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Evolucao do Direito Eleitoral brasileiro FeRNanno WHITAKER DA CUNHA Professor da UERJ A Revolugdo Francesa instituiu o sufragio umiversal, como uma de suas mais significativas criagdes politicas, mas esse instituto ficou, prati camente, sem aplicagao até 1848, quando foi retomado peto Governo Provi sério, apés a queda de Luiz Felipe, em virtude, certamente, dos receios que despertava, pois, literalmente, supunha 0 direito a vote de todos os membros da comunidade politica, “LL ne devient réelement qu’en vertu du célébre décret du Gouverne- ment Provisoire de 1848”, relata Chassin (Le Parlement Républicain, pag. 42, Paris, 1879). A lei eleitoral irancesa de 1850 restringia, j4, 0 sufragio universal, estipulando que, para alguém ser eleitor, era necessdrio que residisse por We suai ue (res anos Na comuna, o que devia ser verificado pelo registra de impostos. Modernamente, contudo, como lembra o classico Sampaio Déria, o ins: tituto deve ser entendido come o sufragio concedido a “todos os capazes de votar com acerto”, opondo-se, jé se vé, ao Censo Alto, utilizado no Ympério, em que a situagao econdmica ou social do individuo era pressu- posto de sua capacidade para a votagdo, Em verdade, o sufragio universal é hoje um sufragio limitado, uma vez gue determinadas categorias de pessoas estdo impedidas, por lei, de se alistarem como eleitoras (art. 147 da Const. Bras., que reproduz, mutatis mutandis, a art. 132 da Constituiggo de 1946). ‘A Constituiggo @o Império (art. 92) privava de votar, nas condigées que estipulava, os menores de 25 anos, os filhos-familias, os criados de servir (esses e aqueles, por motivos ébvios), os religiosos e quaisquer que viviam em comunidade claustral (pela unido entre o Trono e o Altar), e os que ndo tinham uma certa renda Iiquida anual, que, segundo a Lei de 19 de agosto de 1846, devia ser calculada em prata, devendo-se notar que o Decreto n? 484, do mesmo ano, acolheu uma corregéio monetéria. 0 critério censitario, sem diivida, era sintoma das influéncias franco-america- nas. Pode ser detectado, entretanto, entre os romanos, e, sob Henrique IV, os ingleses, para votar, deveriam ter rendimento de 40 shillings, como para se candidatar, ainda hoje, devem fazer depésito de 150 libras. Pimenta Bueno (Direito Pdblico Brasileiro @ Andlise da Constituigio do império, pag. 462, ed. de 1958) esclarece que, para votar, era necessario “oferecer A sociedade certas garantias indispensaveis, certa idade, condigfo e pro- ptiedade e, conseqiientemente, certa inteligencia, moralidade e indepen- déncia”. A Constituigao de 1891, estabelecendo a maioridade civica aos 21 anos, excluja do alistamento os mendigos (resqufcio do voto censitario), os anal- fabetos, as pracas de pré, excetuados os alunos das escolas militares do ensino superior (homenageando-os por sua participagio no movimento re- publicano) e os religiosos (esses por anticlerismo). Quanto a essa ultima proibicao, recebida do regime anterior, constava ela, igualmente, da Cons- tituigdo Francesa de 1875, revogando se 0 preceito, em 1905, com a separa- gio do Estado e da Igreja (Vitor Viana, A Constituigéo Francesa, pég. 15, Rio, 1983). A Constituigao da Colémbia (art. 54) proibe aos sacerdotes o acesso aos cargos publicos, convém lembrar. A Constituicéo de 1984, reduzindo a maioridade politica para 18 anos, impedia 0 alistamento dos que nao sabiam ler e escrever, das pracas de pré, salvo as excecées arroladas, dos mendigos e dos que estavam tempo- réria ou definitivamente privados dos direitos politicos (art. 108). Tal foi, ne R, Inf, fogisl, Brosilia a. 16 nm. 63 jul-/sot. 1979 em tese, a orientagao da Carta de 1937 (art. 117), sendo certo que as exclusdes refletem sempre as contingéncias de um momento hist6rico, Antes da lei de 1846, originaria de um projeto dos Deputados Odorico