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JEAN BAUDRILLARD

A Troca Simbólica
e a Morte

TRADUÇÃO:
MARIA STELA GONÇALVES
TEMAS DE ATUALIDADE ADAIL UBIRAJARA SOBRAL
I. A cultura pós-moderna, Steven Connor, 3a ed.
2. A condição pós-moderna, David Harvey, 5a ed.
3 Teoria e valor cultural, Steven Connor
4. Critica da comunicação, Lucien Sfez
5. A saúde perfeita - Crítica de uma nova utopia, Lucien Sfez
6. Teologia e teoria social, John Milbank
7. Nova Era - a religiosidade do pós-moderno, Aldo N Terrin
8. A troca simbólica e a morte, Jean Baudrillard
9. 0 self semiótico, Norbert Wiley
10. As fontes do self, Charles Taylor
)4.
Ed kilos Loyola

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Thu lo original:
L' échange symbolique et la mort
Éditions Gallimard, 1976

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Índice
Le1.51

) A I
° CPD

Editoração Eletrônica:
Maurelio Barbosa O FIM DA PRODUCÃO
A Revolução Estrutural do Valor
15
O Fim da Produção
19
A Economia Polftica como Modelo de Simulação 43
O Trabalho e a Morte
55

II
A ORDEM DOS SIMULACROS
Edições Loyola As Trôs Ordens de Simulacros
Rua 1822 n° 347 - Ipiranga 63
O Anjo de Estuque
04216-000 São Paulo, SP 65
O Autõmato e o Robõ
Caixa Postal 42.335 - 04299-970 Sao Paulo, SP 69
O Simulacro Industrial
(011) 6914-1922 71
A Metafisica do Código
FAX: (011) 63-4275 75
O Tátil e o Digital
Home page: www.ecof.org.br/loyola 81
O Hiper-realismo da Simulação
e-mail: loyola@ibm.net 93
Kool Killer ou a Insurreição pelos Signos
99
Obra publicada com o apoio do Ministério Frances da Cultura
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra
III
pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer for-
ma elou quaisquer meios (eletrônico, ou mecânico,
A MODA OU A MAGIA DO CODIGO
incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qual- Frivolidade do já conhecido 111
quer sistema ou banco de dados sem permissão escrita A "Estrutura" da Mcsda
da Editora. 115
A Flutuação dos Signos
119
ISBN: 85-15-01441-6 A "Pulsão" de Moda
121
O Sexo Modificado
@ EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996. 125
O Insubversível
129
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IV
0 CORPO OU 0 OSSUÁRIO DE SIGNOS
0 Corpo Marcado 133
A Nudez Segunda 139
0 "Strip-Tease" 143
0 Narcisismo Dirigido 149
A Manipulação Incestuosa 153
Mode los do Corpo 155
"Phallus Exchange Standard" 157
Demagogia do Corpo 161
AO logo 165
0 Acougueiro de Chuang-Tsé 167

V
A ECONOMIA POLITICA E A MORTE
A Extradicão dos Mortos 171
A Troca da Morte na Ordem Primitiva 179
A Economia Política e a Morte 195
APulsão de Morte 201
AMorte ern Bataille 209 já não existe troca simbólica no nível das formações sociais modernas,
Minha Morte em toda parte, Minha Morte que Sonha 215 não como forma organizadora. Claro que o simbólico as obseda
como sua própria morte. Precisamente porque ele não rege mais a
VI forma social, elas conhecem dele apenas a obsessão, a exigencia incessante-
A EXTERMINAÇÃO DO NOME DE DEUS mente barrada pela lei do valor. E se certa idéia da Revolução a partir de Marx
tentou abrir para si um caminho por meio dessa lei do valor, ela há muito
0 Anagrama 249 voltou a ser uma Revolução de acordo com a Lei. A psicanálise, por sua vez,
0 Imaginário da Lingüística 269 gira em torno dessa obsessão, mas a afasta no mesmo movimento ao circuns-
0 Witz ou o Fantasma do Econõmico em Freud 279 crevé-la num inconsciente individual; ela a reduz, sob a Lei do Pai, a uma
obsessão da castração e do Significante. Sempre a Lei. Contudo, para além das
topografias e economias, libidinais e polfticas, todas gravitando ao redor de
uma produção, material ou desejante, na cena do valor, há o esquema de uma
relacão social fundada na exterminacão do valor, cujo modelo para nós remete
As formacões primitivas, mas cuja utopia radical comeca a explodir
lentamente
em todos os níveis da nossa sociedade, na vertigem de uma revolta que já não

- -
tem relacão com a revolucão nem com a lei da história, nem sequer mas
isso demorará mais a aparecer, porque seu fantasma é recente com a "libe-
ração" de um "desejo".
Nessa perspectiva, outros eventos teóricos assumem importancia capital:
os anagramas de Saussure, a troca/dádiva de Mauss - hipóteses mais radicais,
a longo prazo, de que as de Freud e de Marx, perspectivas censuradas precisa-
mente pelo imperialismo das interpretacões freudiana e marxista. 0 anagrama
ou a troca/dádiva não constituem episódios curiosos situados nos confins das
disciplinas lingüísticas e antropológicas, modalidades subalternas com relação
As grandes máquinas do inconsciente e da revolução.Vernos perfilar-se aí
uma
mesma grande forma da qual marxismo e psicanálise talvez não façam senão

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A TROCA SIMBOLICA E A MORTE A TROCA SIMBOLICA E A MORTE

derivar, por desconhecimento, uma forma que remete lado a lado economia de simulação. Aconteceu exatamente o mesmo com o dispositivo anterior da lei
política e economia libidinal - criando a partir daqui, a partir de agora, um
além do valor, um além da lei, um além da repressão, um além do inconscien-
natural do valor, reavaliado como referencial imaginário (a "Natureza") pelo siste-
ma da economia polftica e da lei de mercado do valor: é o valor de uso, que tem
te. Essas são as coisas que acontecem. uma existencia fantasma no coração do valor de troca. Mas este último é ,por sua
Há apenas um evento teorico que é para nós da mesma ordem de grandeza vez, na espiral seguinte, reavaliado como álibi na ordem dominante do código.
desses: a proposição da pulsão de morte por Freud.Sob a condição de radicalizá- Cada configuração do valor é reavaliada pela seguinte numa ordem de simulacro
-la contra o próprio Freud. Nos três casos,seja como for, trata-se de uma referência superior. E cada fase do valor integra ao seu dispositivo o dispositivo anterior
contrariada: é preciso jogar Mauss contra Mauss, Saussure contra Saussure, Freud como referencia fantasma, referéncia fantoche, referencia de simulação.
contra Freud. É preciso opor o princípio de reversão (contradádiva) a todas as Uma revolução separa cada ordem da ordem ulterior: trat-a-se, na verdade,
interpretações economicistas, psicologistas ou estruturalistas as quais Mauss abre das únicas revoluções verdadeiras. A 3' ordem é a nossa; ela já não é da ordem
caminho. É preciso levantar o Saussure dos Anagramas contra o da lingüística e do real, mas do hiper-real, e é só af que teorias ou práticas, elas mesmas
mesmo contra sua própria hipótese restrita sobre os Anagramas. É preciso erguer flutuantes e indeterminadas, podem atingi-lo e golped-lo até a morte.
o Freud da pulsão de morte contra todo o edifício anterior da psicanálise, e As atuais revoluções se inscrevem, todas elas, na fase imediatamente an-
mesmo contra a versão freudiana da pulsão de morte. terior do sistema.Todas se armam de uma ressurreição nostálgica do real sob
A esse preço paradoxal, que é o da violência teórica, vemos as três hipóteses todas as suas formas, isto é,/simulacros de segunda ordem: dialética, valor de

--
descreverem em seu campo respectivo mas precisamente essa especificidade uso, transparencia e finalidade da produção, "libertação" do inconsciente, do
se abole na forma geral do simbólico um princípio de funcionamento sobera- sentido "reprimido" (do significante ou do significado chamado desejo) etc.
namente exterior e antagônico ao nosso "princípio de realidade" econômico. Todas essas libertações dão a si mesmas como conteúdo ideal os fantasmas
Reversibilidade da dádiva na contradádiva, reversibilidade da troca no que o sistema devorou em suas sucessivas revoluções e que são sutilmente
sacrifício, reversibilidade do tempo no ciclo, reversibilidade da producão na ressuscitados por ele como fantasmas de revolução. Todas as libertações não
destruicão, reversibilidade da vida na morte, reversibilidade de cada termo e passam de transição para a manipulação generalizada. A própria revolução
nada mais deseja dizer ao estágio dos processos aleatórios de controle.
domínios, a da reversibilidade, da reversão cíclica, da anulacão
em toda parte, põe fim à linearidade do tempo, à da
-
valor de língua no anagrama: uma única grande forma, a mesma em todos os

linguagem,
aquela que,
à das trocas
Às máquinas industriais correspondiam as máquinas da consciencia, racio-
nais, diferenciais, referenciais, funcionais, históricas. Às máquinas aleatórias do
econômicas e da acumulacdo, a do poder. Em todos os lugares, ela assume código correspondem as máquinas aleatórias do inconsciente, não-referenciais,
para nós a feicão da exterminacão e da morte. É a forma mesma do simbólico. transferenciais, indeterminadas, flutuantes. Mas o inconsciente também entrou no
Nem mística nem estrutural: inelutável. jogo: ele há muito perdeu seu princfpio próprio de realidade para vir a ser simu-
0 princípio de realidade coincidiu com um estágio determinado da lei do lacro operacional. No ponto exato em que seu princfpio de realidade psíquica se
valor. Hoje, todo o sistema oscila na indeterminacão, toda realidade é absorvi- confunde com seu princfpio de realidade psicanalítica, o inconsciente se transfor-
da pela hiper-realidade do código e da simulação. É um princípio de simulacão ma, assim como a economia polftica, num modelo de simulação.
que nos rege doravante em lugar do antigo princípio de realidade. As finalida- Toda a estratégia do sistema está nessa hiper-realidade de valores flutuan-
des desapareceram; são os modelos que nos geram. Já não há ideologia; há tes. lsso ocorre tanto com o inconsciente como com as moedas ou teorias. 0
apenas simulacros. Trata-se, pois, de toda uma genealogia da lei do valor e dos valor reina segundo a ordem inapreensfvel da geração pelos modelos, de acor-
simulacros que é preciso restituir para apreender a hegemonia e o encanta- do com o encadeamento indefinido da simulação.
mento do sistema atual - revolução estrutural do valor. E é nessa genealogia
polftica: ela aparece, então, como um simula-
A operacionalidade cibernética, o código genético, a ordem aleatória das
mutações, o princfpio de incerteza etc.: tudo isso sucede a uma ciencia determi-
que é preciso repor a
cro de 2' ordem, da mesma
economia
forma
de produção, real de significação, na
que os que só põem em jogo o real
consciencia ou no inconsciente.
- real nada, objetivista, a uma visão dialética da história e do conhecimento. A própria
crftica teórica, assim como a revolução, faz parte dos simulacros de 2' ordem,
0 capital não é mais da ordem da economia politic& ele usa a economia po- aplicando-se o mesmo a todos os processos determinados. A instalação de simu-
Mica como modelo de simulação.Todo o dispositivo da lei de mercado do valor lacros de 3' ordem deixa tudo isso num plano secundário; e, contra eles, de nada
absorvido e reciclado no dispositivo mais vasto da lei estrutural do valor, entran- adianta querer ressuscitar a dialética, as contradições "objetivas" etc.: fazé-lo seria
do assim nos simulacros de 3a ordem (ver adiante). Logo, garante-se à economia uma regressão polftica sem futuro. Não combatemos o aleatório a golpes de fina-
polftica uma eternidade segunda, no âmbito de um dispositivo em que ela perdeu lidades, não combatemos a dispersão programada e molecular a golpes de toma-
toda determinação própria, mas no qua] conserva sua eficácia como referencial das de consciencia e de superações dialéticas, não combatemos o código a gol-

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A TROCA SIMBÓLICA E A MORTE A TROCA SIMBOLICA E A MORTE

pes de economia política nem de "revolução".Todas essas velhas armas (e até as


da distorção que assombra os signos duplicados do código, é preciso ir mais
que vamos procurar nos simulacros de la ordem, na ética e na metafísica do
longe do que o sistema na simulação. E preciso lançar a morte contra a morte
homem e da natureza, no valor de uso e em outros referenciais de libertação) são
gradativarnente neutralizadas pelo sistema geral, que é de ordem superior Tudo o
- tautologia radical.Fazer da própria lógica do sistema a arma absoluta.Contra
um sistema hiper-realista, a única estratégia é patafísica, de algum modo "uma
que se insere no espaço-tempo desfinalizado do código ou tenta nele intervir
ciéncia das soluções imaginárias", isto é, uma ficção cientffica do retorno do
desconectado de suas próprias finalidades, desintegrado e absorvido trata-se sistema contra si mesmo, no limite extremo da simulação, de uma simulação
do efeito bem conhecido de assimilação,de manipulação,de ciclagem e reciclagem
reversível numa hiperlógica da destruição e da morte'.
em todos os níveis."Todo elemento de contestação ou de subversão de um siste-
Uma reversibilidade minuciosa,eis a obrigação simbólica. Que cada termo
ma deve ser de um tipo lógico superior" (Anthony Wilden,Systeme et Structure).
seja ex-terminado, que o valor seja abolido nessa revolução do termo sobre si
tuto igual-
Logo, aos simulacros de 3' ordem é preciso opor ao menos algo que tenha esta-
e isso é possível? Haverá uma teoria ou uma prática subversivas
mesmo - essa é a única violéncia simbólica equivalente e triunfante diante da
violéncia estrutural do código.
porque mais aleatórias que o próprio sistema? Uma subversão indeterminada, que
À lei de mercado do valor e da equivaléncia correspondia uma dialética
seja para a ordem do código o que a revolução foi para a ordem da economia
da revolução.À indeterminação do código e ã lei estrutural do valor só corres-
polftica? Podemos combater o ADN? Certamente, não a golpes de luta de classes.
ponde a reversão minuciosa da morte.
Ou inventar simulacros de uma ordem lógica (ou ilógica) superior
ordem atual, além da determinação e da indeterminação - além da 3'
seria ainda estar na
ordem dos simulacros? Talvez a morte, e só ela, a reversibilidade da mode, seja
A bem dizer, não resta coisa alguma sobre que se fundar. Não nos resta
senão a violéncia teórica. A especulação sobre a morte, cujo único método
a radicalização de todas as hipóteses. Mesmo o código, o simbólico, são ainda
de uma ordem superior à do código.Só a desordem simbólica pode irromper no
código.
termos simuladores -
deverfamos poder retirá-los um a um do discurso.
Todo sistema que se aproxima de uma operacionalidade perfeita está perto
da ruína. Quando diz "A é A' ou "dois mais dois são quatro", o sistema se

subversão imediata e provável -


aproxima ao mesmo tempo do poder absoluto e do ridículo total, isto é, da
basta encostar o dedo para fazé-lo desmoro-
nar. Conhecemos a força da tautologia quando duplica essa pretensão do sis-
tema à esfericidade perfeita (o barrigão de Ubu).
A identidade é insustentável: é a morte porque fracassa em inscrever sua
própria morte. E o caso dos sistemas fechados ou metaestabilizados, funcionais
ou cibernéticos, aos quais espreita a derrisão, a subversão instantãnea, num
L A morte é sempre, a um s6 tempo, tanto aquilo que nos espera ao
termo do sistema como
passe de mágica (e não mais por meio de um longo trabalho dialético), porque para designar a
a exterminação simbólica que espreita o sistema mesmo, Não há duas palavras
toda inércia do sistema é lançada contra ele. É a amblvaléncia que espreita os finalidade da morte interna ao sistema, aquela que se inscreve ern toda parte na sua lógica ope-
de
sistemas mais acabados, os que lograram divinizar seu principio de funciona- racional, e a contrafinalidade radical, exinscrita no sistema enquanto tal, mas que o obseda
s6 se impõe nos dois casos. Essa ambigüidade pode ser
mento, como o Deus binário de Leibniz. 0 fascfnio que eles exercem, por ser todo lugar: o mesmo termo, morte, e ele,
feito de uma profunda negação, como no fetichismo, é reversível num piscar de lida já na pulsão de morte freudiana. Não se trata de uma ambigüidade.Isso traduz simplesmente
a proximidade entre a perfeição realizada e o colapso imediato do sistema.
olhos. Donde sua fragilidade, que aumenta na medida mesma de sua coerén- 2.A morte nunca deve ser entendida como experiência real de um sujeito ou de um corpo,
mas como uma forma - eventualmente a de uma relação social - na qual se perde
cia ideal. Esses sistemas, mesmo quando se fundam na indeterminação radical a determinação
obrigação de reversibilidade que leva à extinção tanto a determinação como
(a perda do sentido), tornam-se a vítima do sentido. Eles vém abaixo sob o do sujeito e do valor.É a
vinculadas nas oposições regidas por regras,e se une
a indeterminação. Ela acaba com as energias
peso de sua monstruosidade, como os monstros do carbonífero, e se decom- nisso as teorias dos fluxos e intensidades, libidinais ou esquizo. Mas a desvinculação
das energias
põem imediatamente.Trata-se da fatalidade de todo sistema destinado, pela sua é a forma mesma do sistema atual, a de uma deriva estratégica do valor.
0 sistema pode se
ramificar, se desramificar todas as energias liberadas voltam a ele um dia: foi ele
que produziu
própria lógica, à perfeição absoluta e, portanto, ao eclipse total; ã infalibidade
de intensidade. 0 capital é um sistema energético e intenso. Disso
absoluta e, portanto, ao colapso inapelável: todas as energias vinculadas visam o próprio conceito de energia e
mesma do
decorre a impossibilidade de distinguir (Lyotard) a economia libidinal da economia
a sua própria morte. Eis por que a única estratégia é catdstrofica e de modo sistema (a do valor) -a impossibilidade de distinguir (Deleuze) a esquizo capitalista
da esquizo
revolucionária. Porque o sistema é o mestre: ele pode, como Deus, vincular e desvincular
nenhum dialética. E preciso levar as coisas ao limite, onde, naturalmente, elas as
energias; o que ele não pode fazer (e que é aquilo a que ele também não pode
escapar) é ser
se invertem e se desfazem. Como é no auge do valor que se está mais perto da a desvincula-
reversfvel. 0 processo do valor é irreversível. E poisa reversibilidade mesma, e não
ambivaléncia, como é no auge da coeréncia que se está mais perto do abismo
ção, nem a deriVa,--que j-rnditarpárd éTe-. 0 termo "troca" simbólica não quer dizer outra--coisa.
-

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A Revolução Estrutural
do Valor

Saussure deu duas dimensões a troca dos termos da lingua, assimilan-


do-os a moeda: uma moeda deve poder ser trocada por um bem real
de um dado valor e, por outro lado, deve poder ser posta em relação
com os outros termos do sistema monetário. É a este Ultimo aspecto que ele
reservava, cada vez mais, o termo valor: a relatividade, interior ao sistema geral
e feita de oposições distintivas, de todos os termos entre si - ern oposição a
outra definição possivel do valor: a relação de cada termo com aquilo que
designa, de cada significante com seu significado, bem como de cada moeda
individual com aquilo que se pode obter em troca dela. 0 primeiro aspecto
corresponde a dimensão estrutural da linguagem; o segundo, a dimensão fun-
clonal. As duas dimensões são distintas, rnas articuladas, digamos que atuam
juntas e que são coerentes - dotadas da coerência que caracteriza a configu-
ração "clássica" do signo lingtiístico, aquela colocada sob a lei de mercado do
valor, em que a designação aparece sempre como a finalidade da operação
estrutural da lingua. É total o paralelo, nesse estágio "clássico" da significação,
com o mecanismo do valor na produção material, tal como analisado por
Marx: o valor de uso funciona como horizonte e finalidade do sistema do valor
de troca -o primeiro qualifica a operação concreta da mercadoria no consu-
mo (momento paralelo ao da designação pelo signo), o segundo remete a
intercambiabilidade de todas as mercadorias entre si sob a lei de equivalencia
(momento paralelo ao da organização estrutural do signo) - os dois se arti-
culam dialeticamente ao longo das análises de Marx e definem uma configu-
ração racional da produção, regida pela economia politica.
Uma revolução Os fim a essa economia "clássica" do valor, uma revolução
do próprio valor que, para além de sua forma-mercadoria, o leva a sua forma
radical.
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0 FIM DA PRODKAO
A REVOLUÇÃO ESTRUTURAL DO VALOR

Fssa revolução consiste no fato de os dois aspectos do valor, que se podia I. Trata-se aindã de economia
política? Sim, no sentido em que se trata
crer coerentes e eternamente ligados como que por uma lei natural,serem desarti- sempre do valor e da lei do valor, mas a mutação
culados, de o valor referendal ser anulado em proveito do mero jogo estrutural do
que o afeta é tão profunda,
tão decisiva, tendo todos os conteúdos sido igualmente
valor. A dimensão estrutural se torna autônoma ao preço da exclusão da dimen- mudados, e até anula-
dos, que o termo é apenas alusivo, e mais
precisamente político, visto que
são referencial, institui-se sobre a morte desta.Acabam os referenciais de produ- sempre a destruição das relações sociais regidas
pelo valor que está em jogo.
ção, de significação, de afeto, de substância, de história, toda essa equivalência a Mas há muito se trata de uma coisa muito
diferente de economia.
conteúdos"reais"que ainda lastreavam o signo com uma espécie de carga útil, de
gravidade - sua forma de equivalente representativo. É o outro estágio do valor
11. 0 termo signo não
tem ele mesmo mais do que valor alusivo.
lei estrutural do valor afeta a significação Já que a
bem como o resto, ela tem por forma,
que prevalece sobre ele, o da relatividade total, da comutação geral, combinatória
e simulação. Simulação no sentido de que todos os signos se trocam doravante
não a do signo em geral, mas certa organização
código não rege quaisquer signos.Nem a lei de
que é a do código - ora, um
mercado do valor significa uma
entre si sem nenhuma troca contra o real (e eles só se trocam bem, se) se trocam instal-Ida determinante qualquer, num morrrento
dado, da produção material,
perfeitamente entre si com a condição de não mais se trocarem contra o real.) nem, inversamente, a lei estrutural do valor significa
Emancipação do signo: liberado dessa obrigação "arcaica" de ter de designar uma proeminéncia qual-
quer do signo. Essa ilusão vem do fato de um ter
se desenvolvido com Marx ã
alguma coisa, ele se torna enfim livre para um jogo estrutural, ou combinatório,
de acordo com uma indiferença e uma indeterminação totais que sucedem
regra anterior de equivaléncia determinada. Ocorre a mesma operação no nível
-
sombra da mercadoria e do outro, com Saussure,
mas é preciso dissipá-la. A lei de mercado
cia, e essa lei atua em todas as esferas: designa
à sombra do signo lingüístico
do valor é uma lei de equivalén-
igualmente a configuração do
da força de trabalho e do processo de produção: a anulação de toda finalidade signo em que a equivalência entre um significante
dos conteúdos da produção permite a esta funcionar como código e, ao signo e um significado permite a
troca, regida por regras, de conteúdos referenciais
monetário, por exemplo, fugir numa especulação indefinida, fora de toda referén- (outra modalidade paralela:
a linearidade do significante, contemporânea
do tempo linear e cumulativo da
cia a um real de produção ou mesmo a um padrão-ouro.A flutuação das moedas produção).

flutuação do próprio trabalho -


e dos signos, a flutuação das "necessidades" e das finalidades da produção, a
a comutabilidade de todos os termos que se
acompanha de uma especulação e de uma inflação sem limites (está-se de fato
Portanto, essa lei clássica do valor atua simultaneamente
tâncias (linguagem, produção etc.), mas estas em todas as ins-
permanecem distintas segundo
na liberdade total - desafeição, desobrigação, desencanto geral: é ainda uma
magia, uma espécie de obrigação mágica, que mantém o signo preso ao real; o
sua esfera referenda].
Inversamente, a lei estrutural do valor significa
as esferas entre si e corn relação ao seu
a indeterminação de todas
valor próprio (do que decorre também
capital libertou os signos dessa "ingenuidade" para os lançar na circulação a passagem da esfera determinada dos
signos à indeterminacão do código).
pura) tudo isso nem Saussure nem Marx o tinham pressentido: eles ainda Dizer que a esfera da produção material
e a dos signos trocam seu conteúdo
estão na idade de ouro de uma dialética do signo e do real, que é ao mesmo respectivo ainda está longe da questão: elas desaparecem
tempo o período "clássico" do capital e do valor. Sua dialética se esfacelou e literalmente enquan-
to tais e perdem sua especificidade, ao
o real morreu sob o golpe dessa autonomização fantástica do valor. A determi- mesmo tempo que sua determinação,
em proveito de uma forma do valor, de uma
nação está morta; a indeterminação reina. Houve uma ex-terminação (no sen- disposição bem mais geral, em
que a designação e a produção se anulam.
tido literal do termo) dos reais de produção, do real de significação'. A "economia política do signo" resultava
ainda de uma extensão da lei de
mercado do valor e de sua verificação na escala
dos signos. Ao passo que a
configuração estrutural do valor destrói pura
Essa revolução estrutural da lei do valor foi indicada pelo termo "econo- e simplesmente tanto o regime da
produção e da economia política como o
mia politica do signo", mas esse termo é impróprio, porque da representação e dos signos.Tudo
isso, com o código, oscila na simulação.
Nem a economia "clássica" do signo nem
a economia política cessam, propriamente
falando, de existir: elas térn uma exis-
téncia segunda, tornam-se uma espécie de princípio
1. Se só se tratasse da preponderãncia do valor de troca sobre o valor de uso (ou a da fantasma de dissuasão.
dimensào estrutural sobre a dimensão funcional na linguagem) - Marx e Saussure já a tinham Fim do trabalho. Fim da produção. Fim
da economia política.
assinalado. Marx não está longe de fazer do valor de uso o meio ou álibi puro e simples do valor Fim da dialética significante/significado
de troca. E toda a sua análise está fundada no princípio de equivalé-ncia que está no ceme do
que permitia a acumulação do
saber e do sentido, o sintagma linear do discurso
sistema do valor de troca. Mas se há equivalência no cerne do sistema, não há indeterminação do cumulativo. Fim simultãneo
sistema global (há sempre determinação e finalidade dialética do modo de produção). Enquanto
da dialética valor de troca/valor de uso, única
a possibilitar a acumulação e a
o sistema atual está fundado na indeterminação, é impelido por ela. Inversamente, é obsedado produção sociais.Fim da dimensão linear do discurso.
Fim da dimensão linear
pela morte de toda determinação. da mercadoria. Fim da era clássica do signo.
Fim da era da produção.

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1
1 7
0 FIM DA PRODUÇÃO

Não é A revolução que põe fim a tudo isso. É o próprio capital. É ele que
abole a determinação social pelo modo de produção. É ele que substitui a
forma-mercadoria pela forma estrutural do valor. E é ele que comanda toda a
atual estratégia do sistema.

Essa mutação histórica e social é legfvel em todos os nfveis. A era da


simulação encontra-se assim aberta em toda parte pela comutabilidade de
0 Fim da
termos outrora contraditórios ou dialeticamente opostos.Em todo lugar a mesma
"génese de simulacros": comutabilidade do belo e do feio na moda, da esquer- Produção
da e da direita na polftica, do verdadeiro e do falso em todas as mensagens da
mfdia, do útil e do inútil no nfvel dos objetos, da natureza e da cultura em
todos os nfveis da significação. Todos os grandes critérios humanistas do valor,
os de toda uma civilização de julgamento moral, estético, prático, se desfazem
em nosso sistema de imagens e signos.Tudo se torna indecidfvel: eis o efeito
caracterfstico do domfnio do código, que em toda parte repousa no princfpio
da neutralização e da indiferença2.Trata-se do bordel generalizado do capital,
não bordel de prostituição, mas de substituição e de comutação.
Esse processo que há muito vem operando na cultura, na arte, na polftica, Estamos no fim da produção. Essa forma coincide no Ocidente com a
e talvez na sexualidade (nos domfnios ditos "superestruturais") afeta hoje a enunciação da lei de mercado do valor, isto é,com o reino da econo-
própria economia,todo o campo dito"infra-estrutural".A mesma indeterminação mia polftica. Antes, nada era, propriamente falando, produzido: tudo
reina nesse domínio.E,é claro, com a determinação do econômico desaparece era deduzido, por meio de graça (Deus) ou de gratificação (a natureza) de uma
toda possibilidade de concebé-la como instância determinante. instância que concede ou recusa suas riquezas. 0 valor emana do reino das
Como é ao redor do econômico que girou por dois séculos (seja como for, qualidades divinas ou naturais (elas se confundem aos nossos olhos retrospecti-
a partir de Marx) a determinação histórica, é af que importa avaliar em primei- vamente). Ainda é assim que os fisiocratas vêem o ciclo da terra e do trabalho:
ro lugar a irrupção do código. este não tem valor próprio. Podemos nos perguntar se há então uma verdadeira
lei do valor, porque este é dispensado sem que sua expressão possa tornar-se
racional.Sua forma não fica desembaraçada porque está ligada a uma substância
referencial inesgotável. Se há lei, trata-se, por oposição ã lei de mercado, de uma
lei natural do valor.
-a
2. A produção teórica, tal como a produção material, perde suas determinações e começa a
dispensação natural das- riquezas -
Uma mutação faz oscilar esse ediffcio de uma distribuição ou de uma
a partir do momento em que o valor se
torna produzido, sua referência o trabalho, sua lei a equivalência generalizada
se voltar sobre si mesma, caindo no abismo de uma realidade inencontrável. Já nos encontramos
nela hoje: na indecidibilidade, na era das teorias fiutuantes, bem como das moedas flutuantes.
de todos os trabalhos. Atribui-se doravante o valor à operação distinta e racio-
Todas as teorias atuais, qualquer que seja o horizonte de onde vem (inclusive as psicanalíticas), nal do trabalho humano (do trabalho social). Ele é mensurável e, por conse-
seja qual for a violencia de que se armem, pretendendo reencontrar uma imanencia, ou um guinte, a mais-valia também o é.
movimento sem referenciais (Deleuze, Lyotard etc.), todas as teorias flutuam e tem como único É a crftica da economia polftica que começa, tendo como referéncia a de
sentido reconhecer umas As outras. É inútil exigir sua coerencia corn respeito a qualquer"realida-
de" que seja. 0 sistema retirou toda caução referendal da força de trabalho teórica, tal como o fez
uma produção social e de um modo de produção. Só o conceito de produção
com a outra. Também não existe mais valor de uso da teoria, o espelho da produção teórica permite desembaraçar, mediante a análise da mercadoria singular que é a força
também está partido. E isso está em ordem. Quero dizer que essa indecidibilidade mesma da de trabalho, um mais (a mais-valia), que ordena a dinâmica racional do capital
teoria é um efeito de código. E, de fato, nada de ilusiies: essa flutuação das teorias não tem e, para além dela, a dinâmica, também inteiramente racional, da revolução.
nenhum elemento de "deriva" esquizofrenica em que os fluxos passariam livremente pelo corpo
sem órgão (de que? do capital?). Ela significa simplesmente que todas as teorias podem doravante Tudo mudou de novo para nós hoje. Produção, forma-mercadoria, força de
se trocar entre si de acordo com taxas de cãmbio variáveis, porém sem investir em coisa alguma trabalho, equivaléncia e mais-valia esboçavam uma configuração quantitativa,
além do espelho de sua própria escritura. material e mensurável que acabou para nós. As forças produtivas esboçavam

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0 FIM DA PRODUÇÃO 0 FIM DA PRODUÇÃO

ainda uma referéncia, contraditória com as relações de produção, mas mesmo


assim referéncia, da riqueza social. Um conteúdo de produção sustentava ainda
uma forma social chamada capital e sua crftica interna, chamada marxismo. E
final. Seja como for; uma finalidade o perpassava-
um valor de uso, para a reprodução ampliada do capital e para sua destruição
se o trabalhador é absorvido
na reprodução pura e simples de sua força de trabalho, não é verdade que o
na abolição da lei de mercado do valor que se funda a exigência revolucionária. processo de produção seja vivido como repetição insensata. 0 trabalho revolu-
Ora, passamos da lei de mercado à lei estrutural do valor, que corresponde ciona a sociedade por meio de sua abjeção, enquanto mercadoria cujo potencial
volatilização da forma social chamada produção. Estaremos ainda, diante excede sempre a reprodução pura e simples do valor.
disso, num modo capitalista? Pode ser que estejamos num modo hipercapitalista Hoje não: o trabalho não é mais produtivo; ele se tornou reprodutivo.da
ou numa ordem bem diferente. A forma-capital está ligada â lei do valor em atribuição ao trabalho como aparéncia geral de uma sociedade que sequer
geral ou a uma forma determinada do valor? (Será possfvel que já estejamos sabe se deseja ou não produzir. Nada de mitos de produção, nada de conteú-
verdadeiramente num modo socialista? Que essa metamorfose do capital sob dos de produção: as contas nacionais não registram mais do que um cresci-
o signo da lei estrutural do valor seja apenas sua realização socialista? Ai!) Se mento traduzido em números, estatfstico, esvaziado de sentido - uma inflação

-
a vida e a morte do capital operam de acordo com a lei de mercado do valor
se a revolução opera de acordo com o modo de produção, não estamos
de signos contábeis com os quais nem se consegue gerar o fantasma da von-
tade coletiva. 0 próprio pathos do crescimento morreu, tal como o da produ-
ção de que ele era a última ereção desvairada, paranóica - hoje detumescéncia
mais nem no capital nem na revolução. Se esta consiste numa liberação da
produção social e genérica do homem, já não há revolução em perspectiva
já não há produção. Se, em contrapartida, o capital é um modo de dominação,
- nas cifras; ninguém acredita mais. Porém continua indispensável reproduzir o
trabalho como ostentação social, como reflexo, como moral, como consenso,
encontramo-nos sempre bem af, porque essa lei estrutural do valor é a forma como regulação, como princfpio de realidade. Mas princfpio de realidade do
de dominação social mais pura, ilegfvel, como a mais-valia, sem referências,
doravante, numa classe dominante ou numa relação de forças, sem violéncia,
inteiramente absorvida sem vestígios clç sangue nos signos que nos cercam,em
a toda a sociedade -
ajdigo: trata-se de um gigantesco ritual dos signos do trabalho que se estende
pouco importa se ele ainda produz: ele se reproduz.
Socialização pelo ritual, pelos signos, bem mais eficaz do que pelas energias
toda parte operacional no código onde o capital tem enfim seu discurso mais vinculadas da produção. Tudo o que se pede de nós não é produzir, superar-
puro, para além dos dialetos industriais, de mercado, financeiros, para além -nos no esforço (eSsa ética clássica seria antes suspeita), mas que nos sociali-
dos dialetos de classe que ele sustentava em sua fase "produtiva". Violência zemos. É não incorporar nada de valor, de acordo com a definição estrutural
simbólica inscrita em toda parte nos signos, e até nos signos da revolução. que toma aqui toda a sua envergadura social, a não ser como termos respec-
A revolução estrutural do valor anula as bases da "Revolução". A perda de tivos uns aos outros. É funcionar como signo no cenário geral da produção,
referenciais afeta mortalmente de infcio os referenciais revolucionários, que já assim como o trabalho e a produção não funcionam senão como signos, como
não encontram em nenhuma substância social de produção, em nenhuma verda- termos comutáveis com o não-trabalho, o consumo, a comunicação etc. Rela-
de da força de trabalho, a certeza de uma reversão. Porque o trabalho já não ção múltipla, incessante, vertiginosa, com toda a rede dos outros signos. 0
uma forfa, tendo-se tornado um signo entre os signos. Ele é produzido e consu- trabalho, esvaziado assim de sua energia e de sua substância (e desinvestido de
mido como o resto. Ele é trocado pelo não-trabalho, o lazer, de acordo com uma maneira bem geral), ressuscita como modelo de simulação social, arrebatando
equivaléncia total, é comutável com todos os outros setores da vida cotidiana. todas as outras categorias da economia polftica para a esfera aleatória do código.
Nem mais nem menos "alienado", ele já não é lugar de uma "práxis" histórica Inquietante estranheza: esse súbito mergulho numa espécie de existéricia
singular que engendra relações sociais singulares. Ele não passa, como a maioria segunda,separada de nós por toda a espessura de uma vida anterior porque havia
das práticas, de um conjunto de operações sinaléticas. Ele entra no projeto geral af uma familiaridade, uma intimidade do processo tradicional de trabalho. Mesmo
da vida, isto é, no enquadramento pelos signos. Ele sequer continua a ser esse a realidade da exploração, a sociabilidade violenta do trabalho, é um sentido
próximo. Nada disso existe hoje:e isso também não se deve a abstracdo operatória
sofrimento, essa prostituição histórica que agia como promessa inversa de uma
emancipação final (ou, como em Lyotard, como espaço de enlevo [jouissance]
operário, realização do desejo encarniçado na abjeção do valor e da regra do
do processo de trabalho, tantas vezes descrita - nem a passagem de toda signi-
ficação de trabalho para urn campo operaciolial ern que ela se torna urna variável
capital). Nada disso continua verdadeiro. A forma-signo se apossou do trabalho flutuante, arrastando consigo todo o imaginario de urna vida interior.
para tirar-lhe toda significação histórica ou libidinal e absorvé-lo no processo de
sua própria reprodução: a única operação do signo é duplicar-se em si mesmo,
por trás da alusão vazia Aquilo que designa. 0 trabalho Ode um dia designar a Para além da autonomizacao da producão como mod() (para além das
realidade de uma produção social, de um objetivo social cumulativo de riqueza.
Mesmo explorado no capital e na mais-valia - precisamente af ele conservava
convulsões, contradições e revolucões internas ao modo), é preciso fazer res-
surgir o código da produção. É a dimensão que ela assume hoje, ao final de

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O F1M DA PRODUÇÃO 0 FIM DA PRODUÇA0

uma história "materialista" que conseguiu legalizá-la como princfpio do movi- nação do valor. 0 que podemos vivenciar na raiva construtiva dos tratores, das
auto-estradas, das "infra-estruturas", na raiva civilizatória da era produtiva, essa
história própria-
mento real das sociedades (para Marx, a arte, a religião, o direito etc. não térn
só a produção tem uma história, ou melhor: ela é a história, raiva de não deixar nenhuma parcela não produzida, de tudo rubricar por
meio da produção, sem nem mesmo a esperança de um aumento da riqueza
ela funda a história. Incrivel enredo do trabalho e da produção como razão
histórica e como modelo genérico de realização). - produzir para marcar, produzir para reproduzir o homem marcado. 0 que
a produção hoje além desse terrorismo do código? Isto se torna tão claro como
0 fim dessa autonomização religiosa da produção deixa entrever que tudo
aquilo poderia muito bem ter sido produzido (dessa vez no sentido de encena- o foi para as primeiras gerações industriais, que viram as máquinas como ini-
ção e de cenário) há não muito tempo,e com fins completamente distintos das migos absolutos, portadores da desestruturação total, antes de se desenvolver
finalidades internas (a revolução entre elas) que secreta a produção. o doce sonho de uma dialética histórica da produção.As práticas luddistas que
Analisar a produção como código é passar pela evidência material das surgem um pouco em toda parte, a selvageria que ataca o instrumento de
máquinas, das fábricas, do tempo de trabalho, do produto, do salário, do produção (e, em primeiro lugar, a si mesma como força produtiva), a sabota-
gem endémica e a defecção dizem muito sobre a fragilidade da ordem produ-
mercado, do capital, para descobrir a regra do jogo -
dinheiro, e aquela, mais formal, porém igualmente "objetiva", da mais-valia, do
destruir o encadeamen-
to lógico das instâncias do capital e até mesmo o encadeamento crftico das
tiva. Quebrar as máquinas é um ato aberrante se elas são meios de produção,
se permanece a ambigüidade de seu valor de uso futuro. Mas se os fins dessa
categorias marxistas que o analisam, e que ainda são apenas as de uma apa- produção se esgotam, o mesmo acontece com o respeito devido aos meios, e
réncia em segundo grau do capital, as de sua aparéncia crftica, para descobrir as máquinas se mostram, de acordo com seu verdadeiro fim, como signos
os significantes elementares da produção, a relação social que ela engendra, operadores diretos, imediatos, da relação social de morte da qual vive o capi-
por todo o sempre dissimulada sob a ilusão histórica dos produtores (e dos tal. Nada se opõe então à sua destruição imediata. Nesse sentido, os luddistas
teóricos). eram bem mais lúcidos do que Marx no tocante ao alcance da irrupção da
ordem industrial, e eles têm hoje, de certa maneira, sua revanche no final
catastrófico desse processo, enquanto o próprio Marx nos indicou a direção
0 TRABALHO errada, na euforia dialética das forças produtivas.
A força de trabalho não é uma força, mas uma definição, um axioma, e
sua operação "real" no processo de trabalho, seu "valor de uso", não passa de
duplicação dessa definição na operação do código. É no nível do signo, jamais Dizer que o trabalho é signo não tem o sentido das conotações de prestf-
no da energia, que a violéncia fundamental. O mecanismo do capital (e não gio que se podem atribuir a esse ou aquele tipo de trabalho, nem mesmo no
sua lei) se apália na mais-valia
.6

-
não-equivaléncia entre salário e força de
trabalho. Porém, ainda que houvesse equivaléncia entre os dois, o fim da mais-
sentido de promoção que constitui o trabalho assalariado para o imigrante
argelino diante de sua comunidade tribal, para o jovem marroquino de Haut-
-valia, ou mesmo a abolicão do salário (da venda da força de trabalho), o
homem permaneceria marcado por esse axioma, esse destino de produção,
esse sacramento de trabalho que o perpassa como um sexo. Não, o trabalhador
sociedade ainda. Nesse caso,o trabalho remete a um valor próprio -
-Atlas, cujo único sonho é ir trabalhar na Simca, para as mulheres da nossa
aumento
ou diferença de status. No cenário atual, o trabalho não depende mais dessa
definição referencial do signo. Já não te.rn significacão própria esse ou aquele
força de trabalho que o atribui a um fim -
já não é homem, sequer homem ou mulher: ele tem um sexo próprio, essa
ele é marcado por ela como a
mulher o é pelo seu sexo (sua definição sexual), como o negro o é pela cor
tipo de trabalho, nem o trabalho em geral, mas um sistema de trabalho em que
os postos se intercambiam. Nada de "the right man in the right place": velho
da pele eles mesmos signos, e nada mais do que signos. adagio de um idealismo cientffico da produção. Mas também nada mais de
É preciso distinguir entre o que depende apenas do modo e o que depen- indivfduos intercambiáveis porém indispensáveis num processo de producão
de do código da produção. Antes de se tornar elemento da lei de mercado do determinado. É o próprio processo de trabalho que se tornou intercambiável:
valor, a força de trabalho é de início um estatuto, uma estrutura de obediéncia estrutura de recepção móvel, polivalente, intermitente, indiferente a qualquer
a um código. Antes de vir a ser valor de troca ou valor de uso, ela é já, como objetivo, indiferenca com relação ao próprio trabalho entendido em sua ope-
toda mercadoria, o signo da operação da natureza em valor, aquilo por meio ração clássica, voltada somente para localizar cada um num nexo social em
de que se define a produção e que é o axioma fundamental da nossa cultura, que nada converge para lugar nenhum a não ser na imanência dessa divisão
e de nenhuma outra. Bem mais profundamente que as equivaléncias quantita- operacional de território, indiferentemente paradigma que declina todos os
tivas, é essa mensagem que corre de infcio sob a mercadoria: impulsão da indivfduos pelo mesmo radical ou sintagma que os associa de acordo com um
natureza (e do homem) para a indeterminação, a fim de submetê-lo à determi- modo combinatório indefinido.

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0 FIM DA PRODUÇÃO 0 Firm DA PRODKAO

0 trabalho (também sob a forma de lazer) invade toda a vida como repres- conjuntos móveis e aleatórios que neutralizam o que lhes resiste ou lhes escapa
são fundamental, como controle, como ocupação permanente em lugares e por meio da conexão, e não da anexacão.
tempos regulados, de acordo com um código onipresente. É preciso fixar as
pessoas em todo lugar, na escola, na fábrica, na praia ou diante da teve', ou
então na reciclagem - mobilização geral permanente. Mas esse trabalho já
não é produtivo no sentido original: ele não passa de espelho da sociedade,
Isso vai bem mais longe do que a 0.C.T, Organização Científica do Traba-
lho, ainda que o surgimento desta marque uma base essencial do investimento
seu imaginário, seu princípio fantástico de realidade. Pulsão de morte talvez. pelo código. Podem-se distinguir duas fases:
A isso tende toda a atual estratégia que gira em torno do trabalho: enrique- À fase "pré-cientifica" do sistema industrial, caracterizada pela exploração
cimento do trabalho, horários variáveis, mobilidade, reciclagem, formação maxima da força de trabalho, sucede a fase do maquinário, da preponderância
permanente, autonomia, autogestão, descentralização do processo de trabalho, do capital fixo, na ,qual "o trabalho objetivado não é um simples produto que
chegando a utopia californiana do trabalho cibernetizado feito em casa. Nin-
guém mais os arranca selvagemente da vida para entregá-los à máquina
voce's são integrados aí com sua infância, seus tiques, suas relações humanas,
- serve de instrumento de trabalho, mas a própria forga produtiva" (Grundrisse,
t. II, p. 213). Essa acumulação de trabalho objetivado que suplanta o trabalho
vivo como força produtiva multiplica-se em seguida ao infinito por meio da
suas pulsões inconscientes e sua recusa do trabalho consegue-se para cada acumulação do saber: "A acumulação do saber, da habilidade, bem como de
um de voce-s um lugar em tudo isso, um emprego personalizado ou, à falta de
outra coisa, um desemprego calculado de acordo com sua equação pessoal - todas as forgas produtivas gerais do cérebro social, são então absorvidas no
capital, que se opõe ao trabalho: elas aparecem a partir disso como uma pro-

o terminal de toda a rede, terminal infimo, mas ainda assim termo -


seja como for, voce's nunca serão abandonados, o essencial é que cada um seja
sobretudo
não um grito inarticulado, mas um termo da lingua, e no termo de toda a rede
priedade do capital, ou, mais exatamente, do capital fixo" (Gr., II, 213).
Essa fase do maquinário, do aparelho científico, do trabalhador coletivo e
da O.C.T. é aquela na qual "o processo de produção deixa de ser um processo
estrutural da lingua. A própria escolha do trabalho, a utopia de um trabalho de trabalho, no sentido de que o trabalho constituiria a sua unidade dominan-
medida de cada um significa que os dados estão lançados, que a estrutura de

mente; ela é projetada, é anunciada, se mercadifica -


recepção é total. A forga de trabalho já não é vendida nem comprada brutal-
a produção se une ao
que transforma as forças produtivas em capital -
te" (Gr.,11, 212).M. não há forga produtiva,"original", mas um maquinário geral
ou, melhor ainda, um
maquinário que fabrica forca produtiva e trabalho. Todo o aparelho social do
sistema de signos do consumo. trabalho é desmontado por essa operação: é o maquinário coletivo que se põe
Um primeiro estágio da análise consistiu em conceber a esfera do consu- a produzir diretamente a finalidade social, é ele que produz a produção.
mo como extensão da esfera das forças produtivas. É o inverso que se precisa Trata-se da hegemonia do trabalho morto sobre o trabalho vivo. A acumula-
fazer. Temos de conceber toda a esfera da produção, do trabalho, das forgas
produtivas como estando oscilando na esfera do "consumo", entendida como
a de uma axiomática generalizada, de uma troca codificada de signos, de um
ele seja capaz de absorver o trabalho vivo -
ção primitiva não passa disso:acumulação do trabalho morto até o ponto em que
melhor: de produzi-lo sob controle
para seus próprios objetivos. É por isso que o fim da acumulação primitiva marca
projeto geral da vida. Dessa maneira, o saber, os conhecimentos, as atitudes a virada essencial da economia política: a passagem à preponderancia do traba-
(Verres:"Por que não considerar as atitudes do pessoal um dos recursos que o lho morto, a uma relação social cristalizada e encarnada no trabalho morto, que
patrão tem por papel gerir?"), mas também a sexualidade e o corpo, a imagi- pesa sobre toda a sociedade como o código da dominação. 0 erro fantástico de
nação (Verres:"A imaginação é a única coisa que permanece ligada ao princi-
pio de prazer, enquanto o aparelho psíquico está subordinado ao princípio de
realidade [Freud]. É preciso acabar com essa desordem. Que a imaginação
inocentes -
Marx foi ter acreditado que ao menos as máquinas, a técnica, a ciência eram
podendo tudo isso voltar a ser trabalho social vivo, uma vez liquida-
do o sistema do capital.Mas é precisamente nelas que o sistema se funda.Piedosa
seja atualizada como força produtiva, que ela seja investida. A imaginação no esperança, decorrente da subestimação da morte no trabalho morto e do pensa-
poder: palavra de ordem da tecnocracia".). E o inconsciente, e a Revolução mento de que o morto se transfere para o vivo, ultrapassado certo ponto crucial,
etc.Sim,tudo isso está em vias de ser "investido" e absorvido na esfera do valor,
mas não tanto o valor de mercado quanto o valor computável - isto é, não
mais mobilizado para a produção mas indexado, atribuído, convocado para
por meio de urna espécie de salto histórico da produção.
Contudo, Marx VI o pressentira quando chama a atenção para "a proprie-
dade que o trabalho objetivado tem de transformar-se em capital, quer dizer, de
servir de variável operacional, transformado não tanto em força produtiva quanto transformar os meios de produção em meios de comando exercido sobre o
em peças do xadrez do código, aprisionadas na mesma regra do jogo. 0 axio- trabalho vivo". É isso que transparece igualmente na fórmula de acordo corn a
ma da produção só tende a reduzir tudo a fatores: o axioma do código reduz qual, em certo estágio do capital, "o homem se acha colocado ao lado do
tudo a uariciveis. Um leva a equações e a equilíbrios de forgas. 0 outro leva a processo de producão, em vez de ser o seu agente principal" (Gr., 11, pp. 221/

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0 FIM DA PRODUÇÃO 0 FIA4 DA PRODUÇÃO

222). Fórmu la que vai bem além da economia política e de sua crítica, visto Grundrisse (1,253):"0 trabalho é produtivo se ele produz o seu contrário [o capitall".
significar literalmente que já não se trata de um processo de produgão, mas de Donde se pode logicamente concluir que, se vier a reproduzir a si mesmo,
um processo de exclusão e de relegagão. como é o caso hoje em toda a extensão do "trabalhador coletivo", o trabalho
Ainda é preciso extrair disso todas as conseqüências. Quando atinge essa cessa de ser produtivo. Conseqüência imprevista de uma definigão que não
circularidade e involui em si mesma, a produgão perde toda determinagão concebe poder o capital arraigar-se noutra coisa além do "produtivo", e talvez
objetiva. Ela se encanta a si mesma como mito por meio dos seus próprios precisamente no trabalho esvaziado de sua produtividade, no trabalho "impro-
termos tornados signos. Quando simultaneamente essa esfera dos signos (inclu- dutivo", neutralizado, por assim dizer, mas aquele em que o capital justamente
sive os meios de comunicagão, a informagão etc.) deixa de ser uma esfera desmonta a determinagão perigosa do trabalho "produtivo" e pode comegar a
específica para representar a unidade do processo global do capital, é neces- instaurar sua dominagão real, não mais só sobre o trabalho, mas sobre toda a
sário dizer, com Marx, não somente que "o processo de produgão deixa de ser sociedade. Ao desprezar esse "trabalho improdutivo", Marx não percebeu a
um processo de trabalho", mas também que "o próprio processo do capital verdadeira indefinição do trabalho, na qual se funda a estratégia do capital.
deixa de ser um processo de produgão". "Uma produgão só é produtiva, quer satisfaga um consumo produtivo ou
Com a hegemonia do trabalho morto sobre o trabalho vivo, toda a dialética
.6 um improdutivo, se atender à condigão de criar ou recriar capital" (Gr,l, 253).
da produgão que vem abaixo. Valor de uso/valor de troca, forgas produtivas/ 0 paradoxo é então que, de acordo com a própria definigão de Marx, uma
relagões de produgdo, todas essas oposigões nas quais se baseia o marxismo (no parte crescente do trabalho humano se torna improdutiva sem que isso impega
fundo de acordo com o mesmo esquema do pensamento racionalista, com as visivelmente o capital de aprofundar sua dominagão. Na realidade, tudo isso
oposigões entre o verdadeiro e o falso, a aparéncia e a realidade, a natureza e a falso: não há dois nem trés tipos de trabalho', foi o próprio capital que sugeri6
cultura) são, também elas, neutralizadas, e da mesma maneira.Tudo na produgão a Marx essas distingões sofisticadas, o capital que nunca foi estúpido a ponto
e na economia se torna comutável, reversível, intercambiável de acordo com a de crer nelas, que sempre passou "ingenuamente" por elas. Há uma única
mesma especularidade indefinida que existe na política, na moda ou na mídia. espécie de trabalho, uma definigão na verdade fundamental, e quis a infelici-
Especularidade indefinida de forgas produtivas e de relagões de produgão, do dade que fosse isso a pedra de tropego de Marx. Se todos os trabalhos hoje se
capital e do trabalho, do valor de uso e do valor de troca: assim é a dissolugão acham alinhados numa só definigão, trata-se da definigão trabalho/servigo, essa
da produgão no código. E a lei do valor também não reside mais, hoje, na inter- categoria bastarda, arcaica, inanalisável, e não da clássica, e supostamente
cambiabilidade de todas as mercadorias sob o signo do equivalente geral mas na universal, do trabalho assalariado "proletário".
intercambiabilidade, por outro lado mais radical, de todas as categorias da econo- Trabalho/servigo: não no sentido feudal, porque o trabalho perdeu o sen-
mia política (e de sua crítica) de acordo com o código.Todas as determinagões tido de obrigagão e de reciprocidade que tinha no contexto feudal, mas no
do pensamento "burgués" foram neutralizadas e abolidas pelo modo materialista sentido assinalado por Marx: no servigo, a prestagão é inseparável do prestador
de pensar a produgão, que fez tudo referir-se a uma só grande determinagão
histórica. Esse pensamento, no entanto, também é neutralizado e absorvido por
- aspecto arcaico na visão produtivista do capital, porém fundamental se
analisamos o capital como sistema de dominagão, como sistema de "enfeudagão"
uma revolugdo dos termos do sistema. E, assim como outras geragões puderam sobre uma sociedade de trabalho, isto é, certo tipo de sociedade política de
que ele a regra do jogo. É nesse ponto que estamos (se é que já no tempo
sonhar com a sociedade pré-capitalista, comegamos a sonhar com a economia
política como objeto perdido, e seu discurso assume hoje tamanha forga de refe-
rência justo por ser ela um objeto perdido.
.6

de Marx não era assim): redugão de todo trabalho a servigo


como pura e simples presenga/ocupagão, consumo de tempo, prestação de
-
o trabalho

tempo. Fazer o trabalho como se comparecêssemos diante da autoridade, como


se prestássemos um juramento de fidelidade. Nesse sentido, a prestagão é de
Marx:"Os trabalhos que só podem ser utilizados como servigos, devido ao
fato de Os seus produtos serem inseparáveis daqueles que os produzem, de 1. Marx, jesuita astucioso, não estava longe de reconheclo corn seu concerto de trabalhador
modo que não podem tornar-se mercadorias autõnomas, representam uma massa coletivo:"A partir do momento em que,contudo,o produto individual é transformado ern produto
insignificante com relagão à da produgão capitalista. Desse modo, podemos social,em produto de urn trabalhador coletivo cujos diferentes membros participam da transforma-
ção da matéria em diversos gratis, de perto ou de longe, ou mesmo sem nenhuma proximidade,
descartá-los aqui, para remeter o seu exame ao capítulo sobre o trabalho assa- as determinações de trabalho produtivo, de trobalhador produtivo, se ampliam necessariamente.
lariado" (Capital, cap. VI, p. 234). Esse capítulo do Capital nunca foi escrito: o Para ser produtivo, já nao é necessário pôr as próprias mitos na massa; basta ser urn Orgdo do
problema levantado por essa distingão, que recorta a que existe entre trabalho trabalhador coletivo ou nele cumprir uma funçáo qualquer. A determina0o primitiva do trabalho
produtivo, nascida da natureza mesma da produção material, pennanece sempre verdadeira com
produtivo e trabalho improdutivo, é perfeitamente insolúvel. As definigões
relação ao trabalhador coletivo considerado como uma só pessoa, mas já nao se aplica a nenhum
marxistas do trabalho vacilam por todos os lados, e desde o comego. Nos de seus membros tornados separadamente" (Cap., II, 183/184).

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0 FIM DA PRODUÇAO

0 FIM DA PRODUÇA0 total


o operário diante da indiferenciação
cializado] não era mais o trabalhador,era de trabalho e um
corpo, de mais com relação a um conteúdo
0 serviço prestado é a adesão de ou não do trabalho. Divergéncias não
fato inseparável do prestador.
tempo, de espaço, de matéria
cinzenta. Pouco importa
se isso produz
evidentemente,
salário específico, mas com
produtivo",
a forma generalizada do
temos a instalação da forma
trabalho e o salário
mais abstrata
politico.
bem mais -
alguma coisa diante dessa
desaparece, e o salário
indexação pessoal.
muda de sentido - A mais-valia,
voltaremos a isso. Não se
à dominação
trata de
real, isto
Com o
abstrata
"agente
do que
menor
o velho
módulo
0.E. explorado até a morte: é o manequim
comum,o serviçal de base de um princípio
do trabalho que
de irrealidade
do capital ao feudalism(); é a passagem esfor-
aparece,o
já não se trabalha, realiza-se
um "ato de produção";
uma "regressão" tendem todos os
total das pessoas. Para isso do trabalho. Eufemismo genial: o que enseja o surgimento
é, à solicitação e requisição num serviço da produção e do trabalho,
do trabalho: eles tendem a transformá-lo trata-se do fim de uma cultura agente produtivo não é mais
ços de "retotalização" e esteja cada vez mais do termo"produtivo".0 que caracteriza esse
que o prestador seja cada vez menos ausente a contrario
de matéria-prima num processo
de trabalho;
total em sua exploração, nem sua condição do capital
caráter de desinéncia inútil
envolvido pessoalmente. práticas, e em sua mobilidade,sua intercambiabilidade,seu
deixa de distinguir-se de outras ao lado da produ-
No tocante a isso, o trabalho
por supor a mesma mobi- "agente produtivo" designa
o estatuto último do"operário
adverso, o tempo livre, que, fixo. 0
particular do seu termo produtivo),
(ou o mesmo desinvestimento 00" de que falava Marx.
lização e o mesmo investimento
hoje igualmente um seruko prestado2 -
que deveria, por justiça, merecer um
suma, não é só a distinção
lado não é impossivel3). Em deixa de ser um
salário (o que por outro que vai para o es- que"o próprio processo do capital
entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo não há Paralelamente,essa fase em o conjunto da socieda-
imaginária
distinção entre o trabalho e o resto. Simplesmente processo de produção"é a
do desaparecimento da fábrica:é enquanto
a prôpria fez bem em não desapareça
paço, mas
do termo, e Marx no fundo da fábrica.É preciso que a fábrica
mais trabalho no sentido específico de que assume a aparéncia possa assegurar essa
Capital: ele estava condenado
de antemão. especificidade, para que o capital
escrever seu capítulo no tal, que o trabalho perca sua portanto, atentar
que os trabalhadores se tornam "agentes pro- sua forma a sociedade total.
É preciso,
momento metamorfose extensiva de
dutivos" -
É precisamente
as mutações
nesse

antíf rase o estatuto daquele


terminológicas tém a sua importância:
que não produz mais nada.
esta significa por
0 O.E. (Operário Espe- para o desaparecimento dos
minado do trabalho, de um
lugares determinados de trabalho,de
tempo determinado de trabalho
urn sujeito deter-
social,
se se
atentar para o
deseja analisar a
desaparecimento da fábrica,
do trabalho e do proletariado sucur-
da sociedade
complexo", no sentido de que, capital4.Chegou ao fim o estágio
assim, uma forma de"trabalho dominação atual concreta do reserva virtual do capital.
2.0 tempo livre é, se preferirmosse aproxima da definição do serviço: solidariedade entre pres- relação à fábrica,exército de
simples, a um salário sal ou superestrutural com difunde em toda a extensão da
em oposição ao trabalho explode e se
a um tempo de trabalho abstrato,não-equivalencia 0 principio da fábrica e do trabalho
tação e prestador,
reprodutor da
não-equivalência
força de trabalho.
do trabalho produtivo e das
Marx poderia ter visto isso se não
múltiplas distinções que,
sobre
tivesse se
a
obstinado
salvar
todas elas, tendiam
o
no estudo
sujeito da
o tempo livre:"Se a reificação
da força
sociedade - de modo tal que a distinção
-se uma armadilha do capital
entre os dois se
a manutenção (no imaginário
torna "ideológica": torna-
revolucionário)
parte
de uma
porque
vez de fantasiar na em toda
história: o trabalhador produtivo. Em
da forma reificada, uma quebra da fábrica.0 trabalho está
produzir-se-ia uma explosão livre, presença especifica e privilegiada forma acaba-
de trabalho atingisse a perfeicão,ao mecanismo... 0 homem se beneficiaria de um tempo que ele atinge sua forma definitiva,sua
cadeia que sujeita o individuo unidimensionnel)", Marcuse id não existe trabalho. É então elaborados ao longo da
forma à sua vida privada e social (L'Homme o tempo o qual se une aos princípios
podendo entdo dar enfim técnico e da automação, produz da, seu princípio, mediante
sistema, através do progresso de trabalho
teria compreendido que o forma acabada do tempo
da força de trabalho, como se desloca a estrategia
livre como a extrema reificacão inversa do não-trabalho. da evolução social da moradia, como
na simulacão de analisá- 4.Vemos efetivamente, por meio
social abstrato, justamente a formação, a qualificacão, a escola etc.Tentação estudos, para um processo extensivo.
Outro tipo de trabalho "complexo": no saber, na formacão, nos do capital de um processo econômicoinicio mais do que urna tapera, sucursal da fábrica, lugar
reinvestimento pelo capital homem formado ao não é de
-lo em termos de MN. fmais-valiaj, 0 alojamento operário o lugar estratégico a fábrica
ao trabalhador simples. Smith:"Um de trabalho, permanecendo como
de um capital constante sobre-acrescentado
a urna máquina cara.. Erro. A instrução, funcional da reprodução da força
tempo pode ser comparado a relacão social de não é investido pela forma-capital.
preco de muito trahalho e de disfarcados. Sao diretamente e a empresa. 0 alojamento marcado num processo de con-
é investido como espaço-tempo
a formação, a escola
domesticacdo e de
não
controle.
são investimentos
O capital não busca ai trabalho
complex°, ele perde aí absolutamente,
de sua "MY' em favor da reproducão
de sua hegemonia.
Aos poucos, esse alojamento
trole direto e generalizado do
espaço social - lugar de reprodução,
específica, como forma direta
da
não mais do trabalho, porém
relação social, reprodução não
ele sacrifica ai uma parte enorme (um ano de salário após a demissão na Franca desde
então). do próprio habitat como função "usuário" se tornou, depois do
ja é isso paises, e que preve habitante, do usudrio. Porque o
3. 0 salario-desemprego usado ern alguns mais do trabalhador, mas do próprio bens, o usuário das palavras, o usuário
pelo projeto do "imposto negativo", desempregados, a tipo ideal do escravo industrial. O usuário dos torna usuário de sua
Mas ele foi ultrapassado de familia, deficientes, jovens proletário, o produtivo" se
para todos, maes
desaparece aqui pura e sim- trabalho (o operárto, o "agente
um saldrio de base minimo do sexo, o usuário do próprio como servio social), o usuário
de trabalho eventual. 0 desemprego equipamento individual e coletivo,
descontar de uma remuneracão politicamente). O trabalho torna-se fábrica e de seu trabalho como morte.
critica (corn tudo o que implica 0 usuário de sua vida e de sua
plesmente coin() conjuntura automatica no dispositivo social. dos transportes, mas também o o uso, ou apropriação do valor
de uso, é a forma
visto de existencia, uma inscrição totalizante,
uma op0o, e o salario, um
capital é de fato sempre o regime
dissociado
assalariado, mas desta vez
do significado (de acordo com
ern sua forma pura
a analogia de Saussure) -
dissociada do
que
Estratégia descentrada,
acabada
extensiva,
da autogestão do controle social.
trabalho signi ficante
não era senão o seu conteúdo
episódico. 29

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0 FDA DA PRODUÇA0 0 FDA DA PRODKAo

história em outros espaços sociais que precederam a manufatura e lhe serviram de mas um sacramento como o batismo (ou a unção dos enfermos) que faz de voce'
modelo: o asilo, o gueto, o hospital geral, a prisão, todos os lugares de reclusão e de um verdadeiro cidadão da sociedade política do capital. Para além do investimen-
concentração que nossa cultura secretou em sua marcha rumo à civilização.Todos to econômico que constitui para o capital o salário-renda do trabalhador (fim do
os lugares determinados também perdem hoje, por outro lado, seus limites, difun-
dindo-se na sociedade global, porque a forma asilar, a forma carcerária, a discrimi-
nação investiram a partir de então em todo o espaço social, em todos os momentos
cipação acionária na sociedade do capital -
trabalho assalariado como exploração, infcio do trabalho assalariado como parti-
passagem da função estratégica do
trabalhador para o consumo como serviço social obrigatório), é a outra acepção
da vida real'. Ainda resta algo de tudo isso -
fábricas, asilos, prisões, escolas
sem dúvida restará sempre, como signos de dissuasão, para dar ares de uma mate-
-e do termo investimento que prevalece na fase atual do salário/estatuto: o capital
investe o trabalhador do salário como se investe alguém de um encargo ou res-
rialidade imaginária à realidade da dominação do capital. Sempre houve Igrejas ponsabilidade. Ou ainda, ele investe sobre o trabalhador como se investe sobre
para ocultar a morte de Deus, ou para esconder que Deus estava em toda parte
o que é a mesma coisa.Sempre haverá reservas animals e indfgenas para esconder
- uma cidade: ele o ocupa em profundidade, controla-lhe todos os acessos.
Não é só por meio do salário/renda que o capital encarrega os produtores
que eles estão mortos e que somos todos indfgenas. Haverá sempre fábricas para de fazer circular o dinheiro, tornando-se assim verdadeiros reprodutores do
ocultar que o trabalho está morto, que a produção está morta, ou que ela está em capital, porém, mais profundamente, mediante o salário/estatuto, ele faz dos
produtores receptores de bens no mesmo sentido que ele, capital, é receptor
toda parte e em parte alguma. Porque de nada vale combater hoje o capital sob
de trabalho. Cada usuário usa objetos de consumo, reduzidos ao estatuto fun-
formas determinadas.Pelo contrário, está claro que ele não é mais determinado por
cional de produção de serviços, assim como o capital emprega força de traba-
coisa alguma, e que sua arma absoluta consiste em reproduzir o trabalho como
lho. Cada um é, desse modo, investido da mentalidade profunda do capital.
imaginário quando é o capital mesmo que está bem perto do desaparecimento.
Inversamente, a partir do momento em que o salário é desvinculado da
força de trabalho, nada mais se opõe (a não ser os sindicatos) a uma reivindi-
cação salarial maximalista, ilimitada. Porque se há um "preço justo" para certa
0 SALÁRIO quantidade de força de trabalho, já não há preço para o consenso e a partici-
Em sua forma acabada, na qual não tem relação com uma produção determi- pação global. A reivindicação salarial tradicional não passa da negociação da
nada, o trabalho também não tem equivalência com o salário. Este só é equivalen- condição de produtor. A reivindicação maximalista é uma forma ofensiva de
te (falseado, injusto, mas pouco importa) à força de trabalho na perspectiva da re- devolução pelo assalariado do estatuto de reprodutor ao qual ele está fadado
produção quantitativa da força de trabalho.Nada lhe resta desse sentido quando ele por meio do salário. É um desafio. 0 assalariado quer tudo. É a sua maneira
é a sanção do estatuto de força de trabalho, o signo da obediência à regra do jogo não só de aprofundar a crise econômica do sistema como também de devolver-
do capital. Ele rya() é mais equivalente nem proporcional ao que quer que seja6, -lhe a exiOncia política total que ele lhe
Salário máximo para um trabalho mínimo: eis a palavra de ordem. Escalada
de reivindicações cujo resultado polftico poderia muito bem ser destruir o sis-
5. Eis a utopia californiana da dissolução cibernética da metrópole terciária: o trabalho distri-
tema a partir de dentro,segundo sua própria lógica do trabalho como presença
buido a domicílio por computador. Pulverização do trabalho em todos os poros da sociedade e da
vida cotidiana. Não só a força de trabalho, mas o espaço-tempo do trabalho cessam de existir: a
sociedade não constitui mais do que um só continuum do processo do valor. 0 trabalho tornou-
-se o modo de vida. Contra essa ubiqüidade do capital, da mais-valia e do trabalho, ligada ao seu
forçada. Pois não é mais então como produtores que os assalariados intervêm,
mas na qualidade de não-produtivos, papel que lhes é atribuído pelo capital
e eles não intervern mais dialeticamente, mas catastroficamente no processo.
-
desaparecimento enquanto tais, de nada serve ressuscitar os muros da fabrica, a idade de ouro da
fábrica e da luta de classes. 0 operário alimenta doravante o imaginário da luta, assim como o PM
Quanto menos se tem a fazer, tanto mais elevado o salário que se deve
alimenta o imaginário da repressão. exigir, porque esse emprego mínimo é o signo de um absurdo mais evidente
6. 0 conceito de mais-valia simplesmente não tem mais sentido diante de um sistema que, de ainda da presença forçada. Eis a "classe" tal como transformada em si mesma
reprodutor da força de trabalho como geradora de lucro e de mais-valia, veio a ser reprodutor de toda pelo capital: despossuída de sua própria exploração, do uso de sua força de
a vida por redistribuição ou reinjeção antecipada de todo equivalente do sobretrabalho social. A
partir daí, a mais-valia está em toda parte e em nenhum lugar. Já não há exatamente "despesas inúteis
trabalho, ela não poderia fazer o capital pagar caro demais essa negação de
do capital" nem, inversamente,"lucro" no sentido de uma extorsão unilateral. A lei do sistema con- produção, essa perda de identidade, essa perversão. Explorada, ela só podia
siste em despojar-se dele e redistribuf-lo, a fim de que ele circule e todos e cada um, presos na malha exigir o minima Desclassificada, ela está livre para exigir tudo7. E o mais impor-
fina dessa redistribuição incessante, se tornem gestionários, e o grupo inteiro, autogestionário da
mais-valia, implicando-se assim, até o fundo, na ordem política e cotidiana do capital. E assim como
a mais-valia já não tem sentido vista do lado do capital, ela também já não existe do lado do 7. Outras formas paralelas à reivindicação maximalista: salário igual para todos, luta contra a
explorado.A distinção entre uma fração do trabalho que retorna no salário e um resto chamado mais- qualificação; todas visam o fim da divisão do trabalho (do trabalho corno relação social) e o fim
valia já não tern sentido diante de um trabalhador que, de reprodutor de sua força de trabalho em da lei de equivalencia no terreno, fundamental para o sistema, da equivalencia entre salário e força
seu salário, se torna reprodutor de sua vida inteira num processo de "trabalho" generalizado. de trabalho. Elas visam portanto, indiretamente, à forma mesma da economia politica.

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0 FIM DA PRODUÇÃO 0 FIM DA PRODUÇÃO

tante é que o capital a segue relativamente bem nesse terreno. Todos os sindi- Concorde, dos programas militares totais, da inflação do parque industrial, dos
catos juntos não são demasiados para dar aos assalariados inconscientes a equipamentos de infra-estrutura sociais ou individuais, dos programas de forma-
consciéncia da equivaléncia salário/trabalho que o capital mesmo aboliu. To- gab e de reciclagem etc. É preciso produzir seja lá o que for de acordo com uma
dos os sindicatos juntos não são demasiados para canalizar essa chantagem restrição de reinvestimento a qualquer prego (e não em função da taxa de mais-
salarial ilimitada para os caminhos de uma negociação razoável. Sem sindica- -valia). Nesse planning reprodutivo, o prato principal promete ser a antipoluição,
tos, os operários exigiriam 50,100 ou 200% de aumento de uma vez talvez -e em que todo o sistema "produtivo" vai se reciclar com base na eliminação dos
o conseguissem! Há exemplos nesse sentido nos Estados Unidos e no Japão8. seus próprios dejetos -
equação gigantesca de resultado nulo -e
no entanto
não nulo, porque, com a "dialética" poluição/antipoluição, surge a esperança de
um crescimento sem fim.
A MOEDA II. Desconexão entre o signo monetário e toda produção social: ele entra
A homologia postulada por Saussure entre trabalho e significado, de um lado, e então na especulação e na inflação ilimitada. A inflação é para a moeda o que
salário e significante, do outro, é uma espécie de matriz a partir da qual podemos a escalada dos salários é para a venda de força de trabalho (o que o crescimen-
lançar luz sobre toda a economia política. Essa homologia se verifica hoje ao to é para a produção). Em todos esses casos, a mesma perda de vínculo desen-
cadeia o mesmo abalo e a mesma crise virtual. Perda de vínculo entre o salário
contrário: desconexão entre significantes e significados, desconexão entre salário
e trabalho.Escalada paralela do jogo de significantes e do salário.Saussure tinha ra-
zão: a economia política é uma lingua,e a mesma mutação que afeta os signos da
e o "justo" valor da força de trabalho -
perda de vínculo entre a moeda e a
produção real: mesma perda de referencial. Num caso, o tempo de trabalho
lingua quando eles perdem seu estatuto referencial também afeta as categorias da social abstrato, no outro, o padrão-ouro, perdem a sua função de índice e de
critérios de equivaléncia. Inflação salarial e inflação monetária (e crescimento)
economia política. Esse processo se verifica também em duas outras direções:
I. Desconexão entre a produção e toda referência ou finalidade social

entra então na fase do crescimento. É preciso interpretar o crescimento nesse


ela - são, assim, do mesmo tipo -
e são inseparáveis9.
Esvaziada das finalidades e dos afetos da produção, a moeda se torna
sentido, nao como uma aceleração, mas como outra coisa que marca, na realida- especulativa. Do padrão-ouro, que já deixara de ser o equivalente representati-
de, o firn da produção. Fsta se caracterizava por um afastamento significativo entre vo de uma produção real, mas ainda guardava o vestígio desta em certo equi-
uma produção e um consumo relativamente contingente e autônomo. Contudo, líbrio (pouca inflação, convertibilidade das moedas em ouro etc.) aos capitais
a partir do momento (a crise de 1929 e, sobretudo, o fim da Segunda Guerra flutuantes e à flutuação generalizada, ela passa do signo referencial a forma
Mundial) em que o consumo se torna literalmente dirigido, isto é, toma forga ao estrutural. Lógica própria do significante "flutuante", não no sentido de Lévi-
mesmo tempo de mito e de variável controlada, entramos numa fase na qual nem -Strauss, onde ele ainda não teria encontrado significado, porém no sentido de
a produção nem o consumo continuam a ter determinações próprias, nem fins ter ele se desembaraçado de todo significado (de uma equivaléncia no real)
respectivos - mas se vérn presos num ciclo, ou espiral, ou ainda num entrelaça-
mento que os supera, e que é o do crescimento. Este último deixa bem atrás de
como de um freio à sua proliferação e ao seu jogo ilimitado. A moeda pode
assim reproduzir-se a si mesma de acordo com um simples jogo de transferén-
si os objetivos sociais tradicionais da produção e do consumo. Trata-se de um cias e de registros contábeis, de acordo com um desdobramento e uma dupli-
processo em si e para si só. Ele já não visa as necessidades nem o lucro. Já não cação incessantes de sua própria substancia abstrata.
uma aceleração da produtividade, mas, estruturalmente, uma inflação de signos Hot money: assim são chamados os eurodólares, sem dúvida para caracte-
da produção, um remanejamento e uma fuga para a frente de todos os signos, rizar essa ciranda insensata do signo monetário. Mas seria mais justo dizer que
inclusive do signo monetário, é claro. É o estágio dos programas de fusão, do a atual moeda tornou-se "cool" -
termo que designa (McLuhan e Riesman)
uma intensa relatividade de termos, mas sem afetos, um jogo que se alimenta
8.E o mesmo fenômeno que se produz nos países subdesenvolvidos. Nenhum limite ao preço
somente das regras do jogo, da comutação de termos e do esgotamento dessas
das materias-primas a partir do momento em que estas, bem além do econômico, se tornam o comutações. Hot caracteriza, ao contrário, a fase referencial do signo, com sua
signo, a garantia da aceitação de uma ordem politica mundial, a sociedade planetária da coexis- singularidade e sua espessura de significado real, seu afeto muito forte e sua
tencia pacífica, em que os países subdesenvolvidos são socializados à força sob o ataque das
grandes potélncias.A escalada dos preços passa a ser então um desafio, não somente à riqueza dos

classe politica mundial -


países ocidentais, mas ao sistema politico da coexistencia pacífica, diante da dominação de uma
capitalista ou comunista, pouco importa.
9.E a crise da energia oferece aos dois ao mesmo tempo um alibi e uma dissuasão perfeita. A
partir de então, a inflação, crise estrutural interna ao sistema, vai poder ser imputada ao "aumento
Os árabes, antes da guerra do petraeo, se atinham à reivindicação salarial tradicional: fazer
pagar o petróleo pelo seu justo valor. Depois disso, a reivindicação se torna maximizada, ilimitada,
indevido" cobrado pelos países pibdutores de energia e de matérias-primas - e o desacordo do
sistema produtivista, que exprime entre outros o desafio salarial maximalista,vai poder ser combatido
e muda de sentido. pela chantagem da penúria, isto é, pela chantagem do valor de uso do sistema econômico mesmo.

