orientação científica. É o que irei fazer na
secção seguinte, examinando ocorrências vulgares na prática da Psiquiatria, que me levaram ao
entendimento do fenómeno extraordinário da graça.
Mas gostaria de concluir com outra nota de aviso. Esta ligação entre a ciência e a religião pode
constituir um terreno pouco firme e perigoso. Iremos lidar com percepção extra-sensorial e
fenómenos "psíquicos" ou "paranormais", bem como com outras variedades do miraculoso. É
essencial mantermos a cabeça fria. Participei recentemente numa conferência sobre a cura
pela fé, em que vários oradores instruídos apresentaram provas anedóticas indicando que eles
ou outros possuíam poderes curativos, de forma tal que sugeria que essas provas eram
rigorosas e científicas, quando não o eram. Se um curandeiro pousa as mãos na articulação
inflamada dum doente e no dia seguinte a articulação deixa de estar inflamada, não quer dizer
que o doente tenha sido curado pelo curandeiro. As articulações inflamadas deixam de o estar
mais cedo ou mais tarde, gradualmente ou de repente, independentemente do que se lhes
fizer. O facto de dois acontecimentos ocorrerem ao mesmo tempo não significa
necessariamente que estejam relacionados causalmente. Sendo esta área tão obscura e
ambígua, ainda se torna mais importante que a abordemos com um cepticismo saudável, para
não nos iludirmos a nós próprios nem a outros. Uma das formas como os outros podem ser
iludidos, por exemplo, é apercebendo-se da ausência de cepticismo e de teste rigoroso da
realidade tantas vezes presentes nos indivíduos que são proponentes públicos da realidade dos
fenómenos

253

psíquicos. Esses indivíduos prejudicam o bom nome dessa área. Porque a área dos fenómenos
psíquicos atrai tanta gente com pouca capacidade de testar a realidade, é tentador para os
observadores mais realistas concluir que os fenómenos psíquicos são irreais, embora não seja o
caso. Há muitos que tentam encontrar respostas simples para perguntas difíceis, casando
conceitos populares científicos e religiosos com muitas expectativas mas pouca ponderação. O
facto de tantos desses casamentos falharem não deve ser considerado significativo de que o
casamento é impossível ou desaconselhável. Mas tal como é essencial que a nossa visão não
seja diminuída pela visão científica em túnel, também é essencial que as nossas faculdades
críticas e capacidade céptica não seja encandeada pela beleza brilhante do domínio espiritual.

254

Secção IV
Graça

O Milagre da Saúde

Assombrosa graça! Como é doce o som Que salvou um desgraçado como eu! Eu estava
perdido, mas agora fui encontrado, Estava cego, e agora vejo.

Foi a graça que ensinou o meu coração a temer, E a graça aliviou os meus receios; Que preciosa
se mostrou a graça Na primeira hora em que acreditei!

Por muitos perigos, trabalhos e armadilhas, Já passei;

Foi a graça que me trouxe em segurança até aqui, E a graça me conduzirá até casa.

E quando lá tivermos estado dez mil anos, Brilhando como o sol,

Não teremos menos dias para cantar em louvor de Deus Do que quando começámos. *

A PRIMEIRA PALAVRA associada à graça neste famoso hino evangélico americano é


"assombrosa". Quando algo nos assom-

(Nota)

* Amazing Grace, por John Newton (1725-1807).

257

bra é porque não faz parte do curso vulgar das coisas, quando não é previsível pelo que
conhecemos da "lei natural". O que se segue demonstra que a graça é um fenómeno comum e,
até certo ponto, previsível. Mas a realidade da graça continuará a ser inexplicável dentro do
quadro conceptual da ciência convencional e da "lei natural" tal como a entendemos.
Continuará miraculosa e assombrosa.

Há vários aspectos da prática da Psiquiatria que nunca deixam de me espantar, a mim como a
outros psiquiatras. Um deles é o facto de os nossos pacientes serem assombrosamente
saudáveis mentalmente. É hábito outros especialistas da Medicina acusarem os psiquiatras de
praticarem uma disciplina inexacta e não científica. A verdade, no entanto, é que se sabe mais
das causas da neurose do que da grande maioria dos outros problemas de saúde. Através da
psicanálise, é possível traçar a etiologia e evolução duma neurose num paciente individual,
com uma exactidão e precisão raramente igualada noutro ramo da Medicina. É possível vir a
saber exactamente como, quando, onde e porquê, um indivíduo manifesta um determinado
sintoma neurótico ou padrão de comportamento. Também é possível saber com igual
exactidão e precisão como, quando, onde e porquê, uma determinada neurose pode ser ou foi
curada. O que não sabemos, contudo, é por que razão a neurose não é mais grave - porque é
que um paciente ligeiramente neurótico não é gravemente neurótico, ou porque é que um
paciente gravemente neurótico não é completamente psicótico. Inevitavelmente, verificamos
que o doente sofreu um trauma ou traumas de determinada espécie que provocam uma
determinada neurose, mas os traumas têm uma intensidade que, no curso normal das coisas,
seria de esperar que provocassem uma neurose mais grave do que aquela de que o paciente
sofre.

Um homem de negócios, notavelmente bem sucedido, com trinta e cinco anos, consultou-me
devido a uma neurose que só

258

podia ser descrita como ligeira. Era filho ilegítimo e, durante a primeira infância, foi criado
apenas pela mãe, surda-muda, nos bairros pobres de Chicago. Aos cinco anos, o Estado,
considerando que uma mãe como ela não tinha competência para educar uma criança, tirou-o
à mãe, sem aviso nem explicação, e puseram-no sucessivamente em três lares adoptivos
diferentes, onde foi tratado de forma indigna e com total ausência de afecto. Aos quinze anos,
ficou parcialmente paralisado em consequência da rotura de um aneurisma numa das veias do
cérebro. Aos dezasseis, abandonou os últimos pais adoptivos e passou a viver sozinho. Como
era de prever, aos dezassete foi preso devido a um assalto particularmente maldoso e
desnecessário. Não recebeu tratamento psiquiátrico na prisão.
Quando foi libertado, depois de seis meses de detenção, as autoridades arranjaram-lhe
emprego como escriturário de armazém numa empresa bastante vulgar. Nenhum psiquiatra ou
assistente social podia prever que o seu futuro fosse outra coisa senão sombrio. Passados três
anos, no entanto, passou a ser o chefe de departamento mais jovem da história da empresa.
Cinco anos depois, já casado com uma executiva, deixou a empresa e montou o seu próprio
negócio, com êxito, passando a ser um homem relativamente rico. Na altura em que começou
o tratamento comigo, tinha-se tornado, além do mais, um pai afectuoso e eficaz, um intelectual
auto-didacta, um líder da comunidade e um artista qualificado. Como, quando, porquê, onde
aconteceu isso? Dentro dos conceitos vulgares de causalidade, não sei. Juntos, conseguimos
localizar com exactidão, dentro do quadro habitual de causa e efeito, as determinantes da
neurose ligeira e curá-la. Não conseguimos de forma nenhuma determinar as origens do seu
sucesso imprevisível.

Este caso é citado precisamente porque os traumas constatáveis eram tão dramáticos e as
circunstâncias do sucesso tão óbvias. Na grande maioria dos casos, os traumas de infância

259

são considerados mais discretos (embora normalmente igualmente devastadores) e a evidência


de saúde menos simples, mas o padrão é basicamente o mesmo. Raramente se encontram
doentes, por exemplo, cuja saúde mental não é basicamente maior que a dos pais. Sabemos
muito bem porque as pessoas ficam mentalmente doentes. O que não compreendemos é
porque as pessoas sobrevivem aos traumas da vida tão bem quanto o fazem. Sabemos
exactamente porque certas pessoas se suicidam. Não sabemos, dentro dos conceitos habituais
de causalidade, porque outras não se suicidam. Tudo o que podemos dizer é que existe uma
força, cujos mecanismos ainda não compreendemos completamente, que parece funcionar
normalmente na maior parte das pessoas para proteger e incentivar a sua saúde mental
mesmo nas condições mais adversas.

Embora os processos envolvidos nas disfunções mentais frequentemente não correspondam


aos processos das disfunções físicas, neste aspecto parecem corresponder. Sabemos muito
mais sobre as causas das doenças físicas do que sobre as causas da saúde física. Pergunte-se a
qualquer médico, por exemplo, o que provoca a meningite meningogócica e a resposta
imediata será, "O meningococos, é claro." Contudo, há aqui um problema. Se durante este
Inverno eu fizesse culturas diárias desta bactéria recolhida das gargantas dos habitantes da
aldeia onde moro, encontrá-la-ia em cerca de nove em cada dez pessoas. No entanto, há
muitos anos que ninguém tem meningite meningocócica na minha aldeia, nem é provável que
venha a ter este Inverno. O que se passa aqui? A meningite meningocócica é uma doença
relativamente rara, no entanto o agente causativo é extremamente vulgar. Os médicos utilizam
o fenómeno da resistência para explicar este fenómeno, assumindo que o corpo possui um
conjunto de defesas que resistem à invasão das cavidades corporais pelo meningococos como a
toda uma hoste de organismos causadores de doenças. Não há

260

dúvidas de que seja verdade; sabemos de facto bastante sobre estas defesas e como
funcionam. Mas continuam a existir enormes questões. Enquanto que algumas das pessoas
que irão morrer este Inverno de meningite meningocócica estão debilitadas ou têm
resistências diminuídas, a maioria será de indivíduos anteriormente saudáveis sem falhas
conhecidas no seus sistemas imunitários. A um determinado nível, poderemos afirmar com
certeza que o meningococos foi a causa da sua morte, mas esse nível é claramente superficial.
A um nível mais profundo, não saberemos porque morreram. O máximo que poderemos dizer
é que as forças que protegem normalmente as nossas vidas, não funcionaram neles de alguma
forma.

Embora o conceito de resistência se aplique mais vulgarmente às doenças infecciosas, tais


como a meningite, também é aplicável a toda a doença física, duma ou doutra forma, excepto
no caso da doença não infecciosa, em que não temos quase nenhum conhecimento de como
funciona a resistência. Um indivíduo pode sofrer um único ataque ligeiro de colite ulcerosa -
uma disfunção normalmente aceite como psicossomática -, recuperar completamente, e
continuar a viver toda a vida sem voltar a ter a mesma dificuldade. Outro pode ter crises
seguidas e ficar cronicamente incapacitado pela disfunção. Um terceiro pode ter um percurso
fulminante e morrer rapidamente, até do primeiro ataque. A doença parece ser a mesma, mas
as consequências são totalmente diferentes. Porquê? Não fazemos ideia nenhuma, excepto
que os indivíduos com um determinado padrão de personalidade parecem ter tipos diferentes
de dificuldade em resistir à disfunção, enquanto que a grande maioria não tem qualquer
dificuldade. Como é que isto acontece? Não sabemos. Este tipo de perguntas pode ser
formulado em relação a quase todas as doenças, incluindo as mais comuns, como ataques
cardíacos, acidentes vasculares, cancro, úlceras pépticas e outras. Há um número

261
crescente de pensadores que começam a sugerir que quase todas as disfunções são
psicossomáticas - que a psique está . de alguma forma envolvida nas causas das diversas falhas
que ocorrem no sistema imunitário. Mas o que é espantoso não é que haja falhas; é o sistema
imunitário funcionar tão bem. Pela ordem natural das coisas, devíamos ser comidos vivos pelas
bactérias, consumidos pelo cancro, entupidos por gorduras e coágulos, desgastados por ácidos.
Não é extraordinário adoecermos nem morrermos; o que é verdadeiramente notável é não
adoecermos normalmente com muita frequência e não morrermos muito depressa. Podemos,
portanto, dizer o mesmo das disfunções físicas que dissemos sobre as disfunções mentais: há
uma força, cujo mecanismo não compreendemos completamente, que parece funcionar
normalmente na maior parte das pessoas, que protege e incentiva a sua saúde física mesmo
nas condições mais adversas.

O assunto dos acidentes levanta mais questões interessantes. Muitos médicos e a maior parte
dos psiquiatras já tiveram a experiência de se defrontarem com o fenómeno da tendência para
acidentes. Entre os muitos exemplos na minha carreira, o mais dramático foi o dum rapaz de
catorze anos, que examinei como parte da sua admissão num centro de tratamento residencial
para delinquentes juvenis. A mãe tinha morrido no mês de Novembro, quando ele tinha oito
anos. Quando tinha nove anos, em Novembro, caiu dum escadote e fracturou o úmero (parte
superior do braço). Aos dez anos, em Novembro, teve um acidente de bicicleta, fracturou o
crânio, com traumatismo grave. Aos onze, em Novembro, caiu por uma clarabóia e fracturou
uma anca. Aos doze, em Novembro, caiu de skate e partiu o pulso. Aos treze, em Novembro, foi
atropelado por um automóvel, fracturando o pélvis. Ninguém punha em dúvida que este
miúdo tinha tendência para acidentes, nem qual a razão. Mas como aconteciam? O rapaz não
se deixava

262

magoar propositadamente. Nem tinha consciência do desgosto provocado pela morte da mãe,
dizendo-me, sem emoção, que se "tinha esquecido de tudo o que se relacionava com ela". Para
começar a compreender a questão de como ocorreram estes acidentes, penso que temos que
aplicar o conceito de resistência ao fenómeno dos acidentes bem como ao fenómeno da
doença, pensar em termos de resistência aos acidentes bem como em tendência para os
acidentes. Não é simplesmente que certas pessoas, em certas alturas da sua vida, tenham
tendência para acidentes; é também que, no curso normal das coisas, a maior parte de nós é
resistente aos acidentes.

Num dia de Inverno, quando tinha nove anos, ia para casa, carregado com os livros da escola e,
ao atravessar uma rua coberta de neve quando o sinal estava a mudar, escorreguei e caí.
Quando o carro que se aproximava rapidamente conseguiu travar, a minha cabeça estava ao
nível do pára-choques da frente; tinha as pernas e o tronco debaixo da parte do meio do carro.
Saí debaixo do carro e, em pânico, fui a correr até casa, sem me ter magoado. Só por si este
incidente não parece ter nada de extraordinário; pode dizer-se simplesmente que tive sorte.
Mas juntem-se todas as outras circunstâncias: as vezes que não fui atropelado por pouco a pé,
de bicicleta ou de carro; as vezes em que ia de carro e quase bati em peões ou falhei por pouco
ciclistas à noite; as vezes em que meti travões a fundo e parei a um ou dois centímetros doutro
carro; as vezes em que por pouco não fui de "ski" contra árvores, em que quase caí de janelas;
as vezes em que me passou um taco de golfe pelo cabelo, etc.. O que é isto? Tenho uma vida
encantada? Se os leitores examinarem as suas vidas, nesta altura, suspeito que a maioria
encontrará na sua experiência pessoal, padrões semelhantes de desastres evitados à justa de
forma repetida, um número de acidentes que quase aconteceram que é muito maior do que o
número de acidentes

263

que de facto ocorreram. Além disso, creio que os leitores reconhecerão que os seus padrões
pessoais de sobrevivência, de resistência aos acidentes, não resultam de um processo de
tomada de decisão consciente. Será que a maior parte de nós leva uma "vida encantada"? Será
que é verdadeiro o verso da canção: "Foi a graça que me trouxe em segurança até aqui"?

Alguns podem achar que nada há de excitante em tudo isto, que todas as coisas de que temos
estado a falar são simples manifestações do instinto de sobrevivência. Mas o dar nomes às
coisas, explica-as? O facto de termos um instinto para sobreviver parece vulgar porque lhe
chamamos instinto? O nosso entendimento das origens e mecanismos dos instintos é, no
máximo, minúsculo. Na verdade, a questão dos acidentes sugere que a nossa tendência para a
sobrevivência pode ser outra coisa, e ainda mais miraculosa do que um instinto, que é por si
um fenómeno miraculoso. Embora não entendamos quase nada de instintos, concebemo-los
como funcionando dentro dos limites do indivíduo que os possui. A resistência às disfunções
mentais ou à doença física, podemos imaginar que esteja localizada no subconsciente do
indivíduo. Os acidentes, no entanto, envolvem interacções entre indivíduos ou entre indivíduos
e objectos inanimados. As rodas do carro não me passaram por cima quando eu tinha nove
anos devido ao meu instinto de sobrevivência ou porque o condutor possuía uma resistência
instintiva a matar-me? Talvez tenhamos um instinto não só de preservar as nossas vidas mas
também as dos outros.

Embora eu não tenha passado por isso pessoalmente, tenho vários amigos que assistiram a
acidentes de automóvel em que as "vítimas" rastejaram, virtualmente intactas, para fora de
veículos completamente amassados. A reacção delas tem sido de puro assombro. "Não
percebo como alguém pode ter sobrevivido a um desastre destes, quanto mais sem nenhuma
lesão grave!" afirmam. Como explicar isto? Pura sorte? Estes

264

amigos, que não são pessoas religiosas, ficaram assombrados precisamente porque a sorte não
parecia estar envolvida nestes incidentes. "Ninguém podia ter sobrevivido," dizem eles.
Embora não religiosos e sem pensarem sequer, com alguma profundidade, no que estavam a
dizer, na tentativa de digerir estas experiências, os meus amigos faziam comentários do género
"Bom, parece que Deus ama os bêbados" ou "Parece que a vez dele ainda não tinha chegado".
O leitor poderá querer atribuir o mistério destes incidentes a "sorte pura", uma "curva" ou
"reviravolta do destino" e contentar-se em fechar a porta a mais explorações. Se examinarmos
esses incidentes em maior detalhe, no entanto, o nosso conceito de instinto não é
suficientemente satisfatório para os explicar. Um veículo inanimado tem o instinto de parar de
forma a preservar os contornos do corpo humano que está lá dentro? Essas perguntas parecem
inerentemente absurdas. Embora eu decida explorar mais a possibilidade destes incidentes
terem explicações, é óbvio que o nosso conceito tradicional de instinto não será uma ajuda.
Será talvez mais útil o conceito de sincronicidade. Antes de considerarmos o conceito de
sincronismo, no entanto, seria útil analisar primeiro alguns aspectos do funcionamento da
parte da mente humana que designamos por subconsciente.

O Milagre do Subconsciente
QUANDO COMEÇO A TRABALHAR com um doente novo, desenho frequentemente um grande
círculo. Depois desenho um pequeno nicho dentro do círculo. Aponto para o interior do nicho
e digo, "Isto representa a sua mente consciente. Todo o resto do círculo, 95% ou mais,
representa o subconsciente.

265

Se se esforçar o suficiente e pelo tempo necessário para se compreender a si próprio, vai


descobrir que esta vasta parte da sua mente, de que tem pouca consciência, contém riquezas
que transcendem a imaginação."

Claro que uma das formas como sabemos da existência deste domínio, vasto mas escondido,
da mente e da riqueza que contém, é através dos sonhos. Um homem bastante importante
veio consultar-me devido a uma depressão que durava há muitos anos. Não sentia entusiasmo
pelo trabalho, mas não percebia porquê. Apesar dos pais terem sido relativamente pobres e
desconhecidos, vários antepassados do pai tinham sido homens famosos. O meu paciente
pouco se referiu a eles. A depressão era provocada por muitos factores. Só passados alguns
meses é que começámos a analisar a questão da sua ambição. Na sessão a seguir àquela em
que o assunto da ambição foi levantado pela primeira vez, ele contou um sonho da noite
anterior, de que se segue um excerto: "Estávamos num apartamento cheio de móveis enormes
e opressivos. Eu era muito mais novo do que sou agora. O meu pai queria que eu atravessasse
a baía de barco para ir buscar uma embarcação que ele, por qualquer razão, tinha deixado
numa ilha do outro lado. Eu estava ansioso pela viagem e perguntei-lhe como encontrava o
barco. Ele chamou-me à parte para um sítio onde se encontrava um móvel particularmente
grande e esmagador, uma cómoda enorme, com mais de três metros de comprimento e que
chegava ao tecto, com cerca de vinte ou trinta gavetas gigantescas, e disse-me que veria o
barco se espreitasse pelo canto da cómoda." Inicialmente o significado do sonho era pouco
claro, por isso, como de costume, pedi-lhe que associasse a cómoda enorme. Ele disse
imediatamente, "Por qualquer razão - talvez porque era tão opressiva - faz-me pensar num
sarcófago." "Então e as gavetas?" perguntei. De repente, ele sorriu. "Talvez quisesse matar
todos os meus

266
antepassados," disse ele. "Faz-me lembrar um túmulo ou jazigo de família, cada gaveta é
suficientemente grande para conter um corpo." O significado do sonho tornou-se claro.
Tinham-no levado a ver, quando era novo, os túmulos dos seus antepassados famosos do lado
paterno, e ele tinha seguido essa visão no caminho para a fama. Mas considerava-a uma força
que lhe oprimia a vida e desejava ser capaz de matar psicologicamente os antepassados, para
se libertar dessa força compulsiva.

