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Resumo:
Este artigo reflete sobre o papel de shraddhà no Gìtà. Sua hipótese central é que
shraddhà representa a bússola que, ao apontar para o dharma, vincula a realidade exterior
à interior, constituindo, deste modo, uma espécie de ecologia da mente. Ao retomar o
tratamento do Gita como uma reportagem de guerra, este artigo também considera o texto
como produto de uma experiência de midiativismo.
Palavras-Chave:
Gìtà, shraddhà, midiativismo, ecologia da mente, dialética do sagrado.
Rubens Turci1
I. INTRODUÇÃO
Minha hipótese central é que shraddhà representa a bússola que, ao apontar para o
dharma, vincula a realidade exterior à interior, constituindo, deste modo, uma espécie de
ecologia da mente, capaz de nos orientar, tal qual se deu com Arjuna, em direção à ação
necessária, altruísta e engajada na luta pelo bem comum. Argumento que a tradução,
correntemente usada pela academia, de shraddhà como ‘fé’ acabou por inviabilizar essa
1
Doutorou em “Religious Studies” pela Mcmaster University (2007). Pesquisador Associado ao
Laboratório de Gestão da Comunicação e da Cultura das Organizações FACC/UFRJ, é especialista em
filosofia e religião do periodo épico da India. Com experiência no ambiente empresarial (Rhodia,
CEBRACE e Monsanto) e também acadêmico (McMaster University), dedica-se atualmente ao projeto de
concepção e desenvolvimento do Núcleo de Estudos da India a ser implementado na UFRJ. Como
Pesquisador Associado do PACEM está dando forma à “Dialética do Sagrado”. Seu livro S'raddha in the
Bhagavad-Gita: a magnetic needle pointing toward Brahmanirvana (Saarbruecken: Verlag Dr. Müller,
2008), fundamenta essa questão.
2
Apesar do termo sânscrito ‘Gita’ ser feminino e traduzir-se por ‘a canção’, em Português é comum
referir-se à Gita no masculino, que se traduziria então como ‘o canto’.
0
compreensão, bem como o consequente processo teológico, segundo o qual a
transformação de Arjuna se dá. Demonstro, então que, quando shraddhà é traduzida no
texto do Gìtà por termos que enfocam a experiência de Arjuna sob o ponto de vista
psicológico e religioso, consegue-se eliminar as aparentes contradições do texto e
entender as razões que teriam levado Arjuna a decidir-se por lutar.
O texto e o contexto
O Bhagavad Gìtà é uma Escritura Sagrada que consiste de 700 versos e descreve
o momento do romance polifônico Mahàbhàrata, constituído de aproximadamente
100.000 versos, em que a batalha final está para começar. No Gìtà, Arjuna, o principal
guerreiro dos Pândavas, o clã defensor da ética e das virtudes morais, recusa-se a lutar.
A visão das hostes inimigas, os Kauravas, formada por ex-aliados, amigos e parentes,
desmotiva e deprime Arjuna. Com o decorrer de seu emocionado diálogo com Krishna,
entretanto, Arjuna consegue superar aquele conveniente estado psicológico de apatia e
omissão, típico dos covardes e ashraddadhànas (aqueles desprovidos de shraddhà, ou de
força interior), decidindo-se, então, por assumir sua função militar de defesa do bem estar
social.
Samjaya, o serviçal do rei cego Drhitarashtra, recebe de Vyasa – pai do rei cego e autor
desse imenso poema épico, Mahàbhàrata, – o poder “televisivo”, de modo a poder narrar
para o rei, dali mesmo do palácio real, o que estava se passando no campo de batalha.
3
Onde não estiver explicitado de outro modo, as traduções do sânscrito são minhas.
1
Vyasa vale-se de Samjaya para transmitir ao rei, incapaz e duro de coração, o que este
não poderia de outro modo experimentar. Vyasa vale-se do que hoje compreendemos por
midiativismo, com a própria reportagem do Gìtà funcionando como uma espécie de
conceituação deste midiativismo, fundado em shraddhà e, portanto, num certo controle
sobre o processo de formação da vontade.