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pouca comutabilidade. Encontramo-nos em plena fase cool do signo. 0 atual momento em que o equivalente mental do padrão-ouro, o sujeito, se perdeu.
sistema de trabalho é cool, a moeda é cool, todo ajuste estrutural em geral Nada de instancia de referenda sob a jurisdição da qual os produtores podiam
cool, e a produção e o trabalho "clássicos", processos hot por excelência, ce-
trocar seus valores de acordo corn equivalências controladas: é o fim do pa-
deram lugar ao crescimento ilimitado ligado ao desinvestimento dos conteúdos
drão-ouro. Nada de instância de referencia sob cuja égide sujeito e objetos
e do processo de trabalho, que são processos cool.
podiam se trocar dialeticamente, trocar suas determinações em torno de uma
Coolness: é o jogo puro dos valores de discurso, das comutações de regis-
identidade estável segundo regras seguras: é o fim do sujeito da consciencia.
tro, é a facilidade, o distanciamento de quem não joga senão com números,
É-se tentado a dizer: é o reino do inconsciente. Conseqüência lógica: se
signos e palavras, é a onipotencia da simulação operacional. Enquanto houver o
sujeito da consciência é o equivalente mental do padrão-ouro, é o inconsciente
afeto e referenda], estamos no hot. Enquanto houver "mensagem" estamos no
o equivalente mental da moeda especulativa e dos capitais flutuantes. Hoje,
hot. Quando o meio se torna a mensagem, entramos na era cool. E é precisa- com
efeito, os indivíduos, desinvestidos como sujeitos e despojados de sua relações
mente isso o que ocorreu corn a moeda.Chegada a certa fase de desconexão,
ela não é mais um canal, um meio de circulação de mercadorias, tornando-se de objeto, vagam à deriva uns corn relação aos outros num modo incessante
a circulação mesma, isto é, a forma realizada do sistema em sua abstração de flutuações transferenciais: fluxo, ramificações, desconexões, transferência/
rodopiante. contratransferencia toda a sociabilidade pode ser descrita com muita pro-
A moeda é a primeira "mercadoria" que passa ao estatuto de signo e esca- priedade em termos de inconsciente deleuziano ou de mecânica monetária (e
pa ao valor de uso. Por isso, é duplicação do sistema do valor de troca num talvez em termos riesmanianos de "otherdirectedness [direcionamento para o
signo visível, e a esse título é o que revela o mercado (e, portanto, também a outror a "otherdirectedness" já é, em termos, valha-nos Deus, anglo-saxões e
escassez) em sua transparencia. Contudo, hoje a moeda dá um passo a mais: pouco esquizofrenicos, essa flutuação das identidades). Por que haveria um
ela escapa ate- mesmo ao valor de troca. Liberta do próprio mercado, ela se privilégio do inconsciente (mesmo orfão e esquizofrenico)? 0 Inconsciente
torna simulacro autonomo,sem o lastro de nenhuma mensagem e de nenhuma a estrutura mental contemporãnea da atual fase, a mais radical, da troca domi-
significação de troca, tornada ela mesma mensagem e trocando-se em si mes- nante, contemporânea da revolução estrutural do valor.
ma. Logo, ela já não é uma mercadoria, porque já não há nela nem VU. nem
VT. Ela já não é o equivalente geral, isto é, ainda abstração mediadora do
mercado. Ela é o que circula com maior rapidez do que todo o resto, e sem A GREVE
medida comum com o resto. Claro que podemos dizer que ela sempre o foi, A greve se justificava historicamente num sistema de produção
como vio-
que desde a alvorada da economia de mercado é ela o que circula mais Venda organizada visando arrancar à violencia inversa do capital uma fração
rapidamente, e que ela envolve todos os outros setores nessa aceleração. E, ao da mais-valia, senão do poder. Hoje, essa greve está morta:
longo da história do capital, há distorção entre os diferentes níveis (financeiro, I. Porque o capital tem condições de deixar que todas as greves levem
ao
industrial, agrícola, mas também bens de consumo etc.) de acordo com a
velocidade de circulação. Ainda hoje persistem essas distorções; há, por exem-
desgaste -e isso porque já não se está num sistema de produção (maximização
da mais-valia). Pereça o lucro, desde que a reprodução do forma da relação
plo, resistencia das moedas nacionais (ligadas a um mercado, a uma produção, social seja salva!
a um equilíbrio local) a moeda especulativa internacional. Mas é desta a ofen- 2. Porque essas greves, no fundo, nada mudam: hoje, o capital
redistribui
siva, por ser ela que circula com maior rapidez, que fica à deriva, que flutua: a si mesmo, por constituir isso para ele uma questão de vida ou morte.
Na
um simples jogo de flutuação pode abalar qualquer economia nacional.Segun- melhor das hipóteses, a greve arranca ao capital o que este teria concedido de
do uma velocidade de rotação diferencial, todos os setores são então levados qualquer maneira com o tempo, de acordo com sua própria logica.
por essa flutuação ao auge, que, longe de ser um processo epifenomenal e Se, portanto, as relações de produção, e a luta de classes com elas,
barroco ("para que serve a Bolsa?"), é a mais pura expressão do sistema, cujo se
afundam em relações sociais e políticas orquestradas, está claro que só pode
cenário encontramos em toda parte: inconvertibilidade das moedas em ouro
ou dos signos em seu referencial - convertibilidade flutuante e generalizada
-
irromper nesse ciclo aquilo que escapa à organização e a definição da classe
como:
das moedas entre si ou dependencia, jogo estrutural indefinido dos signos
mas também flutuação de todas as categorias da economia política de vez que
-- instância histórica representativa;
instância histórica produtiva.
perdem seu referente-ouro, a força de trabalho e a produção social: trabalho e Só quem escapa ao torniquete da produção e da representação pode

-
não-trabalho, trabalho e capital, tornam-se conversíveis, toda lógica se dissolve,
bem como a flutuação de todas as categorias da consciencia a partir do
desregrar-lhes os mecanismos e fomentar, do fundo de sua condição cega, um
retorno da "luta de classes" que poderia muito bem ser seu fim puro e simples

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0 Fim PA PRODUÇÃO 0 Fuvt DA PRODKAO

como lugar geornétrico do "polftico". É aqui que a intervenção dos imigrantes esta recusa e fecha as fábricas. Ela apela aos trabalhadores passando por cima
assume sentido nas greves recentes'°. dos sindicatos. Na realidade, a direção impele deliberadamente à crise para co-
Como milhões de trabalhadores estão, devido ao mecanismo de sua discri- locar os sindicatos num beco sem safda:saberão eles controlar todos os trabalha-
minação, privados de toda instância representativa, são os imigrantes cuja dores? É sua existencia social, sua legitimidade, que está em causa. Eis o motivo
irrupção na cena ocidental da luta de classes leva a crise ao nfvel crucial da do "endurecimento" patronal (e governamental, em todos os nfveis). Já não se
representação. Mantidos fora de classe por toda a sociedade, inclusive pelos trata de uma prova de força entre proletariado organizado (sindicalizado) e patro-
sindicatos (e com a cumplicidade econômico-racial de sua "base" no tocante nato, mas de uma prova de representatividade para o sindicato, sob a dupla pres-
a isso: para a "classe" proletária organizada, centrada em sua relação de forças
econômico-políticas com a classe burguesa capitalista, o imigrante é "objetiva-
são da base e do patronato - e essa prova é o resultado de todas as greves
selvagens dos últimos anos, quer dizer, que ela tem por detonador os não-sindi-
mente" um inimigo de classe), eles atuam, graças a essa exclusão social, como calizados, os jovens refratários, os imigrantes, todos os exclufdos da classe.
analistas da relação entre trabalhadores e sindicatos e, de maneira mais geral, É extraordinário o que está envolvido nesse nfvel. É todo o ediffcio social
da relação entre a "classe" e toda instância representativa da "classe". Desviantes que ameaça ruir com a legitimidade e a representatividade sindicais. 0 Parla-
quanto ao sistema da representação polftica, eles infectam com seu desvio mento e todas as outras instancias mediadores não tem um peso maior.Mesmo
todo o proletariado, que aprende, ele também, a prescindir do sistema da a polftica para nada serve sem os sindicatos, se estes últimos são incapazes de
representação e de toda instância que pretenda falar em seu nome. manter a ordem nas fábricas e alhures. Em maio de 1968, foram eles que
A situação não durou: sindicatos e patrões farejaram o perigo e se dedicaram salvaram o regime. No momento, é a sua hora que soa. Profundamente, essa
a reintegrar os imigrantes como "figurantes plenos" da cena da "luta de classes". importância dos elementos envolvidos se exprime na própria confusão dos
eventos (e isso vale para a ação estudantil e para as greves da Renault). Greve,
não-greve. Em que se está? Ninguém decide mais nada. Quais são os objetivos?
A autópsia dos sindicatos Onde estão os adversários? De que falamos? Os contadores Geiger graças aos
quais sindicatos, partidos e grupúsculos avaliam a combatividade das massas
A greve de março-abril de 1973 na Renault constituiu uma espécie de enlouquecem. 0 movimento estudantil se liquefaz nas mãos daqueles que
repeticão geral dessa crise. Aparentemente confusa, descoordenada, manipula- desejam estruturá-lo de acordo com seus próprios objetivos: não teria ele então
da e no final um fracasso (a não ser pela extraordinária vitória terminológica objetivos? Seja como for, ele não quis deixar-se objetivar por trás. Os operários
que consistiu em substituir 0.E., a partir de então tabu, por A.P :"agente pro- retomam o trabalho num momento em que nada ganham, ao passo que se
dutivo"!), na realidade uma agonia belfssima dos sindicatos, espremidos entre recusaram a fazê-lo oito horas antes, quando tinham sensfveis vantagens etc.
a base e o patronato. No infcio, trata-se de uma greve "selvagem" desencadeada Essa confusão é, na verdade, como a do sonho: ela traduz uma resistencia ou
pelos O.E. imigrantes. Mas a C.G.T tem agora, contra esse gênero de acidente, uma censura que afeta o próprio conteúdo do sonho. Aqui, ela traduz um fato
uma arma inteiramente pronta: a extensão da greve a outras fábricas ou a capital, e dificilmente aceitável pelos próprios proletários: o fato de que a luta
outras categorias de pessoal, dando ensejo, assim, a uma ação de massa prima- social se deslocou do inimigo de classe tradicional, externo, patrões e capital,
veril doravante ritual. Ora, mesmo esse mecanismo de controle, que se mostrou para o verdadeiro inimigo de classe interno, a própria instância representativa
eficaz a partir de 1968, e no qual os sindicatos contavam apoiar-se por uma da classe: o partido ou sindicato. A instância à qual os operários delegam seu
geracão, na verdade lhes escapou dessa vez. Mesmo a base não selvagem poder, e que se volta contra eles na forma de delegação de poder patronal e
(Seguin, Flins, Sandouville) ora parou, ora retomou o trabalho (o que também governamental. 0 capital, por sua vez, só aliena a força de trabalho e o seu
importante) sem levar em conta os "conselhos" dos seus sindicatos. Estes produto, só tem o monopólio da produção. Os partidos e sindicatos alienam o
viram-se constantemente pegos no contrape. 0 que eles obtiveram da direção poder social dos explorados, e eles tem o monopólio da representação. Seu
para levar à ratificação dos operdrios estes já não queriam mais.As concessões questionamento é um desenvolvimento revolucionário histórico. Mas esse pro-
que conseguiram dos operários para retomar as negociações com a direção gresso é pago por uma menor clareza, uma menor resolução, uma aparente
regressão, a ausência de continuidade, de lógica, de objetivos etc. É que tudo
10. Mas esta intervenção Mao exclui a de todo outro grupo privado de representação social. fica incerto, tudo resiste quando se trata de enfrentar sua própria instãncia
Jovens mulheres, estudantes, homossexuais e Os próprios "prolos [proletarios]", quando se tornam repressiva, de expulsar o representante sindical, o delegado, o responsável, o
"selvagens", ou entao se se admitir que, no fundo, os sindicatos de forma alguma os representam,
representando apenas a si mesmos - somos todos, nesse sentido,"imigrantes". Inversamente, os
próprios podem deixar de se-lo. Não ha, portanto,"imigrantes enquanto tais", e estes não consti-
porta-voz de sua cúpula. Mas essa incerteza da primavera de 1973 indica pre-
cisamente que tocamos no fundo do problema: os sindicatos e os partidos
tuem um novo sujeito Instórico, um neoproletariado que assumisse a importancia do outro. estão mortos, restando-lhes morrer.

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0 FDA DA PRODKAO 0 FIM DA PRODUÇA0

A orgia do proletariado Há uma estreita relação entre essa ultracolonização dos trabalhadores
imigrantes (como as colõnias não eram mais rentáveis como tais, eles são
Essa crise da representação é o aspectopolftico crucial dos últimos movimen-
importados) e essa descolonização industrial que afeta todos os setores da
tos sociais. Por si só, ela não poderia, no entanto, ser mortal para o sistema, e já sociedade (em toda parte, na escola, na fábrica, passa-se da fase hot de inves-
vemos se perfilar por toda parte (nos próprios sindicatos) sua superação formal timento do trabalho à prática cool e cfnica das tarefas). Sao eles, os imigrantes
(sua assimilação) num esquema generalizado de autogestão. Nada de delegação (e os O.E. jovens ou da zona rural), porque são os mais recentemente saídos
de poder, todos são integralmente responsáveis pela produção! A nova geração da indiferença "selvagem" ao trabalho "racional", que analisam a sociedade
ideológica se levanta! Mas ela terá muito o que fazer, porque essa crise se articula ocidental no que pode haver de recente, de frágil, de superficial e de arbitrário
sobre uma outra bem mais profunda que toca a produção mesma, o próprio nessa coletivização forçada pelo trabalho, essa paranoia coletiva, de que se fez
sistema da produtividade. E nisso ainda os imigrantes, sem dúvida indiretamente, uma tal moral, uma tal cultura, um tal mito que se esqueceu de que são apenas
estão na posição de analistas. Do mesmo modo que analisavam a relação entre
o "proletariado" e suas instancias representativas, eles analisam a relação dos
trabalhadores com sua própria foro de trabalho, sua relação consigo mesmos
inauditos, no próprio Ocidente -
dois séculos de imposição dessa disciplina industrial, ao preço de esforços
de que ela jamais foi bem-sucedida de fato
e começa a rachar perigosamente (no fundo, ela não terá durado nem um
enquanto força produtiva (e não mais apenas com alguns dentre eles enquanto pouco mais do que a outra colonização, a do além-mar).
instância representativa). E isso porque são os imigrantes que foram mais recen-
temente tirados à força de uma tradição não-produtivista. Porque foi necessário
desestruturá-los socialmente para lançá-los no processo de trabalho ocidental e A greve pela greve
porque, em troca, são eles que desestruturam em profundidade este processo
geral e a moral produtivista que dominam as sociedades ocidentais. A greve pela greve é a verdade atual da luta. Sem motivação, sem objetivo
Tudo se passa como se sua contratação forçada no mercado de trabalho nem referencial político, ela responde opondo-se a uma produção ela mesma
europeu provocasse uma orgia crescente do proletariado europeu diante do sem motivação, sem referencial, sem valor de uso social, sem outra finalidade
trabalho e da produção. Não se trata mais apenas de práticas "clandestinas" de que não ela mesma -a uma produção pela produção, em suma, a um sistema
resistência ao trabalho (operação-tartaruga, desperdício, absenteísmo etc.), que que não é senão sistema de reprodução e que gira sobre si mesmo numa
jamais cessaram - mas desta vez: abertamente, coletivamente, espontanea-
mente, os operários deixarà de trabalhar, assim, subitamente, sem reivindicar
gigantesca tautologia do processo de trabalho.A greve pela greve é a tautologia
inversa, porém subversiva porque desvela essa forma nova do capital, que
nada, sem negociar nada, para grande desespero dos sindicatos e dos patrões, corresponde ao estágio último da lei do valor.
e voltam ao trabalho com a mesma espontaneidade, e juntos, na segunda-feira A greve deixa enfim de ser um meio, e somente um meio, de incidir sobre
seguinte. Nem fracasso nem vitória, não se trata de greve, trata-se de uma a relação de forças polfticas e o jogo do poder. Ela se torna um fim. Ela nega,
"paralisação do trabalho". Eufemismo que diz mais do que o termo greve: ao parodiá-lo radicalmente, em seu próprio terreno, esse tipo de finalidade sem
toda disciplina do trabalho que cai,todas as normas morais e práticas impostas fim de que foi feita a produção.
pela colonização industrial há dois séculos na Europa que se desagregam e são Na produção pela produção, já não há desperdfcio. Este termo, valioso
esquecidas, sem esforço aparente, sem "luta de classes" propriamente dita. numa economia restrita do uso, é para nós não-utilizável. Ele depende de uma
crítica piedosa do sistema. 0 Concorde, o programa espacial etc. não são
Descontinuidade, laxismo, indisciplina horária, indiferença com relação ao
desconto do salário, ao excedente, â promoção, à acumulação, â previsão
faz-se justamente o que é preciso, depois se pára e mais tarde volta-se a isso.
- desperdício; pelo contrário. Porque aquilo que o sistema, tendo chegado a esse
ponto alto de inutilidade "objetiva", produz e reproduz é o próprio trabalho. Isso
é, por outro lado, o que todo mundo (trabalhadores e sindicatos incluídos)
São exatamente os comportamentos que os colonos reprovam nos "subdesen-
volvidos": impossível levá-los ao valor/trabalho, ao tempo racional e continuo,
-
exige dele desde o início. Tudo gira em torno do emprego
criação de empregos
- o social: é a
ao conceito de ganho salarial etc. Apenas quando os exportamos para além-
-mar chegamos enfim a integrá-los ao processo de trabalho. E é nesse momento
que Os próprios trabalhadores ocidentais "regridem" cada vez mais rumo a
estão prontos a transformar o Concorde em bombardeiro supersõnico
ção
-
para preservar o emprego, os sindicatos britânicos
infla-
desemprego: viva a inflação etc. 0 trabalho tornou-se,como a Seguridade
comportamentos de "subdesenvolvidos". Não é a menor vingança pela coloni- Social, como os bens de consumo, um bem de redistribuição social. Enorme
paradoxo: o trabalho é cada vez menos uma força produtiva e cada vez mais
proletariado ocidental tomado pela orgia -
zacão e sua forma mais avançada (a importação de mão-de-obra) ver o próprio
se bem que seria necessário talvez
um dia exportar este último para os países subdesenvolvidos, a fim de ensinar-
um produto. Esse aspecto rid() é menos característico da mutação atual do
sistema do capital, da revolução pela qual este último passa do estágio espe-
-lhes outra vez os valores históricos e revolucionários do trabalho. cífico da produção ao da reprodução. Há cada vez menos necessidade de

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0 FIM DA PRODUÇA0 0 FIM DA PRODUÇÃO

forga de trabalho para ele funcionar e se ampliar, e exige-se dele que fornega, mono, a natureza, os animais, as criangas, os negros, as mulheres
não um
-
não um
estatuto de
que "produza" cada vez mais trabalho. estatuto de exploração, mas um estatuto de excomunhão
A essa absurda circularidade de um sistema no qual se trabalha para pro- espoliagão e de exploragão, mas um estatuto de discriminagão e de marcagão.
duzir trabalho corresponde a reivindicagão da greve pela greve (6 por outro A minha hipótese é a de que jamais houve verdadeira luta de classes
lado af que desembocarn,tambem elas hoje, muitas das greves"reivindicatórias"). exceto na base dessa discriminagão: a luta dos sub-homens contra seu estatuto
"Queremos o pagamento dos dias parados"- isto é dizer, no fundo: queremos de bestas, contra a abjegão dessa distingão de casta que os condena à sub-
que nos paguem para que possamos reproduzir a greve pela greve. Reversão do -humanidade do trabalho. É isso que está por trás de cada greve, de cada
absurdo do sistema geral. revolta, hoje ainda por trás das agões mais "salariais": sua viruléncia vem daf.
Hoje, quando os produtos,todos os produtos,e o próprio trabalho estão alem Dito isso, o proletário é hoje um ser "normal", o trabalhador foi promovido
do útil e do inútil- já não há trabalho produtivo, só há trabalho reprodutivo. 0
quanto o trabalho, o trabalho de uma fábrica tão "impro-
dignidade de "ser humano" por direito; é por outro lado a esse tftulo que ele
retoma por sua conta as discriminagões dominantes: ele é racista, sexista, re-
lazer é tdo "produtivo"
dutivo" quanto o lazer ou -
o terciário pouco importa uma ou a outra fórmula,
acabada da economia política. Todos
pressivo. No que se refere aos desviantes atuais, aos discriminados de todo
género, ele está do mesmo lado que a burguesia: do lado do humano, do lado
são reprodutivos -
e essa indiferença marca
quer
precisamente
dizer,
Ninguém produz mais. A produgão
perderam
a

está
fase
a finalidade
morta. Viva a
concreta que os distinguia.
reprodugão!
do normal.Tanto é verdade que a lei fundamental dessa sociedade não é a lei
da exploragão, mas o código da normalidade.

Genealogia da produção Maio de 68: A ilusão da produção

0 que é reproduzido no sistema atual é o capital em sua definigão mais A primeira onda de choque dessa passagem da produgão à pura e simples
rigorosa: como forma da relação social, e não na acepgão vulgar, como dinhei- reprodugão foi Maio de 1968. Ele atingiu de infcio a Universidade, bem como
ro, lucro e sistema econõmico. Sempre se entendeu a reprodugão como repro- as Faculdades de Ciéncias Humanas, porque foi af que se tornou mais evidente
dugão "ampliada" do modo de produgão, e determinada por este último. Mas (mesmo sem uma consciência "polftica" clara) que não se produzia mais nada
e que a única coisa que se fazia era reproduzir (os professores, o saber e a
preciso conceber o modo de produgão como modalidade (e não a única)
do modo de reprodução. Forgas produtivas e relagões de produgão
- só são talvez uma das
-
ou seja,
conjunturas pos-
cultura, eles mesmos fatores de reprodugão do sistema geral). Foi isso, vivido
como inutilidade total, irresponsabilidade ("Por que sociólogos?"), relegagão,
a esfera da produtividade material
que fomentou o movimento estudantil de 1968 (e não a auséncia de mercados
sfveis, e, portanto, historicamente relativa, do processo de reprodugão.
dugão é uma forma que ultrapassa em muito a exploragão econômica. O jogo
A repro-
- sempre ha' mercados suficientes na reprodução -,o que não existe mais são
os lugares, os espaços onde se produza verdadeiramente alguma coisa).
de forgas produtivas não é, por conseguinte, a sua condigão necessária.
Historicamente, não é o estatuto do "proletariado" (do assalariado industrial) Essa onda de choque nunca se interrompe. Ela só pode propagar-se até as
desde o infcio o do encarceramento, da concentragão e da exclusão social? extremidades do sistema, à medida que setores inteiros da sociedade sairão da
0 encarceramento manufatureiro é a ampliagão fantástica do encarcera- posigão de forças produtivas para a pura e simples posigão de forças reprodu-
tivas. Se esse processo atingiu de infcio os setores da cultura, do saber, da
mento descrito por Foucault para o século XVII. 0 trabalho "industrial" (não
artesanal, coletivo, privado de meios de produção, sob controle) não terá nasci- justiga, da famflia
afeta
-
progressivamente
isto é, os setores ditos "supraestruturais"
hoje também todo o setor dito
está claro que
"infra-estrutural": uma
do nos primeiros grandes Hospitais Gerais? Num primeiro momento, uma socie-
dade em vias de racionalizagão encarcera seus ociosos, seus errantes, seus nova geragão de greves a partir de 1968, greves parciais, selvagens, episodicas,
desviantes, ela os ocupa, fixa-os, impõe-lhes seu princfpio racional de trabalho. pouco importa, testemunha não mais a "luta de classes" de um proletariado
Mas a contaminagão é recfproca, e a cesura pela qual a sociedade instituiu seu destinado à produgão, mas a revolta daqueles que, nas próprias fábricas, são
princfpio de racionalidade reflui para a sociedade de trabalho em sua totalidade: destinados à reprodugão.
o encarceramento é um micromodelo que vai generalizar-se em seguida como Contudo, nesse setor mesmo, são as categorias marginais, anõmicas, as
sistema industrial, em toda a sociedade tornada, sob o signo do trabalho, da primeiras a ser atingidas: jovens O.E. importados diretamente do campo para a
finalidade produtivista, um campo de concentragão, de detengão, de reclusão. fábrica, imigrantes, os não sindicalizados etc. Por todas as razões indicadas, o
Em vez de exportar o conceito de proletariado e de exploragão para a opres- proletariado "tradicional", organizado e sindicalizado, tem de fato todas as
são racial, sexual etc., é preciso se perguntar se não é o inverso que ocorre. Se o chances de ser o ultimo a reagir, por ser ele que pode acalentar por mais tempo
operário não é de infcio, se seu estatuto fundamental não é, como o louco, o a ilusão do trabalho "produtivo". Essa consciéncia de ser, corn relagão a todos

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O Filvi DA PRODuoo

os outros, verdadeiros "produtores", de estar, ainda assim, mesmo ao preço da


exploração na base da riqueza social, essa consciência "proletária", reforcada
e sancionada pela organização, constitui por certo a mais segura barreira ideo-
lógica contra a desestruturação do sistema atual que, longe de proletarizar
camadas inteiras da populacão, isto é, de ampliar a exploração do trabalho
"produtivo", como o quer a boa teoria marxista, alinha todos no mesmo esta-
tuto de trabalhador reprodutivo.
A Economia Política
ilusão da produção -
Os trabalhadores "produtivos" manuais vivem, mais do que os outros, na
assim como vivem seu lazer na ilusão da liberdade.
Enquanto são vividas como fonte de riqueza e de satisfacão, como VU., como Mode lo de Simulação
ainda que seja o pior trabalho alienado e explorado, as coisas são suportáveis.
Enquanto ainda se possa referir uma "produção" correspondente (mesmo de
maneira imaginária) a necessidades individuais ou sociais (e é por isso que o
conceito de necessidade é tão fundamental e tão mistificador), as piores situa-
cões individuais ou históricas são suportáveis, porque a ilusão da produção
sempre a ilusão de faze-10 coincidir com seu valor de uso ideal. E aqueles que
hoje crêem no valor de uso de sua força de trabalho - os proletários- são
virtualmente os mais mistificados, os menos suscetíveis dessa revolta que avalia
as pessoas do fundo de sua inutilidade total, da manipulacão circular que faz
delas puros marcos de uma reprodução insensata.
-
Aeconomia política doravante é para nós o real isto é, de maneira
bem exata aquilo que constitui o referencial no signo: o horizonte
No dia em que esse processo se generalizar por toda a sociedade, Maio de de uma ordem defunta, mas cuja simulação preserva um equilíbrio
1968 tomard a forma de uma exposição geral, e não mais se colocará o proble- "dialético" do conjunto. 0 real, logo o imaginário. Porque também aí as duas
ma da ligacão estudantes/trabalhadores: bastaria traduzir o fosso que separa categorias outrora distintas se fundiram e derivam juntas. 0 código (a lei estru-
aqueles que, no sistema atual, ainda crêem em sua própria força de trabalho tural do valor) opera a reativacão sistemática da economia política (lei restrita
e aqueles que já não acreditam nela. e de mercado do valor) como real/imaginário de nossas sociedades, e a ma-
nifestação da forma restrita do valor equivale a ocultação de sua forma radical.
Lucro, mais-valia, mecanica do capital, luta de classes: todo o discurso
crítico da economia política é apresentado como discurso de referência. 0
mistério do valor é produzido em cena (naturalmente, o mistério apenas mu-
dou de valor: foi o valor estrutural que se tornou misterioso): todos estão de
acordo quanto a "instância determinante" do econômico, ela se torna "obsce-
na". É uma provocação. 0 capital já não vai buscar seus alibis na natureza, em

1. 0 anúncio do B.N.P [Banque Nationale de Paris] - -


"Seu dinheiro me interessa tragam-no,
tragam-no. Vocés me emprestam o seu dinheiro, e eu os deixo ter lucro com o meu banco:'
merece ser analisado nesse sentido.
10 É a primeira vez que o capital (pela sua instituicão de ponta que é o capital financeiro

internacional) enuncia com tanta clareza, olhos nos olhos, a lei de equivalencia,e o enuncia como
argumento publicitário. Essas coisas normalmente não são ditas, a troca de mercadorias é imortal,
e toda a publicidade visa apagá-la em proveito do serviço. Podemos, portanto, ter certeza de que
essa franqueza é uma máscara de segundo grau.
2' 0 objetivo aparente é convencer economicamente as pessoas a fazer um bom negócio ao
levar seu dinheiro ao B.N.P, mas a verdadeira estratégia é paralela (como as polícias).Trata-se de
convencer as pessoas mediante essa franqueza capitalista"homem a homem": mais sentimento, fim
da ideologia do serviço, cartas sobre a mesa etc. É seduzi-las pela obscenidade que há ern revelar
a lei oculta, imoral, da equivaléncia. Cumplicidade "viril": partilha-se entre homens a verdade obs-

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O FIM DA PRODUCAO A ECONOMIA POLÍTICA COMO MODELO DE SIMULACÃO

vive de sua própria denúncia interna -


Deus ou na moral, porém, diretamente, na economia politica, em sua crítica, e
estímulo dialético e feedback. Donde
o papel essencial da análise marxista no design do capital.
Funciona aqui o mesmo cenário descrito por Bourdieu/Passeron para o
sistema escolar: é sua pretensa autonomia que lhe permite reproduzir eficaz-
mente a estrutura de uma sociedade de classes. Também aqui é a pretensa
autonomia da economia politica (melhor:seu valor de instãncia determinante)
cena do capital. Donde o odor de lubricidade desse anúncio, o ar lascivo e devasso dos seus olhos que lhe permite reproduzir eficazmente a regra do jogo simbólico do capital,
fixados no dinheiro das pessoas como em seu sexo. A técnica é a da provocação perversa, bem sua dominação real de vida e de morte, aquela fundada no código, que fomen-
mais sutil do que a da sedução simplista pelo sorriso (este sera o tema da contra-ofensiva do
ta continuamente a economia política como meio, como álibi, como tapa-sexo.
Société Générale:"É o cliente que deve sorrir, não o banqueiro"). Seduzir as pessoas pela obsce-
nidade do econômico, cativá-las no nível do fascínio perverso que exerce sobre elas o capital em Se se deseja que a máquina reproduza as relações de produção, ela deve
sua própria atrocidade. Desse ponto de vista, o slogan significa simplesmente:"Seu rabo me inte- funcionar. Uma mercadoria deve ter um valor de uso para poder alimentar o
ressa; tragam-no, tragam-no. Emprestem-me suas fezes e eu os enrabarei".0 que não vai desagradar
sistema do valor de troca. Tal era o cenário no primeiro ravel. Em nossos dias,
a todo mundo.
Há por trás disso a moral humanista das trocas, um desejo profundo do capital, um desejo a simulação está no segundo nível: uma mercadoria deve funcionar como valor
vertiginoso da lei do valor, e é essa cumplicidade bem aquém ou bem além do econômico que esse de troca para melhor esconder o fato de circular como signo e de reproduzir
anúncio tenta retomar. Nisso, ele dá testemunho, talvez sem o saber, de uma instituição o código2. A sociedade deve se produzir como sociedade de classes, como luta
3" Os publicitários não podem deixar de ter sabido que essa face de vampiro para as classes
médias, essa cumplicidade lúbrica, esse ataque direto desencadeariam reações negativas. Por que
de classes, ela deve "funcionar" no nível marxista/crítico para melhor mascarar
correr o risco? a lei verdadeira do sistema e a possibilidade de sua destruição simbólica.

resisténcias à lei do lucro e da equivalência -


É esse o ponto em que a armadilha é mais estranha: esse anúncio foi feito para cristalizar as
para melhor impor a equivalencia entre capital e
lucro, entre capital e econômico (o "tragam-no, tragam-no") num momento em que isso já não
Marcuse assinalou há muito tempo essa derrapagem da dialética materialista:
as relações de produção, longe de ser desconstruídas pelas forças produtivas,
mais verdade, em que o capital deslocou a sua estratégia, ern que, portanto, ele pode enunciar sua submetem a si, doravante, essas mesmas forças produtivas (ciencia, técnica
"lei" por já não ser esta a sua verdade -a enunciação dessa lei não passa de urna mistificação etc.) e aí encontram uma nova legitimidade. Também nesse caso é preciso
suplementar.
passar ao segundo nível: são as relações sociais de dominação simbólica que
0 capital deixou de viver da lei do econômico: eis por que essa lei pode tornar-se argumento
publicitário, cair na esfera do signo e de sua manipulação. 0 econômico não é senão o teatro submetem a si o modo de produção inteiro (forças produtivas e relações de
quantitativo do valor. 0 anúncio o exprime à sua maneira, e o dinheiro não é aí mais do que um produção, tudo junto) e que encontram aí, no movirriento aparente da econo-
pretexto. mia política e de sua revolução, uma nova legitimidade e o mais belo álibi.
Disso decorre a comutabilidade do próprio anúncio, que pode agir ern todos os níveis.
Por exemplo:
Donde a necessidade de ressuscitar, de dramatizar a economia política
Seu inconsciente me interessa tragam-no, tragam-no; emprestem-me seus fantasmas e eu os como estrutura-tela. Daí advém o tipo de crise, de perpétuo simulacro de crise
farei lucrar corn a minha andlise; com que temos de lidar hoje.
Sua morte me interessa; tragam-na, tragam-na; façam um seguro de vida e eu farei a felicidade
No estágio estético da economia política, que é o de uma finalidade sem fim
dos seus;
Sua produtividade me interessa; tragam-na, tragam-na; emprestem-me sua força de trabalho e da produção, o mito ético, ascético, da acumulação e do trabalho cai por terra.
eu os farei lucrar com o meu capital. 0 capital, que corre o risco de estourar devido a essa liquefação de valores, torna-
E assim por diante: esse anuncio pode servir de "equivalente geral" a todas as relag6es sociais
-se portanto nostalgico do seu grande período ético,aquele no qual produzir tinha
atuais.
4" Se a mensagem fundamental do anúncio não é a da equivaléncia, a = a, tragam-no, tragam- um sentido, a idade de ouro da penúria e do desenvolvimento das forças produ-
-no (ninguém é tolo, e os publicitários hem o sabem) sera a da mais-valia (o fato de a operação tivas. Para reerguer as finalidades, para reativar o princípio do econômico, é pre-
ser saldada para o banqueiro e o capital pela equação a = a + a')? Essa verdade está mal disfarçada ciso regenerar a penúria. É por isso que a ecologia ou a ameaça de escassez
-no anúncio, e qualquer um pode farejá-la. 0 capital age aqui entre cordeiro e lobo, ele quase se
absoluta restitui uma ética da conservação de energia. Daí advém igualmente a
desmascara, mas isso nil() é grave, já que o que diz o anúncio na realidade não é da ordem da
equivalencia quantitativa nem da mais-valia, porém da ordem da tautologia: crise de energia e das matérias-primas, verdadeira bénção para um sistema ao
não: a = a qual o espelho da produção não devolve senão uma forma vazia e desvairada. A
nem: a = a + a'
crise vai permitir dar ao código da economia seu referencial perdido, ao princípio
mas: A é A
isto 6: um banco é um banco, um bang ueiro é um banqueiro, o dinheiro é o dinheiro, e voces não da produção um peso que lhe escapava. Vamos resgatar o gosto da ascese, o
podem fazer nada quanto a isso. A pretexto de enunciar a lei da equivaléncia econômica, o investimento patético que nasce da falta e da privação.
anúncio enuncia uma realidade imperativa tautológica, regra fundamental da dominação. Porque
se um banco é um banco, ou então se uma mesa é uma mesa, ou se 2 e 2 são 4 (e não 5, como
o queria Dostoiévski), isso é a verdadeira crença capitalista. Quando o capital diz "Seu dinheiro me 2.Assim, do mesmo modo como ha (para Marx também) uma fantasia naturalista do valor de
interessa", ele dissimula a rentabilidade para garantir a credibilidade. Essa credibilidade é de ordem uso, há para nós hoje uma fantasia economista do valor de troca. O valor de troca desempenha
econômica, mas a crença, que se vincula à tautologia e resume em si a identidade da ordem para nós, no jogo estrutural do código, o mesmo papel que desempenhava o valor de uso na lei
capitalista, é de ordem simbólica. de mercado do valor; simulacro referencial.

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0 nivi DA PRODUCAO A ECONOMIA POLÍTICA COMO MODEL() DE SIMULACAO

Toda a reviravolta ecológica dos últimos anos já tinha desencadeado esse


processo de regeneração pela crise -
uma crise que não é mais de superpro-
dução como a de 1929, mas de involução do sistema e de reciclagem de sua
esse estágio é atingido quando, estando todo antagonismo entre esquerda e
direita neutralizado, o exercício do poder pode alternar de uma para a outra.
É essa indeterminação de termos, essa neutralização de uma oposição
identidade perdida3. Crise não mais da produção, mas da reprodução (do que dialética em uma pura e simples alterneincia estrutural, que produz esse efeito
decorre a impossibilidade de determinar o que 6, nessa crise, a verdade e o tão característico de incerteza sobre a realidade da crise. Esse efeito insuportá-
simulacro). A ecologia é a produção que se reanima no espectro da penúria,
que recupera uma necessidade natural onde retemperar a lei do valor. Mas a
vel de simulacro -característico de tudo aquilo que procede do funciona-
mento sistemático de um código -
é algo que todos querem conjurar em
ecologia é demasiado lenta. Uma crise repentina, como a do petróleo, constitui termos de complô. A crise seria fomentada pelo "grande capital": esta hipótese
uma terapeutica mais enérgica. Quanto menos petróleo houver, tanto mais se tranqüilizadora, porque restaura uma instância econômico-politica real e a
vai perceber que existe uma produção. A partir do momento em que o lugar
presença de um sujeito oculto da crise e, portanto, de uma verdade da história.
da matéria-prima volta a ter destaque, a força de trabalho também recupera seu
lugar, e todo o mecanismo da produção volta a ser inteligível. Trata-se de um
0 terror do simulacro é afastado: tudo é melhor -
é melhor a fatalidade
econiimico-política onipresente do capital, desde que ele tenha uma verdade
novo começo.
clara: o lucro, a explorapo; é melhor essa atrocidade econômica do capital do
Portanto, nada de pãnico. No momento em que a mobilização intensiva da
que reconhecer a situação na qual nos encontramos, em que tudo é posto em
força de trabalho, a ética da força de trabalho ameaçam cair por terra, a crise
ação e tirado de ação pelo efeito do codigo. 0 desconhecimento dessa "verda-
da energia material vem oportunamente mascarar a destruição verdadeiramen-
de" da dominação mundial, se houver uma, é revelado pela primeira vez pela
te catastrófica da finalidade da produção, tornando-a uma simples contradição
própria crise em toda a sua amplitude.
interna (ora, sabemos que esse sistema se alimenta de suas contradições).
Porque a crise de 1929 ainda era uma crise do capital medido por sua taxa
de reinvestimento, de mais-valia e de lucro, uma crise da (super)produção medi-
da pelas finalidades sociais do consumo.E é a regulação da demanda que resulta
Há ainda uma ilusão em pensar que o sistema do capital, em certo limiar dessa crise numa troca sem fim de finalidades entre produção e consumo.A partir
de reprodução ampliada, passa irreversivelmente de uma estrategia da penúria de então (e, definitivamente, depois da Segunda Guerra Mundial), estes últimos
a uma estratégia da abundância.A crise atual prova que essa estratégia é rever- deixam de ser pólos opostos e eventualmente contraditórios. De um só golpe,
sível. A ilusão vinha ainda de uma f6 ingenua numa realidade da penúria ou todo o campo do econômico perde, com a própria possibilidade da crise, toda
numa realidade da abundãncia, e portanto da ilusão de uma oposição real determinação interna. Ele só subsiste como processo de simulação econômica
entre os dois termos. Mas esses dois termos são simplesmente alternativos, e a nos confins de um processo de reprodução que o absorve por inteiro4.
definição estratégica do neocapitalismo não é passar à fase da abundância (do
consumo, da dessublimação repressiva, da liberação sexual etc.), mas à fase de
alterneincia sistemcitica entre os dois: penúria e abundãncia -
porque os dois
econômico -
Mas terá havido algum dia penúria real e, portanto, realidade do princípio
para que hoje se possa dizer que ela desaparece e só atua como
mito, e ao mesmo tempo mito alternativo daquele da abundãncia? Terá havido
termos já não tern referencia nem, por conseguinte, realidade antagônica, e historicamente um ualor de uso da penúria e, por conseguinte, uma finalidade
porque, em conseqüencia, o sistema pode passar indiferentemente de um para irredutível do econômico, tal que hoje se possa dizer que desapareceu no ciclo
o outro. Isso representa o estágio acabado da reprodução. No domínio politico, da reprodução em proveito unicamente da hegemonia de um código, de uma

3.0 Senado americano chegou a ponto de avaliar quanto custaria devolver à água o grau de 4. Claro que restam, entre lei estrutural e lei de mercado do valor, contradições, tal como as
pureza que ela possuía antes da conquista da América pelos europeus (a "norma 1491", tendo houve numa fase anterior entre lei de mercad6 e valores pré-capitalistas resistentes (estes sequer
Cristóváo Colombo, como se sabe, desembarcado em 1492). Trezentos e cinqüenta bilhões de desapareceram por completo). Logo, o sistema tem como fim absoluto controlar a morte: isso faz
dólares. Mas pouco importam os bilhões de Mares, porque o que os senadores calculam de fato
o que custaria devolver o próprio sistema à pureza original da acumulação primitiva, à idade de
parte da marcação estrutural da vida - mas se choca com imperativos económicos, com uma
lógica tradicional do lucro (custos gigantescos de cuidados médicos prolongados, da sobrevivén-
ouro da força de trabalho. A norma 1890, ou mesmo 1840? cia hospitalar etc.). Daí resulta um compromisso, urn equilíbrio absurd() (a taxa de 35 por cento
Do mesmo modo, o atual sistema monetário sonha com o ouro e com o Gold Exchange de pacientes com leucemia que se vai decidir deixar sobreviver). Cálculo do custo marginal da
ilimitada baseada na perda do referente-ouro -
Standard como estabilizador e regenerador dos valores fiduciários. Porque a especulação livre e
estado atual das coisas - beira a todo instante
a catástrofe: um arbitrário e uma inflação tão gigantesca que a própria instáncia da moeda af oscila
mode. Passando-se disso, deixarn-se os pacientes morrer. Cinismo econOmico? Não: é pelo contrá-
rio a economia que impede o sistema de chegar ao fim de sua própria lógica, que é barrar às
pessoas o acesso à sua morte.
e perde toda credibilidade. Mais uma vez, uma regeneração cíclica pelo referencial, uma regene- Há na verdade todo um jogo entre as duas formas do valor, e todo é comandado por essa
r^o"crítica"é necessária para que as trocas financeiras não cheguem ao fundo de sua irrealidade, estratégia de desdobramento e de crise. Porque a crise é o que parece exigir uma solução quando
onde se destruiriam sozinhas. ela jei é essa solução.

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0 FIM DA PRO DKAO A ECONOMIA POLÍTICA COMO MODELO DE SIMULAÇÃO

regulacão pelo código que é uma verdadeira sentenca de vida ou morte? Di- rio de Marx e de todos os revolucionários depois dele, únicos a acreditar e a
zemos: a economia precisa, para reproduzir-se (e ela nunca produz a não ser continuar acreditando na produção, e que misturaram com ela suas fantasias e
a si mesma), dessa tensão dialética entre penúria e abundância -o sistema, suas esperanças mais loucas. Quanto ao capital, este se contenta em ampliar sua
no entanto, para reproduzir-se, só precisa hoje da operação mítica da economia. lei num só movimento, ocupando inexoravelmente todo o espaço da vida,sem se
misturar com prioridades. E se conduziu as pessoas ao trabalho, ele as conduziu
cultura, as necessidades, a linguagem e aos idiomas funcionais, à informação
É porque toda a esfera do econômico se desarticulou que tudo se pode e à comunicação, conduziu-as ao direito, à liberdade, a sexualidade, ao instinto
dizer em termos de economia politica e de producão. 0 econômico vem a ser
o discurso explicito de toda uma sociedade, a vulgata de toda análise, e de
de conservação e ao instinto de morte - ele as moldou sucessivamente em toda
parte de acordo com mitos adversos e indiferentes. Eis a única lei: a indiferença.
preferéncia em sua variante marxista. Hoje, todos os ideólogos encontraram Hierarquizar as instâncias? Jogo perigosfssimo, e que pode voltar-se contra ele.
sua lingua materna na economia política. Todos os sociólogos, os cientistas Não: nivelar, neutralizar, normalizar, indiferenciar, eis o que ele sabe fazer, eis
humanos etc. recorrem ao marxismo como discurso de referôncia. Mesmo os como ele procede de acordo com sua lei. Mas também dissimular esse processo
cristãos, sobretudo os cristãos, é verdade. É toda a nova esquerda divina que fundamental sob a máscara "determinante" da economia polftica.
se levanta. Tudo se tornou "politico" e "ideológico" também, mediante a mesma No capital atual, gigantesca máquina polimorfa, o simbólico (dádiva e
operacdo de integracão sem arestas. A página policial é politica, o esporte contradádiva, reciprocidade e reversão, gasto e sacriffcio) não é mais nada, a
politico, da arte nem é preciso falar: a razão está em toda parte do lado da luta natureza (o grande referencial de origem e de substância, a dialética sujeito/
de classes.Todo o discurso latente do capital tornou-se manifesto, e nota-se em objeto etc.) não é mais nada, a própria economia polftica só sobrevive af num
todo lugar certo júbilo por essa assuncão da "verdade". surpreendente estado de coma, mas todos esses fantasmas ainda se arrastam no
Maio de 1968 marcou a etapa decisiva desta naturalização da economia campo operacional do valor. Pode ser que tenha havido af, numa escala gigantes-
política. Porque a agitacão de Maio de 1968 abalou o sistema nas profundezas ca, o eco daquilo que Marx assinalava: todo evento tem primeiro uma exist-encia
de sua organizacão simbólica, ela tornou urgente, vital, a passagem das ideo- histórica para então ressuscitar em forma paródica. Se não fosse o fato de que,
logias "superestruturais" (morais, culturais etc.) a uma ideologizacão da própria para nós, as duas fases se entrelaçam, porque a boa e velha história materialista
infra-estrutura. 0 capital, oficializando o discurso de sua contestação, vai dupli- se tornou ela mesma urn processo de simulação, não podendo oferecer sequer a
car seu poder por trás dessa legalizacão do econômico e do politico. Foi a chance de uma paródia teatral e grotesca: é diretamente que se exerce hoje o
economia politica que tapou o buraco de 1968, a economia politica marxista, terror fundado nas coisas esvaziadas de substância,é imediatamente que os simu-
assim como foram os sindicatos e os partidos de direita que "negociaram" a lacros se antecipam em nossa vida em todas as suas determinações. Não é mais
crise no palco dos acontecimentos. Logo, o referente oculto da economia e do
politico só foi desenterrado para salvar uma situacão catastrófica, e continua
o teatro imaginário - trata-se de uma tática feroz de neutralização que já não
garante um grande espaço à mascarada tipo Napoleão Ill, farsa histórica que a
hoje a ser difundido, generalizado, desesperadamente reproduzido, porque a história real, no espfrito de Marx, ultrapassa sem esforço. Os simulacros são outra
situacão catastrófica aberta por Maio de 1968 não acabou. coisa, e são eles que nos liquidam, ao mesmo tempo que à história. Ou pode ser
Se tivéssemos coragem,diriamos que o econômico, e sua critica,não passam que isso venha de uma ilusão geral em Marx sobre as possibilidades de revolução
de uma superestrutura - mas não teremos coragem, porque isso seria apenas
trazer de volta a pele velha como se fosse uma luva. Ou seria então infra-estrutura
do sistema.Ele bem viu o que já havia no capital de sua época em termos de uma
capacidade de este solapar suas próprias bases e de caminhar "em marcha ace-
etc.? E isso seria dar ao econômico a oportunidade de ressurgir um dia de acordo lerada". Ele via bem que o capital tendia a reduzir, senão a eliminar totalmente,
com um movimento de gangorra que é ele mesmo um efeito de código. Aplica- a forca de trabalho do seu processo, e a substitui-la por uma gigantesca força de
ram-nos com muita freqüencia o golpe da infra-estrutura para que ressuscitásse- trabalho morta.Mas como pensava que a forca de trabalho viva era o fundamento
mos esse jogo de mdscaras. 0 próprio sistema deu fim a essas determinacões objetivo, histórico e necessário do capital, ele só podia pensar que este só cavava
infra-estruturais e superestruturais. Ele finge hoje tomar o econômico como infra- assim sua própria sepultura. flusão: o capital enterrou a forca de trabalho, porém
-estrutura porque Marx lhe insuflou genialmente essa estrategia de sobrevivencia,
porem na verdade o capital jamais funcionou de fato a partir dessa distincão
de uma maneira mais sutil - fez dela o termo segundo de uma oposicão regu-
lamentada com o capital.Essa energia de ruptura que deveria levar à explosão das
imaginária: ele não é tão ingenuo.Seu poder vem precisamente do seu desenvol- relacões de producão foi tornada pelo capitalismo um termo homogêneo As rela-
vimento simultâneo em todos os niveis e do fato de nunca se fazer no fundo a ções de producão, numa simulação de oposicão sob o signo do trabalho morto.
pergunta sobre a determinacdo, sobre a distincão astuciosa das instancias e da Doravante, é uma só instância hegemônica, a do trabalho morto, que se desdobra
-
"ideologia" de nunca se ter confundido, no fundo, com a producão, ao contrá- em capital e trabalho vivo: resolução do antagonismo por meio de um dispositivo

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0 FIM DA PRODUÇÃO A ECONOMIA POLÍTICA COMO MODELO DE SIMULAÇÃO

binário de funcionamento codificado. Fbrém, dir-se-á, que é feito da mais-valia, da 0 que é preciso é,portanto,tudo deslocar na esfera do simbólico,em que a lei
produção? Bem, o capital pouco se importa. Sem lhe atribuir uma intuição mar- é a do desafio,da reversão,do sobrelançamento.De tal modo que à morte não se pode
xista (ainda que Marx tenha feito tudo para esclarecer o capital com relação ao responder senão por uma morte igual ou superiorAí não se trata de violéncia nem de
que o esperava: se se obstinasse em atuar no terreno da produção, ele chegaria força reais,trata-se somente de desafio e de lógica simbólica.Se a dominação advém
rapidamente à morte; a economia era uma armadilha mortal para o capital), tudo
se passa como se ele tivesse dado ouvidos a Marx quanto a esse ponto e, em
do fato de o sistema deter a exclusividade da dádiva sem contradádiva dádiva do
trabalho à qual não se pode responder pela destruição ou sacrifício, mas pelo con-
-
conseqüência, "preferido" liquidar a produção para passar a um outro tipo de sumo,que não é senão uma espiral a mais do sistema de gratificação sem saída,logo
estratégia. Digo ludo se passa como se" porque já não é de forma alguma certo uma espiral a mais da dominação; dádiva da mídia e das mensagens, ãs quais, em
que o capital tenha tido algum dia essa visão produtivista de si mesmo (no fundo, nome do monopólio do código, nada é permitido retorquir; dádiva, por toda parte
e a todo instante, do social, da instancia de proteção, de segurança, de gratifica-
só Marx a teve, tendo projetado essa ilusão como verdade histórica), é mais
verossímil que ele nunca tenha feito mais do que ocupar-se do jogo da produção,
pronto a abandoná-lo mais tarde, quando este o envolvesse em contradições
ção e de solicitação do social de que nada permite mais escapar logo, a única -
solução é voltar contra o sistema o princípio mesmo de seu poder: a impossibilidade
mortais. 0 capital levou algum dia a sério a produção? Nem pensar: em toda a de resposta e de réplica. Desafiar o sistema mediante uma dádiva à qual ele não
seriedade da produção, o capital já não é sem dúvida mais que simulação. possa responder exceto corn sua própria morte e sua própria aniquilacão. Porque
É porque os únicos atos que atentam contra a sua dominação real são os ninguém,nem mesmo o sistema,escapa à obrigação simbólica,e é nessa armadilha
situados no campo dessa indeterminação radical e que provocam a ruptura que reside a única chance de sua catástrofe. Escorpionização do sistema cercado
dessa estratégia econômica de dissuasão. pelo desafio da morte.Porque aquele a que ele é obrigado a responder,sob pena de
desmoralizar-se, não pode ser, evidentemente, send() o da morte. É preciso que o
próprio sistema se suicide em resposta ao desafio multiplicado da morte e do suicfdio.
Assim ocorre com a tomada de reféns. No plano simbólico, que é o do
Jamais se destruirá o sistema por meio de uma revolução direta, dialética, da
sacrifício, e de onde toda a consideração moral de inocência das vítimas
infra-estrutura ecorromica ou política.Tudo o que produz contradição, relação de
forças, energia em geral não faz senão voltar ao sistema e impeli-lo, de acordo com
-
excluída, o reférn é o substituto, o alterego do "terrorista" sua morte substitui
a do terrorista, elas podem, por outro lado,se confundir no mesmo ato sacrifical.
uma distorção circular semelhante ao anel de Möbius. Jamais o venceremos segun- 0 cenário é o de uma morte sem negociação possível e que, portanto, remete
do sua própria lógica,a da energia, do cálculo,da razão e da revolução,a da história
e do poder, a de alguma finalidade ou contrafinalidade, seja qual for a pior - a um sobrelanço obrigatório. Naturalmente, todo o sistema de negociação tenta
se desenvolver, e os próprios terroristas entram muitas vezes no cenário de
violéncia nesse nível é inócua e se volta contra si mesma. Jamais venceremos o troca em termos de equivaléncia calculada (a vida dos reféris por determinado
sistema no plano real: o pior erro de todas as nossas estratégias revolucionárias é o resgate ou soltura, até só pelo prestígio da operação). Desse ãngulo, a tomada
de acreditar em dar fim ao sistema no plano real: este é o imaginário delas, aquele de reféns nada tem de original, ela cria simplesmente uma relação de forças
que lhes é imposto pelo próprio sistema, que vive e sobrevive levando sem cessar imprevista, pontual, solúvel pela violéricia tradicional ou pela negociação. Tra-
aqueles que o atacam a se bater no terreno da realidade, que é para sempre o seu. ta-se de uma ação tática. Mas há outra coisa em jogo, e vimos bem o que era
É aí que todos lançam suas energias, sua violéncia imaginária, que uma lógica em Haia, ao longo de dez dias de incríveis negociações: ninguém sabia o que
implacável incorpora constantemente ao sistema.Contra ele não há violência nem
contravioléncia real possível, ele vive de violência simbólica. Não no sentido degra- precisamente pela possibilidade unilateral de dar (que suptie a de armazenar valor e transferi-lo
dado que deu fama a esta fórmula: uma violéncia "pelos signos" mediante a qual o num 9:5 sentido), a relação propriamente simbólica esta morta, e o poder aparece: ele não fará
sistema viria a duplicar, ou a "mascarar", sua violência material. Não: a violéncia senão surgir ern seguida no dispositivo econômico do contrato. É nossa ficção (operacional), nossa

simbólica é deduzida de uma lógica do simbólico (que nada tem que ver com o
signo nem com a energia): reversão, reversibilidade incessante da contradádiva e,
crescer e multiplicar-se: é o engodo da acumulação e do capital -
metafísica, a idéia de que é possível acumular sobre sua cabeça (capital) um stock-valor, faze-lo
mas é também nossa ficção
pensar que é possível abandoná-lo por completo (na dádiva). Os primitivos sabem que isso não
inversamente, tomada de poder pelo exercício unilateral da dádiva5.
da troca, uma vertente da troca, é impensável -
existe, que a imobilização do valor sobre um termo, a própria possibilidade de isolar um segmento
que nano nuncu é sem contrapanida, não no
sentido contratual, mas no sentido de que o processo da troca é inexoravelmente reversível. Eles
5. Fizemos da dádiva, sob o signo da troca-dádiva, a característica das "economias" primitivas, fundam todas as suas relações nesse incessante retorno da chama da ambivaléncia e da morte na
e,ao mesmo tempo, o principio alternativo ao da lei do valor e da economia politica. Não há pior
mistificação. A dddiva é o nosso mito, mito idealista ou relativo do nosso mito materialista - troca. Ao passo que fundamos a nossa ordem na possibilidade de destacar e autonomizar dois
pólos distintos da troca: segue-se ou a troca equivalente (contrato) ou a troca não-equivalente, sem
sepultamos os primitivos sob os dois ao mesmo tempo. 0 processo simbólico primitivo não conhe- contrapartida (a dádiva). Mas as duas, como vemos, obedecem ao mesrno deslocamento do pro-
ce a gratuidade da dádiva, ele sél conhece o desafio e a reversão das trocas. Quando ele é rompido, cesso e ao mesmo princípio de autonomização do valor.

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0 F1M DA PRODUCAO A ECONOMIA POLITICA COMO MODELO DE SIMULAÇÃO

era possfvel negociar, nem chegava a um acordo sobre os termos ou sobre as 0 mesmo acontece na nossa relação com o sistema de poder. Todas as
equivaléncias possfveis da troca. Ou ainda, se se formulam, as "exigéncias dos instituições, todas as mediações sociais, econômicas, polfticas, psicológicas
terroristas" são tais que equivalem a uma negação radical da negociação. E existem para que ninguém nunca vivencie esse desafio simbólico, esse desafio
reside precisamente af o que está em jogo: a impossibilidade de toda negocia- morte, essa dádiva irreversfvel que, tal como a mortificação absoluta do
ção e, portanto, a passagem à ordem simbólica, que ignora por completo esse asceta, faz triunfar sobre todo poder, qualquer que seja a força do seu apelo.
tipo de cálculo e de troca (o sistema, por sua vez, não vive senão de negocia- Já não é preciso que essa possibilidade direta de enfrentamento simbólico
ção, ainda que no equilfbrio da violéncia). A essa irrupção do simbólico (que venha a ocorrer. É preciso que tudo seja negociado. E é essa a fonte do nosso
é a coisa mais grave que lhe pode acontecer e, no fundo, a única "revolução") profundo tédio.
Eis por que a tomada de reféns e outros atos semelhantes fazem renascer
dos terroristas-
o sistema não pode, não sabe responder send() pela morte ffsica, a morte real
mas esta é a sua derrota, porque essa morte seria justamente
o terreno deles e,assim agindo, o sistema não faz senão ferir-se com sua própria
alguma coisa de fascinante: eles são ao mesmo tempo para o sistema um
espelho que exorbita de sua própria violéncia repressiva e o modelo de uma
violéncia sem uerdadeiramente responder ao desafio que lhe foi lançado. Porque violéncia simbólica que lhe é interdita, da única violéncia que ele não pode
toda morte é facilmente computável no sistema, mesmo as carnificinas de praticar: a de sua própria morte.

valente computável -
guerra, mas não a morte-desafio, a morte simbólica, pois esta já não tem equi-
ela abre a porta a um sobrelanço que não pode ser
pago a não ser por uma morte em troca. Ninguém mais respondendo a morte
do que a morte. E é o que acontece nesse caso: o sistema é encurralado para
suicidar-se em troca - o que ele faz manifestamente por sua desorganização
e sua derrota. 0 aparelho colossal de poder liquefaz-se nessa situação,
infinitesimal em termos de relação de forças mas na qual toda a derrisão (sua
própria falta de medida) se volta contra ele. A polfcia, o exército, todas as
instituições e a violéncia mobilizada do poder nada podem contra a morte
fnfima, mas simbólica, de um só ou de alguns. Porque esta o envolve num
plano em que já não há resposta possfvel para ele (assim foi a liquefação
súbita, estrutural, do poder em 1968, não porque ele fosse menos forte, mas
pelo simples deslocamento simbólIco operado pela prática dos estudantes). 0
sistema só pode morrer em troca, desfazer-se para responder ao desafio. Sua
morte nesse instante é uma resposta simbólica - mas na qual ele se arrebenta.
0 desafio tem eficácia mortal. Todas as sociedades que nao a nossa o
sabem, ou o sabiam. A nossa está em vias de redescobri-lo. Os caminhos de
uma polftica alternativa são os da eficácia simbólica.
Assim, o asceta que se mortifica desafia Deus a nunca lhe devolver o equi-
valente. Deus faz tudo o que pode para dar-lhe "ao céntuplo", na forma de pres-
tigio, de poder espiritual, e até de hegemonia mundana. Mas o sonho secreto do
asceta é chegar a tal ponto de mortificação que nem o próprio Deus possa ainda
responder ao desafio, nem guitar essa dívida. Ele terá então triunfado diante do
próprio Deus, e sera Deus.E por isso que o asceta está sempre próximo da heresia
e do sacrilégio, e, como tal, é condenado pela Igreja, que só existe para preservar
Deus desse encontro direto simbólico, desse desafio mortal em que se convoca
Deus a morrer, a sacrificar-se para responder ao desafio do mortificado. Em todos
os tempos, a Igreja tem tido por papel evitar esse género de enfrentamento catas-
trófico (principalmente para ela) e substituf-lo por uma troca regulamentada de
peniténcias e de gratificações, um sistema de equivaléncias entre Deus e os ho-
mens de que ela mesma seja o intermediário.

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0 Trabalho
e a Morte

0 utras sociedades conheceram múltiplos contextos: incidentes so-


bre o nascimento e a paternidade, sobre a alma e o corpo, sobre
o verdadeiro e o falso, sobre a realidade e a aparéncia. A econo-
mia política reduziu-os todos a um único: a produção - mas esse foi um
contexto formidável, a violéricia e a esperanca foram desmesuradas. Hoje aca-
bou: o sistema esvaziou a producão de todo contexto real. Porém, uma verdade
mais radical se fez presente, e é o triunfo do sistema que permite entrever esse
contexto fundamental.Torna-se até mesmo possível analisar retrospectivamente
toda a economia política como nada tendo que ver com a producão.Como um
contexto de vida ou morte. Um contexto simbólico.
Todos os contextos simbólicos. Jamais houve contextos além dos simbóli-
cos. É essa dimensão que está em toda parte em relevo da lei estrutural do
valor, em toda parte iminente no código.
A forca de trabalho se institui sobre a morte.É preciso que um homem morra
para tornar-se forca de trabalho. É essa morte que ele negocia no salário. Mas a
violéncia econômica que lhe é infligida pelo capital na não-equivaléncia entre
salário e forca de trabalho nada significa diante da violência simbólica que lhe é
infligida em sua própria definicão como força produtiva. O truque dessa equiva-
lência não é nada diante da equivaléncia, como signo, entre salário e morte.
A própria possibilidade da equivaléncia quantitativa supõe a morte. A que
há entre salário e forca de trabalho supõe a morte do operário, a de todas as
mercadorias entre si supõe a exterminacão simbólica dos objetos. É a morte
que, em toda parte, torna possível o cálculo de equivalência e a regulacão pela
indiferença. Essa morte não é violenta e física, ela é a comutacão indiferente
entre a vida e a morte, a neutralizacão respectiva da vida e da morte na sobre-
vivéncia, ou a morte diferida.

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0 FIM DA PRODUÇÃO 0 TRABALHO E A MORTE

a vida só sera abolido se essa vida


puder lhe
0 trabalho é uma morte lenta. Entendemo-lo geralmente no sentido de

se opõe, como uma espécie de morte, a "realização da vida" -


extenuação física. Mas é preciso entendé-lo de outra maneira: o trabalho não
esta é a visão
ser devolvida -
o senhor de outorgar unilateralmente
numa morte não diferida. Não há alternativa:
a vida que se vai abolir um dia
esse poder,pois não terá havido
não é conservando
aí reversão do que
diferida,
idealista; o trabalho se opõe como uma mode lenta à morte violenta. Esta é a foi dado.Só a rendição dessa vida,a
replica pela morte imediata da morte
possibilidade de abolição do poder.Toda
realidade simbólica. 0 trabalho se opõe como morte diferida à morte imediata constitui uma resposta radical e a única
senão da devolução ao jogo pelo
escra-
do sacrifício. Contra toda visão piedosa e "revolucionária" do tipo "o trabalho estrategia revolucionária não pode partir
pelo senhor para
cuja diferança é usada
(ou a cultura) é o inverso da vida", é preciso sustentar que a única alternativa vo de sua própria morte, cujo desvio, de viver na mortal
não ser condenado à morte,
ao trabalho não e o tempo livre nem o não-trabalho, e o sacrifício. assegurar o seu poder. Recusa de essa
recusa de dever a vida e de nunca resgatar
Tudo isso se esclarece na genealogia dõ escravo. Para começar, o prisionei- liberdade condicional do poder, de longo prazo
obrigado a saldar essa dívida
ro de guerra é pura e simplesmente condenado à morte (e uma honra que lhe vida, bem como de estar,na verdade, coisa a partir
essa morte lenta mude alguma
prestada). Depois ele e "poupado" e conservado servus), a título de butim na morte lenta do trabalho, sem que
do poder.A morte violenta muda tudo,
e de bem de prestígio: ele se torna escravo e vai para a domesticidade suntuária. de então na dimensão abjeta, na fatalidade
há nela um ritmo, uma escansão necessária
É só bem depois que ele passa ao labor servil. Ainda não se trata, contudo, de a morte lenta nada muda, porque
troca simbólica: uma coisa deve ser
devolvida no mesmo movimento e segun-
emancipado, enfim liberto da hipoteca da condenação à morte
para qué? Precisamente para o trabalho.
-
um "trabalhador", porque o trabalho só aparece na fase do servo ou do escravo
e liberto do o mesmo ritmo, do contrário não
te não é devolvida. A estratégia
há reciprocidade e ela muito simplesmen-
do sistema de poder consiste em
deslocar o
do
continuidade, pela linearidade mortal
Logo, o trabalho se inspira em todo lugar na morte diferida. Ele é morte tempo da troca, de substituir pela serve ao escravo (oo
da morte. De nada
diferida. Lenta ou violenta, imediata ou diferida, a escansão da morte é deci- trabalho, a torção, a retorção imediata trabo- _
pouco, em doses infinitesimais, ao longo do
siva; é ela que distingue radicalmente dois tipos de organização: a da econo- operário) devolver pouco a
"sacrifício" em
mia e a do sacrifício.Vivemos irreversivelmente na primeira, que não cessa de
se arraigar na "diferança Idifférancer da morte.
lho que o mata, sua vida ao senhor
pequenas doses na verdade não é
sacrifício -
ou ao capital, porque
ele não
esse
atinge
a destilar um processo
a diferança
cuja estrutura
da

0 cenário nunca mudou. Quem trabalha continua sendo aquele que não morte, que é o essencial, limitando-se
foi condenado à morte, aquele a quem se recusou essa honra. E o trabalho permanece a mesma.
de que, no trabalho, o explorado
de início o signo dessa abjeção de não ser julgado digno a não ser da vida. 0 Podemos de fato formular a hipótese de sua
devolve a vida ao explorador e
reconquista por meio disso, através
capital explora os trabalhadores até a morte? Paradoxalmente, a pior coisa que contrapoder no
simbólico. Haveria
ele Ihes inflige é recusar-lhes a morte. É ao diferir sua morte que ele os faz própria exploração, um poder de resposta de sua própria
põr-em-jogo, pelo explorado,
escravos e os condena à abjeção indefinida da vida no trabalho. processo de trabalho por meio do
de Lyotard no piano da economia
Nessa relação simbólica, a substância do trabalho e da exploração é indi- morte (lenta). Isso retomaria a hipótese sua
explorado na abjeção mesma de
ferente: o poder do senhor lhe vem primeiramente sempre dessa suspensão da libidinal: a intensidade de enlevo do
exploração. E Lyotard tem razão - a intensidade libidinal, a carga
de desejo

denar à morte, mas precisamente o de deixar a vida -


morte. 0 poder nunca é, portanto, ao contrário do que se imagina, o de con-
uma vida que o escravo
não tem o direito de devolver. 0 senhor confisca a morte do outro e conserva
e de entrega da morte está sempre
propriamente simbólico, da replica
no exploradol, mas não está mais
imediata e, portanto, de uma resolução
no ritmo,

com a condição de não ser um fantas-


o direito de arriscar a sua. Isso é recusado ao escravo, que é condenado à vida total. 0 enlevo do não-poder (claro que abolirá
desejo no ravel do proletário) jamais
sem retorno e, portanto, sem expiação possível. ma que vise restituir o triunfo do
Ao furtá-lo da morte, o senhor furta o escravo da circulação dos bens o poder. ao
pela morte lenta do trabalho deixa
simbólicos: é a violéncia que ele lhe faz e que condena o outro a força de A própria modalidade da resposta cessar, a vida
ao escravo, novamente e sem
trabalho.Aí está o segredo do poder (Hegel, na dialética do senhor e do escra- senhor a possibilidade de restituir sempre
nunca são acertadas, elas correm
vo, faz derivar a dominação pelo senhor também do ameaça de morte diferida no trabalho, pelo trabalho. As contas dos
do poder que incide no afastamento
feita ao escravo). Trabalho, produção, exploração não passarão de um dos em proveito do poder, dessa dialética da dia-
avatares possíveis dessa estrutura de poder, que é uma estrutura de morte. pólos da morte, dos pólos da troca.
0 escravo permanece prisioneiro
Isso muda todas as perspectivas revolucionárias sobre a abolição do poder.
selvagem, de
Se o poder é morte diferida, ele não poderá ser cancelado enquanto o suspense na fase de abjeção física e de exploração
L Isso é sem dúvida mais verdadeiro 0 que resta disso em nossa fase de lei
dessa morte não o for. E se o poder, cuja definição está portanto em toda parte de mercado do valor.
"prostituição" capitalista sob a lei
e sempre, reside no fato de dar sem devolução, está claro que o poder que tem estrutural do valor?

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0 FIM DA PRODUÇA0 0 TRABALHO E A MORTE

lética do senhor, e sua morte, ou sua vida destilada, serve à reprodução inde- celencia a esfera do resgate, aquela na qual a dominação do capital consegue se
finida da dominação.
E isso tanto mais que o sistema se encarrega de neutralizar essa replica
resgatar sem se Or verdadeiramente em questão outra vez -
pelo contrário:
desviando o processo de resgate para sua própria reprodução indefinida.A neces-
simbólica ao resgatá-la pelo salário. Se o explorado busca devolver sua morte ao sidade do econômico, e de seu surgimento histórico, talvez esteja af: na urgencia,
explorador no trabalho, este conjura essa restituição pelo salário. E preciso refazer no nfvel de sociedades bem mais vastas e mutantes que os grupos primitivos, de
ainda aqui uma radiografia simbólica. Contra todas as aparências vividas (o capi- um sistema de resgate a um só tempo mensurável, controlável e extensfvel ao
tal compra ao trabalhador sua força de trabalho e extorque o trabalho excedente),
o capital que dá trabalho ao trabalhador (quanto a este último, ele produz o exercicio e o legado do poder -
infinito (aquilo que os rituais não são) e que, sobretudo, não volte a questionar
produção e consumo são uma solução origi-

trabalho" -
capital para o capitalista)."Arbeitgeber"em alemão:o empreendedor é"doador de
"Arbeitnehmer": o operário é "receptor de trabalho". Em matéria de
trabalho,é o capitalista que dá, que tem a iniciativa da dádiva, o que lhe assegura,
nal e sem precedentes para esse problema. 0 deslizamento do simbólico para o
econômico permite, ao simular o resgate sob essa nova forma, assegurar a hege-
monia definitiva do poder político sobre a sociedade.
como em toda ordem social, uma proeminencia e um poder bem além do eco- 0 econômico realiza o milagre de mascarar a verdadeira estrutura do poder
nômico. A recusa do trabalho, em sua forma radical, é a recusa dessa dominação por meio da inversão dos termos de sua definição. Embora o poder seja de dar
simbólica, dessa humilhacão da coisa concedida. A dádiva e a recepção de tra- unilateralmente (a vida em particular, ver acima), conseguiu-se impor a evidencia
balho funcionam diretamente como código da relação social dominante, como inversa: o poder seria de tomar e de se apropriar unilateralmente.Ao abrigo dessa
código de discriminação. E o salário é a marca desse presente envenenado, o genial escamoteação, a verdadeira dominação simbólica pode continuar a se
signo que resume todo o código. Ele sanciona essa dádiva unilateral do trabalho, realizar, pois todos os esforços dos dominados vão empenhar-se na tarefa de
ou ainda o salário resgata simbolicamente a dominação que o capital exerce atra-
yes da dcidiva do trabalho.É ao mesmo tempo a possibilidade, para o capital, de
circunscrever a operacão a uma dimensão de contrato, de estabilizar o enfrentar
-
retomar do poder aquilo que ele lhes tomou, talvez "tomar o poder" ele mesmo
impelindo assim cegamente no sentido de sua dominacão.
Com efeito, trabalho, salário, poder, revolução, é preciso reler tudo isso ao
no econômico.Além disso, o salário faz do assalariado um "receptor de bens", o inverso:
que equivale a duplicar seu estatuto de "receptor de trabalho" e a reforçar seu -o trabalho não é exploração, ele é dado pelo capital;
deficit simbólico. Recusar o trabalho, contestar o salário, e, portanto, pôr outra vez
em discussão o processo de dádiva, de resgate e de compensacão econômica,
-o salário não é tomado, ele também é dado - ele não compra uma
força de trabalho, ele resgata o poder do capital':
Or a nu o processo simbólico fundamental.
0 salário hoje não é mais tomado. Também nos dão o salário, não em
-a morte lenta do trabalho não é sofrida, é uma tentativa desesperada,
um desafio à doação unilateral de trabalho pelo capital;
troca do trabalho, mas para que nós o gastemos, o que é um outro tipo de
trabalho. E o receptor de salário vé-se reproduzindo no consumo, no uso de
-a única replica eficaz ao poder é devolver-lhe o que ele dá, e isso só
possível simbolicamente por meio da morte.
objetos, exatamente a mesma relação simbólica de morte lento de que padece Mas se o próprio sistema,como vimos, destitui o econômico, rouba-lhe sua
no trabalho. 0 usuário vive exatamente da mesma morte diferida do objeto (ele substãncia e sua credibilidade, não estará ele questionando, dessa perspectiva,
não o sacrifica, ele o usa, ele o "usa" funcionalmente) que a do trabalhador no sua própria dominação simbólica? Não, porque o sistema faz reinar em toda
capital. E assim como o salário resgata essa dádiva unilateral do trabalho, o parte sua estratégia de poder, a da dádiva sem contradddiva, que se confunde
preco pago pelo objeto é apenas o resgate pelo usuário dessa morte diferida do com a morte diferida. A mesma relação social é institufda na mfdia e no con-
objeto. A prova está na regra simbólica que deseja que aquilo que chega a nós sumo, em que, como vimos (Requiem pour les Media), não há resposta,
sem pagamento (loteria, presentes, dinheiro ganho no jogo) não seja dedicado contradádiva possfvel à transmissão unilateral das mensagens. rode-se interpre-
ao uso, mas gasto em pura perda. tar (projeto do CERFI sobre os acidentes automobilfsticos) a hecatombe auto-
Toda dominação deve ser resgatada. Ela o foi outrora mediante a morte
mobilfstica como "o preço que a coletividade paga a suas instituicões.., as
sacrifical (a morte ritual do rei e do lfder) ou ainda pela inversão ritual (festa e
dádivas do Estado inscrevem na contabilidade coletiva uma `dívida'. A morte
outros ritos sociais: ainda uma forma de sacrifício).Até af, o jogo do poder ainda
gratuita só é então uma tentativa de cobrir esse deficit. 0 sangue nas estradas
tem caráter aberto e direto. O jogo social da reversão cessa com a dialética do
senhor e do escravo, em que a reversibilidade do poder cede lugar a uma dial&
tica da reproducão do poder. No entanto, o resgate do poder deve sempre ser 2. Isso é particularmente claro quando, no "imposto negativo", o salário é unilateralmente
outorgado, imposto, sem contrapartida de trabalho. O regime assalariado sem equivaléncia: vemos
simulado. É o dispositivo do capital, em que o resgate formal se faz por meio da
imensa máquina do trabalho, do salário e do consumo. 0 econômico é por ex-
o que está em jogo nesse contrato transeconômico -a dominaçao pura, a sujeiçáo pura por meio
da dádiva e do premio.

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0 FIM DA PRODUÇÃO

uma forma desesperada de compensar as dádivas em asfalto do Estado. 0


acidente se situa assim nesse espago que institui a divida simbólica diante do
Estado. É provável que, quanto mais essa divida aumentar, tanto mais se acen-
tue a tendéricia ao acidente. Todas as estratégias 'racionais' para conter esse
fenômeno (prevenção, limitação de velocidade, organização do atendimento
aos acidentados, repressão) são na verdade derrisórias. Elas simulam a possi-
bilidade de integrar o acidente a um sistema racional, são por isso mesmo
incapazes de avaliar o problema em sua raiz: a apuração de uma divida sim-
bólica que funda, legitima e reforça a dependéncia da coletividade com rela-
iI
cão ao Estado. Pe lo contrário, essas estratégias 'racionais' acentuam o fenôme-
no. Para fazer frente aos efeitos dos acidentes, elas propõem a instauração de
outros dispositivos, de outras instituições do Estado, 'dádivas' suplementares,
ORDENt4DOS
que são meios de agravar a divida simbólica". ';,40
Assim, em toda parte, a luta opõe uma sociedade a uma instância política
(cf. Pierre Clastres: a Sociedade contra o Estado) que se reveste, acima dela, de
SIMULACRuS
ela a mantém, da morte que ela lhe retira -
todo o poder que ela tira das dádivas com que a cumula, da sobrevida em que
para estocá-la e destilá-la em
seguida para seus próprios fins. Ninguém no fundo jamais aceita essa gratifica-
ção, restitui-se como se pode3, mas o poder dá sempre mais, para melhor
submeter, e a sociedade ou os individuos podem chegar até a destruição de si
mesmos para dar-lhe fim.Trata-se da única arma absoluta, e sua simples amea-
ça coletiva pode abalar o poder. Diante dessa mera "chantagem" simbólica
(barricadas de 1968, tomada de reféns), o poder se desune: como ele vive da
minha morte lenta, oponho a ele minha morte violenta. E é porque vivemos de
morte lenta que sonhamos com a morte violenta. Esse mesmo sonho é insupor-
tável para o poder.

3 É a troca simbólica. Contra toda a ideologia da dádiva, ideologia humanista, libertária ou

abole o poder -
cristã, é preciso acentuar bem: a dádiva é a fonte e a própria esséncia do poder.Só a contradádiva
reversibilidade da troca simbólica.

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As Três Ordens
de Simulacros

Tresordens de simulacros, paralelamente as mutacões da lei do valor,


se sucederam a partir da Renascença:
-A contrafação é o esquema dominante da época "clássica", da Renas-
cenca Revolucão Industrial.
sa

-A produção é o esquema dominante da era industrial.


-A simulação é o esquema dominante da fase atual, regida pelo código.
0 simulacro de a ordem opera sobre a lei natural do valor; o de 2a ordem,
1

sobre a lei de mercado do valor; e o de 3a ordem opera sobre a lei estrutural


do valor.

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0 Anjo
de Estuque

Acontrafação (e ao mesmo tempo a moda) surge com a Renascen-


ça, com a desestruturação da ordem feudal pela ordem burguesa
e a emerge-ncia de uma competição aberta no nfvel dos signos
distintivos. Não há moda numa sociedade de castas ou de categorias, porque
a atribuição de papéis é total e a mudança de classes, nula. Um interdito
protege os signos e lhes assegura uma clareza total: cada qual remete sem
equfvoco a um estatuto. Não há contrafação possfvel no cerimonial -
ser como magia negra e sacrilégio, e é precisamente assim que a mistura dos
a não

surpreendemos sonhando -
signos é punida: como infração grave A própria ordem das coisas. Se ainda nos
sobretudo hoje - com um mundo de signos
seguros, com uma "ordem simbólica" forte, percamos as ilusões: essa ordem
existiu, e foi a de uma hierarquia feroz, porque a transpar'encia e a crueza dos
signos seguem par a par. Nas sociedades de castas, feudais ou arcaicas, socie-
dades crueis, os signos são em número limitado, de difusão restrita,sendo cada
qual dotado do seu pleno valor de interdito, cada um é um compromisso
recfproco entre castas, clãs ou pessoas: eles não são, por conseguinte, arbitrá-
rios. 0 arbitrário do signo começa quando, em vez de ligar duas pessoas por
uma reciprocidade intransponfvel, ele remète, como significante, a um univer-
so desencantado do significado, denominador comum do mundo real, com
relação ao qual ninguém mais tem compromisso.
Fim do signo comprometido, reino do signo emancipado, com o qual vão
poder jogar indiferentemente todas as classes. A democracia concorrencial suce-
de à endogamia dos signos própria das ordens estatutárias. No mesmo movimento
entramos,com o trânsito de valores/signos de prestfgio de uma classe para outra,
necessariamente na contrafação. Fbrque, de uma ordem limitada de signos, cuja
produção "livre" é atingida por um interdito, se passa A proliferação de signos de

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A ORDEM DOS SIMULACROS 0 ANJO DE ESTUQUE

acordo com a demanda. Mas o signo multiplicado nada mais tem que ver com ciencia e de uma tecnologia em desenvolvimento, ele está também e sobretu-
o signo comprometido de difusão restrita: ele é a sua contrafacão, não pela do ligado ao barroco, e este ao empreendimento da Contra-Reforma e da he-
desnaturalização de um "original", mas pela extensão de um material cuja clareza gemonia do mundo politico e mental que tentarão instituir, pela primeira vez
se devia toda à restrição que o afetava. Não discriminante (ele não é mais do que segundo uma concepção moderna do poder, os jesuítas.
competitivo), liberto de toda restrição, disponível no universal, o signo moderno Há uma estreita relacão entre a obediência mental dos jesuítas ("perinde ac
imula ainda, no entanto, a necessidade ao considerar-se ligado ao mundo. 0 cadaver") e a ambição demiúrgica de exorcizar a substância natural das coisas
signo moderno sonha com o signo anterior e bem gostaria,com sua referencia ao para substituf-la por uma substancia de síntese: como o homem submetido
real, de reencontrar uma obrigação. Ele não encontra mais do que uma razão: organizacão, as coisas assumem então a funcionalidade ideal do cadaver. Toda a
essa razão referenda], esse real, esse "natural" de que vai viver. Mas esse vínculo tecnologia, toda a tecnocracia já estão presentes aí: presuncão de uma contrafa-
de designacdo não senão simulacro de obrigação simbólica: ele não produz
.6 cão ideal do mundo que se exprime na invenção de uma substãncia universal e
mais do que valores neutros, aqueles que são trocados num mundo objetivo. 0 de uma combinatória universal de substâncias. Reunificar o mundo desunido
signo aqui sofre o mesmo destino do trabalho. 0 trabalhador "livre" só o é para (depois da Reforma) numa doutrina homogenea, universalizar o mundo sob uma
produzir equivalencias -o signo "livre e emancipado" só é livre para produzir só palavra (da Nova Espanha ao Japão: as missões), constituir uma elite política
significados equivalentes. de Estado, com uma mesma estratégia centralizada: tais são os objetivos dos jesuí-
E., portanto, no simulacro de uma "natureza" que o signo moderno encon- tas. Para isso, é necessário criar simulacros eficazes: o aparelho da organização
tra o seu valor. Problemática do "natural", metafísica da realidade e da aparén- um deles, mas também o são os da pompa e do teatro (é o grande teatro dos
cia: essa será a metafísica de toda a burguesia a partir da Renascenca, espelho cardeais e das emin'encias pardas), bem como o da formação e da educacão, que
do signo burgues, espelho do signo clássico. Ainda hoje, a nostalgia de uma visa, pela primeira vez de modo sistemático, remodelar uma natureza ideal da
referencia natural do signo está viva, apesar de inúmeras revoluções que vie- criança.A cobertura arquitetônica do estuque e do barroco é um grande aparelho
ram abalar essa configuração, como a da producão, na qual os signos cessam da mesma ordem.Tudo isso precede a racionalidade produtivista do capital mas
de referir-se a uma natureza, referindo-se apenas a. lei da troca, e passam A lei já testemunha, não na producão mas na contrafação, o mesmo projeto de contro-
de mercado do valor. Simulacros de segunda ordem, tema a que voltaremos. le e de hegemonia universais de um esquema social em que já atua profundamen-
E, portanto, na Renascenca que o falso surgiu com o naturalisso vai do falso te a coerência interna de um sistema.
colete ao garfo, prótese artificial, aos interiores de estuque e ao grande maquinário Vivia outrora nas Ardenas um velho cozinheiro a quem a edificacão de pratos
teatral barroco. Porque toda essa era clássica é por excelencia a do teatro.0 teatro esculturais e a cie-ncia da plástica pasteleira levaram à presuncão de retomar o
é uma forma que toma conta de toda a vida social e de toda a arquitetura a partir
da Renascenca. E aí, nas proezas do estuque e da arte barroca, que se decifra a
mundo onde Deus o havia deixado...em seu estado natural - para dele eliminar
a espontaneidade orgalnica, substituindo-a por uma matéria única e polimorta, a
metafísica da contrafacão, e as ambicões novas do homem renascentista são as argamassa: móveis de argamassa, cadeiras, gavetas, máquina de costura de arga-
de uma demiurgia mundana, de uma transubstanciacdo de toda natureza numa massa, e fora, no patio, uma orquestra inteira, violinos inclufdos, de argamassa,
única substância, teatral como a sociabilidade unificada sob o signo dos valores árvores de argamassa ponteadas de folhas verdadeiras, um javali de argamassa
burgueses,para além das diferenças de sangue, de posição ou de casta.0 estuque armada mas com um cranio verdadeiro de javali no interior, carneiros de argamas-
é a democracia triunfal de todos os signos artificiais, a apoteose do teatro e da sa cobertos de lã verdadeira. Enfim, Camille Renault reencontrara a substância
original, a massa cujos diversos frutos só se distinguiam por nuanos "realistas": o
moda, ele traduz a possibilidade, para a nova classe, de tudo fazer, uma vez que
ela Vide abalar a exclusividade dos signos. E o caminho aberto a combinacões
inauditas, a todos os jogos, a todas as contrafações - o olhar prometéico da
cranio do javali, as folhas das árvores - mas isso não passava, sem dúvida, de
uma concessão do demiurgo aos visitantes.., porcine é com um sorriso adorável
, burguesia dedicou-se de início A imitação da natureza, antes de lancar-se ã produ- que esse bom deus de 80 anos levava as pessoas a visitar a sua criacão. Ele não
ção. Nas igrejas e nos palácios, o estuque aceita todas as formas, imita todas as queria rivalizar corn a criação divina, ele a refizera simplesmente para torná-la
materias, as cortinas de veludo, as cornijas de madeira, as rotundidades carnais mais inteligível. Nada de uma revolta luciferina, de uma vontade paródica, nem
dos corpos. O estuque exorciza a inverossímil confusão de matérias numa só da perspectiva retrô de uma arte "naïf". O cozinheiro das Ardenas reinava simples-
substância nova, espécie de equivalente geral de todos os outros, e propícia a mente sobre uma substancia mental unificada (porque a argamassa é uma subs-
todos os prestígios teatrais, por ser ela mesma substância representativa, espelho tância mental, ela permite, como o conceito, ordenar os fenômenos e nela recortá-
de todas as outras. los à vontade). Seu projeto não estava longe do dos construtores de estuque da
Mas os simulacros não são apenas jogos de signos, eles implicam relações arte barroca, nem era muito diferente da projeção no terreno de uma comunida-
sociais e um poder social. O estuque pode aparecer como a exaltacão de uma de urbana nos grandes aglomerados atuais. A contrafação trabalha ainda apenas

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A ORDEM DOS SIMULACROS

sobre a substancia e a forma, não tendo chegado às relações e às estruturas; mas


já visa, nesse nível, ao controle de uma sociedade pacificada, moldada numa
substância de síntese que escapa à morte: um artefato indestrutível que garantirá
a eternidade do poder. Não é o milagre do homem o ter inventado, com o plás-
tico, uma matéria não-degradável - interrompendo assim o ciclo que, pela dete-
rioração e a morte, revertia uma na outra todas as substâncias do mundo? Uma
substância fora de ciclo, da qual mesmo o fogo deixa um resíduo indestrutível
há nisso qualquer coisa de inaudito, simulacro em que se condensa a ambição
- 0 Autômato
de uma semiótica universal. Isso nada tem que ver com um "progresso" tecnoló-
gico nem com uma concepção racional da ciéncia. Trata-se de um projeto de e o Robô
hegemonia política e mental, o fantasma de uma substância mental fechada
como os anjos de estuque barrocos cujas extremidades se encontravam num
-
espelho curvo.

