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Uma tarde com Julian Assange, o hacker que tirou o sono do governo
americano.
Veja a íntegra da entrevista exclusiva concedida por Julian Assange ao editor do Nocaute,
Fernando Morais.
Quando comecei a montar o Nocaute, no ano passado, adotei uma ideia fixa: a
principal matéria do número de estreia do blog seria uma entrevista com Julian
Assange. Bati em portas de intermediários em vários países até que, em meados
do ano, chegou a luz verde: ele ia me receber. E a notícia boa coincidia com os
últimos “zeros” (ou “demos” ou “betas”), as versões experimentais do blog, só
acessíveis ao público interno.
Ao final, fez uma única exigência: que a entrevista não fosse divulgada antes de
determinada data de janeiro.
Você deve saber que os netos dos netos dos seus netos e os netos dos netos
dos meus netos, os seus na Austrália e o meus no Brasil, vão ler nos livros de
História, daqui a cem anos, o responsável pela eleição do Trump para a
Presidência dos EUA foi o senhor. Não importa que isso não seja verdade: como
o senhor se sente em relação a isso?
Assange: Penso que é muita ingenuidade acreditar que muda tudo tendo este
ou aquele presidente no comando. Sim, o Trump foi eleito e nomeou Rex
Tillerson secretário de Estado, e Rex é o CEO da Exxon. Mas, quem foram os
segundos maiores frequentadores da Casa Branca nos oito anos do governo
Obama? Os lobistas da Exxon.
O que a Hillary Clinton fazia quando era secretária de Estado? Uma das coisas
principais era pressionar a favor dos interesses das empresas de petróleo. Acho
que não podemos ser muito ingênuos a respeito.
Os Estados Unidos vão continuar cometendo todos tipos de crimes contra seu
próprio povo e também no exterior. Vão cometer erros e crimes graves
intencionalmente. Sempre foi assim. Porque os governos representam as
facções dominantes da sociedade americana, que são as grandes empresas
multinacionais.
A questão é: que tipo de símbolo é isso? O que representa esse fenômeno? Com
Rex Tillerson como chefe do Departamento de Estado fica muito fácil saber o
que eles querem fazer. Era mais difícil quando Hillary Clinton era secretária de
Estado.
Então não estou certo de que as coisas sejam tão diferentes, e retoricamente a
situação é muito mais fácil de se entender.
Por que as pessoas se tornam bilionárias? Parte da explicação é que elas não
querem mais trabalhar pra ninguém. Mas essas pessoas disseram que
trabalhariam para o Trump. Essa é uma questão muito interessante.
Algumas áreas como a política externa, por exemplo, com certeza terão
mudanças. Algumas pra melhor, outras para pior.
Vamos imaginar que haja outra guerra por petróleo. Quem irá se opor a ela
internacionalmente? Se você olhar para a estrutura da sociedade europeia, a
maioria irá criticar mais facilmente o governo americano do que se a Hillary
Clinton estivesse conduzindo a guerra. Se você vive num país vítima da guerra,
você terá ajuda internacional mais facilmente se a administração Trump ameaçar
invadir seu país.
Da mesma forma no âmbito doméstico. Trump pode ter mais oposição interna
para essa guerra. O New York Times faz oposição a Trump, assim como a CNN
e como quatro dos cinco grandes conglomerados de mídia dos EUA. Então, é
mais fácil conseguir uma resistência doméstica contra essa política. Se fosse
nos moldes antigos, essa oposição estaria fora do jogo, incluindo a CNN. Vamos
ver se os cinco grupos de mídia dos EUA fazem um acordo para sair de cena,
mas no momento eles estão fazendo campanha contra o Trump. Então ficará
mais fácil conseguir uma resistência doméstica contra essa política.
Há um isolamento de forças nesse gabinete. Provavelmente essa força isolada
vai mudar com o tempo. Provavelmente a CIA e os complexos militares vão se
aproximar. A Exxon, Chevron e outras companhias com interesses no exterior
vão impor suas demandas. A indústria de armas dirá: “Temos de aumentar
nossas vendas de armamentos. As pessoas precisam ver nosso jatos
bombardeando alguma coisa ou não os comprarão.”
Com o tempo dá pra se preocupar. Mas neste momento é muito fácil criticar
dentro e fora dos EUA qualquer coisa efetivamente perigosa que a administração
Trump faça. Então não é tão ruim.