Mendes e Paulo Barbosa 4 Camara (Edgar Costa, A Legislagao Eleitoral Brasileira, pig. 18), possuiamos, unicamente, instrugbes eleitorais baixadas por decretos, Tivemos as primeiras eleigdes gerais, em 1821, mas até 1828 ficamos, na matéria, sob a égide das Ordenacdes, A chamada “Lei dos Circulos”. de 1855, inspirada por Paula Souza e Parana, nao s6 dividia as provincias em cireulos ou distritos eleitorais, impedindo aquelas de serem as tinicas circunscrigdes eleitorais, como inaugurava, em nosso direito, a3 incompatibilidades eleitorais e a elei¢ao de suplentes de deputados. Ar- glilu-se a inconstitucionalidade desse diploma, cuja discussio demorou sete anos, sob 0 argumento de que a “Constitui¢do previra os eleitores de pro- vincia e nao os de distritos”, como lembra Sally de Souza, Acusado foi ele, ainda, de trazer nao poucos problemas, estimulando, entre outras coisas, 0 espirito bairrista c as demonstracdes de prestigio dos chefes locais (Wan- derley Pinho — Cotegipe e seu tempo, pig. 556). A Lei do Tergo, de 1875, conseqiiéncia de um projeto de Joao Alfredo, além de garantic a representacao das minorias, criava o titulo eleitoral ¢ outorgava & Justiga competéncia para conhecer da matéria sobre quali- ficagio de votantes e da validade ou nao das eleicdes de juizes de paz e vereadores. Providéncias tais eram dirigidas, como notou Homero Pinho (Curso de Direito Eleitoral, pig. 41), “apenas ao processo eieitoral, sem qualquer cogitacdo relativa a organizacio de um corpo judiciario especial para sua execucio”, © extenso Deereta n? 3.029, de 1881, conhecido por “Lei Saraiva”, mas elaborado por Rui, de manifesta inconstitucionalidade. por alterar, de forma ordindria, 0 Codigo Politico, anesar das caracteristicas semi-rigidas da Carta Imperial, embora estabelecendo a eleicaéo direta, que até entio desconheciamos, e 2 elegibilidade des nao-catélicos (punha-se termo as elei- oes em igrejas, extinguindo-se as ceriménias religiosas efetuadas antes depois dos pleitos), insistia no anacronismo do voto censitério. Bem observou J. C. Oliveira Torres (A Democracia Coroada, pag. 253, 2? ed.) que 2 “pratica cleitoral do Império nao correspondia aos ideais do século”. Como se sabe, as eleigdes imperiais (como as coloniais) se faziam em dois turnos: no primeiro grau funcionavam os votantes e, no segundo, os cleitores, escolhidos por aqueles, para sufragarem os mandatdrios provin- ciais e nacionais. Pois bem, a “Lei Saraiva”, pela exigéncia do poder aqui- sitivo, fulminava os votantes, confiando o sufragio a um nimero relativa- mente pequeno de ind:viducs, ainda mais que afastava os analfabetos da participacdo politica, cujos direitos politicos nao eram obstaculizados pela Constitui¢do, com todo acerto, Fortalecia-se, por conseguinte, 0 eleitorado urbana, em detrimento do rural. A itltima lei eleitoral do Império, de 1887, modificava 0 processo das eleigdes para integrantes das Assembléias Provinciais e Camaras de Ve- R. Int. legisl. Brasilia readores, mas Eduardo Prado (Fastes da Ditadura Militar no Brasil, pag. 11) informa que medidas eleitorais tomadas pela Republica consta- vam das cogitagdes do Ministério deposto com a Monarquia. A primeira lei republicana foi de 1892; a segunda (Cesdrio Alvim), de 1893, cuidando de inelegibilidades, foi considerada, por Carlos Maximi- liano, “‘o mais engenhoso aparelho de fraude eleitoral que se conheceu no Brasil”. ‘A Lei n° 1.269/1904, proveniente de projeto apresentado pelo Depu- tado Anisio de Abreu e refundido pelo Senador Rosa e Silva, revogava toda a legislagao anterior, apresentando duas novidades: o voto cumulativo a votacao a descoberto (que teve calorosos adeptos na Monarquia, como Tavares Bastos, José de Alencar e outros), embora estatuisse, em regra, a escrutimo secreto. Foi iniludivel, em Rosa e Silva, a influéncia de Caloge- ras, defensor do principio de que o