Um mundo separa esses dois seres artificiais Urnré contrafação tea-


tral, mecânica e relojoeira do homem, a técnica é aí inteiramente
submissa a analogia e tem o efeito de simulacro.0 outre'é dominado
pelo princípio técnico, é a máquina que prevalece nele e, Com amáquina, é a
equivarencia que se instala. 0 autõmato diverte o cortesão na companhia de seus
pares, ele participa do jogo teatral e social de antes da Revolução. 0 robõ, como
seu nome indica, trabalha: findo o teatro, é a mecánica humana que comeca. 0
autõmato é o analogon do homem e permanece seu interlocutor (ele joga xadrez
com ele!). A máquina é o equivalente do homem e se acrescenta a ele como
equivalente na unidade de um processo operacional. Eis aí toda a diferença entre
um simulacro de primeira ordem e um simulacro de segunda ordem.
Não devemos, pois, nos deixar enganar por sua semelhança "figurativa". 0
autômato é uma interrogação sobre a natureza,sobre o mistério da alma ou não,
sobre o dilema das aparéncias e do ser -é como Deus: o que há debaixo,o que
há dentro, o que há atrás? Só a contrafação do homem permite apresentar esses
problemas. Toda a metafísica do homem como protagonista do teatro natural da
criação se encarna no autõmato antes de desaparecer com a Revolução. E o

homem vivo -
autômato não tem outro destino além de ser incessantemente comparado com o
com o objetivo de ser mais natural que ele, de quem é a figura
ideal. Duplo perfeito do homem até na suavidade dos gestos,até no funcionamen-
to de seus órgãos e de sua inteligéncia -a ponto de se aproximar da angústia
que ele teria ao perceber que não há nenhuma diferenca, que portanto sua alma
acabou em proveito de um corpo ideálmente naturalizado. Sacrilégio. Essa dife-
renca é, portanto, sempre mantida, como no caso do autômato tão perfeito que
o ilusionista, em cena, imitava seu movimento irregular, a fim de que ao menos,
ainda que os papéis estivessem invertidos, a confusão fosse impossível. Assim, a

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69 PDFCompressor
A ORDEM DOS SIMULACROS

interrogação do autômato permanece aberta, o que faz dele um mecanismo


otimista, mesmo que a contrafação implique sempre uma conotação diabólica1.
Nada disso acontece com o robô.Este já não interroga as aparencias,tendo por
única verdade sua eficácia mecanica. Já não está voltado para a semelhança do
homem, com quem, por outro lado, não se compara mais. A diferença metaffsica
infima que fazia o mistério e o encanto do autômato deixa de existir: o robô a
absorveu em proveito próprio.0 ser e a aparencia se fundiram numa só substância
de produção e de trabalho.0 simulacro de primeira ordem nunca abole a diferença:
0 Simulacro
ele supõe a altercaçãosempre sensfvel do simulacro e do real (jogo particularmente
sutil na pintura em trompe-l'oeil [iluseio de Oka], mas a arte inteira vive dessa dis-
Industrial
tinção).0 simulacro de segunda ordem simplifica o problema por meio da absorção
-
das apar'encias ou da liquidação do real,como se preferir ele erige seja como for
-1uma realidade sem imagerri,sem eco,sem espelho,sem aparência:assim é o traba-
; Iho,a máquina,o sistema de produção industrial inteiro, no sentido de que se opõe
radicalmente ao princfpio da ilusão teatral.Nada de semelhança nem dessemelhança,
de Deus nem de homem, mas uma lógica imanente do princfpio operacional.
A partir daf, os robõs e as máquinas podem proliferar, e esta é mesmo a
sua lei -o que os autômatos jamais fizeram, sendo mecanismos sublimes e
singulares. Os próprios homens só começaram a proliferar quando assumiram Euma nova geração de signos e objetos que se levanta com a Revo-
a condição de máquinas, com a Revolução Industrial: libertos de toda seme- lução Industrial. Signos sem tradição de casta, que jamais conhece-
lhança, libertos mesmo de seu duplo, eles crescem como o sistema de produ- ram as restrições de posição -e que não mais terão de ser con-
ção, de que não são mais que o equivalente miniaturizado. A revanche do trafeitos porque serão de imediato produzidos numa escala gigantesca. 0 pro-
simulacro, que alimenta o mito do aprendiz de feiticeiro, não ocorreu com o blema de sua singularidade e de sua origem já não é apresentado: a técnica é
autômato - ela é, pelo contrário, a lei da segunda ordem: há sempre hegemo-
nia do robi5, da máquina, do trabalho morto sobre o trabalho vivo, que deste
sua origem, ele só tem sentido na dimensão do simulacro industrial.
Trata-se da série. Trata-se da possibilidade de dois ou de n objetos icrenti-
procede. Essa hegemonia é necessária ao ciclo da produção e da reprodução. cos. A relação entre eles já não é a de um original com sua contrafação, nem
É com essa reversão que safmos da contrafação para entrar na (re)produça.o. analogia nem reflexo, mas a equival-encia, a indiferença. Na série, os objetos
Sai-se da lei natural e de seus jogos de formas para entrar na lei de mercado tornam-se simulacros indefinidos uns dos outros e, com os objetos, os homens
do valor e em seus cálculos de forças. que os produzem. Só a extinção da referência original permite a lei generali-
zada das equivalencias, quer dizer, a própria possibilidade da produção.
Toda a análise da produção oscila na medida em que já não seria um
1. Contrafação e reprodução implicam sempre uma angústia, uma inquietante estranheza: a
inquietude diante da fotografia, equiparada a um truque de feitiçaria - e, de modo mais geral,
diante de toda aparelhagem técnica, que é sempre aparelhagem de reprodução, e aproximada por
processo original, para não falar do que está na origem de todos os outros,
porém, ao contrário, um processo de reabsorção de todo ser original e de
Benjamin da inquietude ligada ao aparecimento da imagem no espelho. Já há feitiçaria lá dentro. introdução numa série de seres identicos. Até agora, consideraram-se a produ-
E há muito mais quando essa imagem pode ser destacada do espelho e se torna transportável,
armazenável, reprodutível à vontade (cf. L'Étudiant de Prague, em que o diabo destaca do espelho
ção e o trabalho como potencial, como força, como processo histórico, como
a imagem do estudante e depois o persegue até a morte por intermédio dessa imagem). Toda atividade genérica: mito energético-econômico próprio da modernidade. É
preciso perguntar se a produção não intervém, na ordem dos signos, como
reprodução implica assim um malefíciodo fato de ser seduzido por sua própria imagem na dgua
como Narciso até a assombração pelo duplo e, quem sabe, até a reversão mortal dessa vasta
aparelhagem técnica secretada hoje pelô homem como sua própria imagem (a miragem narcísica
-
uma fase particular se ela não é no fundo mais um episódio na linhagem dos
da técnica, Mauhan) e que depois a reenvia a ele, reprimida e distorcida - reprodução sem fim
dele mesmo e de seu poder até os limites do mundo. A reprodução é diabólica em sua essência,
simulacros: o de, precisamente, produzir, graças A técnica, seres (objetos/sig-
nos) potencialmente ide-nticos em series indefinidas.
eia faz vacilar alguma coisa de fundamental. Isso nao mudou nem um pouco para n6s: a simulação As fabulosas energias que estão em jogo na técnica, na indústria e na
(que descrevemos aqui como a operação do código) é, ainda e sempre, o lugar de um gigantesco
empreendimento de manipulação, de controle e de morte, assim como o objeto simulacro (a
economia não deviam esconder que não se trata no fundo senão de atingir
estatueta primitiva ou a imagem, ou então a foto) teve sempre de início por objetivo uma operação essa reprodutibilidade indefinida que é com certeza um desafio A ordem "na-
de magia negra. tural", mas em última análise um simulacro "de segunda ordem" e uma solução

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A ORDEM DOS SIMULACROS 0 SIMULACRO INDUSTRIAL

imaginária bem pobre para o domfnio do mundo. Com relação à era da con- como uma finalidade anterior, e a (mica verossfmil. Fstamos na simulação no
trafação, do duplo, do espelho, do teatro, do jogo de máscaras e de aparencias, sentido moderno do termo, onde a industrialização é apenas a forma primária.
a era serial e técnica da reprodução é, em suma, uma era de menor enverga- Finalmente, não é a reprodutibilidade serial o fundamental, porém a modulação,
dura (a que a segue, a era dos modelos de simulação, a dos simulacros de
terceira ordem, tem uma dimensão bem mais considerável).
É Walter Benjamin que, em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
equivalências mas a comutação de termos -
não as equivarencias quantitativas mas as oposições distintivas, não mais a lei de
não mais a lei de mercado, mas a
lei estrutural do valor. E não só não se devem procurar na técnica ou na economia
tecnic-a, destaca pela primeira vez as implicações essenciais desse princfpio de os segredos do código, como, pelo contrário, devemos procurar a possibilidade
reprodução. Ele mostra que a reprodução absorve o processo de produção, mesma da produção industrial na ge-nese do código e dos simulacros. Cada or-
muda-lhe as finalidades, altera o estatuto do produto e do produtor. Ele mostra dem submete a si a ordem precedente.Assim como a ordem da contrafação foi
esse princfpio no terreno da arte, do cinema e da fotografia, por ser af que se substitufda pela da produção serial (veja-se como a arte passou toda inteira para
abrem, no século XX, novos territórios sem tradição de produtividade "clássica", a "maquinalidade"), assim também toda a ordem da produção está em vias de
-
colocados desde o infcio sob o signo da reprodução mas sabemos que hoje
toda a produção material está nessa esfera. Sabemos que hoje é no nfvel da
passar à simulação operacional.

reprodução - moda, meios de comunicação, publicidade, redes de informa-


ção e de comunicação -, no nfvel daquilo que Marx chamava desdenhosa-
As análises de Benjamin, bem como as de McLuhan, situam-se nesses
confins da reprodução e da simulação. No ponto em que desaparece a razão
referencial e onde a produção é acometida de uma vertigem. É nisso que eles
mente de despesas inúteis do capital (podemos avaliar a ironia da história), representam um progresso decisivo sobre as análises de Veblen e de Globot:
isto 6,na esfera dos simulacros e do código, que se tece a unidade do processo estes, descrevendo, por exemplo, os signos da moda, referem-se ainda à confi-
de conjunto do capital. 0 primeiro, Benjamin (e mais tarde McLuhan), avalia guração clássica: os signos constituem um material distintivo, eles te-m uma
a técnica não como "força produtiva-"- (af onde se encerra a análise marxista), finalidade e um uso de prestígio, de posição, de diferenciação social. Eles
mas como meio,como forma e princfpio de toda uma nova geração de sentido. desenvolvem uma estratégia contemporãnea à do lucro e da mercadoria em
0 simples fato de uma coisa qualquer poder ser simplesmente reproduzida, tal Marx num momento em que ainda se pode falar de um valor de uso do signo
como é, em duplos exemplares já é uma revolução: basta pensar no espanto ou da forga de trabalho, em que simplesmente ainda é possfvel falar de eco-
dos negros vendo pela primeira vez dois livros icjenticos. Que esses dois produ- nomia, porque ainda existe uma Razão do signo, e uma Razão da produção.
tos da técnica sejam equivalentes sob o signo do trabalho social necessário
menos essencial a longo prazo que a repetição serial do mesmo objeto (que
também a dos indivfduos como forga de trabalho). A técnica como meio supe-
ra não só a "mensagem" do produto (seu valor de uso) mas também a força de
trabalho, de que Marx desejou fazer a mensagem revolucionária da produção.
Benjamin e McLuhan tiveram uma visão mais clara do que Marx: eles viram a
verdadeira mensagem, o verdadeiro ultimato estava na própria reprodução. E
que a produção em si não tem sentido: sua finalidade social se perde na
serialidade. Os simulacros sobrepujam a história.
Por outro lado, esse estágio da reprodução serial (o do mecanismo industrial,
da cadeia,da reprodução ampliada etc.) é efernero.A partir do momento em que
o trabalho morto sobrepuja o trabalho vivo, isto é, a partir do fim da acumulação
primitiva, a produção serial cede lugar à geração pelos modelos. E, af, trata-se de
uma reversão de origem e de finalidade, já que todas as formas mudam a partir
do momento em que já não são mecanicamente reproduzidas, mas concebidas a
partir da sua reprodutibilidade mesma, difração a partir de um eixo gerador cha-
mado modelo. Estamos af nos simulacros de terceira ordem. Já não há contrafa-
ção do original como na primeira ordem, mas também não há série pura como
na segunda: há modelos de onde procedem todas as formas de acordo com
modulações de diferenças. Só a afiliação ao modelo faz sentido, e nada procede
mais de acordo com seu fim, mas do modelo,"significante de referência" que

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A Metafísica
do Código

"Leibniz, espfrito matemdtico, via na elegeincia mfstica do


sistema bindrio, que só conta o zero e o um, a própria ima-
gem da criacão. A unidade do Ser supremo, operando por
meio da função binairia no nada teria sido suficiente, acredi-
tava ele, para dele extrair todos os seres." (McLuhan)

0 s grandes simulacros construídos pelo homem passam de um uni-


verso de leis naturais a um universo de forças e de tensões de
forças e, hoje, a um universo de estruturas e de oposições binárias.
Depois da metafísica do ser e das aparências, depois da metafísica da energia e
da determinação, a do indeterminismo e do cc-Alga Controle cibernético, geração
pelos modelos, modulação diferencial, retroalimentação, pergunta/resposta etc.:
eis a nova configuração operacional (os simulacros industriais são apenas opera-
tórios). A digitalidade é seu princípio metafísico (o Deus de Leibniz) e o ADN seu
profeta. É com efeito no código genético que a "gênese dos simulacros" encontra
em nossos dias sua forma acabada, No limite de uma exterminação sempre mais
ampla das referências e finalidades, de uma perda das semelhanças e designa-
ções, encontramos o signo digital e programático, cujo "valor" é puramente "táti-
co", na interseção de outros sinais (corpúsculos de informação/teste) e cuja estru-
tura é a do código micromolecular de comando e de controle.
Nesse nível a questão dos signos, de sua destinação racional, de seu real
e de seu imaginário, de sua repressão, de seu desvio, a ilusão que eles projetam,
daquilo que silenciam ou de suas significações paralelas

- tudo isso se apaga.
vimos os signos de primeira ordem, signos complexos e ricos em ilusão, se
_..

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A ORDEM DOS SIMULACROS A METAFÍSICA DO CODIGO

transformar, com as máquinas, em signos brutais, desbotados, industriais, retroalimentação, transmissão de mensagens e outros) podem ser considerados
repetitivos, sem eco, operatórios e eficazes. Há urna mutação ainda mais radii aspectos do tratamento da informação. Em última análise, a informação apare-
cal com os sinais do código, ilegíveis, sem interpretação possível, enterrados
como matrizes programáticas a anos-luz no fundo do corpo "biológico"
caixas pretas onde se fomentam todos os mandamentos, todas as respostas.
- ce em grande parte como repetição de informação, ou então como outro tipo
de informação, uma espécie de controle que parece ser uma propriedade
universal da vida terrestre, independentemente da forma ou da substancia.
Findos o teatro da representação, o espaço dos signos, de seu conflito, de seu
só a caixa preta do código, a molécula emissora de sinais de que
somos irradiados, traspassados de perguntas/respostas como de radiações
lingüística-
"Há cinco anos, chamei a atenção para a convergéncia entre a genética e a
disciplinas autônomas, porém paralelas no campo mais vasto da
ciéncia da comunicação (de que faz parte igualmente a zoosemiótica).A termino-
sinaléticas, testados de modo continuo pelo nosso próprio programa inscrito logia da genética está cheia de expressões tomadas à lingüística e a teoria da comu-
nas células. Célu las carcerárias, células eletrônicas, células do partido, células nicação (Jacobson, 1968), que também destacou tanto as semelhanças principais
microbiológicas: é sempre a busca do menor elemento indivisíveLcujasintese como as diferenças importantes em termos de estrutura e de funcionamento dos
orgãnica sera feita de acordo com os dados do código. Mas o próprio código códigos genético e verbal...Está claro hoje que o código genético deve ser conside-
não é mais do que uma célula genética, geradora, na qual mil-fades de inter- rado como a mais fundamental de todas as redes semióticas existentes e, por con-
seções produzem todas as questões e as soluções possíveis que se devem seguinte, o protótipo de todos os outros sistemas de sinalização empregados pelos
(quem?) escolher. Nenhuma finalidade dessas "questões" (impulsos informáticos animais, inclusive o homem. Desse ponto de vista, as moléculas, que são sistemas
e sinaléticos) a não ser a resposta, geneticamente imutável ou com inflexões de quanta e se comportam como veículos estáveis de informação física,os sistemas
advindas de diferenças ínfima se aleatórias. Espaço até mais linear ou unidi- zoosemióticos e os sistemas culturais, incluindo a linguagem, constituem uma ca-
mensional: espago celular de geração indefinida dos mesmos sinais, que são deia contínua de estágios, com níveis energéticos cada vez mais complexos, no
como os tiques de um prisioneiro enlouquecido pela solidão e pela repetição. quadro de uma evolução universal única. É, pois, possível descrever tanto a lingua-
Assim é o código genético: um disco imóvel, imutável, de que não somos mais gem como os sistemas vivos de uma perspectiva cibernética unitária.No momento,
do que as células de leitura. Toda a aura do signo, a significação mesma, isso não passa de uma analogia útil ou uma previsão ...Uma aproximação recfproca
resolvida com a determinação: tudo é resolvida na inscrição e na decodificacão. entre genética, comunicação animal e lingüística pode levar a um conhecimento
Eis o simulacro de terceira ordem, o nosso, eis a "elegancia mística do completo da dinâmica da semiose,e tal conhecimento pode mostrar ser,em última
sistema binário ..., do zero e do um", de que procedem todos os seres, eis o análise, nada menos que uma definição da vida:'
estatuto do signo, que é também o fim da significação: o ADN ou a simulação Assim se esboça o atual modelo estratégico, que assume em toda parte subs-
operacional. tituindo o grande modelo ideológico que foi em sua época a economia política.
Tudo isso é perfeitamente resumido por Sebeok ("Génétique et Sémiotique", Reencontramo-lo, sob a o signo rigoroso da "ciéricia", em 0 Acaso e a Neces-
em Versus: sidade, de Jacques Monod. Finda a evolução dialética, é o indeterminismo
"Inúmeras observações confirmam a hipótese de que o mundo orgânico descontínuo do código genético que rege a vida -o princípio teleonômico: a
interno descende em linhagem direta das formas primordiais de vida. 0 fato finalidade já não está no termo,não há mais termo nem determinação; a finalidade
mais notável é a onipresença da molécula do ADN. 0 material genético de
todos os organismos conhecidos da terra é composto em grande parte pelos
vem antes, inscrita no código.Vemos que nada mudou - simplesmente a ordem
dos fins cede ao jogo das moléculas e a ordem dos significados,ao jogo dos signi-
ácidos nucléicos ADN e ARN, que contém em sua estrutura a informação, ficantes infinitesimais, reduzidos à sua comutação aleatória. Todas as finalidades
transmitida pela reprodução de uma geração à outra e, além disso, dotada da transcendentes vêem-se reduzidas a um painel de controle. Ocorre, no entanto,
capacidade de auto-reprodução e imitação. Em suma, o código genético sempre o recurso a uma natureza,a inscrição numa natureza"biológica":na verda-
universal, ou quase universal. Sua decifração foi uma descoberta descomunal, de,uma natureza fantasiada como sempre,santuário metafísico não mais da origem
visto ter mostrado que 'as duas linguagens dos grandes polímeros, a linguagem e das substancias, porém, dessa vez, do código:é preciso que o código tenha uma
do ácido nucléico e a da proteína, estão estreitamente relacionadas entre si' avaliação "objetiva". Que coisa melhor para isso do que a molécula e a genética?
(Crick, 1966; Clarck/Narcker, 1968). 0 matemático soviético Liapounov demons- Dessa transcendéncia molecular, Monod é o teólogo severo,Edgar Morin é o pros&
trou em 1963 que todos os sistemas vivos transmitem pelos canais prescritos, lito extasiado (ADN = AdonaiD.Todavia, num e noutro, o fantasma do código, que
com precisão, uma pequena quantidade de energia ou de matéria contendo equivale à realidade do poder, se confunde com o idealismo da molécula.
um grande volume de informação, que é responsável pelo controle ulterior de Reencontramos a ilusão delirante de reunificar o mundo sob um se) princf-
uma grande quantidade de energia e de matéria. Nessa perspectiva, pio-o de uma substância homogénea entre os jesuítas da Contra-Reforma, o
numerosíssimos processos, tanto biológicos como culturais (armazenamento, do código genético entre os tecnocratas da ciéncia biológica (assim como

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A ()Rpm Dos suvtuLACRos A METArisICA DO COnico

tendo por precursor Leibniz e sua divindade binária. Porque o código genético social, já não deixa oportunidade alguma de uma reversão deter-
programa aqui não visa a coisa alguma de genético, tratando-se de um progra- minada. Nisso reside suamerdadeira violéncia. Resta saber se essa operacionalidade
ma social e histórico. 0 que é hipostasiado na bioquímica é um ideal de uma não é ela mesma um mito, se o ADN não é send's, um mito.
ordem social regida por uma espécie de código genético, de cálculo De uma vez por todas, apresenta-se, com efeito, o problema do estatuto da
macromolecular, de PPBS (Planning Programming Budgeting System) irradian- ciéncia como discurso. Boa ocasião para fazé-lo aqui, em que esse discurso se
do o corpo social com seus circuitos operacionais. A tecnocibernética encon- absolutiza com tanta ingenuidade."Platdo, Heráclito, Hegel, Marx: esses edifícios
tra aqui sua "filosofia natural", como diz Monod. 0 fascfnio do biológico, do ideológicos,apresentados como a priori, foram na realidade construções a posteriori,
bioquímico, sempre existiu desde os primórdios da ciéncia. Ele agiu no destinadas a justificar uma teoria ético-política preconcebida... 0 único a priori
organicismo spenceriano (bio-sociologismo) no nível das estruturas de segun- para a ciéncia é o postulado da objetividade, que lhe proibiu de tomar parte nesse
da e de terceira ordem (classificação de Jacob em La logique du Vivant, ela age debate" (Monod). Mas esse postulado resulta ele mesmo de uma decisão jamais
hoje, com a bioquímica moderna, no nfvel das estruturas de quarta ordem. inocente de objetivação do mundo e do "real". De fato, é o da coeréncia de certo
Semelhanças e dessemelhanças codificadas: é precisamente essa a ima- discurso,e toda a cientificidade nada mais é, sem dúvida, do que o espaço desse
gem da troca social cibernetizada. Basta apenas acrescentar um "complexo discurso, que não se dá jamais como tal e cujo simulacro"objetivo"encobre a fala
estereoespecífico" para reinjetar comunicação intracelular, que Morin virá trans- política, estratégica. Por outro lado, adiante Monod exprime muito bem o que há
figurar em Eros molecular. nele de arbitrário: "Pode-se perguntar se todas as invariãncias, conservações e
Prática e historicamente, isso significa a substituição do controle social simetrias que constituem a trama do discurso científico não são ficções pelas
pelo fim (e pela pronickncia mais ou menos dialética que vela pela realização quais foi substituída a realidade para dela dar uma imagem operacional... Lógica
desse fim) por um controle social pela previsdo, a simulação, a antecipação fundada num princípio de identidade pummente abstrato, talvez convencional.
programadora, a mutação indeterminada, mas regida pelo código. Em vez de Contudo, convenção de que a razão humana parece incapaz de prescindir Não
um processo finalizado de acordo com seu desenvolvimento ideal, estamos As se poderia dizer melhor que a pi:61)6a ciência decide ser ela mesma fórmula
voltas com uma geração pelo modelo. Em lugar de uma profecia, temos direito
geradora,discurso modelo, com base numa ordem convencional (por outro lado,
a uma "inscrição". Já não existe diferença entre as duas. Só se alteram e,
não importa qual: a de uma redução total). Mas Monod foge rapidamente dessa
preciso dizer, se aperfeiçoam fantasticamente, os esquemas de controle.
perigosa hipótese de um princípio de identidade"convencional".E melhor fundar
uma sociedade capitalista produtivista a uma ordem neocapitalista cibernética,
a ciéncia em terreno sólido, numa realidade "objetiva". A física está aí para teste-
que visa dessa vez ao controle absoluto: eis a mutação à qual a teorização
biológica do código dá suas armas.Essa mutação nada tem de"indeterminada":
munhar que a identidade não passa de um postulado -a
identidade está nas
coisas, visto haver uma "identidade absoluta de dois átomos que se acham num
ela é o desfecho de toda uma história em que, sucessivamente, Deus, o Ho-
mesmo estado quântico". E então? Convenção ou realidade objetiva? A verdade
mem, o Progresso, a própria História morrem em benefício do código, em que
que a ciéncia se organiza,como não importa qual discurso,segundo uma lógica
a transcendência morre em favor da imanéricia, correspondendo ela a uma
fase bem mais avançada na vertiginosa manipulação da relação social.
convencional, mas exige para a sua justificação, como não importa qual discurso
ideológico, uma referéncia real,"objetiva", num processo de substância. Se o prin-
cípio de identidade tem algo de "verdadeiro", ainda que no nível infinitesimal de
dois átomos, todo o ediffcio convencional da ciência que nele se inspira também
Em sua reprodução indefinida, o sistema destrói seu mito de origem e todos
"verdadeiro". A hipótese do código genético, o ADN, também o é, e insuperável.
os valores referenciais que ele mesmo secretou de acordo com seu processus.Ao
Assim diz a metafísica. A ciéncia dá conta das coisas previamente talhadas e
destruir seu mito de origem, ele destrói suas contradições internas (nada mais de
real nem de referencial com o qual confrontá-lo) -e destrói também o mito do
formalizadas para lhe obedecer -o
"objetividade" é só isso, e a ética que vem
sancionar esse conhecimento objetivo nunca é mais do que o sistema de defesa
seu fim: a própria revolução. O que se perfilava com a revolução era a vitória da
e de desconhecimento que deseja preservar o círculo vicioso'.
referéncia humana e genérica, do potencial original do homem. Mas se o capital
"Abaixo todas as hipóteses que tenham permitido a crença num mundo
cancela o próprio homem genérico (em benefício do homem genético)? A idade
de ouro da revolução foi a do capital, período em que os mitos de origem e de verdadeiro", dizia Nietzsche.
fim ainda circulavam. Tendo os mitos sido contidos (e o único perigo que o
capital correu historicamente vinha dessa exigéncia mítica de racionalidade que I. Há além disso, no livro de Monod, uma contradição flagrante, que reflete a ambignidade de
o perpassou desde o começo) numa operacionalidade de fato, operacionalidade
sem discurso, o capital, uma vez transformado em seu próprio mito ou, mais do
o constrói ainda de acordo com os esquemas"científicos"da segunda ordem -
toda a ciëncia atual: seu discurso visa ao código, isto é, aos simulacros de terceira ordem, mas ele
objetivismo, ética
"científica" do conhecimento, princípio de verdade e de transcendi1mcia da ciéncia etc.Todas elas
que isso, numa máquina indeterminada, aleatória, algo como uma espécie de coisas incompatíveis com os modelos de indeterminação da terceira ordem.

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0 Tátil e
o Digital

Essa regulação com base no modelo do código genético não se limi-


ta de modo algum aos efeitos de laboratório nem as visões exaltadas
dos teóricos. É a vida mais banal que é investida por esses modelos.
A digitalidade está entre nós. É ela que assombra todas as mensagens, todos os
signos de nossas sociedades, sendo a forma mais concreta sob a qual a pode-
mos localizar a do teste, da pergunta/resposta, do estímulo/resposta. Todos os
conteúdos são neutralizados por um procedimento continuo de interrogações
dirigidas, de vereditos e ultimatos a decodificar que já não vern, desta vez, do
fundo do código genético, mas que têm a mesma indeterminacão tática dele
- sendo o ciclo do sentido infinitamente reduzido ao de pergunta/resposta, de
bit ou quantidade infima de energia/informação que retorna ao seu ponto de
partida; esse ciclo descreve apenas a reatualização perpétua dos mesmos
modelos. 0 equivalente da neutralização total dos significados pelo código é
a instantaneidade do veredito da moda ou de cada mensagem publicitária ou
midiática. Ele está em todo lugar no qual a oferta devora a demanda ou a
-
pergunta devora a resposta ou a absorve e regurgita em forma decodificável,
ou então a inventa e a antecipa em forma previsível. Em toda parte o mesmo
"cendrio", cenário de "tentativas e erros" (das cobaias nos testes de laboratório),
cenário do leque de escolhas oferecidas em toda parte ("teste sua personalida-
de")- em todo lugar o teste como forma social fundamental de controle por
meio da divisibilidade intinita das práticas e respostas.
Vivemos sob a modalidade do referendo, precisamente porque já não há
re ferencial. Todo signo, toda mensagem (tanto os objetos de uso "funcional"
como este ou aquele elemento da moda ou qualquer informacão televisada,
sondagem ou pesquisa eleitoral) se nos apresenta como pergunta/resposta.
Todo o sistema de comunicação passou de uma estrutura sintática complexa

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A ORprm DOS SIMULACROS 0 TATIL E O DIGITAL

de linguagem a um sistema binário e sinalético de pergunta/resposta


referendos são, como se sabe, formas
de
perfeitas
- posta incessante, uma plasticidade total (Benjamin compara a operação do camera
a de um cirurgião: tacticidade e manipulação). 0 papel das mensagens já não
teste perpétuo. Ora, os testes e os
de simulação: a resposta é induzida pela pergunta, é determinada de antemão. a informação, mas o teste e a sondagem e, por fim, o controle [contrõle] (contra-
Logo, o referendo nunca é mats do que um ultimato: unilateralidade da pergun- papel [contre-rõle], no sentido de que todas as nossas respostas já estão inscritas
ta, que justamente já não é interrogacão, mas a imposição imediata de um no "papel", no registro antecipado do código). A montagem e a codificação exi-
sentido em que o ciclo se completa num só movimento. Cada mensagem é um gem na verdade que o receptor desmonte e decodifique segundo o mesmo pro-
veredito, como aquele que advém das estatísticas de sondagem. 0 simulacro cesso.Toda leitura de mensagem não é, por conseguinte, mais do que um exame
de distancia (talvez mesmo de contradição) entre os dois pólos nao passa, tal perpétuo do código.
como o efeito de real no interior mesmo do signo, de uma alucinacão tática. Cada imagem, cada mensagem midiática, mas igualmente todo objeto fun-
cional limftrofe, é um teste -quer dizer, em todo o rigor do termo, libera meca-
nismos de resposta nos termos de estere6tipos ou de modelos analíticos. Hoje, o
Benjamin analisa concretamente, no nivel do aparelho técnico, essa opera- objeto já não é "funcional" no sentido tradicional do termo, ele não nos serve, ele
ção do teste:"A interpretacão do ator de cinema é transmitida ao público por meio nos testa. Ele já nada tem que ver com o objeto anterior, não mais do que a
de toda uma aparelhagem técnica. Isso tem duas conseqüências. Essa aparelha- informação midiatizada com uma "realidade" dos fatos.Ambos, objetos e informa-
gem não é obrigada a respeitar integralmente a interpretacão. Sob a direcão do cbes, resultam já de uma seleção, de uma montagem, de um ponto de vista; eles
camera, esses aparelhos tomam por toda a duração do filme posição diante dessa já testaram a "realidade" e só lhe formularam as perguntas que Ihes"davam retor-
interpretacão. Essas tomadas de posicão sucessivas constituem o material com o no", decompuseram a realidade em elementos simples que recompuseram em
qual os técnicos farão a montagem definitiva... Assim, a interpretacão do ator cenários de oposicões regulares, exatamente como o fotógrafo impõe ao fotogra-
submetida a uma série de testes ópticos... Segunda conseqüência: o público (que fado seus contrastes, suas luzes, seus angulos (qualquer fot6grato dirá: pode-se
não tem contato pessoal com o ator) se lie assim na situação de um especialista: fazer qualquer coisa, basta apanhar o original no angulo certo, no momento ou
ele só se identifica corn o ator enquanto se identifica com a aparelhagem técnica.
Logo, ele adota o mesmo comportamento desse aparato: ele testa.
"Nota: A extensão do campo do testável que a aparelhagem técnica opera
seu código) -
inflexão que fazem dele a resposta exata ao teste instantãneo do aparelho e do
exatamente como o teste e o referendo quando traduzem qual-
quer conflito ou problema em jogo de pergunta/resposta -e
a realidade assim
sobre o ator de cinema corresponde a extraordinária extensão desse campo do testada nos testa em troca de acordo com os mesmos parâmetros, e nós a
testável operada sobre o indivíduo pelo contexto econ6mico. Assim, os testes decodificamos segundo mesmo código, inscrito neles em cada mensagem, em
de orientação profissional assumem cada vez mais importancia.Eles consistem cada objeto, como um código genético miniaturizado.
em certo número de cesuras operadas no desempenho do indivicluo.Tomada 0 fato de tudo se apresentar hoje em termos de um leque ou de uma
cinematográfica, testes de orientacão profissional se desenrolam diante de um gama, só esse fato já constitui um teste, porque isso impõe uma seleção. Isso
areópago de especialistas. 0 diretor de fotografia se acha exatamente na mes- aproxima da leitura e da decifracão seletiva o uso global que temos do mundo
ma posição do aplicador de testes no caso da orientação profissional..: (A
Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica).
-
circundante vivemos menos como usuários do que como leitores e seletores,
células de leitura. Mas atencão: ao mesmo tempo, somos, nós, também, sele-
"A obra de arte entre os dadafstas tornou-se projétil. Ela avancava sobre o
cionados, bem como testados pelo próprio meio. Como selecionamos uma
espectador, assumia uma qualidade tátil. 0 elemento de diversão do filme amostragem para fins de pesquisa, toda a mídia enquadra e recorta corn o seu
também é primordialmente um elemento tátil, fundado, com efeito, na mobi- feixe de mensagens, que são na verdade um feixe de perguntas selecionadas,
lidade dos lugares e ângulos de visão, que vem atingir o espectador: uma amostragem de receptores. Por meio de uma operacão circular de ajuste
Nenhuma contemplação possfvel; as imagens fragmentam a percepção em experimental, de interferéncia incessante, como os de um influxo nervoso,
seqüencias sucessivas, em estfmulos para os quais s6 há resposta instantanea,pelo
sim ou pelo não - resposta reduzida ao maximo. 0 filme já não permite que o
interroguemos; ele nos interroga diretamente. É nesse sentido que a midia moder-
táteis e retráteis, que exploram um objeto a golpes de breves seqüencias
perceptivas, até re-10 localizado e controlado -o
que eles localizam assim, e
estruturam, não são grupos reais e autônomos, mas amostragens, isto, os grupos
na exige, de acordo com McLuhan, uma maior participacão imediata1, uma res-
individuo ao qual se propusesse projetar suas próprias fantasias sobre manchas de tinta que se
1 ."R a fraca 'clefinicão' da tevé que condena seu espectador a redispor os poucos pontos re- julga não representar coisa alguma. A teve como um perpétuo teste de Rorschach. E aindm "A
tidos numa espécie de obra abstrata. Ele participa imediatamente da criação de uma realidade que imagem da tevê nos obriga a cada instante a preencher as lacunas da trama numa participação
só lhe será apresentada na forma de pontinhos: o telespectador encontra-se na situação de um sensorial convulsiva e profundamente cinética e tátil".

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1
A ORDENt DOS SIMULACROS 0 TATIL E 0 DIGITAL

-
social e mentalmente modelados por disparos de baterias de mensagens. A
"opinião pública" é evidentemente a mais bela dessas amostragens não uma
substãncia politica irreal, mas hiper-real, hiper-realidade fantástica que vive
É toda a esfera politica que perde a sua especificidade quando entra no jogo da
midia e das pesquisas de opinião, isto é, na esfera do circuito integrado pergunta/
apenas da montagem e da manipulação testual [testuelle]. resposta. A esfera eleitoral é de qualquer forma a primeira grande instituição ern
A irrupção do sistema binário pergunta/resposta tem alcance incalculável:
que a troca social se reduz à obtenção de uma resposta.Graças a essa simplificação
ela desarticula todo discurso, causa um curto-circuito em tudo o que foi, numa sinalética,essa é a primeira esfera a se universalizar:o sufrágio universal é o primeiro
idade do ouro doravante encerrada, dialética de um significante e de um sig- mass-media.No curso dos séculos XIX e XX,a prática polftica e a prática econômica
nificado, de um representante e de um representado. Adeus aos objetos cujo se uniram cada vez mais num mesmo tipo de discurso. Propaganda e publicidade
significado seria a função, acabou a idéia de que o sufrágio elegeria represen- se fundiram no mesmo marketing e na mesma venda de objetos ou idéias-forga.Essa
tantes"representativos",é o fim da interrogação real A qual responde a resposta convergencia de linguagem entre o econômico e o polftico é ademais o que marca
(adeus sobretudo As perguntas para as quais não há resposta). Todo esse pro- uma sociedade como a nossa, na qual a "economia política" está plenamente rea-
cesso é desarticulado: o processo contraditório do verdadeiro e do falso, do lizada.E também ao mesmo tempo seu fim, porque as duas esferas se abolem numa
real e do imaginário é abolido nessa lógica hiper-real da montagem. Michel realidade, ou hiper-realidade, totalmente diferente,a dos meios de comunicação.Af
Tort, em seu livro sobre o Quotient IntellectueL o analisa bem:"0 que vai deter- ainda, a elevação de cada termo à sua potência superior, a dos simulacros de
minar a resposta à pergunta não é a pergunta enquanto tal, na forma em que terceira ordem.
foi feita; é o sentido que vai dar a essa pergunta aquele a quem ela foi feita, "0 fato de muitos lamentarem a `corrupção' do polftico na mfdia, deplo-
bem como a idéia que tem o sujeito interrogado da tática mais apropriada a rando que o botão da tevê e os prognósticos P M. U. (as pesquisas eleitorais)
adotar para responder A pergunta em função da idéia que faz das expectativas tenham substituído alegremente a formação de opinido, mostra simplesmente
que regem a pergunta". E mais:"0 artefato difere por inteiro da transformação que eles não entenderam nem um pouco a politica" (Le Monde).
controlada do objeto para o fim do conhecimento: trata-se de uma intervenção 0 que caracteriza essa fase do hiper-realismo polftico é a conjunção neces-
selvagem na realidade, ao final da qual é impossivel distinguir o que, na rea- sária entre o sistema bipartite e a entrada em jogo das pesquisas como espelho
lidade, depende de um conhecimento objetivo e o que depende da interven- dessa equivalência alternativa do jogo politico.
cão técnica (meio). 0 Q.I. é um artefato: Não há mais verdadeiro e falso, As pesquisas de opinião situam-se além de toda produção social de opinião.
porque já não existe afastamento discernfvel entre pergunta e resposta. À luz Referem-se apenas ao simulacro da opinião pública. Espelho da opinião análogo
dos testes, a inteligência, assim como a opinião, e, de maneira mais geral, todo em sua ordem ao do PNB [Produto Nacional Bruto]: espelho imaginário das forgas
processo de significação se reduz à "capacidade de produzir reações contras- produtivas, que não leva ern conta sua finalidade ou contrafinalidade social
essencial é que"isso"se reproduza -,assim como para a opinião pública:o essencial
-o
tadas a uma gama crescente de estfmulos adequados".
Toda essa análise remete diretamente à fórmula de McLuhan:"Medium is que ela se reduplique de maneira incessante em sua própria imagem:eis osegredo
message" ["0 meio é a mensageml É na verdade o meio, o modo de monta-
.
de uma representação de massa. Já não é preciso que alguém produza uma opi-
gem, de corte, de interpelação, de solicitação, de intimação pelo meio que nião;é preciso que todos reproduzam a opinião pública, no sentido de que todas as
regula o processo de significação. E compreende-se porque McLuhan viu na opiniões são engolfadas nessa espécie de equivalente geral e dela procedem outra
vez (reproduzem-na, sejam elas quais forem, no nfvel da escolha singular). Para
era dos grandes meios eletrônicos uma era da comunicação tátil. De fato, nesse
processo estamos mais próximos do universo tátil do que do visual, em que o -
opiniões,como para os bens materiais,a produção está morta viva a reprodução!
Se a fórmula de McLuhan tem sentido em algum lugar, é precisamente
distanciamento é maior e a reflexão sempre possfvel. No momento ern que
perde para nós seu valor sensorial, sensual ("o tato é mais uma interação dos aqui'. A opinião pública é por excelencia ao mesmo tempo o meio e a men-
sagem. E as pesquisas de opinião que a informam são a imposição incessante
sentidos do que um simples contato entre a pele e um objeto"),é possfvel que
o tato se torne o esquema de um universo da comunicação - mas como
campo de simulação tátil e tático em que a mensagem vem a ser "massagem",
do meio como mensagem. Nisso, elas são da mesma ordem da teve e da mfdia
eletrônica, que, como vimos, são, elas também, um jogo perpétuo de pergun-
tas/respostas, um instrumento de sondagem perene.
solicitagao tentacular, teste. Somos testados, tateados, em todo lugar, o método
é "tático", a esfera da comunicação é "tátil". Sem falar da ideologia do "contato",
que, em todas as suas formas, visa tomar o lugar da idéia de relação social. Há 2."Medium is message" é a fármula da economia politica do sign() quando esta desemboca na
ai toda uma configuração estratégica que gira em torno do teste (a célula simulação de terceira ordem - a distinçao entre o meio e a mensagem ainda caracteriza a signi-
pvgunta/resposta) como em torno de um código molecular de comando. ficação da segunda ordem.

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A OKDEM DOS SIMULACROS 0 TATIL E 0 DIGITAL

nal que instituem em toda a extensão das práticas sociais, o da leucemização de


As pesquisas de opinião manipulam o indecidivel. Influenciam elas o voto?
Verdadeiro, falso? Dão uma descrição exata da realidade ou simples tendéncias,
toda substãncia social: substituição do sangue pela linfa branca da miclia.
ou a refração dessa realidade num hiperespago da simulação de que sequer se
conhece a curvatura? Verdadeiro, falso? Indecidível. A mais extrema sofisticação
de sua andlise sempre deixa espaço à reversibilidade das hipóteses. A estatística A circularidade pergunta/resposta encontra prolongamentos em todos os
não passa de casuistica.Esse indecidível é próprio de todo processo de simulacão campos. Percebemos lentamente que todo o domínio das investigações, das
(ver acima o indecidível da crise). A lógica interna desses procedimentos (esta- pesquisas, das estatísticas deve ser revisto em função dessa suspeita radical que
tísticas, probabilidades, cibernética operacional) é por certo rigorosa e "científi- pesa sobre seu método. Porém, essa mesma suspeita pesa sobre a etnologia: a
ca"; no entanto, em algum lugar ela não está vinculada com coisa alguma, é uma não ser que se admita que os indígenas são seres naturais perfeitos incapazes
ficção fabulosa cujo índice de refração numa realidade (verdadeira ou falsa)
nulo. É isso mesmo que faz a forga desses modelos, mas é igualmente aquilo que
de simulação, o problema é o mesmo, lá como cá -
a impossibilidade de
obter, para uma pergunta dirigida, uma resposta não simulada (uma resposta
só lhes deixa de verdade a dos testes de projeção paranóicos de uma casta, ou que não reproduza a pergunta). E sequer é certo que possamos interrogar as
de um grupo, que sonham com uma adequação miraculosa do real aos seus plantas, os animais ou a matéria inerte nas ciéncias exatas com chance de
modelos e, em conseqüência, como uma manipulação absoluta. obter uma resposta "objetiva". Quanto à resposta dos pesquisados aos pesqui-
0 que se aplica ao cenário estatístico aplica-se também à parte regrada da sadores, dos indígenas aos etnólogos, do analisado ao analista, pode-se estar
esfera politica: alternância de foros representadas, substitutivos maioria/mino- certo de que a circularidade é total: os questionados se mostram sempre tal como
ria etc. Nesse limite da representação pura,"isso" não representa mais nada. A a questão os imagina e solicita que sejam. Mesmo a transferéncia e a contra-
política morre por causa da interação regrada demais de suas oposigóes distin- transferéncia psicanalíticas sucumbem hoje sob o peso dessa resposta estimu-
tivas. A esfera política (e, de modo mais geral, a do poder) se esvazia. Trata-se lada, simulada, antecipada, que não é sendo uma modalidade de selffulfilling
de qualquer forma do resgate pago pela realização do desejo da classe politica, prophecy'. Chega-se então a um estranho paradoxo: a fala dos pesquisados, dos
o de uma perfeita manipulação da representagão social. Sub-repticiamente e analisados, dos indígenas é submetida a um curto-circuito irremediável e per-
com suavidade, toda substância saiu dessa máquina no momento mesmo de
sua reprodução perfeita.
dida, e é com base nessa foraclusdo que as respectivas disciplinas
psicanálise, sociologia - etnologia,
vão poder se desenvolver maravilhosamente. Mas
-
0 mesmo acontece com as pesquisas de opinião: os únicos que acreditam elas o fazem no vazio, pois é aí que a resposta circular dos pesquisados, dos
nelas são, no final, os membros da classe politica, assim como os únicos que analisados, dos indígenas é apesar de tudo um desafio e uma revanche vito-
riosa: é que eles remetem a pergunta a si mesma, isolam-na ao lhe estender
créem na publicidade e nas pesquisas de mercado são os homens de marketing
e os publicitários. Isso não devido a uma eventual estupidez particular (que
também não está excluída), mas porque as pesquisas de opinido são homólogas
esse espelho da resposta que ela espera -
sem que haja para ela esperança de
sair um dia desse círculo vicioso que é na realidade o do poder. Exatamente
ao atual funcionamento do politico. Elas assumem, portanto, um valor tático como no sistema eleitoral, ern que os representantes não representam nada
"real", funcionando como fator de regulação da classe política, de acordo com mais devido ao fato de controlarem muito bem as respostas do eleitorado: em
sua própria regra do jogo. Logo, essa classe é feita para acreditar nesta última, algum lugar tudo lhes escapa. Eis por que a resposta dominada dos dominados
e ela cré. Mas qual a alternativa, no fundo? É o espetáculo burlesco dessa esfera apesar de tudo, de alguma forma, uma verdadeira resposta, uma vingança
política, hiper-representativa do nada, que as pessoas degustarn por meio das desesperada: a de deixar o poder enterrar o poder.
pesquisas d opinido e da mídia. Hd um júbilo próprio à nulidade espetacular,
e a ultimo, forma por ela assumida é a da contemplação estatística. Esta, por
outro lado, se faz acompanhar, sabe-se, de urna profunda decepção -o espa- Os sistemas "democráticos avançados" se estabilizam corn base na Lórmula
go de desilusão causado pelas pesquisas de opinião ao absorver toda fala da alternância bipartite. O monopálio de fato continua sendo o de uma classe
pública, pondo em curto-circuito todo processo de expressão. 0 fascínio que política homogênea, da esquerda â direita, mas não deve ser exercido assim:
exercem tem o mesmo grau dessa neutralizacão pelo vazio, da vertigem
que criam por antecipacão da imagem ern toda realidade possível.
o regime do partido único, do totalitariato, é uma forma instável ele esvazia -
O problema das pesquisas de opinido nâo é de maneira alguma, por conse- 3. Toda a situação "psicoldgica" atual se caracteriza por esse curto-circuito.
guinte,o de sua influéncia objetiva.Tal corno ocorre no caso da propaganda, no da A emancipação das crianças e dos adolescentes, depois de utna primeira fase de revolta e uma
publicidade, essa influéncia, como sabemos,6 amplamente anulada pelas resistén- vez estabelecido o principio do direito à emancipação nil() parece a emancipação real dos pais? E os
jovens (do primeiro e do segundo grau,adolescentes) parecem pressenti-lo em sua demanda sempre
cias ou inércias individuais ou coletivas.Seu problema é o da simulação operacio-

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A ORDEM DOS SIMULACROS 0 TATIL E O DIGITAL

a cena política, deixa de assegurar o feedback da opinião pública, o fluxo lógico: a democracia realiza na ordem política a lei de equivalência, e esta se
mínimo no circuito integrado que constitui a máquina transistorizada do poli- completa no jogo oscilatório dos dois termos, que reativa sua equivalencia
tico. A alternância é, pelo contrário, o fim do fim da representação, porque a porém permite, por essa separação ínfima, captar o consenso público e fechar
solicitação é máxima, ao lado da simples restrição formal, quando nos aproxi- o ciclo da representação.Teatro operacional em que só atua o reflexo fuligino-
mamos mais da equação concorrencial perfeita entre os dois partidos. Isso so da Razão política. A "livre escolha" dos indivíduos, que é o credo da demo-
cracia, desemboca,com efeito, exatamente no contrário: o voto torna-se funda-
mais agressiva (ainda que sempre também irreconciliada) da presença e da palavra dos pais ou
mentalmente obrigatório: se não juridicamente, mediante a restrição estatística
educadores. Enfim sós, livres e responsáveis, eles têm a brusca impressão de que os "outros" talvez estrutural da alternância, reforgada pelas pesquisas4. O voto vem a ser essen-
tenham, na operação, se apropriado da verdadeira liberdade. Do mesmo modo, nada de deixá-los em cialmente aleatório: quando a democracia atinge um estágio formal avançado,
paz: eles serão atormentados, não com uma exigência afetiva ou material espontãnea, mas com uma
sua distribuição de dá em torno de coeficientes iguais (50/50). 0 voto atinge
exigõricia revista e corrigida pelo saber edipiano implícito. Hiperdependencia (bem maior que a
outra) distorcida pela ironia e pela recusa,paródia dos mecanisrnos libidinais originals. Demanda sem o movimento browniano das partículas ou o cálculo das probabilidades,
conteúdo, sem referenciais, infundada, porém, nessa mesma medida, mais feroz - demanda-nuvem como se todos votassem ao acaso, é como se os macacos votassem.
sem resposta possível. Liquidado no ato da emancipação o conteúdo de saber (educação) ou de Nesse ponto, pouco importa que os partidos presentes exprimam históri-
relações afetivas (familia), o referendal pedagogic° e familial, não resta mais do que uma demanda
ligada à forma vazia da instituição - demanda perversa, e tanto mais obstinada quanto mais perversa.
ca e socialmente o que quer que seja -é
até necessário que eles não repre-
Desejo "transferencial" (isto é, não-referencial), desejo alimentado pela falta, pelo lugar vazio,"libe- sentem mais nada: o fascínio do jogo, das sondagens, a compulsão formal e
rado", desejo tornado ã sua própria imagem vertiginosa, desejo de desejo, abissal aí também, hiper- estatística são ainda maiores.
-real. Privado de sua substancia simbólica, ele se reduplica em si mesmo, tira sua energia do seu
O sufrágio universal "clássico" já implica certa neutralização do campo polí-
próprio reflexo e da sua propria decepção. Eis o que é literalmente hoje a "demanda", e está claro
que, ao contrário das relações objetais ou transferenciais "classicas", esta é insoluvel e intermindvel. tico, ao lado do consenso quanto à regra do jogo. Mas ainda se distinguem nele
0 Édipo simulado representantes e representados, na base de um antagonismo social real de opi-
François Richard:"Os estudantes exigem ser seduzidos pelo corpo ou pela palavra. Mas tam- niões. É a neutralização desse referendal contraditório, sob o signo de uma opi-
bém sabem que se trata disso, e jogam com isso, irônicos: 'Me dõ seu saber, me clõ sua presença,
voce quem tem a palavra, fale, vocõ está aí para isso'. É por certo contestação, mas não só: quanto
nião pública doravante igual a si mesma, midiatizada e homogeneizada por an-
mais a autoridade é contestada, derrisõria, tanto mais já a demanda de uma autoridade em si. Eles tecipação (as pesquisas eleitorais) que vai tornar possível a alternância "na cúpu-
também brincam com o Edipo, para melhor negá-lo. 0 professor é o papai,dizem, é chato, brincam la": simulação de oposição entre dois partidos, absorção dos seus respectivos
com o incesto, o desconforto, o não-me-toques, a provocação - para no final dessexualizar". Como
o analisando que redemanda Édipo, que conta truques "edipianos", que cria sonhos "analíticos"
para responder ã suposta demanda do analista ou para lhe resistir? 0 aluno também apresenta seu
número edipiano, seu número de sedução, chama de você, toca de leve, se aproxima, domina -
representante e do representado, a forma pura da representação -
objetivos, reversibilidade de todo discurso de um ao outro.Trata-se, para além do
assim como
a simulação caracteriza, superando o significante e do significado, a forma pura
mas isso não é o desejo, mas a simulação. Psicodrama edipiano de simulação (nem por isso menos
real ou menos dramático). Muito diferente de um verdadeiro contexto libidinal de saber e de poder
da economia política do signo -, do mesmo modo como a flutuação das moe-
ou mesmo de um verdadeiro trabalho de luto quanto ao saber e o poder (como foi possível
das e sua deriva contábil caracterizam, ultrapassando o valor de uso e o valor de
acontecer depois de 1968 nas universidades). Agora estamos no estágio da reprodução desespera- troca, para além de toda substância de produção, a forma pura do valor.
da, e onde o contexto é nulo, o simulacro é máximo - simulação exacerbada e,ao mesmo tempo,
parodica tão interminável quanto a psicanálise, e pelas mesmas razões.
A psicanálise intermindvel
Há toda um capítulo adicional à historia da transferencia e da contratransferõncia: a de sua
liquidação pela simulação. A da transferencia insoluvel, da psicanálise impossível por ser doravante
ela mesma que produz e reproduz o inconsciente como sua substancia institucional. A psicanálise
aberta ao oligopólio e, em seguida, ao monopólio -
Pode parecer que o movimento histórico do capital o leva da concorrência
que o movimento da
democracia vai de múltiplos partidos ao bipartidarismo e, depois, ao partido
também morre da troca de signos do inconsciente. Da mesma maneira como a revolução morre da
troca de signos críticos da economia política. 0 curto-circuito fora bem vislumbrado por Freud na único. Mas não é nada disso: o oligopOlio, ou duopOlio, atual resulta do desdo-
forma da transmissão do sonho analítico ou, entre os analisandos "pré-didatizados", da transmissão bramento tático do monopólio. Em todos os domínios, o duopOlio é o estágio
do seu saber analítico. Mas isso ainda era interpretado como resistencia, como desvio, e não ques- acabado do monopólio. Não é a vontade política (a intervenção do Estado, as
tionava fundamentalmente o processo da análise nem o princípio da transferencia. É outra a situação
quando o próprio inconsciente, o discurso do inconsciente se torna impossível de encontrar - nos
leis antitruste etc.) que expulsa o monopólio do mercado; em vez disso, todo
termos do mesmo cenário da antecipação simuladora que vimos funcionar em todos os níveis nas o sistema unitário, caso deseje sobreviver, deve encontrar uma regulação bind-
máquinas de terceira ordem. A análise então não pode chegar a uma conclusão, tornando-se lógica ria. Isso não altera nada no monopOlio: pelo contrário: o poder só é absoluto
e historicamente intermindvel, visto estabilizar-se sobre uma substancia fantoche de reprodução, um
inconsciente programado pela demanda - instãncia impenetravel a partir da qual se distribui toda
a análise.Aí ainda, as "mensagens" do I.C.S. foram objeto de um curto-circuito provocado pelo "meio" 9.A democracia ateniense, bem mais avançada do que a nossa, chegou logicamente a retribuir
psicanálise. Trata-se do hiper-realismo libidinal. As célebres categorias do real, do simbolico e do o voto como um serviço, depois de ter experimentado todas as outras soluçoes repressivas para
imaginário, cumpre adicionar a do hiper-real, que capta e desvia o jogo das outras tres. garantir o quorum.

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A ORPE.N4 DOS SIMULACROS O TATu, E O DIGITAL

quando sabe se difratar em variantes equivalentes, quando sabe se desdobrar rencia original. Paradoxalmente, se houvesse apenas uma, o monopélio não
para se duplicar. Isso vai das marcas de lixívia a coexisténcia pacífica. Sao seria encarnado, porque vimos que ele se estabiliza numa forma dual. Para ser
necessárias duas superpotencias para manter um universo sob controle: um puro, o signo precisa duplicar-se a si mesmo: a duplicação do signo que leva
.6

império sozinho provocaria sua própria ruína. E o equilíbrio do terror não verdadeiramente ao fim aquilo que ele designa.Todo o Andy Warhol está aí: as
senão aquilo que permite manter no lugar a oposição regrada, porque a estra- réplicas multiplicadas do rosto de Marilyn são por certo, ao mesmo tempo, a
tégia é estrutural, nunca atômica. Essa oposição regrada pode, por outro lado, morte do original e o fim da representagão. As torres gemeas do WTC são o
ramificar-se num cenário mais complexo enquanto permanece a matriz bind- signo visível do fechamento de um sistema na vertigem da duplicação, ao
ria. Doravante, não mais haverá duelo nem luta de concorréncia abertos, mas passo que os outros arranha-céus são, cada um, o momento original de um
golpes de oposigóes simultâneas. sistema que se supera a si mesmo continuamente na crise e no desafio.
Da menor unidade disjuntiva (a partícula pergunta/resposta) ao nível Há um fascínio particular nessa duplicagão. Por mais altas que sejam, e
macroscópico dos grandes sistemas de alternancia que regem a economia, a mais altas que todos os outros prédios, as duas torres significam, no entanto,
política, a coexistencia mundial, a matriz não se altera: é sempre o 0/1, a uma interrupgão da verticalidade. Elas ignoram os outros buildings, não são da
escansão binária que se afirma como a forma metastável, ou homeostática, dos mesma raga, já não os desafiam nem com eles se comparam, elas olham uma
sistemas atuais. Ela constitui o núcleo dos processos de simulagão que nos para a outra e culminam nesse prestígio da sirnilitude.Aquilo a que se remetem
dominam.Ela pode organizar-se num jogo de variações instáveis,da polivalência
tautologia, sem que seja questionada a forma estratégica do bipólo: trata-se um valor de superação -
idéia de modelo, que são uma para a outra, e sua altitude gémea não é mais
significa somente que a estratégia dos modelos e das
comutagões doravante leva vantagem historicamente, no coragão do próprio
da forma divina da simulação'.
sistema -e Nova Iorque 6. de fato seu coragão -
sobre a estratégia tradicional
da concorrência. Os buildings do Rockfeller Center ainda olhavam suas facha-
Por que há duas torres no World Trade Center de Nova torque? Todos os das de vidro e ferro, uns nos outros, numa especularidade indefinida da cidade.
grandes buildings de Manhattan sempre se contentaram em se enfrentar numa As torres, por sua vez, sac) cegas, e não tém fachada.Todo referencial do hábitat,
verticalidade de concorrência da qual resultou um panorama arquitetônico da fachada como rosto, do interior e do exterior, que ainda encontramos até no
imagem do sistema capitalista: uma selva piramidal, todos os buildings a se Chase Manhattan Bank ou nos buildingslespelho mais audaciosos dos anos 60,
lançar uns contra os outros. O próprio sistema se perfilava na imagem célebre desapareceu. Ao mesmo tempo que a retórica da verticalidade, desaparece a
que se tinha de Nova torque ao chegar ali por mar. Essa imagem mudou por retórica do espelho. Já não resta senão uma série fechada no número dois,
completo em poucos anos. A efígie do sistema capitalista passou da piramide como se o arquiteto, a imagem do sistema, não procedesse senão de um 6)-
ao cartão perfurado. Os buildings não são mais obeliscos, mas se unem entre digo genético invariável, de um modelo definitivo.
si, não mais se desafiando, como colunas de um gráfico estatístico. Essa nova
arquitetura encarna um sistema não mais de concorrência, porém contábil, e
no qual a concorrência desapareceu em benefício das correlagões.(Nova torque
a (mica cidade do mundo a descrever assim, ao longo de sua história, com
prodigiosa fidelidade e em toda a sua envergadura, a forma atual do sistema do
capital - ela muda instantaneamente em fungão deste nenhuma cidade
européia o faz.) Esse grafismo arquitetônico é o do monopOlio: as duas torres
do WTC., paralelepípedos perfeitos de 400 metros de altura sobre uma base
quadrada, vasos comunicantes perfeitamente equilibrados e cegos fato de -o
haver duas idénticas significa o fim de toda concorrencia, o fim de toda refe-

5. Nesse sentido, e preciso criticar radicalmente a projeção leita por Lévi-Strauss das estruturas
binarias como estruturas mentais"antropológicas e da organização dualista como estrutura de base
das sociedades primitivas.A forma dualista coin que Lévi-Strauss decidiu presentear as sociedades
primitivas nunca é senao nosso lOgica estrutural, nosso próprio código. E o mesmo cédigo do nosso
domínio sobre as sociedades "arcaicas". Logo, Lévi-Strauss tem a boa vontade de passa-lo a elas na
forma de estruturas mentais comuns a toda a espécie humana. Elas ficarão assim melhor prepara-
das para receber o batismo do Ocidente.

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0 Hiper-realismo
da Simulação

Tudo isso define um espaco digital, um campo magnético do código,


com polarizacões, difracões e gravitacões de modelos e sempre
o fluxo das menores unidades disjuntivas (a célula pergunta/respos-
ta, que é como o átomo cibernético da significacão). É preciso avaliar bem a
diferenca entre esse campo de controle e o espaco repressivo tradicional, o
espaco policial que ainda correspondia a uma viorúncia significativa. Espaco
de condicionamento reacional que se inspirava totalmente no dispositivo
pavloviano de agressões programadas, repetitivas, e que encontrávamos em
escala multiplicada na publicidade que segue a tatica do "bombardeio" e na
propaganda política dos anos 30. Violência artesanal e industrial que visava
induzir comportamentos de terror e de obediú-ncia animal.Tudo isso perdeu o
sentido.A concentracão totalitária, burocrática, é um esquema que data da era
da lei de mercado do valor. O sistema de equivalência na verdade impõe a
forma de um equivalente global e, portanto, a centralizacdo de um processo
global. Racionalidade arcaica com relacão A da simulacão: nesta última, não
existe apenas um equivalente geral, mas uma difracdo de modelos que desem-
penham um papel regulador - não mais a forma do equivalente geral, mas a
da oposicão distintiva. Passa-se da injuncdo a disjuncão pelo código; do ultima-
to, a solicitacdo; da passividade requerida, aos modelos construfdos de irnedia-
to com base na "resposta ativa" do sujeito, em sua implicacão, sua participacão
"lúdica", tomando o rumo de um modelo ambiental total feito de respostas
espontãneas incessantes, de alegres feedbacks e de contatos irradiados.Trata-se
da "concretizacão do ambiente total", segundo Nicolas Schöffer. Trata-se da
grande festa da Participacdo: ela é feita de mirfades de estímulos, de testes
miniaturizados, de perguntas/respostas divisíveis ao infinito, todos magnetiza-
dos por alguns grandes modelos no campo luminoso do código.

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A ORDEM DOS SIMULACROS 0 HIPER-REALISMO DA SIMULA(AO

Chegou a grande Cultura da comunicação tatil, sob o signo do espago fase bem mais avancada, tendo em vista que mesmo essa contradicão entre o
tecnoluminocinético e do teatro total espaçodinamico! real e o imaginário se apaga. A irrealidade já não é a do sonho ou da fantasia,
É todo um imaginário do contato, do mimetismo sensorial, do misticismo de um além ou de um aquém, a da alucinante semelhança do real consigo
.6

tátil,é toda a ecologia ao fundo que vem se enxertar nesse universo de simula- mesmo. Para sair da crise da representacão, é preciso prender o real na repe-
cão operacional, multiestímulo e multirresposta. Vai-se naturalizar esse teste ticão pura.Antes de emergir na pop-art e no neo-realismo pictorial, essa tendên-
incessante de adaptação bem-sucedida por meio de sua assimilacão ao cia já era lida no nouveau roman. 0 projeto deste já é de esvaziar o real,
extirpar toda psicologia, toda subjetividade, para entregá-lo à objetividade pura.
mimetismo animal: "A adaptacão dos animais as cores e as formas do seu
ambiente é um fenômeno que também tem validade para os homens" (Nicolas
Schöffer) e até para os Índios, com "seu sentido inato da ecologia"! Tropismos,
Na verdade, essa objetividade não é senão a do puro olhar - objetividade
enfim liberta do objeto, que não é senão o relê cego do olhar que o varre.
mimetismos, empatia: todo o evangelho ecológico dos sistemas abertos, com Sedução circular onde se pode localizar com facilidade o empreendimento
feedback negativo ou positivo, vai ser tragado por essa brecha, com uma ideo- inconsciente de não mais ser visto.
É bem essa a impressão que dá o neo-roman: essa sanha de elidir o sentido
logia da regulacão por meio da informação que é apenas o avatar, de acordo
com uma racionalidade mais flexível, do reflexo de Pavlov. Assim, passamos do numa realidade minuciosa e cega. Sintaxe e semantica desapareceram - já
eletrochoque à expressão corporal como condicionamento da saúde mental.
Em toda parte, os dispositivos de forca e de forcar cedem lugar aos dispositivos
de criacdo de ambiente, com a operacionalizacão das noções de necessidade,
vel dos seus fragmentos esparsos -
nao há aparecimento, mas comparecimento do objeto, interrogatório implacá-
nem metáfora nem metonímia: imanéncia
sucessiva sob a insistéricia policialesca do olhar. Essa microscopia "objetiva"
de percepção, de desejo etc. Ecologia generalizada, mística do "nicho" e do suscita uma vertigem de realidade, vertigem de morte nos confins da represen-
contexto, simulação de ambiente que alcanca os "Centros de Reanimacão Es- tacão pela representacão. Findas as velhas ilusões de relevo, de perspectiva e
tética e Cultural" previstos no VII Plano (por que não?) e o Centro de Lazer de profundidade (espaciais e psicológicas) ligadas à percepção do objeto: é o
Sexual, construído em forma de seio, que oferecerá "uma euforia superior gra- óptico inteiro, é o escópico tornado operacional na superfície das coisas, é o
ças a um ambiente vibrante... O trabalhador de todas as classes poderá entrar olhar transformado em código molecular do objeto.
Inúmeras modalidades dessa vertigem de simulação realista são possíveis:
nesses centros estimulantes". Fascínio espagodinamico, como esse "teatro to-
tal", estabelecido "de acordo com um dispositivo circular hiperbólico que gira
em torno de um fuso cilíndrico": nada de cena, nada de corte, nada de "olhar":
I. A desconstrucão do real em seus detalhes - declinação paradigmática
fechada do objeto achatamento, linearidade e serialidade de objetos parciais.
fim do espetáculo, e fim do espetacular, rumo ao ambiental total, fusional, II. A visão abissal: todos os jogos de desdobramento e de duplicação do

tático, estésico (e não mais estético) etc. Só se pode pensar, com humor negro, objeto em seus detalhes. Essa demultiplicacão se apresenta como profundida-
no teatro total de Artaud, em seu Teatro da Crueldade, de que essa simulação de, talvez como metalinguagem crítica, e isso era sem dúvida verdadeiro numa
espacodinamica é a caricatura abjeta. Aqui, a crueldade é substituída pelos configuração reflexiva do signo, numa dialética do espelho. Doravante, essa
"limiares de estímulo" mínimo e máximo, pela invengão de "códigos perceptivos refração indefinida não passa de outro tipo de serialidade: o real já não se
calculados a partir dos limiares de saturacão". Mesmo a boa e velha "catarse" reflete nela, ele involui em si mesmo até a extenuacão.
do teatro clássico das paixões transformou-se hoje homeopatia por simulação. III. A forma propriamente serial (Andy Warhol). Aqui, não é abolida apenas
Assim vai a criatividade. a dimensão sintagmática, mas também a dimensão paradigmática, visto ter
É também o afundamento da realidade no hiper-realismo, na duplicação
minuciosa do real, de preferéncia a partir de outro meio reprodutivo - publi-
cidade, fotografia etc.; de meio em meio o real se volatiliza, torna-se alegoria
-
deixado de haver flexão de formas, e até reflexão interna, existindo somente
contigüidade do mesmo flexão e reflexão zero. Como duas irmas gémeas
numa foto erótica: a realidade carnal de seus corpos é anulada por essa seme-
da morte, mas também se reforça ao lado de sua destruicão, transmuta-se em lhança. Como investir quando a beleza de uma é imediatamente duplicada
real para o real, fetichismo do objeto perdido - não mais objeto de represen-
tag-do, mas arrebatamento de recusa e de sua própria exterminacão virtual:
pela da outra? 0 olhar só pode ficar passando de uma à outra, ficando toda
visão encerrada nesse vaivém. Sutil maneira de matar o original, mas também
hiper-real. seducão singular em que todo olhar lancado ao objeto é interceptado pela
0 realismo já inaugurara esta tendéncia. A retórica do real já assinala que difração infinita deste em si mesmo (cenário inverso ao do mito platônico e ao
o estatuto dele estd gravemente alterado (a idade de ouro é a da inocéncia da
linguagem, na qual ele não tem de duplicar o que diz mediante um efeito de
da reuniao das duas metades separadas de um símbolo - aqui, o signo se
demultiplica como os protozoários). Essa seducão é talvez a da morte, no
realidade). 0 surrealismo ainda é solidário com o realismo ao qual contesta, sentido de que, para nós, seres sexuados, a morte talvez não seja o nada, mas
mas duplica devido à sua ruptura no imaginário. 0 hiper-real representa uma simplesmente a modalidade de reprodução anterior a sexuada.A geração pelo

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A ORDEN' DOS SIMULACROS O HIPER-REALISMO DA SIMULACAO

modelo segundo uma cadeia indefinida aproxima-se de fato da dos protozoários lidade inteira passada ao jogo da realidade desencanto radical, estágio cool
e se opõe a reprodugão por meio do sexo, que para nós se confunde com a vida. e cibernético que sucede a fase hot e fantasmática.
IV. Mas essa maquinalidade pura não é, sem dúvida, mais
do que um limite É assim que se pode substituir o sentimento de culpa,
a angústia e a morte
paradoxal: a verdadeira fórmula gerativa, a que engloba todas as outras, e que é pelo enlevo total dos signos do sentimento de culpa, do desespero,
a da binariedade, da da violén-
de alguma maneira a forma estabilizada do código, é
digitalidade - não mais a repetigão pura, mas a separagão minima, a inflexão
minima entre dois termos, isto é, o"minimo paradigma comum" capaz de susten-
cia e da morte. Trata-se da euforia da simulagão, que se deseja
causa e do efeito, da origem e do fim, a que substitui pela duplicagão.
modo, todo sistema fechado se protege a um se) tempo do referencial
aboligão da
Desse

tar a ficgão do sentido. Combinatória de diferenciagão interna tanto ao objeto


pictorial como ao de consumo,essa simulagão vai se encolhendo na arte contem-
angústia do referencial -
assim como de toda metalinguagem, que ele evita ao
fazer de si sua própria metalinguagem, isto é, duplicando-se
e da

em sua própria
porãnea até não passar da diferenga fnfima que separa ainda o hiper-real da critica. Na simulagão, a ilusão metalingüfstica duplica e completa
a ilusão re-
hiperpintura. Esta última pretende se esgotar até a anulagão sacrifical diante do ferencial (a alucinagão patética do signo e a alucinagão patética
do real).
real, mas sabe-se como todos os prestigios da pintura ressuscitam nessa diferenga "É circo","é teatro","é cinema"- velhos adagios,
velha denúncia naturalista.
infima: toda a pintura se refugia na tímbria que separa a superffcie pintada e a Já não se trata disso; desta feita temos a satelitização do real, o elevar
à órbita de
parede. E na assinatura: signo metafisico da pintura e de toda a metafisica da uma realidade indecidfvel e sem medida comum com as fantasias
que outrora a
representagão, no limite em que ela toma a si mesma por modelo (o"puro olhar") ilustravam. Essa satelitizagão viu-se por outro lado como
que materializada no
e gira em torno de si mesma na repetigdo compulsiva do código. dois-c&nodos-cozinha-banheiro que elevamos mesmo à órbita, à potencia
espa-
A definigão do real é aquilo de que é possfuel dar uma reprodução
equi- cial, poder-se-ia dizer, com o ultimo módulo lunar. A própria
cotidianeidade do
ualente. Essa definigão é contempordnea da ciencia, que postula
cesso pode ser exatamente reproduzido em condigões determinadas,
que um
e da
pro-
ra-
habitat terrestre elevado ao nfvel de valor cOsmico, de ambiente
hipostasiado no espago - absoluto
representa o fim da metaffsica; af comega a era da
-
cionalidade industrial, que postula um sistema universal de equivalencias (a hiper-realidade'. Mas a transcendencia espacial da banalidade do
dois dimodos,
representagão classica não é equivalencia, mas transcrigão, interpretagão, co- assim como a sua figuragão cool e maquinal no hiper-realismo2
não dizem mais
mentário). Ao final desse processo de reprodutibilidade, o real não é somente do que uma coisa: que esse módulo, tal como é, participa de um hiperespago
da
o que pode ser reproduzido; é igualmente o que é sempre já reproduzido. Hiper- representagão no qual cada um já está tecnicamente de posse da
reprodugão
-real. instantãnea de sua própria vida,situagão que permitiu aos pilotos
do Tupolev que
Então: fim do real e fim da arte pela reabsorgão total de um e da outra? se despedagou em Bourget ver, em suas cameras, sua morte ao vivo.
Não vemos
Não: o hiper-realismo é o apogeu da arte e o apogeu do real mediante a troca senão o curto-circuito da resposta provocado pela pergunta no teste, processo
de
respectiva, no nivel do simulacro, dos privilégios e preconceitos que os fun- recondugão instantânea por meio do qual a realidade é imediatamente
contami-
dam. 0 hiper-real só estã além da representagão (cf. J.-F Lyotard, L'Art 14uant, nada pelo seu simulacro.
número sobre o hiper-realismo) por estar todo inteiro na simulagão. Nele, o Havia antes uma classe especifica de objetos alegóricos, e
um pouco dia-
torniquete da representagão enlouquece, tornado contudo por uma loucura
implosiva que, longe de ser excéntrica, langa olhares cobigosos ao centro,
bólicos: os espelhos, as imagens, as obras de arte (os conceitos?)
cros, mas transparentes, mas manifestos (não se confundiam
simula-
fação e contra-
-
sua própria repetigão abissal.Análogo ao efeito de distanciamento inerente ao
sonho, que faz dizer que se sonha, mas sem que isso passe de jogo de censura I. 0 coeficiente de realidade é proporcional à reserva de
imaginario que Ihe dá o seu peso
e de perpetuagão do sonho, o hiper-realismo é parte integrante de uma reali- específico. Isso se aplica igualmente à exploração geografica
e espacial: quando já não há território
virgem e, portanto, disponível ao imaginário, quando o mapa
dade codificada a que perpetua e da qual ele nada muda. cobre todo o territdrio, algo como o
princípio de realidade desaparece. A conquista do espaço constitui
Com efeito, é preciso interpretar o hiper-realismo ao inverso: é a realidade versivel rumo à perda do referencial terrestre. Há uma exata
nesse sentido um limiar irre-
hemorragia da realidade como coe-
hoje que é hiper-realista. 0 segredo do surrealismo já era o fato de a realidade rência interna de um universo limitado quando Os limites
deste Ultimo se ampliam ao infinita A
mais banal poder vir a ser surreal, mas apenas em instantes privilegiados, e que conquista do espaço vern depois da do planeta como o
mesmo empreendimento fantástico de
estender a jurisdição do real - levar por exemplo a bandeira,
ainda relevavam da arte e do imaginário. Hoje, é toda a realidade cotidiana, mesma tentativa que a de substancializar os conceitos
a técnica e o dois cOmodos à Lua

politica, social, histórica, econômica etc. que incorporou desde logo a dimen- ou de territorializar o inconsciente; ela
equivale a desrealizar o espao humano ou reverte-lo a um hiperreal
de simulação.
sa.o simuladora do hiper-realismo: já vivemos na alucinagão "estética" da reali- 2. Ou da caravana metalizada ou do supermercado,
de que tanto gostam os hiper-realistas,ou
dade. 0 velho slogan "a realidade supera a ficgão", que corresponde ainda ao da sopa Campbell, adorada por Andy Warhol, podendo
satelitizada, ela tambem, ao redor do planeta como modelo
ser ainda a Gioconda, depois de ter sido
estágio surrealista dessa estetização da vida, foi deixado para trás: nada de
ficgão com que a vida possa confrontar-se, mesmo vitoriosamente - é a rea-
alguma uma obra de arte, mas um simulacro planetário em
nho de si próprio (na realidade, de sua própria morte) diante
absoluto da arte terrestre, de forma
que todo um mundo vem dar testemu-
das vistas de um universo futuro.