Quem tiver trabalhado muito com sonhos, reconhecerá este como típico. Gostaria de focar a
sua utilidade num dos aspectos em que é típico. Este homem tinha começado a tratar dum
problema. Quase imediatamente, o seu subconsciente produziu um drama que esclarecia a
causa do problema, uma causa de que ele anteriormente não tinha consciência. Fê-lo através
de símbolos, duma maneira tão elegante como o mais qualificado dos autores de teatro. É
difícil imaginar outra experiência nessa altura do tratamento que fosse tão edificante para ele e
para mim como este sonho. O subconsciente parecia claramente querer ajudá-lo e ao nosso
trabalho em conjunto, e fê-lo com uma habilidade consumada.

É precisamente por serem normalmente tão úteis que os psicoterapeutas fazem, geralmente,
da análise dos sonhos, uma parte significativa do seu trabalho. Devo confessar que há muitos
sonhos cujo significado me escapa completamente, e é tentador desejar petulantemente que o
subconsciente tivesse muitas vezes a decência de falar numa linguagem mais clara. No entanto,
nas ocasiões em que conseguimos fazer a tradução, a mensagem parece ser sempre destinada
a apoiar o nosso desenvolvimento espiritual. Na minha experiência, os sonhos que podem ser
interpretados fornecem invariavelmente informações úteis ao sonhador. Essa ajuda assume
uma variedade de formas: como avisos contra ciladas pessoais; como

267

guias para a solução de problemas que não conseguimos resolver; como indicação adequada
de que não temos razão quando pensamos que a temos, e encorajando-nos por termos razão
quando pensamos que provavelmente não a temos; como fontes de informação necessária
sobre nós próprios que nos falta; como orientadores, quando nos sentimos perdidos; e como
indicadores do caminho que devemos seguir quando nos atolamos.
O subconsciente pode comunicar connosco quando estamos acordados com a mesma
elegância e benefício de quando estamos a dormir, embora de forma ligeiramente diferente. É
a forma de "se perder em pensamentos" ou mesmo fragmentos de pensamentos. A maior
parte do tempo, tal como com os sonhos, não damos atenção a esses pensamentos e
afastamo-los como se não tivessem significado. É essa a razão por que se diz aos pacientes de
psicanálise para dizerem o que quer que seja que lhes venha à mente, mesmo que pareça
inicialmente disparatado ou insignificante. Sempre que um paciente diz, "É ridículo, mas está
sempre a vir-me à ideia este pensamento disparatado - não faz sentido, mas disse-me que
tenho que falar nestas coisas," sei que chegámos a algum lado, que o doente recebeu uma
mensagem extremamente valiosa do subconsciente, uma mensagem que iluminará
significativamente a sua situação. Apesar de essas "divagações" normalmente nos
proporcionarem esclarecimentos sobre nós próprios, também nos podem permitir
compreender os outros e o mundo exterior a nós. Como exemplo duma mensagem por
"divagação" do subconsciente, e que se inclui nesta última categoria, vou descrever uma
experiência da minha própria mente enquanto trabalhava com uma doente. Era uma jovem
que sofria, desde o início da adolescência, duma sensação de tontura, uma sensação de que
estava prestes a cair a qualquer momento, para a qual nunca tinha sido encontrada uma causa
física. Devido a

268

esta sensação de tontura, ela caminhava com as pernas direitas e afastadas, quase como um
pato. Era inteligente e simpática e, no início, eu não fazia nenhuma ideia do que lhe podia
provocar as tonturas, de que não se tinha curado em vários anos de psicoterapia, mas a
propósito das quais ela me tinha vindo consultar recentemente. A meio da terceira sessão, em
que ela estava confortavelmente sentada a conversar sobre várias coisas, veio-me à ideia
uma única palavra: "Pinóquio." Estava a tentar concentrar-me no que a minha paciente dizia,
pelo que afastei imediatamente a palavra da consciência. Mas um minuto depois, apesar de
tudo, a palavra voltou-me à ideia, quase visível, como se estivesse impressa no fundo dos meus
olhos: PINÓQUIO. Irritado, pisquei os olhos e forcei-me a prestar atenção à paciente. Contudo,
como se tivesse vontade própria, passado um minuto a palavra estava de regresso, a pedir para
ser reconhecida. "Calma lá," disse finalmente para comigo mesmo, "se a palavra está tão
ansiosa por me entrar na cabeça, talvez seja melhor dar-lhe atenção, porque eu sei que estas
coisas podem ser importantes, e sei que se o meu subconsciente está a tentar dizer-me
qualquer coisa, eu devia ouvir." E assim fiz. "Pinóquio! Que diabo significava Pinóquio? Será
que tinha alguma coisa a ver com a minha doente? Ela não é o Pinóquio, pois não? Espera aí;
ela é engraçada, como uma bonequinha. Está vestida de vermelho, branco e azul. De todas as
vezes que esteve aqui, veio vestida de vermelho, branco e azul. Anda duma maneira esquisita,
como um soldado de madeira de pernas hirtas. É isso! É uma marioneta. Meu Deus, é o
Pinóquio! É uma marioneta!" Nesse mesmo instante, a essência da paciente foi-me revelada:
não era uma pessoa real; era uma pequena marioneta de madeira, hirta, tentando parecer viva
mas receosa de, a qualquer momento, cair e escorregar para o chão num monte de paus e fios.
Um a um, emergiram rapidamente os factos de suporte: uma mãe

269

incrivelmente dominadora que puxava os fios, que se orgulhava imenso de ter ensinado a filha
a ir à casa-de-banho "de um dia para o outro"; uma vontade totalmente dedicada a ir de
encontro às expectativas dos outros, a ser limpa, arranjada, composta, arrumada, e dizer as
coisas convenientes, tentando freneticamente, qual malabarista, equilibrar as exigências que
lhe faziam; uma total ausência de motivação e de capacidade para tomar decisões autónomas.

Esta visão imensamente valiosa sobre a minha paciente apresentou-se à minha consciência
como um intruso que não era bem-vindo. Não o tinha convidado. Não o queria. A sua presença
era-me estranha e sem importância para o que eu estava a tratar, uma distracção
desnecessária. Resisti-lhe inicialmente, tentando várias vezes empurrá-lo para fora da porta por
onde tinha entrado. Esta qualidade aparentemente estranha e indesejada é característica da
matéria do subconsciente e da sua forma de apresentação à mente consciente. Foi em parte
devido a essa qualidade e à resistência associada da mente consciente que Freud e os seus
primeiros seguidores concebiam o subconsciente como um repositório do primitivo, do anti-
social e do mal que há dentro de nós. É como se presumissem, pelo facto de a nossa
consciência não o querer, que o subconsciente era "mau". Nestas mesmas linhas, tenderam a
assumir que a doença mental residia de alguma forma no subconsciente, como um demónio
nas profundezas subterrâneas da mente. Coube a Jung a responsabilidade de iniciar a
correcção desta perspectiva, que fez de variadas formas, inclusive consagrando a expressão
"Sabedoria do Subconsciente". A minha própria experiência veio a confirmar as ideias de Jung
a este respeito, até ao ponto de concluir que a doença mental não é um produto do
subconsciente; é antes um fenómeno de consciência ou uma relação perturbada entre o
consciente e o subconsciente. Considere-se, por exemplo, a questão

270
da repressão. Freud descobriu em muitos dos seus pacientes desejos sexuais e sentimentos
hostis de que não tinham consciência, mas que no entanto lhes estavam a fazer mal. Dado que
esses desejos e sentimentos residiam no subconsciente, criou-se a noção de que era o
subconsciente que "causava" a doença mental. Mas, antes de mais, por que razão se
localizavam esses desejos e sentimentos no subconsciente? Porque eram reprimidos? A
resposta é que a mente consciente não os queria. É neste não querer, neste repúdio, que está o
problema. O problema não é os seres humanos terem esses sentimentos hostis e sexuais, mas
sim que os seres humanos têm uma mente consciente que tantas vezes não quer enfrentar
esses sentimentos e tolerar a dor de lidar com eles, e que se dispõe a varrê-los para debaixo do
tapete.

A terceira forma em que o subconsciente se manifesta e fala connosco se nos dispusermos a


ouvir (o que habitualmente não fazemos) é através do nosso comportamento. Refiro-me a
lapsos verbais e outros "erros" de comportamento, ou "lapsos freudianos", que Freud, na sua
Psicopatologia da Vida Quotidiana, demonstrou inicialmente serem manifestações do
subconsciente. O facto de Freud utilizar o termo "psicopatologia" para descrever estes
fenómenos é mais uma vez indicativo da sua orientação negativa em relação ao subconsciente;
ele concebia-o como desempenhando um papel vingativo, ou pelo menos como um diabo
malévolo a tentar fazer-nos tropeçar, em vez de o ver como uma espécie de fada madrinha a
esforçar-se imenso para nos fazer honestos. Quando um paciente comete um lapso na
psicoterapia, é um acontecimento invariavelmente útil para o processo de terapia ou de cura.
Nessas alturas, a mente consciente do paciente está ocupada a tentar combater a terapia,
determinada a esconder a verdadeira natureza do Eu do terapeuta e do próprio paciente. É o
subconsciente, no entanto, que se alia ao terapeuta, lutando pela aber-

271

tura, honestidade, verdade e realidade, lutando para "contar tal qual é".

Deixem-me dar alguns exemplos. Uma mulher meticulosa, totalmente incapaz de reconhecer
em si a emoção da ira e portanto incapaz de exprimir zanga abertamente, iniciou um
padrão de chegar alguns minutos atrasada para as sessões de terapia. Sugeri-lhe que seria
devido a sentir algum ressentimento contra mim ou contra a terapia ou contra ambos. Ela
negou peremptoriamente essa possibilidade, explicando que os atrasos eram puramente uma
questão duma ou doutra força acidental na vida, e proclamou a sua total apreciação a meu
respeito e motivação pelo nosso trabalho conjunto. Na tarde a seguir a essa sessão ela pagou
as contas mensais, incluindo a minha. O cheque que me passou não estava assinado quando
chegou. Na sessão seguinte, informei-a, sugerindo que não me tinha pago como deve ser
porque estava zangada. Ela disse, "Mas isso é ridículo! Nunca na vida deixei de assinar um
cheque. Sabe como sou meticulosa nestes assuntos. É impossível que eu não tenha assinado o
cheque." Mostrei-lhe o cheque por assinar. Apesar de sempre se ter controlado muito bem nas
sessões, desta vez desatou aos soluços. "O que se passa comigo?" gemia ela. "Estou a ir-me
abaixo. É como se fosse duas pessoas." Na sua agonia e com o meu reconhecimento de que era
de facto como uma casa dividida contra si própria, começou pela primeira vez a aceitar a
possibilidade de pelo menos uma parte dela albergar o sentimento da ira. Estava dado o
primeiro passo de progresso. Um outro paciente com um problema de ira era um homem que
achava irracional sentir, e muito menos exprimir, zanga para com qualquer membro da família.
Porque a irmã estava de visita nessa altura, ele falou-me dela, descrevendo-a como "uma
pessoa perfeitamente encantadora". Mais tarde, durante essa sessão, começou a falar-me
dum jantar que oferecia nessa noite, que incluía

272

um casal vizinho e "claro, a minha cunhada". Chamei-lhe a atenção por se ter referido à irmã
como cunhada. "Suponho que me vai dizer que é mais um daqueles lapsos freudianos,"
comentou jovialmente. "Vou sim," respondi. "O que o seu subconsciente está a dizer é que não
quer que a sua irmã seja sua irmã, que no que lhe diz respeito ela é só sua cunhada, e que na
verdade a detesta." "Eu não a detesto," respondeu ele, "mas ela fala incessantemente, e já sei
que hoje ao jantar vai monopolizar a conversa. Acho que ela, às vezes, me faz ficar
envergonhado." Mais um pequeno começo estava feito.

Nem todos os lapsos exprimem hostilidade ou sentimentos "negativos" negados. Exprimem


todos os sentimentos negados, negativos ou positivos. Exprimem a verdade, como as coisas
são realmente, em vez da maneira como gostamos de pensar que são. Talvez o lapso verbal
mais comovente da minha experiência tenha sido o duma jovem na primeira visita que me fez.
Eu sabia que os pais eram pessoas distantes e insensíveis, que a educaram com esmero mas
sem afecto e sem se importarem verdadeiramente com ela. Ela apresentou-se como sendo
uma mulher mundana, liberada e independente, invulgarmente madura e auto-confiante que
queria tratar-se comigo porque, explicou-me ela, "Estou numa espécie de impasse, com muito
tempo disponível, e achei que um bocadinho de psicanálise iria contribuir para o meu
desenvolvimento intelectual." Perguntei-lhe porque estava num impasse naquele momento e
fiquei a saber que tinha saído da universidade por estar grávida de cinco meses. Não se queria
casar. Pensou vagamente em dar o bebé para adopção a seguir ao parto e depois ir para a
Europa estudar. Perguntei-lhe se tinha informado o pai da criança, que não via há quatro
meses, sobre a gravidez. "Sim," disse ela, "mandei-lhe um bilhete para lhe dizer que a nossa
relação era o produto duma criança." Querendo dizer que uma criança era o produto da
relação, tinha-me dito que

273

sob a máscara de mulher mundana era uma rapariguinha com fome, privada de afecto, que
tinha engravidado numa tentativa desesperada de obter amor materno tornando-se mãe. Não
a confrontei com o lapso, porque não estava de forma nenhuma preparada para aceitar as suas
necessidades de dependência nem para as experimentar como seguras. No entanto, o lapso
foi-lhe útil porque me fez perceber que a pessoa que me procurava era uma criança assustada
que precisava de doçura protectora e do tipo de apoio carinhoso mais simples, quase físico,
ainda por muito tempo.

Estes três pacientes que cometeram lapsos estavam a tentar esconder-se, não tanto de mim,
como de si próprios. A primeira acreditava realmente que não tinha qualquer traço de
ressentimento. O segundo estava completamente convencido de que não sentia nenhuma
animosidade em relação a qualquer dos membros da família. A última não se considerava
outra coisa senão uma mulher mundana. Através dum complexo de factores, o conceito
consciente que temos de nós próprios quase sempre diverge, em maior ou menor grau, da
realidade da pessoa que realmente somos. Somos quase sempre menos ou mais competentes
do que pensamos ser. O subconsciente, no entanto, sabe quem somos realmente. Uma das
tarefas principais e essenciais no processo de desenvolvimento espiritual é o trabalho contínuo
de ajustar progressivamente o conceito consciente que temos de nós próprios à realidade.
Quando uma grande parte dessa tarefa da vida inteira é desempenhada com relativa rapidez,
como pode ser através de psicoterapia intensa, o indivíduo sente-se muitas vezes "renascido".
"Não sou a pessoa que era," dirá o paciente, referindo-se à mudança dramática da sua
consciência; "Sou uma pessoa totalmente nova e diferente." Uma pessoa como essa não tem
dificuldade em compreender as palavras da canção: "Eu estava perdido, mas agora fui
encontrado, estava cego, mas agora vejo."

274
Se identificarmos o nosso ego com o conceito ou consciência que temos de nós próprios, ou
com a consciência em geral, teremos que dizer do subconsciente que temos uma parte que é
mais sábia do que nós. Falámos sobre esta "sabedoria do subconsciente" principalmente em
termos de auto-conhecimento e auto-revelação. No exemplo da paciente que o meu
subconsciente me revelou ser o Pinóquio, tentei demonstrar que o subconsciente é mais sábio
do que nós tanto em relação a outras pessoas como a nós próprios. De facto, o nosso
subconsciente é mais sábio do que nós em todos os aspectos. Da primeira vez que fomos de
férias a Singapura, a minha mulher e eu, tendo chegado depois de escurecer, saímos do hotel
para dar um passeio a pé. Em breve chegámos a um grande espaço aberto onde ao fundo, a
dois ou três quarteirões de distância, conseguíamos entrever na escuridão a forma vaga dum
grande edifício. "O que será aquele edifício?" disse a minha mulher. Respondi imediatamente
com a maior certeza, "Ah, é o Clube de Críquete de Singapura." As palavras tinham-me saído da
boca com total espontaneidade. Arrependi-me quase imediatamente. Não tinha base nenhuma
para as dizer. Não só nunca tinha estado em Singapura, como nunca tinha visto um clube de
críquete - nem de dia, quanto mais de noite. Apesar disso, para meu assombro, à medida que
nos aproximámos do outro lado do edifício, que era a fachada, lá estava à entrada uma placa
de latão onde se lia Clube de Críquete de Singapura.

Como é que eu sabia isso que não sabia? Entre as explicações possíveis, uma é a da teoria do
"subconsciente colectivo" de Jung, em que herdamos a sabedoria da experiência dos nossos
antepassados sem termos tido a experiência pessoal. Embora este tipo de conhecimento possa
parecer bizarro às mentes científicas, a sua existência é estranhamente reconhecida na nossa
linguagem vulgar de todos os dias. Veja-se a própria palavra "reconhecer". Quando lemos um
livro e encontramos

275

uma ideia ou uma teoria que nos atrai, que nos recorda qualquer coisa, "reconhecemo-la"
como verdadeira. No entanto, podemos nunca ter pensado conscientemente nessa ideia ou
teoria. A palavra diz que "reconhecemos" o conceito, como se já o tivéssemos conhecido em
tempos, o tivéssemos esquecido e depois reconhecido como a um velho amigo. É como se
todo o conhecimento e toda a sabedoria estivessem contidos na nossa mente e, quando
aprendemos "uma coisa nova", estamos na verdade a descobrir algo que já existia no nosso Eu.
Este conceito está igualmente reflectido na palavra "educação", que deriva do latim educare,
traduzida literalmente como "trazer para fora de" ou "conduzir em frente". Portanto, quando
educamos as pessoas, se usarmos a palavra seriamente, não lhes metemos coisas novas na
cabeça; antes, trazemos essas coisas para fora delas; conduzimo-las a partir do subconsciente
para a sua consciência. Elas já eram possuidoras do conhecimento.

Mas qual é a fonte, essa parte de nós que é mais sábia que nós? Não sabemos. A teoria de Jung
do subconsciente colectivo sugere que a nossa sabedoria é herdada. Experiências científicas
recentes com material genético em conjunção com o fenómeno da memória sugerem que é de
facto possível herdar o conhecimento, armazenado em células sob a forma de ácido nucleico.
O conceito da armazenagem química de informação permite-nos começar a perceber como a
informação potencialmente disponível para a mente humana pode ser armazenada em poucos
centímetros cúbicos de substância cerebral. Mas mesmo este modelo extraordinariamente
sofisticado, que permite o armazenamento do conhecimento herdado assim como do
experimental num pequeno espaço, deixa sem resposta as perguntas mais intrigantes. Quando
especulamos sobre a tecnologia de tal modelo - como poderá ser construído, sincronizado, etc.
- ainda ficamos mudos de espanto perante o fenómeno da mente humana. A especulação
sobre

276

estas questões quase não difere em qualidade da especulação quanto a modelos de controle
cósmico tais como Deus tendo sob o seu comando exércitos e coros de arcanjos, anjos, serafins
e querubins para o ajudarem na tarefa de manter em ordem o Universo. A mente, que por
vezes pretende acreditar que os milagres não existem, é, em si, um milagre.

O Milagre do Serendipismo

EMBORA TALVEZ NOS SEJA possível conceber a sabedoria extraordinária do subconsciente,


como analisámos até aqui, como sendo uma parte recentemente explicável dum cérebro
molecular que funciona com uma tecnologia miraculosa, continuamos a não ter uma
explicação racional para os chamados "fenómenos psíquicos", que estão claramente
relacionados com o funcionamento do subconsciente. Numa série de experiências sofisticadas,
o médico Montague Ullman e Stanley Krippner, licenciado em filosofia, demonstraram
conclusivamente que é possível a um indivíduo acordado "transmitir" imagens repetida e
rotineiramente a outro indivíduo adormecido, separados por várias divisões, e que essas
imagens apareçam nos sonhos do adormecido*. Essa transmissão não ocorre apenas no
laboratório.

Por exemplo, não é invulgar que dois indivíduos que se conheçam tenham separadamente o
mesmo sonho ou sonhos incrivelmente semelhantes. Como é que isto acontece? Não fazemos
a menor ideia.

(NOta)

* "An Experimental Approach to Dreams and Telepathy: II Report of Three Studies," American
Journal of Psychiatry (Março 1970), pp. 1282-89. Recomenda-se a quem ainda não está
convencido da realidade da PÉS ou que desconfia da sua validade científica a leitura deste
artigo.

277

Mas acontece. A validade de tais ocorrências está provada cientificamente em termos de


probabilidade. Eu próprio, uma noite, tive um sonho que consistia numa série de sete imagens.
Mais tarde vim a saber que um amigo, que tinha dormido em minha casa duas noites antes,
tinha acordado a meio dum sonho em que as mesmas sete imagens ocorriam na mesma
sequência. Nem ele nem eu conseguimos determinar qualquer razão para o que aconteceu.
Não conseguimos relacionar os sonhos com nenhuma experiência que tivéssemos tido,
partilhada ou não, nem os conseguimos interpretar de nenhuma forma significativa. No
entanto, sabíamos que tinha acontecido qualquer coisa de grande significado. A minha mente
dispõe de milhões de imagens com que construir um sonho. A probabilidade de, apenas por
acaso, ter escolhido as mesmas sete que o meu amigo era astronomicamente pequena. O
acontecimento era tão pouco plausível que sabíamos que não podia ter acontecido
acidentalmente.