Shraddhà representa a força do espírito que nasce de nosso próprio ser (àtman) e,
quando traduzida por termos como ‘força interior’, ‘fervor religioso’ e ‘entusiasmo’,
explica a decisão final de Arjuna de lutar. Eu reconheço que na literatura devocional dos
Purànas o termo shraddhà tem a sua importância ofuscada pelo termo bhakti, uma vez
que as experiências religiosas adquirem nos Purànas um caráter mais dogmático. Nesses
textos a importância da ação costuma ser reduzida e bhakti aparece como o principal
veículo para a salvação. Alguns scholars referem-se as estas formas sectárias dos
Purànas como Bhakti-hinduísmo. Independentemente destes desenvolvimentos
sectários, eu procuro mostrar que o Gìtà é um texto teologicamente mais próximo da
tradição ritualística dos Vedas, que aqueles das correntes posteriores ao momento do
Gìtà, surgidas com os Purànas.
2
III. O TERMO SHRADDHÁ A PARTIR DA ANTIGUIDADE VÉDICA
Segundo Kane (1968-1977), por exemplo, está claro que ‘shràddha’ deriva de
‘shraddhà’. Shastri (1963) é também dessa opinião, conforme se depreende da discussão
que faz sobre a classificação dos ritos de shràddha, conforme presente na obra de
Maxmüller, onde esse vínculo teológico entre shraddhà e shràddha já aparecia de forma
mais ou menos clara. Shastri lembra que Maxmüller enfatizara o fato de shraddhà ser
parte essencial dos rituais funerários, daí serem eles nomeados em conjunto shràddha.
Na verdade, desde o primeiro estudo em língua ocidental sobre os ritos de shràddha,
realizados por D. Urquhart (1857), já se insinuava esta ligação entre o substantivo
shraddhà e o adjetivo shràddha, cunhado para qualificar aqueles rituais cujo componente
essencial deveria ser shraddhà.
Nessa relação entre shraddhà e shràddha parece estar a origem daquilo que mais
tarde se designaria como ´religião’: o fogo (Agni), representando o mediador entre as
esferas do humano e do divino, carregaria, através do ato crematório, as oferendas e o
próprio espírito para o mundo do além, onde o falecido receberia um corpo novo e se
reencontraria com os seus ancestrais. Uma cuidadosa análise dos ritos de shràddha,
portanto, nos remete à compreensão de shraddhà como força interior e entusiasmo
religioso, pois o vínculo emocional resultante destes ritos funerários é designado por
shraddhà.
4
Por exemplo, em Rig Veda II, 26, 3, Rig Veda VI, 26, 6a, Rig Veda VII, 6, 3, Rig Veda VIII, 1 e Rig
Veda IX, 113, 2b-3a.
5
Por exemplo, em Rig Veda IX, 1, 6 e Rig Veda X.113.
3
no cerimonial ritualístico. Representa, então, o centro do pensamento religioso,6
conforme sugere também a passagem a seguir, do hino de Rig Veda X, 151:
Shraddhà acende Agni (deus do fogo, fogo interior, fogo); através de Shraddhà é feita a
oferenda. Em estado do mais alto êxtase, celebramos e glorificamos Shraddhà. Consagre,
Oh Shraddhà, a oferenda; consagre Oh Shraddhà, esta oferenda feita com pura intenção;
abençõe o generoso praticante; atenda a esta minha súplica.
Diz-se que esta deusa reside em todos os seres na forma da boa intenção que habita no
coração7, representando o despertar do estado de ànanda (felicidade divina) e
simbolizando também o processo de iluminação e das revelações divinas8. A deusa
shraddhà possui aqueles que executam os rituais com respeito, manifestando-se na forma
de glória e entusiasmo e preparando o praticante para as ações heróicas. Em suma, estar
possuído por shraddhà significa colocar todo o coração e espírito na execução ritualística
de todas as ações.
A Questão da Continuidade
6
Se esta mitologização de shraddhà coloca-a no centro do pensamento religioso, no Gìtà, conforme
veremos, shraddhà transforma-se naquela noção teológica e ética capaz de definir a pessoa humana.
Shraddhà passa, então, para o centro e essência da experiência humana.
7
Na passagem Rig Veda 10.123.3 diz-se que, quando os Rishis consomem o Soma, eles ascendem ao
universo de rita, pois percebem no simbolismo das visões os insights oriundos do coração (hrida). De
acordo com Rig Veda 6.9.5, a mente é como um pássaro – durante os transes místicos ela voa. A passagem
Rig Veda 10.71 descreve os Rishis como sendo capazes de distinguir entre os discursos em conformidade
com a realidade (rita) daqueles que seriam desprovidos de conteúdo real. O coração, representado como
um pássaro nos Upanishades e no Gìtà, expressa a luz do àtman. Tanto no Gìtà, quanto na passagem Rig
Veda 10.5, Agni, no papel desse pássaro interior, fala através do coração (hrida).