Assange: Não publicamos nada diretamente a respeito, mas muita coisa sobre
as partes envolvidas, como eles agiram historicamente – incluindo o presidente
Temer e outras pessoas do seu gabinete. A maioria trata de contatos com a
embaixada americana. Vindo à embaixada americana, trazendo briefings e
tentando fazer lobby para que ela apoie um partido ou outro.
Assange: Na Austrália, meu país natal, houve um golpe que foi esquecido, que
aconteceu de forma muito semelhante ao que ocorreu com Dilma e Temer no
Brasil. Foi em 1975, um processo muito parecido, lá também um partido de
esquerda estava no poder.
Fazia dois anos que estavam no poder e nunca tinham estado tanto tempo antes.
Aí os setores de negócios e de inteligência, aliados aos governos americano e
britânico, se uniram e usaram um truque constitucional para derrubar o governo
e instalar a oposição.
Assange: Sim, as publicações das escutas sobre o Brasil. Nós publicamos que
não apenas a NSA estava espionando determinada companhia ou pessoa, mas
vazamos a cadeia completa de alvos. Portanto, temos a base da atividade de
coleta de dados. Se você pensa na NSA, ela não decide políticas mas faz
espionagem sim. Hackeia satélites, coloca grampos em fibras óticas, etc.
Ele foi à embaixada americana várias vezes pra falar. A mensagem que
publicamos em janeiro é só sobre essas comunicações. Frequentemente a
embaixada retorna contato a respeito de alguma questão e consultam diversos
informantes de partidos diferentes e juntam essa informação.
Ada: E há também há a sensação de que ele está insatisfeito com a política anti-
neoliberal do PT e deseja se alinhar com o PSDB.
Assange: É o que tem acontecido agora. Se você ler o que publicamos em 2006,
verá que a situação política atual está sendo construída há muito tempo. É
interessante ver como o posicionamento das partes, suas visões de mundo e
quem são seus aliados, não mudou tanto, como pode se ver.
Fernando: Você deve saber que o Brasil descobriu enormes jazidas de petróleo
do pré-sal no oceano e isso daria muito dinheiro ao Brasil mesmo o barril a 8
dólares Que interesse internacional existe nisso? Especialmente o envolvimento
do Michel Temer?
Então isso é uma admissão. Por que a embaixada alega que o negócio mais
lucrativo pra o estado brasileiro ocorreria se a Petrobras tivesse esses 30%?
Por que? Porque os chineses só querem o petróleo, eles não estão tão
interessados no lucro. Eles podem chegar mais depressa e ficariam com as
contas equilibradas. Além de aportar um volume maior de recursos ao Brasil.
Assim como outras empresas petrolíferas estatais e outros estados que têm
petróleo, os chineses operam de forma a que sempre possam ganhar licitações
em cima da Exxon, por exemplo, uma empresa muito grande, que tem uma
receita anual de US$ 269 bilhões.
Então, no caso da Petrobras a questão que está posta é a seguinte: que tipo de
estado o Brasil quer ser? Um estado forte. Ou um estado muito fraco, que tem
grandes petrolíferas estrangeiras e multinacionais tomando conta dos seus
recursos naturais?
Talvez você possa ver o que acontece no Brasil por outro ângulo: quais são as
grandes instituições públicas brasileiras, quais as mais fortes? Acho que são o
Exército e a Petrobras. E acho que em comparação, todas as outras instituições
são fracas. Então creio que fragilizar a Petrobras é uma forma de fortalecer os
militares como centro de gravidade da organização do estado. E isso pode ser
um problema.
Duas razões justificam a elevação do pré-sal a assunto prioritário nas políticas
internas: a Petrobras é considerada uma aliada do PT, porque Dilma esteve lá,
colocou gente dela lá e as políticas dela beneficiaram a Petrobras. Por tudo isso,
institucionalmente, a Petrobras sente que seus interesses estão melhor servidos
pelo PT.
Isso faz com que outros partidos queiram reduzir o poder da Petrobras, tirando
os ganhos dela. Uma maneira de trocar favores com os Estados Unidos é facilitar
à Chevron e à ExxonMobil o acesso a partes desse petróleo. Nas mensagens
vazadas por WikiLeaks aparece um desejo constante das petroleiras americanas
de ter o mesmo acesso que a Petrobras tem.