O facto de acontecimentos altamente improváveis, para os quais não se consegue determinar


uma causa dentro do quadro da lei natural tal como é conhecida, ocorrerem com frequência
improvável, é designado como o princípio da sincronicidade. O meu amigo e eu não sabemos a
causa ou a razão porque tivemos sonhos tão improvavelmente semelhantes, mas um dos
aspectos da ocorrência era termo-los tido com pouco tempo de intervalo. O tempo parece ser
o elemento importante, talvez até crucial, destes acontecimentos improváveis. Anteriormente,
quando falámos da tendência para os acidentes e da resistência aos mesmos, foi referido que
não é invulgar pessoas saírem de veículos completamente esmagados sem uma beliscadura, e
parecia ridículo especular que a máquina se amachucasse instintivamente numa configuração
que protegesse o passageiro ou que o passageiro se encolhesse instintivamente de forma a
ajustar-se à máquina. Não há
278

nenhuma lei natural conhecida em que a configuração do veículo (Ocorrência A) causasse a


sobrevivência do passageiro, ou que a forma do passageiro (Ocorrência B) fizesse com que o
veículo se amachucasse de determinada forma. De qualquer forma, embora uma não tenha
provocado a outra, a Ocorrência A e a Ocorrência B aconteceram sincronizadamente

- ou seja, ao mesmo tempo - de tal forma que o passageiro sobreviveu de facto. O princípio da
sincronicidade não explica porque ou como isto aconteceu; apenas afirma que essas
ocorrências conjuntas e improváveis acontecem mais frequentemente do que seria previsível
apenas devido ao acaso. Não explica os milagres. O princípio serve apenas para esclarecer que
os milagres parecem ser questões de tempo e que são extraordinariamente vulgares.

O incidente dos sonhos idênticos e quase síncronos qualifica-se, pela sua improbabilidade
estatística, como um fenómeno psíquico ou "paranormal" genuíno, apesar do significado do
incidente ser obscuro. Provavelmente, o significado da maioria dos fenómenos psíquicos ou
paranormais genuínos é igualmente obscuro. De qualquer forma, outra das características dos
fenómenos psíquicos, para além da sua improbabilidade estatística, é que um número
significativo dessas ocorrências parece ser feliz - benéfica duma maneira ou doutra para um ou
mais dos participantes humanos envolvidos. Um cientista maduro, extremamente céptico e
respeitável, que fazia análise comigo há pouco tempo, relatava o incidente seguinte: "Depois
da nossa última sessão, estava um dia tão bonito, decidi ir de carro pela estrada em redor do
lago no regresso a casa. Como sabe, a estrada à volta do lago tem muitas curvas apertadas.
Quando ia a chegar talvez à décima curva, ocorreu-me de repente que viria um carro em alta
velocidade do outro lado da curva em direcção à minha mão. Sem pensar em mais nada,
carreguei vigorosamente no travão e

A,

279
parei completamente. Tinha acabado de fazer isso quando apareceu um carro a alta velocidade
na curva, que passou com as rodas dois metros para cá da linha amarela e que quase veio
contra mim apesar de eu estar imóvel no meu lado da estrada. Se eu não tivesse parado, tinha
sido inevitável chocarmos na curva. Não faço ideia do que me fez parar. Podia ter parado
noutra curva qualquer e não o fiz. Já tinha feito muitas vezes aquela estrada antes e embora
me ocorresse que era perigosa, nunca tinha parado. Faz-me pensar se de facto não haverá algo
de verdade na PÉS (Percepção Extra-Sensorial) e nesse tipo de coisas. Não tenho outra
explicação."

É possível que as ocorrências estatisticamente improváveis até ao ponto de serem exemplos de


sincronicidade ou do paranormal possam ser tão prejudiciais como benéficas. Ouvimos falar de
acidentes anormais tal como não-acidentes anormais. Embora cheia de armadilhas
metodológicas, é evidente que há necessidade de fazer investigação neste domínio. Nesta
altura, só posso declarar uma impressão muito nítida mas "não científica" de que a frequência
dessas ocorrências estatisticamente improváveis claramente benéficas é bastante maior do que
aquela em que o resultado é prejudicial. Os resultados benéficos dessas ocorrências podem
não ser em termos de salvar vidas; muito mais frequentemente contribuem para dar mais valor
à vida ou para o desenvolvimento. Um exemplo excelente duma dessas ocorrências é a
experiência do "sonho do escaravelho" de Cari Jung, relatado no artigo Da Sincronicidade e
aqui citada na totalidade:

O meu exemplo refere-se a uma jovem paciente que, apesar dos esforços feitos de ambos os
lados, provou ser psico-

(Nota)

The Portable Jung, Joseph Campbell, ed. (Nova Iorque: Viking Press,

1971), pp. 511-12.

280

GRAÇA

logicamente inacessível. A dificuldade residia no facto de ela saber sempre mais sobre tudo. A
sua educação excelente tinha-a equipado com uma arma feita à medida para o efeito, um
racionalismo Cartesiano primorosamente refinado com uma ideia da realidade
impecavelmente "geométrica". Depois de várias tentativas frustradas de lhe adoçar o
racionalismo com uma compreensão algo mais humana, tive que me reduzir à esperança de
que algo inesperado e irracional acontecesse, algo que rompesse a réplica intelectual a que se
tinha remetido. Bem, um dia, estava sentado em frente dela, de costas para a janela, ouvindo o
fluxo da sua retórica. Tinha tido um sonho impressionante na noite anterior, em que alguém
lhe tinha dado um escaravelho de ouro uma peça de joalharia cara. Enquanto ela me estava a
contar o sonho, ouvi qualquer coisa a bater suavemente na janela. Voltei-me e vi que era um
insecto voador bastante grande que batia de encontro à vidraça, na tentativa de entrar na sala
escura. Isso pareceu-me estranho. Abri a janela imediatamente e apanhei o insecto no ar
quando ele entrou. Era um besouro da família dos Escarabídeos, que ataca as roseiras (Cetonia
aurata), cuja cor verde-dourada se parece muito com um escaravelho de ouro. Entreguei o
besouro à minha paciente com as palavras, "Aqui tem o seu escaravelho." A experiência abriu a
brecha desejada no seu racionalismo e quebrou-lhe o gelo da resistência intelectual. Agora
podia continuar o tratamento com resultados satisfatórios.

Aquilo de que falamos relativamente a acontecimentos paranormais com consequências


benéficas é o fenómeno do serendipismo. O dicionário Webster define o serendipismo como
"o dom de encontrar coisas valiosas ou agradáveis não procuradas". Há vários factores
intrigantes nesta definição. Um é a definição de serendipismo como um dom, implicando

281

que algumas pessoas o possuem e outras não, que algumas pessoas têm sorte e outras não. É
uma das teses principais desta secção que a graça, manifestada em parte por "coisas valiosas
ou agradáveis não procuradas", está disponível para todos, mas enquanto alguns tiram partido
dela, outros não. Ao deixar entrar o besouro, apanhá-lo e dá-lo à sua paciente, Jung estava
claramente a tirar partido dela. Iremos explorar algumas das razões e formas em que as
pessoas não tiram partido da graça, mais adiante, sob o título "Resistência à Graça". Mas, para
já, adiantarei que uma das razões porque não tiramos inteiro partido da graça é não nos
apercebermos da sua presença - ou seja, não encontramos coisas valiosas não procuradas,
porque não apreciamos o valor da oferta quando nos é dada. Por outras palavras, os
acontecimentos serendipíticos ocorrem com todos nós, mas frequentemente não
reconhecemos a sua natureza serendipítica; consideramos tais ocorrências banais, e
consequentemente não tiramos total partido delas.

Há cinco meses atrás, dispondo de duas horas livres entre duas consultas, numa certa cidade,
perguntei a um colega que ali vivia se as podia passar na biblioteca de sua casa, a trabalhar na
revisão da primeira secção deste livro. Quando lá cheguei, fui recebido pela mulher do meu
colega, uma mulher distante e reservada que parecia não simpatizar muito comigo e que me
tinha manifestado até alguma hostilidade, por diversas vezes, de forma quase arrogante.
Conversámos desajeitadamente durante cerca de cinco minutos. Durante essa conversa
superficial, ela disse que tinha sabido que eu estava a escrever um livro e perguntou-me qual
era o assunto. Disse-lhe que tratava do desenvolvimento espiritual e não adiantei mais. Sentei-
me na biblioteca para trabalhar. Meia hora depois, encontrei um obstáculo. Uma parte do que
tinha escrito sobre a questão da responsabilidade parecia-me completamente insatis-

282

fatória. Era óbvio que tinha que ser consideravelmente alongada para dar sentido aos
conceitos nela analisados, no entanto sentia que esse alongamento ia prejudicar o seguimento
do trabalho. Por outro lado, não estava disposto a retirar toda essa secção, porque achava
necessário fazer alguma referência a esses conceitos. Debati-me com o dilema durante mais de
uma hora, não chegando a nenhuma conclusão, sentindo-me cada vez mais frustrado e incapaz
de resolver a situação.

Nessa altura, a mulher do meu colega entrou silenciosamente na sala. Mostrava-se tímida e
hesitante, respeitosa, no entanto simpática e dócil, completamente diferente de todas as
outras vezes em que nos tínhamos encontrado antes. "Scotty, espero não estar a incomodá-lo,"
disse ela. "Se estiver, diga-me." Disse-lhe que não, que estava com uma dificuldade que não me
deixava avançar, de momento. Ela trazia nas mãos um livrinho. "Encontrei este livro por acaso,"
disse ela. "Achei que podia interessar-lhe. Provavelmente não lhe interessa. Mas ocorreu-me
que lhe pudesse ser útil. Não sei porquê." Sentindo-me irritado e pressionado, poderia ter-lhe
dito que estava farto de livros até às orelhas - o que era verdade e que não via forma de o ler
no futuro mais próximo. Mas a estranha humildade dela despertou uma resposta diferente.
Disse-lhe que agradecia a sua amabilidade e que tentaria lê-lo logo que possível. Levei-o para
casa, desconhecendo quando seria o "logo que possível". Mas, nessa mesma noite, algo me
obrigou a pôr de lado todos os outros livros que andava a consultar para ler o dela. Era um
volume fino intitulado Como as Pessoas Mudam, de Allen Wheelis. Grande parte do livro era
relacionada com questões de responsabilidade. Um dos capítulos descrevia requintadamente e
em profundidade o que eu teria tentado dizer se tivesse aumentado a secção difícil do meu
próprio livro. Na manhã seguinte, condensei a secção do meu livro num pequeno parágrafo
conciso sugerindo ao leitor,
283

em nota de fim de página, o livro de Wheelis como uma análise exaustiva ideal do assunto. O
meu dilema ficou resolvido.

Isto não foi um acontecimento estrondoso. Não houve trombetas a anunciá-lo. Podia muito
bem tê-lo ignorado. Teria sobrevivido sem ele. De qualquer modo, fui tocado pela graça. O
acontecimento foi simultaneamente extraordinário e vulgar

- extraordinário porque era altamente improvável, vulgar porque essas ocorrências benéficas
altamente improváveis acontecem-nos constantemente, silenciosamente, batendo à porta da
nossa consciência de forma não mais dramática do que o besouro que batia suavemente na
janela.

Acontecimentos semelhantes ocorreram dúzias de vezes nos meses desde que a mulher do
meu colega me emprestou o livro. Têm-me acontecido sempre. Alguns deles, reconheço-os.
Doutros, posso tirar partido sem sequer me aperceber da sua natureza miraculosa. Não tenho
maneira de saber quantos deixei fugir.

A Definição de Graça

ATÉ AQUI, NESTA SECÇÃO, descrevi uma variedade de fenómenos que têm as seguintes
características em comum:

(a) Servem para acalentar - apoiar, proteger e aumentar

- a vida humana e o desenvolvimento espiritual.

(b) O seu mecanismo de acção é compreensível de forma incompleta (como no caso da


resistência física e dos sonhos) ou totalmente obscuro (como no caso dos fenómenos
paranormais) segundo os princípios da lei natural tal como interpretada pelo pensamento
científico actual.
(c) A sua ocorrência é frequente, rotineira, vulgar e essencialmente universal entre a
humanidade.

284

(d) Embora potencialmente influenciados pela consciência humana, a sua origem é exterior à
vontade consciente e para lá do processo de tomada de decisão consciente.

Embora considerados geralmente separados, cheguei à conclusão de que a sua vulgaridade


indica que estes fenómenos fazem parte ou são manifestações dum único fenómeno: uma
força poderosa originada exteriormente à consciência humana que acalenta o
desenvolvimento espiritual dos seres humanos. Durante centenas ou até milhares de anos
antes da conceptualização científica de coisas como imuno-globulinas, estados de sonho, e o
subconsciente, esta força tem sido constantemente reconhecida pelas religiões, que lhe deram
o nome de graça. E cantaram em seu louvor. "Assombrosa graça, quão doce o som..."

Que vamos fazer - nós que somos cépticos e temos mentes científicas - com esta "força
poderosa originada exteriormente à consciência humana que acalenta o desenvolvimento
espiritual dos seres humanos"? Não podemos tocar nesta força. Não temos nenhuma forma
aceitável de a medir. No entanto, existe. É real. Vamos funcionar com a visão em túnel e ignorá-
la porque não se ajusta facilmente aos conceitos tradicionais científicos da lei natural? Fazê-lo
parece perigoso. Não creio que possamos almejar chegar ao total entendimento do cosmo, e
portanto à natureza da humanidade em si, sem incorporar o fenómeno da graça no nosso
quadro conceptual.

No entanto, nem sequer conseguimos localizar essa força. Só dissemos onde ela não está:
residente na consciência humana. Então, onde reside? Alguns dos fenómenos expostos, tais
como os sonhos, sugerem que a graça reside no subconsciente do indivíduo. Outros
fenómenos, tais como a sincronicidade e o serendipismo, indicam que esta força existe para
além das fronteiras do indivíduo. Não é simplesmente por sermos cientistas que temos
dificuldade em localizar a graça. Os religiosos, que,
285

evidentemente, atribuem as origens da graça a Deus, acreditando que é literalmente o amor


de Deus, têm tido, através dos tempos, a mesma dificuldade em localizar Deus. Existem, na
Teologia, duas tradições extensas e opostas a este respeito: uma, a doutrina da Emanência, que
sustenta que a graça emana dum Deus exterior ao homem; a outra, a doutrina da Imanência,
que defende que a graça imana de Deus a partir do centro do ser humano.

Este problema - assim como, aliás, todo o problema do paradoxo - resulta do nosso desejo,
antes de mais, de localizar as coisas. Os seres humanos têm uma profunda tendência a
conceptualizar em termos de entidades separadas. Concebemos o mundo composto dessas
entidades: barcos, sapatos e cera vedante, e outras categorias. E tendemos a compreender um
fenómeno colocando-o numa determinada categoria, dizendo que é esta ou aquela entidade.
Ou é isto ou aquilo, mas não pode ser ambos. Os barcos são barcos e não são sapatos. Eu sou
eu e tu és tu. A entidade Eu é a minha identidade e a entidade Tu é a tua identidade, e
tendemos a ficar muito incomodados se as nossas identidades forem misturadas ou
confundidas. Como assinalámos anteriormente, os pensadores hindus e budistas crêem que a
nossa percepção de entidades distintas é uma ilusão, ou maya, e os físicos modernos, que
tratam da relatividade, fenómenos de partículas de ondas, electro-magnetismo, etc., têm cada
vez mais consciência das limitações da nossa abordagem conceptual em termos de entidades.
Mas é difícil escapar-lhe. A nossa tendência para pensar em termos de entidades obriga-nos a
querer localizar as coisas, mesmo coisas como Deus e a graça, e mesmo quando sabemos que
essa tendência interfere com a nossa compreensão dessas questões.

Tento não pensar no indivíduo como uma verdadeira entidade, e até onde as minhas limitações
intelectuais me obrigam a pensar (ou a escrever) em termos de entidades, concebo as

286
fronteiras do indivíduo como sendo marcadas por uma membrana muito permeável - uma
cerca, se quiserem, em vez dum muro; uma cerca através da qual ou por baixo e por cima da
qual podem trepar, gatinhar ou atravessar outras "entidades". Tal como a nossa mente
consciente é sempre parcialmente permeável ao nosso subconsciente, assim o nosso
subconsciente é permeável à "mente" exterior, a "mente" que nos atravessa e que, no entanto,
não é nós como entidade. Mais elegante e adequadamente descritiva da situação do que a
linguagem científica do século XX de membranas permeáveis é a linguagem religiosa, do século
XIV (c. 1393) da Dama Julian, uma anacoreta de Norwich, ao descrever a relação entre a graça
e a entidade individual: "Pois como o corpo se veste de tecido, e a carne de pele e os ossos de
carne e o coração de tudo isso, assim nós nos vestimos, corpo e alma, e estamos envolvidos na
bondade de Deus. Sim, e mais simples; porque todos eles se podem gastar e fenecer, mas a
bondade de Deus permanece sempre."*

Em todo o caso, independentemente de como os atribuímos ou onde os localizamos, os


"milagres" descritos indicam que o nosso desenvolvimento como seres humanos é assistido
por uma outra força que não a nossa vontade consciente. Para compreender melhor a natureza
desta força, creio que podemos beneficiar ao considerar ainda outro milagre: o processo de
desenvolvimento de toda a vida, a que demos o nome de evolução.

(Nota)

* Revelation of Divine Love, Grace Warrack, ed. (Nova Iorque: British Book Centre, 1923), Cap.
VI.

287

O Milagre da Evolução

EMBORA NÃO A TENHAMOS focado até aqui como conceito, duma forma ou doutra, temos
tratado da evolução ao longo deste livro. O desenvolvimento espiritual é a evolução dum
indivíduo. O corpo dum indivíduo pode sofrer as mudanças do ciclo da vida, mas não evolui.
Não se forjam novos padrões físicos. O declínio da capacidade física na velhice é uma
inevitabilidade. No espaço duma vida individual, no entanto, o espírito humano pode evoluir
drasticamente. Podem forjar-se novos padrões. A capacidade espiritual pode aumentar
(embora normalmente não o faça) até ao momento da morte numa idade muito avançada. O
nosso tempo de vida oferece-nos oportunidades ilimitadas de desenvolvimento até ao fim.
Embora este livro se concentre na evolução espiritual, o processo de evolução física é
semelhante ao do espírito e fornece-nos um modelo para melhor compreensão do processo de
desenvolvimento espiritual e do significado da graça.
A característica mais assinalável do processo de evolução física é ser um milagre. Perante o que
entendemos do Universo, a evolução não devia ocorrer; o fenómeno não devia existir. Uma das
leis básicas da Natureza é a segunda lei da termodinâmica, que afirma que a energia flui
naturalmente dum estado de maior organização para um estado de menor organização, dum
estado de maior diferenciação para um estado de menor diferenciação. Por outras palavras, o
Universo está num processo de diminuição. O exemplo frequentemente usado para descrever
este processo é o dum ribeiro, que corre naturalmente pela encosta abaixo. É preciso energia
ou trabalho bombas, comportas, humanos transportando baldes ou outros

288

meios - para inverter este processo, para voltar ao princípio, para levar a água de volta para o
cimo do monte. E essa energia tem de vir doutro lado. Outro sistema energético tem que ser
gasto para manter este. Por fim, de acordo com a segunda lei da termodinâmica, em biliões e
biliões de anos, o Universo esgotar-se-á completamente até atingir o seu ponto mais baixo
como uma "massa" amorfa, totalmente desorganizada, totalmente indiferenciada em que já
nada acontece. Este estado de desorganização e indiferenciação total é designado por
entropia.

O curso natural da energia, pela encosta abaixo, até ao estado de entropia, pode ser designado
por força de entropia. Podemos então concluir que o "fluxo" da evolução é contra a força da
entropia. O processo de evolução tem sido o desenvolvimento de organismos de estados
inferiores para estados cada vez mais elevados de complexidade, diferenciação e organização.
Um vírus é um organismo extremamente simples, pouco mais que uma molécula. Uma
bactéria é mais complexa, mais diferenciada, possuidora duma parede de células, de tipos
diferentes de moléculas e dum metabolismo. Uma paramécia tem um núcleo, cílios e um
sistema digestivo rudimentar. Uma esponja não só tem células mas começa a ter tipos
diferentes de células interdependentes. Os insectos e os peixes têm sistemas nervosos com
métodos complexos de locomoção, e até organizações sociais. E assim por diante, ao longo da
escala de evolução, uma escala com cada vez maior complexidade, organização e diferenciação,
com o homem, que possui um córtex cerebral enorme e padrões de comportamento
extraordinariamente complexos no topo, tanto quanto sabemos.