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A ORDEM DOS SIMULACROS

ção),que tinham seu estilo e seu savoir-faire característicos.E o prazer consistia


então primordialmente em descobrir o "natural" no que era artificial e contra-
feito. Hoje, quando o real e o imaginário são confundidos numa mesma tota-
lidade operacional, o fascfnio estético é ubíquo: é a percepção subliminar
(uma espécie de sexto sentido) da trucagem, da montagem, do cenário; da
superexposição da realidade à iluminação dos modelos - não mais um espa-
co de produção, mas uma faixa de leitura, faixa de codificação e decodificação,
realidade estética, não mais pela premedita-
Kool Killer
faixa magnetizada pelos signos
ção e a distancia
potência, por meio
da
da
arte, mas por
antecipação
sua elevação ao segundo nfvel, à segunda
e da imanencia do código. Uma espécie de
ou a Insurreição pelos Signos
paródia não deliberada paira sobre todas as coisas, uma espécie de simulação
tática, de jogo indecidível ao qual adere um enlevo estético, o mesmo da
leitura e da regra do jogo. Travelling dos signos, da mídia, da moda e dos
modelos, do ambiente cego e brilhante dos simulacros.
Há muito a arte prefigurara essa reviravolta que é hoje a da vida cotidiana.
Cedo a obra se duplica em si mesma como manipulação dos signos da arte:
supra-significação da arte, "academicismo do significante", como diria Levi-
-Strauss, que a introduz verdadeiramente na forma-signo. É nesse momento que
a arte entra em sua reprodução indefinida: tudo o que se duplica em si mesmo, na primavera de 1972 que comecou a arrebentar em Nova Iorque
Foi

mesmo a realidade cotidiana e banal, cai ao mesmo tempo sob o signo da arte um vagalhão de graffiti que, partindo das paredes, muros e cercas
e se torna estético. 0 mesmo acontece com a produção, de que se pode dizer dos guetos, terminou por se apoderar do metrõ e dos ônibus, dos
que entra hoje nessa duplicação estética, nessa fase em que, expulsando todo caminhões e elevadores, dos corredores e monumentos, cobrindo-os inteira-
conteúdo e toda finalidade, ela se torna de alguma maneira abstrata e não mente de grafismos rudimentares ou sofisticados cujo conteúdo não é político
figurativa. Exprime, então, a forma pura da produção, ela mesma assume, como nem pornográfico, compondo-se apenas de nomes, sobrenomes retirados de
a arte, valor de finalidade sem fim. A arte e a indústria podem então trocar os gibis underground: DUKE SPRIT SUPERKOOL KOOLKILLER ACE V1PERE SPIDER
EDDIE KOLA etc., seguidos do número de sua rua: EDDIE 135 WOOD1E 110
seus signos: a arte pode tornar-se máquina reprodutora (Andy Warhol) sem
cessar de ser arte, pois a máquina não passa de signo. E a produção pode SHADOW 137 etc., ou de um número em algarismos romanos, indicando filia-
perder toda finalidade social para se confirmar e se exaltar enfim nos signos cão ou dinastia: SNAKE I SNAKE II SNAKE III etc., até cinqüenta, com o aumen-
prestigiosos, hiperbólicos, estéticos que são os grandes complexos industriais, to do número de grafiteiros que tomavam o nome, a designação toternica.
as torres de 400 metros de altura ou os mistérios em forma de números do PNB. Tudo isso feito com o Magic Marker [tinta em spray] e outros artefatos
.6

Logo, a arte está em toda parte, visto que o artifício se encontra no arnago que permitem fazer inscricões de um metro de altura, ou mais, em toda a ex-
da realidade. A arte, desse modo, está morta, não só porque morreu sua trans- tensão de um vagão. Os jovens entram a noite nas garagens de ônibus e de
cendencia crítica como porque a própria realidade, inteiramente impregnada metrô, vão ao interior dos veículos e se soltam graficamente. No dia seguinte,
por uma estética que provern de sua própria estruturalidade, confundiu-se com todas as linhas cruzam Manhattan nos dois sentidos.Apagam-se os desenhos (o
sua própria imagem. Ela sequer continua a ter tempo de funcionar como rea-
lidade. Ela nem mesmo continua a ir além da ficção: ela capta todo sonho
sprays e outros artefatos -
que é difícil), detern-se grafiteiros, prendem-se grafiteiros, proíbe-se a venda de
isso em nada os afeta: eles os fabricam artesanal-
mente e recomegam todas as noites.
antes que ele funcione como sonho. Vertigem esquizofrenica desses signos
seriais, sem contrafação, sem sublimação possível, imanentes a sua repeticão 0 movimento hoje já acabou, ao menos com essa violencia extraordindria.
- quem dird onde está a realidade que simulam? Eles tampouco continuam
a reprimir o que quer que seja (esse é o motivo pelo qual a simulação se
Ele só podia ser efêmero, tendo por outro lado evoluído bastante em um ano
de história. Os grafitti tornaram-se mais intelectuais, com incríveis grafismos
barrocos, ramificações de estilo e de escola vinculadas com os diferentes gru-
introduz na esfera da psicose, se se preferir): os próprios processos primários
pos que agiam. São sempre jovens negros ou porto-riquenhos que estão na
são nele abolidos. 0 universo cool da digitalidade absorve o da metáfora e da
origem do movimento. Os graffiti são especfficos de Nova torque. Em outras
metonfmia. O princípio de simulação aproveita-se tanto do princfpio de reali-
cidades com grandes minorias étnicas, encontramos inúmeras paredes e muros
dade como do princípio de prazer.
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A ORDEM DOS SIMULACROS KOOL KILLER OU A INSURREIÇÃO PELOS SIGNOS

pintados, obras improvisadas e coletivas de conteúdo étnico-político, mas pou- nada difere de homogeneizá-las numa cidade nova com base numa definigão
cos graffiti. funcional de suas necessidades. Trata-se de uma só e mesma lógica.
Uma coisa é certa: uns e outros nasceram depois da repressão as A cidade já não é o polígono político-industrial que foi na altura do século
grandes manifestagões urbanas de 1966/1970. Ofensiva selvagem como as ma- XIX; é o polígono dos signos, da mídia, do código. Sua verdade deixou de
nifestagões, mas de um outro tipo e que mudou de conteúdo e de terreno.Tipo repente de estar num lugar geográfico, ao contrário da fábrica ou mesmo do
novo de intervengão na cidade, não mais como lugar de poder econômico e gueto tradicional. Sua verdade, o encarceramento na forma/signo, está em toda
politico mas como espago/tempo do poder terrorista da midia, dos signos e da parte. É o gueto da televisão, da publicidade, o gueto dos consumidores/con-
cultura dominante. sumidos, dos leitores lidos de antemão, dos decodificadores codificados de
todas as mensagens, usuários/usados do metrõ, dos animadores/animados das
horas de lazer etc. Cada espago/tempo da vida urbana é um gueto, e todos
A cidade, o urbano, é ao mesmo tempo um espago neutralizado, estão conectados entre si. A socializagão hoje, ou melhor, a dessocializagão,
homogeneizado, o da indiferenga e da segregagão crescente dos guetos urba- passa por essa ventilagão estrutural através dos múltiplos códigos. A era da
produgão, a da mercadoria e da forga de trabalho, equivale ainda a uma soli-
nos, da relegagão dos bairros, das ragas, de certas faixas etárias: o espago
despedagado dos signos distintivos. Cada prática, cada instante da vida cotidia- dariedade do processo social até na exploragão - é nessa socializagão, em
parte realizada pelo próprio capital, que Marx funda sua perspectiva revolucio-
na é alocado, por meio de múltiplos signos, a um espago-tempo determinado.
Os guetos raciais na periferia ou no centro das cidades não passam de expres- nária. Mas essa solidariedade histórica desapareceu: solidariedade de fábrica,
são-limite desta configuragão do urbano: um imenso centro de triagem e de de bairro e de classe. Agora, todos são separados e indiferentes sob o signo da
encarceramento em que o sistema se reproduz não só em termos econômicos televisão e do automóvel, sob o signo de modelos de comportamento inscritos
e no espago mas também em profundidade, por meio da ramificagão dos em todo lugar na mídia ou no tragado da cidade. Todos alinhados em seu
signos e dos códigos, pela destruigão simbólica das relagões sociais. respectivo delírio de identificagão com modelos diretores, modelos de simula-
Há uma expansão horizontal e vertical da cidade, à imagem do próprio gão orquestrados. Todos comutáveis como esses mesmos modelos. É a era dos
sistema econômico. Mas há uma terceira dimensão da economia política, a do indivicluos de geometria variável. Mas a geometria do código permanece fixa
investimento, da compartimentagão e do desmantelamento de toda sociabilidade e centralizada. É o monopólio do código, difuso em toda parte no tecido urba-
por intermédio dos signos. Contra ela, nem a arquitetura nem o urbanismo podem no, que é a forma verdadeira da relagão social.
coisa alguma, visto procederem eles mesmos desse novo rumo tomado pela eco- Pode-se pensar que a produgão, a esfera da produgão material, se descen-
nomia geral do sistema. Eles são a semiologia operacional dela. traliza e que acaba a relagão histórica entre a cidade e a produgão para o
A cidade foi prioritariamente o lugar de produgão e de realizagão da mercado. 0 sistema pode prescindir da vila operária, produtora, espago tempo
mercadoria, da concentragão e da exploragão industriais. E é hoje prioritaria- da mercadoria e das relagões sociais de mercado. Há indícios dessa evolugão.
mente o lugar de execugdo do signo como de uma sentenga de vida ou morte. Mas ele não pode prescindir do urbano como espago/tempo do código e da
Já não estamos na cidade das paredes e muros vermelhos das fábricas e reprodugão, porque a centralidade do código é a própria definigão do poder.
das periferias operárias. Nessa cidade, já se inscrevia, no próprio espago, a
dimensão histórica da luta de classes, a negatividade da forga de trabalho, uma
especificidade social irredutível. Hoje, a fabrica, como modelo de socializagdo portanto, politicamente essencial aquilo com que labuta hoje essa
pelo capital, não desapareceu, mas cede lugar, na estratégia geral, à cidade semiocracia, essa forma nova da lei do valor: comutabilidade total dos elemen-
inteira como espago do código. A matriz do urbano já Fla) é a da realizagão tos num conjunto funcional, cada um deles só vindo a ter sentido como termo
de uma força (a forga de trabalho), mas a da realizagão de uma diferença (a estrutural variável segundo o código. Por exemplo, os graffiti.
operagão do signo). A metalurgia transformou-se em semiurgia. A revolta radical nessas condigões é na verdade dizer a princípio:"Existo,
Encontramos o cenário do urbano materializado nas novas cidades,saidas sou fulano, moro na rua tal, vivo aqui e agora". Porém isso ainda seria apenas
diretamente da análise operacional das necessidades e das fungões/signos. a revolta da identidade: combater o anonimato reivindicando um nome e uma

no tabuleiro da cidade, num espago homogéneo


-
Nelas, tudo é concebido, projetado e realizado na base de uma definigão
analítica: moradia, transporte, trabalho, lazer, jogo, cultura
definido
termos comutáveis
como ambiente to-
realidade própria. Os graffiti vão mais longe: ao anonimato não opõem nomes,
mas pseuclônimos. Eles não desejam sair dessa combinatória para reconquis-
tar uma identidade impossível de qualquer maneira, mas para voltar a
tal. Ai onde a prospectiva urbana se une ao racismo, porque
num espago homogéneo chamado gueto com base numa definigão racial em
jogar as pessoas indeterminagão contra o sistema - converter a indeterminação em extermina-
ção. Replica, reversão do código de acordo com sua própria lógica, em seu

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KOOL KILLER OU A INSURREICAO PELOS SIGNOS
A ORDEM DOS SIMULACROS

que assume vida por meio deles, que volta a ser território coletivo.E eles não se
próprio terreno, e com uma vitória diante dele, porque ultrapassando-o no
circunscrevem ao gueto, eles exportam o gueto para todas as artérias da cida-
irreferencial.
de, invadem a cidade branca e ela é o verdadeiro gueto do mundo ocidental.
SUPERBEE SPIX COLA 139 KOOL GUY CRAZY CROSS 136 não quer dizer
Com os graffiti, é o gueto lingüfstico que irrompe na cidade, uma especie de
nada, e sequer é um nome próprio; é uma matrícula simbólica, feita para
rebelião dos signos. Na sinalização da cidade, os graffiti constitufam até agora o
subverter o sistema comum dos nomes. Esses termos não tern nenhuma origi-
nalidade: veern todos das revistas em quadrinhos em que estavam circunscritos
submundo - submundo sexual e pornográfico -, a inscrição vergonhosa, repri-
mida, dos mictórios e terrenos baldios.Só haviam conquistado as paredes e muros
a ficção, mas dela saem explosivamente para ser projetados na realidade como
de maneira ofensiva os slogans polfticos, proselitistas, signos plenos para os quais
um grito, com interjeição, como antidiscurso, recusa de toda elaboração sintá-
a parede ainda é um suporte e a linguagem um meio tradicional. Eles não visam
tica, poética, politica, como menor elemento radical inapreensfvel por qual-
.6

parede enquanto tal, nem à funcionalidade dos signos enquanto tal. Somente,
quer discurso organizado. Irredutfveis por sua própria pobreza, eles resistem a
sem dúvida, os graffiti e os cartazes de maio de 1968 na França golpearam dessa
toda interpretação, a toda conotação, e também não denotam nada nem nin-
maneira,atacando o próprio suporte, levando as paredes e muros a uma selvagem
guém: nem denotação nem conotação, eis como escapam ao principio de
mobilidade, a uma instantaneidade de inscrição que equivalia à sua abolição. As
significação e, na qualidade de significantes uazios, irrompem na esfera dos
inscrições e desenhos de Nanterre eram bem esse desvio da parede como
signos plenos da cidade, que eles dissolvem por sua mera presença.
significante da compartimentação terrorista e funcional do espago, essa ação
Nomes sem intimidade, assim como o gueto é sem intimidade, sem vida
antimfdia.A prova é que os poderes públicos foram espertos o suficiente para não
privada, mas vive de uma intensa troca coletiva. 0 que esses nomes reivindi-
apagá-los nem fazer repintar as paredes e muros: trata-se dos slogans polfticos de
cam não é uma identidade, uma personalidade, mas a exclusividade radical do
massa, os cartazes que se encarregaram deles. Não há necessidade de repressão:
cla, da turma, da gangue, da faixa etária, do grupo ou da etnia, que, como se
a própria midia, a mfdia de extrema esquerda, devolveu as paredes e muros à sua
sabe, passa pela devolução do nome e pela fidelidade absoluta a esse vocativo
função cega.Sabe-se, a partir daf, do muro da contestação de Estocolmo: liberda-
totêmico, mesmo que ele venha diretamente dos gibis underground. Essa forma
de de contestar em certa superffcie, interdito de grafitar ao lado desta.
de nome simbólico é negada pela nossa estrutura social, que impõe a cada
Houve igualmente a ofensiva efémera do desvio publicitário. Limitada por
qual seu nome próprio e uma individualidade pripada,abalando toda solidarie-
seu suporte, porém já usando os caminhos abertos pela própria mídia: metria,
dade em nome de uma sociabilidade urbana abstrata e universal. Esses nomes,
terminais, cartazes. E a ofensiva de Jerry Rubin e da contracultura americana
esses nomes tribais, pelo contrário, tern uma verdadeira carga simbólica: são
na televisão. Tentativa de desvio polftico de um grande meio de comunicação
feitos para ser dados, trocados, transmitidos, entregues definitivamente ao ano-
de massa, porém apenas no ravel do conteúdo, e sem alterar o meio propria-
nimato, mas um anonimato coletivo em que eles são como que os termos de
mente dito.
uma iniciação que vai de um para o outro e se trocam, embora nao sejam, não
Pe la primeira vez com os graffiti de Nova lorque, as artérias urbanas e os
mais do que a linguagem, propriedade de ninguém.
suportes móveis foram empregados com tamanha envergadura, com tal liberdade
Af reside a verdadeira força de um ritual simbólico e, nesse sentido, os
ofensiva. Mas, sobretudo, pela primeira vez a mfdia foi atacada em sua própria
graffiti seguem a contrapelo de todos os signos midiáticos e publicitários, que
forma, isto é, em seu modo de produção e difusão. E isso justamente porque os
poderiam dar a ilusão, nas paredes e muros das nossas cidades, do mesmo
graffiti não tern conteúdo, não tem mensagem.E o vazio que faz a sua força. E não
encantamento. Falou-se de festa a propósito da publicidade: sem ela, o ambien-
por acaso a ofensiva total sobre a forma ser acompanhada de uma recessão de
te urbano seria morno. Mas ela não passa, em verdade, de animação fria,
simulacro de atrativo e de calor, ela rid() se dirige a ninguém, não pode ser
conteúdos. 0 que vem de uma espécie de intuição revolucionária -a de que a
ideologia profunda já não funciona no nfvel dos significados polfticos, mas no dos
objeto de uma leitura autônoma nem coletiva, ela não cria rede simbólica.
significantes e de que af o sistema é vulnerável e deve ser desmantelado.
Mais do que as paredes e muros que a sustentam, a publicidade é ela mesma
Assim, esclarece-se a significação polftica dos graffiti. Eles nasceram da
uma parede, uma parede de signos funcionais feitos para ser decodificados e
repressão das manifestações urbanas nos guetos. Sob o assédio dessa repres-
cujo efeito se esgota com a decodificação.
Todos os signos midiáticos procedem desse espaço sem qualidades, dessa são, a revolta se desdobrou: numa organização polftica marxista-leninista pura
e dura, bem como doutrinal, de um lado, e, de outro, nesse processo cultural
superfície de inscrição que assume as feições de um muro a separar produtores
e consumidores, emissores e receptores de signos. Corpos sem órgãos da cida-
selvagem no nfvel dos signos, sem objetivo, sem ideologia, sem conteúdo. Uns
de, diria Peleuze, onde se entrecruzam os fluxos canalizados. Os graffiti são, verão naquela a verdadeira prática revolucionária, tachando os graffiti de fol-
por sua vez, da ordem do território. Eles territorializam o espago urbano codi- clore. Trata-se do contrário: o fracasso de 1970 implicou uma regressao para o
-
ficado é essa ou aquela rua, essa ou aquela parede, esse ou aquele bairro
ativismo polftico tradicional, mas também obrigou a revolta a se radicalizar no

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A ORDEM DOS SIMULACROS KOOL KILLER OU A INSURREIÇÃO PELOS SIGNOS

verdadeiro terreno estratégico, o da manipulação total dos códigos e das signi- Ai reside toda a diferença. Certas paredes e muros pintados são bonitos,
ficações. Logo, não se trata de forma alguma de uma fuga para os signos,
porém, ao contrário, um extraordinário progresso na teoria e na prática
estando esses dois termos, precisamente, dissociados aqui pela organização.
-
não
mas isso não tem nada que ver. Permanecerão na história da arte por ter sabido
criar espaço nas paredes e muros cegos e nus apenas por meio da linha e da
- os mais bonitos são sempre os que criam ilusão de ótica, que recriam
Insurreição, irrupção no urbano como lugar da reprodução e do código
nesse nível, não é mais a relação de forças que conta, porque os signos já não
- cor
uma ilusão de espaço e de profundidade,"ampliam a arquitetura por meio da
imaginação", segundo a fórmula de um dos artistas. Mas precisamente af está
funcionam com base na força, mas a partir da diferença, sendo, portanto, esta
última que deve ser atacada - desmantelar a rede de códigos, as diferenças
codificadas pela diferença absoluta, incodificável, contra a qual o sistema vem
o seu limite. Essas paredes e muros fazem a arquitetura entrar no jogo mas não
afetam as regras deste. Reciclam a arquitetura no imaginário, mas lhe conser-
vam o sacramento (do suporte técnico à estrutura monumental, chegando até
se chocar e se desfazer. Para isso, não se precisam de massas organizadas nem ao seu aspecto social de classe, porque a maioria das City Walls desse tipo são
de uma consciéncia política clara. Basta um milhar de jovens armados de tintas da parte branca e civilizada das cidades).
em spray para baralhar a sinalética urbana, para desfazer a ordem dos signos. Ora, a arquitetura e o urbanismo, mesmo transfigurados pela imaginação,
Os graffiti recobrindo todos os mapas do metr6 de Nova lorque assim como os nada podem mudar, por serem eles mesmos meios de massa; e até nas suas
checos mudavam o nome das ruas de Praga para desorientar os russos: trata- mais audaciosas concepções, reproduzem a relação social de massa, isto é,
-se da mesma guerrilha. deixam coletivamente as pessoas sem resposta.Tudo o que está ao seu alcance
animar, participar, fazer reciclagem urbana, projetar no sentido mais amplo.
Quer dizer, simulação de troca e de valores coletivos, simulação de jogo e de
Apesar das aparências, as City Walls, as paredes e muros pintados, nada tém espaços não-funcionais. É o que fazem os territórios de aventura para as crian-
que ver com os graffiti. São, por outro lado, anteriores a estes últimos, aos quais ças, os espaços verdes, as casas de cultura, as City Walls ou as paredes e muros
sobreviveram. A iniciativa dessas paredes e muros pintados vem de cima, é um de contestação, que são os espaços verdes da palavra.
empreendimento de inovação e de animação urbana levado a efeito com subven- Os graffiti, por sua vez, não se importam com a arquitetura, eles a sujam,
coes municipais. A City Walls Incorporated é uma organização fundada em 1969 eles a esquecem, eles a transpõem. 0 artista mural respeita a parede como
"para promover o programa e os aspectos técnicos das paredes e muros pintados". respeitaria o quadro em seu cavalete. Os graffiti vão de uma casa a outra, de
Orçamento coberto pelo Departamento de Assuntos Culturais da cidade de Nova uma à outra parede dos imóveis, da parede acima da janela ou da porta, ou
lorque e por diversas fundações como a de David Rockfeller. Sua ideologia artís- do vidro do metr6, ou da calçada, ele transgride, incomoda, sobrepõe-se (a
tica: "A aliança natural entre os edifícios e a pintura monumental". Seu objetivo:
"Oferecer arte ao povo de Nova lorque". Ou ainda o projeto de painéis artísticos
(bill-board-art-project) de Los Angeles:"Este projeto foi implementado para promo-
ultrapassamento equivale à sua abolição como moldura) -
sobreposição equivale à abolição do suporte como piano, assim como seu
seu grafismo
igual a perversão polimorfa das crianças, que ignoram o limite dos sexos e a
ver representações artísticas que empreguem o meio bill-board no ambiente urba- delimitação das zonas erógenas. Por outro lado, é curioso que os graffiti voltem
no. Graças à colaboração da Foster e da Kleiser (duas grandes agéncias de publi- a fazer das paredes e muros e dos pedaços de parede, ou dos trens do metr6
cidade), os espaços públicos de colocação de cartazes tornam-se assim vitrines ou dos 6nibus, um corpo, um corpo sem fim nem começo, inteiramente
de arte para os pintores de Los Angeles. Eles criam um meio dinamico e tiram a erogeneizado pela escritura como o corpo o pode ser na inscrição primitiva da
arte do círculo restrito das galerias e museus". tatuagem. A tatuagem é feita no corpo fazendo dele, nas sociedades primitivas,
Claro que essas operações são confiadas a profissionais, artistas agrupados
em Nova lorque num consórcio. Nenhuma ambigüidade possível: trata-se propria-
mente de uma polftica ambiental, projeto urbano de grande envergadura - a
lica-
associada a outros signos rituais, aquilo que ele é: um material de troca simbó-
sem a tatuagem, assim como sem as máscaras, o corpo s6 seria aquilo
que 6: desnudo e inexpressivo. Ao tatuar as paredes e muros, SUPERSEX e
cidade ganha com ele, e a arte também. Fbrque nem a cidade explode pela SUPERKOOL os libertam da arquitetura e os entregam à matéria viva, ainda
irrupção da arte "ao ar livre", na rua, nem a arte sofre esse destino em contato com social, ao corpo móvel da cidade, antes de lhes ser impressa a marca funcional
a cidade. É a cidade inteira que se torna galeria de arte, é a arte que redescobre e institucional. Chega ao fim a quadratura das paredes e muros quando todas
todo um espaço de manobra na cidade.Nem uma nem a outra tiveram a estrutura elas são tatuadas como effgies arcaicas.Termina o espaço/tempo repressivo dos
mudada; a única coisa que fizeram foi trocar seus privilégios. transportes urbanos quando os vagões do metr6 passam como projéteis ou
"Oferecer arte ao povo de Nova lorque!" Basta comparar esta fórmula com a hidras vivas tatuadas até os olhos. Algo da cidade se torna tribal, parietal,
anterior à escritura, com emblemas bem fortes porém desprovidos de sentido
de SUPERKOOL:"Há quem não goste disso, cara, mas gostem ou não, fomos nós
que fizemos o movimento de arte mais forte para atingir a cidade de Nova lorque". - incisão na carne de signos vazios que não proferem a identidade pessoal,

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A ORDEM DOS S1MULACROS KOOL KILLER OU A INSURREICAO PELOS SIGNOS

mas a iniciacão e a afiliacão de grupo:"A biocybernetic selffulfilling prophecy


world orgy [Uma biocibernética profecia auto-realizadora mundo orgia eu]".
I
1. Eles são assimilados como arte - Jay Jacobs: "Uma forma primitiva,
milenarista, comunitária e não elitista do Expressionismo Abstrato". Ou entdo:
Ainda assim, é impressionante ver isso ser lancado sobre uma cidade "Os vagões passavam trovejando, um após o outro, pela estacão, como uma
quaternária, cibernética, dominada pelas duas torres de alumfnio e vidro do série de Jackson Pollocks percorrendo ruidosamente os corredores da história
World Trade Center, megassignos invulneráveis do poder absoluto do sistema. da arte". Fala-se de "artistas do graffiti", de "irrupcão da arte popular", criada
pelos jovens e "que permanecerd uma das manifestacões importantes e carac-
terísticas dos anos 1970" etc. Sempre a reducão estética, que é a forma da
Ha também os afrescos murais dos guetos,obras de grupos étnicos formados nossa cultura dominante.
espontaneamente que pintam eles mesmos paredes e muros.Social e politicamente, 2. Eles são interpretados (e falo aqui de interpretacões das mais cheias de
o impulso é o mesmo dos graffiti.Trata-se de paredes e muros pintados selvagens, admiração) em termos de reivindicacão de identidade e de liberdade pessoal,
não financiados pela administração urbana. Sao por outro lado, todos eles, de inconformismo: "Sobrevivéncia indestrutível do indivíduo num ambiente
centrados em temas polfticos, numa mensagem revolucionária: a unidade dos inumano" (Mitzi Cunliffe no New York Times). Interpretacdo humanista burgue-
oprimidos, a paz mundial, a promocão cultural da comunidade étnica, a solidarie- sa, que parte do nosso sentimento de frustracão no anonimato da cidade gran-
dade, raramente a violência e a luta aberta. Em suma, ao contrário dos graffiti, de. Cunliffe ainda: "Eles dizem [os graffiti dizem]: EU SOU, eu existo, eu sou
eles tém um sentido, uma mensagem. E, ao contrário das City Walls, que se inspi- real, eu vivi aqui. Dizem: KIKI, ou DUKE, MIKE ou GINO está vivo, vai bem e
ram na arte abstrata, geométrica ou surrealista, esses afrescos têm sempre inspira- mora em Nova lorque". Muito bem, mas "eles" não falam assim, é o nosso
cão figurativa e idealista. Reencontramos aqui a diferenca entre uma arte de van- romantismo existencial burgués que o faz, é o ser ímpar e incomparável que
guarda, erudita, cultivada, que há muito ultrapassou a ingenuidade figurativa, e as todos nós somos, esse ser que é esmagado pela cidade. Os jovens negros não
formas populares realistas, de forte conteúdo ideológico mas formalmente"menos têm personalidade a defender, eles defendem de uma vez uma comunidade.
avancadas" (ainda que a inspiracão seja múltipla, do desenho infantil ao afresco
Sua revolta recusa ao mesmo tempo a identidade burguesa e o anonimato.
mexicano, de uma arte autoconsciente ao estilo de Douanier Rousseau ou de
COOL COKE SUPERSTRUT SNAKE SODA VIRGIN [FRIO COCA(ÍNA?)
Fernand Leger à simples imagem de Epinal, ilustracão sentimental das lutas popula-
res). Seja como for, é uma contracultura que nada tem de undergound; é reflexiva,
SUPERSTRUT(URA?) SERPENTE SODA VIRGEM] -é preciso ouvir essa litania
sioux, essa litania subversiva do anonimato, a explosão simbólica desses nomes
articulada sobre a tomada de consciéncia política e cultural do grupo oprimido.
de guerra no coracão da metrópole branca.
Também nesse caso algumas paredes e muros são bonitos e outros nem
tanto.0 fato de esse critério estético poder ser usado é de certa maneira um sinal
de fraqueza. Quero dizer que, mesmo selvagens, coletivos, anônimos, eles respei-
tam seu suporte e a linguagem pictorial, mesmo que para articular um ato poli-
tico. Nesse sentido, podem com muita rapidez tornar-se obra decorativa, sendo
alguns deles concebidos como tais, e estes duvidam do seu próprio valor. A
maioria sera protegida dessa museificacão pela rápida destruicão das cercas,
paredes e muros velhos; nesse caso, a municipalidade não protege a arte, e a
negritude do suporte é à imagem do gueto. No entanto,sua mortalidade não é a

proibido fotografá-los) É que os graffiti são mais ofensivos, mais radicais -


mesma dos graffiti, que são alvo de uma sistemática repressão policial (e até

irrompem na cidade branca e, sobretudo, são transideológicos, transartfsticos. É


eles

quase um paradoxo: enquanto as paredes e muros negros e porto-riquenhos,


ainda que não assinados, trazem quase sempre virtualmente uma assinatura (uma
referéncia política ou cultural, quando não artística), os graffiti, que no entanto
não passam de nomes, escapam na verdade a toda referéncia, a toda origem.Só
eles são selvagens, no sentido de terem uma mensagem nula.

Veremos melhor, por outro lado, o que eles significam procedendo à análise
dos dois tipos de assimilacão de que foram objeto (afora a repressão policial):

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Frivolidade do
já conhecido

0 surpreendente privilégio da moda lhe vem do fato de a resolução


do mundo ser, nela, definitiva. A aceleração do jogo diferencial

-
exclusivo dos significantes torna-se na moda deslumbrante, apro-
ximando-se do mágico magia e vertigem que são os da perda de todo
referenda]. Nesse sentido, ela é a forma acabada da economia polftica, o ciclo
onde vem abolir-se a linearidade da mercadoria.
Já não há determinação interna aos signos da moda, razão por que eles
ficam livres para se comutar, se permutar de maneira ilimitada. Ao final dessa
emancipação inaudita, eles obedecem, como que logicamente, a uma
recorre'ricia louca e minuciosa.Isso vale para a moda das roupas, do corpo, dos
objetos -a esfera dos signos "leves". Na esfera dos signos"pesados"- polftica
moral, economia, cie'ricia, cultura, sexualidade -, em nenhum lugar o princf-
pio da comutação age com a mesma liberdade. Poder-se-ia classificar esses
diversos domfnios por ordem decrescente de "simulação", mas permanece o
fato de todas as esferas tenderem, desigual mas simultaneamente, a se aproxi-
mar de modelos de simulação, do jogo diferencial e indiferente, do jogo estru-
tural do valor.Assim, pode-se dizer que todas elas são assombradas pela moda.
Porque esta pode ser entendida tanto como o jogo mais diferencial quanto
como a forma social mais profunda
domfnios pelo código.
- investimento inexorável de todos os

Na moda e no código, os significados se desfiam, e os desfiles do significante


não levam a parte alguma. A distinção entre significante e significado se abole
tal como a diferença entre os sexos (H.-PJeudy: Le signifiant est hermaphrodite),
o sexo passa ao plano das oposições distintivas e começa algo parecido com
um imenso fetichismo, que está ligado ao enlevo e a uma desolação particular.
Fascfnio da manipulação pura e desespero da indeterminação radical. O que

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A MODA OU A MAGIA DO COD1GO FRIVOLIDADE DO JA CONHECIDO

a moda nos impõe profundamente é a ruptura de uma ordem imaginária: a da desejo contemplativo de morte, ligado ao espetáculo da aboligão incessante de
Razão referencial sob todas as suas formas, e se podemos desfrutar da deses- formas. Quero dizer que o próprio desejo de morte é reciclado na moda, que
truturagão da razão, desfrutar a liquidagão do sentido (em particular no ravel o esvazia de todo fantasma subversivo e o envolve, como a todas as outras
do nosso corpo - donde a afinidade entre a roupa e a moda), desfrutar dessa
finalidade sem fim da moda, também sofremos profundamente com essa cor-
coisas, em suas revolugões inofensivas.
Tendo expurgado esses fantasmas que dão à repetigão, nas profundezas do
rupgão da racionalidade por ela implicada, quando a razão cai sob o golpe da imaginário o feitigo e o charme de uma vida anterior, a moda encontra sua
alternãncia pura e simples dos signos. vertigem apenas na superffcie, na atualidade pura.Será que por esse motivo ela
Há uma resistência veemente que vé todos os setores cafrem na esfera da reencontra a inocéncia que Nietzsche atribufa aos gregos: "Eles sabiam
mercadoria, e há uma mais veemente ainda que os vé cafrem na esfera da viver...restringindo-se à aparéncia externa, à superffcie, à epiderme...a adoragão
da aparéncia, a crenga nas formas, nos sons, nas palavras... Os gregos eram
mercadoria, todos os trabalhos se trocam e perdem sua singularidade -
moda. É que a liquidagão dos valores é nesta mais radical. Sob o signo da
sob superficiais por profundidade" (A Gaia Crencia)? A moda só é da inocência do
vir-a-ser simulagão. Do ciclo das aparéncias, não mais que a reciclagem. A
o signo da moda, o prõprio lazer e o prõprio trabalho trocam seus signos. Sob
o signo da mercadoria, compra-se e vende-se a cultura -sob o signo da moda,
são todas as culturas que agem como simulacros numa total promiscuidade.
prova disso é que o desenvolvimento da moda é contemporãneo do museu.
Paradoxalmente, a exigéncia que faz o museu de inscrigão eterna das formas
Sob o signo da mercadoria, o amor se torna prostituigão, o tempo se acumula e a da atualidade pura funcionam ao mesmo tempo na nossa cultura. É que
como dinheiro - sob o signo da moda, é a pr6pria relagão com o objeto que uma e outra são regidas pelo mesmo estatuto moderno do signo.
Enquanto os estilos se excluem mutuamente,o museu se define pela coexis-
signo da mercadoria, o tempo se acumula como dinheiro
moda, ele é interrompido e descontinuado em ciclos
-
desaparece, empurrada para uma sexualidade cool e sem restrigões. Sob o
sob o signo da
emaranhados.
téncia de todos os estilos, por sua promiscuidade numa mesma superinstituigão
cultural, melhor: por sua comparabilidade em valor sob o signo do grande
Tudo hoje tem afetado seu princfpio de identidade pela moda. Precisa- padrão-ouro da cultura. A moda faz o mesmo nos termos do seu ciclo: ela
mente por seu poder de reverter todas as formas ao nada e à recorréncia. A comuta e faz interagir todos os signos de maneira absoluta. A temporalidade
moda é sempre retrõ, mas baseada na aboligão do passado: morte e ressurrei- das obras de museu é a do "perfeito", da perfeigão: é o estado bem particular
gão espectrais das formas. É sua atualidade própria, que não é referéncia ao daquilo que foi, e nunca é atual. Mas a moda também jamais o é: ela joga com
presente mas reciclagem total e imediata. A moda é paradoxalmente o não- a recorrência das formas a partir de sua morte e do seu armazenamento, como
-atual. Ela sempre supõe um tempo morto das formas, uma espécie de abstra- signos, numa reserva intemporal. A moda faz a bricolagem, de um ano no
gão mediante as quais estas se tornam, como ao abrigo do tempo, signos ef outro, daquilo que "foi", com uma liberdade combinatória muito grande. Don-
cazes que, como que por uma torgão do tempo, poderão voltar a assombrar o de igualmente o seu efeito de "perfeigão" instantânea. A perfeigão da moda
presente com sua não-atualidade, com todo o encanto do voltar-a-ser em opo- também é de museu, mas de formas eférneras. Inversamente, há design no
sigão ao vir-a-ser das estruturas. Estética do recomego: a moda é aquilo que museu, aquilo que faz interagirem as obras entre si como valores de um con-
retira frivolidade da morte e modernidade do já conhecido. Ela constitui o junto. Moda e museu são contemporãneos, ctimplices, e se opõem juntos a
desespero de que nada dure, bem como o enlevo inverso de saber que, para todas as culturas anteriores, feitas de signos não-equivalentes e de estilos in-
além dessa morte, toda forma tem sempre a chance de uma existéncia segun- compatíveis.
da, nunca inocente, porque a moda vem devorar de antemão o mundo e o real:
cla é o peso de todo o trabalho morto dos signos sobre a significação uiva -
e isso num maravilhoso esquecimento, num desconhecimento fantástico. Mas
não nos esquegamos de que o fascínio exercido pelo maquinário industrial e
pela técnica também se origina no fato de que tudo isso é trabalho morto, que
vela sobre o trabalho vivo e ao mesmo tempo o devora. Nosso desconhecimen-
to estonteante é feito sob medida para essa opéragão de apreensão do vivo
pelo morto. S6 o trabalho morto tem a perfeição e a estranheza do já conhe-
cido.Assim, o enlevo da moda é o de um mundo espectral e cíclico de formas
desaparecidas porém ressuscitadas sem fim como signos eficazes. Há como
que um desejo de suicídio, diz König, que atormenta a moda e se torna reali-
dade no momento em que ela alcança o apogeu. É verdade, mas trata-se de um

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I 1 1 1 3
A "Estrutura"
da Moda

Ndo há moda a não ser no quadro da modernidade. Isto é, num


esquema de ruptura, de progresso e de inovação. Em qualquer
contexto cultural, o antigo e o "moderno" se alternam significativa-
mente. Mas só para nós existe,depois das Luzes e da Revolucão Industrial, uma
estrutura histórica e pore-mica de mudanca e de crise.Ao que parece, a moder-
nidade instala simultaneamente o tempo linear, o do progresso técnico, da
produção e da história, e um tempo cíclico, o da moda. Contradicão aparente,
porque na verdade a modernidade nunca é ruptura radical. A tradição não é

outro -
mais a preeminência do antigo sobre o novo: ela não conhece nem um nem
é a modernidade que inventa os dois ao mesmo tempo, subitamente,
ela é sempre, de modo simultãneo, neo e I-eh-6, moderna e anacrônica. Dial&
tica da ruptura, ela se torna muito rapidamente dinaimica do amálgama e da
reciclagem. Ern política, na técnica, na arte, na cultura, ela se define pela taxa
de mudanca tolerável pelo sistema sem que este tenha alterada qualquer coisa
em sua ordem essencial. Assim, a moda não o contradiz de modo algum: ela
enuncia simultaneamente, com muita clareza, o mito da mudança, a que dá
vida como valor supremo nos aspectos mais cotidianos, e a lei estrutural da
mudança: é o que é feito corn o jogo dos modelos e das oposições distintivas,
logo, de uma ordem que em nada cede ao código da tradicão. Porque é a
lógica binária que está na essencia da modernidade. É ela que impele a dife-
renciação infinita e aos efeitos "dialéticos" de ruptura. A modernidade não é a
transmutacão de todos os valores; ela é a comutacão de todos os valores, é a
sua combinatória e sua ambigilidade. A modernidade é um código e a moda,
seu emblema.
Essa perspectiva é a única que permite traçar os limites da moda, ou seja,
veneer os dois preconceitos simultãneos que consistem em:

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A MOM OU A MAGIA DO CODIGO A "ESTRUTURA DA MODA"

1°\ estender o seu campo aos limites da antropologia, e até mesmo do de elementos simples e de oposições regradas que torna os dois niveis, o do
comportamento animal; "original" e da vulgarização, no fundo homogéneos, sendo a distinção entre
2° restringir, ao contrário, sua esfera real a das roupas e dos signos exteriores. eles puramente tática e moral. Desse modo, Radar não vé que, para além da
A moda nada tem que ver com a ordem ritual (nem a fortiori com o "mimica" do discurso, o próprio sentido deste cede ao golpe da moda, uma vez
adorno humano feito de matéria animal) - porque esta ordem não conhece
nem a equivaléncia/alternância do novo e do velho nem os sistemas de opo-
que, num campo cultural inteiramente auto-referenciado, os conceitos se en-
gendram e respondem mutuamente uns aos outros por pura especularidade.
sições distintivas ou os modelos, com sua difração serial e combinatória. Em Pode acontecer o mesmo com as hipóteses cientificas. E a psicanálise não
contrapartida, a moda está no coração de toda a modernidade, até na ciéncia escapa a esse destino de moda no cerne mesmo de sua prática teórica e
e na revolução, porque toda a ordem da modernidade, do sexo à mídia, da arte clinica.Ela também passa ao estágio da reprodução institucional, desenvolven-
política, é perpassada por essa lógica. 0 próprio aspecto da moda que parece do o que possuía de modelos de simulação em seus conceitos fundamentais.
mais próximo do ritual -a moda como espetáculo, como festa, como desper- Se havia antes um trabalho do inconsciente e, portanto, uma determinação da
dicio - também reforça a diferença que há entre eles: porque o que nos
permite assimilar a moda e o cerimonial é precisamente a perspectiva estética
psicanálise por seu objeto, hoje essa determinação se tornou com muita doçu-
ra a do inconsciente pela própria psicanálise. É doravante ela que reproduz o
(assim como o que nos permite assimilar certos processos atuais as estruturas inconsciente, ao mesmo tempo em que toma a si mesmo por referente (signi-
primitivas é precisamente o conceito de festa), que depende ela mesma da fica-se por si mesma, como a moda). Logo, o inconsciente torna-se parte dos
costumes, a demanda por ele é grande e o poder social vem à psicanálise
modernidade (de um jogo de oposições distintivas utilidade/gratuidade etc.) e
que projetamos nas estruturas arcaicas para melhor anexá-las as nossas analo- como vem ao código - ela se faz acompanhar por uma extraordinária sofis-
ticação das teorias do inconsciente, todas, no fundo, comutáveis e indiferentes.
gias. Nossa moda é espetáculo, sociabilidade duplicada que se enleva estetica-
Há uma mundaneidade da moda: sonhos, fantasias, psicoses à moda, teo-
mente consigo própria, jogo da mudança pela mudança. Na ordem primitiva,
a ostentação dos signos jamais teve esse efeito "estético". Do mesmo modo, -
rias cientificas, escolas lingüísticas à moda, sem falar da arte e da politica
mas tudo isso não passa de miudezas. É bem mais profundamente que a moda
que nos agrada encontrar um reflexo ou o modelo das nossas festas
"estética" do potlatch, reescrita etnocéntrica.
-
nossa festa é uma "estética" da transgressão, o que não é a troca primitiva, em
reescrita assombra as disciplinas-mode/o, precisamente à medida que estas conseguiram
dotar de autonomia seus axiomas para sua maior glória, tendo passado ao
Do mesmo modo como é preciso distinguir a moda da ordem ritual, tam- estágio estético, quase lúdico, em que só conta, como para certas fórmulas
bém o é radicalizar a análise da moda em nosso próprio sistema. A definição matemáticas, a especularidade perfeita dos modelos de análise.
minima, superficial, da moda limita-se a dizer (Edmond Radar: Diogène):"Na
linguagem, o elemento sujeito a moda é não a significação do discurso, mas
seu suporte mimético, isto é, seu ritmo, sua tonalidade, sua articulação; nas
escolhas das palavras e construções... da mimica... Isso também se aplica aos
modelos intelectuais: existencialismo ou estruturalismo -éo vocabulário que
objeto de um empréstimo, e não uma pesquisa..:' Assim se acha preservada
uma estrutura profunda invulnerável à moda. Ora, é na produção do sentido,
nas estruturas mais "objetivas", que se deve procurá-la, visto que estas também
obedecem ao jogo da simulação e da inovação combinatória. Mesmo aprofun-
damento necessário para a vestimenta e o corpo: é agora o próprio corpo, em
sua identidade, seu sexo, seu estatuto, que se tornou material da moda. A
vulgarização cientifica e cultural é por certo um terreno para os "efeitos" da
moda.Mas o que se precisa interrogar são a própria ciéncia e a própria cultura,
na "originalidade" dos seus processos, para ver se admitem a "estrutura" da
moda. Se justamente há vulgarização possivel -oque não é o caso em nenhu-
ma outra cultura (o fac-simile, a condensação, a contrafação, a simulação, a
difusão multiplicada em espécies simplificadas são impensáveis no nivel da
palavra ritual, do texto ou do gesto sagrado) porque existe, na fonte
mesma da inovação nessas matérias, uma manipulação de modelos analiticos,

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PDFCompressor I
A Flutuação
dos Signos

Contemporãnea da economia política, a moda é, tal como o merca-


do, uma forma universal.Todos os signos vém trocar-se nela, assim
como todos os produtos vém interagir em termos de equivalência
no mercado.Trata-se do único sistema de signos universalizável,e que reapreende
._

por conseguinte todos os outros, da mesma maneira como o mercado elimina


todos os outros meios de troca. E se não há na esfera da moda equivaléncia
geral identificável, é porque a moda situa-se desde o início numa abstracão
ainda mais formal do que a economia política, num estágio em que sequer tem
necessidade de um equivalente geral palpável (o ouro ou a moeda), visto que
só subsiste a forma da equivaléncia geral, e esta é a própria moda. Ou, melhor
ainda: é preciso um equivalente geral parar a troca quantitativa do valor; para
a troca das diferenças, são necessários modelos. Os modelos são esse género
de equivalente geral difratado em matrizes que regem os campos diferenciais
da moda. Eles são os transportadores, os executores e os distribuidores, os
meios da moda, é através deles que ela se reproduz indefinidamente. Existe
moda a partir do momento em que uma forma deixa de ser produzida de
acordo com suas determinacões próprias e passa a sé-lo a partir do próprio
modelo - isto é, ela nunca é produzida, mas sempre e imediatamente repro-
duzida. 0 único referencial se tornou o modelo mesmo.
A moda não é uma deriva de signos - ela é a sua flutuação, no sentido
em que flutuam hoje os signos monetários. Essa flutuação na ordem do econõ-
mico é recente: é preciso para isso que a "acumulação primitiva" esteja reali-
zada em toda parte, que todo um ciclo de trabalho morto tenha sido encerrado
(por trás da moeda, toda a ordem do econômico vai entrar nessa relatividade
geral). Ora, esse processo há muito tempo chegou ao fim na ordem dos signos.
Ali, a acumulação primitiva é bem anterior, senão sempre já dada, e a moda

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A MODA OU A MAGIA DO CODIGO

exprime o estágio já alcangado de uma circulagão acelerada e sem limites, de


uma combinatória fluida e recorrente de signos que equivale ao equilíbrio
instantãneo e móvel de moedas flutuantes.Todas as culturas, todos os sistemas
de signos ve'rn trocar-se af, võm combinar-se, contaminar-se, ligar-se a equilf-
brios estáveis cujo aparato se desfaz, cujo sentido não está em lugar nenhum.
A moda é o estado especulativo puro na ordem dos signos - nenhuma restri-
gão de coerência nem de referência, nada de paridade
dade-ouro nas moedas flutuantes
fixa ou de convertibili-
indeterminagão que implica, para a rnoda
A "Pulsão"
(e sem dúvida logo para a economia), a dimensão característica do ciclo_e-da
recorrõncia, ao passo que a determinagão (dos signos ou da produgão) impli- de Moda
ca uma ordem linear e contínua. Fbrtanto, o destino do econõmico vem se
perfilar na forma da moda, que precede de longe a moeda e a economia no
caminho das comutagões gerais.

Que a moda veicula o inconsciente e o desejo e que se tenta expli-


cá-la por meio disso é algo que não quer dizer coisa alguma, se o

moda que pouco se relaciona com o inconsciente individual -


próprio desejo está na moda. Há, na verdade, uma "pulsão" de
algo tão vio-
lento que nenhuma interdição conseguiu ser-lhe imposta, desejo de abolição
do sentido e de imersão nos signos puros, rumo a uma sociabilidade bruta,
imediata. Com relação aos processos sociais mediatizados, econõmicos etc., a
moda conserva algo de uma sociabilidade radical, não ao nfvel da troca psico-
lógica de conteúdos, mas no nfvel imediato da partilha de signosfita gruyére
_ curiosidade não é o gosto pelo que é bom nem pelo quaè'Vtirim,
já dizia: A _

mas pelo que é raro, por aquilo que se tem e que os outros não têm. Não se
trata de um apego ao que é perfeito, porém ao que é corrente, ao que está na
moda. Não um divertimento, mas uma paixão, e por vezes tão violenta que só
perde para o amor e a ambição pela pequenez do.seu objeto".
Em La Bruyère, a paixão da moda aproxima-se da paixão do colecio-
nar e do objeto-paixão: tulipas, pássaros, gravuras de Callot. A moda se apro-
xima da coleção (como o dizem os termos) por sutis desvios. Para Oscar Wilde,
"as duas dão ao homem uma segurança que sequer a religião lhe deu um
dia".
A salvação por meio da moda. Paixão coletiva, paixão dos signos,
paixão do ciclo (a coleção também é um ciclo), que faz que urn item de
moda circule, se difunda, com um vertiginoso atrativo, por toda o corpo social,
sancionando sua integração e colecionando todas as identificações (as.sim como
o item de coleção unifica o sujeito num mesmo processo cfclico infinitamente
repetido).

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A MODA OU A MAGIA DO CODIGO A "PULSAO" DE MODA

Esse poder, esse enlevo se enraízam no próprio signo da moda. A semiurgia o economista, segue o rumo contrário ao das técnicas de melhoria do desempe-
da moda opõe-se à funcionalidade da esfera econômica. À ética da produção' nho, é uma afronta à democratizacão. Um máximo de pessoas altamente quali-
opõe-se a estética da manipulação, da duplicacão e da convergência ao espelho ficadas executa com muita lentidão um mfnimo de modelos de corte complica-
único do modelo:"Sem conteúdo, ela [a moda] se torna então o espetáculogue do que serão repetidos, sempre com a mesma lentidão, umas vinte vezes, no
os homens dão a si mesmos do poder que tém de fazer significar o insignificante" melhor dos casos,ou, no pior, nenhuma...Vestidos de dois milhões...Mas por que
(Barthes,Système de la mode). 0 charme e o fascfnio da moda advérn diss-
decreto que ela promulga sem nenhuma outra justificação além de si mesma.
esse esforço irracional? - dirão vocés. Por que não? - respondem os criadores,
os artesãos, os operários e os 4.000 clientes, todos tomados pela mesma paixão
Enlevo do arbitrário como de uma graça pedida, e solidariedade de casta que na busca da perfeição. Os costureiros são os últimos aventureiros do mundo
está vinculada com a discriminação do signo.É nesse aspecto que a moda diverge
radicalmente do econômico, de que também é, não obstante, o coroamento.
moderno. Eles cultivam o ato gratuito...Por que a Alta Costura? -pensam certos
detratores. E por que o champagne?" E ainda:"Nem a prática nem a lógica pode-
Diante da finalidade impiedosa da produção e do mercado, de que, no entanto,
riam justificar a extravagante aventura da roupa. Supérflua, logo necessária, a
ela é então a encenação, a moda é uma festa. Ela resume tudo o que é censurado
moda tem algo de religião". Potlatch, religião, talvez magia ritual de expressão
pelo regime da abstração econômica.Ela inverte todos os imperativos categóricos.
como a dos adornos e das dancas animais: tudo é born para exaltar a moda
A moda é espontaneamente contagiosa nesse sentido, enquanto o cálculo
contra o econômico, como transgressão rumo a uma sociabilidade lúdica.
todo valor e do todo afeto, torna-se uma paixão -
econômico isola as pessoas umas das outras. Ela, que desinveste os signos de
paixão do artificial. É o
absurdo mesmo, a inutilidade formal do signo de moda, a perfeicão de um
Mas nós sabemos que a publicidade também se quer uma"festa de consumo",
a mídia uma "festa da informação", as feiras uma "festa da producão" etc.0 merca-
sistema em que nada se troca mais contra o real, é o arbitrário desse signo, ao
mesmo tempo que sua coeréncia absoluta, sua restrição de relatividade total
não? -
do da pintura, as corridas de cavalo também podem passar por potlatch. Por que
diria a Vogue. Em todos os lugares há o desejo de fazer passar o desper-
dício funcional por destruição simbólica. Como o econômico impôs com eficién-
com os outros signos, que faz sua viruléncia contagiosa, ao mesmo tempo que
cia seu princfpio de utilidade, sua rigidez funcional, tudo aquilo que o excede
o enlevo coletivo. Para além do racional e do irracional, para além do bonito
e do feio, do útil e do inútil, é essa imoralidade no tocante a todos os critérios,
assume facilmente um ar de brincadeira e de inutilidade.Isso é não reconhecer que
essa frivolidade que dá à moda por vezes sua força subversiva (nos contextos a lei do valor vai bem além do econômico e que sua verdadeira extensão hoje é a
da jurisdicão dos modelos.Em todo lugar no qual há modelos,existe imposicão da
econõmico, um fato social total -
totalitários, puritanos ou arcaicos) e que faz dela sempre, ao contrário do
para o qual é-se obrigado a ressuscitar,
como o fez Mauss no que se refere à troca, uma abordagem total.
lei do valor, repressão pelos signos e repressão dos próprios signos. Eis por que há
uma diferenca radical entre os rituais simbólicos e os signos da moda.
A moda, assim como a linguagem, visa de imediato à sociabilidade (o dândi, Nas culturas primitivas, os signos circulam abertamente em toda a extensão
das "coisas", não houve ainda "precipitacão" de um significado, nem, por conse-
em sua solidão provocante, é a prova a contrario disso). Porém, diferentemente da
linguagem, que visa ao sentido e se desfaz diante dele, a moda visa a uma socia-
nossas conotacões -
guinte, de uma razão ou de uma verdade do signo. 0 real - a mais bela das
não existe. 0 signo é sem mundo antecedente, sem incons-
pessoa um lugar intenso -
bilidade teatral e se compraz consigo mesma. De súbito, ela se torna para cada
espelho de certo desejo de sua própria imagem. Ao
contrário da linguagem, que visa à comunicacão, ela joga com a significação, faz
ciente (que é a última e a mais sutil das conotacões e racionalizações). Os signos
trocam-se nesse contexto sem fantasias, sem alucinacões de realidade.
dela o contexto sem fim de uma significacão sem mensagem. Donde seu prazer Logo, os signos não têm nenhuma relacão com o signo moderno, cujo para-
estético, que não tem nenhuma relação com a beleza nem com a feiúra. Será ela doxo recebeu de Barthes a seguinte definicão:"A tendéncia incansável é de con-
então uma espécie de festa, de excesso duplicado da comunicacão? verter o sensível em significante, rumo a sistemas cada vez mais organizados,
São sobretudo a moda elegante e a que joga com os signos do corpo que fechados. Simultaneamente, e em igual proporcão, vai-se mascarar o signo en-
aparecem como "festivas", devido ao seu lado de "wasteful consumption", de quanto tal, sua natureza sistemática, vai se racionalizá-lo, referi-lo a uma razão, a
"potlatch". Isso ainda é verdadeiro sobretudo da alta costura. É o que permite uma instancia do mundo, a uma substancia, a uma função" (Systeme de la mode,
Vogue fazer esta saborosa profissão de fé:"Qual a coisa mais anacrônica,ainda mais p. 285). Com a simulação, os signos apenas secretam o real e o referencial como
cercada de sonho do que navegar num barco a vela? A Alta Costura.Ela desestimula um super-signo, assim como a moda apenas secreta, inventa a nudez como super-
signo da roupa. 0 real está morto, viva o signo realista! Esse paradoxo do signo
moderno introduz um afastamento radical com respeito ao signo mágico ou ri-
I. Mas vimos que o econômico afinha-se hoje na mesma indeterminação; a ética retira-se dele
em proveito de uma "finalidade sem fim" da produção mediante a qual esta se une à inutilidade tual, aquele mesmo que se troca na máscara, na tatuagem ou na festa.
vertiginosa da moda. Pode-se então dizer da producão o que Barthes diz da moda:"O sistema Ainda que a moda seja feérica, ela continua sendo o feérico da mercado-
abandona o sentido sem, no entanto, ceder qualquer parcela do espetaculo mesmo da significação". ria e, mais longe ainda, o feérico da simulação, do código e da lei.

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0
Sexo
Modificado

sexualidade invista na roupa, na maquiagem etc., nada pode


Que a
ser menos garantido - ou, melhor do que isso, é uma sexualidade
modificada que vem operar no nível da moda. Se a condenação
da moda assume tal violência puritana, não é, no entanto, o sexo que é visado.
0 tabu incide sobre a futilidade, sobre a paixão pela futilidade e pelo artificial,
que talvez seja mais fundamental do que a pulsão sexual. Na nossa cultura
fixada no princípio de utilidade, a futilidade age como transgressão, como
viaencia, sendo a moda condenada por esse poder nela existente do signo
puro que nada significa. A provocacão sexual é secundária diante desse prin-
cfpio que nega todos os fundamentos da nossa cultura.
Claro que o mesmo tabu incide também sobre a sexualidade "fútil" e não-
-reprodutora, mas há o risco, ao cristalizar sobre o sexo, de prolongar a astúcia
do puritanismo, que visa desviar o contexto para o sexual - quando ele está
no nível do próprio princípio de realidade, do princípio referencial de que
ainda participam o inconsciente e a sexualidade, e contra o qual a moda
levanta seu puro jogo de diferencas. Dar a primazia a sexualidade nessa histó-
ria é, mais uma vez, neutralizar o simbólico por meio do sexo e do inconsciente.
E de acordo com essa mesma lógica que a análise da moda é tradicionalmente
reduzida a da roupa, porque é nesta última que a metáfora sexual funciona
com mais facilidade. Contragolpe desse desvio: o jogo é reduzido a uma pers-
pectiva de "liberacão" sexual que desemboca anodinamente numa liberacão
da roupa. E é um novo ciclo da moda que comeca.
A moda é por certo aquilo que neutraliza de maneira mais eficaz a sexua-
lidade (a mulher maquiada é aquela na qual não se toca
o Ossuário de Signos") - - cf."0 Corpo ou
precisamente porque é uma paixão, não cúmplice
mas concorrente do sexo, e que o derrota, como bem viu La Bruyere. E, por-

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A mom OU A MAGIA DO CODIGO 0 SEXO MODIFICADO

tanto, sobre o corpo, em sua confusão com o sexo, que a paixão da moda vai significados do corpo,por esse transparecer do corpo como sexualidade e como
agir em toda a sua ambigüidade. natureza, a roupa perde a exuberância fantástica que tinha desde as sociedades
A moda se aprofunda quando se torna encenação do próprio corpo, quando primitivas. Perde sua força de máscara pura, é neutralizada pela necessidade de
o corpo se transforma em meio da moda'. Outrora santuário reprimido, mais fazer o corpo significar, ela encontra uma explicação para si mesma.
indecifrável em sua repressão, ele é doravante, ele também, investido. 0 jogo da Porém o corpo também é neutrafizado nessa operação. Ele também perde
roupa se desfaz diante do jogo do corpo, e este se desfaz diante do jogo dos sua força de máscara, que tinha na tatuagem e o adorno. Ele já não opera com
modelos2.Subitamente, a roupa perde seu caráter cerimonial (que ainda tem até sua própria verdade, que é também a linha demarcat6ria: sua nudez. No ador-
o século XVIII), ligado ao uso de signos enquanto signos. Atormentada pelos no, os signos do corpo operam abertamente misturados aos signos do não-
-corpo. Depois o adorno se torna roupa, e corpo se faz natureza. Instala-se um
1. Cf. as trés modalidades do "corpo da rnoda"citadas por Barthes (Systeme de/a mode, p.261):
novo jogo -a oposição entre roupa e corpo designação e censura (mesma
1' É urna forma pura, sem atributos próprios, tautologicamente definida pela roupa. fratura que há entre significante e significado, mesmo jogo de deslocamento e
de alusão). A moda, a bem dizer, começa com essa repartição do corpo repri-
2" Ou então: decreta-se todos os anos que um dado corpo (um dado tipo de corpo) está na
moda. Trata-se de uma outra maneira de fazer que os dois coincidam.
3" Faz-se a roupa de maneira tal que ela transforme o corpo real e o leve a significar o corpo
mido e significado de modo alusivo -
é também ela que o leva ao fim na
simulação da nudez, na nudez como modelo de simulação do cotpo. Para o
ideal da moda.
Essas modalidades correspondem mais ou menos à evolução hist6rica do estatuto do modelo: indiano, todo o corpo é rosto, isto é, promessa e valor, ao contrário da nossa
do modelo inicial, mas não profissionalizado (as mulheres da alta sociedade) ao manequim nudez, que não passa de instrumentalidade sexual.
profissional cujo corpo também desempenha o papel de modelo sexual, chegando à última fase
E essa nova realidade do corpo como sexo escondido se confundiu de
(a atual), em que todos se tornam manequins cada um é interpelado, convocado, a investir em
seu corpo a regra do jogo da moda todo mundo se torna "agente" da moda, assim como todo imediato com o corpo da mulher. 0 corpo dissimulado é o da mulher (não
mundo se torna agente produtivo. Efusão geral da moda em simultaneidade corn cada um e corn biologicamente, é claro: mitologicamente). A conjunção entre a moda e a
todos os níveis da significação.
mulher, a partir da época burguesa e puritana, é portanto reveladora de uma
Também é possível vincular as fases da moda com as sucessivas fases de concentração do
capital, com a estruturação da esfera econ6mica da moda (variação do capital constante, da com- dupla indexação: a da moda a um corpo escondido e a da mulher a um sexo
reprimido. Esta conjunção não existia (ou era menos acentuada) até o século
posição orgãnica do capital, velocidade de giro da mercadoria, do capital financeiro e do capital
industrial. Cf. Utopie, n° 4). Mas o princípio analítico dessa interação do econ6mico corn os signos
nem sempre é claro. Mais do que na relação direta com o econ6mico, é numa espécie de movimento
XVIII (e de modo algum, naturalmente, nas sociedades cerimoniais)
começa a desaparecer para nós hoje. Quando se desvela, como para n6s, esse
e ela -
homólogo à extensão do mercado que se pode ver a extensão histórica da esfera da moda.
I. Num primeiro momento, só relevam da moda traços esparsos, variações mínimas, levadas destino de sexo escondido e de verdade interdita do corpo, quando a própria
por categorias marginais a um sistema que permanece no essencial homogéneo e tradicional moda neutraliza a oposição entre roupa e corpo, a afinidade entre a mulher e
(assim, na primeira fase da economia politica s6 se troca o supérfluo de uma produção que, por
outro lado, esgota-se quase por inteiro no consumo interno do grupo parte muito pequena da
força de trabalho livre e assalariado). Nesse período, a moda é o fora-da-cultura, o fora-do-grupo,
a moda cessa progressivamente3 -
a moda se generaliza e se torna cada vez
menos o apanágio de um sexo ou de uma faixa etária. Mas é preciso cautela:
o estranho, o urbano para o camponés etc. não se trata de um progresso nem de uma liberação. A mesma lógica trabalha
II. A moda integra progressiva e virtualmente todos os signos da cultura, e regula a troca de
o tempo inteiro, e se a moda se generaliza e deixa o suporte privilegiado da
signos, do mesmo modo como, numa segunda fase, toda produção material é virtualmente integra-
da pela economia política. Todos os sistemas anteriores de produção e de troca desaparecem na mulher para se abrir a todos, isso ocorre porque o interdito sobre o corpo
dimensão universal do mercado.Todas as culturas vém participar do universal da moda.A referén- também se generalizou, de uma forma mais sutil que a repressão puritana: na
cia da moda nesse fase é a classe cultural dominante,é ela que gere os valores distintivos da moda. forma de dessexualização geral. Porque o corpo só era potencial sexual forte
III.A moda difunde-se por toda parte e se torna pura e simplesmente o modo de vida. Ela investe
ern todas as esferas que ainda Ihe escapam.Todos lhe dão apoio e a reproduzem. Ela recupera sua
na repressão: ele aparecia então como exigência cativa. Entregue aos signos da
própria negatividade (o fato de não estar na moda), torna-se seu pr6prio significado (tal como a moda, o corpo é sexualmente desencantado, torna-se manequim, termo cuja
produção no estágio da reprodução). Mas isso também 6, de alguma maneira, o seu fim. indistinção sexual diz bem o que significa. 0 manequim é inteiramente sexo,
2. Porque não 6 verdade que um vestido ou um collant flexfvel que deixam "jogar" o corpo
mas sexo sem qualidades. A moda é seu sexo. Ou melhor: é na moda que o
"liberem" o que quer que seja: na ordem dos signos, trata-se de urna sofisticação suplementar. Des-
nudar as estruturas não é voltar ao grau zero da verdade, mas envolvê-las com urna nova significação sexo se perde enquanto diferença, mas se generaliza enquanto referência (como
que vai adicionar-se a todas as outras. E isso vai ser uma parcela de um novo ciclo de formas, de um simulação). Nada é mais sexuado; tudo é sexualizado. 0 masculino e o femi-
novo sistema de signos. Eis o ciclo da inovação formal, eis a l6gica da moda, e ninguém nada pode nino também recuperam, uma vez perdida sua singularidade, a chance de uma
contra isso."Liberar" as estruturas, as do corpo, do inconsciente, a verdade funcional do objeto no
design etc. se reduzem sempre a abrir o caminho à universalização do sistema da moda (esse é o
ímico sistema universalizável, o único capaz de gerir a circulação de todos os signos, mesmo con-
traditbrios). Rmanto, revolução burguesa no sistema de formas, à imagem da revolução burguesa
3. Claro que há outras razOes- sociais e hist6ricas- para essa afinidade: marginalidade ou
relegação social da mulher (ou da juventude). Mas isso não é diferente: repressão social e aura
política, que, ela também, abre o caminho à universaliza(ao do sistema de mercado. sexual maléfica são sempre confundidos nas mesmas categorias.

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A MODA OU A MAGIA DO CÓDIGO

existência segunda ilimitada.Só na nossa cultura a sexualidade impregna dessa


maneira todas as significações, e isso decorre do fato de os signos,por sua vez,
terem investido em toda a esfera sexual.
Assim, esclarece-se o atual paradoxo: assiste-se a um só tempo a "emanci-
pação" da mulher e o recrudescimento da moda. É que a moda só se relaciona
com o Feminino, e não com as mulheres. É toda a sociedade que se feminiza
medida que as mulheres saern de sua discriminação (assim ocorre com os
loucos, as crianças etc.; é a conseqüencia normal da lógica da exclusão). Por
0 Insubversível
conseguinte,"conquistar seu espaço", expressão do enlevo feminino, generali-
zou-se hoje, ao mesmo tempo que, é claro, passou a significar qualquer coisa.
Mas é preciso ver também que a mulher só pode ser"liberada" e "emancipada"
enquanto "força de prazer" e "força de moda", assim como o proletário nunca
pode libertar-se a não ser enquanto força de trabalho. A ilusão contida na
expressão é radical. A definição histórica do Feminino é feita com base num
destino de corpo e de sexo ligados à moda. A liberação histórica do Feminino
só pode ser a atualização ampliada desse mesmo destino (que de repente se
torna o de todos, mas sem deixar de ser discriminatório). No momento em que
a mulher tem acesso ao trabalho como todos, a partir do modelo do proletário,
também todos que rem acesso à emancipação do sexo e da moda, a partir Diz a história que a crftica da moda (O. Burgelin) é no século XIX
do modelo das mulheres. De uma hora para outra, passa-se a perceber que a um pensamento de direita, mas que hoje se tornou, a partir do
moda é um trabalho e que é preciso reconhecer a mesma importancia histó- socialismo, pensamento de esquerda. Uma veio da religião, a outra
rica ao trabalho "material" e ao trabalho da moda.Tanto é capital (também faz vem da revolução. A moda corrompe os costumes, a moda abole a luta de
no mesmo sentido parte do capital!) produzir mercadorias de acordo com o classes. Mas o fato de a crftica da moda ter passado para a esquerda não
mercado como produzir o corpo de acordo com a regra do sexo e da moda. significa forçosamente uma reviravolta histórica: significa talvez que, no tocan-
A divisão do trabalho não passa por onde se pensa, ou melhor, não existe te A moral e aos costumes, a esquerda simplesmente assumiu a posição da
nenhuma divisão do trabalho: produção do corpo, produção da morte, produ- direita, tendo herdado, em nome da revolução, a ordem moral e os preconcei-
ção de signos, produção de mercadorias - isso não passa de modalidades de tos clássicos. A partir do momento em que o princfpio da revolução passou a
fazer parte dos costumes, qual um imperativo categórico, toda a ordem política,
um mesmo sistema. Isso com certeza é ainda pior na moda: porque, se o
trabalhador é separado vivo de si mesmo sob o signo da exploração e do mesmo ã esquerda, passou a ser uma ordem moral.
princfpio de realidade, a mulher é separada viva de si mesmo e do seu corpo A moda é imoral, eis a questão, e todos os poderes (ou os que com eles
sob o signo da beleza e do principio do prazer. sonham) a detestam necessariamente. Foi-se o tempo em que a imoralidade
era reconhecida, de Maquiavel a Stendhal e em que alguém como Mandeville
podia mostrar, no século XVIII, que uma sociedade so se revoluciona por meio
dos seus vfcios, que é a sua imoralidade que lhe confere dinamismo. A moda
ainda está ligada a essa imoralidade: ela nada conhece dos sistemas de valor,
nem dos critérios de julgamento: o bem ou o mal, o belo ou o feio, o racional/
o irracional- ela opera aquém ou além, funciona pois como subversão de
toda ordem, inclusive a racionalidade revoluciondria. A moda 6 como o infer-
no do poder, esse inferno que 6 a relatividade de todos os signos, e que todo
poder 6 obrigado a abalar para assegurar seus próprios signos. É a esse título
que a moda 6 retomada hoje pela juventude, corno ma resiste-ncia a todo
imperativo, resistencia sem ideologia, sem objetivo.
lnversamente, não há subversão possfvel da moda, porque ela não tem
referencial com que entrar em contradição (seu referencial 6 ela mesma). Não

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A MODA OU A MAG1A DO CÓDIGO

se pode escapar à moda (visto que a moda faz da recusa mesma da moda um
traço da moda) -o jeans é um exemplo histórico disso).Tanto é verdade que,
se sempre se pode escapar ao princípio de realidade do conteúdo, jamais se
pode escapar ao princípio de realidade do código. E é por meio da própria
revolta contra os conteúdos que se obedece cada vez melhor à lógica do
código. E daf? Trata-se do diktat da "modernidade". A moda rid() deixa espaço
para a revolução, salvo se se retornar a própria gênese do signo que a constitui.
E a alternativa a moda não está numa "liberdade" ou numa superação qualquer
rumo a uma verdade do mundo e dos referenciais. Ela está numa desconstru-
ção da forma do signo da moda, e do princípio da significação, do mesmo
modo como a alternativa à economia política só pode estar na desconstrução CORPOt OU o
da forma-mercadoria e do princípio da produção.

OSSUÁRIO DE SiGNOS

,04

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0.1

O Corpo Marcado

0 Sexo é urn ossuário de Signos..


0 Signo é um Sexo descarnado.

Toda a história atual do corpo é a de sua demarcação, da rede de


marcas e de signos que ve'm compartimentá-lo, despedaçá-lo, negá-
-lo em sua diferença e sua ambivalência radical, a fim de organizá-
-lo num material estrutural de troca/signo, sernelhantemente ã esfera dos obje-
tos, dissolver-se a virtualidade de jogo e de troca simbólica (que não se con-

nante -
funde com a sexualidade) numa sexualidade tomada como instância determi-
instância fálica inteiramente organizada em torno da fetichização do
falo como equivalente geral. Eis o sentido no qual o corpo é, sob o signo da
sexualidade em sua acepção atual, isto é, sob o signo de sua "liberação", en-
volvida num processo cujo funcionamento e estratégia são os mesmos da eco-
nomia politica.
Moda, publicidade, nude-look, teatro nu, strip-tease: em toda parte vemos
o cenodrama da ereção e da castração. Ele é de uma variedade e de uma
monotonia absolutas. As botas, os adornos da coxa, o short sob o casaco
comprido, as luvas abaixo dos cotovelos ou a linha da meia na coxa, a mecha
sobre o olho ou o tapa-sexo da stripper mas também os braceletes, colares,
-
anéis, cintos, as jóias e as correntes em toda parte, o cenário é o mesmo:
uma marca que assume força de signo e, mediante a mesma função erótica
perversa, uma linha de demarcação que apresenta a castração, que parodia a
castração como articulação simbólica de uma falta, sob a forma estrutural de
uma barra articulando dois termos plenos (que operam então, de um e do
outro lado, como o significante e o significado na economia clássica do signo):
0 que a barra faz agir aqui como termos respectivos é uma zona do corpo
de -n-Fo-do algurn uma zona erógena, mas uma zona erótica, erotizada, uma
-
parcela erigida em significante fálico de uma sexualidade transformada em
puro e simples conceito, puro e simples significado.

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0 CORK) OU 0 OSSUARIO DE S1GNOS 0 CORPO MARCADO

Nesse esquema fundamental análogo ao do signo lingilistico, a castração não se distribui em "sfmbolos" masculinos ou femininos: ele é, bem mais pro-
significado (ela passa ao estado de signo) e, portanto, desconhecida. 0 nu e o fundamente, o lugar desse jogo e dessa negação da castração, ilustrados pelo
não-nu operam numa oposição estrutural, contribuindo assim para a designação uso chine's (citado por Freud em 0 fetichismo) de começar por mutilar o pé da
do fetiche.Assim age a linha da meia na coxa: a força erótica dessa imagem lhe mulher e depois venerar como fetiche esse 1)6 mutilado. 0 corpo inteiro está
vem não da proximidade do sexo real e de sua promessa positiva (nessa perspec- disponível, sob incontáveis formas, para essa marcação/mutilação2 seguida da
tiva funcionalista ingenua, a coxa nua deveria ter o mesmo papel), mas do fato veneração fálica (exaltação erótica). Af reside seu segredo, e de modo algum
de a apreensão do sexo (o reconhecimento panico da castração) ser contida na anamorfose dos órgãos genitais.
numa encenação da castração -essa marca inofensiva da linha da meia, além
da qual, em lugar da falta, da ambivarência e da voragem, não há mais que o
Assim, a boca pintada é fálica (aliás, a pintura e a maquiagem fazem parte
do arsenal de valorização estrutural do corpo). Uma boca maquiada não fala
plenamente sexual -a coxa nua é metonimicamente o corpo inteiro tornado por mais: com lábios falsos, meio-abertos, meio-fechados, essa boca já não tem por
função falar, nem comer, vomitar ou beijar. Para além de suas funções de troca,
essa cesura efigie fálicci3Objeto fetiche de contemplação e de manipulação despo-
sempre ambivalentes, de introjeção e de rejeição, e com base em sua recusa,
jado de toda ameaça1. Como no fetichismo, o desejo pode realizar-se agora ao
preço da conjuração da castração e da pulsão de morte.
A erotização consiste assim, em todo lugar, na eritilidade de um fragmento
-
artificial, trabalho cultural, jogo e regra do jogo
come, que não excita
-
instala-se a função erótica e cultural perversa, a boca fascinante como signo
aquela que não fala, que não
a boca maquiada, objetivada como jóia, cujo intenso
de corpo barrado, nessa fantasmatização fálica de tudo o que está além da
valor erótico não vem de modo algum, ao contrário do que se imagina, de sua
barra em posição de significante, bem como na redução simultãnea da sexua-
lidade ao nfvel do significado (de valor representado). Operação estrutural
acentuação como oriffcio erógeno, porém, inversamente, do seu fechamento
sendo a pintura, de alguma maneira, o elemento fdlico, a marca que a institui em
-
garantidora da conjuração mediante a qual o sujeito pode reavaliar-se como
valor de troca boca erétil, intumescencia sexual por meio da qual se
falo: esse fragmento de corpo ou esse corpo todo inteiro positivizado, fetichizado,
erige a fe'mea e onde o desejo do homem virá a se tomar à sua própria imagem3.
o sujeito pode identificar-se com ele e dele reapropriar-se, na realização de um
Mediatizado por esse trabalho estrutural, o desejo, de irredutfvel que
desejo que desconhecerá para sempre sua própria perda. quando fundado na perda, na admiração de um pelo outro, torna-se negocid-
Essa operação é lida nos mfnimos detalhes. 0 bracelete que circunda o
braço ou o tornozelo, o cinto, o colar, o anel instituem o pé, a cintura, o pes-
cow e o dedo como eréteis. E, por outro lado, não há necessidade, no limite,
varencia fálica geral -
vel, em termos de signos e de valores fálicos trocados, indexados a uma equi-
operando cada qual contratualmente e apreçando
[monnayant] seu enlevo próprio em termos de acumulação fálica situação
de traço ou de signo visfvel: despido de signos, é apesar disso na base de uma perfeita de uma economia polftica do desejo.
separação fantasmada, logo de uma castração jogada e frustrada, que joga a 0 mesmo se aplica ao olhar. 0 que faz operar a mecha sobre o olho (e todos
eroticidade do corpo toda inteira na nudez. Mesmo não estruturalizada por os outros artefatos eróticos dos olhos) é a negação do olhar como dimensão
nenhum traço (jóia, pintura ou ferimento, tudo pode servir a esse fim), mesmo perpétua da castração ao mesmo tempo que como oferenda amorosa. Olhos
não retalhada, a barra está sempre nas roupas que caem, assinalando a emer- metamorfoseados pela maquiagem, é a redução extática da ameaça, do olhar do
gência do corpo como falo, mesmo o corpo da mulher, sobretudo se for o outro em que o sujeito pode ver-se a si mesmo em sua própria falta, mas onde ele
corpo da mulher: af está toda a arte do strip-tease, de que voltaremos a falar.
Faz-se necessário reinterpretar nesse sentido a "simbólica" dita freudiana.
2. HA uma afinidade entre o cerimonial de signos de que se cerca o corpo erótico e o cerimonial
A capacidade do pé, do dedo ou de qualquer outra parte do corpo de atuar
de sofrimento de que se cerca a perversão sadomasoquista. A marca "fetichista" (colares, braceletes,
como metáfora do penis não se deve à sua forma saliente (segundo um esque- correntes) imita e evoca sempre a marca sadomasoquista (mutilação, ferimento, cicatriz).

varencia fálica na base da cesura fantasmática que os erige -


ma de analogia entre esses diversos significantes e o penis real): eles só te'm
penis castrados,
pe'nis porque castrados. Termos plenos, falificados, designados por essa barra
Certas marcas (aquelas são apenas sugestivas) fazem com que o corpo fique mats nu do que
se estivesse verdadeiramente nu. Essas marcas podem ser as roupas e acessórios, mas também os
gestos, a música, a técnica.Todas as perversões necessitam de truques no sentido forte do termo.

que lhes dá autonomia -


bem além dessa barra está o falo, tudo se resolve na
equivalência fálica, mesmo o sexo feminino, mesmo um órgão ou um objeto
No caso do sadomasoquismo, é o sofrimento que emblematiza o corpo tal como o podem fazer
as jóias ou a pintura na paixão fetichista.
Há uma convergencia de todas as perversões: no sistema erótico que descrevemos, o corpo se

escancarado tradicionalmente registrado como "sírnbolo" feminino. 0 corpo exalta pelo prazer, pela auto-seducão; no sadomasoquismo, ele se exalta pelo sofrimento (o auto-
-erotismo doloroso). Porém exista uma afinidade entre eles: quer sofra ou tenha prazer consigo
mesmo, o outro é radicalmente objetivado. Toda perversão brinca com a morte.
3. 0 ato sexual só é possivel, muitas vezes, ao preço desta perversão: o corpo do outro fanta-

- 1.0 que é fetichizado nunca é o sexo ern si, o objeto-sexo, mas o falo como equivalente geral
do mesmo modo como, na econornia politica, nunca é o produto-mercadoria em si que
fetichizado, porém a forma do valor de troca e seu equivalente geral.
siado como manequim, falo/manequim, fetiche fálico, afagado, acariciado, possuido como seu
próprio penis.

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0 CORK) OU 0 OSSUÁRIO DE S1GNOS 0 CORPO MARCADO

também pode vertiginosamente abolir-se caso eles se abram sobre ele.F.sses olhos É necessário ver como opera, nesse "privilégio" erótico da mulher, a sujeição
sofisticados, rnedusiados4, não olham ninguém, não se abrem sobre nada. Toma- histórica e social. Não por algum mecanismo de "alienação" sexual que duplicas-
dos no trabalho do signo, eles têm a redundância do signo: exaltam-se com seu se a "alienação" social, mas pela tentativa de ver se não atua, com relação a toda
próprio fascínio, vindo sua sedução desse onanismo perverso.
Poderíamos continuar: o que se aplica a esses lugares privilegiados da
troca simbólica que são a boca e o olhar aplica-se a todas as partes e detalhes
ção à diferenca dos sexos no fetichismo -
discriminação polftica, o mesmo processo de desconhecimento que atua com rela-
resultando isso numa fetichização da
classe ou do grupo dominado, na supervalorização sexual, para melhor conjurar
do corpo tomados nesse processo de significação erótica. Porém o objeto mais a interrogação crucial que este faz incidir sobre a ordem do poder. Se refletirmos
belo, aquele que em toda parte resume essa encenação e aparece como o bem sobre isso, todo o material significativo da ordem erótica é composta apenas
ápice da economia politica do corpo é o corpo da mulher. 0 corpo desvelado da panóplia dos escravos (correntes, colares, chicotes etc.), dos selvagens
da mulher, em suas mil variantes do erotismo, é claramente a emergência do (negritude, bronzeamento, nudez, tatuagens), de todos os signos de classes e
falo, do objeto-fetiche, é um gigantesco trabalho de simulação fálica ao mesmo raças dominadas. Assim ocorre com a mulher em seu corpo, anexado a uma
tempo que o espetáculo incessantemente renovado da castração. Da imensa ordem fálica cuja expressão política a condena a inexistência7.
difusão de imagens ao ritual minucioso do strip-tease, em toda parte a força lisa
e sem defeitos do corpo feminino exibido aparece como cartaz fálico, força
medusiada numa incansável exigência fálica (aí reside a afinidade imaginária
profunda entre a escalada erótica e a do crescimento produtivista).
0 privilégio erótico do corpo feminino opera para as mulheres tanto quanto
para os homens. Com efeito, uma mesma estrutura perversa funciona para todos:
tendo por eixo a negação da castração, essa estrutura opera com o corpo femi-
nino, de preferência, como com a iminência da castração5. Assim, a progressão
lógica do sistema (mais uma vez homóloga à da economia politica) leva a um
recrudescimento erótico do corpo feminino porque este, privado de pênis, se
presta melhor à equivalência geral fálica. Se o corpo masculino não suporta de
forma alguma o mesmo rendimento erótico, é porque não permite nem o apelo
fascinante da castração nem o espetáculo de sua continua superação. Ele jamais
pode tornar-se de fato objeto liso, fechado, perfeito: marcado com a "verdadeira"
marca a valorizada pelo sistema geral), ele é menos disponível para a demarcacão,
para esse longo trabalho de derivação fálica. Até segunda ordem, nada de publi-
cidade erétil, nada de nudez erétil: eis o preço ao qual a eretilidade pode ser
transferida sem controle a toda a gama dos objetos e ao corpo feminino. Porém,
no limite, a própria ereção não é incompatível com o sistema6.

4. Contra a tese da mãe fálica, terrificante porque fálica, Freud dizia que a sideração produzida
pela cabeça de Medusa agia porque os répteis que tomavam o lugar dos seus cabelos vinham
negar, tantas vezes quantas eram as serpentes, a castração, que, por essa reversão, se fazia lembrar
multiplicadamente ãqueles que a desejavam anular (A.Green).Assim seria o fascinio da maquiagem 7. Dito isto, o fato de um dos termos do binômio sexual, o Masculino, ter-se tornado o termo
e do strip-tease: cada fragmento do corpo destacado pela marca, avaliação fálica, também vem marcado, e de ele ter vindo a ser o equivalente geral no sistema, essa estrutura que nos parece
negar a castração, que ressurge, no entanto, em toda parte, na separação desses objetos parciais, inelutável, é em si privado de fundamentação biológica: como toda grande estrutura, esta tem
de modo que, enquanto objeto-fetiche, eles só aparecem, em todos os momentos, como "testemu- precisamente como fim romper com a natureza (Levi-Strauss). Pode-se imaginar uma cultura em
nho e véu do sexo castrado" (Lacan). que os termos sejam invertidos: strip-tease masculino em sociedade matriarcal! Basta que o femi-
5. Se a linha da meia é mais erotica do que a mecha sobre os olhos ou a linha da luva no nino se torne o termo marcado e funcione como equivalente geral. Mas é preciso ver que, nessa
braço, isso não ocorre por promiscuidade genital; trata-se simplesmente do fato de a castração ser alternância de termos (na qual é tragada em larga medida a "liberação" da mulher), a estrutura
operada e negada ai mais de perto, o mais perto, em sua iminencia maior. Assim, em Freud, é o permanece imutável, imutáveis ficam a recusa da castração e a abstração fálica. Se, portanto, o
objeto percebido no periodo mais proximo da descoberta da ausencia de penis na mulher que se
tornará o objeto-fetiche.
6. Só permanecem impensáveis e inadmissiveis a anulação do valor/falo e a irrupção do jogo
não reside ai-
sistema comporta uma possibilidade de alternãncia estrutural, vemos que o verdadeiro problema
mas numa alternativa radical que submeta a questionamento a própria abstração
dessa economia politica do sexo fundada num dos termos como equivalente geral, no desconhe-
radical da diferença. cimento da castração e da economia simbólica.

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A Nudez Segunda

Qualquer corpo e qualquer parte do corpo pode operar funcional-


mente da mesma maneira, desde que submetidos ã mesma disci-
plina erótica: é necessário e suficiente que ele seja o mais fecha-
do, o mais liso possível, sem falha, sem orifício, sem "defeito", sendo toda
diferença en5gena conjurada pela barra estrutural que vem designar esse corpo
(no duplo sentido de designação e de design), barra visível na roupa, na jóia
ou na pintura, invisível na nudez total, mas sempre presente, visto envolver
então o corpo como uma segunda pele.
É característica, nesse sentido, a onipresença no discurso publicitário do
"quase nua", do "nua sem estar, como se estivesse", dos collants com os quais
"vocé fica mais nua do que ao natural": tudo isso para conciliar a idéia naturalista
de viver o corpo "diretamente" com o imperativo comercial da mais-valia. Deixe-
mos isso de lado. 0 mais interessante é que a verdadeira nudez encontra aqui a
sua definicão como nudez segunda: é a do collant X ou y do véu transparente

muito freqüente que essa nudez seja substituída pelo espelho -


que, uma vez "no corpo, sua transparéncia transforma vocé". É, por outro lado,
seja como for, é
nessa duplicacão que a mulher identifica "o corpo com que ela sonha: o seu". E,
por uma vez, o mito publicitário tem rigorosamente razão: não há nudez além da
que se duplica nos signos, que se reveste pessoalmente de sua verdade significada
e que restitui, como um espelho, a regra fundamental do corpo em matéria eró-
tica, a de tornar-se, para vir a ser celebrado falicamente, a substância diáfana, lisa,
depilada, de um corpo glorioso e assexuado.
O exemplo perfeito foi a mulher pintada de ouro do filme Goldfinger (James
Bond): todos os orifícios tapados: eis a maquiagem radical, que faz do seu
corpo um falo impecável (o fato de ser de ouro apenas acentua a homologia
com a economia política) e que, naturalmente, equivale ã morte. A playgirl nua

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0 CORPO OU 0 OSSUARIO DE SIGNOS A NUDEZ SEGUNDA

coberta de ouro morrerá por ter encarnado até o limite absurdo o fantasma do tação e da verdade, traduziu isso de maneira inversa: não contente de levar a
erótico. Mas assim ocorre com toda pele na estética funcional, na cultura de bailarina a despir-se, ele faz que a esfolem viva.
massa do corpo. Collants, cintas, meias, luvas, vestidos e roupas "coladas ao Não há nenhuma parte o corpo que não se configure como essa superffcie
corpo", sem contar o bronzeamento: é sempre o leitmotiv da "segunda pele", do ser, essa praia virgem e sem marcas, essa natureza. Ele só adquiriu esse valor
sempre a pelfcula transparente que vem vitrificar o corpo. "original" na repressão -e o liberar enquanto tal, de acordo com a ilusão natu-
A própria pele não se define como"nudez", porém como zona erógena: meio ralista, é liberá-lo enquanto reprimido. Logo, sua própria nudez se volta contra ele
sensual de contato e de troca, metabolismo da absorção e da excreção.F.ssa pele e vem colocar-lhe a aureola de uma censura aérea e inelutável: a segunda pele.
porosa, permeada, orificial, em que o corpo não se detém e que só a metaffsica Fbrque a pele, como todo signo que toma força de signo, se duplica na significa-
institui como linha de demarcação do corpo, é negada em proveito de uma ção: ela é sempre já a segunda pele. Não é a última, mas é sempre a única.
segunda pele não-porosa, sem exsudação nem excreção1, nem quente nem fria Nessa redundância da nudez-signo, que trabalha para restituir o corpo
(ela é "fresca", ela é "morna": climatização ótima), sem protuberáncias nem aspe-
rezas (ela é "doce", é "aveludada"), sem espessura própria (a "transparencia do
rosa"), sobretudo sem oriffcios (e "lisa"). Funcionalizada como um revestimento
da consciência através de sua imagem no espelho -
como fantasma de totalização, encontramos a especulação infinita do sujeito
captando e resolvendo
formalmente na duplicação a divisão irredutfvel do sujeito. Os signos inscritos

ridade) são qualidades de fechamento -


de celofane. Todas as suas qualidade (frescor, flexibilidade, transparencia, regula-
grau zero resultante da negação de
extremos ambivalentes. 0 mesmo se passa com sua "juventude": o paradigma
na superffcie do corpo, e [de] onde se exinscreve a pulsão de morte, jamais
fazem outra coisa além de repetir sobre o material corporal essa operação
metaffsica do sujeito da consciencia."E pela pele que se faz penetrar a meta-
jovem/velho vem neutralizar-se aqui numa imortal juventude de simulação. ffsica nos espfritos", como disse Artaud.

revestimento protetor dos objetos -


Essa vitrificação da nudez deve ser aproximada da função obsessiva de
encerados, plastificados etc. -,
e do tra-
Fechamento do espelho, duplicação fálica da marca: nos dois casos, o sujeito
se seduz a si mesmo. Ele seduz seu próprio desejo e o conjura em seu próprio

do de limpeza, de impecável abstração -


balho de escovação e de limpeza, que visa manté-los perpetuamente em esta-
também af, [trata-se de] barrar sua
secreção (pátina, oxidação, poeira), impedi-los de se desfazer e conservá-los
corpo duplicado pelos signos. Fbr trás da troca de signos, por trás do trabalho do
código, que funciona como fortificação fálica, o sujeito pode furtar-se e recuperar-
-se: furtar-se ao desejo do outro (A sua própria falta) e, de alguma maneira, ver
numa espécie de imortalidade abstrata. (ver-se) sem ser visto. A lógica do signo une-se à lógica da perversão.
Nudez"designada",ela não subentende nada por trás da rede de signos que Importa fazer aqui uma distinção radical entre o trabalho de inscrição e de
tece, sobretudo nenhum corpo: nem um corpo de trabalho nem um corpo de
prazer; nem um corpo erógeno nem um corpo lacerado -
ela supera formal-
marca no nfvel do corpo nas sociedades"primitivas" e em nosso sistema con-
temporãneo. Confundimo-los com muita facilidade na categoria geral de "ex-

"bonita porque preenche exatamente seu vestido" -


mente tudo isso num simulacro de corpo pacificado, assim como B.B., que
equação funcional sem
incógnita. Diante da pele do esfolado,sob a qual palpitam os músculos, o corpo
pressão simbólica" do corpo. Como se o corpo sempre tivesse sido o que é,
como se a tatuagem arcaica tivesse o mesmo sentido da maquiagem, como se
existisse, para além de todas as revoluções do modo de produção, um modo
moderno releva bem mais do inflável,tema ilustrado por uma seqüencia humo- de significação que não se alterou dos primórdios dos tempos ã esfera da

gesto:ela destapa o umbigo e se desinfla imediatamente


de pele em cena.
-
rfstica de Lui em que se ve a stripper, ao fim da ação de despir-se, fazer um Ultimo
um pequeno pedaço
economia polftica. Ao contrário da nossa, em que os signos são trocados sob
o regime de um equivalente geral, ou onde eles tem valor de troca num sistema
de abstração fálica e de saturação imaginária do sujeito, a marcação dos cor-
A utopia da nudez, do corpo presente em sua verdade: eis no máximo a pos como a prática das máscaras em sociedades arcaicas tem por função a
ideologia do corpo que pode ser representada. 0 Indiano (não sei mais qual)
disse:"0 corpo nu uma máscara inexpressiva que esconde a verdadeira na-
.6

tureza de cada um". Ele entendia por isso que o corpo só tem sentido quando
grupo -
atualização imediata da troca simbólica, da troca/dádiva com os deuses ou no
troca que não é negociacão pelo sujeito de sua identidade por trás da
máscara ou da manipulação dos signos, mas onde, ao contrário, ele consome
marcado, revestido de inscrições. 0 rajá de Alphonse Allais, fanático da deno- sua identidade, põe-se em jogo como sujeito na posse/despossessão -o corpo
inteiro se torna, ao mesmo tftulo que os bens e as mulheres, material de troca
1. Salvo a secreção nobre das lágrimas, mas com que precauções! Cf. o admirável texto de simbólica em que, para dizer tudo, ainda não emergiu (não mais do que a
Longcils:"... quando uma emoção a perturba a ponto de só o seu olhar poder traduzir sua profun- abstração da moeda) o esquema padrão da significação, nosso Significado/
didade, nesse instante, mais do que em qualquer outro, vocë não pode aceitar uma traição da Significante transcendental, Falo/Subjetividade, que governa toda a nossa eco-
pintura dos olhos. Nesse instante, mais do que em qualquer outro, Longcils não tem igual... sobre-
tudo nesse instante, ele cuida do seu olhar para protegë-lo e valorizá-lo. A ponto de ser suficiente nomia polftica do corpo. Quando o Indiano (talvez o mesmo) diz: "Sou todo
pintar os olhos e... não pensar mais no assunto". rosto", respondendo à interrogação do Branco sobre a nudez do seu corpo,

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O CORK) OU O OSSUÁRIO DE S1GNOS

está afirmando que todo o corpo (que por outro lado nunca está nu, corno
vimos) é nele entregue à troca simbólica, ao passo que tende entre nós a
reduzir-se apenas ao rosto e ao olhar. No ambiente do indiano, os corpos se
olham e trocam entre si todos os seus signos, que se consomem numa relação
incessante e não se referem nem A lei transcendente do valor nem a uma
apropriacão privada do sujeito. Entre nós, o corpo se fecha em seus signos,
avaliando-se por meio de um cálculo de signos que ele troca sob a lei de
equival.encia e da reprodução do sujeito. Este não mais se abole na troca: ele
0 "Strip-Tease"
especula. É ele, e não o selvagem, que está em pleno fetichismo: pela avaliação
do seu corpo, é ele que é fetichizado pela lei do valor.

