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ANPUH 2008

Quando a história se escreve no romance:


MALVADOS MORTOS
NASCIDOS NO BRASIL

Iza Quelhas (UERJ)

O objetivo deste trabalho é o de analisar as relações entre a história e a


literatura, a partir do livro Malvados mortos (na ficha catalográfica
‘Literatura Brasileira’, sendo a rubrica da coleção é ‘História’; 2001), de
João Luiz Duboc Pinaud. O autor escreveu “a história em forma de
romance”, a trama gira em torno da rebelião ocorrida em 1838, em Paty do
Alferes (RJ), liderada por Manoel Congo, condenado e morto pela ação da
Guarda Nacional. A matéria histórica se apresenta no modo como é
narrada e nas escolhas de consciências narrativas. Numa entrevista,
Robert Darnton, ao explicitar os elos entre história social e história cultural,
afirma que a história é tentativa de entrar em contato com ‘almas mortas’
(DARNTON, 1994), ler o mundo dito ‘real’ na escrita romanesca, modo de
operacionalizar os elos entre história e literatura na trama de Malvados
mortos.
.

Palavras-chave: história e narrativa literária; romance e história social.

1) Introdução – A paz não pode existir sem igualdade


Pergunta investigativa: por que um historiador escolheria o romance,
gênero ficcional, literário, como forma para escrever sobre uma insurreição
de escravos? Sobre a insurreição JLDP estudou fontes comuns aos estudos
de pesquisas de fontes de documentação cartorária, durante o período em
que atuou profissionalmente sob a coordenação do advogado Nilo Batista,
OAB-RJ, em 1994. A partir de um conjunto expressivo de informações, após
a conclusão dos trabalhos, iniciou a escrita do romance. Como hipótese
investigativa, o romance, para o autor e historiador, propicia uma importante
via de conhecimento, permitindo que se utilize a imaginação na construção
de perspectivas tanto para o leitor, quanto para as personagens implicadas
na história, lançando-se numa aventura de produção de sentidos.

1.1 - ROMANCISTA, HISTORIADOR : ATITUDES DE ENGAJAMENTO

Em seu livro Cultura e política, Edward W.Said, no capítulo “O papel


público de escritores e intelectuais”, enfatiza pelo menos três atitudes e
ações decisivas para os tempos atuais: a primeira seria a de “proteger contra
e impedir o desaparecimento do passado, que na rapidez da mudança, da
reformulação da tradição e da construção de blocos simplificados de história,
está no cerne da disputa descrita por Benjamin Barber (...) como a ‘Jihad
contra o McMundo’” (SAID, 2003, p. 38-39). A segunda trata de promover a
reconstrução de áreas de coexistência em “lugar de campos de batalha
resultantes do trabalho intelectual” (Idem, p. 39). A terceira, “nas diversas
discussões sobre justiça e direitos humanos, às quais tantos de nós
consideramos que tenhamos nos unido, haja necessidade de se ter um
componente de nosso engajamento que precise se focar na necessidade de
redistribuição de recursos e que advogue o imperativo teórico contra as
imensas acumulações de poder e capital, que tanto distorcem a vida
humana.” (Idem) Said afirma que a “paz não poderá existir sem igualdade”,
“valor intelectual que necessita desesperadamente de reforço e reiteração”
(Idem).
Tais ações e atitudes estão presentes no labor com que o autor de
Malvados mortos, João Luiz Duboc Pinaud, aliou os resultados de minuciosa
pesquisa cartorial à posterior escrita do romance, praticamente desconhecido
do público leitor, quer pelo fato de seu autor ser um historiador e não autor
de romances, quer pelo fato de o livro não ter encontrado ressonância pelo
seu valor estético foram do âmbito da historiografia. Vamos tentar minimizar
o alheamento e nos voltarmos para esse texto muito bem construído em sua
arquitetura romanesca e que nos coloca diante da história, no enredo que
organiza a trama narrativa, de dezesseis negros “injustiçados num processo
por fuga, fenômeno denominado aquilombamento” (PINAUD, 2001, p. 12).

1.2 - A PESQUISA:

Em termos de pesquisa, João Luiz Duboc Pinaud trabalhou como


coordenador do Programa de Preservação da Documentação Cartorária,
durante a gestão do advogado Nilo Batista, na OAB-Seção RJ, em 1984.
Mas o autor não se ateve à documentação e buscou pesquisar nas fazendas
ainda existentes, ruínas vivas de nossa história, traços, falas, memórias de
sobreviventes que ouviram contar a história do ocorrido nas Vilas de Nossa
Senhora da Conceição do Paty do Alferes e Vassouras, província do Rio de
Janeiro, entre novembro de 1838 e setembro de 1839. A pesquisa reuniu
processos judiciais, atas, ofícios, leis, mas também cartas, jornais, telas,
músicas, cemitérios, fazendas, vilas (Idem, p. 13). O que mobilizou a atenção
de Pinaud, entre outros, foi o empenho de “perseguir e assaltar os rebelados
‘até a completa extinção dos malvados mortos, ou presos’” que se dissipou
como “ato do poder senhoril” (Idem, p. 14). Com a escrita do romance,
gênero literário que é acionado pela forma como constitui um mundo perdido
ou, ainda, como diria Robert Darnton fazer falar as “almas dos mortos”,
principalmente os esquecidos: os escravos nas fazendas cafeeiras da região
de Paty do Alferes, durante o Império, no Estado do Rio de Janeiro.