Eu afirmo que o processo de evolução é um milagre, porque enquanto processo de crescente


organização e diferenciação, corre contra a lei natural. No curso normal das coisas,
289

nós, que escrevemos e lemos este livro, não devíamos existir. O processo de evolução pode ser
representado em diagrama por uma pirâmide, com o homem, o organismo mais complexo mas
menos numeroso, no vértice superior e os vírus, os organismos mais numerosos mas menos
complexos, na base:

ORGANIZAÇÃO MAIS COMPLEXA

ENTROPIA

O vértice é projectado para fora, para cima e para a frente contra a força de entropia. Dentro
da pirâmide coloquei uma seta que simboliza essa força evolucionária, esse "algo" que tem
desafiado com sucesso e constantemente a "lei natural" em milhões sobre milhões de gerações
e que deve representar por si a lei natural ainda não definida.

A evolução espiritual da humanidade pode ser representada num diagrama idêntico:

O conceito de que a evolução decorre contra a lei natural não é novo nem original. Lembro-me
que alguém que estudei nos meus tempos de universidade dizia, "A evolução é um refluxo de
corrente na segunda lei da termodinâmica" mas, infelizmente, não consegui localizar a
referência. Mais recentemente, este conceito foi articulado por Buckminster Fuller no seu livro
And It Carne to Pass - Not to Stay (Nova Iorque: Macmillan, 1976).

290

COMPETÊNCIA ESPIRITUAL

ESPIRITUALIDADE NÃO DESENVOLVIDA


Tenho frisado repetidamente que o processo de desenvolvimento espiritual é difícil e implica
esforço. É assim porque é conduzido contra uma resistência natural, contra uma inclinação
natural para deixar as coisas como estavam, para se agarrar aos mapas antigos e às velhas
formas de fazer as coisas, ir pelo caminho fácil. Sobre esta resistência natural, esta força de
entropia nas nossas vidas espirituais, terei mais a dizer em breve. Mas, como no caso da
evolução física, o milagre é ultrapassar essa resistência. Nós desenvolvemo-nos. Apesar de
tudo o que resiste ao processo, tornamo-nos seres humanos melhores. Nem todos. Nem com
facilidade. Mas em número significativo, os seres humanos conseguem desenvolver-se e às
suas culturas. Há uma força que de algum modo nos força a escolher o caminho mais difícil,
pelo qual transcendemos a lama e o esterco em que tantas vezes nascemos.

Este diagrama do processo de evolução espiritual pode ser aplicado à existência dum único
indivíduo. Cada um de nós tem o seu impulso de se desenvolver e, ao obedecer a esse impulso,
tem que combater sem ajudas a sua própria resistência. O diagrama também se aplica à
humanidade no seu todo.

291

À medida que evoluímos como indivíduos, fazemos com que a nossa sociedade evolua. A
cultura que nos alimenta na infância é alimentada pela nossa liderança na idade adulta. Quem
atinge o desenvolvimento, não só goza os frutos desse desenvolvimento como dá esses frutos
ao mundo. Evoluindo como indivíduos, levamos a humanidade às costas. E a humanidade
assim evolui.

A noção de que o plano de desenvolvimento espiritual do Homem se encontra num processo


de ascensão pode parecer pouco realista a uma geração desiludida com o sonho do progresso.
Há guerra, corrupção e poluição por toda a parte. Como é que se pode sugerir, com razão, que
a raça humana está a progredir espiritualmente? No entanto, é exactamente isso que eu
sugiro. A nossa sensação de desilusão resulta do facto de esperarmos de nós mais do que os
nossos antepassados esperavam de si próprios. O comportamento humano que consideramos
hoje repugnante e excessivo era aceite como natural em tempos idos. Uma das questões
principalmente focadas neste livro, por exemplo, é a das responsabilidades dos pais pela
educação espiritual dos filhos. Este tema não é radical hoje em dia, mas há muitos séculos nem
sequer era uma preocupação dos seres humanos. Embora eu considere que a qualidade média
da paternidade exercida nos nossos dias é espantosamente baixa, tenho todas as razões para
acreditar que é muito superior à de apenas algumas gerações atrás. Um estudo recente sobre
um dos aspectos da educação infantil começa por notar:

A lei romana dava ao pai controle absoluto sobre os filhos, que podia vender ou condenar à
morte impunemente. Este conceito de direito absoluto foi transposto para a lei inglesa, onde
prevaleceu até ao século XIV sem mudança apreciável. Na Idade Média, a infância não era
considerada a fase única

292

da vida como a vemos hoje. Era habitual mandar as crianças, por vezes ainda com sete anos,
servir ou aprender um ofício, em que o estudo era secundário em relação ao trabalho que a
criança desempenhava para o patrão. Não parecia haver distinção entre a criança e o serviçal
em termos de tratamento; até na linguagem, que frequentemente não tinha termos separados
para cada um. Só a partir do século XVI se passou a considerar as crianças como merecendo
interesse especial, com tarefas importantes e específicas de desenvolvimento a desempenhar e
merecedoras de afecto. *

Mas que força é esta que nos compele como indivíduos e como toda uma espécie a evoluir
contra a resistência natural da nossa própria letargia? Já a classificámos. É o amor. O amor foi
definido como "a vontade de se expandir a si próprio para acalentar o seu próprio
desenvolvimento pessoal ou o de outro". Quando evoluímos, é porque nos esforçamos por
isso, e esforçamo-nos porque nos amamos a nós próprios. É através do amor que nos
elevamos. E é através do nosso amor pelos outros que os ajudamos a elevarem-se. O amor, o
prolongamento do Eu, é o próprio acto da evolução. É a evolução que progride. A força
evolucionária, presente em toda a vida, manifesta-se na humanidade como amor humano.
Entre a humanidade, o amor é a força miraculosa que desafia a lei natural da entropia.

(Nota)

* André P. Derdeyn, "Child Custody Contests in Historical Perspective", American Journal of


Psychiatry, Vol. 133, N°. 12 (Dez. 1976), p. 1369.

293
O Alfa e o Ómega

AINDA NOS RESTA, no entanto, a pergunta feita no final da secção sobre o amor: donde vem o
amor? Só que agora pode ser alargada a uma pergunta talvez ainda mais básica: donde vem
toda a força da evolução? E a isto podemos acrescentar a nossa confusão quanto às origens da
graça. Porque o amor é consciente, mas a graça não. Donde vem esta "força poderosa
originada exteriormente à consciência humana que apoia o desenvolvimento espiritual dos
seres humanos"?

Não podemos responder a estas perguntas da mesma forma científica como respondemos
donde vem a farinha, o aço ou as larvas. Não é simplesmente por serem demasiado intangíveis,
mas mais por serem demasiado básicos para a nossa "ciência" tal qual ela existe. Porque estas
não são as únicas questões básicas a que a ciência não consegue responder. Sabemos
realmente o que é a electricidade, por exemplo? Ou donde vem a energia, antes de mais? Ou o
Universo? Talvez um dia a nossa ciência de respostas venha a pôr-se a par das perguntas mais
básicas. Até lá, se vier a acontecer, só podemos especular, teorizar, postular e pôr hipóteses.

Para explicar os milagres da graça e da evolução, pomos a hipótese da existência dum Deus que
quer que evoluamos um Deus que nos ama. Para muitos, esta hipótese parece demasiado
simples, demasiado fácil; demasiado parecida com a fantasia; infantil e ingénua. Mas que mais
temos? Ignorar os elementos fazendo uso da visão em túnel não é resposta. Não podemos
obter uma resposta sem fazer as perguntas. Por mais simples que seja, ninguém que tenha
observado os elementos e feito as perguntas foi capaz de formular uma hipótese melhor

294

ou, na verdade, qualquer hipótese. Até que alguém o faça, estamos presos a esta estranha
noção infantil dum Deus que nos ama ou então a um vácuo teórico.

E se levarmos isto a sério, descobriremos que esta simples noção dum Deus que ama não
implica uma filosofia simples.
Se afirmamos que a nossa capacidade de amar, este impulso para crescer e evoluir, nos é
"inspirada" por Deus, então temos que perguntar com que fim. Porque quer Deus que nos
desenvolvamos? Em que direcção nos desenvolvemos? Onde está o ponto final, o objectivo da
evolução? O que é que Deus quer de nós? Não é minha intenção envolver-me aqui em detalhes
teológicos, e espero que os intelectuais me perdoem por não seguir os preceitos da Teologia
especulativa. Porque apesar de todos nós andarmos com pezinhos de lã à volta do assunto,
todos nós que presumimos que existe um Deus que ama e pensamos realmente sobre o
assunto, eventualmente chegamos a uma ideia aterradora: Deus quer que nos tornemos Nele.
Desenvolvemo-nos para nos tornarmos Deus. Deus é o objectivo final da evolução. É Deus a
fonte da força evolucionária e é Deus que é o destino. É esse o significado quando dizemos que
Ele é o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim.

Quando referi que esta é uma ideia aterradora, estava a ser moderado. É uma ideia muito
antiga, mas fugimos dela, aos milhões, em perfeito pânico. Porque nunca outra ideia veio à
mente do homem que lhe imponha um fardo tão pesado. É a ideia mais exigente por si só de
toda a história da humanidade. Não por ser difícil de conceber; pelo contrário, é a essência da
simplicidade. Mas porque se acreditarmos nela, exige de nós tudo o que possamos dar, tudo o
que tivermos. Uma coisa é acreditar num Deus simpático que cuida de nós a partir de uma
posição superior de poder, que nós nunca poderíamos alcançar. Outra é acreditar num Deus
que pretende precisamente que atinjamos a Sua posição, o Seu poder, a Sua

295

sabedoria, a Sua identidade. Se acreditássemos ser possível ao homem tornar-se Deus, esse
credo, pela sua própria natureza, impor-nos-ia a obrigação de tentar atingir o possível. Mas nós
não queremos essa obrigação. Não queremos ter que nos esforçar tanto. Não queremos a
responsabilidade de Deus. Não queremos a responsabilidade de ter que pensar
constantemente. Enquanto acreditarmos que nos é impossível tornarmo-nos Deus, não temos
que nos preocupar com o nosso desenvolvimento espiritual, não temos que nos esforçar para
atingir níveis cada vez mais altos de consciência e de actividade de amor; podemos relaxar e
ser apenas humanos. Se Deus está no céu e nós aqui em baixo, e nunca nos encontrarmos,
podemos deixar-lhe toda a responsabilidade da evolução e da direcção do Universo. Podemos
fazer a nossa parte assegurando o nosso conforto na velhice, preferivelmente com filhos e
netos saudáveis, felizes e agradecidos; mas para além disso não precisamos de nos maçar.
Esses objectivos já são difíceis de atingir e não devem ser menosprezados. De qualquer modo,
assim que acreditamos ser possível ao homem tornar-se Deus, nunca podemos realmente
descansar muito tempo, nem podemos dizer "Pronto, acabei a minha tarefa, o meu trabalho
está feito". Temos que nos esforçar constantemente por uma sabedoria e uma eficácia cada vez
maiores. Pois através desse credo, estaremos presos, pelo menos até à morte, a um esforço
árduo de melhoria pessoal e desenvolvimento espiritual. A responsabilidade de Deus deve ser
a nossa. Não admira que acreditar na possibilidade de se ser Deus nos repugne.

A ideia de que Deus nos ampara activamente para que possamos desenvolver-nos até sermos
como Ele, confronta-nos com a nossa própria preguiça.

296

GRAÇA

A Entropia e o Pecado Original

SENDO DEDICADO AO desenvolvimento espiritual, este livro, inevitavelmente, trata do outro


lado da mesma moeda: dos impedimentos do desenvolvimento espiritual. No limite, existe só
um impedimento, que é a preguiça. Se combatermos a preguiça, todos os outros
impedimentos serão ultrapassados. Se não ultrapassarmos a preguiça, nenhum dos outros será
transposto. Portanto, este livro também é sobre a preguiça. Ao analisar a disciplina,
considerámos a preguiça de tentar evitar o sofrimento necessário, ou de fugir pelo caminho
mais fácil. Ao analisar o amor, examinámos também o facto de o não-amor ser a
indisponibilidade para expandir o Eu. A preguiça é o oposto do amor. O desenvolvimento
espiritual implica esforço, como já foi referido repetidamente. Estamos agora em posição de
examinar a natureza da preguiça em perspectiva, e de compreender que a preguiça é a força de
entropia tal como se manifesta na vida de todos nós.

Durante muitos anos, considerei a noção do pecado original destituída de significado e até
censurável. A sexualidade não me parecia particularmente pecaminosa. Nem os meus outros
apetites variados. Deixava-me frequentemente tentar, comendo demais numa refeição
excelente e, embora pudesse ter algumas dores de indigestão, não me doía certamente a
consciência. Apercebia-me do pecado no mundo: vigarice, preconceito, tortura, brutalidade.
Mas não me apercebia de nada de pecaminoso inerente aos bebés nem me parecia racional
acreditar que as crianças estavam amaldiçoadas porque os antepassados tinham comido o
fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal. Gradualmente, no entanto, fui-me
297

apercebendo cada vez melhor da natureza ubíqua da preguiça. Na luta para ajudar os meus
pacientes a desenvolverem-se, descobri que o meu inimigo principal era invariavelmente a sua
preguiça. E apercebi-me de que em mim existia uma resistência semelhante a estender-me a
novas áreas de pensamento, responsabilidade e maturação. Uma coisa tinha claramente em
comum com o resto da humanidade: era a minha preguiça. Foi nessa altura que a história da
serpente e da maçã passou a fazer sentido.

A questão principal é aquilo que falta. A história conta que Deus tinha o hábito de "passear no
jardim à hora mais fresca do dia" e que se abriam os canais de comunicação entre Ele e o
homem. Mas se era assim, então por que razão Adão e Eva, separados ou em conjunto, antes
ou depois da tentação da serpente, não disseram a Deus, "Temos curiosidade em saber porque
não queres que cornamos o fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal. Gostamos de
estar aqui e não queremos parecer mal-agradecidos, mas a Tua lei quanto a este assunto não
parece fazer muito sentido e gostávamos muito que nos explicasses"? Mas claro que não
disseram isto. Em vez disso, transgrediram a lei de Deus sem nunca perceberem a razão por
trás da lei, sem fazerem o esforço de questionar Deus directamente, questionar a sua
autoridade ou até comunicar com Ele a um nível razoavelmente adulto. Escutaram a serpente,
mas não ouviram a versão de Deus da história antes de agir.

Porque falharam? Porque não foi dado nenhum passo entre a tentação e a acção? É este passo
em falta que é a essência do pecado. O passo em falta é o passo do debate. Adão e Eva podiam
ter estabelecido um debate entre a serpente e Deus e, não o tendo feito, não obtiveram a
versão de Deus quanto à questão. O debate entre a serpente e Deus simboliza o diálogo entre
o Bem e o Mal, que pode e deve ocorrer no interior da

298

mente dos seres humanos. O facto de não promovermos - ou não promovermos completa e
empenhadamente - este debate interno entre o Bem e o Mal é a causa das más acções que
constituem o pecado. Ao debater a sensatez dum determinado curso de acção, é comum os
seres humanos não tentarem obter a versão de Deus da questão. Não consultam nem escutam
o Deus dentro deles, o conhecimento da rectidão que reside inerentemente no interior das
mentes de toda a humanidade. Cometemos este erro porque somos preguiçosos. Dá trabalho
promover esses debates internos. Exigem tempo e energia. E se os levarmos a sério - se
ouvirmos com seriedade este "Deus dentro de nós" - normalmente damos por nós a ser
impelidos a tomar o caminho mais difícil, o caminho que exige maior esforço. Promover o
debate é abrirmo-nos ao sofrimento e à luta. Cada um de nós, mais ou menos frequentemente,
foge a esse esforço e procura evitar esse passo doloroso. Como Adão e Eva e como todos os
nossos antepassados, somos todos preguiçosos.

Portanto o pecado original existe; é a nossa preguiça. É muito real. Existe em todos e cada um
de nós - bebés, crianças, adolescentes, adultos, velhos; os sábios e os estúpidos; os aleijados e
os sãos. Alguns podem ser menos preguiçosos do que outros, mas somos todos preguiçosos
em certa medida. Por muito enérgicos, ambiciosos ou inteligentes que sejamos, se olharmos
verdadeiramente para dentro de nós próprios, encontraremos a preguiça algures à espreita. É a
força de entropia dentro de nós, que nos empurra para baixo e para trás no caminho da
evolução espiritual.

Alguns leitores poderão dizer para consigo, "Mas eu não sou preguiçoso. Trabalho sessenta
horas por semana e aos fins-de-semana, apesar de estar cansado, esforço-me por sair com a
minha mulher, levo as crianças ao jardim zoológico, ajudo em casa, faço uma quantidade de
trabalhos. As vezes

299

parece que é só o que faço - trabalhar, trabalhar, trabalhar." Posso compreender esses leitores,
mas insisto em lhes fazer notar que encontrarão em si a preguiça se a procurarem. Porque a
preguiça assume formas diferentes das relacionadas com o número de horas passadas no
trabalho ou dedicadas às suas responsabilidade para com outros. Uma das principais formas
assumidas pela preguiça é a do medo. O mito de Adão e Eva serve também para o
ilustrar. Pode dizer-se, por exemplo, que não foi a preguiça que impediu Adão e Eva de
questionar Deus sobre as razões da Sua lei, mas sim o medo medo em face da grandeza de
Deus, medo da ira de Deus. Mas embora nem todo o medo seja preguiça, há muito medo que
o é. Muito do nosso medo é medo da mudança do status quo, medo de perdermos o que
temos se nos aventurarmos a partir donde estamos agora. Na secção sobre disciplina, falei do
facto de as pessoas considerarem as informações novas ameaçadoras, porque se as
incorporarem, terão que dispender bastante esforço a rever os seus mapas da realidade e
procuram instintivamente evitar esse trabalho. Em consequência, na maior parte dos casos,
lutam contra a nova informação em vez de lutarem pela sua assimilação. Essa resistência é
motivada pelo medo, sim, mas a base desse medo é a preguiça; é medo do trabalho que teriam
que ter. De igual modo, na secção sobre o amor, falei dos riscos de nos estendermos a um novo
território, novos compromissos e responsabilidades, novos relacionamentos e níveis de
existência. Aqui, mais uma vez, existe o risco de perda de status quo, e o medo é do esforço
envolvido na chegada a um novo status quo. Portanto, é bastante provável que Adão e Eva
tivessem medo do que lhes aconteceria se questionassem Deus abertamente; em vez disso,
tentaram escapar da maneira mais fácil, o atalho ilegítimo da dissimulação, conseguirem
conhecimentos sem esforço, e esperarem passar despercebidos. Mas não passaram.

300

Questionar Deus pode custar-nos muito trabalho. Mas a moral da história é que tem de ser
feito.

Os psicoterapeutas sabem que, embora os pacientes nos solicitem porque procuram uma
mudança qualquer, sentem de facto terror pela mudança - pelo trabalho da mudança. É
devido a esse terror ou preguiça que a grande maioria dos pacientes - talvez nove em cada dez
- que inicia o processo de psicoterapia, o abandona muito antes de estar terminado. A maioria
dessas desistências ocorre durante as primeiras sessões ou nos primeiros meses de
tratamento. A dinâmica é mais clara no caso dos pacientes casados que se apercebem, logo nas
primeiras sessões, que os seus casamentos são terrivelmente desorganizados ou destrutivos e
que, portanto, o caminho para a saúde mental passa pelo divórcio ou então por um processo
extremamente difícil e doloroso de total restruturação do casamento. De facto, esses pacientes
muitas vezes já têm essa consciência subliminar antes de procurarem a psicoterapia, e as
primeiras sessões servem apenas para confirmar o que já sabiam e temiam. Em todo o caso,
ficam transidos pelo medo de enfrentar as dificuldades aparentemente intransponíveis de
viverem sós ou as dificuldades aparentemente igualmente intransponíveis de se esforçarem
meses e anos a fio com os seus parceiros por uma relação radicalmente melhorada. Por isso
abandonam o tratamento, por vezes depois de duas ou três sessões, outras depois de dez ou
vinte. Podem deixá-lo com uma desculpa como "Chegámos à conclusão que cometemos um
erro quando pensámos ter dinheiro para o tratamento" ou honestamente, reconhecendo
abertamente: "Tenho medo do que a terapia possa fazer ao meu casamento. Eu sei que é um
falhanço. Talvez um dia venha a ter coragem para voltar." De qualquer maneira, preferem
manter um status quo infeliz a dispender o tremendo esforço necessário para conseguirem sair
das suas armadilhas.
301

Na fase inicial do desenvolvimento espiritual, a maior parte dos indivíduos não tem consciência
da sua própria preguiça, embora possam dizer coisas como "Claro, como toda a gente, tenho os
meus momentos de preguiça". Isto é porque a parte preguiçosa do Eu, como diabo que deve
ser, não tem escrúpulos e é especializada em disfarces enganosos. Veste a preguiça com todas
as espécies de racionalizações, que a parte mais desenvolvida do Eu está demasiado fraca para
reconhecer com facilidade ou para combater. Assim, quando lhe é sugerido que adquira mais
conhecimentos numa certa área, a pessoa poderá dizer "Essa área já foi estudada por muitas
pessoas e não encontraram nenhuma resposta", ou "Conheço um homem que se dedicava a
isso e era um alcoólico que se suicidou", ou "Burro velho não aprende línguas", ou ainda "Está
a tentar manipular-me para me tornar uma fotocópia sua e não é isso que é suposto os
psicoterapeutas fazerem." Todas estas respostas e outras são disfarces da preguiça dos
pacientes ou alunos, concebidos não tanto para a esconder do terapeuta ou do professor como
deles próprios. Porque o reconhecimento da preguiça tal como é e o seu reconhecimento em si
próprio é o começo da sua redução.

