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Deus como postulado da razão

Ao observarmos empiricamente as nossas faculdades no seu exercício (por exemplo, que o entendimento
do homem é discursivo, que as suas representações são, portanto, pensamentos, não intuições, que estas
se sucedem no tempo, que a sua vontade está sempre envolvida numa dependência da satisfação
relativamente à existência do seu objeto, etc., o que não pode haver no Ser supremo); e assim, dos
conceitos pelos quais concebemos para nós um puro ser do entendimento, nada mais resta do que aquilo
que justamente é exigido para a possibilidade de se pensar uma lei moral, por consequência, um
conhecimento de Deus, sem dúvida, mas só sob um aspeto prático. Se por esse meio tentamos alargá-lo
em conhecimento teórico, obteremos um entendimento de Deus que não concebe, mas intui, uma vontade
que se dirige para objetos de cuja existência não depende minimamente a sua satisfação (nem sequer
tenciono mencionar predicados transcendentais como, por exemplo, uma grandeza da existência, isto é,
uma duração que não tem lugar no tempo, enquanto único meio para nós possível de nos representarmos
a existência como grandeza), meras propriedades, de que não podemos fazer-nos conceito algum, útil
para o conhecimento do objeto; aprendemos assim que eles nunca podem utilizar-se para uma teoria dos
seres suprassensíveis e, portanto, não são capazes, por este lado, de fundar um conhecimento
especulativo, mas que limitam o seu uso exclusivamente ao exercício da lei moral. (…)
Após estas observações, é fácil encontrar também a resposta à importante questão sobre se o conceito de
Deus é um conceito pertencente à física (por conseguinte, também à metafísica, enquanto ela contém
unicamente os puros princípios a priori da primeira em sentido geral) ou um conceito atinente à moral.
Explicar disposições naturais ou a sua modificação recorrendo a Deus como autor de todas as coisas não
é, pelo menos, nenhuma explicação física, mas sempre uma confissão de que se chegou ao fim da sua
filosofia, porque se é obrigado a admitir algo de que, aliás, não se possui conceito algum, para se poder
fazer para si um conceito da possibilidade daquilo que se tem diante dos olhos (…)
Mas, mediante a metafísica, a partir do conhecimento deste mundo, é impossível chegar ao conceito de
Deus e à prova da sua existência através de raciocínios seguros (…).
E então manifesta-se (…) a necessidade de admitir um tal ser primordial relativamente à possibilidade
deste bem no mundo, mas — o que é mais notável — algo que faltava inteiramente ao avanço da razão no
caminho da natureza, a saber, um conceito exatamente determinado deste Ser primordial. (…)
Tento, pois, aproximar este conceito do objeto da razão prática e descubro que o princípio moral o admite
somente como possível, sob o pressuposto de um Autor do mundo de suprema perfeição. (…)
Assim, o conceito de Deus é um conceito, que originariamente pertence, não à física (…), mas à moral, e o
mesmo se pode também dizer dos restantes conceitos da razão, dos quais acima tratámos enquanto
postulados da mesma no seu uso prático.

I. Kant, Crítica da Razão Prática, Edições 70, 1989, pp. 156-159.

1. A partir do texto, esclareça a posição de Kant de acordo com a qual a existência de Deus
deve ser um postulado da razão.

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