Qual a diferença entre esse tipo de controle e o controle que vem de leis e
acordos? Você tem que nos dar certa porcentagem pra fazer o serviço, você não
pode agir de determinado modo ou sua companhia será multada e pessoas
podem ser processadas.
É isso que tem acontecido nos países em desenvolvimento desde o começo dos
anos 80, talvez desde 70 em países desenvolvidos. Tem sido uma mudança de
como se regulam instituições.
Isso não é pra dizer que ele é um espião pago pelo governo americano. Eu não
sei, mas não existem evidencias que ele seja um espião pago em dinheiro.
Estamos falando de algo mais, falando de construir um boa relação de forma a
ter trocas de informação de parte a parte. E apoio político.
É um material muito interessante ver a posição dela quando fala com Goldman
Sachs, quando ela fala com bancos brasileiros de investimento.
Então eu não sei o que as declarações dela estão refletindo. Ela falava sobre
energia com bancos de investimentos do Brasil, estava defendendo livre trânsito
de produtos de energia.
Fernando Morais: Logo depois da chamada primavera árabe, dois movimentos
de rua cresceram, um no Brasil e outro na Turquia. No Brasil, antes dos protestos
de 2013, a popularidade da presidente Dilma era 80 por cento, após os protestos
foi a 30 por cento. E na Turquia acabou com a tentativa de golpe militar contra o
presidente Erdogan e recentemente o golpe no Brasil. Você vê relação entre os
dois?
Assange: Não. Entre a Turquia e o Brasil, não. Acho que são coisas diferentes.
Talvez o golpe no Brasil fosse populista na sua natureza. Se houvesse uma
questão mais ampla seria relacionada ao uso de mídias sociais, que por um lado
está permitindo surgir uma cultura não industrializada de forma orgânica,
imprevisível e incontrolável, permitindo aos líderes políticos pular intermediários,
falam direto com as massas, tal como está fazendo o Trump.
Ada: No Brasil foi um pouco diferente porque como a esquerda estava no poder,
essas mensagens populistas foram de alguma maneira defendidas pela grande
mídia, que é controlada por cinco famílias. O que vimos em 2013 foi muito
diferente do que aconteceu historicamente no Brasil, uma emergência da direita
que não favorece a própria direita e que é esquerdofóbica, que é um novo
fenômeno no Brasil, é um caso diferente dos EUA de certo modo.
Assange: Populismo genuíno pode sempre se mover contra a autoridade
enquanto se tenha uma mídia que o expresse. Porque a autoridade é percebida
pela sua habilidade de prender pessoas, cobrar impostos e liderar, sob esse
aspecto. E quando uma crítica livre se desenvolve, do tipo mais duro, subjuga a
percepção de autoridade. Aborda de maneira áspera, enfatiza a percepção de
autoridade. Isso aconteceu no caso da Dilma.
Você sabe quando está lidando com um robô? Você sabe quando está lidando
com uma pessoa real? É um sistema que tem alguns humanos e esses humanos
controlam milhares de robôs que são com quem você interage, na verdade. É a
invenção dos “falsos demos”.
Alguém dirá: ok, mas podemos auditar, checar as máquinas pra ver se estão ok,
pode-se se ter uma conexão reserva. Mas a realidade é que governos gostam
de cortar custos ou ficam ineficientes e com o passar do tempo não se audita
tanto.
Quase ninguém pode determinar se uma máquina complexa está de fato fazendo
o que deveria fazer. E quando se trata de votos, da intensa busca pelo poder,
com motivações muito fortes. Uma pessoa comum deveria ser capaz de
entender que a máquina faz o que deveria fazer, mas uma pessoa comum nada
pode entender dessa complexidade. Por isso as urnas eletrônicas são perigosas.
Fernando Morais: Durante a guerra fria o cardeal húngaro Jozsef Mindszenty
viveu 15 anos na embaixada americana em Budapeste, porque ele estava sendo
perseguido pelo regime pró soviético. Por quanto tempo está preparado para
viver na embaixada do Equador?
Nós dizemos que os Estados Unidos apenas deveriam obedecer suas próprias
leis. Não é uma demanda tão grande, mas as pessoas que se opõem dizem:
mesmo que a lei diga que vocês podem publicar, vocês não deveriam.