voto deveria ser a descoberto, quando 0 quisesse o eleitor. A Lei de 1916 derrogou a anterior normacio eleitoral, tornando-se conhecida por “Reforma Bueno de Paiva”. © Cédigo Eleitoral de 1932, do qual tratamos longamente em Demo- eracia e Cultura (27 ed., pag. 127), surgiu como um fruto da necessidade de regeneracéo de nossos costumes politicos, proclamada pela Revolucdo de 1930, traidora de muitos de seus objetivos. A comissao encarregada da codificagao era composta de Assis Brasil, Jodo Cabral e Mario Pinto Serva e presidida pelo Ministro da Justica, Mauricio Cardoso. Todos, como se constata, insignes juristas. Das quatro importantes inavagdes (razidas pelo Cédigo Eleitoral ie que auxiliavam a ascensao da média burguesia): Representacao Proporcio- nal, Voto Feminino, Voto Secreto (tinhamos, apenas, 0 voto fechado) e Jus- tiga Eleitoral, as duas ultimas devem ser creditadas ao ardente evangelho patridtico de Pinto Serva, também um jornalista brilhante. Cumpre esclarecer, todavia, que os Estados do Ceard, pela Constituigio de 1926, e Minas Gerais, por foral ordinario de 1927, se anteciparam na adogado do voto secreto, destacando-se, na primeira unidade federativa, os trabalhos prezcrsores de Matos Peixoto. sendo interessante referir que essa espécie de voto, usado pela primeira vez na Australia, embora preconizado na Inglaterra por Charles Grote, foi Gladstone (1872) quem o fez adotar, sob a alegacao de que o sigilo gozado pelos jurados deveria estender-se aos eleitores. A Lei n? 48/35, que modificou o estatuto anterior, ndo chegou a re- gular nenhuma eleigdo federal, mergulhando 0 pais no obscurantismo do Estado Novo. De 28 de majo de 1945, foi o Decreto-Lei n® 7.586, conhecide por “Lei Agamenon Magalbdes’, elaborado por uma comissao integrada por Hahnemann Guimaraes, Vicente Piragibe e José Linhares, entre outros, que dew énfase & qualificacdo ex officio, para improvisar um eleitorado, 116 TR ats Hagith, Bro a. 16 nm. 63 jul./eae, 1979 absurdo, diga-se de passagem. uma vez que a Justiga Eleitoral ndo podia “examiner, com cuidado indispensavel, as condicdes fundamentais de cada inscrigdo” (Rui Bloem — A Crise da Democracia @ a Reforma Eleitoral, pag. 21). © Cédigo Eleitoral de 1950, inspirado pelo Decreto-Lei_n? 7.586, foi completado e alterado por leis importantes (n.* 2.550/55, 4.115/62 e 4150/62). Vigora 0 Cédigo Eicitoral de 1967 (Lei n° 4.787) e legislagao comple- meatar, nela destacando-se a Lei n? 4.961/66. Nao deve ser esquecido o fracasso da apuracio das eleigdes de 15 de novembre de 1970, em virtude da transformagao das mesas receptoras em mesas apuradoras, almejando a obtencao de pronto resultado, nas cida- des de Sao Paulo e Rio de Janeiro. Como expusemos em Politica e Liberdade (pigs. 185 e segs.), 0 sistema falhou completamente. Os mesarios nao estavam intelectualmente prepa- rados para a contagem de votos, que envolvia decisao em materia juridica e a elaboracdo de complexos mapas e boletins, 0 que, alids, era de se prever, dando-nos uma inolvidavel experiéncia eleitoral. Duas proibigdes de alistamento merecem consideragdes particulares indo nos impressiona a restrigao de Henrique Coelho — A Organizagao Politica do Estado de Sao Paulo, pig. 30, SP, 1910 — sobre a incapacidade eleitorai dos menores, propondo que um representante exerga, por eles, o direito de sufragio): a dos analfabetos e a das pracas de pré, sendo certo que os inalistaveis so inelegiveis, de acordo com o att. 150 da Constituicao, que especifica os casos de inelegibilidade absoluta e relativa, conscante a classificacao de Nizard. Alei militar do império alemao (art. 119) proibia o voto dos membros efetivos das Forgas Armadas, permitido pela Constituigao soviética. A Constituigao de 1824 nao exclufa as pragas de pré, Foi a lei de 1846, de duvidosa constitucionalidade, que as privou dos direitos politicos. A Republica