Por estas razões, aqueles que se encontram nas fases relativamente mais avançadas de
desenvolvimento espiritual são os que mais consciência têm da sua própria preguiça. São os
menos preguiçosos que reconhecem a sua lentidão. No meu combate pessoal pela maturidade,
vou tendo cada vez mais consciência de novas perspectivas, que parecem querer escapar-me
por si. Ou entrevejo novos caminhos, construtivos, de pensamento em que os meus passos,
aparentemente por vontade própria, começam a arrastar-se. Suspeito que, a maioria das vezes,
esses pensamentos valiosos se escapam sem eu notar e que vagueio por esses caminhos sem
saber o que estou a fazer. Mas quando tenho consciência de que estou a arrastar os pés,

302

sinto-me obrigado a forçar a vontade de apressar o passo na direcção que estou a evitar. A luta
contra a entropia nunca acaba.
Todos temos um Eu doente e um Eu saudável. Por muito neuróticos ou psicóticos que sejamos,
mesmo parecendo totalmente medrosos e completamente rígidos, ainda há uma parte de nós,
mesmo que pequena, que quer que nos desenvolvamos, que gosta da mudança e do
desenvolvimento, que sente atracção pelo novo e pelo desconhecido, e que está disposta a ter
o trabalho e correr os riscos envolvidos na evolução espiritual. E por muito saudáveis e
espiritualmente evoluídos que sejamos, ainda há uma parte de nós, mesmo que pequena, que
não quer que nos esforcemos, que se agarra ao que é velho e familiar, receosa de qualquer
mudança ou esforço, desejosa de conforto e ausência de dor a qualquer preço, mesmo que a
penalidade seja a ineficácia, a estagnação ou a regressão. Nalguns de nós, o Eu saudável parece
pateticamente pequeno, completamente dominado pela preguiça e pelos receios do nosso Eu
doente monumental. Outros podem desenvolver-se rapidamente, o Eu saudável dominante a
tentar progredir na evolução para Deus; o Eu saudável, no entanto, tem que estar sempre
vigilante contra a preguiça do Eu doente que espreita dentro de nós. A este respeito, nós, seres
humanos, somos todos iguais. Dentro de todos e cada um de nós há dois Eus, um doente e um
saudável - o impulso da vida e o impulso da morte, se quiserem. Cada um de nós representa
toda a raça humana; dentro de cada um de nós existe o instinto para se tornar Deus e a
esperança para a humanidade e dentro de cada um de nós existe o pecado original da
preguiça, a força de entropia sempre presente que nos empurra de regresso à infância, ao
ventre e aos pântanos a partir dos quais começámos a evoluir.

303

O C A M I N 11 O MENOS PERCORRIDO

O Problema do Mal

TENDO SUGERIDO QUE a preguiça é o pecado original e que a preguiça, sob a forma do nosso
Eu doente, pode ser mesmo o diabo, é relevante completar o quadro com alguns comentários
sobre a natureza do Mal. O problema do Mal é talvez o maior de todos os problemas
teológicos. No entanto, como com tantas outras questões "religiosas", a ciência da Psicologia
tem actuado, com algumas excepções menores, como se o mal não existisse. Apesar disso, a
Psicologia tem, potencialmente, muito a contribuir para a questão. Espero poder fazer parte
dessa contribuição num trabalho futuro, em pormenor. De momento, sendo apenas periférico
em relação ao tema deste livro, limitar-me-ei a mencionar resumidamente quatro conclusões a
que cheguei quanto à natureza do Mal.

Primeiro, cheguei à conclusão de que o mal é real. Não é uma invenção duma mente religiosa
primitiva a tentar explicar o desconhecido. Existem mesmo pessoas, e instituições constituídas
por pessoas, que respondem com ódio na presença da bondade e destroem o Bem na medida
em que puderem. Não o fazem com malícia consciente mas cegamente, sem se aperceberem
da sua própria maldade -- na verdade, procurando evitar aperceber-se. Como nas descrições
do diabo na literatura religiosa, odeiam a luz e fazem instintivamente tudo o que for preciso
para a evitar, incluindo tentar extingui-la. Destruem a luz nos próprios filhos e em todos os
seres sob o seu poder.

As pessoas más odeiam a luz porque os revela a si próprios. Odeiam a bondade porque revela a
sua maldade; odeiam o amor porque revela a sua preguiça. Destruem a luz, a bondade e o
amor para evitarem a dor dessa consciência. A minha

304

segunda conclusão é, portanto, que o Mal é a preguiça levada aos limites do extremo. Tal como
o defini, o amor é a antítese da preguiça. A preguiça vulgar é um fracasso passivo no amor.
Algumas pessoas normalmente preguiçosas não levantam um dedo para se expandirem a
menos que sejam obrigadas. A sua maneira de ser é uma manifestação do não-amor; no
entanto, não são más. As pessoas verdadeiramente más, por outro lado, evitam activamente, e
não passivamente, expandir-se. Farão tudo o que estiver ao seu alcance para proteger a sua
própria preguiça, para preservar a integridade do seu Eu doente. Em vez de apoiarem os
outros, destroem-nos. Se necessário, matam para escapar à dor do seu próprio
desenvolvimento espiritual. Como a integridade do seu Eu doente é ameaçada pela saúde
espiritual dos que os rodeiam, tentam por todas as formas esmagar e demolir a saúde
espiritual que existe à sua volta. Assim, defino o Mal como o exercício do poder político

- ou seja, a imposição da vontade sobre terceiros por coerção aberta ou encoberta - de modo a
evitar a expansão do Eu relacionada com o apoio ao desenvolvimento espiritual. A preguiça
vulgar é o não-amor; o Mal é o anti-amor.

A minha terceira conclusão é que a existência do mal é inevitável, pelo menos neste estádio da
evolução humana. Dada a força de entropia e o facto de que os humanos possuem livre
arbítrio, é inevitável que a preguiça seja bem contida nuns e completamente incontida noutros.
Como a entropia, por um lado, e o fluxo evolucionário do amor, pelo outro, são forças opostas,
é natural que essas forças se encontrem relativamente equilibradas na maior parte das
pessoas, enquanto uns poucos, num extremo, manifestam amor quase puro e outros, no
extremo oposto, entropia ou maldade puras. Sendo forças conflituosas, também é inevitável
que os que se encontram nos extremos se combatam; é tão natural que o Mal odeie a bondade
como o é que a bondade odeie o Mal.

305

Por último, cheguei à conclusão que, embora a entropia seja uma força enorme, na sua forma
mais extrema de maldade humana é curiosamente ineficaz como força social. Eu próprio já
observei o mal em acção, atacando ferozmente e destruindo eficazmente os espíritos e as
mentes de dúzias de crianças. Mas o mal faz ricochete no grande quadro da evolução humana.
Por cada alma que destrói - e há muitas - é instrumental na salvação de outras. Sem querer, o
mal serve de farol de aviso contra os seus próprios escolhos. Como a maior parte de nós foi
dotado de uma sensação de horror quase instintiva perante a exorbitância do mal, quando
reconhecemos a sua presença, a nossa própria personalidade é afinada pela consciência da sua
existência. A nossa consciência do mal é um sinal para nos purificarmos. Foi o mal que, por
exemplo, levou Cristo à cruz, permitindo-nos vê-lo à distância. O nosso envolvimento pessoal
na luta contra o mal no mundo é uma das formas como evoluímos.

A Evolução da Consciência

As PALAVRAS "CONSCIÊNCIA" e "consciente" têm surgido repetidamente. As pessoas más


resistem à consciência da sua própria condição. Uma das marcas dos espiritualmente
avançados é a consciência da sua própria preguiça. As pessoas muitas vezes não têm
consciência da sua própria religião ou visão do mundo e, no decurso do seu desenvolvimento
religioso, torna-se necessário que tomem consciência dos seus pressupostos e tendências em
relação ao preconceito. Através da técnica dos parênteses e da atenção do amor, vamos tendo
mais consciência da pessoa que amamos e do mundo. Uma parte essencial da disciplina é a
aquisição de consciência da

306
nossa responsabilidade e poder de escolha. Essa capacidade é atribuída à porção da mente
designada por consciência. Estamos assim num ponto em que podemos definir o
desenvolvimento espiritual como o desenvolvimento ou evolução da consciência.

A palavra "consciente" deriva do prefixo latino con, que quer dizer "com" e da palavra scire,
que significa "saber". Ser consciente significa "saber com". Mas como devemos entender este
"com"? Saber com quêl Já falámos do facto de a parte subconsciente da mente ser possuidora
de um conhecimento extraordinário. Sabe mais do que nós, sendo "nós" o nosso Eu
consciente. E quando ficamos cientes duma nova verdade, é porque a reconhecemos como
verdadeira; nós re-conhecemos o que já sabíamos. Por isso, não poderemos concluir que
tornar-se consciente é saber com o nosso subconsciente? O desenvolvimento da consciência é
o desenvolvimento da qualidade de ficar ciente de conhecimentos na nossa mente consciente
juntamente com a nossa mente subconsciente, que já possui esses conhecimentos. É um
processo da mente consciente a entrar em sincronia com o subconsciente. Este conceito não
devia parecer estranho aos psicoterapeutas, que frequentemente definem a sua terapia como
um processo de "tornar o subconsciente consciente" ou de expandir o domínio do consciente
em relação ao domínio do subconsciente.

Mas ainda não explicámos como é que o subconsciente possui todo este conhecimento que
ainda não aprendemos conscientemente. Aqui, mais uma vez, a questão é tão básica que não
existe resposta científica. Mais uma vez, só podemos avançar hipóteses. E mais uma vez não
conheço nenhuma hipótese tão satisfatória como a postulação de um Deus que nos está
intimamente associado - tão intimamente que faz parte de nós. Se quiser conhecer o lugar
mais próximo onde procurar a graça, é dentro de si próprio. Se desejar uma maior

307

sabedoria do que a sua, pode encontrá-la dentro de si. O que isto sugere é que a ligação entre
Deus e o homem é, pelo menos em parte, a ligação entre o nosso subconsciente e o
consciente. Ou duma forma mais simples, o nosso subconsciente é Deus. Deus está dentro de
nós. Fizemos sempre parte de Deus. Deus tem estado sempre connosco, está agora e estará
sempre.

Como pode isso ser? Se o leitor estiver horrorizado pela ideia do nosso subconsciente ser Deus,
recordo-lhe que este conceito não é de modo nenhum herético, sendo na essência o mesmo
que o conceito cristão do Espírito Santo, que reside em todos nós. Para compreender esta
relação entre nós e Deus, considero muito útil pensar no subconsciente como num rizoma, ou
um conjunto de raízes muito grande e muito rico, que alimenta a pequena planta da
consciência que dela brota visivelmente. Esta analogia devo-a a Jung que, ao descrever-se
como "um estilhaço da divindade infinita", dizia assim:

A vida sempre me pareceu semelhante a uma planta que vive do seu rizoma. A sua verdadeira
vida está invisível, escondida no rizoma. A parte que aparece acima da terra dura um só Verão.
Depois murcha - uma aparição efémera. Quando pensamos no crescimento e na decadência
infindos da vida e da civilização, não podemos escapar da impressão de absoluta nulidade. No
entanto, nunca perdi a sensação de algo que vive e dura sob o fluxo eterno. O que vemos é a
flor, que passa. O rizoma fica. *

Jung nunca chegou ao ponto de afirmar que Deus existia no subconsciente, embora os seus
escritos apontassem claramente nessa direcção. O que fez foi dividir o subconsciente: o

(Notas)

C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, Aniela Jaffe, ed. (Nova Iorque: Vintage Books,
111965) p. 4.

308

"subconsciente pessoal" individual, mais superficial, e o "subconsciente colectivo", mais


profundo e comum a toda a humanidade. Na minha visão, o subconsciente colectivo é Deus; o
consciente é o homem como indivíduo; e o subconsciente pessoal é a ligação entre eles. Como
tal, é inevitável que o subconsciente pessoal seja um local de alguma perturbação, o cenário
duma luta entre a vontade de Deus e a vontade do indivíduo. Anteriormente, descrevi o
subconsciente como um domínio benigno e amoroso. Acredito que assim seja. Mas os sonhos,
embora contenham mensagens de afectuosa sabedoria, também contêm muitos sinais de
conflito; embora possam ser agradavelmente renovadores, podem também ser pesadelos
tumultuosos e assustadores. Devido a essa tumultuosidade, a doença mental foi localizada no
subconsciente pela maioria dos pensadores, como se o subconsciente fosse a sede da
psicopatologia e os sintomas fossem como demónios subterrâneos que assomam à superfície
para atormentar o indivíduo. Como eu já referi, o meu ponto de vista é o contrário. Acredito
que o consciente é a sede da psicopatologia e que as perturbações mentais são perturbações
da consciência. É por o nosso Eu consciente resistir à nossa sabedoria subconsciente que
adoecemos. É precisamente por a nossa consciência estar perturbada que surge o conflito
entre ela e o subconsciente que tenta curá-la. Por outras palavras, a doença mental ocorre
quando a vontade consciente do indivíduo diverge substancialmente da vontade de Deus, que
é a vontade do subconsciente do próprio indivíduo.

Afirmei que o objectivo final do desenvolvimento espiritual é que o indivíduo se torne um com
Deus. É conhecer com Deus. Sendo o subconsciente Deus, podemos ainda definir o objectivo
do desenvolvimento espiritual como sendo o ponto em que o Eu consciente atinge o estado de
Deus. É o indivíduo tornar-se total e inteiramente Deus. Isso significa que o objectivo é o

309

consciente fundir-se com o subconsciente de modo a tornar-se tudo subconsciente? De modo


algum. Chegamos agora ao fulcro da questão. O objectivo é tornar-se Deus mantendo a
consciência. Se a flor da consciência que cresce a partir do rizoma do Deus subconsciente pode
tornar-se Deus, então Deus assume uma nova forma de vida. É este o significado da nossa
existência individual. Nascemos para nos tornarmos, como indivíduos conscientes, novas
formas de vida de Deus.

O consciente é a parte executiva do nosso ser total. É o consciente que toma decisões e as
traduz para a acção. Se nos tornássemos todos inconscientes, seríamos na verdade como o
recém-nascido, um com Deus mas incapaz de qualquer acção que fizesse sentir a presença de
Deus no mundo. Como referi, há uma qualidade regressiva no pensamento místico de algumas
teologias hindus ou budistas, em que o estatuto do recém-nascido sem fronteiras do ego é
comparado com o Nirvana e o objectivo de entrar no Nirvana é semelhante ao objectivo de
regressar ao ventre materno. O objectivo da teologia aqui apresentada, e o da maior parte dos
místicos, é exactamente o oposto. Não é tornar-se um bebé sem ego e inconsciente. É antes
desenvolver um ego maduro e consciente que se pode tornar o ego de Deus. Se como adultos,
andando sobre as duas pernas, capazes de fazer escolhas independentes que influenciam o
mundo, pudermos identificar a nossa vontade madura e livre com a de Deus, então Deus terá
assumido, através do nosso ego consciente, uma nova e potente forma de vida. Ter-nos-emos
tornado agentes de Deus, o seu braço, por assim dizer, e portanto parte d'Ele. E até onde
pudermos influenciar o mundo através das nossas decisões conscientes de acordo com a Sua
vontade, as nossas próprias vidas passarão a ser agentes da graça de Deus. Nós próprios nos
teremos tornado uma forma da graça de Deus, trabalhando em Seu nome entre a humanidade,
criando amor onde o amor antes não existia,
310

:r

puxando os nossos iguais para o nosso nível de consciência, fazendo avançar o plano da
evolução humana.

A Natureza do Poder

CHEGAMOS AGORA AO ponto de poder compreender a natureza do poder. É um assunto muito


mal compreendido. Uma das razões por que é mal entendido é que há duas espécies de poder

- político e espiritual. A mitologia religiosa esforça-se imenso por fazer a distinção entre os dois.
Antes do nascimento de Buda, por exemplo, os adivinhos informaram o pai de que Buda viria a
ser o rei mais poderoso da terra ou então um pobre que seria o maior líder espiritual que o
mundo jamais conhecera. Um ou outro, mas não ambos. E Satanás ofereceu a Cristo "todos os
reinos do mundo e a sua glória". Mas ele rejeitou essa alternativa e preferiu morrer,
aparentemente impotente, na cruz. O poder político é a capacidade de coagir os outros, aberta
ou encobertamente, a fazer a nossa vontade. Essa capacidade reside numa posição, como a de
rei ou presidente, ou então no dinheiro. Não reside na pessoa que ocupa a posição ou que
possui o dinheiro. Em consequência, o poder político não está relacionado com a bondade nem
com a sabedoria. Pessoas muito estúpidas e muito más caminharam como reis sobre a terra. O
poder espiritual, contudo, reside inteiramente no indivíduo e nada tem a ver com a capacidade
de coagir os outros. As pessoas de grande poder espiritual podem ser ricas e ocupar por vezes
posições políticas de liderança, mas podem igualmente ser pobres e não ter nenhuma
autoridade política. Então, qual é a capacidade do poder espiritual se não é a capacidade de
coagir? É a capacidade de tomar decisões com o máximo de consciência. É a consciência.

311
A maior parte das pessoas quase sempre toma decisões sem ter grande consciência do que
está a fazer. Agem sem compreender muito bem os seus próprios motivos e sem fazer ideia das
ramificações das suas escolhas. Sabemos realmente o que estamos a fazer quando aceitamos
ou rejeitamos um cliente potencial? Quando batemos numa criança, promovemos um
subordinado, namoriscamos com uma conhecida? Quem quer que tenha trabalhado muito
tempo na arena política sabe que acções tomadas com a melhor das intenções muitas vezes
são mal sucedidas e acabam por ser prejudiciais; ou que as pessoas com motivos baixos podem
promover uma causa aparentemente malévola que acaba por se revelar construtiva. Assim
acontece também na educação das crianças. É melhor fazer o que está certo pelas razões
erradas do que o que está errado pelas razões certas? Muitas vezes estamos mais às escuras
quando temos muitas certezas, e mais esclarecidos quando mais confusos.

Que fazer, à deriva num mar de ignorância? Alguns são niilistas e dizem "Nada". Propõem
apenas que continuemos à deriva, como se num mar tão vasto não pudesse ser traçada
nenhuma rota que nos levasse a um verdadeiro esclarecimento ou a um destino com algum
significado. Mas outros, suficientemente conscientes para saberem que estão perdidos, têm
esperança de ultrapassar a ignorância desenvolvendo uma consciência ainda maior. Têm razão.
É possível. Mas essa consciência maior não lhes chega num único e repentino relâmpago
esclarecedor. Vem devagar, peça por peça, e cada peça tem que ser conquistada pelo esforço
paciente do estudo e da observação de tudo, incluindo deles próprios. São estudantes
humildes. O caminho do desenvolvimento espiritual é um caminho de aprendizagem para toda
a vida.

Se seguirmos esse caminho com determinação e durante o tempo suficiente, as peças do


conhecimento começam a encai-

312

xar. Gradualmente, as coisas começam a fazer sentido. Há caminhos sem saída, desilusões,
conceitos a que chegamos apenas para os rejeitar. Mas gradualmente conseguimos chegar a
uma compreensão cada vez mais profunda do que constitui a nossa existência. E gradualmente
chegamos ao ponto em que sabemos verdadeiramente o que estamos a fazer. Chegamos ao
poder.
A experiência do poder espiritual é basicamente de felicidade. Há uma felicidade que advém da
mestria. Na verdade, não há maior satisfação do que ser um especialista, do que saber
realmente o que estamos a fazer. Os que mais se desenvolveram espiritualmente são os que
são especialistas em viver. E existe outra felicidade, ainda maior. É a felicidade da comunhão
com Deus. Porque quando sabemos verdadeiramente o que fazemos, participamos na
omnisciência de Deus. Com total consciência da natureza duma situação, dos nossos motivos
para agirmos em relação a ela e dos resultados e ramificações da nossa acção, atingimos o nível
de consciência que normalmente só esperamos de Deus. O nosso Eu consciente conseguiu
alinhar-se pela mente de Deus. Sabemos com Deus.

