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ABSTRACT
Inicio este trabalho lembrando que Freud primeiro chamou a interpretação do sonho de
tradução (Übersetzung), em 1900, para depois explicitar que não se tratava de uma
transferência de sentido de uma língua para outra. Foi em O interesse científico da
psicanálise, datado de 1913, que propôs a coabitação de dois termos, que são,
precisamente, deciframento e tradução:
Parece-nos mais justo comparar o sonho a um sistema de escrita [Schriftsystem] que a
uma língua. De fato, a interpretação de um sonho é análoga, do começo ao fim, ao
deciframento de uma escrita figurativa da Antigüidade, como os hieróglifos egípcios.
Em ambos os casos, há certos elementos que não se destinam a ser interpretados (ou
lidos, segundo for o caso), mas têm por intenção servir de ‘determinativos’, ou seja,
estabelecer o significado de algum elemento. ([1913] 1996, p.179-180)
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vínculo com o visual de uma letra é dado por uma imagem acústica que a letra não tem. A
imagem será vista, portanto, pelo que nela falta, e o que falta nela é o que a articula com o
significante. O som, para Freud, não compreende a imagem, e a imagem não compreende
o som. A consistência sonora e a visual se associam e se leem pelo lado do que lhes falta.
No mesmo texto, Freud (p. 69-70) dá um exemplo banal, mas muito claro, sobre
essa não coincidência: o exemplo daquele de quem lê um texto em voz alta. Para essa
pessoa, quando a imagem motora da leitura – o que vê – e a imagem acústica – o que se
escuta ler – acontecem ao mesmo tempo, a contradição entre o visual e o auditivo produz
rapidamente dificuldades de compreensão. A atenção prestada às imagens visuais
apagará por completo o sentido, que deveria vir com as imagens auditivas, verbais. Essa
observação se antecipa à Interpretação dos Sonhos, na qual o modo de figurabilidade
onírica, o visual, é acompanhado de uma ruptura de sentido. E essa ruptura de sentido
traz consequências: um sonho não pode ser compreendido por confiar no que se vê, mas
deve ser lido, e o sentido lhe vem somente graças ao que se ouve do relato desse sonho.
Agrupar teorias de acordo com o que apresentam de pontos comuns é correr o risco de
ignorar justamente o que há de diferente entre elas. Contudo, o que proponho é destacar
esse “em comum” partilhado por diversas definições de tradução, mesmo quando
parecem se colocar em campos opostos. Começo por apontar que a questão se coloca antes
que se proponha uma teoria: parte-se da hipótese de que o caráter específico da tradução
pode ser compreendido (entendido e abarcado) por uma teoria que pode, ao mesmo
tempo, ser operante na prática da tradução. De modo geral, a língua (de partida ou de
chegada) deve ser considerada linguisticamente, ou seja, do ponto de vista gramatical,
semântico, e também como instrumento de comunicação. Sendo assim, tratam da
tradução e de sua prática enquanto processo específico capaz de ser teorizado.
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Faz-se necessário, então, falar de tradução dando à escrita o lugar que lhe
convém. Falo em escrita na trilha aberta por Jacques Lacan (1998, p. 496), quando afirma
que: “a escrita se distingue, com efeito, por uma prevalência do texto, no sentido que
veremos ser assumido aqui por este fator do discurso – o que permite este estreitamento
que, a meu ver, não deve deixar ao leitor outra saída senão a entrada nele, que prefiro
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difícil”. Quando lê o texto freudiano que trata do caso do pequeno Hans, Lacan ([1956-57]
1995) retoma a ingenuidade da criança e remete ao livro dos chistes. Nesse momento,
dirige-se ao leitor: “peço-lhes que se reportem ao texto” (p. 302), e insiste, com Freud, que
para compreender a função do cavalo na fobia do garoto “o caminho não é buscar o
equivalente de cavalo” (p. 313). E Lacan sublinha que Freud não se engana quando
associa wegen (por –causa de; porque) a Wägen (carros)”, e é nesse ponto que o significante
cavalo (Pferd) assume seu valor, e em que uma palavra responde a outra nesse “banho de
linguagem” em que o pequeno Hans está imerso (pp. 324-325). Nesse caminho de Lacan
na sua tradução de Freud, a função dessa prevalência do texto é impedir “o que pode aí
haver de mais frouxo neste jogo entre o imaginário e o simbólico, tão importante para
nossa compreensão da experiência” (p. 425).