Bernardin (diretor do Crazy Horse Saloon) (Lai):

Ndo se strip [tira a roupa] nem tease [excita]... faz-se uma paródia...
Sou um mistificador: dá-se a impressão de mostrar a verdade nua
e crua; a mistificacão não poderia ir mais longe.
"É o contrário da vida. Porque, quando está nua, ela está bem mais para-
mentada do que a mulher vestida. Os corpos são maquiados com bases espe-
ciais extremamente bonitas que deixam a pele acetinada...A mulher tem luvas
que lhe cobrem os bracos, o que é sempre muito bonito, meias verdes, verme-
lhas ou pretas que também lhe cobram a perna até a coxa...
"Strip-tease de sonho: a mulher do espaço. Ela vai dançar no vazio. Porque,
quanto mais lentamente se move a mulher, tanto mais erotica ela é. Logo, acho
que o auge seria uma mulher sem peso.
"A nudez das praias nada tem que ver com a do palco. No palco, as mu-
lheres são deusas, são intocáveis... A onda de nudez, no teatro e em outros
lugares, é superficial e se limita a um ato mental: vou ficar nua, vou mostrar
atores e atrizes nus. Isso é desinteressante devido As suas próprias limitacões.
Em outros lugares, apresenta-se a realidade; aqui, só sugiro o impossfvel.
"A realidade do sexo que se expõe em toda parte desgasta a subjetividade
do erotismo.
"Irisada por fuzes vivas, coberta de jóias, trazendo uma volumosa peruca
laranja, Usha Barock, uma mestica austro-polonesa, dard continuidade a. tradi-
cão do Crazy Horse: criar a mulher que não se toma nos proprios bracos:'
0 strip-tease é uma danca: talvez a única, e a mais original do mundo
ocidental contemporãneo. 0 segredo dele é a celebracdo auto-erotica feita por
uma mulher com o seu pi-61)6o corpo, que se torna desejável nessa mesma
medida. Sem essa miragem narcfsica que é a substancia de todos os gestos,
sem esse gestual de carfcias que vêm envolver o corpo e emblematiza-lo como

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0 CORK) OU 0 OSSUARIO DE SIGNOS 0 "STRIP-TEASE"

objeto fálico, não há efeito erótico. Masturbação sublime cuja lentidão é, como mais do que uma mulher e um corpo "obscenos" no sentido estrito do termo, não
diz Bernardin, fundamental. É essa lentidão que marca que os gestos com que a esfera fechada de um corpo que, mediante essa aura de gestos, se designa a si
a mulher se cerca (o ato de despir, as carfcias e até a imitação do prazer) são mesmo como falo e se prefere como signo do desejo.Ter sucesso não é portanto,
os do "outro". Seus gestos tecem ao redor dela o espectro do parceiro sexual. de modo algum,"fazer amor com o público", como em geral se pensa, mas na
Mas esse outro é desde o início exclufdo, porque a mulher toma o seu lugar e verdade, justamente o contrário. A stripper é, de acordo com Bernardin, uma
se apropria dos seus gestos nos termos de um trabalho de condensação que deusa, e o interdito langado sobre ela, aquele que ela traga ao redor de si, não
não está longe dos processos onfricos. Todo o segredo (e o trabalho) erótico significa que não se pode tomar nada dela (não se pode chegar ao acting-out
do strip está nessa evocação e revogação do outro mediante gestos cuja lenti- [passagem a atos] sexual: essa situagão repressiva é a do strip ruim), mas antes
dão é poética, como o é a do filme de uma explosão ou de uma queda em que nada se pode dar a ela, porque ele se dá toda a si mesma,sendo daf que lhe
câmara lenta, porque, nesses casos, algo tem, antes de se completar, tempo de vem a transcendência rematada que faz o seu fascfnio.
A lentidão dos gestos é a do sacerdote e da transubstanciagão. Não mais
faltar a nós, o que constitui, se é que isso existe, a perfeição do desejo'.
Só é bom o strip que reflete o corpo nesse espelho de gestos e de acordo a do pão e do vinho, porém a do corpo em falo. Cada pega de roupa que cai
com que essa abstragdo narcfsica rigorosa -
sendo o gestual o equivalente
móvel dessa panóplia de signos, de marcas agindo por outro lado ma encena-
não aproxima do nu, da "verdade" nua do sexo (ainda que todo o espetáculo
seja alimentado igualmente por essa pulsão voyeurista, assombrado pelo
desnudamento violento e a pulsão de violagão, mas esses fantasmas opõem-se
ção erétil do corpo em todos os níveis da moda, da maquiagem, da publicida-
de'. 0 strip ruim é evidentemente aquele em que alguém pura e simplesmente
ao espetáculo) -caindo, ela designa como falo aquilo que desnuda
desvela uma outra e o mesmo jogo se aprofunda, emergindo o corpo cada vez
mas
tira a roupa; a única coisa que este faz é devolver a nudez, a pretensa finalida-
mais como efigie fálica ao ritmo do strip. Logo, não se trata de um jogo de
de do espetáculo, faltando-lhe essa hipnose do corpo para entregá-lo à concu-
pisCencia direta do público. Não que o strip ruim não saiba captar o desejo do
público - pelo contrário; mas é que a stripper não conseguiu recriar por si
um jogo ascendente de construgão de signos -
despojamento de signos rumo a uma "profundidade" sexual; é, pelo contrário,
assumindo cada marca forga
erótica ao lado do seu trabalho de signo, isto é, da reversão que opera daquilo
mesma seu corpo como objeto encantado, é que ela não soube realizar essa que nunca foi (a perda e a castragão) aquilo que ela designa em seu lugar e
transubstanciação da nudez profana (realista, naturalista) em nudez sagrada, a posigão: o falo3. Por isso o strip-tease é lento: ele deveria ser feito com o má-
de um corpo que se autodescreve, se auto-apalpa (porém sempre por meio de ximo de rapidez possfvel caso o seu objetivo fosse o desnudamento sexual, mas
uma espécie de vazio sutil, de distância sensual, de circunlocução que, mais uma é lento por ser discurso, construgão de signos, elaboragão minuciosa de um
vez, como num sonho, reflete o fato de os gestos serem reflexos, de o corpo sentido diferido. Também af o olhar é testemunha dessa transfiguragão fálica.
retornar a si mesmo por meio do espelho dos gestos). A fixidez do olhar é um trunfo essencial da boa stripper. Interpretamo-lo habi-
0 strip ruim é o que é espreitado pela nudez ou pela imobilidade (ou a tualmente como técnica de distanciamento, de coolness destinada a marcar os
auséncia de "ritmo", a brusquidão do gesto): nesse caso, já não há em cena nada limites dessa situagão erótica. Sim e não: o olhar fixo que apenas marcasse o
interdito mais uma vez reverteria o strip a uma espécie de pornodrama repres-
1.A narrativa gestual, o "bump and grind" ern termos técnicos, realiza aqui o que Bataille deno- sivo. 0 bom strip não é isso, esse controle do olhar não é o da frieza imposta:
mina o "fingimento do contrario": é por ser constantemente coberto e ocultado pelos próprios gestos se é cool, como o dos manequins, ele o é com a condigão de se redefinir o cool
que o desnudam que o corpo assume aqui seu sentido poético, pela força da ambivaléncia.Vemos
como uma qualidade muito particular de toda cultura atual da mfdia e do
inversamente a ingenuidade dos nudistas e de outros,dessa"nudez superficial das praias" de que fala
Bernardin, nudez que, crendo apresentar a realidade nua, cai na equivalência do signo: ela rid() é corpo, e que já não é da ordem do quente nem do frio. Esse olhar é o olhar
mais do que o equivalente significante de uma natureza significada. Esse desvelamento naturalista neutralizado do fascfnio auto-erótico, o da mulher/objeto que se olha e, com
nunca passa de "ato mental", como o diz bem Bernardin: é urna ideologia. Nesse sentido,o snip, pelo os grandes olhos abertos, volta a fechá-los sobre si mesma. Não se trata do
seu jogo perverso e sua ambivalencia sofisticada, opõe-se à "liberação pelo nu" como a uma ideologia
efeito de um desejo censurado: trata-se do auge da perfeigão e da perversão.
racionalista/liberal. A "escalada do nu" é a escalada do racionalismo, dos direitos do homem, da
liberação formal, da demagogia liberal, do livre pensar pequeno-burgues.Essa aberração realista foi É o ponto culminante de todo o sistema sexual que deseja que a mulher nunca
perfeitamente colocada em seu lugar pela menina a quern se ofereceu uma boneca que fazia xixi: seja tão plenamente ela mesma, e portanto tão sedutora, quanto a partir do
"Minha irmazinha tambem faz isso.Vocé não poderia ine dar uma verdadeira?"
2. Um jogo de véus transparentes pode ter o mesmo papel desse jogo gestual. É da mesma
ordem a publicidade freqüente que põe em cena duas ou mais mulheres: só na aparencia isso 3.A última peça de roupa também pode cair:o strip integral nao altera sua lógica.Sabe-se que
uma tematica homossexual, trata-se na verdade de uma variante do modelo narcísico de auto-se- os gestos bastam para traçar uma linha encantada ao redor do corpo, marca bem mais sutil que
dução, um jogo de reduplicação centrado na pessoa mediante o artifício de uma simulação sexual a da lingerie e,seja como for, o que barra essa marca estrutural (com lingerie ou gestos) não é um
(que pode por outro lado ser heterossexual: o homem na publicidade nunca o estd exceto como órgão sexual, mas a própria sexuação que atravessa o corpo: o espetáculo do órgão e, no limite,
caução narcísica, para ajudar a mulher a se deliciar). do orgasmo, não a abole de maneira alguma.

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O CORPO OU O OSSUARIO DE S1GNOS O "STR1P-TEASE"

momento em que aceita primeiro agradar-se, deliciar-se, de não ter nenhum Por trás dos yetis sucessivos, não há coisa alguma, nunca há coisa alguma,
e o movimento que impele sempre mais para a frente rumo à sua descoberta
desejo nem transcendencia além dos de sua própria imagem.
0 corpo ideal que esse estatuto esboça é o do manequim. 0 manequim
oferece o modelo de toda essa instrumentação fálica do corpo. A palavra o diz:
propriamente o processo da castração - não o reconhecimento da falta, mas
a vertigem fascinada dessa substancia insignificante.Todo o agir ocidental, que
manne-ken,"pequeno homem" -
criança ou penis -,
aqui, 6 seu próprio corpo
que a mulher cerca de uma manipulação sofisticada, de uma disciplina narcísica
desemboca numa compulsão realista vertiginosa, é afetada por esse estrabismo
da castração: a pretexto de restituir o "fundo das coisas", andamos as cegas,
intensa, sem ruptura, que é na verdade o paradigma da sedução. É sem dúvida inconscientemente, no vazio. Em lugar de um reconhecimento da castração,
aí, nesse processo perverso que faz do seu corpo sacralizado um falo vivo, que
criamos todo genero de alibis fálicos, e depois, seguindo uma compulsão fas-
cinada, procuramos afastar um a um esses alibis a fim de encontrar a "verdade"
reside a uerdadeira castração da mulher (do homem também, mas nos termos de
um modelo que se cristaliza de preferencia em torno da mulher). Ser castrado - que é sempre a castração, mas que sempre se revela ser finalmente a cas-
tração negada.
ser coberto de substitutos fálicos. A mulher é coberta por eles, é convocada a se
fazer falo em seu corpo, sob pena de talvez nunca mais ser desejável. E se as
mulheres não são fetichistas, é que elas fazem sobre si mesmas esse trabalho de
fetichização contínua, elas se fazem bonecas. Sabe-se que a boneca é fetiche, feita
para ser continuamente vestida e despida, mal vestida e mal despida. É esse jogo
de cobre-descobre que tem valor simbólico para a infância, 6 nesse jogo ao
contrário que retorna toda relação objetal e simbólica, quando a mulher se faz
boneca, torna-se seu próprio fetiche e o fetiche do outro4.
Freud:"A escolha tão freqüente de peças de lingerie como fetiches advérn
daquilo que se conserva no ultimo momento do despir-se durante o qual ainda
se pode pensar que a mulher é fálica" (0 fetichismo).
0 fascínio do strip-tease como espetáculo da castração viria, portanto, da
iminencia de descobrir, ou melhor, de procurar e nunca chegar a descobrir, ou,
melhor ainda, de procurar por todos os meios não descobrir que não há nada.
"0 espanto diante dos órgãos genitais da mulher, que não falta a nenhum
fetichista: estigma indelével da repressão que ocorreu" (ibid.). Ausencia impen-
sável - experiencia que permanece em seguida no princípio de toda "revela-
ção", de todo "desvelamento" (e, em particular, do estatuto sexual da "verda-
de") -a obsessão do orifício se torna fascínio inverso do falo. Eis o mistério
do maravilhamento, negado, barrado, de onde surge toda uma população de
fetiches (objetos, fantasmas, corpo/objeto). 0 próprio corpo da mulher,
fetichizado, vem barrar esse ponto de ausencia do qual ressuscita, essa verti-
gem de toda a sua presença erótica,"signo de um triunfo sobre a ameaça de
castração e proteção contra essa ameaça" (ibid.).

4. 0 desejo perverso é o desejo normal imposto pelo modelo social.Se a mulher escapa
regressão auto-erótica, ela deixa de ser objeto de desejo, tornando-se sujeito do desejo e, por isso
mesmo, refratária à estrutura do desejo perverso. Mas ela também pode perfeitamente buscar a
realização do seu desejo na neutralizacão fetichista do desejo do outro: a estrutura perversa (essa
espécie de divisão do trabalho do desejo entre o sujeito e o objeto, que constitui o segredo da
perversão e do seu rendimento erótico) permanece então inalterada. Única alternativa: que cada
um, abalando essa fortaleza fálica, essa estrutura perversa em que o sistema sexual aprisiona o
desejo, abrindo, em vez de andar ãs cegas sobre sua identidade fálica, os olhos para sua ausência
no lugar do outro, saindo dessa magia branca da identificacão fálica, para reconhecer sua própria
e perigosa ambivaléncia, faça que se torne então possfvel o jogo do desejo como troca simbólica.

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0 Narcisismo
Dirigido

Tudo isso leva a propor novamente a questão do narcisismo em ter-


mos de controle social. Uma passagem de Freiid ("Para introduzir o
narcisismo") evoca aquilo que acabamos de falar aqui: "Instala-se
um estado no qual a mulher se basta a si mesma, o que lhe serve de compen-
sação pela liberdade de escolha de objeto que the é negada pela sociedade.
Essas mulheres só amam, propriamente falando, a si mesmas, quase tão inten-
samente quanto o homem as ama. Suas necessidades não a fazem tender a
amar, mas a ser amadas, e lhes agrada o homem que atende a essas condi-
gões... Mulheres assim exercem sobre os homens o maior fascfnio, não só por
razões estéticas, visto ser estas habitualmente as mais belas mulheres, como
também em razão de interessantes constelações psicológicas". Ele trata em
seguida "das crianças, dos gatos, de certos animais" que "invejamos devido A'
sua posição libidinal irrepreensível","pelo narcisismo coerente que sabem de-
monstrar". No sistema erótico atual, não se trata, no entanto, desse narcisismo
primário, ligado a uma espécie de "perversão polimorfa". Seria antes o desloca-
mento desse "narcisismo de que desfrutaria na infância o Ego real com relação
ao Ego ideal", mais exatamente a projegão da "perfeição narcfsica da infância"
como ideal do Ego, que, como se sabe, está ligado A repressão e A sublimação.
Essa satisfação do seu próprio corpo que a mulher dá a_s_i mesma,essa retórica
da beleza reflete na verdade uma disciplina feroz, uma ética que segue em
paralelo A que reina na ordem econômica. Nada poderia, por outro lado, distin-
guir, no quadro dessa Estética funcional do corpo, o processo mediante o qual
o sujeito submete-se ao seu ideal narcfsico do Ego e o processo por meio do
qual a sociedade prescreve que se conforme com isso, não lhe deixando alter-
nativa a não ser amar a si mesmo, investir em si mesmo de acordo com as
regras que lhe impõe a sociedade. Esse narcisismo é, portanto, radicalmente

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0 NARCISISMO DIRIGIDO
O CORPO OU 0 OSSUARIO DE SIGNOS

prestígio.0 corpo como convocação [sommation] de objetos parciais


distinto do do gato ou da criança, em decorrência de estar situado sob o signo do
em que o sujeito é o voce da consumação IrconsommationT. Inter-
valor. É um narcisismo dingido, uma exaltação dirigida e funcional da beleza a
ceptação da relação do sujeito com sua própria falta em seu corpo
tftulo de avaliação e troca de signos. Essa auto-sedução só tem de gratuita a
pelo próprio corpo tornado meio de totalização, tal como mostrado
aparência; na verdade, todos os detalhes dela recebem a forma final de uma
admiravelmente no filme Le Mepris, em que Brigitte Bardot detalha-
norma de gestão ótima do corpo no mercado dos signos.Algumas fantasias que
va seu próprio corpo em frente ao espelho, apresentando cada parte
o erótico moderno emprega são ordenadas por uma economia racional do valor,
ao assentimento erótico da outra, compondo-se o todo numa adição
e af reside toda a diferença entre este e o narcisismo primário ou infantil.
formal enquanto objeto:"E então, você me ama todinha?" 0 corpo
Toda a moda e a publicidade desenham assim o Mapa do Carinho auto-
feito sistema total de signos ordenado por modelos, sob o equivalen-
-erótico e sua exploração dirigida: voce's são responsáveis pelo seu próprio
corpo e devem valorizá-lo, devem investir nele -
não de acordo com a ordem
do enlevo, mas de stgnos refletidos e mediados pelos modelos de massa e
te geral do culto fálico, assim como o capital se torna sistema total
do valor de troca, sob o equivalente geral do dinheiro.
segundo um organismo de prestígio etc. Manifesta-se aqui uma estranha estra-
tégia: há desvio e transfer'encia do investimento do corpo e das zonas erógenas
para a encenação do corpo e da erogeneidade. A sedução narcfsica vincula-se
a partir de então ao corpo ou a partes do corpo objetivados por uma técnica,
por objetos, por gestos, por um jogo de marcas e de signos. Esse neonarcisismo
está ligado à manipulafflo do corpo como valor. Trata-se de uma economia
dirigida do corpo,fundada num esquema de desestrutbraçáo libidinal e sirnbó-
lica, de desmantelamento e de restruturação dirigida dos investimentos, de
"reapropriação" do corpo de acordo com modelos diretivos e, portanto, sob o
controle do sentido, de transferencia da realização do desejo para o código'.
Tudo isso institui como que um narcisismo "de síntese"que é necessário distin-
guir das duas formas clássicas do narcisismo:
1. Primário: fusional.
2. Secundário: investimento do corpo como distinto, Ego-espelho. Integra-
00 do Ego por meio do reconhecimento especular e pelo olhar do
outro.
3. Terciário: "de síntese". Reescrita do corpo desconstrufdo como Eros
"personalizado", isto é, indexado a modelos coletivos funcionais.
o corpo homogeneizado como lugar de produção industrial de sig-
nos e de diferenças, mobilizado sob a égide da sedução programá-
tica. Interceptação da ambivalencia em beneffcio de uma positivi-
zação total do corpo como esquema de sedução, de satisfação e de

I. Se nos remetemos à função da letra em Leclaire, função erógena de inscrição diferencial e


de anulação da diferença, vemos que o sistema atual se caracteriza pela abolição da função de
abertura da letra em benefício exclusivo de sua função de fechamento.A função literal é dissociada
-a inscrição simbólica desaparece ern proveito apenas da inscrição estrutural -o alfabeto do
desejo em favor do alfabeto do código. A ambivalencia analítica da letra é substituída, aí também, 2. 0 sujeito da consumação, da do corpo em particular, não .6 nem o Ego nem o sujeito do
por sua equivaléncia no sistema do código, sua funcionalidade literal como valor (lingüístico). A inconsciente, é o você, o you da publicidade, isto 6, o sujeito interceptado, fragmentado e recons-
letra então se reduplica e se reflete como signo pleno, é investida fetichisticamente como traço tituído pelos modelos dominantes,"personalizado"e colocado em jogo na troca/signo não sendo
unitário, no lugar e na posição da diferença erógena. Investida como falo no qual se abolem todas o você mais do que o modelo de simulação da segunda pessoa e da troca, não é de fato ninguéra,
as diferenças. A escansão do sujeito pela letra no erdevo é abolida em benefício apenas da reali-
mas apenas o termo fictício que sustenta o discurso do modelo. Esse voce não é mais aquele a
zação do desejo na letra fetichizada.Assim,optiem-se ao corpo erógeno de Leclaire não só o corpo quern se fala, mas o efeito do desdobramento do código, esse fantasma que aparece no espelho
anatbmico como também, e sobretudo, o corpo semiúrgico, feito do léxico dos significantes plenos dos signos.
e codificados, dos modelos significantes de realização do desejo.

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A Manipulação
Incestuosa

Aatual "liberação" do corpo passa por esse narcisismo rigoroso. 0


corpoliberado"é um corpo no qual a lei e o interdito, que vinham
outrora censurar o sexo e o corpo a partir do exterior, tornaram-
-se de alguma maneira interiorizados como variável narcísica. As restrições
exteriores transmutaram-se numa circunscrição de signos,numa simulação fecha-
da. E se a lei puritana exercia-se de início, em nome dc Pai, sobre a sexualida-
de genital, e de modo violento, a atual fase corresponde a uma mutação de

--
todas estas caracterfsticas:
ela não é mais violenta: trata-se de uma repressão pacificada; -
ela já não visa fundamentalmente a sexualidade genital, doravante ofi-
cializada nos costumes. 0 que é visado nesse estágio bem mais sutil e radical
de repressão e de controle é o próprio nível do simbólico. Quer dizer, a repres-
são, ultrapassando a sexuação secundária (genitalidade e modelo social
bissexual), alcança a sexuação primária (diferença erógena e ambivaléncia,
relacão do sujeito com sua própria falta, que funda a virtualidade de toda troca

-
simbólica');
ela deixa de exercer-se em nome do Pai, porém de alguma maneira em
nome da Mãe. Fundando-se a troca simbólica na proibição do incesto, toda
abolição (censura, repressão, desestruturação) desse nível de troca simbólica

1. E preciso considerar que a "liberação" e a "revolução" do corpo operam essencialmente no


ravel da sexuação secundária, isto é, no de uma racionalização bissexual do sexo. Logo, atuam,
com uma fase de atraso, no espaço onde antes agia a repressão puritana e não térn assim inciden-
cia no nivel de repressão atual, que é o do simbólico. Essa revolução está "um passo atrás" do modo
de repressão. Melhor (ou pior) do que isso: a repressão fundamental progride insidiosamente
através e devido à própria existencia dessa "revolução sexual", que converge muitas vezes de
maneira inquietante com essa repressão "doce" sob o signo do narcisismo dirigido de que falamos.

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0 CORPO OU O OSSUÁRIO S1GNOS

significa um processo de regressão incestuosa. Vimos que a erotização e a


manipulação fdlica do corpo se caracterizam como fetichização: ora, o perver-
so fetichista define-se pelo fato de nunca ter saído do desejo da mãe, o que fez
dele o substituto daquilo que lhe faltava. Falo vivo da mãe, todo o trabalho do
sujeito perverso consiste em se instalar nessa miragem de si mesmo e a encon-
trar aí a realização de seu desejo -
na verdade, a realização do desejo da meie
(ao passo que a repressão genital tradicional significa a realização da fala do
Pai).Vemos que é propriamente criada uma situação incestuosa: o sujeito não Modelos
mais se separa (ele não se aparta de sua identidade fálica) e não mais partilha
(ele não se despoja mais do que quer que seja de si mesmo numa relação de do Corpo
troca simb6lica). A identificação com o falo da mãe o define de modo pleno.
Esse é o mesmo processo do incesto: tudo em familia.
Eis em termos gerais o que ocorre atualmente com o corpo: se a lei do Pai,
a moral puritana estd (relativamente) contida aí, ela o está nos termos de uma
economia libidinal caracterizada pela desestruturação do simbólico e pelo levan-
tamento da barreira do incesto. Massmidiaticamente difundido, esse modelo geral
de realização do desejo não deixa de ter uma qualidade de obsessão e de angús-
tia bem diferente da neurose puritana, de base histérica. Já não se trata da angús-
tia ligada ao interdito edipiano, mas daquela que se acha vinculada ao fato de . Para, a medicina, o corpo de referência é o cadáver. Em outras
não ser, no "seio" da satisfação e do enlevo fálico multiplicado, no "seio" dessa palavras, o cadáver é o limite ideal do corpo em sua relação com o
sociedade gratificante, tolerante, consoladora, permissiva, de não ser senão a
marionete viva do desejo da mãe.Angústia mais profunda do que a da frustração
1 sistema da medicina. É ele que produz e reproduz a medicina em
seu exercício realizado, sob o signo da preservação da vida.

em que a própria falta do sujeito vem a lhe faltar -


genital, visto ser a da abolição do simbólico e da troca, a da posição incestuosa
angústia que se traduz hoje,
em todos os lugares, na fobia e na obsessão da manipulação.
2. Para a religião, a referência ideal do corpo é o animal (os instintos e
apetites da "came"). 0 corpo como ossuário e o ressuscitado além da morte
como metáfora carnal.
Vivemos todos, em todos os níveis, esta forma sutil de repressão e de
3. Para o sistema da economia política, o ideal-padrão do corpo é o robõ.
alienação: as fontes estdo fora da nossa percepção, a presença é insidiosa e
total, as formas de luta não foram encontradas e talvez não o possam ser. É que
0 rob6 é o modelo rematado da "liberação" funcional do corpo como força de
trabalho; é extrapolação da produtividade racional absoluta, assexuado (pode
essa manipulação remete àquela, original, do sujeito pela mãe como do seu
pm-Trio falo. A essa plenitude fusional e manipulatória, a essa despossessão, já
ser um rob6 cerebral: o computador é sempre a extrapolação do cérebro da
não podemos nos opor como ã lei transcendente do Pai.Toda revolução futura força de trabalho).
deverá levar em conta essa condição fundamental e recuperar entre a lei do
Pai e o desejo da mde, entre o "ciclo" repressão/transgressão e o ciclo regres-
- 4. Para o sistema da economia politica do signo, a referé-ncia modelo do
corpo e o manequim (com todas as suas variantes). Contemporãneo do rob6
são/manipulação -a forma de articulação do simb6lico2. (é o tandem ideal da ficção científica: Barbarella), o manequim representa,
também ele, um corpo totalmente funcionalizado sob a lei do valor, mas desta
vez como lugar de produção do valor/signo. 0 que é produzido já não é mais
força de trabalho, são modelos de significação - mas s6 modelos sexuais de
realização como a própria sexualidade enquanto modelo.
Cada sistema revela assim a cada ciclo, por trás da idealidade dos seus fins
2. Isso supõe urn tipo de troca que Mil) permaneça dominada pela proibição do incesto e da
lei do Pai, coisa que ocorre corn o tipo de troca (economia e linguagem) que conhecemos, que (a saúde, a ressurreição, a produtividade racional, a sexualidade liberada), o
fundado no valor e culmina no sistema do valor de troca. Esse tipo de troca existe: é a troca fantasma redutor com base no qual se articula, a visdo delirante do corpo que
simbólica, fundada, pelo contrario,na anulação do valor, e que, por isso mesmo, resolve o interdito
que a funda e ultrapassa a lei do Pai.A troca simbólica não é nem regressão para um ponto aquém
da lei (rumo ao incesto) nem pura e simples transgressao (sempre dependente da lei); é resolução
constitui sua estratégia. 0 caddver, o animal, a máquina e o manequim -
os ideais-padrãos negativos do corpo, as reduções fantásticas sob as quais ele
eis

dessa lei. se produz e se escreve nos sucessivos sistemas.

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0 CORK) OU 0 OSSUÁRIO DE SIGNOS

0 estranho é que o corpo não é senão os modelos nos quais os diferentes


sistemas o encerraram e, ao mesmo tempo, algo totalmente distinto: sua alter-
nativa radical, a diferença irredutivel que os nega. Fbdemos ainda chamar de
corpo essa virtualidade inversa. Mas, para ele
rial de troca simbólica
-para o corpo enquanto mate-
não existe modelo, não há código, não há ideal-
-padrão, nada de fantasma diretor, pois não poderia haver sistema do corpo
como anti-objeto.
"Phallus Exchange
Standard"

Apartir da Revolução Industrial, uma mesma grande mutação envol-


ve os bens materiais, a linguagem e sexualidade (o corpo), nos
termos de um processo que marca a progressiva generalização da
economia politica ou ainda o aprofundamento da lei do valor.
I. Os produtos tornam-se mercadorias: valor de uso e valor de troca. Des-
tinados de um lado A finalidade abstrata das"necessidades" que vão "satisfazer"
e, do outro, A forma estrutural que regulamente sua produção e troca.
2.A linguagem torna-se meio de comunicacão, campo de significação. Ela
se organiza em significantes e significados. A mesma dissociação que para a
mercadoria numa finalidade referenda], que a linguagem como meio tem por
fim exprimir: a ordem dos significantes, e numa forma estrutural que regula-
menta a troca de significantes: o código da lingua.
Nos dois casos, a passagem A finalidade funcional, a atribuição racional a
um conteúdo "objetivo" (valor de uso ou significado/referente) sanciona a atri-
buição a uma forma estrutural que é a forma da economia política. No quadro
"neocapitalista" (tecnocrático e semiocrático), essa forma se sistematiza em
detrimento da referencia "objetiva": significados e valores de uso desaparecem
progressivamente em proveito exclusivo do funcionamento do código e do
valor de troca.
Ao final desse processo, final que se esboca para nós apenas hoje, os dois
"setores", da produção e da significacão, convergem. Produtos e mercadorias se
produzem como signos e mensagens e são regulamentados segundo a configura-
cão abstrata da linguagem: veiculam conteúdos, valores, finalidades (seus signifi-
cados), circulam de acordo com uma forma geral abstrata, organizada pelos
modelos. Mercadorias e mensagens culminam no mesmo estatuto de signos.Tam-
bém af, por outro lado, sua referencia desaparece diante do mero jogo de signi-

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0 CORPO OU 0 OSSUARIO DE SIGNOS "PHALLUS EXCHANGE STANDARD"

ficantes, que pode chegar assim a perfeição estrutural: aceleração, proliferação de Assim como os objetos "designados"- retomados pela economia polftica
mensagens, de informações, de signos, de modelos
em que vem assumir forma concreta o mundo
-
linear
eis a moda como ciclo total
da mercadoria.
do signo - obedecem a um imperativo de despojamento, refletindo uma eco-
nomia ascética do cálculo de função, assim como o signo em geral tende a se
0 corpo e a sexualidade podem ser analisados em todos os termos prece- despojar funcionalmente para traduzir da melhor maneira a adequação do
dentes: valor de uso/valor de troca, significado/significante. significante e do significado, que é sua lei e seu princfpio de realidade, assim
1. Pode-se mostrar que a sexualidade se resolve, em seu atual modo de também o corpo apreendido pela economia política tende, por sua vez,
"liberação", em valor de uso (satisfação de "necessidades sexuais") e valor de nudez formal como ao seu imperativo absoluto. Essa nudez, na qual se resume
troca (jogo e cálculo de signos eróticos sob o comando da circulação dos todo o trabalho de inscrição de marcas, de moda, de maquiagem, ao mesmo
modelos). Mostrar que a sexualidade se autonomiza como função: daquela, tempo que toda a perspectiva idealista de "liberação", nada tem de "descober-
coletiva de reprodução da espécie, ela passa aquelas, coletivas, de equilfbrio ta" nem de "redescoberta" do corpo: ela traduz a metamorfose lógica do corpo
fisiológico (parte de uma higiene geral), de equilfbrio mental, de "expressão da no processo histórico das nossas sociedades. Ela traduz o estatuto moderno do
subjetividade", de emanação do inconsciente, ética do prazer sexual -e tan- corpo em sua relação com a economia política. Da mesma maneira como o
tas coisas mais. De qualquer forma, a sexualidade torna-se um elemento da despojamento dos objetos caracteriza sua atribuição a uma função, isto é sua
economia do sujeito, se transforma numa finalidade objetiva do sujeito e passa neutralização pela função, assim também a nudez do corpo define sua atribui-
a obedecer a uma ordem de finalidades, seja qual for. ção à função-sexo,sua designação ao sexo como função, ou seja,a neutralização

que fale por meio dela -


2.E por se funcionalizar (submeter-se a qualquer referência transcendente
mesmo que seja seu próprio princfpio idealizado, a
libido, ultimo subterfúgio do significado) que a sexualidade assume forma
recfproca do corpo e do sexo.

estrutural (como os produtos da indústria ou a linguagem da comunicação).


Ela entra nas grandes oposições (Masculino/Feminino) cuja disjunção a cerne,
cristalizando-se no exercfcio de um modelo sexual atestado por um dado órgão
sexual e fechando o jogo dos significantes do corpo.
3. A estrutura Masculino/Feminino se confunde com a primazia dada
função genital (reprodutiva ou erótica). Essa primazia da genitalidade com
respeito a todas as virtualidades erógenas do corpo tem repercussões na estru-
tura de uma ordem social de domfnio masculino. Porque a estruturalidade
opera com a diferença biológica; mas não é sequer para manter uma verdadei-
ra diferença: é, pelo contrário, para fundar uma equiyarencia geral -o Falo se
torna o significante absoluto com relação ao qual vêm se avaliar e se organizar,
vêm se abstrair e se equivaler, todas as possibilidades erógenas. Esse Phallus
exchange standard governa toda a sexualidade atual, inclusive sua "revolução".
4. A emergência do falo como equivalente geral da sexualidade, a emer-

licas da troca -
gência da própria sexualidade como equivalente geral das virtualidades simbó-
tudo isso define uma economia polftica do corpo que se
instaura sobre as rufnas de sua economia simbólica. A atual "revolução", a
exaltação sexual no quadro de uma liberalização generalizada, não passa de
manifestação do fato de o corpo e a sexualidade terem acedido ao estágio da
economia polftica, de sua integração a lei do valor e da equivalência geral.
5. Sob um e outro aspecto
promoção da sexualidade como discurso
-promoção da sexualidade como função,
o sujeito v"6-se remetido à norma
fundamental da economia polftica: ele se pensa e se localiza sexualmente em
termos de equilfbrio (equilfbrio de funções sob o signo da identidade do eu)
e de coerência (a coerencia estrutural de um discurso sob o signo da reprodu-
ção indefinida do código).

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Demagogia
do Corpo

Sob o signo da revolução sexual, transfiguração da pulsão como subs-


tãncia revolucionária, do inconsciente como sujeito da história. Libe-
rar os processos primários como princfpio "poético" de realidade
social, liberal o inconsciente como valor de uso: eis o imaginário que se crista-
liza sob a palavra de ordem do corpo.Vemos por que o corpo e o sexo suportam
todas essas esperanças: é que, reprimidos sob toda ordem de que se tenham
revestido nossas sociedades"históricas",eles se tornaram metáforas da negatividade
radical. De metáfora, desejou-se fazé-los passar ao estado de fato revolucionário.
Erro: tomar o partido do corpo é um engodo. Não se pode passar ao largo do
processo primário, isso ainda é uma ilusão secundária (IT Lyotard).
Na melhor das hipóteses, o corpo permanecerá, também teoricamente,
numa ambivaléncia eterna. Objeto e antiobjeto: pervadindo e anulando as
disciplinas que pretendem unificá-lo -
lugar e não lugar: lugar do inconscien-
te como não-lugar do sujeito etc.Ainda é em seu nome, depois da divisão entre
corpo anatômico e corpo erbgeno, que a psicanálise atual (Leclaire) postula o
movimento do desejo sob o regime da letra. Sempre o corpo. Porque não há
termo para dizer o não-lugar: o melhor é sem dúvida aquele que, durante toda
uma história, tenha designado aquilo que não teve lugar, aquilo que foi repri-
mido. Porém 0- preciso estar consciente dos riscos desse legado. A primazia
subversiva que dava ao corpo seu estatuto de repressão cessa com sua atual
emancipação' (que não é só o fato de uma polftica de dessublimacão repres-

história da negatividade do corpo sucede a história de sua positividade.Toda a ambigüidade


da atual "revolução" decorre do fato de séculos de repressão terem fundado o corpo em valor.
Reprimido, o corpo ficava prenhe de uma virtualidade transgressiva de transmutação de todos os
valores.Porém,em paralelo,é preciso ver que se operou à sombra da repressão uma tonga e inextricável

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0 CORPO OD o OSSUARIO DE S1GNOS DEMAGOG1A DO CORPO

siva; também a psicanálise tem sua participação na oficialização do corpo e do Em vez de ser refundida pelo desejo, a nudez atua como equivalência e
sexo: aí ainda, é inextricável o emaranhamento entre o corpo e o sexo como encenação do desejo. Em vez de ser refundido pelo sexo, o corpo atua como
euento crucial do sujeito, como processo, como trabalho, e eles mesmos como significante e equivalência do sexo.Em vez de ser refundida pelo ambivale.ncia,
evento histórico na ordem dos conceitos e dos valores).É necessário se pergun- a sexualidade atua, por meio da combinação estrutural do "masculino" e do
tar se o corpo que se "libera" não é aquele que nega eternamente as potencia- "feminino", como equivalência dessa ambivalencia! 0 bipólo sexual atua como
lidades simbólicas do antigo corpo reprimido, se o corpo "de que se fala" não cenário da diferença.A libido estruturalmente desdobrada em dois termos atua
precisamente o inverso daquele que fala.Ao corpo como lugar dos processos como equivalente redutor da pulsão de morte. Logo, em toda parte, a nudez,
primários opõe-se no sistema atual o corpo como processo secundário: valor o corpo, o sexo, o inconsciente etc., em lugar de se abrir sobre a diferença
de uso e valor de troca erótico, racionalização sob o signo do valor. Ao corpo aprofundada, se encadeiam como equivalentes representativos uns dos outros,
pulsional assombrado pelo desejo opõe-se o corpo semiurgizado, estruturalizado, se metonimizam e se constelam para definir, de termo em termo, uma lógica
teatralizado na nudez, funcionalizado pela sexualidade operacional. discursiva da sexualidade, um discurso do sexo como valor. Essa é a mesma
Esse corpo secundário, o da emancipação sexual e da "dessublimação operação da psicometafísica, na qual o sujeito como referente ideal é feito
apenas da circulação, da troca metonímica ininterrupta dos termos de cons-
e o princípio único de Eros -
repressiva", é o colocado sob o signo único de Eros. Há confusão entre o sexo
ou seja, neutralizcicão de um pelo outro com a
exinscrição da pulsão de morte. 0 princípio de prazer instala-se então como
aencia, de vontade, de representação etc.

razão de uma subjetividade "liberada", de uma "nova economia política" do


sujeito."Eros redefine a razão em seus próprios termos: é razoável aquilo que
protege a ordem da satisfação" (Marcuse). A subjetividade "liberada" esgota-se
doravante em se inscrever como positividade no exercício do princípio de
prazer, Eros, que não é mais do que a reificação da libido como modelo de
realização. HA uma nova razão que abre o caminho a uma finalidade ilimitada
do sujeito, e já não há então nenhuma diferença entre a "escalada" sexual e o

produtivas -
esquema de crescimento indefinido de sociedades de "liberação" das forgas
fadados, os dois, ao fracasso, nos termos do refluxo inelutável de
uma pulsão de morte que eles acreditaram poder conjurar.
0 corpo situado sob o signo de Eros representa uma fase mais avançada
da economia política. A reabsorção da troca simbólica é aí radical como a
alienação do trabalho humano no sistema clássico da economia política. E se
Marx descreveu a fase histórica em que a alienação da força de trabalho e a
lógica da mercadoria resultavam necessariamente numa reificação das cons-
ciências, pode-se dizer que hoje a inscrição do corpo (e de todos os domínios
simbólicos) na lógica do signo se faz acompanhar necessariamente de uma
reificacão do inconsciente.

confusão entre o corpo e uma série de valores "materialistas" (sonde, bem-estar, sexualidade, liberda-
de) -o conceito de corpo desenvolveu-se à sombra de certo materialismo transcendental que
amadureceu docemente à sombra do idealismo corno sua solução de reserva -,o que faz com que
sua própria ressurreição ocorra de acordo com finalidades determinadas, atuando como elemento
dinâmico no equilibrio desse novo sistema de valores. A nudez vem a se tornar emblema da subje-
tividade radical. O corpo vem a ser o estandarte das pulsões. Essa liberação, no entanto, partilha da
ambigilidade de toda liberação; a subjetividade é liberada nela como valor. Assim como o trabalho
nunca é "liberado" a não ser como força de trabalho num sistema de forças produtivas e de valores
de troca, a subjetivamente também não se liberta jamais a não ser como fantasma e valor/signo no
quadro de um modo de significação dirigido, de uma sistemática da significação cuja coincidência
com a sistemática da produção é bem clara. Para explicitar tudo, a subjetividade "liberada" não o
jamais senão no sentido de ser apreendida por uma economia politico.

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Apólogo

-"Ah,por que há dois sexos no fim?


De que voce se queixa?Voce queria doze ou um só?"
(Romance moderno.)

p
odemos abrir o leque: por que não zero sexo ou uma infinidade?
A questão do"número"6 aqui absurda (exceto se se puder perguntar
logicamente: por que não seis dedos em cada mão?) Absurda por-
que a sexuação 6 precisamente a divisão que perpassa cada sujeito, o que
torna impensável o "um" e o "vários" - mas o "dois" também, porque "dois" já
6 número (6, por outro lado, sobre o dois como número que se articula o
absurdo diálogo acima). Ora, o sexo ern sua acepção radical não poderia
aceder ao estágio do número inteiro nem ao estatuto de computável: trata-se
de uma diferença, e as duas "extremidades" da diferença, que não são termos,
não poderiam se adicionar nem fazer parte de uma série. Eles não podem ser
entendidos como unidades.
Em contrapartida, esse diálogo 6 lógico no quadro do modelo bissexual
imposto (Masculino/Feminino), porque este postula o sexo imediatamente como
dois termos estruturalmente opostos. A possibilidade de passagem, ao limite
absurdo da numeração serial, ao sexo como acumulação, está implicada pela
estrutura bissexual, a partir do momento em que ou o masculino ou o feminino
são postulados como termos inteiros.
Assim, a ambivalência do sexo 6 reduzida pela bivatencia (dois pólos e
papéis sexuais). Hoje, momento em que essa bivalencia passa pelas metamor-
foses da "revolução sexual' e em que vemos, como se diz, desaparecerem as
diferenças entre masculino e feminino, a ambivalencia do sexo 6 reduzida pela
ambigüidade do unissex.
Contra a metáfora sexualista.
Sabe-se hoje muito bem, demasiado bem, devido ao esclarecimento
freudiano, discernir por trás de toda prática social, ética, polftica, a sublimação,
a racionalização secundária de processos pulsionais. Tornou-se um cliche cul-

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165 PDFCompressor
O CORPO OU O OSSUÁRIO DE SIGNOS

tural decifrar todos os discursos em termos de repressão e de determinação


fantasmática.
Mas tudo isso não passa precisamente de termos, e o inconsciente não
mais do que uma linguagem de referência. 0 discurso sexual também vem a
ser fantasmático quando o sexo se transforma, de redução critica da mistifica-
ção moral e social, em modo de racionalização de um problema que está
situado no nfvel da destruição simbólica total das relações sociais - interroga- 0 Açougueiro de
ção que o discurso sexualista contribui para circunscrever num código
tranqüilizador. É fácil hoje ler no Paris-Dimanche que a frigidez de tantas mu-
lheres vem de sua fixação demasiado grande no pai, e que elas se punem por
Chuang-Tsé
isso proibindo-se o prazer: essa "verdade" psicanalftica faz doravante parte da
cultura e da racionalização social (disso decorrendo o impasse cada vez maior
da cura analftica).
A interpretação sexual ou analftica não tem primazia. Ela também pode
ser fantasmatizada como verdade definitiva
bém como tema revolucionário. É o que
-
acontece atualmente -
e portanto, imediatamente tam-
resultando a
colusão entre revolução e psicanálise do mesmo imaginário, da mesma distorção
de que vem a recuperação "burguesa" da psicanálise advindo uma e outra
da inscricão do sexo e do inconsciente como instância determinante,
sua redução a uma causalidade racionalista.
isto é, de
gem - disse-lhe o príncipe When-Huei
alcançar grau semelhante?"
-, como a sua arte pode
Há mistificação a partir do momento em que há racionalização em nome
de qualquer instância que seja. Quando o sexual é sublimado e racionalizado "0 açougueiro depôs a faca e disse:`Arno o Tao e, assim, progrido na minha
em elemento do politico, do social, do moral - mas também quando o sim-
bólico é censurado e sublimando numa fala sexual dominante.
arte. No início da minha carreira, eu via apenas o boi. Depois de tres anos de
experiência, eu já não via o boi.Hoje,é mais o meu espfrito do que os meus olhos
que agem. Meus sentidos já não agem, só meu espfrito. Conheço a conformação
natural do boi e por isso trabalho só com os interstfcios. Se não danifico as
artérias, as veias, os músculos e os nervos, com mais motivo ainda não danifico
os grandes ossos! Um bom açougueiro usa uma faca por ano, porque só corta a
carne. 0 açougueiro comum usa uma faca por me's porque a quebra nos ossos.
Uma mesma faca vem me servindo há dezenove anos. Ela já desmembrou milha-
res de bois e sua lamina dá sempre a impressão de que acabou de ser amolada.
Para dizer a verdade, as articulações dos ossos contern interstícios, e a lamina da
faca não é espessa.Aquele que sabe introduzir a lamina com toda delicadeza nos
interstícios maneja sua faca com facilidade, pois opera pelos ambientes vazios.Eis
por que venho me servindo da minha faca há dezenove anos e a sua lamina
parece recém-amolada. Cada vez que corto articulações dos ossos, observo as
dificuldades particulares a veneer e prendo o fõlego, fixo o olhar e trabalho len-
tamente. Manejo minha faca com grande suavidade e as articulações se separam
com a mesma facilidade com a qual depomos terra no solo.Tiro minha faca e me
levanto..: " (Chuang-Tsé, Ill, 0 Princípio da Higiene).
Exemplo perfeito de análise, e de sua prodigiosa operacionalidade uma vez
ultrapassada a visão plena, substancial, opaca, do objeto ("no infcio ... eu via
apenas o boi..'.'), a visão anatômica do corpo como construção plena, cortada a
vontade, de ossos, de carne e de órgãos, unificada pela representação exterior e

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Wm*

0 CORK) OU 0 OSSUÁRIO DE SIGNOS '6

sobre a qual trabalha o acougueiro comum, que apenas desmembra pela for-0,
e alcançado o reconhecimento da articulacão do vazio, da estrutura do vazio em
que se articula o corpo ("trabalho só com os interstícios..7).A faca do açougueiro
de Chuang-Tsé não é um pleno que passa por meio da pleno, ela mesma é um
vazio ("a lamina da faca não tem espessura"), que se articula no vazio ("...com
facilidade, pois opera por meio de ambientes vazios"). A faca que opera assim,
seguindo o fio do espfrito analftico, não trabalha no espaço que preenche o boi,
aquele que os sentidos atestam, os olhos, mas de acordo com a organização
lógica interna do ritmo e dos intervalos. Se não se desgasta, é porque [la() confere
a si mesma uma espessura de osso nem de carne, uma substancia a ser vencida
-é que ela é diferença pura atuando sobre a diferença
um corpo, operacão prática, mas que, vemos bem, se
aqui para desarticular
apóia numa economia
A EC:ONOMIX. FOLÍTIÇA,
simbólica que não é a de um conhecimento "objetivo" nem a de uma relação de
forças, mas a de uma
a falta desse corpo e,
estrutura
por esse
de troca:
mesmo
a faca
motivo, o
e o corpo se
desconstrói
trocam,
segundo
a faca articula
o seu ritmo.
E A MORTt
Essa faca é também a tetra de Leclaire, que vem dividir erogeneticamente
tal lugar do corpo segundo a lógica do desejo. Disponibilidade "inutilizável" da
inscrição simbólica quando a letra, por ter um fio extremamente ténue, provo-
ca a disjunção do corpo anatômico e opera sobre o vazio articulado do corpo
- enquanto a do discurso pleno, o do açougueiro comum, apenas desmembra
anatomicamente numa evidéncia material.
Irmã milenar da faca de Lichtenberg',cujo paradoxo lógico (a faca sem lamina

-
qual falta o cabo) punha no lugar, em vez do falo pleno e de sua evidéricia
fantás(fantasmá)tica,a configuração simbólica de um falo ausente essa faca não
opera no corpo: ela o resolve, circula atenta e sonhadoramente nele (atenção flu-
tuante:"... prendo o fõlego, fixo o olhar e trabalho lentamente..7), ela progride nele
-
anagramaticamente quer dizer,não avanca de um termo a outro, de um órgão a
outro justapostos,vinculados como as palavras no fio de uma linguagem funcional:
assim agem o açougueiro comum e o linguista da significacão.Aqui,o fio do sentido
outro: ele afasta o corpo manifesto e segue o corpo sob o corpo, tal como o faz
o anagrama de acordo com seu modelo de dispersed() e de resolução de um termo,
de um corpus princeps cujo segredo é a outra articulacão que corre sob o discurso
e sublinha alguma coisa, um nome, uma fórmula, cuja ausência assombra o texto.
É essa fórmula do corpo, que desafia o corpo anatômico, que a faca descreve e
resolve. É certo que a eficácia do signo, sua eficácia simbólica nas sociedades
primitivas, longe de ser"mágica", está ligada a esse trabalho bem preciso de resolu-
ção anagramática. Assim ocorre com a arquitetura do corpo erógeno, que nunca
passa de articulacão anagramática de uma fórmula "perdida sem jamais ter existi-
do", fórmula cujo fio do desejo refaz a síntese disjuntiva que ele retraca sem a dizen
o desejo mesmo não é senão essa resolucão do significante na dispersão órfica do
corpo, na dispersão anagramática do poema de acordo com o ritmo musical que
o da faca do acougueiro de Chuang-Tsé.

1.E ao contrário da lamina de Occam, que castra e traça o fio reto da abstração e da razdo.

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A Extradição
dos Mortos

Desde a época em que os selvagens chamavam de"homens" apenas


os membros de sua tribo, a definição do "Humano" ampliou-se"
¡
consi erave mente: e a veio a ser um enomeno universa na
verdade isso que recebe de nós o nome de cultura. Hole, todos os homens são
homens. A universalidade não se funda, com efeito, em nada mais a não ser a
tautologia e a duplicacão: é aí que o"Humano" assume força de lei moral e de
princípio de exclusão. Porque o "Humano" é de imediato a instituição de seu
duplo estrutural: o Inumano. Ele na verdade não é nada mais do que isso, e os
p rogressos da Humanidade, da Cultura, não são senao a cadeia de discrimina-
çoes sucessivas ue acusam os "Outros" de inumanidade e, portanto, de inuti-
lidade. Para os selvagens que se dizem homens", os outros sao outra coisa.
P -nós, pelo contrário, sob o signo do Humano como conceito universal, os
outros não são nada. Por outro lado, ser "homem" é um desafio, assim como o

trais, estrangeiros, animais, a natureza-


tatuto não só deixa lugar a uma troca com seres diferentes -
ser "gentil-homem": diferença vivida de grande luta, essa qualidade, esse es-
deuses, ances-
como impõe ser em toda parte posta
em jogo, exaltada e defendida. Nós nos contentamos com uma promoção ao
universal de um valor genérico abstrato indexado à equivalência da espécie,
excluindo-se todo o resto. De certo modo, portanto, a definição do Humano foi
sendo, ao longo da cultura, inexoravelmente refeita: cada progresso "objetivo"
da civiliza ao rumo ao universal correspondeu a uma discriminaçao mais es-

Homem cLue vai coincidir com a excomunhão de todos os homens


do-se apenas, no vazio, a pureza do conceito.
-
trita, a ponto de ser possível entrever o tempo da universalidade definitiva do
irrArlian-

0 racismo é moderno. As culturas ou raças anteriores se ignoraram ou se


anularam, mas nunca sob o signo de uma Razão universal. Não há critério do

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A ECONOMIA POLÍTICA A EXTRADIÇAO DOS MoRros
E A MORTE

Homem, nada de partilha do Inumano, apenas diferenças que podem se enfrentar s exclus e as srecede a todas e lhes serve de modelo, que está na base
ate a morte. Mas é o nosso conceito indiferenciado do Homem que faz surta. da racionahdade" da nossa cultura: a dos mortos e da morte.
discriminação. E preciso ler a narrativa de um homem do século XVI,Jean de Léry Das sociedades selvagens ãs modernas, a evolução é irreersível: pouco a
Histona de uma Viagem Terra do Brasil, para ver que, nessa época em que a Id 65 pouco, os mortos deixam de existir. Eles são rejeitados, jogados para fora da
- do Homem ainda não faz sentir seu peso, em toda
a sua pureza metaffsica,sobre
.cultura ocidental,o racismo não existe: o"gentil-homem" reformado e puntano de
Genebra.desembarcando no Brasil em meio a canibais, não é racista Depois nog
troca e fazemos que se de'em conta disso
longe do grupo dos vivos, da intimidade doméstica
aolara
circulação simbólica do grupo. Não são seres integrals, parceiros oignos da

ao
cada vez mais
cemitério, pnmeiro
tornamos racistas,porque progredimos muito.E não só com relação aos índios e aos grupo ainda no coraçao do lugarejo ou da cidade, depois primeiro gueto e
canibais - nossa cultura, ao aprofundar sua racionalidade, extraditou para o
Inumano, sucessivamente_a_maturezainanimada, os animais, as raças inferiores1, e
prefiguração de-Fodbs os guetos futuros, rejeitados para cada vez alms longe do
centro, rumo à periferia,para lugar nenhum enfim, como nas cidades novas ou
depois esse cancer do Humano investiu essa sociedade mesma que ele pretendia nas metrópoles contemporaneas, nas quais nada mais se preve para os mortos,
circunscrever em sua superioridade absolut ichel Foucau ana isou a extradição' nem no espaço físico nem no mental Mesmo os loucos, os delinqüentes, os
anômalos podem encontrar uma estrutura de acolhimento nas cidades novas,
dos loucos no alvorecer da modernidade ocidental, mas arribém sabemos o que
acontece com a extradição de crianças,com sua progressiva reclusão,ao fio mesmo- isto 6, na iiõri.7fi-dã-d-e de uma cidade moderna
localizada. bem dizer, não
-
só a função-morte não
se sabe mais o que
da Razão, em seu estatuto idealizado de infância no gueto o umverso infantil, na pode ser nela programada e A
abjeção da inocencia. Mas também os idosos se tornaram inumanos, rejeitados,' fazer com relação a isso. Porque hoje não é normal estar morto, e isso 6 novo.
situados na penfena da normalidade.E Caritas outras "categonas", que so se torria- Estar morto é uma anomalia inconcebível,todas as outras são inofensivas dian-
ram "categorias" precisamente sob o signo de sucessivas segregações que marcam te desta. A morte é uma delinqüencia, um desvio incurável. Nada de lugar nem
inencontrável, ei-los rejei-
o desenvolvimento da cultura. Os pobres, os subdesenvolvidos, os Q.I.s inferiores,
os perversos, os transexuais,os intelectuais, as mulheres -
folclore do terror, folclo- -
de espaco/tempo destinados_aos_mortos,seu lugar é
tados na utopia radical nem mesmo continuam a ser enterrados:volatilizados.
Sabemos, todavia, o que significam os lugares inencontraveis: se a tanrica
re da excomunhão com base numa definição cada vez mais racista do "humano
normal".Quintessencia da normalidade: no limite,todas as"categorias"serão excluí-
das, segregadas, proscritas, numa sociedade,enfim, universal em que o normal e o
já não existe e sue. .11. Is em toda sarte -
se a nsão não existe mais,
e que o seqüestro e a reclusão estão em toda lugar no espaço/tempo social -
se o asilo deixa de existir, é que o controle psicolõgico e terapeutico se ge.r-
universal finalmente serão confundidos sob o signo do humano2.
A análise de Foucault 6 uma das peças mestras dessa verdadeira história
da cultura, dessa Genealogi-a da Discriminacão em que o próprio trabalho e a
ralizou e banalizou
social estão
-
impregnadas
de a escola acabou, é que todas as fibras do processo
de disciplina e de formaçlão pedagógica se o-
-
produção ocuparão um lugar decisivo. Contudo, é uma exclusão_aue =cede capital desapareceu (assim como sua crítica marxista), é clue a lei do valor
todas as outras, mais radical que a dos loucos, das crianças, das racas inferio- para a autogestão da sobrevivencia em todas as suas formas etc. etc. S-e
o cemitério não existe mais,é que as cidades modernas inteiras assumem essa
1. Ésempre do ponto de vista do Universal, que fundou o racismo, que se pretende ultrapassá- forma: são ci a es mor as e cidades de morte. E se a grande metropole opj-
-lo, nos termos de uma moral igualitaria do humanismo. Mas a alma antigamente ou, hoje, as raciona e a torma rema a a de to a uma cu tura, então simplesmente a nossa
caraterísticas biológicas da espécie, nas quais se baseia essa moral igualitária, não são argumentos uma cultura de morte.
mais objetivos nem menos arbitrários do que a cor da pele. Porque elas também são critérios
distinnuos.Com base nesses critérios (alma ou sexo), obtém-se na verdade uma equivaléncia Negro
= Branco - mas essa equivaléncia exclui com a mesma radicalidade tudo o que não tiver
alma ou
sexo "humano". Os selvagens, que nao hipostasiam a alma nem a espécie, reconhecem a terra e Este texto descreve bem o"rapto" para o universal. A universalização de Deus estd sempre ligada
o animal, e os mortos, como socius. Nds já os rejeitamos, com base nos nossos princípios univer- a uma exclusao, a uma redução do humano ern sua originalidade. Quando Deus começa a parecer-
sais, do nosso meta-humanismo igualitário, que, ao integrar os Negros a partir de critérios brancos, -se com o homem, o homem já não se parece com nada. 0 que Feuerbach não diz, porque ainda
apenas estende o limite da sociabilidade abstrata, da sociabilidade de direito.É sempre a mesma está as voltas corn a religião,é que a universalização do Homem também se faz ao preço da exclusão
magia branca do racismo que funciona; ela apenas embranquece o Negro sob o signo do universal. de todos os outros (loucos, crianças etc.) em sua diferença. Quando o Homem começa a parecer-
2."Quanto mais se acentua o caráter humano da esséncia divina, e quanto mais se ye aumehtar -se corn o Homem, os outros já não se parecem com nada. Definido corno universalidade, como
a distancia que separa Deus do homem, tanto mais se vé a reflexão sobre a religião, a teologia, referencia ideal, o Humano, assim como Deus, é propriamente inumano e delirante. 0 que Feuerbach
negar a identidade e a unidade entre a essência divina e a esséncia humana, tanto mais se vé também não diz é que nessa operação de rapto, mediante o qual Deus capta o human° em seu
rebaixado tudo o que é humano ao sentido em que a consciencia do homem faz dele seu objeto. benefício, de tal maneira que o homem não é senão o negativo exangue de Deus, o pr6prio Deus,
E eis o motivo: se tudo o que hd de positivo na concepção que se faz do graças a uma mudança da direção da chama, morre.E que o Homem tambem está em vias de morrer
ser humano se reduzir
ao humano, então não se poderd deixar de ter do homem, objeto da consciéncia, uma concepção diante das diferenças inumanas (a loucura, a infância, a selvageria) por ele mesmo instituídas.
negativa e inumana. Para enriquecer a Deus, o homem deve fazer-se pobre etc." (Feuerbach, A 3. Agora que os conjuntos habitacionais populares parecem cemitérios, estes normalmente
Essência do Cristianismo). assumem forma imobiliária (Nice etc.). Inversamente, é admirdvel que, nas metrópoles americanas

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A EXTRADIÇÃO DOS MORTOS

A SOBREVIVÊNCIA, OU A MORTE EQÚIVALENTE É preciso acabar com a idéia de um progresso das religiões que vai do
animismo ao politeísmo e, mais tarde, ao monoteísmo, com a progressiva distin-
É justo dizer que os mortos, encurralados e separados dos vivos, nos con-
ção de uma alma imortal. É na medida da reclusão dos mortos que lhes é con-
denam, a nós, vivos, a umacaorte equivaler77-0>porque a lei fundamental da
cedida a imortalidade, um pouco como vemos crescersimultaneamente nas nossas
obrigação simbólica opera de todas as maneiras, para o bem ou para o mal.
sociedades a esperança de vida e a segregação dos velhos como associais.
Assim a loucura nunca é uma linha de diuisão [partage entre os loucos e os
Fbrque a imortalidade é progressiva, eis uma das coisas mais estranhas. No
normais, linha que a normalidade partilha [portage] com a loucura e pela qual
se define. Toda sociedade que interna seus loucos é uma sociedade investida
tempo: ela passa de uma sobrevivência limitada a sobrevivéncia eterna -
espaço social: a imortalidade se democratiza e passa de privilegio de alguns a
no
profundamente pela loucura, que, sozin-h-am toda parte, termina por se
trocar simbolicamente sob os signos legais da norre.
Esse Fongo traba-
direito virtual de todos. Mas isso e relativamente recente. No Egito, com lentidão,
certos membros do grupo (os faraós, depois os sacerdotes, os chefes, os ricos, os
lho da loucura sobre a socieda e que a poe em reclusao durou yams seculos,
iniciados da classe dominante), em função do seu poder, se apartam como imor-
e hoje os muros do asilo caem, não por alguma tolerancia miraculosa, mas
tais, não tendo os outros direito a mais do que à morte e ao duplo. Por volta do
porgue o trabalho de normalizaçao dessa sociecfãUpela loucura esta conclUi-
do - a loucura tornou-se ambiente, sendo-1 e impedida a permanéncia em,
algum lugar. Há uma reabsorção do asilo no seio do campo social porque a
ano 2.000 a.C., todos alcançam a imortalidade: trata-se de uma espécie de con-
quista social, talvez conseguida com muita luta; sem fazer história social/kg-do,
imagina-se muito bem, no Egito das Grandes Dinastias, revoltas e movimento
normalidade atingiu o ponto perfeito no qual apresenta as características do
sociais tendo por reivindicação o direito à imortalidade para todos.
asilo, porque o vírus da reclusão passou para todas as fibras da existéncia
Trata-se pois, desde o começo, de um emblema do poder e de transcendên-
"normal".
cia social. Onde, nos grupos primitivos, não há estruturas de poder politico, tam-
Assim ocorre com a morte. A morte nada mais é, afinal, do que a linha
bém não há imortalidade pessoal. Uma alma "relativa", uma imortalidade "restrita"
demarcação social que separa os "mortos" dos "vivos": logo, ela afeta igualmen-
corresponde em seguida, nas sociedades menos segmentárias, a uma transcen-
te uns e outros. Contra a ilusão insensata dos vivos de que querer vivos com a
déncia relativa das estruturas de poder. Mais tarde, a imortalidade se generaliza e
exclusão dos mortos, contra a ilusao de reduzir a vida a uma mais-ualia abso-
eterniza com as sociedades despóticas de transcendéncia total do poder,os Gran-
lece a equivaléncia entre a vida e a morte -
luta ao eliminar dela a morte, a lógica indestrutível da troca simbolica restabe-
na fatalidade indiferente da
sobrevivéncia. A morte reprimida na sobrevivéncia. A vida não é mais, segundo
des Impérios. É de início o rei ou o faraó que se beneficia dessa promoção;
depois, num estágio mais avançado, o próprio Deus, a imortalidade por excelén-
cia, de onde procede, por redistribuição, a imortalidade para cada um. Mas essa
o bem conhecido refluxo, do que uma sobrevivéncia determinada pela morte.
fase do Deus imortal, que coincide com as grandes religiões universalistas e sin-
gularmente com o cristianismo, já é a de uma abstração muito grande do poder
0 GUETO DE ALÊM-TUMULO social, no Império Romano. Se os deuses gregos são mortais, é que eles estão
ligados a uma cultura específica, e ainda não universal.
Paralelamente a segregação dos mortos, torna-se mais amplo o conceito Os próprios primórdios do cristianismo não tinham relação com a imortalida-
de imortalidade.porgue o além-morte, esse estatuto iminente que é a marca da de, que é uma aquisição tardia. Os Padres da Igreja admitem ainda a anulação
"alma" e das espiritualidades "superiores", nao e senao a afabulaçao que reco- provisória da alma na espera da ressurreição. E mesmo essa idéia de ressurreição,
bre a extradição real dos mortos e a ruptura da troca simbólica com eles. quando São Paulo a prega,é objeto de mofa da parte dos pagãos, mas também dos
Quando estdo presentes, diferentes mas vivos e parceiros dos vi7s em múlti- cristãos,e os Padres da Igreja lhe opõem profunda resisténcia.NoAntigoTestamento
plas trocas, os mortos não tém necessidade de ser imortais, nao e necessário (Daniel), a ressurreição só é prometida a quem não tiver recebido em vida retribui-
9 ue o sejam, porque essa qua idade fantastica a a aria to a reciprocidade. Só ção em bem ou em mal.O além-vida,a sobrevivencia, não passa do saldo de todas
quando são excluídos pelos vivos os mortos se tornam docemente imortais, e as contas, ele só existe em função do resíduo do que não é trocado em vida. Belo
essa sobrevivéncia idealizada não passa da marca do seu exilio social. exemplo da alternativa pior que é a ressurreição ou a imortalidade diante da pos-
sibilidade simbólica do grupo arcaico de acertar todas as suas contas imediatamen-
e na França por yews também, Os cemitérios tradicionais constituam os unicos espaços verdes, ou te, de resgatar toda a sua dívida simbólica sem remeté-la a uma vida ulterior.
vazios, no gueto urbano. O fato de o espaço dos mortos ser o único ambiente vivível na cidade diz Na origem emblemática do poder, a imortalidade da alma funciona ao longo
muito sobre a inversao de valores na necrópole moderna. Em Chicago, as crianças brincam nele,
os ciclistas pedalam, os namorados se abraçam. Que arquiteto se atreveda a inspirar-se nessa
do cristianismo como mito igualitarista, como democracia do além diante da
uerdade do atual dispositivo urbano para conceber uma cidade a partir dos cemitérios, de terrenos desigualdade mundana ante a morte. Isso não passa de mito. Mesmo na versão
vagos e espaços "malditos"? É verdade que isso seria a morte da arquitetura. cristã mais universalista, a imortalidade s6 pertence a todo ser humano de direito.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A EXTRADICAO DOS MORTOS

De fato, ela é concedida em conta-gotas, ela permanece o apanágio de uma


cultura e, no interior desta, de uma certa casta social e politica. Os missionários
gico - é a repressão da morte, e é social, no sentido de ser ela que opera a
virada rumo à socialização repressiva da vida.
terão algum dia acreditado na alma imortal dos indfgenas? A mulher tinha de fato Historicamente, sabe-se que o poder sacerdotal se funda no monopólio da
alma no cristianismo "clássico"? E os loucos, as crianças, os criminosos? Com morte e no controle exclusivo das relações com os mortos4. Os mortos são o
efeito, voltamos sempre ao mesmo ponto: só os poderosos e ricos têm alma. A primeiro dominio reservado e restitufdo à troca por uma mediação obrigatória: a
desigualdade diante da morte, social, polftica, econômica (expectativa de vida, dos padres. 0 poder se instala nessa barreira da morte. Ele vai alimentar-se depois
prestigio dos funerais, glória e sobreviVência na memória dos homens) não de outras separações ramificadas ao infinito: a da alma e do corpo, do masculino
senão uma recaida da discriminação fundamental: uns, os únicos verdadeiros e do feminino, do bem e do mal etc., mas a separação primeira é a da vida e da
"seres humanos", té'm direito à imortalidade e os outros o te'rn somente à morte. morte5.Quando se diz que o poder"sustérn a barra", não se está empregando: ele
Nada mudou profundamente desde o Egito das Grandes Dinastias. essa barra entre a vida e a morte, o decreto que interrompe a troca entre a vida
Com ou sem imortalidade, dirá o materialista ingênuo, que importa? Tudo e a morte, esse pedágio e esse controle entre as duas margens.
isso existe apenas no imaginário. Sim, é apaixonante ver que a discriminação dessa mesma maneira que o poder se instituirá mais tarde entre o sujeito
social real se funda nisso, e que não há outro lugar, nem mais eminente, em e seu corpo separado, entre o indivíduo e o corpo social separado,entre o homem
que se marquem o poder e a transcendência social, do que o imaginário. 0 e seu trabalho separado:na cesura surge a instância de mediação e de representa-
poder econômico do capital não é menos fundado no imaginário do que o das ção. Mas é preciso perceber que o arquétipo dessa operação é o que separa um
Igrejas. Ele é apenas sua secularização fantástica. grupo dos seus mortos, ou cada um de nós hoje de sua própria morte.Todas as
Vemos também que a democracia nada altera aqui. Foi possfvel ao ho- formas de poder terão sempre um pouco desse odor ao seu redor, porque é na
mem bater-se outrora para obter a imortalidade da alma para todos, assim manipulação,na administração da morte que o poder se funda em última instância.
como gerações de proletários lutaram para obter a igualdade dos bens e da na suspensão entre uma vida e seu próprio fim, quer dizer, na produção
sobrevive-ncia -
cultura. Mesmo combate, uns pela sobrevivência do além e os outros pela atual
mesma emboscada: sendo a imortalidade pessoal de alguns
resultante, como vimos, da fratura do grupo, de que serve reivindicá-la para
de uma temporalidade literalmente fantástica e artificial (porque toda vida já
está lá a cada instante, com sua própria morte, isto é, sua finalidade realizada
no instante mesmo), é nesse espaço esquartejado que se instalam todas as
todos? Trata-se apenas de generalizar o imaginário. A revolução só pode consis- instâncias de repressão e de controle. 0 primeiro tempo social abstrato instala-
tir na abolição da separação da morte, e não na igualdade da sobrevivência.
-se nessa ruptura da unidade indivisfvel da vida e da morte (bem antes do
A imortalidade é só uma espécie de equivalente geral ligado à abstração
tempo de trabalho social abstrato!). Todas as futuras alienações, separações,
do tempo linear (ela toma forma à medida que o tempo se torna uma dimen-
abstrações, que serão as da economia politica denunciadas por Marx, se enraf-
são abstrata vinculada ao processo de acumulação da economia polftica e
zam nessa separação da morte.
abstração da vida propriamente dita).
A morte subtrafda à vida é a própria operação do econômico a vida -é
residual, doravante legfvel em termos operacionais de cálculo e de valor. Como
DEATH POWER
emergência da sobrevivência pode, portanto, ser analisada como a ope-
em 0 Homem que Perdeu sua Sombra (Chamisso): uma vez perdida a sombra
(a morte roubada), Peter Schlemihl torna-se rico, poderoso, capitalista
pacto com o Diabo nunca é mais do que o pacto da economia polftica.
o -
A
ração fundamental do nascimento do poder. Não só porque esse dispositivo vai
permitir a exigência do sacriffcio desta vida aqui e a chantagem da recompen-
A vida entregue à morte -
essa 0" a operação do simbólico.

sa no outro - toda a estratégia das castas sacerdotais porém, de modo mais


profundo, pela instalação de um interdito da morte e, simultaneamente, da
instãncia que vigia esse interdito da morte: o poder. Abalar a união entre os 4. As heresias sera) sempre o requestionamento desse "Reino do Além" para estabelecer o
mortos e os vivos, abalar a troca entre vida e morte, desvincular a vida da Reino de Deus hic et nunc. Negar o desdobramento da vida e da sobrevivencia, negar o aquém-
morte e atingir a morte e os mortos com um interdito: eis todo o primeiro ponto -mundo, é negar também o corte com relação aos mortos e, portanto, a necessidade de passar por
uma instancia intermediária para estabelecer relações corn eles. E o fim das Igrejas e do seu poder.
de emergência do controle social. 0 poder só é possfvel se a morte já não 5 Deus é o que mantém apartados o significante e o significado, o bem e o mal, é ele que
estiver liberta, se os mortos forem postos sob vigilância, esperando a futura mantém separados o homem e a mulher, os vivos e os mortos, o corpo e o espírito, o Outro e o
reclusão da vida inteira. Essa é a Lei fundamental, e o poder é guardião dos
portões dessa Lei. A repressão fundamental não é das pulsões inconscientes, de distintiva-
Mesmo etc.-- de modo mais geral,é ele que mantém a separação entre os pólos de toda oposição
e, portanto, também entre os inferiores e os superiores, o Branco e o Negro. Quando
a razão se faz política, isto é, quando a oposição distintiva se resolve em poder e pende em favor
uma energia qualquer, de uma libido, assim como não tem caráter antropoló- de um dos termos, Deus estit sempre desse lado.

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da Morte
A Troca
na Ordem Primitiva

0 --
s selvagens
.
o fato biologico -
não possuem conceito biológico da morte. Ou melhor:
morte, nascimento ou doença tudo o que
é da natureza e que recebe de nós um es uto irt-77-iv.oTC
necessidade e de objetividade, para eles simplesmente não existe. Trata7se da
desordem álosolutajalaue isso não .1 - ser trocado simbLicamente, e o que
-,

não pode ser trocado simbolicamente constitui um perigo mortal para o gru7
po'. Sao for as irreconciliáveis, sem expiação, feiticeiras, hostis, que circu am
ao re or alma e do corpo, que espreitam o vivo e o morte, as energias
defuntas e cósmicas que o grupo não conseguiu dominar na troca.
Nós dessocializamos a morte ao revert&la As leis bioantropológicas, ao lhe
atribuir a imunidade da ciência, ao autonomizá-la como fatalidade individual.
Mas a materialidade física da morte, que nos paralisa devido ao crédito "objetivo"
que lhe damos, não faz os primitivos parar. Eles nunca "naturalizaram" a morte,
sabem que ela (assim como o corpo, como o evento natural) é uma relação
social, que sua definição é social. Ponto no qual são bem mais "materialistas" do
que nós, visto que a verdadeira materialidade da morte para eles, tal como a da
mercadoria para Marx, está ern sua forma, que é sempre a de uma relação social.
Todo o nosso idealismo, em contraste, converge para a ilusão de uma materiali-
dade biológica da morte: discursos da "realidade", que é na verdade a do imagi-
nário, e que os primitivos superam na intervengão do simbólico.
Esse tempo forte da operação simbólica é a iniciação. A iniciação não visa
conjurar nem "superar" a morte, mas articulá-la socialmente. Assim a descreve R.
Jaulin em La Mort Sara: o grupo dos anciãos"devoram os koys" (jovens candidatos

1. Para nós,pelo contrário, tudo aquilo que se troca simbolicamente constitui um perigo mortal
para a ordem dominante.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A TROCA DA MORTE NA ORDEM PRIMITIVA

â iniciação), que morrem "simbolicamente" a fim de renascer.Não devemos sobre- nascimento é uma espécie de morte. E o cristianismo não faz senão, com o
tudo entendê-la no nosso sentido degradado, mas no sentido de que a sua morte batismo, circunscrever por meio de um sacramento coletivo, um ato social, esse
se torna o contexto de uma troca recfprocatantayinica entre os ancestrais e os evento mortal que é o nascimento. 0 evento da vida, se não for resgatado, expia-
vivos e,em lugar de uma separação, instaura-se uma relação social entre os parcei- do, por um simulacro coletivo da morte, é uma espécie de crime. A vida só é um

-
ros, uma circulação de dádivas e contradádivas tão intensa quanto a circulação
de bens preciosos e de mulheres jogo incessante de respostas em que a morte
já não pode instalar-se como fim ou como instância. Mediante a oferenda da
benefício em si na ordem contábil do valor. Na ordem simbólica, a vida, assim
como todas as outras coisas, é um crime se sobrevérn unilateralmente se não
resgatada e destruída, dada e devolvida,"devolvida" à morte. É a iniciação que
-
bolinha, o irmão dá a mulher a um morto da família, a fim de fazê-lo reviver. Por apaga esse crime ao fazer coincidir o evento separado da vida e da morte num
meio do alimento, o morto é incluído na vida do grupo. Mas a troca é recfprOca. mesmo ato social de troca.
0 mono dá sua mulher, a terra do clã, a um vivo de sua família, a fim de reviver
ao assimilar-se a ele e de fazê-lo reviver assimilando-o a si.0 momento importante
é a mode), pelos moh (os sumos sacerdotes), dos koy (os iniciados), que são SIMBÓLICO / REAL / IMAGINÁRIO
devorados pelos ancestrais; depois, a terra os dá à luz tal como sua mãe os deu 0 simbólico não é um conceito nem uma instância ou categoria e tam-
luz. Depois de "mortos", os iniciados ficam entregues aos seus pais iniciáticos, ouco estruw ra"ET troca e uma rela .ão social que eua o real
"culturais", que os instruem, os curam e os formam (nascimento iniciático). ao firn, que resolve o real e, ao mesmo tempo, a oposigao en re o real e o
Está claro sue a inicia ão co do d a troca onde só
havia ato bruto: da morte natural, aleatória e irreversível, passa-se a uma morte 0 ato iniciático é o contrário do nosso princípio de realidade.Ele mostra que
Sda e recebida,logo, reversível na troca sociaL "solúvel" na-troca. Nesse mes- a realidade do nascimento e da morte advém apenas da separação entre o nas-
rno movimento, a oposigão entre o nascimento e a mode desaparei7MS
cimento e a morte. Que a realidade da própria vida advérn apenas da disjunção
também podem trocar-se sob as espécies da reversibilidade simbólica.A inicia- entre a vida e a morte. 0 efeito de real não é por conseguinte,em toda parte, mais
cao e o momento crucial, o nexo sociaL_a camara escura na qual nascimenfo do que o efeito estrutural de disjungão entre os dois termos, e nosso famoso
e moixando de ser os termos da vida, reir-1717-1em um no ouff7----77-lao princfpio de realidade, com o que implica de normativo e de repressivo, não passa
rumo a al uma ;s mística, antes ara lazer do iniciado um verdaoeiro ser da generalização desse código disjuntivo em todos os níveis. A realidade da na-
soc .1 cnança não iniciada apenas nasceu biolo icamente, só tem am .
pai e uma m
evento simbolico
ra tornar-se um ser social, ela precisa passar pelo
nascimento/morte iniciáticos, é necessário que tenha feito
homem e a natureza -
tureza, sua "objetividade", sua "materialidade" Nièrn tão-9:5 da separação entre o
entre um corpo e um não-corpo, diria Octavio Paz. A
realidade do corpo, seu estatuto material, vem da disjunção de um princípio
o ercurso da vida e da morte para entrar na realidade simbólica da troca.
_ . espiritual, da discriminagão de uma alma e de um corpo etc.
a prova iniciática, não se trata de introduzir um segundo nasci-
mento que eclipsaria a morte. 0 próprio Jaulin se inclina a essa interpretação: a
0 simbólico é o que leva ao fim esse código da disjunção e aos termos
separados. g o utopia que leva ao fim as tópicas da alma e do corpo, do homem
sociedade "conjuraria" a morte, ou então lhe oporia "dialeticamente", na inicia-
e da natureza, do real e do não-real, do nascimento e da morte. Na operação
ção, um termo de sua invenção que a emprega e a "ultrapassa":"À vida e â morte
simbólica, os dois termos perdem seu princípio de realidade2. Más esse Princf-
que lhes são dadas, os homens acrescentaram a iniciação, por cujo intermédio
eles transcendem a desordem da morte".Fórmula a um só tempo plena de beleza
e de ambigüidade, porque a iniciação não se "acrescenta" aos outros termos, nem 2. Assim, não há distincão, no piano simbólico, entre os vivos e os mortos. Os mortos simples-

joga a vida contra a morte, rumo a um renascimento (desconfiemos de todos os mente tem outrb :estatuto, o que exige algumas precaucões rituais. Mas visível e invisível não se
excluem, trata-se de dpis estados possíveis da pessoa. A morte é um aspecto da vida. O canaque
que triunfam da morte!). É esse esfacelamento do nascimento e da morte que a que chega a Sidney e sofre o impacto inicial da presença daquela multiddo logo explica a coisa
iniciação conjura e,com ele, a fatalidade conjugada que pesa sobre a vida quan- a si mesmo pelo fato de que, naquele pafs, os mortos andam entre os vivos, o que nada tem de
do ela se v'è esfacelada dessa maneira. Porque é então que ela se torna irreversi- estranho."Do Kamo" para os Canaque (M. Leenhardt:Do Kamo) é o "que vive", e tudo pode entrar
nessa categoria. Mais uma vez, vivo/não-vivo é uma oposição distintiva que se) nós fazemos e na
bilidade biológica, destino psíquico absurdo, é então que a vida é perdida de qual fundaniOs a-nosSa "ciéncia" e a nossa violência operacional.A ciéncia, a técnica, a produção
antemão, porque fadada a declinar com o corpo. Daí vem a idealização de um supõem essa separação entre o vivo e o não-vivo com a primazia deste ultimo, único a fundar a
dos termos,o nascimento (e sua duplicação na ressurreição) a expensas do outro, ciencia em todo o seu rigor (cf. J. Monod, 0 Acaso e a Necessidade). A "realidade" da ci(mcia e
a morte.Mas isso não passa de um dos nossos profundos preconceitos acerca do da técnica,é, também nesse caso, a da separacão entre o vivo e o morto. A própria finalidade da
ciência como pulsão, como pulsão de morte (desejo de saber) se inscreve nessa disjunção, me-
"sentido da vida". Porque o nascimento, enquanto evento individual irreversível, diante a qual o único objeto real é o objeto morto - isto é, relegado à objetividade inerte e
tão traumatizante quanto a morte. A psicanálise o disse de outra maneira: o indiferente, como o eram de infcio, antes de qualquer outra coisa, a morte e Os mortos.