No entanto, os que atingiram este estádio de desenvolvimento espiritual, este estado de


grande consciência, são invariavelmente possuídos por uma humildade cheia de alegria.
Porque uma das coisas de que têm consciência é que a consciência da sua invulgar sabedoria
tem a sua origem no subconsciente. Estão conscientes da sua ligação ao rizoma e que o
conhecimento flui do rizoma para eles através dessa ligação. Os seus esforços de aprendizagem
são apenas esforços para abrir a ligação, e têm a noção de que o rizoma, o subconsciente, não
é só deles mas de toda a humanidade, de toda a vida, de Deus. Invariavelmente, quando se
lhes pergunta qual a fonte do seu conhecimento e poder, os verdadeiramente poderosos
respondem: "Não é o meu poder. O pouco poder que tenho é uma expressão diminuta dum
poder muito maior. Sou apenas um

313

canal. O poder não é nada meu." Afirmei que esta humildade é cheia de alegria. Isso é porque,
com a noção da sua ligação com Deus, os verdadeiramente poderosos sentem uma diminuição
do seu sentido do Eu. "Seja feita a vossa vontade e não a minha. Tornai-me o vosso
instrumento," é o seu único desejo. Essa perda do Eu traz sempre consigo uma espécie de
êxtase calmo, que não difere da experiência de estar apaixonado. Cientes da sua íntima ligação
com Deus, a solidão termina. Existe comunhão.

Apesar de feliz, a experiência do poder espiritual é também aterradora. Quanto mais


consciência se tem, mais difícil é agir. Mencionei este facto na conclusão da primeira secção
quando referi a analogia dos dois generais, cada um deles obrigado à decisão de enviar ou não
uma divisão para combate. Aquele que considera a sua divisão única e simplesmente uma
unidade estratégica dorme descansado depois de tomar a decisão. Mas para o outro,
consciente da vida de cada homem sob o seu comando, a decisão é angustiante. Somos todos
generáis. Qualquer acção que tomemos pode influenciar o curso da civilização. A decisão de
elogiar ou castigar uma só criança pode ter vastas consequências. É fácil agir com a consciência
de elementos limitados e deixar cair os dados onde calhar. Quanto mais consciência temos, no
entanto, mais elementos temos que assimilar e integrar na nossa tomada de decisão. Quanto
mais sabemos, mais complexas se tornam as decisões. No entanto, quanto mais sabemos, mais
possível se torna prever onde vão cair os dados. Se assumirmos a responsabilidade de prever
exactamente onde vai cair cada dado, é provável que fiquemos tão esmagados pela
complexidade da tarefa que fiquemos sem acção. Mas a inacção é, em si, uma forma de acção
e embora não fazer nada possa ser o melhor caminho em certas circunstâncias, noutras pode
ser desastroso e destrutivo. Portanto, o poder espiritual não é só consciência; é a capacidade
de manter

314

a competência para tomar decisões com cada vez maior consciência. E o poder semelhante ao
de Deus é o poder de tomar decisões com total consciência. Mas ao contrário do conceito
popular, a omnisciência não torna a tomada de decisões mais fácil; torna-a ainda mais difícil.
Quanto mais nos aproximamos do estado de Deus, mais nos condoemos de Deus. Participar na
omnisciência de Deus é também partilhar a sua agonia.

Existe outro problema no poder: estar só. Aqui existe uma semelhança, pelo menos numa
dimensão, entre o poder espiritual e o poder político. Quem se aproxima do pico da evolução
espiritual é como quem se aproxima do pico do poder político. Não há ninguém acima a quem
passar o problema; ninguém a quem culpar; ninguém para lhe dizer como fazer. Pode nem
haver ninguém ao mesmo nível para partilhar a angústia ou a responsabilidade. Outros podem
aconselhar, mas a decisão é só sua. Só você é responsável. Noutra dimensão, o estar só com
um enorme poder espiritual é ainda mais pronunciado do que com o poder político. Como o
seu nível de consciência raramente é tão elevado como as suas posições destacadas, os
políticos poderosos têm quase sempre pares espirituais com quem comunicar. Assim, os
presidentes e os reis têm os seus amigos e compinchas. Mas a pessoa que evoluiu até ao mais
alto nível de consciência, de poder espiritual, provavelmente não terá ninguém no seu círculo
de conhecimentos com quem partilhar uma tal profundidade de entendimento. Um dos temas
mais pungentes do Evangelho é o sentimento contínuo de frustração de Cristo ao descobrir que
não havia ninguém que o compreendesse verdadeiramente. Por muito que tentasse, por muito
que
* Faço distinção entre estar só e solidão. A solidão é a indisponibilidade de pessoas com quem
comunicar a qualquer nível. As pessoas poderosas estão rodeadas de outras sempre ansiosas
por comunicar com elas; portanto raramente sentem solidão e chegam mesmo a desejá-la.
Estar só, contudo, é a indisponibilidade de alguém com quem comunicar ao seu nível de
consciência.

315

explicasse, não conseguia elevar as mentes, nem as dos seus próprios discípulos, até ao seu
nível. Os mais sensatos seguiam-no mas não o conseguiam acompanhar, e todo o seu amor
não o aliviava da necessidade de conduzir caminhando à frente, completamente só. Esta
maneira de estar só é "partilhada" por todos os que vão mais longe na jornada do
desenvolvimento espiritual. É um tal fardo que não poderia ser suportado se não pelo facto de
que, à medida que nos distanciamos dos outros seres humanos, a nossa relação com Deus se
torna mais próxima. Na comunhão da consciência crescente, de saber com Deus, existe alegria
suficiente para nos suster.

A Graça e a Doença Mental: o Mito de Orestes

TÊM SIDO FEITAS VÁRIAS afirmações aparentemente diferentes quanto à natureza da saúde e
da doença mental: "A neurose é sempre um substituto do sofrimento legítimo", "A saúde
mental é a dedicação à realidade a todo o custo", e "A doença mental ocorre quando a vontade
consciente do indivíduo se desvia substancialmente da vontade de Deus, que é a sua vontade
subconsciente". Vamos examinar a questão da doença mental mais de perto e unir estes
elementos num todo coerente.

Vivemos as nossas vidas num mundo real. Para as vivermos bem, é necessário que
compreendamos a realidade do mundo tão bem quanto possível. Mas essa compreensão não é
fácil. Muitos dos aspectos da realidade do mundo e da nossa relação com o mundo são-nos
dolorosos. Só podemos compreendê-los através de esforço e sofrimento. Todos nós, em maior
ou menor medida, tentamos evitar esse esforço e sofrimento. Ignoramos os aspectos dolorosos
da realidade empurrando certos factos desagradáveis para fora da nossa consciência. Por
outras pala-
316

vras, tentamos defender a nossa consciência, as nossas noções, da realidade. Fazemo-lo por
diversos meios, a que os psiquiatras chamam mecanismos de defesa. Todos nós empregamos
essas defesas, limitando a nossa consciência. Se, com a nossa preguiça e medo do sofrimento,
defendermos maciçamente a nossa consciência, o que acontecerá é que o nosso entendimento
do mundo terá pouco ou nada a ver com a realidade. Uma vez que as nossas acções são
baseadas no nosso entendimento, o nosso comportamento tornar-se-ia irrealista. Quando isto
acontece até um determinado grau, os nossos concidadãos reconhecem que estamos "fora da
realidade" e consideram-nos mentalmente doentes mesmo que estejamos perfeitamente
convictos da nossa sanidade*. Mas muito antes de as coisas terem chegado a este extremo, e
de nos ser comunicada a nossa doença pelos nossos concidadãos, o nosso subconsciente avisa-
nos do nosso desajustamento progressivo. Esse aviso é transmitido pelo subconsciente por
meios diversos: pesadelos, crises de ansiedade, depressões e outros sintomas. Embora a nossa
mente consciente tenha negado a realidade, o subconsciente, que é omnisciente, conhece a
verdadeira situação e tenta ajudar-nos, estimulando a nossa mente consciente através da
formação de sintomas para que nos apercebamos de que algo está errado. Por outras palavras,
os sintomas dolorosos e indesejados da doença mental são manifestações de graça. São
produtos duma "força poderosa originada fora da nossa consciência que acalenta o nosso
desenvolvimento espiritual".

* Reconheço que este esquema da doença mental está extremamente simplificado. Não leva
em conta, por exemplo, factores físicos ou bioquímicos que podem ter grande significado, ou
até predominarem, em certos casos. Também reconheço que é possível que haja indivíduos tão
mais em contacto com a realidade do que os seus concidadãos que sejam considerados
"loucos" por uma "sociedade doente". De qualquer modo, o esquema aqui apresentado é
verdadeiro na maioria dos casos de doença mental.

317

Já assinalei, na breve discussão da depressão no final da primeira secção sobre disciplina, que
os sintomas depressivos são um sinal para o doente de que nem tudo está bem com ele e que
há que fazer correcções. Muitos dos casos que utilizei para demonstrar outros princípios,
também podem servir para ilustrar este: que os sintomas desagradáveis da doença mental
servem para avisar as pessoas de que vão pelo caminho errado, que o seu espírito não se está
a desenvolver e que se encontram em sério risco. Mas deixem-me descrever resumidamente
mais um caso para demonstrar especificamente o papel dos sintomas.

Betsy era uma rapariga de vinte e dois anos, bonita e inteligente mas com uma compostura
quase virginal, que me consultou devido a crises de ansiedade graves. Era filha única dum casal
católico da classe trabalhadora que a tinha mandado para a universidade à custa de muitos
sacrifícios. Depois de um ano de universidade, contudo, apesar de ter tido bons resultados
académicos, decidiu deixar de estudar e casar com o vizinho do lado, um mecânico. Arranjou
emprego como escriturária num supermercado. Correu tudo bem durante dois anos. Depois,
de repente, surgiram as crises de ansiedade. Sem mais nem menos. Eram totalmente
imprevisíveis excepto que ocorriam sempre quando estava algures sem o marido, fora de casa.
Podiam acontecer enquanto fazia compras, quando estava no emprego no supermercado, ou
simplesmente a andar na rua. A intensidade do pânico que sentia nessas alturas era
esmagadora. Tinha que largar o que estava a fazer e ir literalmente a correr para casa ou para a
garagem onde o marido trabalhava. Só quando estava com ele ou em casa é que o pânico
começava a diminuir. Por causa das crises, teve de deixar o emprego.

Quando os tranquilizantes que o seu médico de clínica geral lhe dera deixaram de actuar sobre
a intensidade das crises,

318

Betsy veio consultar-me. "Não sei o que se passa comigo," queixou-se. "Tudo na minha vida é
maravilhoso. O meu marido é bom para mini. Amamo-nos muito. Gostava do meu emprego.
Agora é tudo horrível. Não sei porque isto me aconteceu. Sinto que estou a enlouquecer. Por
favor ajude-me. Ajude-me para que as coisas voltem a ser boas como antes." Mas claro que
Betsy descobriu, no nosso trabalho em conjunto, que as coisas não eram tão "boas" antes.
Primeiro, lenta e dolorosamente, verificou-se que, embora o marido fosse bom para ela, tinha
várias coisas que a irritavam. Era pouco educado. Tinha um campo de interesses reduzido.
Tudo o que queria em termos de lazer era ver televisão. Aborrecia-a. Depois veio a reconhecer
que trabalhar como caixa num supermercado também a aborrecia. Por isso passámos a
perguntar porque tinha deixado a universidade por uma existência tão pouco estimulante.
"Bem, sentia-me cada vez mais desconfortável," reconheceu. "A malta vivia num ambiente de
droga e sexo. Eu não me sentia bem com isso. Questionaram-me, não só os rapazes que
queriam dormir comigo, mas até as minhas amigas. Achavam-me ingénua. Descobri que
começava a questionar-me a mim própria, a Igreja e até alguns dos valores dos meus pais.
Acho que fiquei com medo." Betsy começou então a avançar para o processo de questionar o
ter fugido ao deixar a universidade. Acabou por voltar para a universidade. Felizmente, neste
caso, o marido provou estar disposto a evoluir com ela e também foi para a universidade. Os
seus horizontes alargaram-se rapidamente. E claro que as crises de ansiedade desapareceram.

Há várias maneiras de olhar para este caso típico. Os ataques de ansiedade de Betsy eram
claramente uma forma de agorafobia (literalmente, medo do mercado, mas habitualmente,
medo de espaços livres), e representavam para ela o medo da liberdade. Tinha-os quando se
encontrava fora de

319

casa, sem o marido, livre de circular e relacionar-se com outros. O medo da liberdade era a
essência da sua doença mental. Pode dizer-se que as crises de ansiedade, representando o
medo da liberdade, eram a doença dela. Mas considero mais útil e esclarecedor olhar para as
coisas doutra forma. Porque o medo da liberdade de Betsy era muito anterior às crises de
ansiedade. Foi devido a esse medo que ela deixou a universidade e iniciou o processo de
restringir o seu desenvolvimento. Na minha opinião, Betsy já estava doente nessa altura, três
anos antes de surgirem os sintomas. No entanto, não tinha consciência da doença nem do mal
que fazia a si própria com a auto-restrição. Foram os sintomas, os ataques de ansiedade que
não queria nem tinha pedido, que ela sentia que a tinham "amaldiçoado sem mais nem
menos", que a fizeram ter consciência da doença e a forçaram a tomar o caminho da auto-
correcção e do desenvolvimento. Os sintomas e a doença não são a mesma coisa. A doença
existe muito antes dos sintomas. Os sintomas não são a doença, mas o início da cura. O facto
de não serem desejados torna-os ainda mais um fenómeno da graça - um dom de Deus, uma
mensagem do subconsciente, se quiserem, para dar início à auto-análise e reparação.

Como é habitual com a graça, a maior parte rejeita este dom e não presta atenção à
mensagem. Fazem-no de variadas formas, que representam todas uma tentativa de fugir à
responsabilidade da doença. Tentam ignorar os sintomas, fingindo que não são
verdadeiramente sintomas, dizendo que toda a gente tem "estas pequenas crises de vez em
quando". Tentam dar a volta despedindo-se dos empregos, deixando de conduzir, mudando-se
para outra cidade, evitando certas actividades. Tentam livrar-se dos sintomas com analgésicos,
com comprimidos dados pelo médico ou anestesiando-se com álcool e outras drogas. Mesmo
que aceitem o facto de terem sintomas, culpam o resto do mundo, habitualmente, de várias

320

maneiras encobertas - familiares desprendidos, falsos amigos, empresas gananciosas, uma


sociedade doente e até o destino pelo seu estado. Só os poucos que aceitam a
responsabilidade pelos sintomas, que compreendem que os sintomas são uma manifestação
de perturbação das suas almas, prestam atenção à mensagem do subconsciente e aceitam a
graça. Aceitam a sua incapacidade e a dor do esforço necessário para se curarem. Mas
recebem, como Betsy e todos os outros que se dispõem a enfrentar a dor da psicoterapia, uma
grande recompensa. Foi deles que Cristo falou na primeira das beatitudes: "Abençoados os
pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus."*

O que aqui digo da relação entre a graça e a doença mental está personificado de forma
lindíssima no grande mito grego de Orestes e as Fúrias**. Orestes era neto de Atreus, um
homem que tinha tentado maldosamente mostrar-se mais poderoso que os deuses. Por esse
crime, os deuses puniram Atreus amaldiçoando todos os seus descendentes. Como parte da
concretização da maldição sobre a Casa de Atreus, a mãe de Orestes, Clitemnestra, assassinou
o pai de Orestes e seu marido, Agamemnon. Este crime, por sua vez, fez recair a maldição
sobre a cabeça de Orestes, porque pelo código de honra grego o filho é obrigado, acima de
tudo, a matar o assassino de seu pai. No entanto o maior pecado que um grego podia cometer
era o pecado do matricídio. Orestes agonizava sobre o seu dilema. Finalmente fez o que tinha
que fazer e matou a mãe. Os deuses castigaram Orestes por este pecado enviando-lhe as

* S. Mateus 5:3.

(Nota)

** Há muitas versões diferentes deste mito, com diferenças substanciais entre si. Nenhuma
versão é a correcta. A que é dada aqui foi condensada na sua maior parte a partir da Mithology
de Edith Hamilton (Nova Iorque: Mentor Books, New American Library, 1958). Fui conduzido a
este mito pelo uso que Rollo May lhe deu no seu livro Love and Will e o de T.S. Eliot na peça
The Family Reunion.

321
Fúrias, três harpias horrendas que só ele podia ver e ouvir e que o atormentavam noite e dia
com críticas cacarejadas e uma aparência horripilante.

Perseguido para onde quer que fosse pelas Fúrias, Orestes vagueava pela terra procurando
redimir o seu crime. Depois de muitos anos de reflexão solitária e auto-anulação, Orestes pediu
aos deuses que o libertassem da maldição sobre a Casa de Atreus e das suas visitações através
das Fúrias, afirmando a sua crença de que se tinha redimido pelo assassínio da mãe. Os deuses
fizeram-lhe um julgamento. Falando em defesa de Orestes, Apoio argumentou que tinha
engendrado toda a situação que colocou Orestes na posição em que não tinha outra escolha
senão matar a mãe e que, portanto, Orestes não podia ser considerado responsável. Nessa
altura, Orestes saltou e contradisse o seu próprio defensor, declarando, "Fui eu, e não Apoio,
quem matou a minha mãe!" Os deuses ficaram espantados. Nunca antes tinha um membro da
Casa de Atreus assumido tal responsabilidade total sem culpar os deuses. Eventualmente os
deuses julgaram a favor de Orestes e não só o libertaram da maldição como transformaram as
Fúrias em Euménides, espíritos amorosos que através de sábio conselho permitiram a Orestes
obter continuada boa sorte.

O significado deste mito não é desconhecido. As Euménides, ou "as benignas", também são
referidas como as "portadoras da graça". As Fúrias alucinatórias, que só podiam ser vistas por
Orestes, representam os sintomas, o inferno privado da doença mental. A transformação das
Fúrias em Euménides é a transformação da doença mental em boa sorte, de que temos estado
a falar. Esta transformação ocorreu devido ao facto de Orestes estar disposto a aceitar a
responsabilidade pela sua doença mental. Embora ele acabasse por procurar ser libertado
delas, não via as Fúrias como um castigo injusto nem se considerava uma vítima da sociedade
ou doutra coisa qual-

322

quer. Sendo um resultado inevitável da maldição original sobre a Casa de Atreus, as Fúrias
também simbolizam o facto de a doença mental ser uma questão de família, criada pelos pais e
avós, corno os pecados dos pais recaem sobre os filhos. Mas Orestes não culpou a família - os
pais ou o avô - como podia ter feito. Nem culpou os deuses ou o "destino". Em vez disso,
aceitou a sua condição como sendo criada por ele e fez o esforço de a curar. Foi um processo
prolongado, tal como toda a terapia tende a ser prolongada. Mas em resultado curou-se, e
através desse processo de cura pelo seu próprio esforço, as coisas que anteriormente eram
causa de agonia tornaram-se as que passaram a trazer-lhe sabedoria.

Todos os psiquiatras experientes viram este mito representado na sua prática e testemunharam
a transformação das Fúrias em Euménides nas mentes e nas vidas dos pacientes mais bem
sucedidos. Não é uma transformação fácil. Assim que se apercebem de que lhes será exigido
pelo processo de psicoterapia que assumam a responsabilidade total pela sua condição e pela
respectiva cura, a maior parte dos pacientes, por muito ansiosos que pareçam de início pela
terapia, abandonam-na. Preferem estar doentes e ter deuses a quem culpar do que estar sãos
sem ninguém a quem jamais atribuir culpas. Da minoria que permanece na terapia, a maior
parte ainda tem que ser ensinada a assumir responsabilidade total por si próprios como parte
da cura. Este ensinamento - "treino" seria a palavra mais exacta - é um processo meticuloso,
em que o terapeuta confronta metodicamente os pacientes com a sua fuga à responsabilidade
repetidamente, sessão após sessão, mês após mês e frequentemente ano após ano. Muitas
vezes, como crianças teimosas, dão pontapés e gritam durante todo o caminho ao serem
conduzidos à noção de responsabilidade total por si próprios. Eventualmente, no entanto,
chegam lá. É raro o paciente que chega à terapia disposto a assumir total

323

responsabilidade desde o início. A terapia nesses casos, embora possa necessitar de um ano ou
dois, é relativamente breve, relativamente fluida e frequentemente um processo muito
agradável tanto para o paciente como para o terapeuta. Em todo o caso, quer relativamente
fácil quer difícil e prolongada, a transformação das Fúrias em Euménides acontece.

Os que já se defrontaram com a doença mental, aceitaram total responsabilidade por ela e
fizeram em si as mudanças necessárias para a ultrapassar, passam não só a estar curados e
livres das maldições da infância e dos seus antepassados, mas também a viver num mundo
novo e diferente. O que antes viam como problemas passam a ver como oportunidades. O que
antes constituíam barreiras odiosas passaram a ser desafios bem-vindos. Pensamentos
anteriormente indesejados tornam-se perspectivas úteis; sentimentos rejeitados transformam-
se em fonte de energia e orientação. Acontecimentos que pareciam ser fardos aparecem agora
como presentes, incluindo os próprios sintomas de que recuperaram. "A minha depressão e os
meus ataques de ansiedade foram a melhor coisa que já me aconteceu," dizem habitualmente
no final da terapia bem sucedida. Mesmo que deixem a terapia sem acreditar em Deus, esses
pacientes bem sucedidos duma forma geral acreditam com muita certeza que foram tocados
pela graça.

