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A cidade sem-fins: urbanismo disciplinar e urbanidade ab-reativa

Washington Drummond*

O discurso urbanístico disciplinar aciona o conceito de comunidade para fundamentar e


legitimar as intervenções na cidade e encobrir os acordos com o capital (imobiliário, político,
turístico), aplicando os termos vazios de cidadania, revitalização, segurança, ordenamento,
acompanhados da encenação política e midiática da consulta e participação popular. O objetivo
é deter qualquer emergência excremencial, evocando uma concepção territorial e logo, política,
cuja premissa - transformada numa ordem lógica e “euclidiana”- supõe o espaço enquanto
qualitativamente infinito, regular, homogêneo que se abateria sobre “algo” desmaterializado e
indiferenciado. Mesmo um urbanismo bem intencionado, se é que existe, está ancorado em
formas comunitárias de equilíbrio e harmonia, que nos constrangem, ainda hoje, a não
perscrutarmos a desigualdade das formas - que sem dialética ou equilíbrio, vindas do assombro -
saltam para nossa precariedade política e existencial. De onde podemos minar esse terreno
consolidado e elaborar uma teoria sobre o urbano que estaria mais próxima das ironias, da
fatalidade, das formas disruptivas e heterológicas? Para além do viciado teatro das formas,
instigaríamos uma teoria disposta a perder seus limites e longe de simular a diferença,
abandoná-la por uma alteridade radical. Mas o que estaríamos dispostos a perder e a colocar em
jogo? Admitir uma alteridade radical é avançar aos confins da morte, das lacunas, do
desaparecimento. Da impossibilidade da troca a sua irredutibilidade. A cidade torna-se então um
teatro de operações onde nenhum modelo apriorístico pode ser evocado, deslocando-se além de
toda equalização e equilíbrio, esgarçando, perfurando toda perfectibilidade formal derivada dos
processos urbanísticos de homogeneização - sejam discursivos ou no campo das práticas – ou
derivados da emulação e simulação da diferença. A cidade heterológica se lança na vertigem do
totalmente outro que nos abisma num movimento vertiginoso.
Podemos pensar uma teoria-ficção que, sob o signo da anamorfose, procure no
deslocamento de sua perspectiva, evidenciar a emergência da parte maldita nos processos
urbanos ab-reativos. A anamorfose embaralha a percepção, multiplicando as perspectivas e
deformando o que se quer transparente, visível em plena harmonia naturalizada. Desacreditando
a realidade através de associações insólitas, a miragem anamórfica localiza, no campo liso da
cidade, manchas produzidas por traços retorcidos, sobreposições, ranhuras. Nada muito claro e
fixo, mas confusional e precário surgido de uma espécie de economia dos resíduos - por vezes -
abjetos, que rompem, esgarçam. Trata-se da emergência do insólito e das formas singulares,
excremenciais, que provocam horror, por nunca antes terem sido imaginadas. Todos esses
processos são heterológicos, ab-reativos e fazem com que presenciemos intermitentes explosões
singulares as quais deveríamos cotejar. Pois a emergência de surtos entrópicos, excessivos e
disruptivos, na intricada rede das práticas urbanas, provocam fendas, estriamentos, secreções
nas intervenções urbanísticas disciplinarizadoras que intentam normalizar a vida urbana. A
cidade projetada pelo urbanismo disciplinar para a boa forma e o bom uso insurge-se, através de
uma miríade de práticas intensivas e sem nome, revelando-se disforme, deformada – aterradora
mancha anamórfica.
A perspectiva inversa (ou desfocada dos acontecimentos) se inscreve numa mancha
(sopa viral) em que o protagonismo é completamente aleatório e irregular, sendo impossível
uma classificação dos agentes ou ao menos uma impressão detalhada e passível de localização e
esquadrinhamento da trajetória. Sob o impacto desses processos o próprio espaço urbano é um
trompe l´oeil – um engana olho - que desnorteia e impele ao ilusionismo o qual trava a
cartografia ou mapa, impelindo o olhar para um modelo viral e patogênico das práticas urbanas
anônimas: agressividade e surpresa no ataque, destruição da ordem urbana e escape de qualquer
sistema adaptativo idealizado que indique uma acomodação. As práticas ordinárias e anônimas
se caracterizariam por uma atividade pandêmica, cada vez mais acentuada pela capacidade
ultra-rápida de reformulação das ocupações espaciais (alteração antigênica) e da aparência
(variação antigênica) exigindo dos mecanismos de reação e resistência - acoplados aos sistemas
de coação, controle e esquadrinhamento - modificações também incessantes. Não é sempre o
sistema que resiste, em delay, às práticas agressivas e promíscuas que lhes impõem o ritmo de
ação? As estratégias dos agentes aleatórios e suas práticas anônimas nesse caso se precipitam
sem programas, invadindo e criando espaços de ataques em que o cinto disciplinar e
normalizador não tem memória imunológica de proteção. E se, jogando com a dissimulação,
essas práticas conseguem - numa nervura - sitiar o que combatem numa ofensiva produção de
cópias de si mesmos, por outro lado - devido a uma deficiência intrínseca - provoca erros
sucessivos que impedem o espelhamento de si. Diferindo a cada cópia, se replicam diferentes,
promovendo uma mutação inumerável. Entretanto, aquilo que lhes possibilita a manutenção da
luta, a heterogeneidade violenta, também é o que lhes enfraquece: a própria precariedade
constitutiva. A hipervariabilidade descontrolada dessas práticas incidem numa comunidade dos
que não tem comunidade - comunidade impossível – pois, na inclassificável variedade das
formas, não se constituem em identidades que possam se agrupar, nem mesmo na diferença. São
formas constantemente emergentes.
A heterogeneidade absoluta dessas práticas é o campo precário do totalmente outro em
que a própria diferença se apaga pelo nada em comum. O que está em jogo, portanto, não é mais
a diferença, mas o qualquer-um, a forma qualquer, o nenhum não-mapeável e irredutível. A
teoria-ficção associa as práticas do qualquer-um e do nenhum – aparições informes - à parte
maldita da vida urbana, apontando para os rearranjos que impossibilitam daí advir uma cidade-
comunidade. Seja enquanto sonho comunal utópico (da diferença e do urbanismo) ou pesadelo
comunal distópico (da disciplinarização e da biopolítica) a fantasmagoria comunitária se
esfuma. Talvez, então, a nossa trajetória urbana possa no imponderável da cidade sem-fins, e na
benvinda desesperança, ainda nos surpreender...

* Doutor em Urbanismo e Professor do Programa de Pós Graduação em Crítica Cultural


da Uneb

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