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A ECONOMIA POLIncA E A MORTE A TROCA DA Mom NA ORDEM PRIMITIVA

pio de realidade nunca deixa de ser o imaginário do outro termo. Na disso- A TROCA INELUTÁVEL
ciacão homem/natureza, a natureza (objetiva, material) é somente o fraud- 0 evento real da morte refere-se ao imaginário. Onde esse imaginário cria
náric7ffo homem conceitializaLia_dessa_maneirá. Na dissociação masculi- uma desordem simbólica, a iniciacão restaura a ordem simbólica. A proibição
no/feminino, distinção estrutural e arbitrária que funda o princípio de "rea- do incesto faz o mesmo no dominio da filiacão: ao evento real, natural,"a-
lidade" (e de repressão) sexual, a "mulher" assim definida jamais deixa de -social", da filiação biológica, o grupo responde com um sistema de alianca e
ser o imaginario do homem. Cada termo da disjuncão exclui o outro, que de troca de mulheres. 0 essencial é que tudo (aqui as mulheres, ali o nasci-
se torna seu imaginário. mento e a morte) se torna disponível para a troca,isto é,passa a ser da jurisdi-
Assim acontece com a vida e a morte no sistema em que estamos: o preço cão do grupo. Nesse sentido, a proibicão do incesto é solidária e complemen-
que pagamos pela "realidade" desta vida, para como valor positivo,
o fantasma continuo da morte. Para nós, vivos definidos desse modo, a
morte é nosso imaginário3. Ora, todas as disjunções que fundam as diferen-
vivos e os ancestrais mortos -
tar da iniciação: numa, são os jovens iniciados que circulam entre os adultos
eles são dados e entregues e, por meio disso,
acedem a um verdadeiro estatuto social. Na outra, são as mulheres que circu-
tes estruturas do real (o que nada tem de abstrato: é também o que separa lam: também elas só acedem a um verdadeiro estatuto social uma vez dadas

relacão -
professor e aluno e que funda seu saber como princípio de realidade de sua
e, assim por diante, em todas as relações sociais que conhece-
mos) têm seu arquétipo na disjunção fundamental entre a vida e a morte.
e recebidas, ern vez de guardadas pelo pai ou os irmãos para seu próprio uso.
"Aquele que nada dá, nem sua filha ou irmã, está morto:'5
Aproibkã co_joincesto está na base da alianca dos vivos entre si. A inicia-
Eis por que, seja qual for o campo de "realidade", cada termo separado, para ção está na base da alianca entre os vivos e os mortos. Eis o fato fundamental
o qual o outro é seu imaginário, é assombrado por aquele como por sua pró- que nos seoam rinç_prjaiitivos: a troca não cessa com a vida. A troca o si5lT
pria morte. neim_2,5_111¡neimrtos (nem com 8
Logo, em todo lugar o simbólico é aquilo que leva ao fim o fascínio res- pedras ou com os animais). a- uma lei absoluta: a obrigação e a
pectivo do real e do imaginário, a esse fechamento do fantasma que a psica- reciprocidade sac) intransponiveis.Ninguém pode furtar-se a e a, no tocan e a
nálise reelabora mas no qual, ao mesmo tempo, ela se fecha, no sentido de que ou a quem quer que seja, sob pena de morte. A___m_ortérião é, por outro
lado, mais do que isso: ver-se ex ulso do ciclo das trocas simbOrcas
instituir, por meio de consideráveis disjuncões (processos primários/processos
secundários, I.C.S./C.S. etc.), um princípio de realidade psíquica do I.C.S.
inseparável de seu princípio de realidade psicanalítica (o I.C.S.como princípio
- Mauss, em Sociologie et Anthropologie:"Efeito físico no indivíduo da idéia de
morte sugerida pela coletividade"6.)
Mas também seria possível dizer que isso não nos separa dos primitivos, e
de realidade da psicanálise!) aquilo a que o simbólico não pode senão
que é exatamente a mesma coisa para nás. Através de todo o sistema da eco-
levar ao fim também a psicanálise4.
nomia política a lei cia troca simb6lica não teve alterado um único ponto:
d7-=
Em oposição a isso, os primitivos não estão mergulhados, ao contrário do que se pretende, no
"animismo", isto 6, no idealismo do vivo, na magia irracional das forças: eles não privilegiam nem
em nos meio -
continuarnos a trocar corn os mortos, ainda que negados e proibidos
simp esmen e pagamos com a nossa propria mbriontinua
e_Lornanossa an ústia mortal a ngI.p_ILLIa_Liarocassii)6licascomeles.ocorre
um nem outro termo, pela simples razão de que simplesmente não fazem essa separação.
3. Essa regra vale igualmente na esfera politica.Assim, os povos do Terceiro Mundo (árabes, profundamente o mesmo com relacão à natureza inanimada e com os animais.
negros, indianos) representam o papel de imagindrio da cultura ocidental (tanto enquanto objeto/ S6 uma teoria absurda da liberdade pode fingir que estamos quites com eles;
ciimplice do racismo como na qualidade de suporte da esperança revolucionária). Inversamente,
a dívida é universal e incessante, jamais conseguiremos "pagar" por toda essa
nós, o Ocidente tecnológico e industrial, constituímos seu imaginário, aquilo que sonham em sua
separação. Eis o alicerce no qual se funda a realidade da dominação mundial. liberdade que tomamos. Esse enorme contencioso, composto por todas as
4. Claro que o real psicanalítico (lacaniano) já não é dado como substãncia nem como
referencial positivo: ele é o objeto perdido para sempre, inencontrável do qual, no limite, nada há
a dizer. Ausencia circunscrita na grade da "ordem simbólica", esse real consen/a, entretanto, todo 5. Inversamente, o que não pode ser dado também morre ou cai na necessidade de ser Den-
dido. A prostituiçao se enraíza aí, como resíduo da troca/dddiva e forma primeira da troca econõ-
ao traço, a instãncia do real se desfaz-
o encanto de um jogo de esconde-esconde com o significante que o sublinha. Da representação
mas não por completo.Aí reside toda a diferença entre
uma tópica inconsciente e a utopia.A utopia ku desaparecer o real, ainda que como ausencia ou
mica. Ainda que o salátrio da prostituta esteja de início no contexto arcaico, sendo um "salário
sacrifical", ele inaugura a possibilidade de outro tipo de troca.
como falta. 6. Cf. também Do Kamo, de M. Leehardt: "Não há nenhuma idéia de anulação na morte. O
Há pelo menos ern Lacan algo além do contra-senso idealista de Levi-Strauss. Para este, na Canaque não pode confundir morte e nadalálvez encontremos ern seu meio uma idéia próxima
Antropologia Estruturara função do universo simbólico é resolver no piano ideal aquilo que do nada: 'seri'. Ela indica a situação do homem enfeitiçado ou maldito, abandonado poo.-577us
vivido como contraditório no plano real". 0 simbólico aparece aqui (o que não está longe de sua ascendentes, os bao, um homem na perdição, Ele se sente inexistente e padece de uma
acepção mais degradada) como uma espécie de função ideal de compensação,de mediação entre verdadeira ruína. O nada é para ele, no máximo, uma negação social, não tendo coisa alguma em
um real e um ideal separados. Na verdade, o simbólico é simplesmente rebaixado ao imaginário. comum com a idéia que o Canaque faz da morte".

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A TROCA DA MORTE NA ORDEM PRIMMVA

obrigações e reciprocidades que denunciamos, é propriamente o inconsciente. pais mortos, os ancestrais e à mãe-terra do clã.A instancia do Pai não aparece,
Não há a minima necessidade de libido, de desejo, de energia e de vicissitudes ela é resolvida nesse contexto na coletividade de irrndos rivais (iniciados)."A
de pulsões para dar conta dele. 0 I.C.S.6 social no sentido de ser composto por agressividade se desloca em linha horizontal, como rivalidade entre os irmãos,
tudo o que não pôde ser trocado social ou simbolicamente.Assim sucede com
a morte: ela se troca de qualquer maneira - na melhor das hipóteses, ela se
trocará segundo urn ritual social, como entre os primitivos, e, na pior, será
supercompensada por uma solidariedade muito grande" (Ortigues) (por que se
"deslocará"? Como se ela devesse "normalmente" dirigir-se ao Pai?). Ao princi-
pio de Édipo, que corresponde ao aspecto negativo do interdito do incesto
resgatada num trabalho individual de luto. 0 inconsciente reside por inteiro na (interdito relativo a mãe imposto pelo pai), se op:5e, no sentido positivo, um
distorção da morte de um processo simbólico (troca, ritual) num processo principio de troca de irmãs pelos irmãos -é
a irmã, em vez da mãe, que está
econômico (resgate, trabalho, divida, indivíduo). Segue-se uma considerável no centro do dispositivo, e é no nivel dos irmãos e irmãs que se organiza todo
diferença em termos de enlevo: negociamos com os nossos mortos_sob as_ o jogo social das trocas. Logo, nada de triangulo edipiano dessocializado, nada
nossas espécies da melancolia, e os primitivos vivem corn os seus sob os aus- de estrutura familial fechada sancionada pelo interdito e pela Fala dominante
do Pai, mas um principio de troca entre pares fundado no desafio e na recipro-
picios do ritual e da festa.-
cidade - principio autônomo de organização social."0 surgimento do concei-
to de dádiva opera no seio de uma mesma faixa etária num clima de igualdade.
0 INCONSCIENTE E A ORDEM PRIMITIVA 0 sacrificio que a criança consente na nursery ern proveito de outra criança
Essa reciprocidade entre La vida e a morte, que se trocam num ciclo social não é da mesma ordem que a separação da mãe"
Portanto, tudo fala aqui de um principio social de troca oposto a um
em vez de se separarem nos termos da linearidade biológica 4
da repetição do
principio psiquico da interdição.Tudo fala de um processo simbólico oposto a
reflete tão violentamente nos vivos
hipótese do inconsciente.
-
fantasma, essa absorção cFo interdito que sePdra OS" ViVos e- Os -rnortos e que se
tudo isso põe em questão a própria um processo inconsciente. 0 que não emerge em parte alguma na ordem
primitiva, porque tudo é nela ventilado e resolvido socialmente, é a triode
"Desposar a mãe","matar o pai" -o que quer dizer isso? Eis o que per- biológica da familia, sobredeterminada psiquicamente, duplicada no aParelho
gunta E. Ortigues em ICEdipe africain."0 verbo desposar já não tem o mesmo
sentido nos dois contextos, não traz o mesmo conteúdo social e psicológico. ramente "simbólico": o falo -
psiquico pelo nó de fantasmas, sendo o todo coroado pelo quarto termo pu-
"rigorosamente necessário para introduzir a re-
lação no nivel da fala, e para dela fazer uma lei de reconhecimento reciproco
Quanto ao verbo "matar", aparentemente tão claro, teremos mesmo certeza de
entre os sujeitos". É com efeito aí que se inscreve para nós (ao menos na teoria
que não reserva surpresas? 0 que é então um "pai morto" num pais em que os
psicanalitica) o Nome do Pai, significante da Lei, único a introduzir na troca.
ancestrais são bem próximos dos vivos? É a totalidade que mudou e nos
obriga a examinar novamente o sentido de cada termo.
0 famoso truque da Fala do Pai que protege da fusão mortal e da absorção
pelo desejo da mãe. Fora do falo não há salvação. Necessidade dessa Lei e de
"Numa sociedade sujeita a lei do ancestral, lido há para o individuo ne-
uma_instancia simbólica que barra o sujeito, graças a qual se opera a repressão
nhuma possibilidade de matar esse pai sempre já morto e sempre ainda vivo
primária_que está na base da formação do inconseiente e que, por isso mesmo,
no costume dos Antigos...Tomar a si a morte do pai ou individualizar a cons-
faz o sujeito aceder ao seu próprio desejo. Sem essa- instancia ordenadora das
ciencia moral ao reduzir a autoridade paterna à de um mortal, de uma pessoa trocas, sem essa mediação do falo, o sujeito, incapaz de_repressão, sequer
substituivel,separável do altar dos ancestrais e do `costume',seria sair do grupo, c-hega ao simbólico e soçobra na psicose.
questionar os fundamentos da sociedade tribal. Eis por que se pode dizer que as sociedades primitivas são sociedades
Quando falamos da dissolução do complexo de Édipo, pensamos num
drama vivido individualmente. Mas que dizer disso numa sociedade tribal em
"psicóticas" -porque na realidade elas não conhecem ct operação desib Lei
nem a estrutura de repressão e de inconsciente disso decouente. Claro que isso
que a religião da lecundidade' e dos 'ancestrais' propõe como base explicita não jiassa- da nossa maneira feroz de as remeter à sua loucura mansa (a não
da tradição coletiva aquilo que, entre nós, o jovem Édipo está condenado a ser que vejamos ai o que começa a acontecer no próprio Ocidente psicanali-
viver em seus fantasmas pessoais?" tico, que a psicose poderia muito bem velar um sentido mais radical, uma
Assim, a "função simbólica" nas sociedades primitivas não se articula so- simbolicidade mais radical que a que nunca conseguimos entrever sob o signo
bre a lei do Pai e o principio de realidade psiquica individual, mas desde o da psicanálise). Sim, essas sociedades tern acesso ao simbolico7. Não, elas não
inicio sobre um principio coletivo, sobre o movimento coletivo das trocas. Na
iniciação, vimos como se resolviam, por meio de um processo social, as figuras
biológicas da filiação, para dar lugar aos pais iniciáticos -figuras simbólicas
que remetem ao socius, isto é, a todos os pais e mães do clã e, no limite, aos
7. Rmto no qual elas sac) bem menos psicóticas do que as nossas,as sociedades modernas,hs quais
reservamos amavelmente o qualificativo de "neuróticas",e que na verdade estão em vias de tornar-se"psi-
cOticas", nos termos da nossa própria definição, ou seja, prestes a perder totalmente o acesso ao simbólico.

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A ECONOMIA POLITICA E A MORTE A TROCA DA Mom; NA ORDEM PRIMITIvA

tëm acesso a ele pela intercessão de uma Lei imutável, cuja figura esboça a imaginário. É preciso escrever o Espelho do Desejo, tal como se escreveu o
própria ordem social, a do Pai, do Chefe, do Significante e do Poder. 0 simbó- Espelho da Produção.
lico não é af uma insteincia tal que o acesso a ele seja regido pela mediação Um exemplo: o canibalismo primitivo. Para além do alimentar, o problema
de um Palo, de uma figura mainscula na qual viriam encarnar-se todas as figu- o da "pulsão oral" de devorar, sobre a qual incidirá para nós um interdito
ras metonfmicas da Lei. 0 simbólico é o próprio ciclo das trocas,o ciclo do dar fundamental, talvez o mais fundamental, enquanto certos primitivos o transgre-
e o do restituir, uma ordem que nasce da própria reversibilidade e que escapa diriam livremente e realizariam seu "desejo" sem outra forma de processo.
a dupla jurisdição, tanto de uma instância psfquica reprimida como de uma Postulado: todo homem tem vontade de devorar o semelhante, e quando um
instância social transcendente8. time católico de rugby faz isso, por força das circunstâncias, na cordilheira dos
Quando os pais são trocados, isto é, quando são dados e recebidos, bem Andes, quando de um acidente de avião, o mundo fica abismado com essa
como transmitidos de uma a outra geração de iniciados na forma de ancestrais ressurgéncia divina de uma natureza que acreditávamos desaparecida. 0 pró-
já mortos e sempre vivos (o pai biológico é, por sua vez, imutável,só é possfvel prio papa a bendisse e perdoou, não com o fito de propagar o exemplo; mas
colocar-se em seu lugar, e sua figura simbólica, sua fala, é imutável, ela já não
trocada, é uma fala sem resposta) -
quando a mãe é dada pelos pais (é a
mesmo assim: não se trata de um crime absoluto -
e por qué, senão por
referéncia a uma natureza cujo sagrado (inconsciente e psicanalftico), cujo
terra dos ancestrais, cada vez reposta em jogo na iniciação), é recebida e sagrado libidinal está hoje numa concorrência vitoriosa com o sagrado divino
transmitida (é também a lfngua da tribo, a lfngua secreta à qual o iniciado tem e religioso? Os canibais não pretendem de modo algum viver em estado de
acesso), então todas as coisas, o pai, a mãe, a fala perdem seu caráter de natureza, ou de acordo com seu desejo; eles pretendem 'simplesmente, por
instâncias fatais indecifráveis ou mesmo de posições numa estrutura comanda-
da pelo interdito -
da mesma maneira como a morte e o nascimento perdem
seu estatuto de evento fatal, seu estatuto de necessidade e de lei no âmbito do
meio do canibalismo, uiver em sociedade. 0 caso mais_interessante é o da
ingestão dos seus próprios mortos.Eles rid() o fazem por necessidade vital nem
porque, a partir da morte daqueles, deixem de ter consideração; pelo contrário,
hiperevento simbólico da iniciação. eles o fazem a fim de render homenagem e evitar assim que, abandonados
Se se pode falar de sociedade sem repressão, mesmo inconsciente, não ordem biológica do apodrecimento, os mortos escapem à ordem social e se
de forma alguma para reencontrar alguma inocéncia miraculosa em que os voltem contra o grupo para persegui-lo. Essa devoração é um ato social, um ato
fluxos do "desejo" vagariam livremente, em que os "processos primários" se
atualizariam sem interdito -
uma ordem do desreprimido, idealismo do desejo
e da libido como o que assombra as imaginações freudo-reichianas, freudomar-
simbólico que visa manter um tecido de vfnculos com o morto ou com o
inimigo que é devórado -
de qualquer forma, como se sabe, aquele a quem
se come é sempre alguém de valor, não se come qualquer um e devorar a
xistas e até esquizonómades.Esse fantasma de um desejo e de um inconsciente pessoa é sempre sinal de respeito; precisamente por meio disso ela se torna
naturalizado (ou maquinizado) para ser "liberado": fantasma de uma liberda- sagrada. Nós menosprezamos o que comemos, só podemos comer aquilo que
de"que hoje se transferiu das esferas do pensamento racional para as do irracio- desprezamos, isto é, coisas mortas, inanimadas, anirn-âis ou vegetais destinados
nal, do grosseiro, do "primário", do inconsciente, sem por isso deixar de ser
uma problemática burguesa (nomeadamente a problemática cartesiana e kan-
assimilaçâo Hiológica -e
e assim que pensamos a antropofagia cornO-iTigna
cle_snenosprezOl, na perspeCtiva do próprio desprezo que devotamos pelo que
tiana da necessidade e da liberdade). comemos, pelo ato de comer e, por fim, pelo nosso pi-61)6o corpo. A devoracão
Rediscutir a teoria do inconsciente é rediscutir também a do Desejo, no primitivajido_collbece o ativo e o passivo, essa separação abstrata entre quern
sentido de que sempre se trata, no nfvel de toda uma civilização, do fantasma come e &Mk) clue é corai_do Entre_ Qs dois há um mundo dual,de honra e de
reativo de uma ordem do reacional. O Desejo, nesse sentido, é parte plena do reciprocidade, talvez seja mesmo um desafio e um duelo propriamente ditos,
nosso reino do interdito, sua materialidade sonhada faz parte do nosso imagi- que o comido pode eventualmente veneer (cf. todo o ritual de propiciação
nano. Seja dialetizado como o interdito, o que ocorre no Edipo e na psicaná- com relação ao alimento), em todo caso nunca uma operação mecanica de
lise, ou exaltado em sua produtividade bruta, como no Anti-Edipo, é sempre a absorção9.Nem uma absorção de"Jorças vitals", ao contrario do que a etnolo_gia,

objetiva, liberadora e por liberar -


promessa de uma naturalidade selvagem, o fantasma de uma energia pulsional
força de desejo herdeira, no campo movente
das revoluções, da boa e velha força de trabalho. Como se sabe, o efeito de
seguindo os autóctones, comumente afirma, numa pura e simples_p_assa&irn do
funcionalismo alimentar ao funcionalismo magico (quanto aos psicanalistas,
estes se atém ao fundonalismo psfquico da puISI6).Assim como não é ato de
força é sempre efeito da repressão, o efeito de realidade é sempre da ordem do subsisténcia, a devoração tambem não é transubstanciacao de maná em bene-
fício daquele que ingere; trata-se de um ato social, um processo sacrifical em
8. Porque o próprio "social" nao existe nas "sociedades prim itivas". O termo "prim itivo" estd hoje
liqUidado, mas é preciso fazer o mesmo coin o termo, tambem etnocêntrico,"sociedade". 9. Cf. a cena de canibalismo cio Jean de Lhéry (Les Indiens de la Renaissance).

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Ii
A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A TROCA DA MORTE NA ORDEM PRIMITIVA

que está em jogo todo o metabolismo do grupo. Nem realizacão de desejo nem Cada um dos "verbos" do inconsciente pressupõe uma cesura, uma ruptu-
assimilação de qualquer coisa, é pelo contrário um ato de gasto, de consumo ra, a barra que encontramos em toda parte na psicanálise, bem como a culpa
e de transmutação da carne em relação simbólica, transformação do corpo por ela desencadeada, o jogo e a repeticão do interdito. Os "verbos" do simbó-
morto em troca social. 0 mesmo vemos na Eucaristia, mas na forma de um lico pressupõem pelo contrário uma reversibilidade, uma transição cíclica in-
sacramento abstrato e na equivalencia geral do pão e do vinho.A parte maldita definida.
que se consome aqui já é consideravelmente sublimada e evangelizada. Mas sobretudo a diferença radical está na autonomização de uma esfera
Matar também não tem o mesmo sentido que tem para nós. 0 assassinato psíquica: está em jogo nas sociedades primitivas alguma coisa coletiva de que
ritual do rei nada tem que ver com o assassinato "psicanalítico" do pai.Por trás da só a repressão abre para nós a instancia do psíquico e do inconsciente. Logo,
obrigação de expiar pela morte o privilégio que o rei detérn,seu assassinato visa tudo separa o ritual do fantasma, o mito do inconsciente. Todas as analogias
também manter no fluxo das trocas, no movimento da reciprocidade do grupo, com base nas quais operam alegremente a antropologia e a psicanálise são
o que corria o risco de fragmentar-se e de fixar-se na pessoa do rei (estatutos, uma profunda mistificação.
riquezas, mulheres, poder). Sua morte prevenia esse acidente. Ai está a essencia A distorção que a psicanálise aplica as sociedades primitivas é da mesma
e a funcão do sacrifício:volatilizar o que corre risco de fugir ao controle simbólico ordem, mas em sentido inverso, daquela a que as submete a análise marxista.
do grupo e fazer recair sobre ele todo o peso do morto. É preciso, portanto, matar I. Para os antropomarxistas, a instancia do econômico também está pre-
o rei (de vez em quando) e, com ele, a lei e a espécie de falo que começava a sente e é determinante nesse tipo de sociedade, encontrando-se apenas oculta,
reger a vida social.Em conseqüencia, não é do fundo do inconsciente e da figura
do pai que vem o assassinato do rei, porém, pelo contrário, são o nosso incons-
latente, ao passo que em nosso meio é manifesta -
mas essa diferença
julgada secundária; a análise não se detérn nela e passa sem mais ao seu
ciente e suas peripécias que resultam da perda dos mecanismos sacrificais. Só discurso materialista.
concebemos o assassinato em economia fechada, como morte fantasmática do II. Para os antropopsicanalistas, a instancia do inconsciente também está
pai, isto é, como pagamento da repressão e da lei, como realização de desejo e
presente e é determinante nesse tipo de sociedade, encontrando-se apenas
como acerto de contas.0 ambiente é fálico, e é com base na repressão que entra
em jogo, com a morte do pai, a peripécia fálica da tomada do poder.Apresento
manifesta, exteriorizada, ao passo que entre nós é latente, reprimida
sem alterar seu
mas -
essa diferença não toca o essencial, e a análise continua dis-
aqui uma reescrita bem simplificada da morte e do assassinato como agressão
curso em termos de inconsciente.
reprimida, como violência equivalente à violencia da repressão. Na ordem primi-
Há dos dois lados o mesmo desconhecimento dessa diferença aparente-
tiva, o assassinato não é uma violência nem acting out do inconsciente, não
mente minima: para uma mesma estrutura, economia ou inconsciente, passa-
havendo, portanto, para os que matam nenhum benefício em termos de poder
-se de formações primitivas as nossas, tanto do manifesto ao oculto como no
nem aumento de culpa, ao contrário do mito freudiano. 0 próprio rei não a sofre:
sentido inverso.Só a nossa metafisica pode negligenciar esse detalhe, na ilusão
ele dá sua morte, ele entrega sua morte em troca, e esta é marcada pela festa, ao
de que o conteúdo permanece o mesmo. Isso é, porém, radicalmente falso:
passo que a morte fantasmática do pai é vivida na culpa e na angústia.
quando "se esconde por trás" de outras estruturas, o econômico simplesmente
Logo, nem matar nem comer tern o mesmo sentido que para nós: esses
atos não resultam de uma pulsão assassina, de um sadismo oral ou de uma
deixa de existir -ela não dá conta de nada, não é nada. Ao contrário, quando
se "manifesta", quando se torna uma estrutura manifesta e articulada, o incons-
estrutura de repressão que seja a única capaz de thes dar o sentido que tern
para nós hoje. São atos sociais que seguem em tudo o dispositivo da obrigação ciente deixa por inteiro de se-lo -
uma estrutura psíquica e um processo
fundado na repressão não tern sentido nessa outra configuração, ritual e não
simbólica. Entre outras coisas, eles jamais tern o sentido unilateral no qual se
exprime toda agressão que está na base da nossa cultura: matar comer
mato eu como - voce é assassinado voce é comido - -
todo o inconsciente e
eu
psíquica, de uma resolução aberta de signos.Tudo muda quando passamos do
latente ao manifesto, do manifesto ao latente'°. Isso ocorre porque, contra o
seus fantasmas (bem como sua teoria psicanalítica) sup:5m a aceitação dessa desconhecimento marxista e psicanalítico, é preciso retomar tudo a partir des-
disjunção, a repressão da ambivalencia, cujo resgate, seja em que forma for, no se deslocamento.
Perceberemos que a impossibilidade de delimitar, de especificar o econõ-
MATAR POSSUIR DEVORAR -
processo simbolico, leva ao fim a jurisdição do inconsciente.
todo o nosso inconsciente individual se
organiza em torno desses termos e dos fantasmas que os cercam, sob o signo
mico, é justamente o simbólico. E que a possibilidade de manifestar aberta-
mente qualquer coisa que seja o inconsciente, mas que por isso mesmo cessa
de se-lo, também é o simbólico.
da repressão.
DAR RESTITUIR TROCAR - tudo está envolvido entre os ptimitivos na troca co-
letiva manifesta ao redor desses tres termos, no ritual e nos mitos que o sustentam. 10. Quanto a esse ponto, cf. René Girard: Lo violence et le sacre, pp. 166-169.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A TROCA DA MORTE NA ORDEM PRIMITINTA

0 DUPLO E 0 DESDOBRAMENTO gua como ser vivo, capaz de resposta e de troca - eis o fim da separação e do
desdobramento, que não passa de equivaléncia submissa de cada fragmento
A figura do duplo, estritamente ligada à da morte e à da magia, evoca por
de linguagem ao código da língua.
si só todos os problemas da interpretação psicológica ou psicanalítica.
Sombra, espectro, reflexo, imagem, espírito material quase visível ainda, o
0 estatuto do duplo na sociedade primitiva (tanto os espíritos como os
deuses156tque estes também são outros reais, vivos e diferentes, e não uma
duplo primitivo passa em geral por prefiguração grosseira da alma e da cons-
esséncia idealizada) é por conseguinte o inverso da nossa alienação: o ser se
ciência, nos termos de um processo crescente de sublimação e de "hominização"
decomp6e aí em inúmeros outros, tão vivos quanto eles, ao passo que o sujeito
Teilhard de Chardin: rumo ao apogeu do Deus único e de uma moral univer-
unificado, individuado, só pode encarar a si mesmo na alienação e na morte.
sal. Ora, o Deus único tem tudo que ver com a forma de um poder político
Çom a interiorizacda_da_alma e da consciência (do princípio de identida-
unificado, e nada com os deuses primitivos. Do mesmo modo, a alma e a
de e de equivaléncia a si mesmo),o sujeito sofre um verdadeiro enclausuramen-
consciéncia tém tudo que ver com um princípio de unificação do sujeito, e
to, semelhante ao dos loucos no século XVII, descrito por Foucault. É então que
nada com o duplo primitivo. Pelo contrário, é o advento histórico da "alma" que
levará ao fim à troca abundante com os espíritos e os duplos - suscitando se perde o pensamento primitivo do duplo como da continuidade e da troc
e surge a assombração do duplo como descontinuidade do sujeito na loucura
.

diabolicamente nas entrelinhas da razão ocidental -


como contragolpe o aparecimento de outra figura do duplo, a que caminha
mas que, novamente,
tem tudo que ver com a figura ocidental da alienação, e nada com o duplo
e na morte. uem ve seu eu. o ye
alma irreconciliada o du.lo transfor I.
lo vampiro, sup o vingas o
em morte pre
,

sujeito,
gtis. o assombra no próprio coração de sua vida. E o Duplo s e DOS ievs (211_,.
primitivo. 0 entrelaçamento entre os dois sob o signo da psicologia (consciente
ou inconsciente) não passa de reescrita abusiva. eter STETerr-iiht, o homem que perdeu sua sombra - I

sempre inter retamos


essa sombra como metáfora da alma, da consciéncia, da terra natal etc. trial-
Não há entre o du lo e o primitivo uma relação de espelho ou de abstra ã
como ha entre o sujeito e seu principio espin ua a a ma_ou_entre o suieito_e seu
,
ravel idealismo: a narrativa é bem mais extraordinánor tomada sem me-
prcfpio moral e...psicaUgico, a consciência. Em nenhum lugar aflora essa razão t-áfora. N6 I. mos nossa sombra real, aquela produzida pelo sol,porque
ela II" .11 ara nós nao lamos mais, COM e a, e o nosso
indivisa, essa rela do de e uivalência ideal sue estrutura para nos o sujeito até o
seu desdobramento. 0 duplo não é de modo algum um ec op asma antastico,
s .0.08 nou mbra é já esquecer o proprio corpo.
uma ressurgéncia arcaica vinda das profundezas do inconsciente e da culpa (a Inversamente, quando a sombra aumenta e se torna força autonoma, como
que voltaremos (1apjs-j, assim coma_a_mortojo morto é o duplo do vivo, é ai também a imagem do espelho em "0 Estudante de Praga", trata-se de um efeito
ligura viva e familiar da morte), é um parceiro com o qual o primitivo tem uma do Diabo e da deméncia, é para devorar o sujeito que a perdeu, é a sombra
relaçao pessoal e concreta, uma relacao ambivalente, teliz ou infM1=Talon'ne assassina, imagem de todos os mortos rejeitados e esquecidos e que, o que
caso,certo tipo de troca visível (fala, gestual e ritual) com uma parte invisível dele bem normal, jamais aceitam não ser mais nada para os vivos.
mesmo sem qtw2ssa a ar se alienacao. torque o sujeito so e a lena o
- - Toda a nossa cultura é plena dessa assombração do duplo separado até na
forma mais sutil que lhe dá Freud em "Das Umheimliche" ("A Inquietante Estra-
como o somos
-mundo, como diria Nietzsche -
quando interioriza uma instãncia abstrata, vindo do aquém-

-
psicológico (o ego e o ideal do ego), religioso
(Deus e a alma), moral (a consciéncia e a lei) instãncia irreconciliável à qual
nheza" ou "A Inquietante Familiaridade"), na angústia que oculta as coisas mais
familiares, lá onde surge com a maior intensidade, porque na forma mais sim-
tudo o mais se subordina. Assim, historicamente, a alienação começa pela inte- ples, a uertigem da separacão. Ocorre, com efeito, um momento em que as
riorização do Senhor pelo escravo emancipado: não há alienação enquanto durar coisas próximas, que são como o nosso próprio corpo, e esse corpo mesmo,
a relação dual entre o senhor e o escravo. nossa voz, nossa imagem,caem na separação, na medida em que interiorizamos
0 primitivo tem uma relação dual, e não alienada, com seu duplo. Ele esse princípio de subjetividade ideal que é a alma (ou qualquer outra instância
pode de fato, o que nos é interdito para sempre, negociar com sua sombra (a ou abstração equivalente). É ela que mata a proliferação de duplos e de espí-
sombra real, sem metáfora) como com qualquer coisa original, viva, para falar ritos, é ela que os remete para os bastidores espectrais, larvais, do folclore
com ela, protegê-la, conciliar-se com ela, sombra tutelar ou hostil -
não um reflexo do "original" do corpo, mas sombra integral e, ao mesmo tem-
justamente inconsciente, tal como os deuses antigos transformados em demônios pelo
cristianismo - uerteufelt [demonizados].
po, não uma parte "alienada" do sujeito, mas uma das figuras da troca. É isso, E ainda é ela que, por um último artifício da espiritualidade, os psicologiza.
por outro lado, que descobrem os poetas na interpelação do seu pr6prio corpo De fato, a forma mais acabada da Verteufelung, da corrupção demoníaca e da
ou nas palavras da linguagem. Falar com o corpo e falar com a linguagem liquidação do duplo primitivo, é a interpretação em termos de psiquismo arcai-
numa modalidade dual, além do ativo e do passivo (o corpo me fala, a lingua- co.Projeção da culpa atribuída ao assassinato fantasmático do outro (do parente
gem me fala), autonomizar cada fragmento do corpo, cada fragmento de lín- próximo) nos termos da magia da onipoténcia das idéias (Allmacht der

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A EcoNomIA POLLEN:A E A moRTE A TRocA DA Mom NA ORDEM PRIMIT1VA

Gedanken),surgimento do reprimido etc., Freud:"A análise de diversos casos de te, a ordem psfquica em geral, torna-se a instancia intransponfvel que dá direi-
estranheza inquietante não levou à antiga concepção do mundo, ao animismo, tos de senhor feudal sobre todas as formações sociais e individuais anteriores.
concepcão caracterizada pelo povoamento do mundo com espfritos humanos Mas cujo imaginário também prolifera no futuro: se o inconsciente é o nosso
pela superestimacão narcfsica dos nossos próprios processos psfquicos, pela mito moderno e a psicanálise, seu profeta, a liberação do inconsciente (a
onipote-ncia dos pensamentos e pela técnica da magia nela baseada, pela atri- Revolução do Desejo) é sua heresia milenarista.
buição de forcas mágicas cuidadosamente graduadas a pessoas estrangeiras, e Ora, o pensamento do inconsciente, assim como o da consciência, ainda
também a coisas (maná), bem como por todas as criações mediante as quais é um pensamento da descontinuidade e da ruptura. Ele simplesmente substitui
o narcisismo ilimitado desse perfodo da evolução se defendia dos evidentes a positividade do objeto e do sujeito da consciência pela irreversibilidade de
protestos da realidade... Parece que, no curso do nosso desenvolvimento indi- um objeto perdido e de um sujeito que sempre escapa. Descentrado, esse
vidual, todos passamos por uma fase correspondente a esse animismo primiti- pensamento permanece não obstante na órbita do pensamento ocidental, com
vo, fase que, em todos nós, não se encerrou sem ter deixado vestfgios e resquf-
cios capazes de despertar, e que tudo aquilo que hoje nos parece "unheimlich"
suas"tópicas"sucessivas (céu/inferno - -
sujeito/natureza consciente/ incons-
ciente), em que ao sujeito desmembrado só resta sonhar com uma continuida-
atende à condicão de estar vinculado a esses resqufcios animistas de atividade de perdida». Ele jamais se junta à utopia -
que não é de modo algum o fan-
psíquica e de incitá-los a se manifestar" (A lnquietante Estranheza).
Eis a psicologia, nossa instância das profundezas, nosso aquém-mundo - tasma de uma ordem perdida, mas, contra todas as tópicas da descontinuidade
e da repressão, o pensamento de uma ordem dual, de uma ordem da reversi-
bilidade, de uma ordem simbólica (no sentido forte e etmológico do termo),
a onipotência dos pensamentos, o narcisismo mágico, o medo dos mortos", o
animismo ou psiquismo primitivo para o qual chamamos delicadamente a aten- em que, por exemplo, a morte não é um espaço separado no qual nem seu
cão dos selvagens, a fim de recuperá-los em seguida entre nós como "sedimen- próprio corpo nem sua sombra sejam para o sujeito espacos separados, em que
tos arcaicos". Freud não avaliava bem o que dizia ao falar de "superestimação não há morte que leve ao fim a história do corpo nem barra que leve ao fim
narcfsica dos nossos próprios processos psíquicos". Se há quem superestime a ambivalência do sujeito e do objeto, em que não há além (a sobrevivéncia
seus próprios processos psfquicos (a ponto de exportar a sua teoria, como o e a morte) nem aquém (o inconsciente e o objeto perdido), mas atualizacão
fizemos com a nossa moral e a nossa técnica, para o coração de todas as imediata, e não fantasmatizada, da reciprocidade simbólica. Esse pensamento
culturas),é precisamente o próprio Freud e toda a nossa cultura psicologfstica. utópico não é fusional: só a nostalgia engendra utopias fusionais. Aqui, nada
A jurisdicão do discurso psicológico sobre todas as práticas simbólicas (não só nostálgico nem perdido, separado ou inconsciente; tudo já está presente,
sendo tanto reversfvel como sacrificado.
as flagrantes, dos selvagens, a morte, o duplo, a magia, mas também sobre as
nossas, atuais) é ainda mais perigosa do que a do discurso econômico
da mesma ordem que a jurisdicão repressiva da alma e da consciéncia
ela
sobre
-
todas as virtualidade simbólicas do corpo.A reinterpretacão do simbólico pelo
psicanalftico é uma operacão redutora. Como vivemos sob o regime do incons-
ciente (vivemos mesmo? Não será este o nosso mito, que designa a repressão,
mas ainda participa dela -pensamento reprimido da repressão), cremos estar
habilitados a estender essa jurisdicão, a da história psfquica, como de resto a
da história propriamente dita, a todas as configuracões possfveis. 0 inconscien-

11. Do mesmo modo, diz R. Jaulin desse medo_Rrimitivo dos mortos:"Ao atribuir As forças da
morte intenções sociais, os Sara apenas prolongam logicamente tanto as observações bastante
difundidas como os dados inconscientes". Ele não tem nenhuma certeza sobre se os "dados"
inconscientes tem algo a fazer af. A assombração, a negatividade das forças da morte, explica-se
muito bem como instancia ameaçadora, a iminência dessas forças errantes uma vez que escapam
ao grupo e já não podem ser nele trocadas. De fato,"a morte se vinga". Porém o duplo hostil, a
morte hostil, nunca encarna send() o fracasso do grupo em preservar seu material de troca simbó-
lica, em repatriar para si mesmo, mediante um ritual apropriado, essa "natureza" que escapa com 12. Nao se deve analisar o neomilenarismo da liberação do inconsciente
como uma distorção
a morte e que então se cristaliza numa instancia maléfica que, no entanto, jamais rompe sua da psicanálise: ele é engendrado logicamente da ressurreicão imaginária desse objeto
perdido,
relação com o grupo, exercendo-a na forma de perseguição (o trabalho morto congelado no desse objeto "a" que a psicanálise esconde no ceme de sua teoria: esse real nunca encontrável
e
capital fixo tem para nõs o mesmo papel). lsso nada tem que ver com alguma projeção superegóica que lhe permite proteger as portas do simbólico. Esse objeto "a' é na verdade o verdadeiro
espelho
ou dispositivo inconsciente vindos do fundo da espécie... do Desejo, ao mesmo tempo que da psicanálise.

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A Economia Política
e a Morte

"Não se morre por ser preciso morrer: morre-se por


ser isso um hábito com o qual comprometemos um dia
a consciência, há não muito tempo."
Vaneghem.

"Den GOttern ist der Tod immer nur ein Vorurteil


Para os deuses, a morte nunca é mais do que um pre-
-
conceito:'
Nietzsche.

Amorte, como universal da condicão humana, só passa a existir


a partir do surgimento de uma discriminação social dos mortos.A
instituição da morte, tal como a da sobrevivéncia e da imortalida-
de, é uma conquista tardia do racionalismo político de castas de sacerdotes e
de Igrejas: é sobre a gestão dessa esfera imaginária da morte que eles fundam
seu poder. Quanto ao desaparecimento da sobrevivéncia religiosa, trata-se da
conquista, ainda mais tardia, de um racionalismo polftico de Estado. Quando
a sobrevivência se desfaz diante dos progressos da razão "materialista", ela
simplesmente transferiu-se para a própria vida: e é sobre a gestão da vida como
sobreuive'ncia objetiva que o Estado funda seu poder. Mais forte que a Igreja:
não 0- a partir do imaginário do além, mas do imaginário desta vida que cres-
cem o Estado e seu poder abstrato. É sobre a morte secularizada, a transcen-
dência do social, que ele se apóia, e sua forca lhe vem dessa abstracão mortal
que ele encarna. Assim como a medicina é a do cadáver, assim também o
Estado a gestão do corpo morto do socius.
.6

A Igreja estabeleceu-se de imediato sobre a separacão entre vida e sobre-


vivéncia, mundo terrestre e Reino do Céu.Ela vela de modo ciumento por isso;

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A ECONOMIA POLITICA E A MORTE
A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE

porque, se essa distancia desaparecer, seu poder se acaba. A Igreja vive da com o protestantismo, que, ao individualizar as consciéncias diante de Deus,
eternidade diferida (assim como o Estado vive da sociedade diferida, como os
partidos revolucionários vivem da revolução diferida: todos vivem da morte)
mas ela teve dificuldades para impõ-la. Todo o cristianismo primitivo e, mais
- ao desinvestir o cerimonial coletivo, acelera o processo de angústia individual
diante da morte.Também é dele que surgirá o imenso empreendimento moder-
no de conjuração da morte: a ética da acumulação e da produção material, a
tarde,o cristianismo popular,messiânico e herético,vive da esperança da parusia, santificação mediante o investimento, o trabalho e o lucro, que chamamos de
da exigéncia de realização imediata do Reino de Deus (cf. Mühlmann: Les modo geral o "espfrito do capitalismo" (Max Weber, A Ética Protestante e o
Messianismes révolutionnaires). As multidões cristãs não criam no princfpio
num céu nem num inferno do além: sua visão implica a resolução pura e
Espírito do Capitalismo) -
essa máquina de salvação de que a ascese
intramundana foi a pouco e pouco se retirando em proveito da acumulação
simples da morte na vontade coletiva da eternidade imediata. As grandes here- mundana e produtiva, sem mudar de finalidade: a proteção contra a morte.
sias maniquefstas, que ameaçarão os fundamentos da Igreja, atém-se ao mesmo
Como essa reviravolta do século XVI, a visão e a iconografia da morte da
princfpio, visto interpretarem este mundo como dualidade agonfstica, aqui em
baixo, dos princfpios do bem e do mal -
eles fazem descer o inferno na terra,
o que é tão fmpio quanto fazer que venha para cá o céu. Por terem devassado
Idade Media ainda é folcIórica e jubilosa. Há um teatro coletivo da morte, esta
não se acha oculta na consciéncia individual (e, mais tarde, no inconsciente).
A morte ainda alimenta no século XV a grande festa messiânica e igualitária
esse véu do além, elas serão ferozmente reduzidas, como o serão as heresias
espiritualistas do tipo de Sao Francisco de Assis e de Joaquim de Fiore, cuja
que foi a Dança da Morte: reis, bispos, prfncipes, burgueses, camponeses
todos iguais diante da morte,em desafio à ordem desigualitária do nascimento,
-
caridade radical equivalia a estabelecer desde esta terra uma comunidade total
da riqueza e do poder. Último grande momento em que a morte pode aparecer
e a tornar desnecessário o Jufzo Final. Os cátaros visavam um pouco demais,
eles também, à perfeição realizada, à indistinção entre espfrito e corpo, como mito ofensivo, como fala coletiva. Depois, como se sabe, a morte tornou-
-se um pensamento "de direita", individual e trágico2,"reacionário" com referén-
imanéncia da salvação na fé coletiva, o que era zombar do poder de morte das
Igrejas. Ao longo de toda a sua história, foi necessário à Igreja desmantelar a cia aos movimentos de revolta e de revolução social.
comunidade primitiva, por ter esta a tendência a tornar a salvação toda sua, A morte, nossa morte, nasce mesmo no século XVI. Ela perdeu a foice e
recorrendo à sua propria energia, na intensa reciprocidade que a perpassa. o relógio, perdeu os Cavaleiros do Apocalipse e os jogos grotescos e macabros
Contra a universalidade abstrata de Deus e da Igreja, seitas e comunidades da Idade Média.Tudo isso ainda era folclore, festa, por cujo intermédio a morte
praticam a "autogestão" da salvação, que consiste então na exaltação simbólica ainda era trocada, claro que não com a "eficácia simbólica" dos primitivos, mas
do grupo, podendo eventualmente ter por ponto culminante uma vertigem de ao menos como fantasma coletivo no frontão das catedrais ou nos jogos parti-
morte. A única condição de possibilidade das Igrejas é a liquidação incessante lhados do inferno. Pode-se até dizer: enquanto existe o inferno existe prazer. 0
dessa exigência simbólica -é
essa igualmente a condição de possibilidade do desaparecimento do inferno do imaginário é apenas o signo de sua interioriza-
Estado. Aqui entra em cena a economia polftica. ção quando a morte deixa de ser a grande ceifeira para tornar-se
Contra o deslumbramento terrestre das comunidades, a Igreja impõe urna a angústia da morte. A partir desse inferno psicológico, outras gerações de
economia política da salvação pessoal. De infcio por meio da fé (mas tornada sacerdotes e feiticeiros vão crescer, mais sutis e mais cientfficos.
relação pessoal da alma com Deus em vez de efervescéncia de uma comuni- Com a desintegração das comunidades tradicionais, cristãs e feudais, pela
dade) e mais tarde pela acumulação de obras e perfeições, isto é, uma econo- Razão burguesa e o sistema nascente da economia polftica, a morte deixa de
mia no sentido próprio do termo, com seu cálculo final e suas equivalências. ser partilhada. Ela é à imagem dos bens materiais, que circulam cada vez
É então, como sempre desde a emergéncia de um processo de acumulação1, menos, como nas trocas anteriores, entre parceiros inseparáveis (é sempre mais
que a morte desponta verdadeiramente no horizonte da vida. É então que o
Reino passa de fato para o outro lado da morte -
diante da qual cada um se
ou menos uma comunidade ou um clã que troca) e, cada vez mais, sob o signo
de um equivalente real. No modo capitalista, cada um está só diante do equi-
encontra só. Se o cristianismo traz consigo um fascfnio pelo sofrimento, a so-
lidãb e a rnorte, é na medida de sua universalidade, que implica a destruição
valente geral. Do mesmo modo como cada um se acha só diante da morte
e não por acaso. Porque a equivarência geral é a morte.
-
das comunidades arcaicas. Na forma acabada do universal religioso, assim
como na do universal econõmico (o capital), cada um se encontra só.
2. Outro pensamento individualista e pessimista da morte já existiu, no entanto, antigamente
É com o século XVI que a figura moderna da morte se generaliza. Com a
Contra-Reforma e os jogos fúnebres e obsessivos do Barroco, porém sobretudo
-o dos estóicos, pensamento aristocrático pré-cristão ligado, ele também, à concepção de uma
solidão pessoal da morte numa cultura cujos mitos coletivos estavam desmoronando. A mesma
lenfase é encontrada em Montaigne e Pascal, no senhor do castelo ou no jansenista de nobreza

1. A própria ciencia por ter ligação com a morte, porque amontoa o morto sobre o morto.
adquirida - alta burguesia enobrecida- na resignação humanista ou no cristianismo desespera-
do. Mos trata-se da interiorização moderna da angústia de morte que começa.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A ECONOMIA POLÍTICA E A MOUE

É a partir disso, da obsessão com a morte e da vontade de abolir a morte Nenhuma outra cultura conhece essa oposição distintiva entre a vida e a
por meio da acumulação, que esta última se torna o motor fundamental da morte em proveito da vida como positividade: a vida como acumulação, a
racionalidade da política econômica.Acumulação do valor e, em particular, do morte como vencimento.
tempo como valor, na fantasia de um adiamento da morte ao final de um Nenhuma outra cultura conhece esse impasse: uma vez que cesse a am-
infinito linear de valor. Mesmo quem não acreditava mais numa eternidade bivalência da vida e da morte,uma vez que cesse a reversibilidade simbólica da
pessoal acreditava no infinito do tempo como num capital em espécie que morte, entra-se num processo de acumulação da vida como valor- porém, ao
paga juros sobrecompostos. É o infinito do capital que passa ao infinito do mesmo tempo, entra-se no campo da produção equivalente da morte. Assim,
tempo, a eternidade de um sistema produtivo já não conhece a reversibilidade essa vida tornada valor constantemente pervertida pela morte equivalente. A
.6

da troca/dádiva, mas apenas a irreversibilidade do crescimento quantitativo. A morte se transmuta, a cada instante, em objeto de um desejo perverso. A pró-
acumulacão do tempo imp-6e a idéia de progresso, assim como a acumulação pria separacão da vida e da morte é investida pelo desejo.
da ciéncia imp:5e a idéia de verdade: nos dois casos, o que se acumula não se Só então se pode falar de pulsão de morte. Só então se pode falar de
troca mais simbolicamente e vem a ser_uma dimensão objetiva. No limite, a
objetividade total do tempo, como acumulação total, é a total impossibilidadé
- valente-
inconsciente, porque o inconsciente não passa da acumulação da morte equi-
aquilo que já não se troca e que só se pode avaliar no fanTasmd. 0
de trocar simbolicamente é a morte. Disso decorre o impasse absoluto da
economia política: ela deseja abolir a morte por meio da acumulacão
o próprio tempo da acumulação é o da morte. Nao há revolucão dialética a
mas - sim-bólico é o sonho invertido de um fim da acumulacão e de uma possível
reversibilidade da morte na troca. A morte simbólica, a que não sofreu essa
disjunção imagindria entre a vida e a morte que está na origem da realidade da
esperar ao final desse processo, trata-se de uma arremetida em espiral. morte, troca-se num ritual social de festa. A morte real/imaginária (a nossa) só
Já se sabia que a racionalizacão econômica das trocas (o mercado) é a pode ser resgatada num trabalho individual do luto, que o sujeito realiza sobre
forma social que produz a escassez (Marshal Sahlins: Stone Age Economics."A a morte dos outros e sobre si mesmo a partir de sua vida. É esse trabalho do
Primeira Sociedade Abastada"). Do mesmo modo, é a acumulacão indefinida luto que alimenta a metafísica ocidental da morte a partir do cristianismo, e
do tempo como valor, sob o signo da equivalencia geral, que implica essa alcancando o conceito metafísico de pulsão de morte.
escassez absoluta de tempo que é a morte.
Contradicão do capitalismo? Não, o comunismo é nisso solidário com a
economia política; ele também visa ã abolição da morte, nos termos do mesmo
fantasma de progresso e de libertacão, de acordo com o mesmo esquema
fantástico de uma eternidade de acumulação e de forcas produtivas.Só o total
desconhecimento da morte (a não ser como um horizonte hostil a ser vencido
pela ciéncia e a técnica) a vem protegendo até agora das piores contradicões.
Porque de nada vale desejar abolir a lei do valor se se desejar ao mesmo tempo
abolir a morte, isto é, preservar a vida como valor absoluto. É a própria vida
que deve sair da lei do valor e chegar a se trocar contra a morte. De tudo isso
os materialistas não têm a minima desconfianca, em seu idealismo de uma
vida expurgada da morte, de uma vida enfim "liberada" de toda ambivalêncie
Toda a nossa cultura rid() passa de um imenso estorco por dissociar a vida
da morte, conjurar a ambivalencia da morte em benefício exclusivo da repro-
ducão da vida como valor e do tempo como equivalente geral. Abolir a morte
o nosso fantasma, que se ramifica em todas as direcões: a da sobrevivencia
e da eternidade para as religiões, da verdade para a del-Ida, da produtividade
e da acumulacão para a economia.

3. A esse título, não há diferenca entre o materialismo ateu e o idealismo cristão, porque, se
se separam no tocante à questão da sobrevivUncia (mas a existencia ou não de alguma coisa

cípio fundamental: a vida é a vida; a morte é sempre a morte


cuidadosamente â distância uma da outra.
-
depois da morte não tem importância: that is not the question), eles concordam quanto ao prin-
isto e, na vontade de as manter

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A Pulsão
de Morte

Corn Freud, passa-se da morte filosófica, do drama da consciencia,


a morte como processo pulsional, inscrito na ordem inconsciente
- de uma metafísica da angústia A metafísica da pulsão. Tudo se
passa como se a morte, liberada do sujeito, encontrasse enfim seu estatuto de
finalidade objetiva: energia pulsional de morte ou princípio de funcionamento
psíquico.
Tornando-se pulsão, a morte não cessa de ser um fim (6, na verdade,
somente a partir disso: a proposicão da pulsão de morte significa uma extraor-
dinária simplificação das finalidades, visto que mesmo Eros se acha subordina-
do a ela), mas essa finalidade se aprofunda até inscrever-se no inconsciente.
Ora, esse aprofundamento da morte no inconsciente coincide com o aprofun-
damento do sistema dominante: a morte se torna, ao mesmo tempo,"principio
de funcionamento psíquico" e "princípio de realidade" de nossas formações
sociais, por meio da imensa mobilização repressiva do trabalho e da producão.
Ou ainda: Freud instala, com a pulsão de morte, o processo de repetiCão no
coração das determinações objetivas no momento em que o sistema geral da
produção faz sua passagem a pura e simples reprodução. Essa coincidencia é
extraordinária, por menos que, para além do seu estatuto metapsicológico, nos
interesse uma genealogia do conceito de pulsão de morte. Trata-se de uma
"descoberta" de ordem antropológica que se sobrepõe a todas as outras (e que
pode servir doravante de princípio universal de explicacão: pode-se imaginar
toda a economia politica como dominada e engendrada pela pulsão de morte)
ou esse conceito foi produzido num momento dado em relacão a essa configura-
ção do sistema? Neste ultimo caso, sua radicalidade é apenas a do próprio
sistema, e o conceito apenas sanciona a cultura de morte, dando-lhe o rótulo
de uma pulsão trans-histórica. Operacão que é a de todo pensamento idealista,

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PotincA A MORTE
A PuLsAo DE MoRTE
A EcoNomIA E

mas que nos recusamos a admitir quando se trata de Freud. Com Freud (tal Com Freud,tudo é bem diferente.Nada de sublimação,ainda que trágica,nada
como com Marx), a razão ocidental pararia de racionalizar, de idealizar seus de dialética possfvel com a pulsão de morte. Pela primeira vez a morte aparece
próprios princfpios, de idealizar a própria realidade por meio do seu efeito
crftico de "objetividade" ela esboçaria, enfim, as estruturas intransponíveis, classe ou a história: trata-se da dualidade irredutfvel de duas pulsões
visa() maniqueísta do
-
como princípio indestrutível, oposto a Eros. E isso sem levar em conta o sujeito, a
mundo,
Eros e
a do
Tanatos, que de certo modo desperta a antiga
pulsionais ou econômicas: por exemplo, a pulsão de morte como o eterno muito vigorosa, vinda
antagonismo infinito dos princfpios do bem e do mal.Visão
processo do desejo. Mas por que essa proposição não revelaria, ela também,
processos de elaboração secundária? dos cultos arcaicos em que vivia ainda a intuição fundamental de uma especifici-
verdade que, num primeiro momento, a pulsão de morte se contrapõe ao dade do mal e da morte.Visão insuportável para a Igreja, que levaria seculos para
pensamento ocidental. Do cristianismo ao marxismo e ao existencialismo: ou a exterminá-la e impor,enfim, a proeminência do princfpio do Bem (Deus), reduzin-
morte é francamente negada e sublimada ou é dialetizada. Na teoria e na prática do o mal e a morte a um princípio negativo dialeticamente subordinado ao outro
marxistas, a morte é desde o infcio vencida no ser de classe, ou então é integrada (o Diabo).Mas o pesadelo de uma autonomia do Arcanjo do Mal,Lúcifer (em todas
como negatividade histórica. De modo mais geral, toda a prática ocidental de as formas, das heresias populares e superstições, que sempre tenderam a tomar ao
domfnio da natureza e de sublimação da agressividade na produção e na acumu- pé da tetra a existencia de um princípio do mal e, portanto, a render-lhe culto, até
lação caracteriza-se como Eros construtivo: Eros faz com que a agressividade a magia negra e à teoria jansenista,para não mencionar os cátaros),sempre haveria
sublimada sirva a seus fins e, no movimento do vir-a-ser (também da economia de assombrar os dias e as noites da Igreja.A um pensamento radical da morte, ao
polftica), a morte é destilada como negatividade em doses homeopáticas. Nem pensamento dualista e maniqueísta,ela vai opor a dialética como teoria institucio-
mesmo os filósofos modernos do "ser-para-a-morte" revertem essa tencrencia: a nal e arma de dissuasão.E a história testemunhará a vitória da Igreja e da dialética
morte serve af de relance trágico ao sujeito, ela sela sua absurda liberdade'. (inclusiva da dialética "materialista"). Nesse sentido, Freud rompe de maneira bem
profunda com a metaffsica cristã e ocidental.
A dualidade dos instintos de vida e de morte corresponde mais precisa-
I. A dialética cristã da morte, resumida, ao ser levada a termo, pela fórmula de Pascal:"Importa
a todaa vida saber se a alma é mortal ou imortal" sucede o pensanlento humanista de um mente à posição de Freud em Aleut do Princípio de Prazer. Em 0 Mal-Estar na
nos estóicos e nos epicuristas (Montaigne Civilização, a dualidade tem como auge um ciclo apenas da pulsão de morte.
-
domínio racionalista
recusa da morte -da morte.Fste retoma forças no Ocidente
serenidade sorridente ou insensível), chegando ao século XVIII e a Feuerbach: Eros não é mais do que um imenso desvio da cultura na direção da morte, que
"A morte é um espectro, uma quimera, visto que só existe quando não existe". Introdução subordina tudo aos seus fins. Esta última versão, contudo, não volta a um
da razão,
que jamais resulta de um excesso da vida ou de uma aceitação entusiástica da morte:o humanismo
momento anterior a dualidade, rumo a uma dialética inversa. Porque só há
A essa superação formal e racionalista da mode sucede a razão dialética -
está em busca de uma razão natural da morte, de uma sabedoria apoiada pela ciéncia e as Luzes.
a morte como dialética do vir-a-ser construtivo, de rim.:OLskcujo objetivo e instituir unidades
negatividade e movimento do vir-a-ser. Hegel. Essa bela dialética redescreve o movimento ascen- sem_pre maiores, vincular e ordenar as energias". A isso, a pulsao de morte 5e
dente da economia política.
opõe em termos de duas caracterfsticas principais:
Ela é perturbada em seguida para dar lugar à irredutibilidade da morte, à sua iminéncia desfaz o
inescapável (Kierkegaard). A razão dialética perece em Heidegger: ela assume uma inflexão sub- I. Ela é aquilo que dissolve os agregados, desvincula as energias,
jetiva e irracional, a de uma metafísica do absurdo e do desespero, que não cessa contudo de ser discurso orgãnico de Eros para reconduzir as coisas ao inorganico, ao
é permitido,
ungebunden, de certo modo à utópica, por oposição as tópicas articuladas e
porque a morte é inescapável" (gala absurdum -
a dialética de um sujeito consciente, que aí recupera uma liberdade paradoxal:"Tudo
Pascal nao estava Lao longe desse pathos mo-
derno da mode). Camus:"0 homem absurdo fixa a mode com uma atenção apaixonada e esse
construtivas de Eros. Entropia da morte, negentropia de Eros.
II. Essa força de desagregação, de desarticulação, de defecção implica
uma
fascínio o liberta".
A angústia da mode como prova de verdade. A vida humana como ser-para-a-morte. Heidegger: contrafinalidade radical na forma de involução ao estado anterior e inorganico.
"0 Ser auténtico para a morte, isto é, a finitude da temporalidade, é o fundamento oculto da histo- A compulsão da repetição (Wierderholungszwang), ou "tende-ncia à
reprodu-
ricidade do homem" (0 ser e o tempo). A mode como "autenticidade": há, com relação ao sistema, passados que.não comportaram
ele mesmo mortífero, um vertiginoso lance maior, um desafio que é na verdade profunda obediéncia.
ção que faz surgir e reviver mesmo os eventos
a mfnima satisfação", é de início a tendencia de reproduzir esse não-evento
por
O terrorismo da autenticidade pela morte: ainda um processo secundário por meio do qual
a

consciéncia recupera sua "finitude" como destino mediante uma acrobacia dialética. A angústia excelência que foi, para todo ser vivo, o estado anterior e inorgãnico de coisa,
como princípio de realidade e de "liberdade", é ainda o imaginário, que substituiu ern sua fase
isto é, a morte. Logo, é sempre como ciclo repetitivo que a morte vem desman-
contemporãnea o espelho da imortalidade pelo da morte. Mas tudo isso é sempre muito cristão,
e convive constantemente com o cristianismo "existencialista".
telar as finalidades construtivas, lineares ou dialéticas, de Eros.Viscosidade -da
O pensamento revolucionário, por sua vez, oscila entre uma dialetização da morte como pulsão de morte, elasticidade do inorganico, que resiste em foda parte, vitorio-
negatividade e um objetivo racionalista de abolição da morte: desembaraçar-se dela como de um
obstáculo "reacionario", solidário corn o capital, graças à ciéncia e à técnica, rumo à imortalidade
do homem genérico, para além da história, no comunismo.A morte, como tantas outras coisas, não
samente, a estruturação da vida.
Por conseguinte, há de fato na proposição da pulsão de morte
destruidora da
- seja na
repetição
forma dual ou na contrafinalidade incessante e
passa de uma superestrutura cujo tipo sera regulamentado pela revolução da infra-estrutura.

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MORTE A PULSAO DE MORTE
A ECONOMIA POLITICA E A

algo de irredutível a todos os dispositivos intelectuais do pensamento ociden- A pulsão de morte é inc6moda porque não permite mais nenhum restabe-

tal. No fundo, o próprio pensamento de Freud atua como pulsão de morte no lecimento dialético. Aí reside sua radicalidade. Mas o panico que provoca não
universo teórico ocidental. Mas então, naturalmente, é absurdo atribuir-lhe um lhe confere a condição de verdade: é preciso se perguntar se ela mesma não
estatuto construtivo de "verdade": a "realidade" do instinto de morte sera em última instância uma racionalização da morte.
indefensável
mantê-la na
- para permanecer fiel à intuição da pulsão de morte, é preciso
hipótese desconstrutiva, quer dizer, assumi-la apenas nos limites da
É de início a convicção que fala em Freud (em outro lugar ele falará de
hipótese especulativa):"A convicção que adquirimos de que a vida psíquica
dominada pela tendéncia à invariância,à supressão da tensão interna provoca-
desconstrução que ela efetua sobre todo pensamento anterior, mas também, e
sobretudo, desconstruir a própria pulsão de morte como conceito.Seria impen- da pelas excitações (princípio de Nirvana - Barbara Low), essa convicção
sável - exceto como último subterfúgio da razão
construção fosse o único a escapar-lhe.
- que o princípio de des- constitui uma das mais fortes razões que nos fazem crer na existéricia de ins-
tintos de morte" (Alérn do Princípio de Prazer). Porque então todos os esforços
Aquilo contra que é preciso defender a pulsão de morte são todas as
tentativas de redialetizá-la num novo edifício construtivo. Marcuse é um bom de Weisssman etc.) -
de Freud por fundar seu instinto de morte na racionalidade biológica (análise
esforço positivista que de modo geral se deplora, um
pouco como a tentativa de dialetizar a Natureza em Engels, e que se convenciona
exemplo disso. Ele fala da repressão pela morte:"A teologia e a filosofia entram
hoje em competição para celebrar a morte como categoria existencial. esquecer por afeição a ele. E no entanto..."Se admitimos como fato experimen-
Desnaturando (!) um fato biológico para dele fazer uma essência ontológica, tal sem exceções que tudo aquilo que vive reverte ao estado inorgãnico, morre
elas atribuem uma bénção transcendental a culpa da humanidade que ajudam por razões internas, podemos dizer:o fim para o qual tende toda vida é a morte
a perpetuar" (Eros e Duilização). Isso no que se refere à "sobre-repressão". e, inversamente, o não-vivo é anterior ao vivo... Os guardiões da vida que são
Quanto à repressão fundamentar0 fato bruto da morte nega de uma vez por os instintos foram primitivamente satelites da morte:'
todas a realidade de uma existência não-repressiva". "Porque a morte é a É difícil distinguir aqui a pulsão de morte do positivismo para fazer então

negatividade final do tempo, ao passo que a fruição exige a eternidade... 0 uma "hipótese especulativa" sobre ela 6u um "puro e simples princípio de fun-
tempo não tem poder sobre o Id, mas o Ego está submetido a ele. A simples cionamento psíquico" (Pontalis, revista Arc). Não há por outro lado, nesse nível,
antecipação do fim inevitável, apresentado a cada instante, introduz um ele- uma verdadeira dualidade de pulsões: só a morte é finalidade. Mas é essa
mento repressivo em todas as relações Falemos do "fato bruto da finalidade que põe, por sua vez, o problema crucial, porque ela inscreve a
morte": nunca um fato bruto; só uma relação
oso é, poi-6m, a maneira como essa repressão
social é repressiva. 0 mais curi-
fundamental da morte vai trocar programação e código genético -
morte numa tal anterioridade, como destino orgãnico e psíquico, quase como
em suma, numa tal positluidade que, salvo
se acreditamos ma realidade científica dessa pulsão, não se pode torná-la mais
de signo com a "liberação" de Eros:"0 instinto de morte opera sob a direção
do princípio de Nirvana: ele tende para um estado... sem necessidades. Essa senão como mito.S6 se pode opor a Freud suas próprias palavras:"A teoria das
tendéncia do instinto implica que suas manifestações destrutivas diminuirão a pulsões e, por assim dizer, nosso mito. As pulsões são seres míticos, grandiosos
medida que se aproxime tal estado. Se o objetivo fundamental do instinto não em sua indeterminação" (Novas Conferéncias Introdutórias à Psicanálise).
é de cessação da vida, mas da dor, a auséricia de tensão, paradoxalmente o Se a pulsão de morte é um mito, interpretemo-lo. Interpretemos a pulsão
conflito entre a vida e a morte é tanto mais reduzido quanto mais a vida se de morte, e o próprio conceito de inconsciente, como mitos,e rid() levemos em
aproxima do estado de satisfação"... "Eros, liberado, da sobre-repressão, seria conta seu efeito nem seu esforço de "verdade". Um mito narra alguma coisa:
reforçado; e, assim reforçado, absorveria de alguma maneira o instinto de morte. não tanto em seu conteúdo como na forma de seu discurso.Suponhamos que,
0 ualor instintual da morte seria modificado" (p. 203). Logo, vai ser possível sob as espécies metafóricas da sexualidade e da morte, a psicanálise narre
mudar o instinto e triunfar diante do fato bruto, nos termos da velha e boa alguma coisa da organização fundamental da nossa cultura. É quando não
filosofia idealista da necessidade e da liberdade:"A morte pode voltar a ser um mais narrado, quando erige suas fábulas em axiomas, que o mito perde a
signo de liberdade. A necessidade da morte não refuta a possibilidade da libe- "indeterminação grandiosa" de que fala Freud."0 conceito é somente o resí-
ração final. Como todas as outras necessidades, ela pode ser tornada racional, duo de uma metáfora", dizia Nietzsche. Façamos, portanto, essa suposição so-
indolor".A dialética marcusiana implica, portanto,a total depreciação da pulsão bre a metáfora do inconsciente, sobre a metafora da pulsão de morte.
Eros a serviço da morte, toda a sublimação cultural como um longo desvio
de morte (ora, essa passagem é seguida imediatamente, em Eros e
pela "crítica do revisionismo pós-freudiano"!).Avaliamos que resistências provo- na direção da morte, a pulsão de morte alimentando a violéricia repressiva e
presidindo à cultura como um superego feroz, as forças de vida inscrevendo-
ca esse conceito nas almas piedosas. Também aqui nem mesmo toda a dial&
tica- neste caso da "liberação" de Eros, alhures das forças produtivas - -se na compulsão da repetição - tudo isso é verdadeiro, mas verdadeiro de
nossa cultura; empreendimento de morte buscando abolir a morte e, para esse
suficiente para vencer a morte.

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A ECONOMIA POLITICA E A MORTE A PULSAO DE MORTE

mesmo fim, erigindo morte sobre morte e assombrado por elas como pelo seu deseja instalar uma ponte entre os dois e simplesmente participa do arbitrário
próprio fim. Isso é dito metaforicamente pelo termo "pulsão", que designa aí a de um e do outro.A metapsicologia da pulsão une-se aqui a metafísica da alma
fase contemporãnea do sistema da economia política (será ainda a economia e do corpo: ela é sua reescrita num estágio mais avançado.
A ordem separada do psíquico resulta da precipitação, no nosso"foro íntimo",
seu ponto culminante na pura e simples reprodução compulsiva do código -
politica?), em que a lei do valor, em sua forma estrutural mais terrorista, atinge
consciente ou inconsciente,de tudo aquilo cuja troca coletiva e simbólica o sistema
interdita. É uma ordem do reprimido. Não surpreende que seja dominada pela
onde a lei do valor parece uma finalidade tão irreversível quanto a pulsão, de
forma tal assume em toda a nossa cultura feições de destino. Estado da -
pulsão de morte porque ela nao passa do precipitado individual de uma ordem
de morte.E a psicanálise, que teoriza sobre ela enquanto tal, não faz senão, como
imanencia repetitiva de uma mesma lei em todos os instantes da vida. Estado
no qual o sistema visa a seu próprio fim, preso entre o investimento total pela ocorre com toda disciplina em sua ordem,sancionar essa discriminação mortal.
morte como finalidade objetiva e a subversão total pelo pulsão de morte como Consciente, inconsciente, superego, culpa, repressão, processos primários e
processo de desconstrueão. A metáfora da pulsão de morte diz tudo isso simul- secundários, fantasma, neurose e psicose sim, funciona de fato assim, se se
taneamente porque a pulsão de morte é a um só tempo o sistema e o duplo admitir a circunscrição do psíquico enquanto tal, que produz nosso sistema (e não
do sistema, seu desdobramento numa contrafinalidade radical (cf. o Duplo e importa qual) como forma imediata e fundamental da inteligibilidade, isto é,como
sua "inquietante estranheza","Das Unheimliche"). código.A onipotencia do código é precisamente essa inscrição de esferas separa-
Eis o que narra o mito. Mas vejamos como funciona a morte quando se dá
como discurso objetivo de "pulsão". Com o termo "pulsão", cuja definição de uma ciência soberana -
das,todas postas em seguida sob a jurisdição de uma investigação especializada e
mas o psíquico é sem dúvida a que tem o futuro mais
promissor. Todos os processos selvagens, erráticos, transversais, simbólicos virão
tanto biológica como psíquica, a psicanálise deita raízes nas categorias saídas
diretamente do imaginário de uma certa razão ocidental: longe de contradiz& inscrever-se af,para aí serem domesticados ern nome do próprio inconsciente- que,
-lo radicalmente, ela deve então ser interpretada como um momento do pen- num extraordinário sarcasmo,serve hoje de leitmotiv da "liberação" radical! A pró-
samento ocidental. Quanto ao biológico: é claro que é a racionalidade cientí- pria morte será domesticada nesse contexto sob o signo da pulsão de morte!
fica que produz a distinção entre o vivo e o não-vivo na qual se funda a bio- De fato, é contra o próprio Freud e contra a psicanálise que é preciso
logia. Literalmente, a cVencia, ao produzir-se a si mesma como código, produz interpretar a pulsão de morte, se se pretende preservar-lhe a radicalidade. A
a morte, o não-vivo, como objeto conceitual, e a separaeão pulsão de morte deve ser entendida em oposição a toda a positividade cientí-
axioma partir do qual ela vai poder legiferar. Não há objeto (científico) bom, fica da aparato psicanalítico tal como Freud o elaborou. Ela não é sua formu-
assim como não há índio bom, a não ser morto. Ora, é a esse estado inorgãnico lação-limite nem sua conclusão mais radical, porém é sua reversão, e aqueles
que se refere a pulsão de morte, a esse estatuto de não-vivo que só resulta do que Ihe recusaram o conceito tiveram de certo modo mais visão do que ague-
decreto arbitrário da ciências e, para dizer tudo, de seu próprio fantasma de les que o aceitam sob a proteção da psicanálise, seguindo nisso o próprio
repressão e de morte. Nao sendo no final nada mais do que o ciclo da repe- Freud, sem talvez compreender o que ele diz. A pulsão de morte torna virtual-
lled() do não vivo, a pulsão de morte participa desse arbitrário da biologia, mente inúteis, ela suplanta com facilidade, todos os pontos de vista e disposi-
duplicando-o por um percurso psíquico. Ora, as outras culturas não produzem tivos anteriores: econômico, energético, tópica, até psíquico. Com razão ainda
o conceito separado do não-vivo, só a nossa o faz sob o signo da biologia. maior, é claro, a lógica pulsional de que ela se prevalece, herdada da mitologia
Bastaria, portanto, que essa discriminaeão fosse suspensa para invalidar ao científica do século XIX. Lacan talvez a tenha adivinhado ao falar da "ironia"
mesmo tempo o próprio conceito de pulsão de morte. Ele não é afinal mais do desse conceito, do paradoxo inédito e insolúvel que apresenta. A psicanálise
que um arranjo teórico entre o vivo e o não-vivo sem mais vigor do que todas tomou historicamente o partido do reconhecimento do seu filho mais estranho,
as tentativas de articulação em que a cie-ncia se perde.. Definitivamente, mas a morte não se deixa apanhar no espelho da psicanálise. Ela atua como
sempre o não-vivo que prevalece nele, a axiomática de um sistema de morte princípio total, radical, de funcionamento, e não precisa, para esse fim, da
(cf. J. Monod, 0 Acaso e a Necessidade). repressão nem,portanto, de uma economia libidinal.Não tem nenhuma utilidade
0 problema é o mesmo com relação ao psíquico -e é esse o ponto no
limite, a economia do próprio inconsciente -
para ela os desvios das tópicas sucessivos, dos cálculos de energia; ela faz, no
denunciando tudo isso também
qua) é toda a psicanalise que está em questão. É preciso perguntar quando e
por que nosso sistema comeea a produzir psíquico". A autonomização do como uma máquina construtiva de Eros, como máquina positiva de interpre-
"psíquico" é recente. Ela duplica num nível superior a do biológico. A linha tação, que ela desfaz e desmantela como a qualquer outra. Princípio de con-
passa desta vez entre o organico, o somático e outra coisa. Só há psíquico trafinalidade, hipótese especulativa radical, metaeconômica, metapsíquica, me-
taenergetica, metapsicanalítica, a (pulsão de) morte está além do inconscien-
com base nessa distineão. Donde a inextricável dificuldade ulterior para
-
rearticular o conjunto disso resulta precisamente o conceito de pulsão, que te - ela deve ser arrancada à psicanálise e voltada contra ela.

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A Morte
em Bataille

Avisão psicanalítica da morte ainda é, em sua radicalidade, uma vi-


são por falta: restrição pulsional de repetição, perspectiva de equi-
líbrio final no cailibuo inOrgãnico, abolição das diferenças, das
intensidades, nos termos de uma involução rumo ao ponto mais baixo,entropia
da morte, conservadorismo da pulsão, equilíbrio por falta do Nirvana: essa
teoria apresenta certas afinidades com a economia política. Maltusiana como
esta, cujo objetivo é defender-se da morte. Porque a economia política 95 existe
por falta: a morte é o seu ponto cego, a ausencia que assombra todos os
cálculos. E a só ausência da morte permite a troca dos valores e o jogo de
equivalências. A injecão infinitesimal da morte criaria imediatamente tamanho
excesso, tat ambivalencia, que todo o jogo do valor cairia por terra. A economia
política é uma economia de morte, pois faz a economia da morte e a enterra
sob seu discurso.A pulsão de morte cai no contrário: ela é o discurso da morte
como finalidade intransponfvel. Discurso inverso mas complementar, porque,
se a economia politica é de fato esse nirvana (acumulação e reprodução inde-
finida de valor morto), a pulsão de morte denuncia a verdade dela e,ao mesmo
tempo, sua derrisão absoluta - mas ela o faz nos termos do sistema, ao idea-
lizar a morte como pulsão (finalidade objetiva).Tal como é, a pulsão de morte
.6 o negativo mais radical do sistema atual, mas ele ainda não faz senão esten-
der um espelho ao imaginário fúnebre da economia política.
Em vez de instituir a morte como regulação de tensões e função de equilf-
brio, como economia de pulsão, Bataille a introduz, pelo contrário, como paroxis-
mo de trocas,superabundancia e excesso. A morte como excedente sempre pre-
sente e como prova de que a vida só defeituosa quando a morte lhe é tirada,
.6

que a vida só existe na irrupção e na troca com a morte, estando do contrário


fadada ã descontinuidade do valor e, portanto, ao deficit absoluto."Desejar que

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE A MORTE EM BATAILLE

só exista vida é fazer que só exista morte7 A idéia de que a morte não é de modo Essa conjunção luxuosa entre o sexo e a morte figura em Bataille sob o signo
algum uma falha da vida,que ela é desejada pela vida e que o fantasma delirante
de aboli-la (o da economia) equivale a instalá-la no âmago da própria vida - da cont[nuidade,em oposição a economia descontínua das existências individuais.
A finalidade é da ordem do descontínuo,são os seres descontínuos que secretam
uma finalidade, toda sorte de finalidades, que se resumem a uma só: sua própria
dessa vez, porém, como nada morno e sem fim. Biologicamente:"0 pensamento
de um mundo em que a organização artificial assegurasse o prolongamento da morte."Somos seres descontínuos, indivíduos morrendo isoladamente numa aven-
vida humana evoca a possibilidade de um pesadelo" (L'Érotisme). Mas sobretudo tura ininteligível, mas trazemos em nós a nostalgia da continuidade perdida7 A
simbolicamente - e, aí, o pesadelo não é mais simples possibilidade, é a reali-
dade que vivemos a cada instante: a mode (o excesso, a ambivaléncia, a dádiva,
mode 0- sem finalidade, é ela que questiona a finalidade do ser individual no ero-
tismo:"Que significa o erotismo dos corpos além de uma violação do ser dos par-
o sacrifício, o gasto e o paroxismo) e, portanto, a verdadeira vida estão ausentes. ceiros?...Todo o agir erótico tem por princípio uma destruição da estrutura do ser
Renunciamos a morrer e acumulamos no lugar de nos perder: "Anexamos o fechado que é no estado normal um parceiro do jogo".0 despir-se erótico é igual
objeto do desejo, que era em verdade o de morrer, anexamo-lo à nossa vida ao morrer,tendo em vista que inaugura um estado de comúnicação, de perda de
duradoura. Enriquecemos a nossa vida ern vez de perdé-la". Proeminéncia do identidade e de fusão.Fascínio da dissolução das formas constituídas:eis Eros- ao
luxo e da prodigalidade sobre o cálculo funcional, proeminéncia da mode sobre contrário de Freud, para quem Eros vincula as energias, as agrupa em unidades
a vida como finalidade unilateral de produção e de acumulação:"Se se considera sempre maiores. Na morte, tal como em Eros, trata-se de introduzir na descontinui-
globalmente a vida humana, ela aspira até a angústia a prodigalidade, até o limite dade toda a continuidade possível: é um jogo com a continuidade total. É nesse
em que a angústia não é mais tolerável... O resto são palavras tolas de moralista. sentido que "a_morte, ruptura da continuidade individual a que a angústia nos
Uma agitação febril em nós pede à morte que pratique a nossas expensas suas impele, própõe-se a nós como uma verdade mais eminente do que a vida". Freud
ações destrutivas". diz exatamente a mesma coisa, mas por falta. E já não se tiada mesma mode.
A morte e a sexualidade, em vez de se enfrentarem como princípios anta- 0 que faltou em Freud não foi ver na morte a curvatura da vida, mas não
g6nicos (Freud), se permutam no mesmo ciclo, na mesma revolução cíclica da perceber a vertigem, o excesso, a reversão de toda a economia da vida que ela
continuidade.A morte não é o "prego" da sexualidade -
espécie de equivalén-
cia encontradiça em toda parte na teoria dos seres vivos complexos (o infusório
opera -o fato de ter feito dela, na forma de pulsão final, uma equação de
dilação da vida. Foi ter-lhe enunciado a economia final sob o signo da repeti-
imortal e assexuado) e a sexualidade não é o simples desvio da morte, gão,e não ter-lhe captado o paroxismo.A morte não é resolução nem involução;
como em 0 Mal-Estar na elas permutam suas energias, elas se ela é reversão e desafio simbólico.
exaltam mutuamente. Não há economia específica de uma nem de outra: só
quando separadas, a vida e a mode caem sob o golpe de uma economia
confundidas, vão juntas para além da economia, para a festa e a perda (o
- Porque, esquecendo de si, e muito ávidos por antecipar-se
ao desejo dos deuses -espontaneamente, os seres mortais,
erotismo para Bataille):"Não há diferença entre a mode e a sexualidade. Elas tendo seguido seu próprio curso, de olhos abertos,
não passam de momentos agudos de uma festa que a natureza celebra com a preferem rumo à dissolução o caminho mais curto.
inesgotável multiplicidade dos seres, uma e outra dotadas do sentido de des- Assim, o repouso do mar busca a torrente,
perdício ilimitado para o qual segue a natureza, indo ao encontro do desejo de precipita-se, aspirado,
durar que é próprio de cada ser". Portanto, uma festa, e festa porque restituição apesar de si mesmo fascinado,
do ciclo, lá onde a penúria impõe a economia linear da duração
restituição de uma revolução cíclica da vida e da mode, lá onde
-porque
Freud não
de rocha em rocha sem controle,
pela maravilhosa nostalgia do abismo...
augura outra questão além da involução repetitiva da morte. A desordem é fascinante. Povos inteiros também
Há, portanto, em Bataille uma visão da morte como princípio excessivo e deixam-se levar pela alegria da morte.
como antieconomia. Donde a metáfora do luxo, do caráter luxuoso da morte. [Havia no tempo dos Gregos, sobre o Xanto, uma cidade]
Só o gasto suntuoso e inútil tem sentido - quanto a economia, ela não tem
sentido, é só resíduo de que fizemos a lei da vida, ao passo que a riqueza está
o povo ficou furioso diante da generosidade de Brutus
Tendo o fogo irrompido, ele lhes ofereceu ajuda,
na permuta luxuosa da morte: o sacrifício, a "parte maldita", aquela que se furta embora sitiasse a cidade
ao investimento e as equivaléncias, e que so pode ser nadificada. Se a vida não Mas eles precipitam os homens do alto das muralhas,
o fogo dobra de intensidade e eles se alegram
passa de necessidade de durar a qualquer prep, a nadificação é um luxo sem
prep. Num sistema em que a vida é regida pelo valor e pela utilidade, a morte E Brutus lhes estendera as mãos
vociferam de terror e de exaltação,
-mas eles estão fora de si,
se torna um luxo inútil, e a única alternativa.