A Resistência à Graça

CRESTES NÃO FOI AO psicoterapeuta; curou-se sozinho. E mesmo que tivesse havido
psiquiatras experientes na Grécia antiga, ele teria que se curar sozinho na mesma. Porque,
como já se disse, a psicoterapia é apenas um instrumento - uma disciplina. Depende do
paciente escolher ou rejeitar o instru-

324

mento e, uma vez escolhido, é o paciente que determina como usar o instrumento e com que
fim. Há pessoas que ultrapassam todo o tipo de obstáculos - por exemplo, recursos
insuficientes, experiências desastrosas anteriores com psiquiatras ou psicoterapeutas,
familiares reprovadores, clínicas pouco receptivas - para conseguir fazer terapia e aproveitar
todos os benefícios possíveis. Outras, no entanto, rejeitam a terapia mesmo que lhes seja
oferecida de bandeja, ou então, mesmo que estabeleçam uma relação terapêutica, não têm
qualquer participação, não retirando dela quase nada por muita técnica, esforço e amor que
haja por parte do terapeuta. Apesar de no fim de um caso bem sucedido eu ser tentado a
sentir que curei o paciente, sei que na realidade não fui mais do que um catalisador - e que tive
a sorte de o ser. Uma vez que, em última análise, as pessoas se curam a si próprias com ou sem
o instrumento da psicoterapia, porque é que tão poucos o fazem e tantos não? Já que o
caminho do desenvolvimento espiritual, apesar de difícil, está aberto a todos, porque razão tão
poucos escolhem segui-lo?

Era a esta questão que se referia Cristo quando dizia, "Muitos são os chamados, mas poucos os
escolhidos."* Mas porque são escolhidos os poucos, e o que distingue esses poucos dos
muitos? A resposta que os psicoterapeutas estão habituados a dar é baseada num conceito de
gravidade diferente de psicopatologia. Por outras palavras, consideram que, embora a maior
parte das pessoas estejam doentes, algumas estão mais doentes do que outras, e que quanto
mais doente se está mais difícil é ser curado. Além disso, a gravidade da doença mental duma
pessoa é determinada directamente pela gravidade e precocidade da privação parental por que
passou em criança. Especificamente, considera-se que os indivíduos com psicoses
* S. Mateus 22:14; ver também S. Mateus 20:16.

325

tiveram uma relação parental extremamente deficiente nos primeiros nove meses de vida; a
doença resultante pode ser melhorada por uma ou outra forma de tratamento, mas é quase
impossível de curar. Considera-se que os indivíduos com perturbações de personalidade
tiveram cuidados adequados à nascença, mas cuidados deficientes no período entre
aproximadamente os nove meses e os dois anos de idade, com o resultado de estarem menos
doentes do que os psicóticos mas ainda bastante doentes e muito difíceis de curar. Julga-se que
os indivíduos com neuroses receberam cuidados parentais adequados na primeira parte da
infância, mas foram sujeitos a cuidados parentais deficientes numa determinada altura entre
os dois anos e normalmente antes dos cinco ou seis. Considera-se portanto que os neuróticos
são menos doentes do que as pessoas com perturbações de personalidade ou do que os
psicóticos e, consequentemente, mais fáceis de tratar e curar.

Existe, creio eu, muita verdade neste esquema, que forma um corpo de teoria psiquiátrica
muito útil para os médicos, de diversas formas. Não deve ser criticado descuidadamente.
Apesar de tudo, não conta a história toda. Entre outras coisas, diminui a grande importância da
relação parental na última parte da infância e na adolescência. Há boas razões para acreditar
que uma relação parental deficiente nesses anos pode produzir doenças mentais e que uma
boa relação parental pode curar muitas ou talvez todas as feridas provocadas por uma má
relação parental anterior. Além disso, embora o esquema tenha valor preditivo no sentido
estatístico - os neuróticos, em média, são mais fáceis de tratar do que as pessoas com
perturbações de personalidade, e as que têm perturbações de personalidade são, em média,
mais fáceis de tratar do que os psicóticos - não consegue prever muito bem o curso do
desenvolvimento num caso individual. Assim, por exemplo, o curso mais rápido de uma análise
totalmente bem sucedida

326
que já conduzi foi com um homem que me veio consultar, com uma psicose grave, e cuja
terapia ficou concluída nove meses depois. Por outro lado, trabalhei durante três anos com
uma mulher que, claramente, tinha "só" uma neurose, e consegui apenas uma melhoria
mínima.

Um dos factores que o esquema da gravidade diferente de doença mental não leva em linha de
conta é algo de efémero no paciente individual a que se pode chamar "a vontade de evoluir". É
possível a um indivíduo estar extremamente doente e no entanto possuir ao mesmo tempo
uma "vontade de evoluir" extremamente forte, caso em que ocorrerá a cura. Pelo contrário,
uma pessoa que está apenas moderadamente doente, dentro do que podemos definir como
doença mental, mas a quem falta a vontade de evoluir, não vai avançar um milímetro da
posição em que está. Acredito portanto que a vontade de evoluir do paciente é a determinante
crucial do sucesso ou do fracasso em psicoterapia. É contudo um factor que não é
compreendido nem sequer reconhecido pela teoria psiquiátrica contemporânea.

Embora eu reconheça a importância extrema dessa vontade de evoluir, não estou seguro de
quanto poderei contribuir para a sua compreensão, uma vez que o conceito mais uma vez nos
coloca à beira do mistério. Será imediatamente aparente que a vontade de evoluir é, na sua
essência, o mesmo fenómeno que o amor. O amor é a vontade de se expandir no sentido do
desenvolvimento espiritual. As pessoas que amam verdadeiramente são, por definição,
pessoas que evoluem. Falei de como a capacidade de amar é acalentada por uma relação
parental de amor, mas também salientei que não é só o apoio parental que é responsável por
essa capacidade em toda a gente. O leitor deve recordar-se de que a conclusão da segunda
secção deste livro incluía quatro perguntas sobre o amor, duas das quais vamos agora
considerar: por que razão algumas pessoas

327

não respondem ao tratamento dos melhores e mais afectuosos terapeutas, e por que razão
algumas pessoas transcendem a infância mais destituída de amor, com ou sem a ajuda da
psicoterapia, para se tornarem pessoas que amam. O leitor deve igualmente recordar que
afirmei que duvidava ser capaz de responder a estas perguntas de forma a satisfazer
completamente quem quer que fosse. Sugeri, no entanto, que se poderiam esclarecer estas
questões de alguma maneira, tendo em consideração o conceito de graça.
Eu acredito e tentei demonstrar que a capacidade de amar das pessoas, e portanto a sua
vontade de evoluir, é desenvolvida não só com o apoio do amor dos pais durante a infância
como também ao longo da vida com a graça, ou o amor de Deus. Trata-se de uma força
poderosa, exterior à sua consciência, que funciona através do seu próprio subconsciente bem
como através de pessoas que amam, sem serem os seus pais, e por outras formas que não
compreendemos. É devido à graça que é possível às pessoas transcenderem os traumas de
carências afectivas dos pais e tornarem-se indivíduos que amam e subirem muito mais do que
os pais na escala da evolução humana. Então, por que razão só algumas pessoas se
desenvolvem espiritualmente e evoluem independentemente das circunstâncias da relação
parental? Creio que a graça está ao dispor de todos, que estamos todos protegidos pelo amor
de Deus, nenhum menos que outro. A única resposta que posso dar, portanto, é que a maioria
de nós prefere não prestar atenção ao chamamento da graça e rejeita a sua ajuda. Eu traduziria
a afirmação de Cristo, "Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos," como
significando, "Todos nós somos chamados por e para a graça, mas poucos escolhem ouvir a
chamada."

A pergunta passa então a ser: Por que razão tão poucos de nós escolhemos dar atenção à
chamada da graça? Por que

328

razão a maior parte de nós resistimos de facto à graça? Falámos anteriormente de como a
graça nos fornece uma certa resistência inconsciente à doença. Como é que, então, parecemos
possuir uma resistência quase idêntica à saúde? A resposta a esta pergunta, na verdade, já foi
dada. É a nossa preguiça, o pecado original da entropia com que todos fomos amaldiçoados.
Tal como a graça é a fonte final da força que nos empurra na subida da escada da evolução
humana, assim a entropia faz com que resistamos a essa força, para nos deixarmos ficar no
degrau fácil e confortável em que nos encontramos ou até descermos para formas cada vez
menos exigentes de existência. Falámos exaustivamente de como é difícil disciplinarmo-nos,
amarmos genuinamente, desenvolvermo-nos espiritualmente. É natural que retrocedamos em
face da dificuldade. Apesar de termos tratado dos aspectos básicos do problema da entropia
ou preguiça, há um aspecto desse problema que merece mais uma vez menção especial: a
questão do poder.

Os psiquiatras e muitos leigos estão familiarizados com o facto de ocorrerem com notável
frequência problemas psiquiátricos em indivíduos que acabam de ser promovidos a posições
de maior poder e responsabilidade. O psiquiatra militar, particularmente familiarizado com
este problema da "neurose da promoção", apercebe-se igualmente de que o problema não
ocorre com frequência ainda maior porque um grande número de soldados consegue resistir
às promoções. Há muitos soldados milicianos de baixa patente que simplesmente não querem
ser segundos-sargentos, nem primeiros-sargentos nem sargentos-ajudantes. E também há
grande número de milicianos que preferiam morrer a passar a oficiais e que rejeitam, às vezes
repetidamente, convites para ingressarem na escola de oficiais, para o que, em virtude da sua
inteligência e estabilidade, pareceriam ter a devida qualificação.

329

Com o desenvolvimento espiritual passa-se o mesmo que com a vida profissional. Porque a
chamada para a graça é a promoção, uma chamada para uma posição de maior
responsabilidade e poder. Ter consciência da graça, sentir pessoalmente a sua presença
constante, conhecer a proximidade de Deus, é conhecer e sentir continuamente uma
tranquilidade e paz interior que poucos possuem. Por outro lado, esse conhecimento e essa
consciência acarretam uma enorme responsabilidade. Porque sentir a nossa proximidade em
relação a Deus é também sentir a obrigação de ser Deus, de ser o agente do Seu poder e amor.
O chamamento para a graça é um chamamento para uma vida de dedicação esforçada, uma
vida para servir e fazer qualquer sacrifício necessário. É um chamamento que nos faz sair da
infância para a idade adulta espiritual, para nos tornarmos um pai ou uma mãe para a
humanidade. T. S. Eliot descreveu bem esta questão no sermão de Natal proferido por Thomas
Becket na peça Assassínio na Catedral:

Pensem por um momento no significado desta palavra "paz". Parece-vos estranho que os anjos
tenham anunciado a Paz, quando o mundo tem sido incessantemente atingido pela Guerra e
pelo medo da Guerra? Parece-vos que as vozes angelicais estavam enganadas e que a
promessa foi uma desilusão e um logro?

Reflictam agora em como o Senhor falou da Paz. Ele disse aos discípulos "Deixo-vos a paz, dou-
vos a minha paz". Referia-se Ele à paz como a consideramos: o reino de Inglaterra em paz com
os seus vizinhos, os barões em paz com o Rei, o dono da casa a contar os seus ganhos pacíficos,
o borralho varrido, o seu melhor vinho na mesa para um amigo, a sua mulher a cantar para as
crianças? Aqueles homens, Seus discípulos, nada sabiam dessas coisas: viajavam para longe,
para sofrer em terra e no mar, para conhe-
330

cer a tortura, a prisão, a desilusão, a morte pelo martírio. Então que queria Ele dizer? Se
perguntarem isso, lembrem-se que Ele também disse, "Não como o mundo dá, eu vos dou."
Assim deu Ele a paz aos Seus discípulos, mas não a paz como o mundo dá. '"

Assim, a paz da graça traz responsabilidades, deveres e obrigações dolorosos. Não é de


espantar que tantos sargentos qualificados não queiram assumir a posição dum oficial. E não
admira que os pacientes em psicoterapia tenham pouca apetência pelo poder que acompanha
a verdadeira saúde mental. Uma jovem que fazia terapia comigo há um ano devido a uma
depressão invasiva, e que tinha aprendido bastante sobre a psicopatologia dos seus familiares,
exultava certo dia com uma situação familiar que ela tinha resolvido com sensatez,
equanimidade e facilidade. "Senti-me mesmo bem," dizia ela. "Gostava de me sentir assim
mais vezes." Disse-lhe que podia, fazendo-lhe notar que a razão por que se tinha sentido tão
bem era que, pela primeira vez na sua relação com a família, estava numa posição de poder,
tendo a noção das suas comunicações distorcidas e das formas desonestas como tentavam
manipulá-la para satisfazer as suas exigências irrealistas, e que portanto ela podia comandar a
situação. Disse-lhe que uma vez que era capaz de alargar esse tipo de consciência a outras
situações, se encontraria cada vez mais "a controlar as coisas" e portanto teria essa sensação
boa cada vez mais frequentemente. Ela olhou para mim com o princípio duma sensação de
horror. "Mas isso obrigava-me a pensar todo o tempo!", disse ela. Concordei que era pensando
muito que o seu poder evoluiria e se poderia manter e que se

(Nota)

* The Complete Poems and Plays, 1909-1950 (N. Iorque: Harcourt Brace,

192), p. 69.

331

livraria da sensação de impotência que estava na base da sua depressão. Ficou furiosa. "Não
quero ter de pensar o tempo todo," gritou. "Não vim aqui para me tornarem a vida mais difícil.
Só quero ser capaz de relaxar e me divertir. Quer que eu seja uma espécie de deus ou coisa
parecida!" Lamento dizer que, pouco tempo depois, aquela jovem potencialmente brilhante
deixou o tratamento, muito longe de estar curada, aterrada com as exigências que a saúde
mental lhe traria.
Pode parecer estranho aos leigos, mas os psiquiatras conhecem bem o facto de as pessoas
ficarem normalmente aterradas com a saúde mental. Uma grande parte da tarefa da
psicoterapia é não só levar os pacientes a sentirem a saúde mental mas também, através dum
misto de consolação, tranquilização e firmeza, evitar que fujam a essa experiência quando
chegam até ela. Um dos aspectos deste receio é bastante legítimo e, só por si, não atenta
contra a saúde: o medo de que ao tornar-se poderoso, se possa fazer mau uso do poder. Santo
Agostinho escreveu "Dilige et quod vis fac", que significa "Sê afectuoso e diligente, e podes
fazer tudo o que quiseres"*. Se as pessoas progredirem o suficiente na psicoterapia, a
determinada altura deixarão de sentir a incapacidade de lidar com um mundo impiedoso e
esmagador e acabam por descobrir um dia que têm o poder de fazerem o que quiserem. A
descoberta desta liberdade é assustadora. "Se posso fazer tudo o que quero," pensarão, "o que
me impede de cometer grandes erros, crimes, de ser imoral, de abusar da minha liberdade e
do poder? A minha diligência e o meu amor serão suficientes para me guiarem?"

Se a descoberta do poder e da liberdade for sentida como uma chamada para a graça, como é
frequente, então a resposta será também "Deus, receio não ser digno da Vossa con-

332

fiança em mim". Este receio é, evidentemente, parte integrante da diligência e do amor e


portanto útil na auto-regulação que previne o abuso do poder. Por essa razão não deve ser
desprezado; mas não deve ser tão monumental que impeça a pessoa de prestar atenção ao
chamamento para a graça e de assumir o poder de que é capaz. Alguns dos que foram
chamados para a graça podem lutar durante anos com o seu receio antes de o conseguirem
transcender e aceitar a sua semelhança com Deus. Quando esse receio e o sentimento de
indignidade é tão forte que impede consistentemente que o poder seja assumido, trata-se dum
problema neurótico, e tratá-lo pode ser uma questão fulcral ou a questão fulcral na
psicoterapia.

Mas, para a maioria das pessoas, o receio de poderem vir a abusar do poder não é a questão
fulcral da sua resistência à graça. Não é a parte do "podes fazer tudo o que quiseres" da
máxima de Santo Agostinho que lhes provoca indigestão, mas a parte do "Sê diligente". Somos
quase todos como crianças ou jovens adolescentes; acreditamos que a liberdade e o poder da
idade adulta são nossos por direito, mas não temos grande apetência pela responsabilidade e
auto-disciplina adulta. Por muito oprimidos que nos sintamos pelos nossos pais - ou pela
sociedade ou pelo destino -, de facto parecemos precisar que existam poderes acima de nós a
quem culpar pela nossa condição. Subir a uma posição tão poderosa que não haja a quem
culpar senão nós próprios é uma situação aterradora. Como já foi mencionado, se não fosse
pela presença de Deus connosco nessa posição de destaque, ficaríamos aterrorizados por
estarmos sós. Mesmo assim, muitos têm tão pouca capacidade para tolerar estarem sós que
rejeitam a presença de Deus para não terem que passar pela experiência de serem o único
comandante do navio. A maior parte das pessoas quer a paz sem a solidão do poder. E querem
a auto-confiança da idade adulta sem terem que crescer.

333

Falámos de formas diversas sobre a dificuldade de evoluir. Muito poucos marcham


desassombradamente e sem hesitações para a idade adulta, sempre ansiosos por novas e
maiores responsabilidades. A maior parte arrastam os pés e de facto nunca se tornam mais do
que parcialmente adultos, retrocedendo sempre face às exigências da condição de adulto.
Assim acontece com o desenvolvimento espiritual, que é inseparável do processo de
maturação psicológica. Porque a chamada para a graça na sua forma última é um chamamento
para ser um só com Deus, para assumir a igualdade com Deus. Daí ser a chamada para a
condição de adulto total. Estamos habituados a imaginar a experiência da conversão ou do
chamamento súbito para a graça como um fenómeno de "Oh, que alegria!". Na minha
experiência, o que é mais frequente, pelo menos em parte, é ser um fenómeno de "Oh, que
merda". No momento em que finalmente escutamos o chamamento podemos dizer "Obrigado,
meu Deus", ou podemos dizer "Meu Deus, não sou digno", ou ainda "Meu Deus, tenho mesmo
que ir?"

Portanto, o facto de que "muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos" é facilmente
explicável em face das dificuldades inerentes à resposta ao chamamento da graça. A questão
que nos fica, assim, não é por que razão as pessoas não aceitam a psicoterapia, ou não
beneficiam dela mesmo estando nas melhores mãos, ou por que razão os humanos resistem à
graça; a força da entropia faz com que seja natural que assim procedam. A questão é antes a
oposta: como é que esses poucos prestam atenção a essa chamada que é tão difícil? O que
distingue os poucos dos muitos? Não sou capaz de responder. Essas pessoas podem provir de
ambientes ricos e cultos ou de ambientes pobres e supersticiosos. Podem ter tido pais que as
amaram ou, com o mesmo grau de probabilidade, terem sido profundamente privados de
afecto parental ou de interesse genuíno. Podem fazer psicoterapia devido a pequenas dificul-

334
dades de adaptação ou a doenças mentais gravíssimas. Podem ser velhas ou novas. Podem
prestar atenção à chamada à graça subitamente e com facilidade aparente. Ou podem lutar
contra ela e maldizerem-na, cedendo gradual e dolorosamente, centímetro a centímetro. Em
consequência, com a experiência de muitos anos, tornei-me menos, em vez de mais, selectivo
ao determinar com quem vou tentar a terapia. Peço desculpa àqueles que excluí da terapia em
resultado da minha ignorância. Porque aprendi que, nas fases iniciais do processo
psicoterapêutico, não tenho qualquer capacidade de prever quais são os pacientes que não
irão responder à terapia, os que responderão com um desenvolvimento significativo ainda que
parcial, e quais os que, milagrosamente, se desenvolverão até ao estado de graça. O próprio
Cristo falou da imprevisibilidade da graça quando disse a Nicodemos: "Tal como ouves o vento
mas não sabes donde vem nem para onde vai a seguir, assim é com o Espírito. Não sabemos
quem será o próximo a quem concederá esta vida vinda do céu."* Por muito que tenhamos
dito sobre o fenómeno da graça, acabamos por ter de reconhecer a sua natureza misteriosa.

O Acolhimento da Graça

E MAIS UMA VEZ SOMOS confrontados com o paradoxo. Desde o início deste livro que tenho
escrito sobre o desenvolvimento espiritual como se fosse um processo ordenado e previsível.
Ficou subentendido que o desenvolvimento espiritual pode ser aprendido como uma área de
conhecimento que se aprende

* S. João 3:8. Esta tradução foi retirada da Living Bible porque me parece superior à versão King
James. (N. do A.)