abriu exceco aos alunos das escolas militares de ensino supe- rior, por influéncia positivista, como pleito “aos mocos que foram o brago fortissimo” da proclamagao do novo regime, como consta dos Anais. Diz-se que a disciplina militar sofreria com o alistamento das pracas de pré, mas cremos que é preciso estimular o soldado-cidadao, politizado bastante para levar a sua contribuigdo civica a Nacao, sem qualquer coacio de superiores hierdrquicos. Nem 0 Exército € partido politico, ou grupo de presséo, nem os quartéis sio Iugares para manobras politicas. Defen- demos, puis, para as pracas de pré ‘soldados e cabos) 0 direito de votar, como produto de um amadurecimento conscienciolégico. Relatdrio da UNESCO define o alfabetizado como a nessoa que sabe Jer com compreensao e escrever uma narrativa simples e curta sobre a vida quotidiana, o que evita a fraude da memorizacéo do nome e de pala- vras e de sua reprodugao mecanica. O saber ler e redigir, com entendi- mento, ¢ o que caracteriza o alfabetizado, mas esse desconhecimento, em tese, nao é razio para que se negue o voto ao analfabeto, pois, hodierna mente, os dados informativos podem ser ministrados pelo radio, pela tele- visdo, pelo cinema, por exposigées e conferéncias, sendo inveridico afir- mar-se que um individuo, s6 por ser analfabeto, ndo tem senso, discerni- mento, personalidade e patriotismo. Oliveira Viana (Instituigges Politicas Brasileiras, 33 ed., pag. 155) pondera muito bem que “o analfabetismo tem tmuite pouco de ver com a capacidade politica de um povo”. Carlos Magno, sabe-se, ilustrou-se ja como imperador. Em_ 1822 permitiu-se, exnressamente, o voto dos analfabetos; embora a Constituigéo monarquica silenciasse a respeito, a sua omissio, na ver- dade, significava autorizacao. descabendo razao aqueles que julgam na con- sagracao do censo uma condenagdo implicita dos analfabetos, que pode- riam, alids, ter capacidade econémica, mas é verdade que, no segundo grau de votagao, de acordo com o sistema entdo usado, os eleitores eram alfa betizados. Na primeira Constituinte Republicana, os positivistas lutaram pelo voto do analfabeto, congruentes com sua doutrina. Foi a Republica, em nome do liberalismo, que impediu seu alistamento, embora a Lei n? 35/1892 resguardasse 9 direito dos que vinham do alistamento imperial. Os inalistéveis de que tratamos, além de contribuirem para a vida econdmica do Estado, participam indiretamente da vida politica, pois sao computados como habitantes, para a fixacio do numero de deputados. ser- vindo para uma coisa e nao servindo para a outra. Ha no Brasil, com efeito, dissociagao entre Poder e Sociedade, tendo José Honério Rodrigues acentuado que “nenhuma minoria se mostrou, em toda a América Latina, tio irresponsivel como a nossa em oferecer ao povo a oporiunidade ampla ¢ nacional de aprender por metos educativos” CConcillagse ¢ Reforma no Brasil, pag. 160) ¢ J, J. Fonseca Passos (Con. sideragées sobre o Sistema Eleitoral Brasileiro, pag. 53) denunciado o des- cumprimento, por parte do Estado, de preceito constitucional. “A légica do regime manda que o voto seja estendide ao analfabeto”, assevera Vitor Nunes Leal. Pré e contra podem ser arrolados dezenas de autores interessados por essa apaixonante questio. Defendemos o voto do analfabeto, inicialmente, em eleicbes muni- cipais, para as quais esta ele meihor preparado, Em muitos paises, entre- tanto, ndo ha qualquer restrigao (Italia, URSS e Inglaterra entre eles, bem como algumas unidades federativas dos Estados Unidos). Nao preconizamos a aceleracdo do jogo evolutive sécio-politico, mas sim que nao se Ihe anteponham barreiras a servico de um superado egoismo e de um individualismo ja desprestigiado, mesmo porque os institutos per- duraveis estarao acima das contingéncias histéricas. 16m. 63 juh/set, 1979

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