8
Shastri refere-se ao hino a Shraddhà, nos seguintes termos:
In the Rigveda13 a lady named Shraddhà14 of the family of Kanva praises the divinity Shraddhà
(faith) in the following lines: – Agni is kindled by Shraddhà, by Shraddhà is the oblation offered;
with our praise we glorify Shraddhà, who is seated on Bhaga’s head. O Shraddhà, grant the desire
of the doner of the oblation; . . . grant this boon, which I have mentioned to my sacrificers who
solicit happiness. (369-70)
9
Paul Younger (Journal of The American Academy of Religion XXXVI, 1 (March 1968): 75-79) discute a
continuidade em sua resenha de The Destiny of the Veda in India, por Louis Renou, Change and Continuity
in Indian Religion, por J. Gonda, and “Man in the Universe: some Cultural Continuities in India,” por W.
Norman Brown.
10
Além dos autores já citados, ver, por exemplo: ( 1) F. O. Schrader, “The Sacrificial Wheel taught in the
Bhavavadgìtà”(Indian Historical Quarterly, Vol. 5, No. 2, 1929), 173-181; (2) G. Dumézil,
“Quaestiunculae Indo-Italicae, 4-6” (Hommages `a Léon Herrmann, Collection Latomus 44 1960), 315-
329); (3) P. Hacker, “Über den Glauben ind der Religionsphilosophie des Hinduismus” (Zeitschrift für
Missionswissenschaft und Religionswissenschaft 38, 1954), 51-66, e idem, “Sraddha” (Wiener Zeitschrift
fur die Kunde Sudasiens 3, 1963), 151-189. Paul Hacker Kleine Schriften – Herausgegeben von Lambert
4
que ponto o conceito védico de shraddhà teria sido superado por outros designando uma
realidade similar. De um lado, alguns especialistas11 argumentam em favor da idéia da
continuidade, afirmando que o papel estrutural do ritual védico nunca deixou de existir e
conceitos como shraddhà teriam mantido ao longo do tempo um nexo central, que
definiria a sua continuidade. De outro lado, por diversos modos, há aqueles12 que
argumentam em favor da descontinuidade na terminologia religiosa de um período para
outro.
Schmithausen Wiesbaden: Franz Steiner, 1978); e (4) Gouriswar Bhattacharya, “Studies in the concept of
Sraddha in post-Vedic Hinduism” (Berlin: Dissertationsdruckstelle, 1971).
11
Por exemplo, Hara, Hacker, Bolle, Das Gupta, Biardeau, Hiltebeitel, Krishna Sharma e A. Sharma são
partidários da continuidade. Esta questão é minuciosamente discutida por J. Gonda, em Change and
Continuity in Indian Religion (The Hague: Mouton & Company, 1965). Gonda mostra que a continuidade
ritualística representa o amálgama que mantém a tradição viva. Para mais detalhes, há ainda o texto de
Kees W. Bolle, The Persistence of Religion: An Essay on Tantrism and Sri Aurobindo’s Philosophy
(Leiden: E. J. Brill, 1965).
12
Por exemplo, Rao, Bhattacharya, van Buitenen e Renou. Em especial, ver o livro de Louis Renou,
Religions of Ancient India (University of London, Athlone Press, 1953). Ali ele afirma: “Religious
terminology is almost completely transformed between the Veda and the Epic or the Purànas . . . Even in
those cases where continuity has been suggested, as for Rudra-Shiva, the differences are really far more
striking than the similarities” (47).
5
A partir das contribuições de Krishna Sharma (1987), entretanto, pode-se mostrar
que esse equívoco se devia principalmente ao fato dos ocidentais interpretarem o
monoteísmo presente no hinduísmo como um estágio teológico superior ao monismo
primitivo (TURCI, 2007). Vale dizer, só ali pelo final do século XVIII, o Gìtà começa a
receber traduções e interpretações mais em acordo com a crença no argumento da
descontinuidade, conforme presente no Vaishnava-hinduísmo, que define o texto do Gìtà
como um tratado sobre (mono-) teísmo e bhakti.