1 A busca de pistas
A metodologia utilizada por João Luiz Duboc Pinaud para reunir
informações que sustentassem a verossimelhança no romance ficcional
aproxima-se àquela desenvolvida por Carlo Ginzburg, em I Benandanti.
Stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento (1966), editado e
traduzido no Brasil com o título Andarilhos do bem, em 1988. Ao pesquisar
as práticas e os sujeitos praticantes de cultos de fertilidade, no século 16,
numa região localizada ao norte da Itália, Friuli, os chamados andarilhos do
bem defendiam uma estranha crença: a de que os nascidos na membrana
amniótica estariam destinados a combater as bruxas em batalhas anuais,
garantindo, tal vitória, o sucesso das colheitas. Sensível ao distanciamento
de mundos entre os inquisidores e os praticantes de tais cultos de fertilidade,
os Benandanti, Carlo Ginzburg investiga o assunto perseguindo a
perspectiva dos perseguidos, o que resulta em novas possibilidades para a
historiografia. Entre elas as práticas de xamanismo que identificou entre os
Benandanti do Friuli (GINZBURG; CASTELNUOVO; PONI, 1989, p. XI)
Estamos diante de uma nova *maneira de fazer a História que deu os seus
frutos nas décadas de 70 e 80: uma abordagem que privilegia os fenômenos
marginais, as zonas de clivagem, as estruturas arcaicas, os conflitos entre
configurações socioculturais – uma abordagem que procede a partir da
microanálise de casos bem delimitados mas cujo estudo intensivo revela
problemas de ordem mais geral, que põem em causa idéias feitas sobre
determinadas épocas (nomeadamente a impossibilidade de descrença no
século 16 postulada por Lucien Febvre* (Idem, p. X). Como é apresentado
no livro A micro-história e outros ensaios, o programa desenvolvido por
Ginzburg afirma-se num paradigma *indiciário cujas origens na segunda
metade do século 19 são estudadas pelo próprio autor, revelando as
possibilidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte
Giovanni Morone, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra Sigmund
Freud (todos os três formados em medicina, tendo desenvolvido em
diferentes campos a semiologia médica).* (Idem, p. XI). Sem perder de vista
a interlocução com a produção de outros importantes estudiosos,
historiadores, antropólogos, entre outros, Ginzburg assinala que o mais
interessante é *indagar porque se percepcionam como reais os factos
contidos num texto histórico. Este efeito é normalmente produzido por
elementos que tanto podem ser extratextuais como textuais.* A questão em
foco é aquele effet de vérité comum obsessão de historiadores clássicos e
modernos.
O efeito de verdade ou efeito de real é uma das preocupações de
João Luiz Duboc Pinaud, mas a principal é a *de escutar silêncios e recolher
algumas indicações de esperanças* (PINAUD, 2001, p. 15), como afirma em
Nota do autor, em setembro de 1987. Não é desconhecido de Pinaud a
estreita relação entre a forma romance e os conflitos, apresentados em sua
dimensão individual ou social.
No final do século 19, o *affaire Dreyfus* [caso Dreyfus] consagra um outro
status social: o de intelectual, colocando em destaque o poder da escrita e a
função de interventores exercida pelos romancistas, nas palavras de Yves
Reuter, em seu livro Introdução à análise do romance (REUTER, 2004, p.
16). Há, portanto, no gesto de escrever o romance, de Duboc Pinaud, o
engajamento do intelectual não na perspectiva de Sartre, mas na de Edward
W. Said, principalmente no que se refere ao não esquecimento do passado.
A escolha do dramático momento histórico vivido pelos dezesseis negros que
fugiram das fazendas onde eram escravos, em 1838, a resposta violenta e
sem comparações dada pelas autoridades locais, que resulta, dentre outras
punições, com a morte para sem pre (enforcamento e posterior abandono
do corpo insepulto) de Manuel Congo, líder do grupo de escravos, é algo que
não escapa à percepção do historiador que lança mão do romance para
explorar as possibilidades de compreensão das perspectivas dos
personagens envolvidos. Passemos à história, depois ao romance
priorizando a figura da personagem, suas perspectivas compreendidas aqui
na dimensão que lhes dá Yves Reuter: a de valores, gostos, visão de mundo,
sensibilidades e ideologias.

2 Os sinais das raízes da insurreição: da história ao romance

No capítulo intitulado *As raízes do efêmero: a insurreição quilombola de


Vassouras (1838)*, Flávio dos Santos Gomes (Histórias de quilombolas –
Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX)
afirma o quanto ainda restam dúvidas, lacunas a preencher sobre o
acontecimento. Apesar do estudo da documentação a respeito do caso,
entre eles os processos-crimes instaurados e transcritos, a intenção dos
revoltosos permanece desconhecida, assim como as motivações de
Manuel Congo, africano com o ofício de ferreiro, denunciado como
*principal cabeça da insurreição e o único condenado à morte, apesar da
participação ativa e assumida de outro escravo, Epifânio Moçambique,
escravo de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar. Epifânio Moçambique foi
acusado de *comandar a fuga*, no entanto, apesar de ter sido interrogado,
não foi *sequer indiciado pelo crime de insurreição*, cabendo a Manuel
Congo a solidão de uma morte com seu corpo castigado e sofrido
balançando na forca.
Referências Bibliográficas
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[13] PINASSI, Maria Orlanda. Três devotos, uma fé, nenhum milagre.
Nitheroy Revista Brasiliense de Ciências e Artes. São Paulo: Unesp, 1998.
[14] REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. Trad. Angela
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[15] SAID, Edward W. Cultura e política. Org. Emir Sader. Trad. Luiz
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[16] VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1929.
[17] WHITROW, G. J. O tempo na história: concepções do tempo da pré-
história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
[1]Autora

Profa. Dra. Iza Quelhas


Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro – FFP-UERJ
izaquelhas@ terra.com.br
izaq@uerj.br

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