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A EcoNomtA POLITICA e A mom A MORTE EM BATAILLE

lançam-se homens e mulheres nas chamas da reproducão, não mais do que o desejo na necessidade, não mais do que o

-
e as crianças no meio disso
morrem ou sob o glaivo dos pais.
gasto suntuoso prolonga a satisfação das necessidades -
ela nega no erotismo
essa funcionalidade biológica. Procurar na lei da espécie o segredo do sacri-
Não fora preciso desafiá-los. fício, da destruição sacrificial, do jogo e do gasto, ainda é funcionalizar todas
Mas isso vinha de bem mais longe. essas coisas. E sequer há contigindade entre os dois. Nada há de comum entre
Também seus pais, outrora, surpreendidos, acuados pelos Persas, o excesso erótico e a funcão sexual e reprodutiva. Não há nada de comum
tinham incendiado a cidade, e tentado um ataque entre o excesso simbólico da morte e o desperdício biológico dos corpos'.
a partir das margens cobertas de junco do rio. Bataille cai aqui na tentação naturalista, senão biologista, o que o leva a
E suas casas e templos acabaram naturalizar na outra vertente uma espécie de tendéncia à descontinuidade: "0
volatilizados rumo ao céu, e os homens com eles, desejo de durar é próprio de cada ser". Contra uma natureza que seria desvio de
- vitimados pelo fogo.
Seus filhos se haviam esquecido disso...
energias vivas e orgia de nadificação, o "ser" se protege por meio dos interditos,
ele resiste por todos os meios a essa pulsão de excesso e de morte que lhe vem
Holder lin da natureza (contudo, sua resisténcia nunca deixa de ser provis6rialamais os
homens opõem à violência e à morte um não definitivo"). Assim, instala-se em
Bataille, na base de uma definição natural do gasto (a natureza como modelo de
prodigalidade) e de uma definição igualmente substancial e ontológica da eco-
A proposição segundo a qual a vida e a morte se permutam, segundo a nomia (é o sujeito que deseja manter-se em seu ser -
mas de onde lhe vem esse
desejo fundamental?), uma especie de dialética subjetiva do interdito e da trans-
qual a vida se troca ao seu mais alto prego na morte, não é mais da ordem da
verdade científica-é uma "verdade" interdita para sempre à ciéncia. Quando gressão em que a alegria inicial do sacrifício e da morte se perde nas delícias do
cristianismo e da perversão2,- uma espécie de dialética objetiva entre continui-
Bataille diz do erotismo "Se a união de dois amantes é o efeito da paixão, ela
chama a morte, o desejo de morte ou de suisidio.., violacão contínua da indi-
vidualidade descontínua... esses orifícios, essas abertura e esses abismos por 1. É muito grande o risco de confusão aqui, porque,se se reconhece que mode e sexualidade são
biologicamente ligadas como destino organico de seres complexos, isso não tem nada que ver corn
onde se absorvem os seres na continuidade e que o assimilam de alguma a relação simbólica entre a morte e o sexo.A primeira se inscreve na positividade do código genético
maneira à morte..:', não há nenhuma relação objetiva, nem lei, nenhuma ne- e a segunda, na desconstrução de códigos sociais. Ou melhor, a segunda não está em nenhum lugar
cessidade de natureza em tudo isso. 0 luxo e o excesso não são funcões e não inscrita numa equivaléncia biológica, num número nem numa linguagem.Ela é jogo, desafio e enlevo,
e é jogada ao frustrar o jogo da outra. Entre as duas, entre a relação real morte/sexualidade e sua
se inscrevem no corpo nem no mundo. A morte tampouco, essa morte simbó-
relaçao simbólica, passa a cesura da troca, de um destino social em que tudo é jogado.
lica, suntuosa, que é da ordem do desafio, não se inscreve, contrariamente, na Weissmann: o soma é mortal, o plasma germinativo é imortal. Os protozoários são praticamente
morte biológica, em nenhum corpo nem em nenhuma natureza. 0 simbólico
nunca se confunde com o real nem com a ciência. -
indestrutíveis, a mode só aparece entre os metazoários diferenciados, para quem a morte se torna
possível, e até racional (a duração ilimitada da vida individual torna-se um luxo UMW cf. Bataille,
para quem é pelo contrario a morte um luxo "irracional"). A morte nao pussa de aquisição tardia
Ora, o pi-61)6o Bataille comete esse erro."0 desejos de produzir a baixo dos seres vivos. Na história das espécies vivas, ela aparece com a sexualidade.
custo é propriamente humano. A natureza, pr6diga, que não conta, 'sacrifica' Assim, Tournier igualmente, ern Les bathes du Pacifique:"O sexo e a mode. Sua íntima coni-
alegremente:' Por que buscar a caucão de uma natureza idealmente pródiga, vencia... Ele insistia no sacrifício do indivíduo à espécie, que é sempre secretamente consumido
no ato da procriação. Assim, a sexualidade é, dizia ele, a presença viva, ameaçadora e mortal da
contra a dos economistas, idealmente calculista? 0 luxo não é mais natural do espécie no seio do indivíduo. Procriar é suscitar a geração seguinte, que, inocentemente, mas de
que a economia. 0 sacrifício e o gasto sacrifical não estão na ordem das coisas. modo inexorável, impele a precedente para o nada... Por conseguinte, é hem verdade que o
Esse erro leva Bataille a confundir sexualidade voltada para a reprodução e
gasto er6tico: "0 excesso de onde a reprodução procede e aquele que é a
acreditou dever esconder seu jogo -
instinto que inclina os sexos um na direção do outro é um instinto de mode. Também a natureza
no entanto transparente. É an que parece um prazer egoísta
que buscam os amantes, enquanto percorrem o caminho da mais tola abnegação". Fábula exata,
morte nao podem ser compreendidos a não ser um com a ajuda do outro". Mas
a reproducdo enquanto tal é sem excesso - ainda que implique a morte do
indivíduo, trata-se ainda de uma economia positiva e de uma morte funcional
mas que nao prova mais do que a correlação entre morte e sexualidade biológica: a sentença de
morte de fato aparece com a sexualidade, porque esta é ja inscrição de um code funcional e,
portanto, imediatamente da ordem da repressão. Mas esse code funcional não é da ordem da

- em benefício da espécie. A morte sacrifical é antiprodutiva e anti-reprodu-


tiva. Ela de fato visa a uma continuidade, como diz Bataille, porém rid() a da
pulsão, ele é social. Ele aparece em certo tipo de relação social. Os selvagens não conferern
autonomia à sexualidade como n6s o fazemos. Eles estão mais próximos daquilo que Bataille
descreve:"Há despossessão do eu no jogo de Orgãos que se extravasam na renovação da
Se bem que seja preciso dizer, com e contra Weissmann: a morte (e a sexualidade) nao passa de
espécie, que não passa de continuidade de uma ordem da vida, enquanto a uma aquisição tardia do ser social.
continuidade radical, aquela em que o sujeito se abisma no sexo e na morte, 2. Essa visão"por excesso" em Bataille recai de fato muitas vezes na armadilha da transgressao

significa sempre o desperdício fabuloso de uma ordem. Ela não se apóia no ato de uma dialética, ou de uma mística, fundamentalmente crista (porém partilhada pela psicaná-

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A ECONOMIA POLITICA E A MORTE

dade e descontinuidade na qual o desafio que a morte lança à organização


econômica se desfaz diante de uma grande alternancia metafísica.
Mas resta na visão excessiva e luxuosa da morte em Bataille algo que
a arranca da psicanálise, do movimento individual e psiquico da psicanáli-
se - a oportunidade de uma desorganizacão de toda a economia, de fra-
turar não só o espelho objetivo da economia politica, mas também o espe-
lho psiquico inverso da repressão, do inconsciente e da economia libidinal.
Para além de todos os espelhos, ou entre seus fragmentos esparsos, como
Minha Morte em toda parte,
os do espelho em que o Estudante de Praga recupera sua imagem real no
instante da morte, aparece para nós hoje outra coisa: uma dispersão fan- Minha Morte que Sonha
tástica do corpo, do ser e das riquezas de que a figura da morte em Bataille
o prenúncio mais proximo.

MORTE PONTUAL MORTE BIOLÓGICA


Airreversibilidade da mo 9 S . . - as 55
tu-a-1, é um fato da ciéncia moderna. É especifica da nossa ,cultura.
Todas as outras dizem que a morte começa antes da morte, clue a
vida dura de ois da vida sue é imps ii.uiT-N7Fd.7-da m rte. Contra
a representacão que ve numa o termo da outra, é preciso tentar ver a
indeterminação radical da vida e da morte, bem como a impossibilidade de

um. 1 o a da vida- -
autonomizá-las na ordem simbólica. A morte não é o vencimento de um prazo:
ou ainda, a vida é nuança da morte. Mas nossa idéia
moderna da morte re ida por um sistema se representacões totalmente eren-
te: o da máquina e do funcionamento. iajpáuina funcion.a_cui_aão funciona.
Assim, a máquiriológica está morta ou viVa.A ordem simbólica não conhece
es--7-sa-digita ac-r'-a-strat.a.E mesmo a biologia admite que começamos a morrer
tao logo nascemos, mas issonanece nc-7.7-7-71ua ro funciopal'.
que permuta-se com ela,é seu apogeu
-
Outra coisa é dizer a morte articula
porque nesse caso torna-se absurdo fazer
a .vida,
da vida um processo
na morte seu vencimento e mais absurdo ainda faze-la equivaler a um deficit e a
que encontra

lise atual e por todas as ideologias "libertárias" da festa e da desrepressào) do interdito e da uma perda. Nem a vida nem a morte podem mais ser atribuidas a um fim qual-
transgressao. Nós fizemos da festa urna estética da transgressào, porque toda a nossa cultura é urna
quer: logo, já não há pontualidade nem definição possivel da morte.
cultura do interdito. É ainda a repress-do que marca essa idéia da festa, que pode ser acusada de
reativar o interdito e de reforçar a ordem social. Fazemos da festa primitiva a mesma análise, Vivemos inteiramente imersos no pensamento evolucionista, que diz que
vamos da vida a morte: é a ilusdo do sujeito, sustentada conjuntamente pela
além -
incapazes que somos de imaginar no fundo outra coisa que não a barra, com seu aquém e seu
tudo isso procedente ainda do nosso esquema fundamental de urna ordem, linear ininter-
rupta (a "boa forma" que rege nossa cultura é sempre a do fim, de urna realização final). A festa
primitiva, assim como o sacrifício, não é transgressão, mas reversibilidade, revolução cíclica - 1. É por outro lado curioso ver como, tecnicamente, a morte se torna cada vez mais indecidivel
para a própria ciéncia: parada cardíaca, depois eletroencefalograma plano e depois... o que mais?
somente o ciclo, são por excesso -
única forma que verdadeiramente leva ao fim a barra do interdito. Logo, apenas a reversibilidade,
a transgressão ainda é por falta."Na ordem econômica, toda
produção nao passa de reprodução; na ordem simbólica, toda reprodução é produçào:'
Fla aí mais do que um progresso objetivo: ressoa no próprio cerne da ciëncia algo de indeterminação,
de indecidibilidade da morte no piano simbólico.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

biologia e pela metaffsica (a biologia, que se vé como reverso da metaffsica, (Octavio Paz: Conjonctions et Disjonctions) do que a ciéncia biológica, que passa
não passa de seu prolongamento). Ora, sequer há um sujeito que morra num por inteiro, técnica e axiomas, para o lado do "não-corpo").
momento dado. É mais real dizer que partes inteiras de "nós mesmos" (de
nosso corpo, de nossos objetos, de nossa linguagem) caem da vida na morte,
passam vivas pelo trabalho de Into. Algumas conseguem assim esquecer-se de 0 ACIDENTE E A CATASTROFE
que vivem, pouco a pouco -assim como Deus esquece a menina que se
afoga enquanto levada pela corrente da canção de Brecht:
Há um paradoxo da racionalidade moderna e burguesa sobre a morte. Con-
ceber esta última como natural, profana e irreversível constitui o signo das"Letras"
e da Razão, mas entra em aguda contradição com os princípios da racionalidade
Und es geschah, dass Gott sie allmahlich vergass,
zuerst das Gesicht, dann die fkinde, und zuletzt das Haar.. burguesa - valores individuais, progresso ilimitado da ciência, domínio da na-
tureza em todas as coisas. Neutralizada como "fato natural", a morte assume casa
vez mais as feições de um escdndalo. É o que Octavio Paz analisou competente-
E foiassim que Deus se esqueceu pouco a pouco,
mente em sua teoria do Acidente (Conjonctions et Disjonctions):"A ciência moder-
primeiro do rosto, depois das mãos e por fim dos cabelos...
na acabou com as epidemias e nos forneceu explicações plausíveis das outras
A identidade do sujeito se desfaz a cada instante, cai no esquecimento de catástrofes naturais: a natureza cessou de ser depositária do nosso sentimento de
Deus. Essa morte não tem, no entanto, nada de biológica. Num dos pólos, o culpa; ao mesmo tempo, a técnica ampliou e estendeu a noção de acidente,
bioquímico, os protozoários assexuados não conhecem a morte, eles se dividem conferindo-lhe um caráter totalmente distinto...0 Acidente faz parte da nossa vida
e ramificam (o código genético também não conhece a morte: ele se transmite cotidiana e seu espectro nos povoa as insônias... O princfpio de indeterminação
inalterado para além do destino dos indivíduos). No outro polo, o do simbólico, em física e a prova de Gödel na logica são o equivalente ao Acidente no mundo

-
a morte/o nada também não existe, a vida e a morte são, nele, reversíveis. histórico... Os sistemas axiomáticos e deterministas perderam sua consisténcia e
Só no espaço infinitesimal do sujeito individual da consciência a morte as- revelam uma falha inerente. Essa falha não é, na realidade, falha: é uma proprie-
sume um sentido irreversfvel. E de resto sequer um evento: um mito vivido por dade inerente do sistema, alg6que lhe é próprio enquanto sistema. 0 Acidente
antecipação. 0 sujeito tem necessidade, para sua identidade, de um mito do seu não tiffia- eXCeção n-ém urna enfeimidade dos nossos regimes polfticos, e tam-
fim, tal como a tem de um mito da origem. Na realidade, o sujeito nunca está aí pouco um defeito corrigível da nossa civilização: é a conseqüência natural da
- assim como o rosto, as mãos, os cabelos, e sem dúvida até antes, ele está
sempre em outro lugar, apanhado por uma distribuição demente, num ciclo sem
.6

no-ssa ciência, da nossa política e da nossa moral. 0 Acidente faz parte da nossa
idéia de Progresso...0 Acidente tornou-se um paradoxo da necessidade: ele pos-
fim impelido pela morte. É preciso conjurar, localizar essa morte que está em toda sui a fatalidade desta e a indeterminação da liberdade.0 não-corpo, transformado
parte na vida num ponto preciso do tempo e num lugar preciso: o corpo. ciência materialista, é sinônimo do terror: o Acidente é um dos atributos da
Na morte biológica, a morte e o corpo, em lugar de se exaltarem uma razão que adoramos... A moral cristã lhe cedeu seus poderes repressivos, mas ao
outra, neutralizam-se. A biologia supõe fundamentalmente a dualidade alma- mesmo tempo desapareceu desse poder sobre-humano toda pretensão moral. É
-corpo. Essa dualidade é de algum modo a própria morte, por ser ela que o retorno dos astecas, ainda que sem presságios nem sinais celestes. A catástrofe
objetiva o corpo como residual - objeto ruim que se vinga morrendo. É em
função da alma que o corpo se torna fato bruto, objetivo, destino de sexo, de
se torna banal e derrisoria, porque o Acidente, afinal de contas, não passa de um
acidente".
angústia e de morte. É em função desse esquizo imaginário, a alma, Tie o Como a sociedade, ao normalizar-se, faz surgir em sua periferia os loucos e
corpo se torna essa "realidade" que só existe porque está fadada à morte. os anômalos, assim também a razão e o domínio técnico da natureza fazem surgir
ao redor de si, ao se aprofundarem, a catástrofe e a falha como desrazão do
0 corpo mortal não é, por conseguinte, mais "real" do que a alma imortal: os,
dois resultam simultaneamente da mesma abstração e, com eles, as duas grandes
metafísicas complementares: a idealista, da alma (como todas as suas metamor-
"corpo orgãnico da natureza" - desrazão insuportável, porque a razão se quer
soberana e nem mesmo pode pensar aquilo que lhe escapa insolfivel porque
foses morais) e a "materialista", do corpo, com seus prolongamentos biológicos. já não existem para nos rituais de propiciação ou de reconciliação: o acidente,
A biologia vive da separação entre a alma e corpo tinto quanto qualquer meta- assim como a morte,é absurdo,e ponto final. É sabotagem. Um demônio maligno
física cristã ou cartesiana, mas não o diz
transferida integralmente, como princípio
-
ideal,
a alma não se díz mais, ela foi
para a disciplina moral da cién-
está presente aí para fazer que essa bela máquina sempre se estrague. Desse
modo, essa cultura racionalista foi acometida, como nenhuma outra, de paranOia
cia, o princípio de legitimidade da operação técnica sobre o real e sobre o mundo, coletiva. 0 menor incidente, a menor irregularidade, a menor catástrofe, um tremor
para os princípios do materialismo"objetivo".Aqueles que sustentavam o discurso de terra, uma casa que desaba, o mau tempo -é preciso que haja um respon-
da alma no Idade Media estavam menos distanciados dos "signos do corpo" sável por isso tudo é um atentado. Assim sendo, o reerudescimento da sa-

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A ECONOMIA Po 11m:A E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA Mom QUE SONHA

botagem, do terrorismo, do banditismo é menos interessante do que o fato de avaliação quantitativa), mediante a simplificação simbólica da morte, que só
tudo o que acontece ser interpretado nesse sentido.Acidente ou não? É indecidivel. suscita uma ciencia e uma técnica biomédica de prolongamento da vida.
E não tern importancia, porque a categoria do Acidente, que Octavio Paz analisa, Logo, a mode natural não significa a aceitação de uma morte que seria da
já se misturou com a de Atentado. 0 que é normal num sistema racional:o acaso "ordem das coisas", mas uma degeneração sistemática da mode. A morte natural
só pode ser deixado a uma vontade humana, razão por que qualquer estrago e a mode colocada sob a jurisdição da ciéncia, e que tem a vocação de ser
interpretado como maleffcio -ou, politicamente, como atentado à ordem social'.
E é verdade: uma catástrofe natural é um perigo para a ordem estabelecida, não
exterminada pela ciência, Isso significa explicitamente que a mode é inumana,
irracional, louca, como a natureza quando não domesticada (o conceito ociden-
só pela desordem real que provoca como pelo golpe que vibra contra toda"racio- tal de "natureza"é sempre o de uma natureza reprimida e domesticada). Não há
nalidade"soberana,politica também.Isso explica o estado de sftio quando de um boa mode exceto a vencida, e submetida a lei: eis o ideal da mode natural.
tremor de terra (Nicaragua), a ação de impor a ordem em locals de catástrofes Cada qual deveria poder ir até o fim do seu "capital" biológico, de aproveitar
(mais importante do que numa manifestação, por ocasião da do DC-10 em sua vida "até os últimos instantes", sem violéncia nem morte precoce. Como se
Ermenonville). Porque ninguém sabe até que ponto a "pulsão de mode", esface- cada pessoa tivesse seu pequeno esquema de vida impresso, sua "expectativa
lada pelo acidente ou pela catástrofe, pode desencadear-se numa circunstância normal" de vida, no fundo um "contrato de vida"- donde a reivindicação social
como essa e voltar-se contra a ordem polftica. da qualidade de vida da qual faz parte a mode natural. Novo contrato social: .6

É notável o fato de termos voltado, em pleno sistema da razão e em plena toda a sociedade, com sua ciência, sua técnica, que se torna solidariamente
conseqüência lógica desse sistema, à visão "primitiva" de imputar todo evento, responsável pela morte de cada indivíduo2. Essa reivindicação pode por outro
a morte em particular, a uma vontade hostil. Mas somos nós, e só nós, que lado envolver um questionamento da ordem existente do mesmo tipo das reivin-
estamos em pleno primitivismo (precisamente aquela que, para exorcizar, faze- dicações salariais e quantitativas: é a existéncia de uma justa duração de vida, tal
mos burlescas imitações dos primitivos), porque, entre os "primitivos", essa como a de uma justa remuneração da força de trabalho.No essencial, esse direito
concepção correspondia a logica de suas trocas recfprocas e ambivalentes oculta, como todos os outros, uma jurisdição repressiva.Toda pessoa, porém, tem
com tudo aquilo que os circundava, se bem que mesmo as catástrofes naturais
e a morte eram inteligfveis no quadro de suas estruturas sociais
francamente paralógica, a paranóia da
-
ao passo
razão, cujos
_
o direito_
_
a urna morte
- -
natural
-
e, ao mesmo tempo, o dever dela. Porque esta é a
morte camctenstica do sistema da economia política,seu tipo de mode obrigatória:
que, em nosso meio, ela é é I. Como sistema de maximização das forças produtivas (num sistema "ex-
axiomas fazem surgir em todo lugar o ininteligfvel absoluto, a Morte como tensivo" de mão-de-obra, nada de morte natural para os escravos, faz-se que
inaceitável e insolúvel, o Acidente como perseguição, como resisténcia absur- eles se arrebentem de trabalhar).
da e malévola de uma matéria, de uma natureza que não quer mais obedecer II. E, o que é bem mais importante: que cada um tenha direito à sua vida
as leis "objetivas" com as quais a acuamos.Vem daf o fascinio sempre maior
pela catástrofe, pelo acidente, pelo atentado: é a razão, ela mesma acuada,
(habeas corpus - habeas vitarn)
A morte é socializada como todo o resto
- eis a jurisdição social estendida à morte.
- ela não pode mais ser senão
alimentando a esperança de uma desforra universal contra suas próprias nor- natural, porque todo outro tipo de mode é um escandalo social: não se fez o
mas e suas próprias prerrogativas. que se deveria ter feito. Progresso social? Não. Progresso do social, que anexa
a si mesmo até a morte. Cada pessoa é despossufda da morte, não lhe sendo
jamais possivel morrer como bem entender. Ela nunca mais terá liberdade
A MORTE "NATURAL" entre outras coisas, a inter-
exceto para viver o máximo possívelisso significa,
definição biologica da morte e à vontade lógica da razão corresponde dição de consumir a vida sem considerar limites. 0 principio da morte natural
uma forma ideal e padronizada da mode, a chamada morte "natural". Trata-se equivale simplesmente à neutralização da vida'. 0 mesmo se aplica à questão
de uma morte "normal", porque acontece "ao final da vida". Seu conceito sur- da igualdade diante da morte: é preciso reduzir a vida à quantidade (e, por
giu da possibilidade de ampliar os limites da vida: viver se torna um processo
de acumulação, e a ciencia e a técnica entram em jogo nessa estratégia quan-
titativa. Ciéncia e técnica não vern de modo algum realizar um desejo original
-
3. Porque hoje essa exigência contratuai dirige-se A instAncia social outrora era com o Diabo

de viver o máximo possfvel -


a passagem da vida ao capital-vida (a uma
.6
que se assinavam pactos de vida longa, de riqueza e de fruicões. Mesmo contrato, mesma arma-
dilha: é sempre o Diabo que ganha.

caso dos idosos:eles já não são explorados -


4. Isso é mais importante do que a exploracão maxima da forca de trabalho.Vemo-lo bem no
deixa-se que vivam, à custa da sociedade -,
forcados a viver, é que sac) o exemplo vivo da acumulação da vida (oposta ao seu consumo). A
se são

2.A ponto de bastar certos grupos politicos reivindicar esse ou aquele acidente ou atentado
a
de origem desconhecida: a isso se restringe sua"prática",que consiste em transformar o acaso em sociedade os mantém como modelos de valor de uso da vida, de acumulacão e de poupanca.
subversao. hem porque eles já não tem na nossa sociedade nenhuma presenca simbólica.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, M1NHA MORTE QUE SONHA

conseguinte, reduzir a morte a nada) para ajustar-se à democracia e à lei de MORTE NATURAL E MORTE SACRIFICAL
equivalência. -a
Por que a morte de velhice, esperada, prevista, a morte em familia única
que tinha urn sentido pleno para a coletividade tradicional, de Abraão aos nossos
VELHICE E TERCEIRA IDADE
avós - já não existe? Ela nem mesmo continua a ser tocante, é quase ridfcula,
de qualquer maneira socialmente insignificante. Por que, pelo contrário, a morte
Também aqui essa conquista da ciência sobre a morte entra em contradição violenta, acidental, aleatória, que não tinha sentido para a comunidade antiga
com a racionalidade do sistema: a terceira idade torna-se um considerável peso (ela era temida e amaldiçoada como o é para nós o suicfdio) o tem tanto para
morto na gestão social. Toda uma parte da riqueza social (dinheiro e valores nós: ela é a única que é assunto da crônica, única a fascinar, a tocar a imagina-
morais) submerge af sem poder lhe conferir um sentido. Assim, um terço da ção? Mais uma vez, a nossa cultura é a do Acidente, como diz Octavio Paz.
sociedade é posto em estado de parasitismo econômico e de segregação.As terras Exploracão abjeta da morte pela mfdia? Não: a mfdia se contenta em jogar
conquistadas nessa marcha da morte são socialmente desérticas. Colonizada re- com o fato de que os únicos eventos que significam imediatamente para todos,
centemente,a velhice dos tempos modernos representa para a sociedade o mesmo sem cálculo nem desvio,são os que envolvem, de um ou de outro modo, a morte.
peso que tinham outrora as populacões autóctones colonizadas. Terceira Idade Nesse sentido, os veículos mais abjetos são igualmente os mais objetivos. E tam-
bém af a interpretacão em termos de pulsões individuais reprimidas, de sadismo
diz bem o que deseja exprimir é uma espécie de Terceiro Mundo.

limite
A terceira idade não é mais do que uma fatia de vida, marginal, a-social ao
- um gueto, uma espera, um declive diante da morte.Trata-se propriamen-
-
inconsciente etc., é frfvola e desinteressante porque estamos diante de uma
paixão coletiva. A morte violenta ou catastrófica não satisfaz o pequeno incons-
te da liquidacão da velhice. Conforme vivem mais, e conforme "vencem" a morte, ciente individual manipulado pela imunda mfdia (esta é uma visão secundária e
os vivos cessam de ser reconhecidos simbolicamente. Condenada a uma morte
sempre adiada, essa idade perde seu estatuto e sua prerrogativas. Em outras for-
já moralmente falsificada) - ela só provoca uma comocão tão profunda por
envolver o próprio grupo, a paixão do grupo por si mesmo, algo que, de uma ou
macões sociais, a velhice existe verdadeiramente, como pivó simbólico do grupo. de outra maneira, ela transfigura e resgata aos seus próprio olhos.
0 estatuto de ancido, que remata o de ancestral, é o mais prestigioso. Os "anos" A morte "natural" é vazia de sentido porque o grupo não tem nenhuma
são uma riqueza real que se troca em termos de autoridade, de poder, ao passo participacão nela. É banal porque vinculada ao sujeito individual banalizado,
que hoje os anos "ganhos" são apenas anos contábeis, acumulados sem possibi- célula familiar banalizada, porque não é mais luto e alegria coletivos. Cada
lidade de troca. A expectativa de vida prolongada levou, portanto, apenas a uma famflia enterra seus mortos. Não existe morte "natural" entre os primitivos: toda
discriminação 'da velhice: esta decorre logicamente da discriminacão da própria morte é social, pública, coletiva, sendo sempre o efeito de uma vontade adver-
morte. 0 "social" também af trabalhou bern. Fez da velhice um território "social" sa que deve ser absorvida pelo grupo (nada de biologia). Essa absorção ocorre
(que figura nos jornais nessa rubrica, ao lado dos imigrantes e do aborto), ele por meio da festa e dos ritos. A festa é a permuta de vontades (ndo se ve' como
socializou essa parte da vida ao encerrá-la em si mesma. Sob o signo "benéfico" a festa absorveria um evento biológico).Vontades ruins e ritos de expiação são
da morte natural, ele fez da velhice uma morte social antecipada. permutados acima da cabeça do morto. A morte é jogada e é conquistada
"Porque a vida individual do civilizado é mergulhada no progresso e no
infinito e porque,segundo o seu sentido imanente, uma tal vida nunca deveria ter
simbolicamente - o morto ganha af o seu estatuto, e o grupo se enriquece
com a incorporacão de um parceiro.
fim. Com efeito, há sempre possibilidade de um novo progresso para quem vive Quanto à nossa morte, é um qualquer que partiu. Já não há o que trocar.
no progresso. Nenhum dos que morrem chega ao ápice, porque este situa-se no Ele já é um resfduo antes de morrer. Ao final de uma vida de acumulacão,
infinito.Abraão ou os camponeses de antigamente morreram velhos e cumulados ele que se ye' subtrafdo do total: operacão económica. Ele não se torna effgie:
pela vida porque se achavam instalados no ciclo orgãnico da vida, porque este ele serve no máximo de alibi aos vivos, à sua superioridade evidente de vivos
havia levado ao decifnio dos seus dias todo o sentido que lhe podia oferecer, e com relacão aos mortos. É a morte plana, unidimensional, fim de percurso
porque não subsistia nenhum enigma que eles ainda pudessem desejar resolver. biológico, saldo de uma dívida: "entregar a alma [a Deus]" como um pneu,
Eles poderiam, portanto, declarar-se felizes da vida. 0 homem civilizado, pelo continente esvaziado do seu conteúdo. Que banalidade!
contrário, posto no movimento de uma civilizacão que se enriquece continua- Toda a paixão refugia-se então na morte violenta, única a manifestar algo
mente de pensamento, de saber e de problemas, pode sentir-se cansado da vida que se assemelha ao sacriffcio, isto é, como uma transmutacão real pela von-
e não prodigalizado por ela...Eis por que a morte é aos seus olhos um evento qe tade do grupo. E pouco importa se a morte é acidental, criminosa ou catastró-
não tem sentido; a vida do civilizado em tarn-bétn não tem, porque, do fato do
seu progressismo desprovido de significação, ele faz igualmente da vida um even-
fica- a partir do momento em que escapa à razão "natural", em que é um
desafio à natureza, essa morte volta a ser assunto do grupo, exige uma resposta
to sem significacão" (Max Weber: 0 Intelectual e o Político). coletiva e simbólica- em uma palavra, ela desencadeia a paixão do artificial,

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINNA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

que é ao mesmo tempo a paixão sacrifical. A natureza é plana e sem sentido, Somos todos reféns: este é o segredo da tomada de reféns, e todos sonhamos
não é preciso que uma morte seja "entregue a natureza",é preciso que ele seja em, no lugar de morrer bestamente na usura,receber a morte, e dar a morte.Porque
permutada de acordo com os ritos convencionais estritos, para que sua ener- dar e receber são um ato simbólico (trata-se do ato simbólico por exceléncia) que
gia, a energia do morto e a energia da morte, seja absorvida e dispensada pelo Úram à morte toda a negahvidade indiferente que tem para nós na ordem" natural"
grupo, em vez de deixar apenas um resíduo de "natureza". Para nós que já não do capital.Do mesmo modo,nossa relação com os objetos não é mais viva e mortal,
dispomos de rito eficaz de absorção da morte e de sua energia de ruptura, resta
o fantasma do sacrifício, do artifício violento da morte. Disso vem a satisfação
porém instrumental - não sabemos mais destruí-los, nem esperar nossa própria
Mode -,razão pela qual trata-se de fato de objetos mortos,e que acabarão por nos
intensa, e profundamente coletiva, da morte em acidente de carro. 0 que fas-
matar,mas da mesma maneira que o acidente de trabalho, como um objeto esma-
cina no acidente mortal é a artificialidade da rnorte.Técnica, não natural, logo
gar. Só o acidente automobilístico restabelece de alguma maneira o equilfbrio

sante -
desejada (eventualmente pela própria vítima) e, portanto, novamente interes-
porque a morte desejada tem um sentido. É essa artificialidade da
morte que permite, tal como no sacriffcio, sua duplicação estética na imagina-
sacrifical. Porque a morte é algo que se partilha, e devemos saber partilhá-la com
nossos objetos assim como com os outros seres humanos.A morte só tem sentido
dada e recebida,isto é,socializada pela troca.Na ordem primitiVa,tudo é feito para
ção, e o gozo disso decorrente. 0 "estético" não vale, evidentemente, senão
que assim seja.Na ordem da nossa cultura,pelo contrário,tudo e para que ela ntinca
para nós, fadados que somos à contemplação. 0 sacrifício não é "estético" para
advenha a ninguém a partir de qualquer outra coisa, mas somente da "natureza",
os primitivos, marcando sempre uma recusa das sucessões naturais e biológi-
como um vencimento impessoal do corpo.Vivemos nossa morte como fatalidade
cas, uma intervenção de ordem iniciática, uma violéncia controlada, social-
mente organizada -violéncia antinatural que nós podemos somente recupe-
rar no acaso do acidente e da catástrofe.Vivemos estes últimos, em conseqiién-
"real" inscrita no nosso corpo, porém porque não mais sabemos inscrevé-la num
ritual simbólico de troca. Em toda parte, a ordem do "real", a da "objetividade" do
cia, como eventos sociais simbólicos da maior importancia, como os sacrifi- corpo, bem como, por outro lado, a da economia política, resulta da ruptura dessa
cios. Por fim, o Acidente só é acidental, isto é, absurdo, para a razão oficial
para a exigência simbólica, que jamais nos abandona, o acidente é sempre
- troca.Nosso próprio corpo passa a existir a partir disso,como lugar de encerramen-
to da morte infensa à troca,e terminamos por acreditar nessa esséncia biológica do
coisa bem diferente. corpo sobre a qual vela a morte, e sobre a morte vela a ciência. A biologia está
A tomada de reféns depende do mesmo cenário. Unanimemente condena- prenhe da morte, o corpo que ela projeta está prenhe da morte, de que nenhum
da, ela suscita um terror e um júbilo profundos. E ela está em vias de tornar- mito o vem liberar. 0 mito, o ritual que liberaria o corpo dessa supremacia da
-se um ritual político de primeira grandeza no momento em que o politico ciéncia, se perdeu, ou ainda não foi encontrado.
Por esse motivo, buscamos circunscrever os outros, nossos objetos, nosso
desaba sob o peso da indiferença. 0 refém tem um rendimento simbólico cem
vezes maior do que o da morte automobilística, ela mesma já cem vezes supe-
rior à morte natural. É que recuperamos aqui uma espécie de tempo do sacri-
próprio corpo, num destino de instrumentalidade -
deles a morte. Mas nada está em nosso poder nesse contexto
para nunca mais receber
- no tocante
fício, de ritual de execução, a iminência da morte coletivamente esperada
.6

totalmente imerecida, logo totalmente artificial e, portanto, perfeita do ponto


- morte e ao resto: como não mais a queremos dar nem receber, é ela que nos
encerra no simulacro biológico do nosso próprio corpo.
de vista sacrifical, cujo oficiante, o "criminoso", em geral aceita morrer em
troca, o que faz parte da regra de uma troca simbólica a qual aderimos todos
bem mais profundamente do que a ordem econOrnica. A PENA DE MORTE
0 acidente de trabalho, por sua vez, depende da ordem econ6mica, não "Até o século XVIII, enforcauam-se, depois de uma
tendo nenhum rendimento simbólico. Ele é tão indiferente a imaginação cole- condenacão formalmente correta, os animals culpados
tiva como ao empreendedor capitalista, por ser isso um defeito da máquina, e
de causar a morte de um homem. Enforcauam-se igual-
não um sacrifício. É o objeto de uma recusa em princípio, de uma revolta em
princípio, fundada nos direitos à vida e à segurança -
ele não é nem o objeto
nem a causa de um terror Iticlico5. S6 o operário, sabemo-lo, brinca com sua
mente os caualos".
Autor desconhecido
segurança, muito facilmente ao ver dos sindicatos e dos patrões, que não com- É preciso haver uma razão bem particular para a repulsa que nos inspiram
preendem nada desse desafio. os castigos infligidos aos animais, pois deveria ser mais grave julgar um homem
do que um animal, e mais odioso fazê-lo softer. Ora, de uma ou de outra
5. Ele s6 se torna objeto de paixdo se puder ser imputado a uma pessoa (tal capitalista ou tal maneira, o enforcamento de um cavalo ou de um porco nos parece mais
empresa personificada), logo, vivido de novo como crime e sacrifício.
odioso, como o é igualmente o de um louco ou de uma criança, porque eles

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A ECONOMIA POOTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

são"irresponsáveis".Essa secreta igualdade das consciências na justiça, que faz Naturalmente, essa nausea, ligada à perda da prerrogativa do humano,
com que o condenado conserve sempre o privilégio de negar o direito que tem portanto própria também a uma ordem do social em que a cesura com o
o outro de julgá-lo, esse desafio possível, que é diferente do direito de defesa animal e, por conseguinte, a abstração do humano, é definitiva. Essa repulsa
e que restabelece um mínimo de contrapartida simbólica, não existe de forma nos distingue: ela marca que a Razão humana fez progressos, o que nos permi-
alguma no caso do animal ou do louco. E é a aplicação de um ritual simbólico te remeter à "barbárie" toda essa "Idade Media" de suplícios, humanos ou ani-
a uma situação que veda toda possibilidade de resposta simbólica que deter- mais."Ainda em 1906, um cão, na Suka, foi julgado e executado por sua par-
mina o caráter particularmente odioso desse tipo de castigo. ticipação num roubo seguido de assassinato:' Sentimo-nos bem tranqüilizados
Diferentemente da liquidação física, a justiça é um ato social, moral e ao ler isso: já não nos encontramos nesse ponto. Subentendido: hoje somos
ritual. O caráter odioso do castigo de uma criança ou de um louco advém do "humanos" com os animais, nós os respeitamos. Ora, é exatamente o inverso:
aspecto moral da justiça: se o "outro" deve estar convencido da culpa e ser o desgosto que nos inspira a execução de um animal tem a razão direta do
condenado enquanto tal, o castigo perde seu próprio sentido, porque nem a desprezo que temos por ele. E porque o relegamos, o que é próprio da nossa
consciéncia da falta nem a humilhação são possíveis no caso desses "crimi- cultura, à irresponsabilidade, ao inumano, que o animal se torna indigno do
nosos". Logo, é igualmente estúpido enforcar os leões. Mas há outra coisa no ritual humano: basta então que aquele seja aplicado para nos causar nausea,
castigo de um animal, advinda dessa vez do caráter ritual da justiça. Mais do não por causa de algum progresso moral, mas devido ao aprofundamento do
que a morte infligida, é a aplicação de um cerimonial humano a uma besta que racismo do humano.
compõe a atroz extravagancia da cena.Todas as tentativas de fazer a caricatura Aqueles que outrora sacrificavam ritualmente os animais não os tomavam
dos animais, todos os disfarces e travestis de animais na comédia humana são
sinistros e malsãos
Mas por que
-
essa
na morte, isso se torna francamente insuportável.
repulsa em ver o animal tratado como ser humano?E que, nes-
por bestas. E mesmo a sociedade da Idade Media que os condenava e castigava
na forma da lei estava bem mais próxima deles do que nós, a quem essa prática
horroriza. Eles os julgavam culpáveis: isso equivalia a fazer-lhes honra.A inocéncia
se caso, o homem é transformado em besta. Na besta que se enforca, enforca-se, qual os enviamos (ao lado dos loucos, dos débeis e das crianças) é significativa
dada a força do signo e do ritual,um homem,porém um homem transformado em da distancia radical que nos separa deles, da exclusão racial em que os mantém
besta,como por magia negra. Uma significação reflexa, vinda do fundo da recipro- a definição rigorosa do Humano. Num contexto em que todos os seres vivos são
cidade ativa em toda parte, sempre, seja qual for a nossa posição, entre o homem parceiros da troca, os animais tém "direito" ao sacrifício e à expiação ritual. 0
e o animal, entre o carrasco e sua vítima, mistura-se com a representação visual sacrifício primitivo do animal está ligado ao seu estatuto sagrado e excepcional de
numa terrível confusão,e dessa ambigüidade maléfica nasce (como em A Metamor- divindade, de totem'. Não mais os sacrificamos e sequer os punimos,e orgulhamo-
fose de Kafka) o desgosto. Fim da cultura, fim do social, fim da regra do jogo.Matar -nos disso, mas é simplesmente que os domesticamos, fizemos deles um mundo
uma besta segundo formas humanas desencadeia uma monstruosidade equivalen- racialmente inferior, nem mesmo digno da nossa justiça; porém exterminaveis
te no homem, que se torna vítima do seu próprio ritual.A instituição da justiça, por como carne de açougue. Ou ainda, o pensamento racional liberal toma a si o
meio da qual o homem pretende distanciar-se da bestialidade, volta-se contra ele.
-
Claro que a bestialidade é um mito linha de cesura que implica uma prerrogativa
absoluta do humano e a rejeição do animal no"bestial".Essa discriminação justifica-
encargo daqueles a quem excomunga: os animais, os loucos, as crianças, que
"não sabem o que fazem" -
logo, que sequer são dignos do castigo e da morte,
mas naturalmente da assisténcia social: proteções de todo género, serviços públi-
-se relativamente, não obstante, quando implica, ao mesmo tempo que a prerroga-
tiva,todos os riscos e obrigações do humano, com destaque a da justiça e da morte
cos de assisténcia, psiquiatria "open", pedagogia moderna -
todas as formas de
socials - que, pelo contrário, nos termos dessa mesma logica, o animal não
absolutamente capaz de ter. Impor-lhe es.sa forma é transpor o limite entre os dois
inferiorização definitiva, mas delicada, As quais recorre a Razdo Liberal.
Comiseração racial por meio da qual o humanismo duplica sua primazia com
relação aos "seres inferiores"7.
e,num mesmo movimento, abolir também o humano. 0 homem não é mais, nesse
caso,do que a caricatura imunda do mito da animalidade por ele mesmo instituído.
Nenhuma necessidade de psicanálise, de Figura-do-Pai, de erotismo sádico
e de culpa para explicar a nausea do suplício bestial. Tudo aqui é social, tudo 6.Ao contrário do que se acredita, os sacrifícios humanos sucederam Os sacrificios animais, por
se relaciona com a linha de demarcação social que o homem traça em torno ter o animal perdido sua preeminencia mágica e por ter o homem-rei sucedido ao animal-totem
de si mesmo, nos termos de um código mítico de diferenças -e à réplica que como digno da função sacrifical. O sacrifício substitutivo do animal, bem mais recente, tem LIM
sentido totalmente distinto.
quebra essa linha, de acordo com a lei que preconiza que a reciprocidade 7. Assim, antigamente poupavam-se os prisioneiros de guerra para faze-1os escravos. Mesmo
nunca cesse: nenhuma discriminação deixa jamais de ser imaginária, e a reci- mais dignos do potlatch e do sacrifício, eles eram condenados ao estatuto mais vil e á morte lenta
procidade simbólica as atravessa sempre, para o bem ou para o mal. do trabalho.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

É a luz de tudo isso que se põe a questão da pena de morte, que também diferença - uma e outra está igualmente distante da configuração simbólica em
é a da ingenuidade ou da hipocrisia de todo humanismo liberal sobre a questão. que o crime, a loucura, a morte são uma modalidade de troca, a "parte maldita"
Entre os primitivos, o "criminoso" não é um ser inferior, anormal, irrespon-
sável. É sobre ele, assim como sobre o "louco" e o "doente", que se articula um
ao redor da qual gravitam todas as trocas. Reintegrar o criminoso à sociedade -
bom número de engrenagens simbólicas -subsiste algo disso na formula de
ordem burguesa. 0 rei é aquele
fazer dele um homem equivalente,"normal"? Mas é justo o contrário. Como diz
Gentis:"Não se trata de devolver o louco à verdade da sociedade, mas de devolver
Marx do criminoso como função essencial da
a quem é reservado o crime por exceléncia de violar o tabu do incesto - a sociedade à verdade do louco" (Les Mars de l'asile).Todo o pensamento huma-
nista fracassa diante dessa exigéncia -
abertamente atendida nas sociedades
nisso que ele é rei e é nisso que sera levado à morte.Sua expiação lhe confere anteriores, sempre presente, mas oculta, bem como violentamente reprimida, nas
o estatuto mais elevado, pois é ele que relança o ciclo das permutas. Ha toda nossas (porque o crime e a morte provocam sempre o mesmo júbilo secreto,
uma filosofia da crueldade (no sentido de Artaud) que não conhecemos mais, porém vil e obsceno).
e que exclui tanto a infãmia social como a pena: a morte do criminosorei não Se num primeiro momento a ordem burguesa se desembaraça do crime e da
uma sanção, ela não separa nem elimina alguma coisa podre do corpo so- loucura mediante a liquidação ou o encarceramento, num segundo ela neutraliza
cial; pelo contrário, é festa e cume, é com base nela que se renovam as soli- tudo isso com base na terapêutica. É a fase da absolvição progressiva do crimino-
dariedades, que se dissolvem as separações. 0 louco, o bufão, o bandido, o so e de sua reciclagem como ser social, por meio de todos os desvãos da medi-
herói e muitas outras personagens das sociedades tradicionais desempenha- cina e da psicologia. Mas é preciso perceber que toda essa reviravolta liberal tem
ram, guardadas todas as proporções, o mesmo papel de fermentos simbólicos. como fundamento um espaço social inteiramente repressivo cujos mecanismos
A sociedade se articulava sobre sua diferença. Os mortos foram os primeiros a normais absorveram a função repressiva antes entregue a instituições especiais9.
ter essa função. Ainda não tocados pelo princípio da Razão social, as socieda- 0 pensamento liberal não sabia que estava tão perto da verdade ao afirmar
des tradicionais aceitavam muito bem o criminoso, ainda que fosse por meio que "o direito penal é chamado a se desenvolver no sentido de uma medicina
de sua morte ritual e coletiva8, da mesma maneira como a sociedade campo- social preventiva e de uma assisténcia social curativa" (Encyclopaedia Universalis).
nesa seus idiotas de vilarejo, mesmo que como objetos rituais de derrisão. Ele subentende com isso que o sistema penal é chamado a desaparecer enquanto
Acabou essa cultura da crueldade em que a diferença é exaltada e expiada penal.Mas isso não é verdade: é a própria penalidade que é chamada a se realizar
no mesmo ato sacrifical. Não conhecemos mais, com relação aos desviantes, do na forma mais pura na grande reciclagem terapéutica, psicagógica e psiquiátrica.
que o extermínio ou a terapéutica. Só sabemos cortar, expurgar e rejeitar para as É a violência penal que encontra seu equivalente mais sutil na ressocialização e
trevas sociais. E isso na medida da nossa "toleraincia", da nossa concepção sobe- na reeducação (e, por outro lado, na autocritica ou no arrependimento, segundo
rana da liberdade."Se as sociedades contemporãneas progrediram no nível dos
costumes, não foi à exclusão do fato de terem regredido no nível das mentalida-
o sistema social dominante) -
e, a partir daí, estamos todos marcados na própria
vida normal: somos todos loucos e criminososm.
des" (Encyclopaedia Universalis). Ao se normalizar, isto é, ao estender a todos a
lógica das equivaléncias - todos são livres e igual perante a lei -,
a sociedade
9. Houve a mesma reviravolta liberal ern outro nivel, na Inglaterra de 1830, onde se desejava
enfim socializada exclui todos os anticorpos. É então que
mento, as instituições específicas para recebé-los - cria, no mesmo movi-
é assim que florescem as
prisões, os asilos, os hospícios, as escolas, sem esquecer das fábricas, que também
substituir o carrasco por uma polícia preventiva regular. Os ingleses preferem o carrasco à força
policial regular. E de fato a polfcia, criada para reduzir a violencia praticada contra o cidadão,
simplesmente dá precedencia ao crime diante da violencia contra o cidadão. Com o tempo, ela
foram levadas as florescimento com a emergéncia dos Direitos Humanos: eis revelou-se bem mais repressiva e perigosa para o cidadão do que o próprio crime. Também nesse
caso, a repressão aberta e pontual metamorloseou-se ern repressão preventiva generalizada.
como devemos entender o trabalho. A socialização não é nada mais do que essa 10. Tem esse sentido a famosa formula "Somos todos judeus alemães" (mas também: somos
imensa passagem da troca simbólica das diferenças à lógica social das equivalén- todos indios, negros, palestinos, mulheres ou homossexuais). A partir do momento em que a
cias. Todo "ideal social" ou socialista apenas duplica esse processo de socializa- repressão das diferenças deixa de ser feita por meio da exterminação e passa a se fazer pela
absorção na equivalência e na universalidade repressiva do social, somos todos diferentes e repri-
ção, e o pensamento liberal que deseja abolir a pena de morte também não faz
mais do que prolongá-la. Pensamento de direita ou pensamento de esquerda
midos. Há apenas detentos numa sociedade que inventa as prisões "open" - ha somente sobre-

sobre a pena de morte - histeria reacionária ou humanismo racional: nenhuma


viventes numa sociedade que pretende abolir a morte. É nessa contaminação retroativa que se le
a onipotencia da ordem simbólica - a irrealidade no fundo das separações, das linhas que o
poder traça. Disso decorre a força de uma formulação como "Somos todos judeus alemães", no
sentido de que ela rid() exprime uma solidariedade abstrata do tipo "Todos juntos por... Todos
8. Mas quando e por que essa morte cessa de ser um sacrificio para converter-se ern suplicio? unidos ern torno disso ou daquilo... Avante corn o proletariado etc. etc:', mas o fato inexorável da
Quando deixa ela de ser urn suplicio para tornar-se execução, como o é para nós? Não ha história reciprocidade simbólica entre uma sociedade e aqueles que ela exclui. Num só movimento, ela se
da mode e da pena de mode: ha apenas a genealogia das configurações sociais que dão sentido alinha com eles como diferença radical.Nisso reside a retomada em maio de 1968 de alguma coisa
morte. fundamental, ao passo que os outros slogans eram apenas encantamento politico.

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A EcoNomIA POLITICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINIIA MORTE QUE SONHA

Não apenas a pena de morte e a violencia penal podem desaparecer nessa condição social formulam uma nova equação da responsabilidade, mas sempre em
sociedade,como o devem, e os abolicionistas não fazem senão seguir o sentido do termos de causalidade e de contrato. Ao final do prazo desse novo contrato, o
sistema,porém em plena contradição com eles mesmos.Eles querem abolir a pena criminoso não merece senão a piedade (cristã) ou a seguridade social. O pensa-
de morte mas sem abolir a responsabilidade (porque,sem responsabilidade,não há mento de esquerda também nisso não passa da invenção de formas neocapitalistas
consciência nem dignidade humana nem, portanto, pensamento liberal!) Ilógico. em que a repressão, como de resto a mais-valia, torna-se difusa. Mas é de fato de
Mas sobretudo inútil: porque a responsabilidade morreu há muito tempo.Vestígio equivalentes da morte que se trata na cura psiquiátrica, a cura ergonômica.0 indi-
individual da era das Luzes, ela foi liquidada pelo proprio sistema quando este se
tornou mats racional. A um capitalismo que repousava no mérito, na iniciativa, no
víduo é aí tratado como sobrevivente funcional, como objeto de reciclagem os
cuidados e a solicitude de que ele se ve' cercado,que nele são investidos, são alguns
-
empreendimento individual e na concorrência era necessário um ideal de respon- dos traços da anomalia.A tolerancia de que ele goza é da mesma ordem da que
sabilidade e, por conseguinte, a repressão equivalente: no bem e no mal,cada um, podemos ver exercida com relação bestas: é uma operação por meio da qual a
'as

empreendedor ou criminoso, recebe a sanção do seu mérito. A um sistema que ordem social exorciza e controla seus próprios espectros. 0 sistema nos torna a
repousa na programação burocrática e na execução do piano, são necessários todos irresponsáveis? Isso só é suportável quando se circunscreve uma categoria de
executantes irresponsciveis e, portanto, todo o sistema de valores se desfaz por si
mesmo: ele já não é operacional. Pouco importa lutarmos ou não para aboli-la: a
irresponsáveis notódos que vão ser curados enquanto tais -o
que nos dará, por
efeito de contraste, a ilusão de responsabilidade. Os delinqüentes, os criminosos, as
pena de morte é inútil. Também a justiga vem abaixo: em toda parte irresponsa- crianças, os tolos vão pagar o custo dessa operação cirúrgica.
bilizado, o indivíduo, vem a ser, aconteça o que acontecer, um pretexto das estru-
turas burocráticas e não aceita mais ser julgado por ninguém,sequer pela sociedade
inteira. Mesmo o problema da responsabilidade coletiva é falso: a responsabilidade
Um simples exame em termos "materialistas" (de lucro e de classe) da evo-
simplesmente desapareceu.
1K-do da pena de morte deveria deixar perplexos os que desejam aboli-la. É
0 benefício secundário da liquidação dos valores humanistas é a decomposi- sempre por meio da descoberta de substitutos econômicos mais vantajosos, racio-
ção do aparato repressivo, fundado na possibilidade de distinguir"em sã consciên-
nalizados em seguida como "mais humanos", que a pena de morte se viu histo-
cia" o bem e o mal, e de julgar e condenar seguindo esse critério. Mas a ordem
ricamente reduzida.Assim ocorreu com os prisioneiros de guerra poupados para
tem condições de renunciar à pena de morte. Ela ainda ganha com isso e as
ser escravizados, como os criminosos nas minas de sal de Roma, a proibição do
prisões podem se abrir. Porque a morte e a prisão eram a verdade da jurisdição
duelo no século XVII, a instituição dos trabalhos forgados como solução repara-
social de uma sociedade ainda heterogenea e dividida.A terape'utica e a reciclagem
dora e a extorsão variável da força de trabalho, dos campos nazistas à reciclagem
são a verdade da jurisdição social de uma sociedade homogônea e normalizada.
ergoterápica. Em parte alguma há milagre: a morte desaparece ou se atenua
0 pensamento de direita se refere preferentemente à primeira e o de esquerda
-
segunda mas tanto uma como a outra obedecem ao mesmo sistema de valores.
quando o sistema, por uma ou outra razão, tem interesse nisso (1830: primeiras
circunstâncias atenuantes num processo que envolvia um burgue-s). Nada de
um membro apodrecido, diz a direita -
As duas falam, em acréscimo, a mesma linguagem médica: amputação de
cura de um orgão doente,diz a esquerda.
Nos dois lados, a morte é jogada no ravel das equivalôncias. 0 procedimento
conquista social nem de progresso da Razão: a lógica do lucro, ou do privilégior2.

primitivo conhece apenas reciprocidades: al contra clã -


morte contra morte
(dádiva contra dádiva). Nós so conhecemos um sistema de equivalôncias (morte
decisivo hoje no pensamento racionalista, progressista, humanista -
rado aos documentos da defesa como sistema de explicação. O inconsciente desempenha um papel
ele caiu muito. E a psicanálise
entra assim (sem o querer?) na ideologia.Contudo,o inconsciente teria coisas hem distintas a dizer
por morte) entre dois termos tão abstratos quanto na troca econômica: a socieda- sobre a morte se não tivesse aprendido a lingua do sistema: ele diria simplesmente que a morte
de e o indivíduo, sob a jurisdição de uma instancia moral "universal" e do direito. rid() existe,ou melhor, que abolir a morte é um fantasma nascido das profundezas da repressão da
morte. Em vez disso, ele 95 serve hoje de justificativa aos nossos idealistas sociais da irresponsabi-
Morte por morte, diz a direita, pagar com a mesma moeda, quem mata tem de lidade e ao seu discurso moral: a vida é um bem, a mode é um mal.
morrer, é esta a lei do contrato. Intolerável, diz a esquerda, o criminoso deve ser Em sua fase clássica e violenta que ainda hoje coincide com o pensamento conservador, o
poupado: ele não é realmente responsável.0 princípio de equivalencia está salvo: capital age sobre o discurso da psicologia consciente e da responsabilidade e, portanto, da repres-
são:é o discurso terrorista do capital.Em sua fase mais avançada, que coincide com o pensamento
basta que um dos termos (a responsabilidade) tenda para o zero que o outro (a
progressista, e até revolucionário, o neocapitalismo incide sobre o discurso da psicanálise: incons-
sanção) também vai tender para ele. 0 ambiente, a infãncia, o inconsciente", a ciente irresponsabilidade tolerancia reciclagem. A consciencia e a responsabilidade são o dis-
curso normativo do capital. 0 Inconsciente é o discurso liberal do neocapitalismo.
12. 1819: é diante da própria press-do dos empreendedores e dos proprietários, bem como
I. Porque nessa vontade de abolição da mode, que é o projeto da economia politica, o porque a jurisdição demasiado severa da pena de morte bloqueava a máquina penal (os jurados
Inconsciente, por um curioso retorno das coisas (ele que"não conhece a morte", ele que é pulsào só podiam escolher entre a pena de mode e a absolvição) que ela é abolida para uma centena
de morte) Vern a desempenhar um importante papel. Ele se torna o discurso de referencia da tese de casos (Inglaterra). Sua abolição corresponde, portanto, a uma adaptação racional, a uma maior
da irresponsabilidade do criminoso (o crime como acting-out [passagem a atos]). Ele é incorpo- eficácia do sistema penal.
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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

Mas essa análise é bem insuficiente: ela apenas põe uma racionalidade Vemos com clareza de onde parte a contestação humanista: do sistema de
econômica no lugar de uma racionalidade moral. O que está em jogo é outra valores individualista de que ela é o coroamento:"0 instinto de conservação das
coisa, uma hipótese "pesada", diante da qual a interpretação materialista pare- sociedades,e portanto dos indivíduos",diz Camus,"exige que se postule a responsa-
ce uma hipótese "leve". Porque o lucro pode ser um efeito do capital, mas bilidade individual". Porém justamente esses postulados definem a platitude da
nunca é a lei profunda da ordem econômica.A lei profunda desta é o controle vida e da morte nos nossos sistemas dominados pela equivaléncia. Fora daí, o
progressivo da vida e da morte. Seu objetivo é arrancar também a morte da homem nada tem a fazer com o instinto de conservação nem com a responsabili-
diferença radical, a fim de submetê-la A lei de equivaléncia. E a ingenuidade dade (dois preconceitos complementares na visão abstrata e racionalista do sujeito).
do pensamento humano (liberal ou revolucionário) está no fato de não ver que A morte retoma seu sentido de troca sacrifical, de momento coletivo, de intensa
sua recusa da morte é fundamentalmente a mesma do sistema: a recusa de libertação do sujeito."Não há paixão tão fraca que não possa enfrentar e dominar
toda coisa que escapar A lei do valor. É só nesse sentido que a morte é um mal. o medo da morte", diz Bacon. Mas isso é muito pouco: a própria morte é uma
Contudo, o pensamento humanista faz dela uma mal absoluto. E é a partir disso paixão. E, nesse nível, a diferença entre o eu e os outros desaparece:"o desejo de
que ele mergulha nas piores contradições13. Claude Glayman (Le Monde, a
propósito da execução de Buffet e Bontemps):"0 sentimento irremediavelmen-
matar coincide freqüentemente com o desejo de morrer ou de se anular"
homem deseja viver, mas também deseja não ser nada, quer o irreparável, e a
- "o

te humano de que nenhum homem tem o direito de infligir voluntariamente a morte por si mesma. Nesse caso, não 95 a perspectiva de ter infligida a si a morte
morte ["irremediavelmente é uma espécie de lapso: o humanista não tem o ar não poderia deter o criminoso, sendo contudo provável que aumentasse ainda
indubitavelmente convencido dessa evidência] ... A vida é sagrada. Mesmo sem mais a vertigem na qual ele se perde". Sabe-se que o suicídio e o assassinato
fé religiosa, estamos profundamente persuadidos disso... Numa sociedade de são muitas vezes intercambiáveis, com uma forte predileção pelo suicídio.
consumo, que tende a banir a escassez, a morte é, se se pode dizer, ainda mais
intolerdvel [a vida como bem de consumo, a morte como escassez: incrível
Essa morte, passional, sacrifical, aceita abertamente o espetdrulo da morte -
platitude - mas o comunismo, e o próprio Marx, concordariam com essa
equação]....Também af prevalece a impressão de uma espécie de permanén-
da qual fizemos, como de todas as funções orgãnicas, uma função moral, portan-
to, vergonhosa e clandestina. As boas almas insistem bastante no caráter vergo-
nhoso das execuções ptiblicas, mas não véem que o odioso desse tipo de execu-
cia da Idade Media... Em que sociedade vivemos? Que rumos iremos seguir? ção advém-lhes do seu caráter contemplativo: a morte do outro é nele saboreada
etc. Porque não se deve dar as costas à vida! Seja ela qual for! (exatamente a
entrada na morte "As avessas", princípio de base das almas piedosas
mesmas que entram na revolução As avessas, dando apesar disso as costas
as - a uma distãncia espetacular. Essa não é a violência sacrifical, que não só exige a
presença total da comunidade como é ela mesma uma das formas de sua presen-
ça diante de si. Algo dessa festividade contagiosa está no episódio de 1807 na
vida, acrobacia inverossfmil, porém característica da torção do pensamento Inglaterra no qual 40.000 pessoas que foram assistir a uma execução foram toma-
lógico sobre si mesmo a fim de satisfazer sua recusa da morte). das de tamanho delfrio que cem delas caíram mortas no chão. Nada há de co-
mum entre esse ato coletivo e o espetáculo da exterminação.Se confundirmos os
Koestler (La Peine de rnort, p.35,0 C6cligo sangrento"):"Nossa pena capital não herdou coisa dois na mesma reprovação abstrata da violéricia e da morte, confundir-nos-emos
alguma das fogueiras da Idade Média. Ela tern sua própria hist6ria. Ela é o resíduo de uma juris- com o pensamento de Estado, isto é, a pacificação da vida. Ora, se a direita usa
-o
-
dição contemporãnea ao desenvolvimento da economia política cuja fase mais feroz
sangrento da Inglaterra do século XIX coincide corn a Revolução Industria1.0 costume medieval
previa a morte para alguns casos particularmente graves. Depois, a curva torna-se ascendente,
Código primordialmente a chantagem repressiva, a esquerda se distingue na concepção
e implantação de modelos futuros de socialização pacificada.
ligada à defesa cada vez mais imperiosa do direito de propriedade privada, que chegou ao auge Assim, julga-se o progresso de uma civilização apenas a partir do seu res-
por volta dos séculos XVIII/XIX". A curva 6. a da ascensão da classe burguesa capitalista. E a peito à vida enquanto valor absoluto. Como isso difere da morte pública, da
recessão após 1850 não é o efeito de um progresso humano absoluto, mas do progresso do sistema morte festejada, da morte-suplício -o riso do negro do Alto Volta diante dos
capitalista.
13. Do tipo:"0 Estado é levado a multiplicar os assassinatos bern reais para evitar um assassi-
fuzis que o abatem, o canibalismo dos tupinambá -e até do assassinato e da
nato desconhecido que ele jamais saberd se tem uma s6 chance de vir a ser cometido" (Camus, vingança, da morte-paixão e do suicídio! Acusa-se a sociedade, no momento
Sur la peine capitale). Esse jogo lógico que pretende levar o sistema a entrar em contradição em que ela mata em plena premeditação, de vingança bárbara, digna da Idade
consigo mesmo, leva diretamente o humanismo liberal a compromissos abjetos:"A abolição da
pena de morte deve ser exigida ao mesmo tempo por razões de lógica e de realismo (!)" (Camus).
Media. Isso é fazer-lhe grande honra. Porque a vingança ainda é uma recipro-
"Em última análise, a pena de morte é errada porque, pela sua própria natureza, exclui toda cidade mortal. Ela não é nem "primitiva" nem "puro movimento da natureza",
possibilidade de proporcionar o castigo conducente ã responsabilidade" (Koestler) é já por esse nada é mais falso do que dizer que sim. Ela é uma forma sobremodo elaborada
motivo que os próprios capitalistas exigiam sua abolição na Inglaterra ern 1820! 0 argumento de obrigação e de reciprocidade, uma forma simbólica. Nada tem que ver com
liberal 6: o terror labora contra seu pr6prio objetivo; uma escala de penas bem dosadas, o "castigo
a nossa morte abstrata, subproduto de uma instal-Ida ao mesmo tempo moral
mínimo" é ao mesmo tempo "mais humano e mais eficaz (!)".Essa equivalencia entre o humano
e a eficácia diz muito sobre o pensamento humanista. e burocrática (nossa pena capital, nossos campos de concentração) - morte

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA Moim: QUE SONHA

contábil, morte estatistica, que tem tudo que ver com o sistema da economia programming-system. A morte deve poder ser garantida como serviço social,
política. Ela tem a mesma abstração desta última, que nunca é a da vingança, integrada como a saúde e a doença sob o signo do Plano e da Seguridade
nem a do assassinato ou do espetáculo sacrifical. Judicial, concentracional, Social. É essa a história dos "Motels-Suicide" nos E.U.A; neles, por uma módica
etnocidal: tal é a morte que produzimos, aquela que nossa cultura aperfeigoou. quantia pode-se proporcionar a morte nas condições mais agradáveis (como
Hoje, tudo mudou, e nada mudou: sob o signo dos valores da vida e da tole- qualquer outro bem de consumo, serviço perfeito, tudo é previsto, até pessoas
rancia, temos o mesmo sistema de exterminação, porém adocicado, regendo a encantadoras que fazem o freguês recuperar o gosto pela vida; depois disso,
vida cotidiana
tivos.
- e ele sequer precisa ainda da morte para realizar seus obje- envia-se gentilmente, com toda consciéncia profissional, o gás ao quarto, sem
conflitos nem hesitações. É um serviço que os Motels-Suicide oferecem, justa-
mente retribuído (eventualmente reembolsado?) Por que a morte não se torna-
ria um serviço social uma vez que, como todo o resto, ela é funcionalizada,
Porque o mesmo objetivo que se inscreve no monopólio da violéncia ins- como consumo individual e computável no input-output social?
titucional e da morte realiza-se igualmente na sobrevivência forçada, no forcing Para que o sistema consinta com esses sacrifícios económicos na ressurrei-
da vida pela vida (rins artificiais, reanimação intensiva de bebés malformados, ção artificial dos seus dejetos vivos, é preciso que ele tenha um interesse fun-
damental em tirar das pessoas até mesmo o acaso biológico de sua morte.
dimentos que equivalem a dispor da morte e a impor a vida
qual finalidade? A da ciéncia e a da medicina? Se for,
-
agonias prolongadas a qualquer prego, transplantes etc.).Tudo isso são proce-

trata-se
nos termos de
de paranoia
"Morra que nos faremos o resto" não passa de um velho adagio publicitário
usado pelas funeral homes. Hoje, morrer já faz parte do resto, e os Thanatos
científica sem nenhuma relação com algum objetivo humano.A do lucro? Não: Centers se encarregarão da morte assim como os Eros Centers se encarregam
a sociedade enterra nisso somas gigantescas. Essa "terapéutica heróica" se do sexo. É a caça As bruxas que continua.
caracteriza por custos crescentes e "retornos decrescentes": fabricam-se sobre- É preciso uma delegação da justiga, da morte, da vingança a uma instãn-

viventes improdutivos. Se a Seguridade Social ainda pode ser analisada como cia transcendente "objetiva". É necessário que a morte e a expiação sejam
"reparadora da forca de trabalho em benefício do capital", esse argumento retiradas de circulação, monopolizadas ao extremo e redistribuídas. É preciso
uma burocracia da morte e do castigo, assim como é necessária uma abstração
sistema de valores é essencial ao equilíbrio estratégico do conjunto
sobrelançamento desequilibra economicamente o conjunto.Que fazer? Impoe
-
aqui sem valor: ela sobrelança a preservação da vida como valor porque esse
mas esse das trocas economicas, políticas e sociais: do contrário, é toda a estrutura do
controle social que cai por terra.
Eis por que toda morte ou violéncia que escape a esse monopólio do Estado
uma escolha económica na qual vemos perfilar-se a eutanásia como doutrina
e prática oficiosa. Decide-se manter vivos 30% dos urémicos graves na França subversiva- prefiguração da abolição do poder 0 fascínio exercido pelós
glandes assassinos, bandidos ou foras-da-lei vem disso, unindo-se na realidade ao
(36% nos EUA). A eutanásia já existe em toda parte, e a ambigiiidade de fazer
dela uma reivindicação humanista (o mesmo se pode dizer da "liberdade" de que se atribui As obras de arte: algo da morte e da violéncia é arrancado ao
monopolio do Estado para ser revertido a uma reciprocidade direta, selvageM,
aborto) é chocante: ela se inscreve na lógica de médio ou longo prazos do
sistema. Tudo isso segue a direção de uma ampliação do controle social. Por- -
simbolica,da morte tal como algo na festa e na despesa supérflua é retomado
do económico, a fim de ser revertido ao consumo de signos. Só isso é fascinante
que, por trás de todas as contradições aparentes, o objetivo é por certo garantir
no nosso sistema. S6 é fascinante o que não se troca em valor: sexo, morte,
-control, executar as pessoas ou obrigá-las a sobreviver -
o controle sobre todo o campo da vida e da morte. Do birth-control ao death-
e a interdição de loucura, violência, coisas que, por essa razão, são reprimidas em toda parte. Os
milhões de mortos da guerra são trocados em valor de acordo com uma equiva-
morrer é a forma caricatural, porém lógica, do progresso
essencial é que a decisão lhes escape, e que etas nunca sejam
da tolerancia
livres, em
o
sua lência geral,"morrer pela pátria" - são, por assim dizer, reconvertíveis em ouro,
não são perdidos por todos. 0 assassinato, a morte, a infração são legalizados,
vida ou em sua morte, tendo de morrer e viver de acordo com o visto social.
E é até demais que as pessoas estejam entregues ao acaso biológico da morte, quando não legais, em toda parte, desde que sejam convertíveis em valor, segun-
porque isso ainda é uma espécie de liberdade. Assim como ordena "Não ma- do o mesmo processo de mediação que afeta o trabalho. Só certas mortes, certas
tarás", assim também a moral ordena hoje"Ndo morrerás"- seja como for, não práticas escapam a essa convertibilidade, só elas sac) subversivas, e sao muitas
importa como, e somente se a lei e a medicina o permitirem. E se a morte lhe vezes da ordem do crime.
for concedida, isso ainda terá dependido de uma decisão. Em suma, a morte Dentre etas está o suicídio, que tomou em nossas sociedades uma extensão
propriamente dita é abolida em favor do death-control e da eutanásia: e nem e uma definição diferentes até tornar-se, no quadro da reversibilidade ofensiva da
mesmo continua a ser a morte, mas alguma coisa totalmente neutralizada, que morte, a forma da subversão. Há cada vez menos execuções nas prisões, mas os
vem inscrever-se nas regras, nos cálculos de equivaléncia: rewriting-planning- suicídios aumentam cada dia mais: ato de desuio da morte institucional e de

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A EcoNomiA POLITICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONIIA

de uma "qualidade de morte". Uma morte personalizada,"projetada", confortável,


sociedade e condena, a sua própria maneira, invertendo as instancias -
reversão contra o sistema que a imp-6e: por meio do suicídio, o indivíduo julga a
ele uma morte "natural": direito inalienável que é a forma acabada do direito burgués
reinstitui a reversibilidade lá onde tinha desaparecido por completo e,ao mesmo
tempo, retoma para si a vantagem. Mesmo os suicídios fora da prisão tornam-se, desse direito natural e pessoal
do sujeito
-
individual. A imortalidade nunca passa, por outro lado, de projegão no infinito
apropriagão da sobrevivencia e da eternidade
inalienável em seu corpo, inalienável em sua morte.Que desespero
todos eles, politicos nesse sentido (o hara-kiri pelo fogo é somente a forma mais
esconde essa reivindicagão absurda,semelhante ao que alimenta nosso delírio de
espetacular): eles todos produzem uma brecha infinitesimal porém inexpiável,
porque um defeito total para um sistema não poder atingir a total perfeigão
.6

basta que a mais ínfima coisa lhe escape à racionalidade.


- acumulagão de objetos e de signos, a colecionar maniacamente nosso universo
privado: é preciso ainda que a morte venha a ser o ultimo objeto da colegão e,
0 interdito do suicídio corresponde ao advento da lei do valor. Religiosa, em vez de atravessar essa inércia como o único evento possível, entre ela mesma
moral ou económica, é sempre a mesma lei que diz: ninguém tem o direito de no jogo da acumulagão e da administragão das coisas.
furtar-se ao capital e ao valor. Ora, cada indivíduo é uma parcela de capital Contra essa torgão impressa pelo sujeito à sua própria perda, não há melhor
(assim como cada cristão é uma alma que é preciso salvar), não tendo pois o desisténcia do que na morte violenta, inesperada, que restitui a possibilidade
direito de destruir-se a si mesmo. É contra essa ortodoxia do valor que o suicida de escapar ao controle neurótico do sujeito".
se insurge, destruindo a parcela de capital de que dispõe. Isso é imperdoável: Em toda parte, vai se evidenciando uma obstinada e feroz resisténcia a
pode-se chegar ao ponto de enforcar o suicida por ter tido sucesso. É, portanto, esse princípio de acumulagão, de produgão e de conservagão do sujeito, no
sintomático que o suicídio cresga numa sociedade de saturagão da lei do valor, qual ele pode ler sua própria morte programada. Num sistema que intima a
enquanto desafio a sua regra fundamental. Mas ao mesmo tempo é preciso viver e a capitalizar a vida, a pulsão de morte é a única alternativa. Num
rever-lhe a definigão: se todo suicídio se torna subversivo num sistema deveras universo minuciosamente regulamentado, um universo da morte realizada, a
integrado, toda subversão e resisCencia a esse sistema é reciprocamente de única tentagão é normalizar tudo por meio da destruigão.
natureza suicida. Ao menos as que o realizam em suas obras vivas. Porque a
maioria das práticas, mesmo as chamadas práticas "políticas" e "revolucioná-
rias", se contentam em trocar sua sobrevivencia, isto é, em negociar sua morte A CHANTAGEM A SEGURANÇA
com o sistema.Raras são as que se opõem a produgão e a troca controlada da Outra modalidade de controle social na forma de chantagem em termos
morte, contra o valor de troca da morte, não seu valor de uso (porque a morte da vida e da sobrevive-ncia: a seguranga. Ela está em toda parte diante de nós,
talvez seja a única coisa que não tem valor de uso, que jamais remete a uma e as "forgas de seguranga" vão do seguro de vida e da Seguridade Social ao
necessidade, sendo essa a característica que lhe permite tornar-se uma arma cinto de seguranga, passando pelas Companhias Republicanas de Seguro."Se-
absoluta), mas seu valor de ruptura, de dissolugão contagiosa e de negagão. gure-se", diz um slogan publicitário do cinto de seguranga. Claro que a segu-
É suicida a agão dos palestinos ou negros revoltados que incendeiam o ranga é um empreendimento industrial, assim como a ecologia, que é a sua
próprio bairro, suicida a resistência à seguranga em todas as suas formas, sui- extensão no nível da espécie: em toda parte, está ern jogo uma convertibilidade
cidas os comportamentos neuróticos, as desordens múltiplas mediante as quais da morte, do acidente, da doenga, da poluigão, em benefício dos superlucros
desafiamos o sistema sem nunca nos integrar, suicidas todas as práticas políti- capitalistas. Mas trata-se sobretudo da pior das repressões, que consiste em
cas (manifestagões, quebra-quebras, provocagões etc.) cujo objetivo é fazer privar a pessoa da sua própria morte, aquela com a qual sonha no fundo do
surgir a repressão, a "natureza repressiva do sistema", não como conseqüência
secunddria porem como imediaticidade da morte: é o jogo da morte que des-
mascara a fungão de morte do proprio sistema. A ordem detérn a morte, mas
dade tiltima de dar a si mesmo a morte -
seu instinto de conservagão. Necessidade de despossuir cada um da possibili-
última "escapadela" da vida sitiada

não pode jogar com ela - só ganha aquele que joga a morte contra ele.
pelo sistema. Mais uma vez, é a troca-dddiya, nesse curto-circuito simbólico
que é o desafio a si mesmo e à sua própria vida, que é perseguida até a morte.
Não porque exprima a revolta a-social de um indivíduo -a
defecgão de um
ou de milhões de indivíduos não viola em nada a lei do sistema mas porque
0 sistema da propriedade é tão absurd° que leva as pessoas a reivindicar sua traz em si um princípio de sociabilidade radicalmente antagónico ao princípio
própria morte como bem que lhes é prOprio_ a apropriagão privada da morte.
A deterioragão mental da apropriagão chega a ponto de gerar o investimento
14. Contudo, nada 6. simples, pois o sujeito ainda pode invocar a morte violenta, a morte "do
"imobiliário" da morte, não só na preocupagão com essa "residéncia terciária" exterior"-o acidente, o suicídio, a bomba-, a fim de evitar o questionamento de sua imorta-
que se tornou o jazigo ou a sepultura (muitos compram ao mesmo tempo uma lidade "natural". eltimo subterfúgio, última astucia do eu, que pode ao extremo oposto, a
casa de campo e uma concessão no cemitério da cidade), como na reivindicagão busca de uma morte "absurda" para melhor salvar seu princípio imortal.