Desta forma, shraddhà pode ser compreendida no Gìtà como aquela força do
espírito que carrega tanto o ideal védico de atividade (pravritti), quanto o ideal
upanishádico de inatividade (nivritti)13. Dito de outro modo, o Gìtà faz uso do conceito
de shraddhà para realizar a síntese dialética da tese védica da via da ação ritualística
(karma-màrga) e a antítese upanishádica que postula o conhecimento (jnàna-màrga),
13
O entendimento anterior ao Gìtà era de que pravritti representava a tendência que a pessoa manifesta
para agir no mundo, enquanto nivritti denotaria uma espécie de inatividade, usualmente associada ao
sentido de ‘renúncia’ a tudo o que fosse deste mundo. O Gìtà, entretanto, ao definir a disciplina
nishkàmakarmayoga (agir como se não estivesse agindo – sem apegos nem interesses outros que aquela
atitude altruísta que deve nortear toda a conduta humana, e que torna o indivíduo um autêntico canal para a
manifestação do divino) realiza uma síntese dialética destes dois conceitos, trazendo a esfera do sagrado
aqui para este mundo, onde somos todos convocados a militar como missionários do bem estar coletivo.
Em outras palavras, no Gìtà, a ação correta e virtuosa (karma yoga) representa aquele que age (pravritti) no
mundo sem apegos nem interesses – agindo como se não estivesse agindo (nivritti).
6
unicamente, como constituindo a via da liberação final. A novidade do argumento do
Gìtà está, precisamente, nesta jnàna-karma-samuccaya-vada (via que sintetiza
dialeticamente a teoria – jnàna -- e a prática – karma) e que batizei com o nome de
DIALÉTICA DO SAGRADO.
(1) (BhG 3.31). [Krishna:] Aqueles que, plenos de shraddhà e sem ceder às baixas
inclinações, praticam esta minha disciplina [sobre o àtman], alcançam a liberação da
escravidão através de suas ações.
(2) (BhG 4.39). [Krishna:] Quem possui shraddhà alcança a sabedoria. Sendo devoto
desta sabedoria e controlando os sentidos, alcança-se um estado de compreensão que
conduz à paz suprema.
(3) (BhG 4.40). [Krishna:] Entretanto, o ignorante, por não possuir shraddhà e estar com
àtman adormecido (samshayàtmà), é levado à destruição. Para aquele cujo àtman
encontra-se adormecido, não há felicidade, nem neste mundo, nem no outro.
(4) (BhG 6.37). [Arjuna:] Qual o destino daquele que, embora possua shraddhà, não tem
ainda controle sobre as suas inclinações, de modo que sua mente se desvia do yoga e, em
consequência, sua prática não é perfeita?
(5) (BhG 6.47). [Krishna:] De todos os yogues, aquele que me alcança pelo àtman, que
me reverencia repleto de shraddhà, este eu considero o melhor dentre os yogues.
(6-7) (BhG 7.21) [Krishna:] Seja qual for a forma de devoção, desde que efetuada com
shraddhà, eu premiarei o devoto com o fortalecimento de sua shraddhà.
(8) (BhG 7.22) [Krishna:] Logo, eu preencho os desejos daquele que possui shraddhà.
De modo que os desejos atendidos, o são através de mim [àtman].
(9) (BhG 9.3) [Krishna:] Oh vencedor dos inimigos, aqueles que são desprovidos de
shraddhà em relação ao dharma não me alcançam. Eles renascem na via reencarnatória
de samsàra.
(10) (BhG 9.23) [Krishna:] Oh filho de Kuntì, mesmo aqueles que são devotos de outras
divindades, quando o são cheios de shraddhà, eles na verdade prestam reverência a mim
[àtman], ainda que não da maneira mais adequada.
7
(11) (BhG 12.2). [Krishna:] Aqueles que colocam suas mentes em mim [àtman],
reverenciando-me com disciplina e com a mais elevada shraddhà, são considerados por
mim os mais perfeitos em yoga.
(12) (BhG 12.20). [Krishna:] Aqueles devotos que prestam reverência a este dharma
imortal com shraddhà, reverenciando-me [àtman] como o Supremo, me são
extremamente queridos.
(14) (BhG 17.2). [Krishna:] A shraddhà dos seres corpóreos classifica-se em três tipos.
Sua inata natureza pode ser sáttvica, rajásica e tamásica.
(15-7) (BhG 17.3). [Krishna:] shraddhà conforma-se com a natureza essencial de cada
um, Oh Bhàrata. Cada ser humano define-se pela sua shraddhà. Cada um é, na verdade,
sua própria shraddhà.
(18) (BhG 17.13). [Krishna:] O ato ritual que não obedece nenhuma regra, onde nenhum
alimento é distribuído, onde não ocorre recitação de nenhum mantra, onde não se paga a
taxa sacerdotal, realizado sem shraddhà, define-se como tamásico.
(19) (BhG 17.17). [Krishna:] Quando a tripla austeridade [do corpo, da fala e da mente] é
praticada com a mais elevada shraddhà pelas pessoas de auto-controle, que não se
apegam aos frutos de suas ações, ela é considerada sáttvica.
