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1.2 - A PESQUISA:
1 A busca de pistas
A metodologia utilizada por João Luiz Duboc Pinaud para reunir
informações que sustentassem a verossimelhança no romance ficcional
aproxima-se àquela desenvolvida por Carlo Ginzburg, em I Benandanti.
Stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento (1966), editado e
traduzido no Brasil com o título Andarilhos do bem, em 1988. Ao pesquisar
as práticas e os sujeitos praticantes de cultos de fertilidade, no século 16,
numa região localizada ao norte da Itália, Friuli, os chamados andarilhos do
bem defendiam uma estranha crença: a de que os nascidos na membrana
amniótica estariam destinados a combater as bruxas em batalhas anuais,
garantindo, tal vitória, o sucesso das colheitas. Sensível ao distanciamento
de mundos entre os inquisidores e os praticantes de tais cultos de fertilidade,
os Benandanti, Carlo Ginzburg investiga o assunto perseguindo a
perspectiva dos perseguidos, o que resulta em novas possibilidades para a
historiografia. Entre elas as práticas de xamanismo que identificou entre os
Benandanti do Friuli (GINZBURG; CASTELNUOVO; PONI, 1989, p. XI)
Estamos diante de uma nova *maneira de fazer a História que deu os seus
frutos nas décadas de 70 e 80: uma abordagem que privilegia os fenômenos
marginais, as zonas de clivagem, as estruturas arcaicas, os conflitos entre
configurações socioculturais – uma abordagem que procede a partir da
microanálise de casos bem delimitados mas cujo estudo intensivo revela
problemas de ordem mais geral, que põem em causa idéias feitas sobre
determinadas épocas (nomeadamente a impossibilidade de descrença no
século 16 postulada por Lucien Febvre* (Idem, p. X). Como é apresentado
no livro A micro-história e outros ensaios, o programa desenvolvido por
Ginzburg afirma-se num paradigma *indiciário cujas origens na segunda
metade do século 19 são estudadas pelo próprio autor, revelando as
possibilidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte
Giovanni Morone, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra Sigmund
Freud (todos os três formados em medicina, tendo desenvolvido em
diferentes campos a semiologia médica).* (Idem, p. XI). Sem perder de vista
a interlocução com a produção de outros importantes estudiosos,
historiadores, antropólogos, entre outros, Ginzburg assinala que o mais
interessante é *indagar porque se percepcionam como reais os factos
contidos num texto histórico. Este efeito é normalmente produzido por
elementos que tanto podem ser extratextuais como textuais.* A questão em
foco é aquele effet de vérité comum obsessão de historiadores clássicos e
modernos.
O efeito de verdade ou efeito de real é uma das preocupações de
João Luiz Duboc Pinaud, mas a principal é a *de escutar silêncios e recolher
algumas indicações de esperanças* (PINAUD, 2001, p. 15), como afirma em
Nota do autor, em setembro de 1987. Não é desconhecido de Pinaud a
estreita relação entre a forma romance e os conflitos, apresentados em sua
dimensão individual ou social.
No final do século 19, o *affaire Dreyfus* [caso Dreyfus] consagra um outro
status social: o de intelectual, colocando em destaque o poder da escrita e a
função de interventores exercida pelos romancistas, nas palavras de Yves
Reuter, em seu livro Introdução à análise do romance (REUTER, 2004, p.
16). Há, portanto, no gesto de escrever o romance, de Duboc Pinaud, o
engajamento do intelectual não na perspectiva de Sartre, mas na de Edward
W. Said, principalmente no que se refere ao não esquecimento do passado.
A escolha do dramático momento histórico vivido pelos dezesseis negros que
fugiram das fazendas onde eram escravos, em 1838, a resposta violenta e
sem comparações dada pelas autoridades locais, que resulta, dentre outras
punições, com a morte para sem pre (enforcamento e posterior abandono
do corpo insepulto) de Manuel Congo, líder do grupo de escravos, é algo que
não escapa à percepção do historiador que lança mão do romance para
explorar as possibilidades de compreensão das perspectivas dos
personagens envolvidos. Passemos à história, depois ao romance
priorizando a figura da personagem, suas perspectivas compreendidas aqui
na dimensão que lhes dá Yves Reuter: a de valores, gostos, visão de mundo,
sensibilidades e ideologias.