Não há nada que impeça que chamemos de tradução a tradução propriamente dita – tal
como proposto por Roman Jakobson (1971) – e também aquilo que a ultrapassa, desde que
se distingam as operações aí implicadas. O que ultrapassa a tradução é menos da ordem
da língua do que da linguagem, é da ordem da escrita. Quanto à língua, ela só pode existir
no espaço de sua estrangeiridade em relação a si mesma, e basta querer tomá-la como
objeto, extraindo dela elementos que possibilitem uma escrita científica, para que se
esbarre, por exemplo, com um real do chiste, da homofonia, que nos mostra que não
existem na língua dois ditos semelhantes. Se inserirmos o desejo no campo da língua,
veremos que língua é lugar das equivocações. Neste sentido, nenhuma língua dá conta de
outra língua, e eis a razão pela qual Lacan reafirma sempre que não há metalinguagem.
Levando em conta o que propõe Jean Allouch (1995) em Letra a letra, o tradutor
pode optar por colocar-se na dependência da escrita. Nesse caso, o objeto dessa leitura
resulta dessa consideração da operação da escrita na leitura. A leitura deve então se fazer
literal? Ler é transliterar? Nas palavras de Allouch (1995, p. 14):
A transliteração não basta para definir um modo de leitura. Ela é uma operação
simbólica articulada a outras duas operações: tradução (imaginário) e transcrição (real).
Assim, a questão dos diferentes tipos de leitura encontrou sua formulação, construindo-
se como aquela dos diversos modos possíveis de articulação dessas três operações.
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Cabe então à tradução liberar dentro de cada texto as forças subversivas de sua
própria estrangeiridade. Aquilo que resta latente em cada obra, só o estrangeiro pode
descobrir, e somente essa passagem para uma língua estrangeira toca esse resto e leva a
obra a sua perfeição. Essa postura evidencia, na língua, sua posição de rede (sempre
precária) de representação de um real que não cessa de não se escrever.
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Sempre que Freud utiliza palavras filosoficamente orientadas, Strachey opta por
termos científicos, como é o caso, por exemplo, de Wohlbefinden, bem estar, que se torna
“saúde” (Gesundheit); e Heilungsgeschichte, história do tratamento, que se traduz por
“recovery”, em vez de “history of healing”. A tradução de Nachträglichkeit
(posterioridade) por “deferred action”, por sua vez, não inclui a noção de retroação. É
assim que, no trabalho sobre O Homem dos Ratos, o verbo aufheben, que pode ser lido
tanto como “anular” quanto por “suspender”, está traduzido como sinônimo de
ungeschehenmachen, não deixar acontecer, “undoing” e “neutralized”. Übersetzungskünste,
artes da tradução (para o psicanalista), transforma-se em “explanatory arts”.
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muitas maneiras diferentes. Por outro lado, o mesmo termo espanhol é usado para uma
variedade de palavras alemãs com sentidos diferentes. Palavras consideradas difíceis de
traduzir, ou que poderiam causar problemas, são deixadas de lado. As datas dos artigos e
a numeração dos capítulos não são respeitadas rigorosamente, e algumas frases chegam
mesmo a expressar o oposto do que Freud disse.
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É preciso que se leve em conta também que grande parte da obra freudiana faz
referência aos efeitos da língua alemã. Freud toma a língua diretamente como objeto,
material indispensável à psicanálise em seus aspectos clínicos, na análise dos sonhos, dos
casos (que escuta e que relata), dos chistes, passando pelas vias das associações, cadeias,
pontos nodais e pontes verbais, o que revela a maneira de operação do inconsciente.
Mesmo assim, segundo os críticos, a leitura de uma tradução literal se torna difícil, porque
torna inevitável a substituição da beleza e do ritmo das palavras de Freud por uma
consistência sistemática.
É o caso também dos inúmeros jogos de palavras em Freud, cuja tradução pelo
sentido colocaria a perder o sentido freudiano que só é passado pela literalidade, como é o
caso de Seine Klagen sind Anklagen, “suas queixas [Klagen] são acusações [Anklagen]”, ou o
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jogo que existe em A Interpretação dos Sonhos ([1900] 1996, p. 135): “Se tomamos como
ponto de partida os trabalhos do sonho e de sua interpretação, nos quais, em seu
desvendamento, coincidem, como o disse Breuer, sua Auflösung ((re)solução de um
enigma) com a sua Lösung (solução)”. Essa seria uma regra de Freud para não se tentar
traduzir o que é da ordem do literal.
A tradução literal é muito mais do que traduzir palavra por palavra. Escolher
traduzir palavra por palavra pode levar, de maneira geral, a uma literalidade
premeditada, compreendida em sua acepção mais estreita, que pretende respeitar até
mesmo a ordem das palavras nas frases em alemão. Na relação entre tradução e escrita
em psicanálise, aquilo que ultrapassa a tradução é o fato de que não é com o sentido que
se detém a fuga do sentido. No trabalho de tradução a transliteração (tal como definida
por Allouch, 1995) está a serviço da ancoragem da tradução na literalidade. Não se deve,
portanto, colocar entre parênteses a operação de passagem e isolar o trabalho de tradução.
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