(20) (BhG 17.28). [Krishna:] Oh Filho de Prithà, quando realizada sem shraddhà,
qualquer oferenda ou prática ascética é considerada nula (asat) e não produz frutos, nem
nesta vida, nem na próxima.
(21) (BhG 18.71). [Krishna:] E qualquer pessoa que escute este diálogo com shraddhà e
respeito também será liberada, alcançando os mundos daqueles cujas ações são virtuosas.
8
que Arjuna compreenda como alcançar aquela ecologia interior, oriunda do àtman. O
melhor treino é procurar sempre reagir aos estímulos do mundo exterior com os sentidos
controlados, para que a luz do àtman possa se manifestar (BhG 4.39). Se assim não for, o
resultado é o estado de confusão, que leva à destruição do indivíduo (BhG 4.40). A
premissa implícita nestes dois versos, obviamente, sugerida no contexto do início do
capítulo (BhG 4.1-9), é que o mundo apresenta uma certa consistência ecológica e que
sua lei maior é o princípio de lokasamgraha, ou princípio do bem estar e equilíbrio
universal, definido anteriormente (BhG 3.20 and BhG 3.25). Em suma, de acordo com
BhG 4.39-40, shraddhà resulta de se colocar o “eu pessoal e particular” (ahamkàra) sob
a jurisdição e controle do “eu social e universal” (àtman).
Dessa soberania do àtman, portanto, trata o Gìtà. Isto fica ainda mais claro nos
versos BhG 6.37 e BhG 9.3, onde, mantendo sua essencial natureza védica, shraddhà
representa uma espécie de ascetismo sereno da mente, que se direciona ao àtman. Após o
capítulo 11, shraddhà assume um novo foco, representando um conhecimento teológico
verificado. Fica assim ainda mais claro que agir com shraddhà não significa seguir
nenhum dogma. A ocorrência de BhG 17.1, por exemplo, confirma isto, pois ali
shraddhà não deve, de forma alguma, ser traduzida por ‘fé’. Se o fosse geraria uma
contradição, uma vez ser impossível ter fé e negligenciar as escrituras ao mesmo tempo.
Em BhG 17.2-3, entretanto, shraddhà mostra-se plenamente compatível com a
negligência das escrituras, pois se define como compondo a natureza essencial de cada
um e não como algo imposto de fora. Daí se poder afirma em BhG 17.13, que, na
ausência de shraddhà, não se pode ter o coração ação ritual, descrita em BhG 17.17. Daí
também em BhG 17.28 shraddhà ser apresentada como o critério para a execução de
qualquer atividade mental ou ritualística: qualquer coisa feita com shraddhà tem
existência, mas se feita sem shraddhà torna-se inexistente. A última ocorrência de
shraddhà no Gìtà (BhG 18.71) confirma o que vimos. Shraddhà aparece como condição
suficiente para se trilhar o caminho rumo ao Brahmavirvàna.
V. CONCLUSÃO
9
parâmetro ecológico universal para avaliar a qualidade da ação humana. Minha proposta
de traduzir o termo shrad-dhà (de shrat, coração; e dhà, colocar) como entusiasmo,
transmite esse sentido de alegria espiritual e contentamento que se experimenta quando se
está tomado por aquela consciência ecológica de que o sagrado reside no interior do
coração,‘en-theos’ –em nosso interior, conforme sugere a raíz grega de ‘entusiasmo’14.
Em suma, shraddhà, expressa tanto um querer e saber fazer quanto aquele preciso
sentimento que nasce do coração e nos permite identificar o que é e o que não é que vale
a pena fazer. Quando Arjuna decide-se por lutar, o faz em função dessa sua renovada
shraddhà. E por ser a ação ritual o elemento central do Gìtà, uma vez que Arjuna
resolve-se a agir, o Gìtà se encerra.
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14
Quem faz as coisas de coração, tem crédito. Esta interpretação ainda nos faz recordar que o termo latino
‘credere’ – que se traduz pelo termo ‘creed’ em Inglês, e pelo termo ‘credo’ em Português – pode ser,
etimologicamente, derivado do termo Sânscrito ‘shrad-dhà’, através da primitiva raiz Indo-européia kred-
dhe. O sentido metafórico de ‘fazer de coração’ está presente em ambas variantes, o que prova a sua
origem comum. W.C. Smith exemplifica este ponto numa nota de rodapé com a ajuda da seguinte
passagem bíblica: “Where your treasure is, there will your heart be also” (Mathew 6:21 and Luke 12:34).
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