335

através dum programa de licenciatura; se pagarmos as propinas e trabalharmos o suficiente, é


evidente que conseguimos obter a licenciatura. Interpretei a frase de Cristo "Muitos são os
chamados, mas poucos os escolhidos" como significando que muito poucos escolhem prestar
atenção à chamada da graça devido às dificuldades envolvidas. Com esta interpretação, sugeri
que se somos ou não abençoados pela graça é uma questão de escolha nossa. Essencialmente,
tenho dito que a graça se ganha. E sei que é verdade.
Ao mesmo tempo, no entanto, sei que não é nada assim. Nós não vamos de encontro à graça; a
graça vem até nós. Por muito que tentemos obter a graça, ela pode escapar-nos. Podemos ou
não procurá-la, ela nos encontrará. Conscientemente, podemos desejar avidamente a vida
espiritual mas descobrir toda a espécie de obstáculos no caminho. Ou podemos ter
aparentemente pouco gosto pela vida espiritual e apesar disso sermos energicamente
chamados para ela. Embora a um certo nível sejamos nós a escolher se prestamos ou não
atenção ao chamamento da graça, noutro parece claro que é Deus que faz a escolha. A
experiência comum dos que atingiram um estado de graça, a quem "esta nova vida do céu" foi
conferida, é a de assombro perante a sua condição. Não sentem que a tenham merecido.
Embora possam ter uma noção realista da particular bondade da sua natureza, não atribuem
essa natureza à sua vontade; antes, sentem distintamente que a bondade da sua natureza foi
criada por mãos mais sábias e habilidosas que as suas. Os que estão mais próximos da graça
são os que maior noção têm do carácter misterioso da oferta que lhes foi feita.

Como resolvemos este paradoxo? Não resolvemos. Talvez o melhor que possamos dizer seja
que, embora não possamos ascender à graça pela nossa vontade, podemos pela nossa vontade
abrir-nos à sua vinda miraculosa. Podemos preparar-nos para sermos um solo fértil, um lugar
de acolhimento. Se

336

conseguirmos tornar-nos indivíduos totalmente disciplinados, totalmente capazes de amar,


então, mesmo que sejamos ignorantes da Teologia e não pensemos em Deus, estaremos bem
preparados para a vinda da graça. Por outro lado, o estudo da Teologia é um método
relativamente fraco de preparação e, só por si, completamente inútil. Em todo o caso, escrevi
esta secção porque acredito que a consciência da existência da graça pode ajudar em muito
aqueles que escolheram trilhar o difícil caminho do desenvolvimento espiritual. Porque essa
consciência lhes facilitará a jornada pelo menos de três formas: ajudá-los-á a tirar partido da
graça durante o caminho; dar-lhes-á um sentido de direcção mais seguro, e dar-lhes-á
incentivo.

O paradoxo de que tanto escolhemos a graça como somos escolhidos pela graça é a essência
do fenómeno do serendipismo. O serendipismo foi definido como "o dom de descobrir coisas
valiosas ou agradáveis não procuradas". Buda só encontrou o esclarecimento quando deixou
de o procurar quando o deixou vir até ele. Por outro lado, quem duvida que o esclarecimento
veio até ele precisamente porque ele tinha devotado pelo menos dezasseis anos da sua vida a
procurá-lo, dezasseis anos a preparar-se? Teve que o procurar e não o procurar. As Fúrias
transformaram-se em Portadoras da Graça precisamente porque Orestes se esforçou por obter
o favor dos deuses e, ao mesmo tempo, não ficou à espera que os deuses lhe tornassem fácil o
caminho. Foi através deste misto paradoxal de procurar e não procurar que obteve o dom do
serendipismo e as bênçãos da graça.

Este mesmo fenómeno é correntemente demonstrado pela forma como os pacientes utilizam
os sonhos na psicoterapia. Alguns doentes, conscientes do facto de os sonhos conterem
respostas aos seus problemas, procuram avidamente as respostas registando deliberada e
mecanicamente, com esforço consi-

337

derável, cada um dos seus sonhos em pormenor, e trazendo para as sessões verdadeiras
resmas de sonhos. Mas os sonhos ajudam-nos pouco. Na verdade, todo este material sonhado
pode ser um impedimento na terapia. Por um lado, não há tempo suficiente de terapia para
analisar esses sonhos todos. Por outro, esse material volumoso pode impedir o trabalho em
áreas de análise mais frutíferas. E é provável que todo esse material seja singularmente
obscuro. Esses pacientes têm que ser ensinados a deixar de procurar nos sonhos, deixarem os
sonhos vir até si, deixar o subconsciente fazer a escolha dos sonhos que devem entrar na
consciência. Este mesmo ensinamento pode ser bastante difícil, exigindo que o paciente
prescinda duma determinada quantidade de controlo e assuma uma relação mais passiva na
sua mente. Mas assim que o paciente aprende a não fazer nenhum esforço consciente de se
agarrar aos sonhos, o material de que se recorda diminui em quantidade, mas aumenta
drasticamente em qualidade. O resultado é que os sonhos do paciente - esses presentes do
subconsciente que já não são procurados - facilitam o processo de cura desejado. Se olharmos
para o reverso da medalha, no entanto, descobrimos que há muitos pacientes que iniciam a
psicoterapia sem nenhuma consciência ou compreensão do imenso valor que os sonhos
podem ter para eles. Em consequência, afastam da consciência todo o material dos sonhos
como inútil e sem importância. Estes pacientes têm primeiro que ser ensinados a lembrarem-
se dos sonhos e depois a apreciarem e reconhecerem o tesouro que contêm. Para utilizar os
sonhos eficazmente, temos que trabalhar para ter a noção do seu valor e tirar proveito deles
quando vêm até nós, e por vezes temos que trabalhar para não os procurar nem esperar.
Temos que os deixar ser verdadeiros presentes.
O mesmo acontece com a graça. Já vimos que os sonhos são apenas uma das formas ou modos
em que a graça nos é

338

oferecida. A mesma abordagem paradoxal deve ser empregue com todas as outras formas:
visões repentinas, premonições e uma verdadeira hoste de acontecimentos síncronos e
serendipíticos. E com todo o amor. Toda a gente quer ser amada. Mas primeiro temos que nos
tornar amáveis. Temos que nos preparar para ser amados. Fazemo-lo tornando-nos seres
humanos que amam e são disciplinados. Se procuramos ser amados se esperamos ser amados
- não o conseguiremos; seremos dependentes e egoístas, não amaremos verdadeiramente.
Mas quando nos desenvolvemos, e aos outros, sem a preocupação da recompensa, então ter-
nos-emos tornado amáveis, e a recompensa de ser amados, que não procurámos, encontrar-
nos-á. Assim acontece com o amor humano e assim acontece com o amor de Deus.

Um dos objectivos principais desta secção sobre a graça é de ajudar os que empreendem a
jornada do desenvolvimento espiritual a aprender a capacidade do serendipismo. E vamos
redefinir o serendipismo não como um dom em si mas como uma capacidade adquirida para
reconhecer e utilizar as ofertas da graça que nos vêm de algures para lá do domínio da nossa
vontade consciente. Com essa capacidade, descobriremos que a nossa viagem de
desenvolvimento espiritual é guiada pela mão invisível e pela sabedoria inimaginável de Deus
com infinitamente maior precisão do que aquela de que a nossa vontade consciente, sem
ajuda, é capaz. Assim guiada, a viagem torna-se tão mais rápida.

Duma maneira ou doutra, estes conceitos foram estabelecidos anteriormente - por Buda, por
Cristo, por Lao-Tse, entre muitos outros. A originalidade deste livro resulta do facto de eu ter
chegado ao mesmo significado pelos atalhos específicos da minha vida do século XX. Se
necessitar de maior compreensão do que aquela que estas notas de fim de página modernas
lhe podem oferecer, então não deixe de avançar ou regres-

339
sar aos textos antigos. Procure maior compreensão, mas não espere maior detalhe. Há muitos
que, em virtude da sua passividade, dependência, medo e preguiça, esperam que se lhes
mostre cada centímetro do caminho e que lhes demonstrem que cada passo será seguro e que
valerá a pena. Isso não se pode fazer. Porque a jornada do desenvolvimento espiritual requer
coragem e iniciativa e independência de pensamento e acção. Apesar das palavras dos profetas
e da ajuda da graça estarem disponíveis, a viagem tem que ser feita a sós. Nenhum professor o
pode levar lá. Não existem fórmulas pré-estabelecidas. Os rituais são apenas auxiliares da
aprendizagem, não são a aprendizagem. Comer alimentos biológicos, rezar cinco Ave Marias
antes do pequeno almoço, rezar virado para o Oriente ou para o Ocidente, ou ir à igreja ao
Domingo não o levará ao destino. Não há palavras que possam ser ditas, nem ensinamentos
que possam ser transmitidos que libertem os viajantes espirituais da necessidade de
escolherem o seu próprio percurso, de trilharem com esforço e ansiedade o seu próprio
caminho nas circunstâncias únicas da vida de cada um, no sentido da identificação do seu
próprio Eu com Deus.

Mesmo quando compreendemos verdadeiramente estes assuntos, a jornada de


desenvolvimento espiritual continua a ser tão solitária e difícil que muitas vezes nos sentimos
desencorajados. Acreditamos nos princípios mecânicos do Universo; não em milagres. Através
da ciência, aprendemos que o lugar que habitamos é apenas um planeta duma só estrela
perdida numa galáxia entre muitas outras. E tal como parecemos perdidos no meio da
imensidão do Universo exterior, assim a ciência nos levou a desenvolver uma imagem de nós
próprios como sendo inevitavelmente determinados e governados por forças internas não
sujeitas à nossa vontade - por moléculas químicas do cérebro e conflitos do subconsciente que
nos obrigam a sentir e a nos comportarmos de determinadas

340

formas quando nem sequer temos consciência do que estamos a fazer. Também a substituição
dos nossos mitos humanos por informação científica nos causou uma sensação de ausência de
sentido pessoal. Que significado poderemos ter, como indivíduos ou como raça, dominados por
forças químicas e psicológicas interiores que não compreendemos, invisíveis num Universo
cujas dimensões são tão grandes que nem a nossa ciência as consegue medir?

No entanto, foi essa mesma ciência que, de certas formas, me ajudou a aperceber-me da
realidade do fenómeno da graça. Tentei transmitir essa percepção. Porque uma vez que nos
apercebemos da realidade da graça, o nosso entendimento de nós próprios como sem valor e
insignificante é destruído. O facto de existir para além de nós e da nossa vontade consciente
uma força poderosa que apoia o nosso desenvolvimento e evolução é suficiente para alterar
completamente a nossa noção de insignificância pessoal. Porque a existência dessa força
(quando nos apercebemos dela) indica com certeza incontornável que o nosso
desenvolvimento espiritual humano é da maior importância para algo maior do que nós. A esse
algo chamamos Deus. A existência da graça é a prova prima fade não só da realidade de Deus
mas também da realidade de que a vontade de Deus é dedicada ao desenvolvimento do
espírito humano individual. O que parecia ser um conto de fadas revelou-se real. Vivemos as
nossas vidas aos olhos de Deus, e não na periferia mas no centro da Sua visão, do Seu
interesse. É provável que o Universo, tal como o conhecemos, seja apenas a soleira da entrada
no Reino de Deus. Mas não estamos perdidos no Universo. Pelo contrário, a realidade da graça
indica que a humanidade está no centro do Universo. Este tempo e este espaço existem para
nós os percorrermos. Quando os meus pacientes perdem de vista a sua importância e se
sentem desencorajados pelo esforço do trabalho que

341

estamos a fazer, digo-lhes por vezes que a raça humana está a meio de fazer um salto
evolutivo. "Se somos ou não bem sucedidos nesse salto," digo-lhes, "é da sua responsabilidade
pessoal." E da minha. O Universo, esta soleira, foi colocado para nos preparar um caminho.
Mas somos nós que temos que a atravessar, um a um. Através da graça somos ajudados a não
tropeçar, e através da graça sabemos que somos bem-vindos. Que mais podemos pedir?

342

Posfácio

DESDE A ALTURA DA SUA publicação inicial, tenho tido a sorte de receber muitas cartas de
leitores de O Caminho Menos Percorrido. Tem havido cartas extraordinárias. Inteligentes e
expressivas sem excepção, têm sido também extraordinariamente afectuosas. Além de
exprimirem apreço, a maior parte continha outros presentes: poesia adequada, citações úteis
de outros autores, jóias de sabedoria e histórias de experiências pessoais. Essas cartas
enriqueceram a minha vida. Percebi claramente que existe uma verdadeira rede - bem mais
vasta do que me atreveria a pensar - de pessoas no país que têm vindo a percorrer
calmamente longas distâncias ao longo do caminho menos percorrido do desenvolvimento
espiritual. Agradeceram-me por lhes ter reduzido a sensação de estarem sós na viagem.
Agradeço-lhes pela mesma razão.

Uns poucos de leitores questionaram a minha fé na eficácia da psicoterapia. Afirmei que a


qualidade da psicoterapia varia amplamente. E continuo a acreditar que a maior parte dos que
não conseguem beneficiar do trabalho com um terapeuta competente, não o fazem porque
lhes falta o gosto e a vontade pelo rigor desse trabalho. No entanto, esqueci-me de salientar
que uma pequena minoria - talvez cinco por cento - das pessoas tem problemas psiquiátricos
de uma natureza que não reage à psicoterapia e que pode até piorar devido à profunda
introspecção envolvida.

343

Quem quer que tenha conseguido ler e compreender totalmente este livro não pertence quase
de certeza a esses cinco por cento. E de qualquer maneira, é da responsabilidade dum
terapeuta competente discernir cuidadosa e por vezes gradualmente quais os pacientes que
não devem ser conduzidos ao trabalho psicanalítico e conduzi-los em alternativa para outras
formas de tratamento que podem ser bastante benéficas.

Mas quem é um psicoterapeuta competente? Vários leitores de O Caminho Menos Percorrido


que tomaram a iniciativa de procurar a psicoterapia, escreveram a perguntar como se devia
escolher o terapeuta adequado, distinguindo entre os competentes e os incompetentes. O meu
primeiro conselho é encarar a escolha com seriedade. É uma das decisões mais importantes
que se podem tomar na vida. A psicoterapia é um grande investimento, não só em termos de
dinheiro mas mais ainda em termos de tempo e energia valiosos. É o que os corretores
chamariam um investimento de alto risco. Se a escolha for acertada, dará óptimos dividendos
espirituais que nem poderia imaginar. Embora não seja provável que se seja prejudicado se se
fizer a escolha errada, desperdiçar-se-á a maior parte do dinheiro, tempo e energia valiosos
que se investiu. Portanto, não hesite em procurar bastante. E não hesite em confiar nos seus
sentimentos ou intuição. Normalmente, com base numa só entrevista com um terapeuta, ficará
apto a recolher boas ou más "vibrações". Se as vibrações forem más, pague a consulta e mude
para outro. Essas sensações são normalmente intangíveis, mas podem emanar de pequenas
indicações tangíveis. Na altura em que comecei a fazer terapia em 1966, preocupava-me e
criticava muito a moralidade do envolvimento da América na guerra do Vietname. O meu
terapeuta tinha, na sala de espera, exemplares do Ramparts e do New York Review of Books,
ambos revistas liberais com políticas editoriais anti-guerra. Comecei a sentir boas vibrações
antes de o ver pela primeira vez.

344

Mas mais importante do que as inclinações políticas, a idade ou o sexo do seu terapeuta é se
ele ou ela é uma pessoa genuinamente interessada. Isso também consegue sentir
rapidamente, embora o terapeuta não deva cumulá-lo de tranquilizações amáveis e
compromissos apressados. Se os terapeutas são interessados, serão também cautelosos,
disciplinados e normalmente reservados, mas deve ser-lhe possível intuir se a reserva esconde
calor ou frieza.

Uma vez que os terapeutas o irão entrevistar para decidir se o querem como paciente, é
totalmente adequado que os entreviste também. Se for importante para si, não se acanhe de
perguntar o que pensa o terapeuta de questões tais como a libertação das mulheres, a
homossexualidade ou a religião. Tem direito a respostas honestas, abertas e cuidadosas.
Relativamente a outro tipo de questões - tais como quanto tempo irá durar a terapia ou se a
sua erupção cutânea é psicossomática

- normalmente poderá confiar num terapeuta que lhe diz que não sabe. De facto, as pessoas
educadas e bem sucedidas em qualquer profissão que admitem ignorância são geralmente as
mais conhecedoras e dignas de confiança.

A capacidade dum terapeuta tem muito pouco a ver com as credenciais que possa ter. O amor,
a coragem e a sensatez não podem ser atestados com diplomas académicos. Por exemplo, os
psiquiatras "certificados pela ordem", os terapeutas com mais credenciais, passam por uma
formação rigorosa suficiente para que as pessoas se sintam relativamente seguras de que não
estão a cair nas mãos dum charlatão. Mas um psiquiatra não é necessariamente melhor
terapeuta do que um psicólogo, um assistente social ou um padre - ou talvez nem tão bom. De
facto, dois dos melhores terapeutas que conheço nunca se licenciaram.

A recomendação pessoal é muitas vezes a melhor maneira de começar a procurar um


psicoterapeuta. Se tem um amigo

345
que respeita e que ficou satisfeito com os serviços dum determinado terapeuta, porque não
começar com essa recomendação? Outra forma, particularmente aconselhável se os seus
sintomas são graves ou se também tem dificuldades físicas, será começar com um psiquiatra.
Em virtude da sua formação clínica, os psiquiatras são habitualmente os terapeutas mais caros,
mas estão também em melhor posição para compreender todos os aspectos da sua situação.
No fim da consulta, depois do psiquiatra ter tido oportunidade de conhecer a dimensão do seu
problema, pode pedir-lhe para lhe recomendar um terapeuta não médico menos dispendioso,
se aplicável. Os melhores psiquiatras estarão normalmente na disposição de lhe dizer que
analistas leigos na comunidade são especialmente competentes. Claro que se o médico lhe
transmitir boas vibrações e estiver disposto a aceitá-lo como paciente, pode continuar com ele.

Se tiver dificuldades financeiras e não tiver cobertura por uma companhia de seguros para
psicoterapia ambulatória, a sua única opção será procurar ajuda numa clínica de saúde mental
ou psiquiátrica apoiada pelo Estado ou por um hospital. Aí os honorários serão estabelecidos
de acordo com os seus recursos e pode ter a certeza de que não cai nas mãos dum curandeiro.
Por outro lado, a psicoterapia em clínicas tende a ser superficial e a sua capacidade de escolha
do seu próprio terapeuta pode ser bastante limitada. De qualquer forma, funciona
frequentemente muito bem.

Estas breves orientações podem não ser tão específicas como os leitores gostariam. Mas a
mensagem central é que, uma vez que a psicoterapia exige uma relação intensa e
psicologicamente íntima entre dois seres humanos, nada o pode libertar da responsabilidade
de escolher pessoalmente o ser humano em particular a quem vai confiar a sua orientação. O
melhor terapeuta para uma pessoa pode não ser o melhor para outra.

346

POSFÁCIO

Cada pessoa, terapeuta e paciente, é única, e deve confiar no seu julgamento intuitivo único.
Porque há alguns riscos envolvidos, desejo-lhe sorte. E porque o acto de iniciar psicoterapia
com tudo o que envolve é um acto de coragem, tem a minha admiração.
M. Scott Peck

Bliss Road

New Preston, Conn. 06777

Março de 1979.

347

Outro Olhar

1 O Caminho Menos Percorrido M. Scott 1'eck

2 A Sociedade de Irmãos Robert BK

3 Conversas com Deus HITO l Neale Donald Walsch

4 Não Há Acasos Robert H. Hopcke

5 Conversas com Deus lirra 2 Neale Donald Walsch

6 Parar

David Kundt/

7 Conversas com Deus livro i Neale Donald Walsch


8 A Psicologia do Dinheiro

Adrian Furnham e Michael Argyle

9 Aonde Quer Que Eu Vá

Jon Kabat-Zinn

10 Amizade com Deus

Neale Donald Walsch

11 Palavras Que Curam

I.arry Dossey

12 O Futuro do Amor

Daphne Rose Kingma

13 El Camino

Shirley Macl.ame

14 Comunhão com Deus


Neale Donald Walsch

15 Elogio do Silêncio

Marc de Smedt

16 Quando os Elefantes Choram

Jeffrey Masson e Susan McCarthy

17 Gente da Mentira M. Scott Peck

18 O Turista Espiritual

\lick Brown

À Mão de Semear

1 Sc a Vida c Um Jogo Estas são as Regras

Chcric Carter-Scott

2 O Manifesto do Cânhamo

Kowan Robmson

3 Resoluções Para o Milénio


compilado por Jenmfer rox

4 A Sabedoria dos Lobos

Twvman L. Towerv

Extra Colecção

As Terças com Morrie

Mitch Albom

Corpo de Mulher Sabedoria de Mulher

Christiane Northrup

Deus c o Meu Corrctor

Irmão Tv

com Christophcr Bucklcy c John Tierney

A Arte de Não Fazer Nada Véroniqui' Vn-nne c Krica Lennartl

O Tão do Pooh
Bcnjamin Hoff

A Natureza

Ralph Waldo Hmerson

Manual Prático de l Ching R. L. Wing

A Gazela e as Estrelas

Graça Castanheira e Rita Quintela

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