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

social repressivo que é o nosso.E a troca-dádiva que é preciso matar ao enterrar des instituições que fazem a glória da nossa democracia: a Seguridade Social
a morte sob o mito inverso da segurança. 6 a prótese social de uma sociedade morta ("A Seguridade Social 6 a morte! -
morram da (mica morte autorizada pelo sistema -
Matar a exigéncia da morte. Para que vivam os homens? Não: para que eles
viventes separados de sua
morte e que trocam apenas a forma de sua sobrevivéncia, sob o signo da
maio de 68), quer dizer, que foi previamente exterminada em todas as engre-
nagens, em seu sistema de reciprocidades e de obrigações profundas que fazia
com que nem o conceito de seguranca nem o de "social" tivessem sentido. 0
segurança contra todos os riscos.Assim ocorre com a segurança no automóvel. "social" comega com a assunção da responsabilidade pelo morto. Mesmo ce-
Mumificado em seus bone, seus cintos, seus itens de segurança, amarrado ao nário válido para as culturas destrufdas, que são ressuscitadas e protegidas
mito da segurança, o motorista rid() passa de um cadaver, encerrado em outro como folclore (cf. M. de Certeau: La Beauté du Mort). E para o seguro de vida:
morto, este não-mftico: neutro e objetivo como a técnica, silencioso e artesanal. trata-se da variante dorn6stica de um sistema que supõe em toda parte a morte
Soldado a sua máquina, encravado nela, ele não mais corre o risco de morrer,
visto já estar morto. Af reside o segredo da segurança, tal como o do bife
como axioma.Tradução social da morte do grupo - ningu6rn se materializaria
para o outro exceto como capital social indexado à sua morte.
debaixo do celofane: cercar-nos de um sarcaago para impedir-nos de morrer'5. Dissuasão da morte ao prego de uma continua mortificação: tal 6 a lógica
Toda a nossa cultura técnica cria um ambiente artificial de morte.Não só os paradoxal da segurança. Num contexto cristão, a ascese desempenhou o mesmo
armamentos, que permanecem em toda parte o arquétipo da produção material, papel.A acumulação de sofrimento e de peniténcia teve condições de desempe-
mas as máquinas e os menores objetos que nos cercam constituem um horizonte nhar a mesma função de couraça caracterial, de sarcófago protetor, contra o
de morte, e de uma morte doravante indissolúvel porque cristalizada e fora de inferno. E nossa compulsão obsessiva de segurança pode ser interpretada como
alcance: capital fixo de morte em que o trabalho vivo da morte é congelado, uma gigantesca ascese coletiva, uma antecipação da morte na própria vida: de
assim como a força de trabalho é congelada no capital fixo e no trabalho morto. proteção em proteção, de defesa em defesa, por meio de todas as jurisdições,
Ou ainda: toda a produção material de uma gigantesca "couraça caracterial" por instituições,dispositivos materiais modernos, a vida não é mais do que uma morna
meio da qual a esp6cie quer levar a morte em conta.Claro que 6 a própria morte contabilidade defensiva encerrada em seu sarcófago com seguro total. Contabili-
que desequilibra a especie e a aprisiona nessa couraça na qual ela cré proteger- dade da sobrevivéncia, em vez da radical compatibilidade vidamorte.
-se. Encontramos af, na dimensão de toda uma civilização, a imagem do sarcófago Nosso sistema vive da produção de morte e pretende fabricar segurança.
automóvel: a couraga de segurança 6 a morte miniaturizada, transformada em Mudança de opinião? De forma alguma! Simples torção no ciclo em que os
prolongamento tecnico do nosso próprio corpo. Biologização do corpo e tecnici- dois extremos se tocam. 0 fato de as montadoras fazerem reciclagem da segu-
zação do ambiente caminham de mãos dadas na mesma neurose obsessiva. 0 rança (tal como a indústria o fez da antipoluição) sem alterar sua escala, seu
ambiente técnico 6 a nossa superprodução de objetos poluentes, frágeis, obsoles- objetivo nem seu produto mostra que a segurança não passa de uma questão
centes. Como a produção vive, toda a sua lógica e sua estratégia se articulam de substituição de termos. A segurança é só uma condição interna de reprodu-
sobre a fragilidade e a obsolescéricia. Uma economia de produtos estáveis e de ção de sistemas que alcançaram certo ponto de complexidade.
objetos bons 6 impensavel: a economia só se desenvolve ao secretar o perigo, a Depois de ter exaltado a produção, é preciso portanto, atualmente, tornar a

da morte que ela mant6m através da produção material -


poluição, a usura, o engano, a assombração. A economia só vive dessa suspensão
de renovar o estoque
de morte disponfvel, pronta a conjurá-lo mediante um sobrelançamento de segu-
segurança um ato heróico."Numa 6poca em que pouco importa quem se mata
ao volante de não importa que vefculo a pouco importa que velocidade, o verda-
deiro herói é aquele que se recusa a morrer" (Cartaz da Porsche:"Vamos matar
ranc.a: chantagem e repressão. A morte secularizou-se definitivamente na produ- certa glorificação da morte"). Ora, isso é diffcil, pois as pessoas são indiferentes
ção material -6 af que ela se reproduz de maneira ampliada como o capital. E segurança: elas não a quiseram quando a Ford e a General Motors a propuseram
o nosso corpo mesmo, tornado máquina biológica, modela-se por esse corpo nos anos 1955-1960. Em todos os lugares foi necessdrio Irresponsáveis e
inorgânico, transformando-se ao mesmo tempo num mau objeto, fadado à doen- cegas? Não: cumpre relacionar essa resistéricia à que foi oposta historicamente
ça, ao acidente e à morte. em toda parte pelos grupos tradicionais aos progressos sociais "racionais": vacina-
Vivendo da producão da morte, o capital tem grande competéncia na gão, medicina, segurança do trabalho, educação escolar, higiene, regulação da
produção de segurança: trata-se da mesma coisa. A segurano é um prolonga- natalidade e tantas outras coisas. Quase sempre essas resisténcias foram quebra-
mento industrial da morte, assim como a ecologia é prolongamento industrial das, e pode-se at6 alegar hoje que ha uma necessidade "natural","eterna","espon-
da poluição. Mais algumas faixas no sarcófago. Isso tambem se aplica as gran- tãnea" de segurança, e de todas as boas coisas que a nossa civilizagão produziu.
Conseguiu-se inocular nas pessoas o virus da conservacão e da segurança, embo-
15. A criogenizaçáo,ou encerramento no gel para fins de ressurreição,é a forma limite desta ra elas lutem ate- a morte para obtê-lo. Na verdade, a situacão é mais complicada:
prática. aquilo por que elas lutam é o direito à segurança, o que é profundamente de outra

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE MINHA MORTE EM TOM PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

ordem. Quanto à seguranea em si, todos fogem dela. Foi necessário intoxicar as que visam os detergentes na menor das sujeiras. Esterilizar a morte a
pessoas ao longo de geraeões para que elas acabassem por crer que tinham qualquer
prego, vitrificá-la, criogenizá-la, climatizá-la, maquiá-la,"projetá-la", fazê-la
"necessidade" dela: esse éxito é um aspecto essencial da domesticaeão e da desa-
parecer com a mesma tenacidade que à imundfcie, ao sexo, ao resíduo bacte-
colonização "sociais". 0 fato de grupos inteiros preferirem perecer a se ver deses- riológico ou radioativo. Make-up da morte: a formula de Hugo faz pensar
truturados pela intervened() terrorista da medicina, da razão, da ciência e do nas
funeral homes americanas em que a morte é imediatamente subtrafda ao
poder central é algo esquecido, depreciado sob o peso da lei moral universal do luto
e a promiscuidade dos vivos para ser"protejada" nos termos das
"instinto" de conservaeão -e que, no entanto, sempre ressurge, e entre os ope- da standing, do smiling e do marketing internacional.
mais puras leis
rários que se recusam a aplicar as normas de seguranea nas fábricas: que querem 0 mais inquietante não é que se devolva uma beleza à morte e que se (16 a
eles com isso senão salvar uma parcela de controle sobre sua própria vida, ainda ela um ar de representação. Todas as sociedades sempre o fizeram. Elas
que por sua conta e risco, ainda que ao preeo do aumento da exploraeão (porque sempre
enfeitaram a abjeeão da morte natural, abjeção social da decomposieão
eles produzem cada vez mais rapidamente)? Eles não são proletários "racionais". que
esvazia o corpo dos seus signos, de sua forea social de significar,para não
ser mais
Mas combatem à sua maneira, e sabem que a exploraeão econômica é menos
grave do que essa "parte maldita", essa parcela maldita que é preciso sobretudo
do que substancia -e que, ao mesmo tempo, precipita o grupo no terror de sua
própria decomposieão simbólica. É preciso ornamentar a morte, cobri-la
não deixar que lhes tirem,essa parte de desafio simbólico que é ao mesmo tempo de
artificialidade, a fim de escapar a esse momento insuportável da carne entregue
desafio de seguranea e desafio à sua própria vida. 0 patrão pode explorá-los até apenas a si mesma,e que cessou de ser signo. Já os ossos desnudos e o esqueleto
a morte, mas so os domina de fato se conseguir levar cada um a identificar-se com selam a reconciliaeão possível do grupo, pois recuperam a forea da mascara e
seu interesse individual e fazer de si o contador e o capitalista de sua própria vida. do
signo. Mas há, entre os dois, essa passagem abjeta pela natureza e pelo
Então ele sera de fato o Senhor e o operário, o escravo. De modo tal que, median- biologico
que é preciso conjurar a qualquer preeo pelas práticas sarcofágicas (devoradoras
te essa única e fnfima resisténcia à ordem moral da seguranea, o explorado con- de carne), que são na realidade práticas semiúrgicas.Toda tanatopraxia,
serva consigo a escolha de vida e morte, é ele que ganha, no seu próprio terreno: também
nas nossas sociedades, é portanto analisada como vontade de conjurar
o simbólico. esse sú-
bito desperdício de signos que se abate sobre o morto, de impedir que
A resistencia do motorista à seguranea é da mesma ordem e dew ser subsista,
na carne a-social do morto, algo que nada signifique.
liquidada como imoral: assim, em toda parte o suicídio tem sido proibido e Em suma, a sarcofagia ritual de toda sociedade, e o embalsamamento,
.6
condenado porque significa, em primeiro lugar, um desafio que a sociedade a preservaeão artificial da carne, é uma variante sua. As práticas
não pode tolerar e que, portanto, assegura a proeminéncia de um só sobre toda das funeral
homes, que nos parecem tão ridículas e despropositadas, a nós idealistas
a ordem social. Sempre a parte maldita -a coisinha que cada um mantérn em morte natural, são por conseguinte, no tocante a isso, fiéis à tradieão mais
da
sua própria vida para desafiar a ordem social, a coisinha que cada um mantém longínqua. Elas se tornam absurdas em sua conotaeão de naturalidade. Quan-
ern seu corpo para dar -e que pode ser sua própria morte, desde que alguém do o primitivo cumula o morto de signos, fá-lo para levá-lo a transitar
a cte a si essa coisinha que constitui todo o segredo da troca simbólica,
porque é dada e recebida, e entregue, sendo, portanto, inconquistável pela
rápido possível para o seu estatuto de morto -
para além da ambigüidade
entre o morto e o vivo testemunhada precisamente pela carne que se
o mais

desfaz.
troca dominante, irredutível à sua lei e mortal para ela: trata-se na realidade do Não se trata de devolver o morto ao vivo: o primitivo entrega o
seu único adversdrio, o único que ela deve exterminar. morto à sua
diferenea, pois 6. a esse preeo que eles poderão reconverter-se em parceiros e
permutar seus signos. 0 cenário das funeral homes é o contrário. Trata-se de
preservar no morto um ar de vida, o natural da vida: ele ainda nos sorri,
FUNERAL HOMES E CATACUMBAS
mesmas cores, a mesma pele, assemelha-se a si próprio para além da morte; - as
"À força de lavar, de ensaboar, de lustrar, de escovar, exibe até mesmo um pouco mais de frescor do que em vida, só lhe faltando
de pentear de esponjar, de polir, de limpar e relimpar falar (mas pode-se ouvi-lo novamente por meio de gravaeão estereofônica).
sucede de toda a sujidade das coisas lavadas passar às Morte falsificada e idealizada corn as cores da vida a idéia secreta é a
de que
coisas vivas."
Victor Hugo 16. Ao devorar-simplesmente também o corpo: nesse
sentido, o canibalismo também é uma
atividade semitirgica (a idéia sempre apresentada de "assimilar por
Assim acontece com a morte: à forea de ser lavada e esponjada, limpada
e relimpada, negada e conjurada, sucede de ela passar a todas as coisas da
é um discurso mágico secunddrio, tanto entre os
primitivos como entre os etnólogos)
trata de uma questão de foro, isto é, de um excedente ou de
-
meio disso a força do morto"
rid() se
um potencial naturat, mas, pelo
contrário, uma questão de signos, quer dizer, proteger um potencial de
vida.Toda a nossa cultura é higiénica: visa expurgar a vida da morte. É à morte signos de todo processo
natural, da natureza devastadora).

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A ECONOMIA POLITICA E A MORTE
MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

a vida é natural e a morte, contraria à natureza-é preciso, portanto, naturalizal


variável de standing (residência secundária) do que como piedade tribal. Fala-se
-la, empalhá-la num simulacro de vida.Há nisso tudo a recusa a deixar a morte
cada vez menos dos mortos, diz-se somente o essencial, faz-se
significar, tomar força de signo, bem como, por trás desse fetichismo sentimen-
desconsideração da morte. Chegou ao fim a morte-solene e circunstanciada, em
tal do natural, uma grande ferocidade com relação ao próprio morto: interdito
-
de apodrecer, interdito de mudar ern vez de ser levado ao estatuto de morto
família:morre-se no hospital- extraterritorialidade da morte. O morto perde seus
e, portanto, ao reconhecimento simbólico por parte dos vivos, ele é mantido
direitos, como o de saber que vai morrer. A morte é obscena e embaraçosa
o luto também passa a s&lo, o bom gosto consiste em escond&lo: não o fazer
-e
como fantoche na órbita destes para servir-lhes de alibi e de simulacro a pró- poder perturbar o bem-estar alheio. O decoro proíbe toda referencia a morte. A
pria vida. Consignado ao natural, ele perde seus direitos à diferença e toda
incineração é o ponto limite dessa discreta liquidação e do mínimo de vestígios.
oportunidade de estatuto social. Nada de vestígios da morte: desamparo.E o imenso dinamismo mortuário já não
Reencontramos aí tudo o que separa as sociedades que não temem os
signos, nem a morte, porque a fazem significar abertamente, e nossas socieda-
da ordem da piedade; é o próprio signo do desamparo -
Logo, ele cresce proporcionalmente ao desinvestimento na morte.
consumo da morte.
des "ideológicas", nas quais tudo é soterrado sob a naturalidade, em que os Já não temos experiência da morte dos outros. A experiência espetacular e
signos não passam de design, entretendo a ilusão de uma razão natural. A televisada nada tem que ver com ela. A maioria das pessoas jamais teve ocasião
morte é a primeira vítima dessa ideologização: aprisionada no simulacro banal de ver alguém morrer.Trata-se de uma coisa impensável em qualquer outro tipo
da vida, ela se torna vergonnosa e obscena.
Há uma graide diferença entre esses santuários, essas drugstores da morte
de sociedade. Ficamos a cargo do hospital e da medicina - a extrema-unção
técnica substituiu todos os outros sacramentos. O homem deixa a companhia dos
sorridente e esterilizada, e os corredores do convento dos Capuchinhos de Palermo, entes queridos antes de morrer. É por outro lado disso que ele morre.
em que tres séculos de cadáveres desenterrados, que a argila do cemitério fossilizou A idéia da sufga Ross de ir falar com pessoas à morte de sua própria
cuidadosamente, com a pele, os cabelos e as unhas, deitados ou suspensos pelos morte,
ombros, em fileiras cerradas, ao longo de compridos corredores reservados
corredor dos intelectuais, corredor dos religiosos, corredor das mulheres, das
- de fazê-las falar. Idéia obscena,denegação geral:ninguém está à morte em nenhu-
ma dependência hospitalar (é o corpo profissional que tem um problema). De-
pois, tomam-na por louca, provocadora, e ela acaba sendo expulsa do hospital.
crianças etc.-, ainda vestindo mortalhas de tecido grosso ou, pelo contrário, de Quando encontra um moribundo com quem falar, ela vai procurar seus alunos,
traje completo, com luvas e musselinas pulverulentas: 8.000 cadáveres num dia mas ao voltar a pessoa já morreu (nessas circunstancias, Ross percebe que ela e
enevoado cobrem de palidez os respiradouros, numa incrível multiplicidade de
atitudes, brincalhões, langorosos, censurosos, ferozes ou timidos - dança de
os alunos é que Lem um problema). Depois, ela tem sucesso - breve haverá uma
junta de psicólogos para velar pelo processo de dar a palavra aos que estão para
morte que foi, antes de tornar-se o Museu Grévin para turistas, lugar de passeio morrer. Neo-espiritismo das ciencias humanas e psicossociais.
dominical para as pessoas próximas e os amigos dos defuntos, que iam O padre e a extrema-unção ainda constituíam um vestígio dessa comunidade
reconhece-los, mostra-los as crianças, nos termos de uma familiaridade viva, de de fala em torno da morto. Hoje, black-out. Seja como for, se o padre não passava
uma "dominicalidade" da morte semelhante à da missa ou a do teatro.Barroco da de um aproveitador, essa fungão é hoje cumprida largamente pela medicina, que
morte (os primeiros corpos desenterrados datam do século XVI e da Contra- nega a todos a palavra, cumulando-os de cuidados e de solicitude técnica. Morte
-Reforma). Solidez de uma sociedade capaz de exumar seus mortos, de conviver infantil, que já não fala, morte inarticulada, ocultada as vistas. Os soros e os
com eles a meio caminho entre a intimidade e o espetáculo, de suportar sem laboratórios, a cura, nao passam de alibi para a proibição da palavra.
pavor nem curiosidade obscena, isto é, sem os efeitos de sublimação e de serie-
dade que nos são habituais, o teatro da morte, no qual a crueldade ainda se faz
signo, ainda que não sejam mais os ritos sangrentos dos tarahumaras.Que contras- A TROCA DA DOENÇA
te com a fragilidade das nossas sociedades, incapazes de enfrentar a morte a não
ser por meio de um humor sem graça ou de um fascínio perversol Que contraste Seja como for, não se morre mais em casa, mas no hospital. Por inúmeras
corn a conjuração ansiosa das funeral homes. boas razões "materiais" (médicas, urbanas etc.), mas sobretudo porque, enquanto
corpo biolagico, o moribundo ou o doente só te'm seu lugar num ambiente técni-
co. A pretexto de curá-lo, deporta-se um e outro para um espaço-tempo ficcional
A MORTE DESAMPARADA que se encarrega de neutralizar a doença e a morte em sua diferença simbólica.
Sendo precisamente o local cuja finalidade é eliminar a morte, o hospital
O culto aos rnortos diminui. Há regras sobre os túmulos, não havendo mais (e a medicina em geral) encarrega-se do doente como virtualmente morto.
concessões perpétuas. Os mortos entram na mobilidade social.A devoção à morte Cientificidade e eficácia terap6utica supõem a objetivação radical do corpo, a
permanece sobretudo nas classes popular e media, porém bem mais hoje como discriminação social do doente, logo, um processo de mortificação. Conclusão

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A ECONOMIA POLÍTICA E A MORTE
MINHA MORTE EM TODA PARTE, M1NHA MORTE
QUE SONHA

lógica da genealogia médica do corpo:"É com o cadáver que a medicina torna-


-se moderna... Permanecerá, sem dúvida, decisivo para a nossa cultura o fato MORTE SEXUALIZADA SEXO MORTÍFERO
de o primeiro discurso sustentado pela medicina sobre o indivíduo ter tido de Falar da morte faz rir, um riso crispado e obsceno.
Falar de sexo não
passar pela mode" (Michel Foucault, Nascimento da Clínica). Mortificado, o prove5a- sequer essa reação: o sexo é legal, só
a mode e pornográfica. A socie-
doente também é mortífero ele se vinga como pode: toda instituição hospi- Cfade, "liberando" a sexualidade, a substitui
progressivamente pela morte na
talar, pelo seu funcionamento, sua especialização, sua hierarquia, procura pre- fungão de rito secreto e de interdito fundamental.
Numa fase anterior, religiosa,
servar-se dessa contaminação simbólica do já-morto. 0 perigoso no doente a morte é revelada, reconhecida, e a sexualidade,
interdita. É o contrário hoje.
essa mode antecipada à qual foi condenado, é a neutralidade na qual é encer-
rado enquanto espera a cura -
mas o corpo morto não tem o que fazer com
esse pare-ntese e com essa cura, le se irradia tal como é, a partir de agora, em
Mas todas as sociedades "históricas" organizam-se
dissociar sexo de morte e jogar a liberação de um
uma forma de neutralizar os dois.
de todas as maneiras para
contra o outro que -o
toda a sua diferença de doente, em todo o seu potencial de morto tornado Há uma oscilação exata nessa estratégia ou a
maleficio
predominância de um dos
nunca terá chegado ao fim toda a manipulação técnica, todo o termos? Para a fase que nos interessa, tudo se passa
como se a indexação da
"ambiente humano", sequer por ocasião de sua morte real, a fim de faze-lo morte fosse o objetivo prioritário, ligado a uma
estratégia de exaltação da se-
calar-se. xualidade: a "Revolução Sexual" orienta-se inteiramente
para isso, sob o signo
0 perigo mais grave constituído pelo doente, aquilo em que ele é verda- do Eros unidimensional e da função de prazer. É por
outro lado isso que lhe dá
deiramente a-social, assemelhando-se a um louco furioso, é sua exige-ncia pro- sua ingenuidade, seu pathos, sua sentimentalidade, ao mesmo
funda de ser reconhecido como tal e de trocar sua doença.ExiOncia aberrante tempo que seu
terrorismo "politico" (imperativo categórico do desejo).
A palavra de ordem da

-
e irrecebivel do doente (e do moribundo) de fundar uma troca nessa diferença
não, de forma alguma, de fazer-se curar e retificar, mas de dar sua doença,
e de que ela seja recebida, logo, simbolicamente reconhecida e trocada, em vez
sexualidade é solidária com a economia politica, porque
abolição da morte. A única coisa que fizemos foi mudar
até que tenhamos, por meio dessa "revolução",
ela também visa b.
o interdito. Pode ser
instalado o interdito fundamen-
de neutralizada na morte técnica hospitalar e nessa sobrevivencia estritamente tal, que é o da morte. Assim agindo, a Revolução
Sexual devora-se a si mesmo,
funcional que se chama de saúde e de cura. porque a morte é a verdadeira sexuação da vida.
Nenhum aperfeiçoamento da relação humana ou terapeutica no hospital ou
no exercicio geral da medicina pode alterar por pouco que seja esse black-out,
esse lock-out simbólico. Chamada a curar o doente, dedicada a curar o medico MINHA MORTE EM TODA PARTE MINHA
MORTE QUE SONHA
e o pessoal de apoio, exclusivamente equipada para curar a instituição inteira até
Em toda parte encurralada e censurada, a
as paredes, as máquinas cirúrgicas e o aparelhamento psicológico (frieza e soli- morte de toda parte ressurge.
Não mais como folclore apocaliptico, tal como a
citude alternadas e, hoje, a "humanização" do hospital): nada em tudo isso viola
a interdição fundamental de um outro estatuto da doença e da morte.Ou melhor,
uívida de certas épocas - que assombrou a imaginação
mas, precisamente esvaziada de toda substância
imaginária, ela passa à realidade mais banal, assumindo
deixa-se ao doente a possibilidade de "exprimir-se", de falar de sua doença, de para nós as feições do
princípio da racionalidade que nos domina a vida.A
falar de sua vida e de se recontextualizar, em suma, de não viver demasiado morte é que tudo funcione
e sirva a alguma coisa, é a funcionalidade
negativamente essa anomalia passageira. Mas quanto a reconhecer como diferen- absoluta, sinalética, cibernética, do
ambiente urbano, como em Play-time, o filme de
ça essa loucura que é a doença, como sentido e riqueza de sentidos, como Jacques Tati, a indexação
material a partir do qual restruturar uma troca sem buscar de modo algum "de-
volver o doente à vida normal" -
isso supõe a total liquidação da medicina e
do hospital, de todo o sistema de encerramento do corpo na "verdade" funcio-
determinada, a doença é sempre questão social, crise
meio da ativação e reativação de todo o metabolismo
é a que há entre doente e medico. Radical
social, resolvida social e publicamente por
social por meio da excepcional relação que
nal -, no limite de toda ordem social dominante,para a qual a simples exigencia em que o mal é sofrido individualmente e a
diferença corn relação au atual exercfcio da medicina,
cidade do mal, a troca do mal é preponderante
terapéutica individualmente administrada. A recipro-
da doença como estrutura de troca é um perigo absoluto''. nas sociedades primitivas. O mal, assim como o
trabalho etc., é uma relação social. A causalidade orgãnica
meio de toda espécie de meios - pode ser reconhecida e tratada por
o mal nunca é concebido como lesão orgãnica,
última instância,como ruptura ou fracasso da troca social. O organico é porém, em
metáfora. ele é, portanto,
17.Entre os dangaleat (Jean Pouillon, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n° 1), a doenca tem tratado "metaforicamente", por meio da operaçao simbólica de troca social
valor iniciático. F. preciso ter tido doenças para ser parte do grupo.Só se vem a ser medico se já através dos dois pro-
tagonistas na cura. Estes sempre são, por outro lado, trés: o grupo é imanente à cura, tanto con-
se esteve doente, ou por isso mesmo.A doença vem das margaï,cada qual tem sua ou suas margaï, dutor como contexto da "eficácia simbólica".Em suma, médico e doença redistribuem-se em torno
que passam de pai para filho.Toda posicão social é alcançada graças à doenca, que é sinal de do mal como relação social, ao passo que, para nos, o mal se autonomiza coin relacão organica
eleição. A doença é uma marca, um sentido o normal não interessa, é insignificante. A doença corn sua causalidade objetiva, objetivando-se o doente e o médico, respectivarnente, como passivo
é a cultura, fonte do valor e principio de organização social. Mesmo quando não tern essa função e ativo, paciente e especialista.

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A ECONOMIA roLtFICA E A MORTE MINHA MORTE EM TODA PARTE, MINHA MORTE QUE SONHA

absoluta do homem à sua função, como em Kafka: a era do funcionário versão estetica do politico que leva ao nfvel do júbilo a aceitação de uma
aquela de uma cultura da morte. É o fantasma da programação total, do exces- cultura de morte. É verdade que todo o sistema da economia politica assume
so de previsibilidade, de exatidão, de finalidade não só nas coisas materiais para nós hoje o caráter de finalidade sem fim, vertigem estética da produtivi-
como na realização do desejo. Em resumo, a morte se confunde com a lei do dade que não passa se vertigem contrariada da morte. É bem por esse motivo
valor. E, singularmente, com o valor estrutural mediante o qual tudo é designa- que a arte está morta:nesse ponto de saturação e de sofisticação, todo o júbilo
do como diferença codificada num nexo universal de relações. Eis o verdadei- passou para o próprio espetáculo da complexidade, todo o fascfnio estético foi
ro rosto da morte ultramoderna, feita da conexão objetiva, sem falha, ultra- monopolizado pelo sistema em sua própria duplicação (que mais faz ele, com
rápida, de todos os termos de um sistema. Nossas verdadeiras necrópoles não sua torres gigantescas, seus satélites, a não ser duplicar os signos?). Somos
são mais os cemitérios, os hospitais, as guerras, as hecatombes; a morte já não todos vitimas da produção feita espetáculo, do enlevo estético da produção e
se encontra de modo algum onde pensamos que está
psicológica, metaffsica, ela sequer continua a assassina
-ela já não é biológica,
-,suas necrópoles são
da reprodução delirantes -e não estamos prontos para nos desapegar disso;
porque em todo espetáculo se faz presente a iminencia da catástrofe. A verti-
os porões ou as salas de computadores, espaços brancos, expurgados de todo gem do polftico, que Benjamin denuncia no fascismo, seu enlevo estetico e
ruído humano - ataúdes de vidro nos quais vem se congelar a memória
esterilizada do mundo (só os mortos se lembram de tudo), algo como uma
perverso, é a experiência que hoje fizemos nossa no ravel do sistema geral da
produção. Vivenciamos uma vertigem despolitizada, desideologizada - verti-
eternidade imediatá do saber, uma quintessência do mundo que sonhamos gem da administração racional das coisas, de um entusiasmo sem fim com
hoje enterrar na forma de microfilmes e arquivos, arquivar o mundo inteiro respeito às finalidades.A morte é imanente à economia politica. É por isso que
para que ele seja recuperado por alguma futura civilização - criogenização de
todo o saber para fins de ressurreição, passagem de todo o saber à imortalidade
esta se quer imortal. A Revolução também fixa para si um objetivo imortal em
nome do qual exige uma suspensão da morte em proveito da acumulação.Ora,
como valor-signo.Contra nosso sonho de tudo perder,de tudo esquecer,erigimos a imortalidade é sempre aquela, monótona, dos parafsos sociais. A Revolução
uma muralha inversa de relações, de conexões, de informações, uma memória jamais redescobrirá a morte se não a exigir imediatamente. Seu impasse con-
artificial densa e inextricável, e nos enterramos vivos dentro dela com a espe- siste em ter fixado para si o fim da economia polftica como algo de vencimento
rança fossil de ser descobertos um dia. progressivo,enquanto é desde agora que se faz a exigencia do fim da economia
Os computadores representam a morte miniaturizada à qual nos submete- polftica na exige-ncia de vida e de morte imediatas. Seja como for, a morte e
mos na esperança de sobreviver. Os museus já existem para sobreviver a toda a fruição encurraladas, das quais se terá de pagar o preço enquanto durar a
esta civilização- para testemunhar... o que Pouco importa. 0 simples fato de
eles existirem testemunha que estamos numa cultura que já não faz sentido
economia polftica, serão reencontradas como problemas, insoluveis, no "dia
seguinte" da Revolução. Esta apenas dá ensejo a que se ponha o problema da
para si mesma e que pode apenas sonha-r em ter um mais tarde para alguma morte, e sem a menor chance de resolvê-lo. Na verdade, não há dia seguinte:
outra civilização.Tudo se torna assim ambiente de morte, uma vez que isso não todos os dias são os da administração das coisas. Quanto a morte, ela exige ser
passa de um signo miniaturizável num conjunto gigantesco.Tal como a moeda vivida de imediato, na total cegueira, na total ambivalencia. Mas é ela revolu-
cionária? Se a economia polftica é a tentativa mais rigorosa de levar a morte ao

-
No fundo, a economia polftica s6 se constrói -
em seu ponto de não-retorno em que não passa de um sistema de escritura.
ao preço de sacrificios
com o objetivo de ser reconhecida como imortal por uma civili-
fim, está claro que somente a morte pode levar ao fim a economia polftica.
inauditos
zação futura, ou instância de verdade - inimaginável, como para a religião,
descartando-se um juízo final em que Deus reconheceria os seus. Mas o Jufzo
Final já está realizado: é o espetáculo definitivo da nossa própria morte crista-
lizada. 0 espetdculo é, deve-se grandioso. Dos conjuntos hieroglfficos
da Defesa ou do World Trade Center aos grandes conjuntos informáticos da
mídia, aos cornplexos siderúrgicos e aos grandes aparelhos polfticos, as
megalópoles que esquadrinham arbitrariamente os menores gestos cotidianos
- em toda parte, como diz Benjamim, a humanidade tornou-se um objeto de
contemplação para si mesma."Sua alienação atingiu tal grau que ela pode hoje
vivenciar sua própria destruição como um prazer estético de primeira orderh7
(A Obra de Arte na gpoca de sua Reprodutibilidade Técnica). Essa era para ele
a forma do fascismo. Isto é, certa forma exacerbada de ideologia - uma per-

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A EXTERM1NAÇÃO
DO NOME DE DEUS

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0 Anagrama

Também no campo da linguagem existe o modelo de uma troca simbó-


lica, alguma coisa parecida com o núcleo de uma antieconomia po-
lítica, espaço de exterminação do valor e da lei: trata-se da lingua-
gem poética. No campo de uma antidiscursividade, de um para-além da eco-
nomia polftica da linguagem, Os Anagramas de Saussure constituem a desco-
berta fundamental. A mesma pessoa que mais tarde forneceria as armas
conceituais a crência lingüística destacara antes, em seus Cahiers d'anagrammes,
a forma antagônica de uma linguagem sem expressão, para além das leis, dos
axiomas e das finalidades que lhe atribui a lingüística -
a forma de uma
operacão simbólica da linguagem, isto é, não de uma operação estrutural de
representação pelos signos mas, bem ao contrário, de uma operacão de des-
construção do signo e da representacão.
O princípio de funcionamento poético descrito por Saussure não se quer
revolucionário.Só a paixão que ele se põe a estabelecer como estrutura verda-
deira e consciente de textos longínquos, védicos, germânicos, saturnais, só a
paixão cuja prom ele busca estabelecer tem a magnitude fantástica da sua
hipótese. Ele mesmo não tira disso nenhuma conclusdo radical ou crítica, nem
sonha sequer por um instante em generalizá-la no plano especulativo, e quan-
do a prova lhe faltar, ele vai abandonar essa intuicão revolucionária para passar
a edificação da ciência lingüística.Talvez somente hoje, passado meio século
de desenvolvimento ininterrupto dessa ciência, que possamos tirar as conse-
qüências da hipótese abandonada de Saussure', e em que medida ela faz
avançar as bases de uma descentracão de toda a lingüística.

1. Mas sobretudo cuidadosamente"esquecida"e menosprezada por toda a lingüística:s6 a esse


preço ela pride fundar-se como"ciencia"e garantir seu monopólio estrutural em todas as direçóes.

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A ExTERmINAÇÃo DO NOME DE DEUS O ANAGRAMA

As regras do poético descobertas por Saussure são as seguintes2: que ocorra naturalmente ao espfrito ern função do contexto"-"a poesia analisa
a substância fônica das palavras para com elas compor tanto series acústicas
como series significativas quando da alusdo a um dado nome" (a palavra
LEI DO PAR anagramatizada). Em suma,"tudo está relacionado de uma ou de outra manei-
I. "Uma vogal não tem o direito de figurar no Saturnino a não ser que ra no verso": seja os significantes, os fonemas, remetendo uns aos outros ao
tenha uma contra-vogal num ambiente qualquer do verso (a saber, a vogal longo do verso, seja o significado oculto, a palavra-tema, sendo ecoada de um
idêntica e sem transacão em termos da quantidade)... Resulta disso que, se o a outro polffono, "sob" o texto "manifesto". As duas regras podem, outrossim,
verso tem um número par de sflabas, as vogais formam pares exatos, devendo coexistir:"Ora ao lado da anafonia, ora independente de toda palavra que se
sempre dar por resto: zero, com um número par para cada espécie de vogal:' imite, há uma correspondência de todos os elementos traduzindo-se na forma-
2. Lei das consoantes. Ela é idêntica, e não menos estrita
número par para toda consoante, seja ela qual for.
há sempre o - ção de pares exatos, isto é, repetição em número par".
Saussure hesitará entre os termos anagrama, antigrama, hipograma,
3. A coisa vai a tais extremos que, se houver um resfduo irredutfvel qual- paragrama, paratexto para designar essa "variação desenvolvida que deixaria
quer, seja nas vogais (rumo ao fmpar) ou nas consoantes... bem ao contrário ,
perceber, a urn leitor perspicaz, a presença evidente, porém dispersa, de fone-
do que se poderia crer, não se condena de maneira alguma esse resíduo, ainda mas condutores" (Starobinski). Poderfamos, dando continuidade a Saussure,
que de um simples "e": vemo-lo então ser corrigido no verso seguinte, como propor o termo "ANATEMA', que é originariamente o equivalente de um ex-
novo resfduo correspondente ao excesso do precedente:' -voto, de uma oferenda votiva: esse nome divino que corre sob o texto é pre-
cisamente a dedicatória do texto, o nome daquele que o dedica e a quem ele
dedicado3.
LEI DA PALAVRATEMA As duas leis são aparentemente muito pobres diante de tudo o que se
0 poeta emprega, na composição do verso, o material fônico fornecido poderia dizer sobre a "essencia" do poético. Além disso, etas de modo algum
por uma palavra-tema... Um verso (ou vários) anagramatizam uma só palavra levam em conta o "efeito" poético, do enlevo próprio aos textos nem do seu
(em geral um nome próprio, o de um deus ou herói), restringindo-se a repro- "valor" estético. Saussure nada tem a fazer corn a "inspiração do poeta nem
duzir sobretudo a seqüência vocálica."Ao escutar um ou dois versos saturninos com o êxtase do leitor. Talvez ele jamais tenha pretendido que haja uma rela-
latinos, F de Saussure escuta elevar-se, cada vez com maior proximidade, os ção qualquer entre essas regras por ele descobertas (ele acreditava que as
principais fonemas de um nome próprio" (Starobinski). observava, e ponto final)e a excepcional intensidade que sempre se concordou
Saussure: "Trata-se, no hipograma, de acentuar um nome, uma palavra, em atribuir à poesia. Deixando a sua perspectiva adstrita a uma lógica formal
esforçando-se por repetir-lhe as sflabas e, assim, dando-lhe uma segunda manei- do significante, ele parece deixar aos outros a tarefa de procurar o segredo do
ra de ser, factfcia, adicionada, por assim dizer, ao original da palavra". enlevo poético -o que todos eles sempre fizeram unanimemente na rique-
za do significado, nas profundezas da "expressão". Contudo, é Saussure e só ele
TAURAS/A C7SAUNA SAMNIO CEPa (SCIPIO)
AASEN ARGALEON ANEMON AMEGARTOS AUTME (AGAMEMNON)
que nos diz o que é o enlevo que nos vem do poético -
enlevo que reside no
fato de ele violar as "leis fundamentals da palavra humana".
Essas regras simples repetem-se incansavelmente sob múltiplas variantes.A Os lingüistas se refugiaram, diante dessa subversão de sua disciplina, num
propósito da aliteração, regra à qual se ere' ser possfvel referir toda a poesia paradoxo insustentável. Eles reconhecem, com Roman Jakobson, que "o ana-
arcaica, Saussure diz ser ela apenas um aspecto "de um fenômeno vasto e grama poético sobrepõe-se As duas leis fundamentais da palavra humana, pro-
importante em outros sentidos", dado que "todas as sflabas formam aliterações clamadas por Saussure, a do vfnculo codificado entre o significante e seu sig-
ou assonâncias, podendo ainda achar-se inclufdas em alguma harmonia fônica".
Os grupos fônicos "ecoam-se mutuamente" -
"versos inteiros assemelham-se a
nificado e a da linearidade dos significantes" ("Os meios da linguagem poética
são capazes de nos fazer sair da ordem linear", ou, como o resume Starobinski.
um anagrama de outros versos precedentes, ainda que muito distantes deles no
texto" - "os polffonos reproduzem visivelmente, uma vez que lhes seja dada
"sai-se do tempo da consecutividade pi-6pda à linguagem habitual")
mam ao mesmo tempo que "Saussure abre, com suas pesquisas, perspectivas
afir--e
ocasião, as sflabas de um nome importante, seja um que figure no texto ou um inéditas ao estudo lingüfstico da poesia".

2.Remetemos,para o que segue, e no que se refere ao material anagramático, a Jean Starobinski: 3. 0 fato de o termo "anátema", que tanto pode ser uma vitima irnolada como um objeto
Les mots sous les mots (Gallirnard, 1971). Para as regras fundamentais, cf. Le souci de la repétition, consagrado, ter derivado no sentido de objeto maldito, de pessoa maldita, tem toda importância
pp. 12ss. para o seguimento da análise.

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A EXTERMINAÇA0 DO NOME DE DEUS
0 ANAGRAMA

Elegante maneira de recuperar o poético corno campo particular do discur-


so, de que a lingüística detém o monopólio. Que importa se o poético nega todas
significado: s-s-s-s- "ISSO" silva tambem no significante -
e quanto mais "Ss"
há, tanto mais isso silva, mais tais isso é ameaçador, com mais força isso "ex-
as leis da significação? Ele vai ser neutralizado mediante a concessão de um prime". Assim, mais uma vez:
direito lingüístico de cidadania e a imposição da obediencia ao mesmo princípio
de realidade. Mas o que 6 um significante ou um significado que deixaram de ser ...the faint fresh flame of the young year flushes
regidos pelo código da equivalencia? 0 que 6 um significante não mais regido from leaf to flower and flower to fruit...
pela lei da linearidade? E o que é uma lingüística sem tudo isso? Nada (mas [...a fraca flama fresca do imberbe ano flutua
veremos as torções que ela impõe a si mesma a fim de reparar essa violência). de folha a flor e de folha a fruto...]
Da primeira lei de Saussure (a dos pares), ela se livra alegando que a redun-
"Sentimos a brisa passar", diz Ivan Fonagy"nos versos de Swinburne, sem
dância do significante, ou mesmo a taxa de ocorrencia de um dado fonema ou
que os versos a mencionem expressamente" (Diogéne, 1965, n° 51, p. 90). A
polffono, é no texto po6tieo superior à da linguagem corrente etc.; da segunda (a
formação de pares de Saussure 6 a duplicação calculada, consciente e rigoro-
lei propriamente anagramática), invocando o nome"latente" (Agamemnon) como
"significado"segundo de um texto que ele "exprime" e o"representa"sempre bem,
sa, que remete a um estatuto totalmente distinto da repetição -a repetição não
como acumulação de termos nem (com) pulsão cumulativa ou aliterativa, mas
ao lado do significado "manifesto" ("um mesmo significante desdobra seus signi-
como anulação cfclica dos termos dois a dois, exterminafão por meio do ciclo
ficados", diz Jakobson): tentativa desesperada de salvar, ainda que por meio de
do duplicacão."As vogais formam pares exatos, DEVENDO SEMPRE DAR POR
um jogo mais complexo, a lei do valor lingüístico e as categorias essenciais do
modo de significação (significante, significado, expressão, representação, equiva-
lencia). 0 imaginário da lingüística procura anexar-se ao po6tico e pretende at6
NUMERO DEUS PARI GAUDET -
RESTO: ZERO" (Saussure). E, na citação emblemática que ele dá dessa lei,
Deus se alegra com o numero -, é dito que,
de uma ou de outra maneira, o próprio prazer/enlevo é inseparável, não do
enriquecer nele sua economia, a do termo e do ualor. Fbrern, contra ela, e dando
actImulo do Mesmo, do reforço do sentido por meio da adição do Mesmo,mas,
descoberta de Saussure toda a sua envergadura, é preciso dizer que o po6tico pelo contrário, de sua anulação pelo duplo, pelo ciclo da antivogal, do antigrama,
6, pelo contrário, um processo de exterminação do valor.
em que o traço fonetico vem a se abolir como se num espelho.
A lei do poema é na verdade fazer segundo um processo rigoroso, que
2.A segunda lei de Saussure, referente à palavra-tema, ou a esse "anátema"
não reste nada.É nesse aspecto que ela se opõe ao discurso lingüístico, que que "corre sob o texto", deve ser analisada no mesmo sentido. É preciso perce-
um processo de acumulação, de produção e de distribuição da linguagem
ber que não se trata de modo algum de repetir o significante original, de
como valor. 0 poético é irredutível ao modo de significação, que é apenas o
reproduzir-lhe os componentes fonemáticos ao longo do texto.
modo de produção dos valores da linguagem. Por isso, ele é irredutfvel à lin-
"Aasen argaleOn anemôn amegartos autme" rid() "reproduz" Agamemnon,
güística, que 6 a ciencia desse modo de produção.
ainda que, no tocante a isso, Saussure seja ambíguo: "Trata-se: diz ele, "no
0 poético 6 a insurreição da linguagem contra suas próprias leis. Saussure hipograma, de acentuar um nome, uma palavra, esforçando-se por repetir-lhe
nunca formulou pessoalmente essa consequencia subversiva. Mas os outros
as sílabas e, assim, dando-lhe uma segunda maneira de ser, factícia, adiciona-
avaliaram bem o que havia de perigoso na simples formulação de uma outra
da, por assim dizer, ao original da palavra". Com efeito, a palavra-tema se difrata
operação possível da linguagem. Por esse motivo, tudo fizeram para restringi-lo
ao longo do texto. É de alguma forma "analisada" pelo verso e pelo poema,
de acordo com o seu código (cálculo do significante como termo, cálculo do
dissolvida em seus elementos simples, decomposta como a luz de um espectro,
significado como valor).
cujos raios difratados varrem em seguida o texto.0u, em outras palavras ainda,
o corpus original dispersa-se em "objetos parciais". Não se trata, portanto, de
0 POÉTICO COMO EXTERMINAÇÃO DO VALOR outra maneira de ser do Mesmo, de uma reiteração ou paráfrase, de um avatar
clandestino do nome original do deus. É mais precisamente uma explosão,
1. A primeira lei de Saussure, a dos pares, não 6 de forma alguma, e ele uma dispersão, um desmembramento no qual esse nome é reduzido a nada.
mesmo insiste nisso, a da aliteração ou da redundância expressiva ilimitada Nada de "duplo artificial" (que utilidade haveria em redizer a mesma coisa?),
desse ou daquele fonema. mas um duplo desmembrado, de um corpo feito em pedaços como o de Osíris
e de Orfeu. Longe de reforçar o significante em seu ser, de repeti-lo positiva-
Pour qui sont ces serpents qui sifflent sur nos têtes?
mente, essa metamorfose em seus membros esparsos equivale à sua morte
[Pura quem são essas serpentes que siluam sobre nossa cabeça?] enquanto tal, à sua nadificação. Para dizer tudo, é aí, no plano do significante,
Essas serpentes são as cascaveis de uma lingüística da recorrencia e da do nome que o encarna,o equivalente da condução à morte do deus ou do herói
acumulação do significante, sempre finalizada por não se sabe que efeito de no sacriffcio.É desarticulado, desintegrado por sua morte no sacrifício (even-

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A EXTERMINAÇA0 DO NOME DE DEUS O ANAGRAMA

tualmente despedacado e comido) que o animal-totem, o deus ou o herói cir- 0 resto é o valor.É o discurso da significacão, nossa linguagem regida pela
cula em seguida, na qualidade de material simbólico da integracão do grupo. Tudo o que não foi retomado pela operação simbólica da lingua-
É feito em pedacos, dispersado em seus elementos fonemáticos que esse levar gem, pela exterminacão simbólica: aí repousa a economia da significacão e da
morte o significante, que o nome do deus assombra o poema e o rearticula comunicacão. É af que produzimos e permutamos termos, valores de sentido,
ao ritmo dos seus fragmentos, sem jamais se reconstituir af enquanto tal. sob a lei do código.
0 ato simbólico nunca consiste em reconstituir o nome do deus depois de da mesma maneira que se inaugura o processo do econômico: aquilo
desvios e de uma renovacão no poema, jamais na ressurreicão do significante. que entra no circuito da acumulacão e do valor é aquilo que resta do consumo
Starobisnki se engana quando diz:"Tratar-se-á de reconhecer e de reunir as sflabas sacrificaLé o que nao se esgota no ciclo incessante da dádiva e da contradádiva.
diretoras, como Isis reunindo o corpo em pedacos de Osíris". Lacan está engana- É esse resto que se acumula, é com base nele que se especula, é af que nasce
do em sua teoria do simbolismo (Psychana6ise,V., p. 15) ao afirmar:"Se o homem o econômico.
estiver aberto a desejar tantos outros em si mesmo quantos são os nomes que os
seus membros tem fora dele, se ele tiver de reconhecer tantos membros disjuntos
de sua unidade, perdida sem jamais ter existido, quantos sac) os galhos de árvores Dessa nocão de resto, podemos inferir uma terceira dimensão do nosso
que constituem a metáfora dos seus membros,veremos igualmente que fica resol- modo de significacão. Sabe-se que a operacão poética "abala as duas leis fun-
vida a questão de saber que valor de conhecimento tem os símbolos, porque são damentais da linguagem":
os próprios membros que retornam a ele depois de terem vagado pelo mundo I. A equivalência significante/significado.
numa forma alienada". 0 ato simbólico nunca está nesse "retorno", nessa 2. A linearidade do significante (Saussure: "0 fato de os elementos que
retotalizacão depois da alienacão, nessa ressurreicão de urna identidade; ele sem- formam uma palavra seguirem-se uns aos outros é uma verdade que valeria a
pre está, pelo contrário, na volatilizacão do nome, do significante, nessa extermi- pena não considerar, em lingüística, uma coisa sem interesse porque evidente,
nação do termo, nessa dispersão sem volta -é ela que torna possível a intensa mas como algo que, pelo contrario, fornece desde o início o princípio central
circulacão no interior do poema (como no âmbito do grupo primitivo por ocasião de toda reflexão útil sobre as palavras".)
da festa e do sacriffcio), que entrega a linguagem ao prazer e, portanto, também 3. A terceira dimensão, jamais levada verdadeiramente em consideracão, e
af, não resta nem resulta nada. Nem mesmo toda a matilha das categorias lingüís- estreitamente solidária com as outras duas, é a da ilimitação, da produção sem
ticas é capaz de ocultar o escândalo da perda e da morte do significante, dessa limites do material significante. Assim como a equivalencia e a acumulacão defi-
agitacão febril da linguagem que, como diz Bataille da vida,"pede à morte que nem uma dimensão do econômico que é a da produtividade ilimitada, da repro-
pratique a suas [sic] expensas suas acões destrutivas". ducão indefinida do valor, assim também a equivalência significante/significado
Aqui, naturalmente, explodem os limites que Saussure se imp:5e: esse princf- e a linearidade do significante definem um campo da discursividade ilimitada.
pio poético não vale somente para as poesias védicas, germânicas e latinas, e de Nós sequer conseguimos nos dar conta, de tal maneira isso nos é "natural",
nada vale procurar, como ele o fez, uma generalizacão hipotética da prom: é dessa proliferacão do nosso uso discursivo, que, no entanto, nos distingue de todas
evidente que os poetas modernos jamais propuseram a si mesmos uma palavra- as outras culturas. Usamos as palavras, os fonemas, os significantes, e deles abu-
-tema geradora, se mesmo os poetas antigos nunca o fizeram * isso, no entanto, samos, sem restricão ritual, religiosa ou poética de algum genero, com toda "fiber-
não é urna objecao, pois claro está que, em todas as lfnguas e em todas as épocas,
a forma descoberta por Saussure é soberana. Está claro para todos
evidencia do enlevo - - é esta a
que o bom poema é aquele no qual nada resta, em que
dade", sem obrigacão nem responsabilidade perante o imenso material que "pro-
duzimos" ao nosso bel-prazer. Cada um estd livre para usar sem fim, para recorrer
sem fim ao material fônico, em nome daquilo que se deseja "exprimir", tendo por
todo o material fônico envolvido é consumido e, que, inversamente, o mau poe- consideracão exclusiva aquilo que há a dizer. Essa "liberdade" do discurso, essa
ma (ou a antipoesia total) é aquele em que há resíduo,em que nem todo fonema, possibilidade de tomá-lo e de empregá-lo sem nunca devolvê-lo nem responder-
dffono, sílaba ou termo significante foi retomado pelo seu duplo, no qual nem -lhe, e sem sacrificar a ele sequer uma parte, como se fazia com os bens primitivos
todos os termos se volatilizaram nem foram consumidos numa reciprocidade (ou para assegurar-lhes a reproducão simbólica, essa idéia da linguagem como de um
num antagonismo) rigorosa, como na troca-dádiva primitiva, em que sentimos o meio para tudo fazer e de uma natureza inesgotável, como de um lugar no qual
peso daquilo que resta, que não encontrou sua contraparte nem, por conseguinte,
sua morte e sua absolvicão, que não conseguiu se trocar na própria operação do
text(); é na medida desse resíduo que sabemos que um poema é ruim, que ele
necessidades" -
já estaria realizada a utopia da economia política:"a cada um conforme as suas
fantasma de um stock inaudito, de uma matéria-prima que se
reproduziria magicamente na medida em que a usássemos (sem sequer necessi-
escória de discurso, algo que não foi destrufdo, que não se perdeu nem foi con- dade de acumulacão primitiva) e,portanto,da liberdade de um desperdfcio fantás-
sumido na festa de uma fala reversfvel. tico- esse estatuto, que é o da nossa comunicacão discursiva, o de uma dispo-

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A EXTERMINAÇAO DO NOME DE DEUS
0 ANAGRAMA

nibilidade imoderada do material significante,só é concebível no ambito de uma social, assim também toda palavra, todo termo, todo fonema produzido e não
configuração geral em que os mesmos princípios regem a reprodução dos bens
destruído simbolicamente se acumula como um reprimido, faz incidir sobre nós
materiais,bem como a da própria espécie: uma mutação simultânea faz passar de o peso de toda a abstração da linguagem morta.
formações sociais nas quais os bens, o número de indivíduos e a proliferação das
palavras são, de maneira mais ou menos rigorosa, contingenciados, limitados,
controlados no interior de um ciclo simbólico, a formações sociais "modernas", as
- Reina sobre a nossa linguagem uma economia de profusão e de desperdício
a utopia da abundância. Mas enquanto são uma característica recente da
economia material, um trace, histórico, a "abundância" e o desperdício aparecem
nossas, caracterizadas por uma produtividade indefinida, tanto econõmica como
lingüística e demográfica - sociedades envolvidas em todos os planos numa
escalada sem fim: da acumulação material; da expressão lingüística, da prolifera-
como dimensão natural, sempre já dada, da linguagem falada ou escrita. Utopia
da existência presente, da existéncia eterna, a todo momento, tanto quanto se
queira para todos.Utopia de um capital ilimitado de linguagem como valor de uso
ção da espécie4.

--
e valor de troca. Cada um, para significar, procede por acumulacão e troca cumu-
Esse modelo de produtividade crescimento exponencial, demografia lativa de significantes cuja verdade está alhures, na equivalência aquilo que que-
galopante, discursividade ilimitada deve ser analisado em toda parte ao
mesmo tempo. No plano exclusivo da linguagem que constitui o nosso objeto
rem dizer (podemos dize-lo em menos palavras - a concisão é uma virtude
moral, mas isso jamais passa de uma economia de meios). Esse "consumo/consu-
aqui, estd claro que a essa liberdade sem peias de usar fonemas em número macão" discursivo, sobre o qual nunca paira o espectro da penúria, essa manipu-
ilimitado para os fins da expressão sem processo inverso de anulacão, de ex-
piação, de absorção, de destruição -
o termo pouco importa
radicalmente a simples lei enunciada por Saussure segundo a qual uma vogal,
opõe-se
lação perdulária,sustentada pelo imaginário da profusão, resulta numa prodigiosa
inflacão que deixa, à imagem das nossas sociedades de crescimento descontro-
lado, um resíduo igualmente prodigioso, dejetos não degradáveis de significantes
uma consoante, uma sílaba rid() deve ser proferida sem ser duplicada, isto é, de consumados porém nunca consumidos. Porque essas palavras que serviram não
algum modo exorcizada, sem se realizar na repetição que a anula.
A partir disso, já não se cogita de um uso ilimitado. 0 poético, tal como a
se volatilizam, mas se acumulam como dejetos - poluição pelos signos tão fan-
tástica como a poluicão industrial, e contemporãnea dela.
troca simbólica, põe em jogo um corpus estritamente limitado e contingenciado,
mas se encarrega de leva-lo até o fim,ao passo que a nossa economia do discurso
põe em jogo um corpus ilimitado sem preocupação de resolucão.
É sT5 esse estágio do dejeto que a lingüística retoma, o de uma linguagem
Que vem a ser as palavras, os fonemas, no nosso sistema discursivo? Não
funcional, que ela universaliza como o estado natural de toda linguagem. Ela não
preciso acreditar que desaparecem delicadamente uma vez que deles nos tenha-
imagina nenhuma outra coisa:"Assim como os romanos e os etruscos dividiam o
mos servido nem que retornam para algum lugar como os caracteres na matriz do
céu mediante rígidas linhas matemáticas e num espaço delimitado, e assim como,
linotipo, à espera de que lhes demos uso outra vez. Isso ainda faz parte da nossa
num templo, conjuravam um deus, assim também todo povo tem sobre si um céu
concepcão idealista da linguagem. Todo termo, todo fonema, não retomado, não
semelhante de conceitos matemáticos repartidos e, sob a exigéncia da verdade,
entregue, rid() volatilizado pela duplicacão poética, não exterminado como termo
ele passa a entender que nenhum deus conceitual deve ser procurado em qual-
e como valor (em sua equivalencia Aquilo que se "quis dizer"),resta.É um residua
quer outra parte além de sua esfera" (Nietzsche, Liuro do Fildsofo).Assim procede
Vai juntar-se a uma fantástica sedimentacão de dejetos, de matéria discursiva
opaca (comeca-se a perceber que o problema essencial de uma civilização pro-
dutiva pode ser o dos seus dejetos, que não é senão o de sua própria morte:
imagem -
a lingüística: ela força a linguagem a entrar numa esfera autonomizada à sua
ela finge encontrá-la "objetivamente" onde ela a inventou e racionali-

-
sucumbir sob seus próprios resíduos mas o resíduo industrial nada é diante do
resíduo de linguagem: tal como é, a nossa cultura vé-se assombrada e bloqueada
zou todas as suas peps. Ela é incapaz de imaginar um estado da linguageM
diferente do da abstracão combinatória de um código (a lingua) dotado de uma
manipulatória indefinida da fala, ou seja, a da especulação (no duplo sentido do
por essa gigantesca instância residual petrificada que ela tenta resolver por meio
de uma superproducão: por meio de um lance derradeiro de linguagem, ela se
termo) na base de uma equivalencia geral e de uma circulação livre
usam as palavras como querem e as trocam segundo a lei do código.
- todos
empenha em reduzir a baixa tendencial da taxa de "comunicacão". Mas nada Mas suponharnos um estágio no qual os signos lingüísticos sejam delibera-
pode contra isso. Assim como toda mercadoria, isto é, toda coisa produzida sob damente contingenciados (como a moeda entre os Are-are): difusão restrita,
a lei do valor e da equivalencia, é um resíduo insoldvel que vem barrar a relacão
nenhuma "liberdade" formal de producão, de circulacão nem de uso. Ou melhor,
um duplo circuito:

-
4. Isso se aplica igualmente ãs nossas noções de espaço e de tempo: eles são impensáveis para
nós fora da infinidade proliferação que corresponde à sua objetivação como valor e, também
af, ao fantasma de uma extensao ou de uma sucessao inesgotável.
de troca -
o das palavras "liberadas", usáveis ao bel-prazer, que circulam como valor
zona do "comércio" do sentido, análoga à esfera do gimwali
na troca econômica;

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A EXTERMINAÇAO DO NOME DE DEUS 0 ANAGRAMA

a de uma zona "não-liberada", sob controle, de um material restrito ao cão cfclica de um material significante, que o poético (tal como o ritual primi-
uso simbólico. Aqui, as palavras não tem valor de uso nem valor de tivo de linguagem) impõe a si mesmo, forcosamente, um corpus limitado. A
troca, e não são multiplicáveis nem proliferáveis como se desejar - limitação nada tem aqui de restritivo nem de penurioso: trata-se de uma regra
análoga à esfera da kula para os bens "preciosos".
Nesta última esfera, não atua de modo algum o princfpio de equivalência so está ligado à regra de equivalencia e à linearidade -
fundamental do simbólico. Inversamente, o caráter inesgotável do nosso discur-
assim como a infini-
dade da nossa producão material é inseparável da passagem à equivalencia no
geral nem, por conseguinte, a articulacão lógica e racional do signo de que se
ocupa a "ciência" semiolingüfstica. valor de troca (é esse infinito linear que alimenta a um só tempo, a cada
0 poético recria em matéria de linguagem essa situacão das sociedades momento do capital, a pobreza dada e o fantasma de uma riqueza final).
primitivas: um corpus restrito de objetos cuja circulacão ininterrupta na troca- 0 significante que se duplica e se volta sobre si mesmo a fim de abolir-se
-dádiva suscita unta riqueza inesgotável, uma festa da troca. Medidos pelo seu o mesmo movimento da dádiva e da contradádiva, o dar e o devolver, reci-
volume ou pelo seu valor, os bens primitivos sào pagos por uma escassez quase procidade na qual se abolem o valor de troca e o valor de uso do objeto;
absoluta. Incansavelmente consumidos na festa e na troca, eles rememoram,com mesmo ciclo levado a termo que resulta num nada do valor, nada com base no
seu "mfnimo no volume e no número", o "máximo de energia nos signos" de que qual atua a intensidade da relacão social simbólica ou o enlevo do poema.
fala Nietzsche ou ainda a verdadeira sociedade da abundância, a primeira e Trata-se de uma revolução. 0 que o poético realiza microscopicamente
única, a que se refere Marshall Sahlins (Les Temps Modernes, outubro de 1968). sobre o valor-fonema, toda revolucão social realiza sobre aspectos inteiros do
As palavras tem af o mesmo estatuto dos objetos e bens: elas rid() estão
código do valor: valor de uso, valor de troca, regras de equivalencia, axiomas,
disponfveis a todo momento a todo mundo, não há uma "afluencia" da lingua- sistemas de valores, discurso codificado, finalidades racionais etc., no momen-
to em que a pulsão de morte articula-se af para volatilizá-los. Não se trata de
gem. Nas fórmulas mágicas, rituais, reina essa restricão, única a preservar a eficá-
cia simbólica dos signos. 0 xamã, o vate operam com base em fonemas ou uma operacão analftica, que não se realiza da mesma maneira: ao contrário da
fórmulas contadas, codificadas, limitadas, esgotando-as numa organizacão
maximizada do sentido. Assim como a fórmula é pronunciada, em sua exatidão
ciencia como processo de acumulacão, a verdadeira operacão analítica é ague-
la que reduz a nada seu objeto, que o leva ao fim. 0 termo análise

-
não sua
literal e rftmica, assim também ela encadeia o futuro -e
não porque signifique5. finalidade "construtiva",
objeto e dos seus
mas
próprios
seu verdadeiro
conceitos, ou
firn
ainda o
essa volatilizacão
empreendimento do
do seu
sujeito
O mesmo se aplica ao poético, definido pelo fato de operar sobre um
que, longe de buscar dominar o seu objeto, aceita ser analisado por ele em
corpus restrito de significantes e de visar a sua completa resolucão.É precisamen-
troca, movimento por meio do qual se desfazem irremediavelmente as posi-
te por não visar à producão de significados, mas ao consumo exato, à resolu-
cões respectivas de um e do outro. É se, a partir disso que o sujeito e o objeto
se trocam, ao passo que, em sua positividade respectiva (na ciencia, por exem-
5. Fla toda uma crítica a fazer à "eficacia simbólica" segundo Levi-Strauss (Antropologia Estru- plo), eles apenas se edificam e se enfrentam indefinidamente. A ciencia está
tural): ela ainda é ligada para ele (como para a representação vulgar da magia) à operacão de ligada construcão do seu objeto e à repeticão deste como fantasma (bem
"a
um mito relativo a um corpo (ou à natureza) mediante a troca OU correspondencia "simbólica"
entre os significados- cf. o parto difícil: a palavra mítica remobiliza o corpo bloqueado de acordo
com o fio do seu significado, do seu conteúdo. A eficacia do signo deve ser entendida, em vez
como à reproducão fantasmática do sujeito do saber. Fantasmas ao qual se
vincula um prazer perverso: o de restituir continuamente um objeto incomple-
disso, como a resolucão de urna fórmula. Ao fazer corn que os elementos significantes de uma to, quando é próprio da análise, e do prazer, ir ate" o fim do seu objeto6.
fórmula se troquem e se resolvam nessa troca, provoca-se a mesma resolução no corpo doente: os 0 poético é a restituicão da troca simbólica ao próprio coracão das pala-
elementos do corpo (ou da natureza) recomecam a se trocar. 0 impacto dos signos sobre o corpo
(ou sobre a natureza, como na lenda de Orfeu. Sua força operatória vem precisamente do fato de vras.Af onde, no discurso da significacão, as palavras, todas tendo como ponto
nao ser "valor". Nada de racionalizaçao do signo nas sociedades primitivas, isto é, não ha separa- final o sentido, não respondem umas ãs outras, nem dialogam entre si (nem,
cao entre sua operação real e urn significado de referencia uma "reserva de sentido" onde no interior das palavras, as sflabas, as consoantes, as vogais entre si), no poé-
transitariam as analogias. A operacao simbólica não é analógica; ela é resolucionária [sic], revo-
lucionaria, e se refere à materialidade do signo, que ela extermina como valor Não mais sendo tico, pelo contrário, uma vez abalada a instãncia do sentido, todos os elemen-
valor, o signo atualiza a ambivalencia e, por conseguinte, a troca total, a reversibilidade total do tos constitutivos passam a se trocar, a se responder. Eles não estão "liberados"
sentido. Disso decorre sua eficacia, visto que todos os conflitos, a moléstia inclusive, nunca se
resolvem a nao ser na
6. Também aí é o resíduo da analise que alimenta o campo do "saber", o Eros construtivo da
Atualizando a ambivalencia, esse signo primitivo, o signo "eficaz", rdio tern inconsciente. Ele é
claro, e igual à sua operacao manifesta. Não opera, indiretamente ou por analogia, com base na
representacao reprimida ou inconsciente (Levi-Strauss pende claramente nesta direcão em sua
"ciencia- assim como sobre o resíduo do poético vem se articular o campo da comunicação. É
sobre esse resíduo que especulam a ciencia e o discurso em seu imaginário, é aí que produzem
comparacáo coin a psicandlise -O Feiticeiro e sua Magia o mesmo ocorrendo corn toda a sua "mais-valia" e fundam seu poder. 0 que não é analisado e resolvido radicalmente na operação
antropologia psicanalítica). Ele é sua própria operacão sem residuo, sendo por isso que opera no simbólica é aquilo que se condensa sob a mascara mortudria do valor -é a cultura de morte e
mundo, que é a operacão direta do mundo. de acumulação que começa.

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A EXTERMINKAO DO NOME DE DEUS 0 ANAGRAMA

nem vem algum conteúdo profundo a ser "liberado" por meio deles: esses calização das hipóteses é o único método possfuel - equivalendo a violência
teórica, na ordem da análise, à "violência poética" de que fala Nietzsche,"que
elementos são simplesmente devolvidos à troca, e é esse processo que constitui
o enlevo. Inútil procurar o segredo disso numa energética, numa economia renova a ordem de todos os átomos da frase".
libidinal nem numa dinâmica dos fluidos: o enlevo não está ligado à efetivação É pelo comentário do próprio Starobinski que vamos começar. Estão em

de uma força, mas à atualização de uma mudança


vestígios, sem a sombra de uma forga, tendo
-
resolvido
de uma mudança sem
toda força, bem como
jogo af sobretudo dois aspectos: a palavra-tema (sua existência ou não) e a
especificidade do poético (e, portanto, a descoberta de Saussure).
a lei que está por trás da força. Porque é da operação do simbólico ser para si Toda a argumentação de Saussure parece apoiar-se na existência real dessa
mesmo seu próprio fim definitivo. palavra-chave, desse significante latente, essa "matriz", esse "corpus princeps":
A simples possibilidade disso é uma revolução diante de uma ordem em que "Essa versificação é toda ela dominada por uma preocupagao fônica, tanto
nada, ninguém, nem as palavras, nem os homens nem seus corpos ou olhares interna e livre (correspopiencia dos elementos entre si, por meio de pares ou
podem comunicar-se diretamente, sendo em vez disso levados a transitar como de rimas), como externa, isto é, inspirada na composição fônica de um nome
valores por meio de modelos que os engendram e os reproduzem numa total como Scipio, Jovei etc. E sabe-se que, depois de Saussure ter tido a intuição,
"estranheza" uns com relação aos outros...A revolução está em todo lugar no qual todos os seus esforços voltaram-se para o estabelecimento da prova. Saussure
se instaure uma troca que abale a finalidade dos modelos, a mediação do código cai aí, é verdade, na armadilha da validação científica, na superstição do fato.
e o ciclo consecutivo do valor - essa troca talvez seja aquela, infinitesimal, dos
fonemas, das sflabas, num texto poético, ou a de milhares de homens que se
Felizmente, ele fracassa no estabelecimento dessa prova (a saber, a de que o
poeta arcaico regrava com conhecimento de causa sua prática no anagrama de
falam numa cidade em estado de insurreição. Porque o segredo de uma fala uma palavra-tema), e esse fracasso preserva o alcance de sua hipótese. Esta, de
social, de uma revolução, é por certo também essa dispersão anagramática da fato, se circunscrita pela prova, restringir-se-ia a certo tipo de poesia arcaica e,
instância do poder, essa volatilização rigorosa de toda instância social transcen- o que é mais grave, teria reduzido o ato poético â ginástica formal do cripto-
dente. 0 corpo feito em pedagos do poder se troca então como fala social no grama, de um jogo de esconder com uma palavra-chave, operando com base
poema da revolta. Também dessa palavra nada resta, nem se acumula ela em na reconstituição de um termo voluntariamente escondido e desarticulado.
algum lugar. 0 poder renasce daquilo que não foi consumido nele, porque o Assim o interpreta Starobinskr0 discurso poético não seria senão a segunda
poder é resíduo de fala.Na revolta social,opera-se a mesma dispersão anagramática maneira de ser de um nome: uma variação desenvolvida que deixaria perce-
que ocorre com o significante no poema, com o corpo no erotismo, com o saber ber, por um leitor perspicaz, a presença evidente, porém dispersa, de fonemas
e seu objeto na operação analftica: a revolução é simbólica, ou não é. condutores... 0 hipograma desliza de um nome simples para a extensão com-
plexa das sflabas de um verso: tratar-se-á de reconhecer e de reunir as sflabas
diretoras, como Ísis reconstituindo o corpo despedagado de Osiris".
0 FIM DO ANATEMA Starobinski elimina de imediato a teoria emanaísta ou mística (difusão
Toda a ciência lingüística pode ser analisada como resistencia a essa germinal da palavra-tema no verso) e a teoria produtiva (a palavra-tema utili-
operação de disseminação e de resolução literal. É em toda parte a mesma zada pelo poeta como tela de um trabalho de composição). A palavra-tema
tentativa de reduzir o poético a um querer-dizer, de reduzi-lo à sombra de um não é nem uma célula original nem um modelo:Saussure nunca busca estabe-
sentido, de abalar a utopia da linguagem a fim de reduzi-lo à tópica do discur- lecer uma relação de privilégio semântico entre os dois níveis (nominal e
so. Ao ciclo da literalidade (reuersibilidade e disseminação), a lingüística opõe anagramatizado) da palavra. Manequim, esboço, cenário miniaturizado, tema
a ordem da discursividade (equipalência e acumulação). Podemos ver o desen- ou anátema, que estatuto podemos dar-lhe? Isso é importante, pois é todo o
esquema da significação, do "fazer-signos" que está em jogo: é ao menos certo
rolar-se dessa contra-ofensiva em todas as interpretações dadas aqui e ali do
poético (Jakobson, Fonagy, Umberto Eco - ver adiante "0 imaginário da lin- que não se pode fazer da palavra-tema um significante que seria o poema
e não menos certo que existe entre os dois, senão uma referencia, ao menos
-
guística"). Mas dessa resistencia depende ainda a interpretação psicanalítica,
qual voltaremos. Porque a radicalidade do simbólico é tal que todas as ciencias uma coerencia. Starobinski parece aproximar-se mais de Saussure quando pro-
ou disciplinas que trabalham para neutralizá-lo se acham analisadas por ele em põe: "A palavra-tema latente não difere do verso manifesto exceto pela sua
troca, bem como remetidas ao seu desconhecimento. retração. Ela é uma palavra como as palavras do verso desenvolvido: ela só
São, pois, todos os princípios da lingüística e da psicanálise que estarão difere dele à maneira como o um difere do múltiplo.Vinda antes do texto total,
em jogo no que se refere à proposta da hipótese anagramática de Saussure. Ele escondida sob o texto, ou melhor, nele, a palavra-tema não marca nenhuma
a formulou com base num ponto preciso sujeito a levantamento. Mas nada separação qualitativa: ela não é essencia superior nem tem uma natureza mais
impede de desenvolvê-la até as últimas conseqffencias. Seja como for, a radi- humilde. Ela oferece sua substância a uma invenção interpretativa que a faz

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A EXTERMINAGAO DO NOME DE DEUS
O ANAGRAMA

sobreviver num eco prolongado". Mas se ela é uma palavra como as outras, por vra-chave. E por certo hd um tipo de prazer nesse desvio, em tirar a máscara do
que é preciso que seja oculta, latente? Por outro lado, o texto é algo distinto de que se acha oculto e cuja presenga secreta nos atrai. Mas esse prazer nada tem
"desenvolvimento, multiplicação, prolongamento, eco" da palavra-chave (o eco que ver com o enlevo poético, que é por outro lado radical, e não peruerso: aí
em si não é poético): trata-se da disseminagão, do desmembramento, da des- não se descobre nada, não se exprime nada e nada transparece. Nada de
construgão. Esse aspecto da operagão anagramática escapa a Starobinski até "adivinhagões", de termo secreto, de fixagão de sentido. 0 discurso destrói
na interpretagão mais nuangada que ele dá:"A dicgão da palavra-tema aparece todo encaminhamento para um termo final, toda referencia, toda chave, ele
deslocada, submetida a um ritmo que não o dos vocábulos pelos quais se de- resolve o andtema, a lei que pesa sobre a linguagem.
senrola o discurso manifesto; a palavra-tema se distende, à maneira como se Fbdemos formular a hipótese de que o enlevo é fungão direta dessa resolugão
enuncia o tema de uma fuga quando ele é tratado em termos de imitação por de toda referencia positiva. Ele é mínimo quando o significado se produz imedia-
aumento. Só que, como a palavra-tema nunca foi objeto de uma exposigão, não
está em questão reconhece-la; é necessário adivinhá-la, numa leitura atenta ao
tamente como valor: no discurso "normal" da comunicagão
ta, que se esgota na decodificagão. Para além desse discurso
- -
fala linear e expos-
grau zero do
vínculo possível entre fonemas separados pelo espago. Essa leitura se desenvol- prazer todos os tipos de combinagões são possíveis onde se instala um jogo de
ve segundo outro tempo [musical] (e noutro tempo): no limite, sai-se do tempo esconder com o significado, a decifragão, e não mais uma decodificagão pura e
da `consecutividade' própria à linguagem habitual". simples. É o anagrama tradicional ou o texto a clef, o "Yamamoto Kakapoté" ou os
Essa interpretagão, mais sutil por ter parentescos com o procedimento textos de "Fliegende Blätter (retomados por Freud e analisados por Lyotard em "Le
analítico (a atengão flutuante a um discurso latente), parece, no entanto, cair travail du re-ye ne pense pas" [0 trabalho do sonho não pensa],Revue d'Esthétique,
também na armadilha da pressuposigão de uma fórmula geradora, cuja presen- I, 1968), em que, por trás de um texto manifesto, coerente ou incoerente,
ga esparsa no poema seria apenas, de certo modo, o estado segundo, mas cuja reside um
texto latente a descobrir. Em todos esses casos, há desvinculagdo, distanciamento
identidade sempre seria possível (e isso é na verdade o essencial da leitura) do significado, do fim-palavra da historia, desvio por parte do significante, de
localizar. Dupla presenga simultânea em dois níveis: Osiris feito em pedagos "diferanga", diria Derrida.Todavia,em todos os casos é possível, por alguma vereda,
o mesmo em outra forma, sendo sua finalidade voltar a ser o próprio Osiris recuperar a palavra do fim, a formula que ordena o texto. Essa formula pode ser
passada a fase de dispersão. A identidade permanece latente, e o processo de subconsciente (como no dito espirituoso,ao qual voltaremos) ou inconsciente (no
leitura é um processo de identificagão. sonho), mas é sempre coerente e discursiva.Com a revelagão dessa fórmula,esgota-
aí que está a cilada, aí se encontra a defesa lingüística: por mais com- se o ciclo do sentido.E o prazer, em todos os casos, tem a magnitude do desvio, do
plexas que sejam, todas essas interpretagões nunca fazem do poético mais do retardo, da perda do enunciado, do tempo perdido a reencontrar. Ela é por conse-
que uma operagão suplementar, um desvio num processo de reconhecimento guinte deveras restrita nas brincadeiras de salão e mais intensa nos ditos espirituo-
(de uma palavra, de um termo, de um tema). É sempre o mesmo que se dá a sos, nos quais a decifragão é suspensa e onde se ri na medida da destruigão do
ler. Mas então por que essa multiplicagão laboriosa -e em que isso ainda
"poético"? Se é para dizer novamente o mesmo termo, se o verso não é senão
sentido.Ela é infinita no texto poético, porque nenhum número é recuperdvel nele,
nenhuma decifragão é possível, nunca surge o significado que leve o ciclo ao fim.
a dissimulagão fonica de uma palavra-chave, tudo isso não passa de complica- A formula aí sequer continua a ser inconsciente (temos nisso o limite de todas as
cão e sutileza inútil. E onde está o enlevo? A intensidade do poético nunca está interpretagões psicanalíticas),ela ado existe. A chave está definitivamente perdida.
na repetigão de uma intensidade, mas na destruicão de uma identidade. É o Nesse aspecto reside a diferença entre o prazer criptogramático simples (toda a
desconhecimento disso que faz a redução lingüística, é aí que ela distorce o categoria do "achado",em que a operagão sempre tem por saldo um resíduo posi-
poético na diregão dos seus próprios axiomas: identidade, equivalencia, refra- tivo) e a irradiagão simbolica do poema. Ou ainda: se o poema remete a alguma
gão do mesmo,"imitagão por aumento" e assim por diante. Sobretudo nunca coisa, é sempre a COISA NENHUMA, ao termo nada, ao significado zero. É essa
reconhecer o que existe de difragão descontrolada, de perdigão do significante, vertigem da resolugão perfeita,que deixa perfeitamente vazio o lugar do significado,
de morte no anagrama como forma simbólica da linguagem. Permanecer no do referente, que constitui a intensidade do poético7.
jogo lingüístico, local em que a poesia s6 será um número, uma "chave", assim
como se fala numa chave dos sonhos.
7. Mas flat) basta o desaparecimento de todo significado coerente para criar
São as brincadeiras de saldo que fazem isso, e elas so fazem isso. São a má o poético.Se fosse
assim, seria suficiente urn lexico enlouquecido ou a escrita aleatória ititomática. É preciso igual-
poesia, a alegoria ou a música "figurativa" que fazem isso, no momento em que mente que o sigmficante seja abohdo numa operaçao rigorosa, e nada aleatória; do contrario, ele
remetem com demasiada facilidade Aquilo que "significam" ou não fazem se- permaisece "residual' e seu il.)surdo sozinho náo o salva. Na escrita automática, por exemplo, há
não metaforizar em outros termos. São as charadas, as adivinhagões ou as -
de fato aboli0o do significado ("isst i não significa nada") ainda que toda ela viva da nostalgia
do significado, sendo seu prazer dar uma oportunidade a todo significado possivel -;
contraposigões silábicas, nas quais tudo se resolve corn a descoberta da pala- de todo
modo, o significante O produzido nela sem controle, nao resolvido, perda instantánea: a terceira

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A EXTERMINAÇÃO DO NOME DE DEUS 0 ANAGRAMA

"Aboli bibelot d'inanité sonore [Aboli bibelõ de inanidade sonora]: verso No poema, nem o deus é o sujeito, ainda que escondido, do enunciado,
perfeito no qual se resume a forma anagramática. "ABOLI" é a palavra-tema nem é o poeta o sujeito do enunciado. É a própria linguagem que toma a
geradora que corre ao longo do verso, que remete ao nada. A forma anagra- palavra para nela se perder. E o nome do deus é igualmente o nome do Pai:
mática e o seu conteúdo formam aqui uma extraordinária conjunção. a lei (da repressão, do significante, da castração) que este faz incidir sobre
o sujeito e, ao mesmo tempo, sobre a linguagem, essa lei é exterminada
no anagrama. 0 texto poético é o exempla enfim realizado da absorção
Várias outras coisas podem ser ditas sobre a palavra-tema, no próprio quadro sem resfduo, sem vestígios, de um átomo de significante (o nome do deus) e,
da hipótese de Saussure. 0 hipograma,sendo um nome de deus ou de herói, não por meio dele, da instal-Ida da linguagem e, por intermédio desta, da resolu-
é um "significado" qualquer, e sequer é um significado. Sabe-se que a invocação da lei.
literal do deus é perigosa, devido as forgas que desencadeia. Fbr essa razão, a 0 poema é essa declinação mortal do nome de Deus e, para nós, que já
anagramatização se imp:5e como encantamento velado, soletração rigorosa, po- não temos deus, mas para quem a linguagem tornou-se Deus (o valor plena e
rém desviada,do nome do deus -
modo alusivo radicalmente diferente do modo
da significação. Porque o significante vale como ausência, como dispersão e
fálico do nome de Deus difundiu-se para nós por meio de toda a extensão do
discurso), o poético é o lugar da nossa ambivalencia diante da linguagem, da
condução à morte do significado. 0 nome do deus aparece af no eclipse de sua nossa pulsão de morte perante a linguagem, da forga própria à exterminação
destruição, no modo sacrificial, exterminado no sentido literal do termo. do código.
A partir daf, está claro que a questão da confiança que Saussure apresenta
a si mesmo,e na qual repousa toda a objeção de Starobinski -a
da existe-ncia
positiva da palavra-tema -éirrelevante, porque esse nome do deus existe tão- OS NOVE MILHÕES DE NOMES DE DEUS
-só para ser reduzido a nada. Numa narrativa de science-fiction (Arthur Clarke, Les neuf milliards de noms
Nada temos a fazer com a identidade do nome do deus, a qual não se de Dieu), uma confraria de lamas perdidos nos confins do Tibete dedica toda
vincula nenhuma espécie de enlevo: este procede sempre da morte do deus e a vida a recitação dos nomes de Deus. Esses nomes são numerosos: nove
do seu nome e, de modo mais geral, do fato de que, onde havia alguma coisa
- um nome, um significante, uma instancia, um deus -
nada resta. Há nisso
uma radical revisão das nossas concepções antropológicas. Afirma-se que a
milhões. Quando todos eles tiverem sido pronunciados e declinados, o mundo
vai se acabar, todo um ciclo do mundo vai chegar ao fim. Levar o mundo ao
fim passo a passo, palavra por palavra, esgotando o corpus total dos significan-
poesia sempre foi a exaltação, a celebração positiva de um deus ou de um
herói (ou de muitas outras coisas mais tarde); é preciso ver, pelo contrário,
tes de Deus: eis o seu delfrio religioso -
ou a verdade da sua pulsão de morte.
Mas os lamas decifram lentamente; sua tarefa dura séculos. É então que
que ela só é bela e intensa porque o devolve à morte, por ser o lugar de sua eles ouvem falar de misteriosas máquinas ocidentais que podem registrar e
volatilização e do seu sacriffcio, porque toda a "crueldade" (no sentido de decifrar a uma fabulosa velocidade. E um deles encomenda um poderoso
Artaud), toda a ambivalência da relação com os deuses é af posta em jogo de computador da IBM a fim de apressar sua tarefa.Técnicos americanos vão as
maneira precisa. É preciso ter a ingenuidade de um ocidental para pensar que montanhas do Tibete instalar e programar a máquina. De acordo com eles, três
os "selvagens" prosternavam-se diante dos seus deuses da maneira como o meses serão suficientes para chegar ao fim dos nove milhões de nomes8. Quan-
fazemos diante do nosso. Eles sempre souberam, pelo contrário, atualizar em to a eles, naturalmente, não creern numa só palavra sobre as conseqüências
seus ritos a ambivarência com relação aqueles, e taluez eles jamais os tenham proféticas dessa contagem e, pouco antes do término da operação, temendo
suscitado a não ser corn o objetiuo de lord-1os à morte. Isso ainda está vivo no que os monges se voltem contra eles diante do fracasso de sua profecia, os
poético. Deus não é invocado af em outra forma, nem o seu nome é retomado técnicos fogem do mosteiro. Então, descendo de volta ao mundo civilizado,
"por extenso" (mais uma vez, que interesse ha nisso? Para repetir o seu nome eles \Teem as estrelas se extinguirem uma depois da outra...
basta o cfrculo de oração); ele é resolvido, desmembrado, sacrificado no seu
nome - poderfamos dizer, seguindo Bataille, que a descontinuidade
(discursividade) do nome é af abolida na continuidade radical do poema.
O poema também é resolução total do mundo quando os fonemas esparsos
do nome de Deus são nele consumidos. Quando termina a cleclinação
anagramática, não resta coisra nenhuma, um ciclo do mundo nela se completa
Extase de morte. e o intenso enlevo que a traspassa não vem de nenhum outro lugar.

regra do discurso comum (cf. supra), a da disponibilidade absoluta do significante, rid() é abalada
8. 0 humor desse romance é ainda mais engraçado porque, se ha uma coisa que fracassa em
nem ultrapassada. Ora, o modo poético implica estas duas coisas: fiquidação do significado e
resolução anagranitifica do significante. inscrever a morte,em que a pulsào de mode é barrada, trata-se justamente dos sistemas cibernéticos.

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A EXTERMINAÇA0 DO NOME DE DEUS
0 ANAGRAMA

vertigem do poético, vertigem do rigor com o qual via a linguagem voltar-se sobre
si mesma, operar com sua própria matéria, em vez de se desenrolar linearmente,
0 segundo ponto sobre o qual incide o comentário de Starobinski 6 a de se suceder bestamente, como no discinso habitual. Nada permanece disso em
própria especificidade do poético. No fundo, diz ele, as regras descobertas por Starobinski: o rigor se torna ."obsessão", categoria psicopatológica; a duplicação
Saussure e que ele imputa a um cálculo deliberado podem ser remetidas a sem resíduo passa a ser ocorrência/recorrência probabilística; a dispersão
dados de base de toda língua.Sobre a primeira regra (a da formação de pares): anagramático vem a ser "rumor múltiplo da linguagem", contextualidade harm&
"As oportunidades fônicas totais oferecidas a cada instante pela lingua a quem nica na qual um dado sentido 6 especificado passo a passo:"Todo discurso 6 um
as deseja aproveitar.., são deveras múltiplas para não exigir alguma combina- conjunto que se presta ao levantamento de um subconjunto... todo texto é ele
cão laboriosa, e para exigir simplesmente uma combinação atenta" (no limite, mesmo, por outro lado, o subconjunto de um outro texto... todo texto engloba e
nem isso: o acaso, a probabilidade pura, pode ser suficiente). Ou ainda: "Os englobado. Todo texto 6 um produto produtivo etc" E defendamos as bonecas
fatos de simetria fônica (o termo 'simetria' é já um termo redutor: é ver na russas, a textualidade "abissal" cara a Tel Quel.
duplicação dos fonemas uma redundância especular) aqui constatados cau- Toda a argumentação de Starobinski equivale a dizer: ou o poeta é apenas
sam espécie: mas são eles o efeito de uma regra observada (de que nenhum um obsedado formalista (se seguirmos a hipótese de Saussure) ou sua opera-
testemunho teria sobrevivido)? Não seria possível invocar, a fim de justificar 00 6 a mesma de toda linguagem, sendo entdo Saussure o obsedado: tudo o
esse multiplicidade de correspondências internas, um gosto pelo eco, muito que ele julgou ter descoberto não passa de ilusão retrospectiva de pesquisador,
pouco consciente e quase instintivo?" porque "toda estrutura complexa fornece ao observador inúmeros elementos
"Gosto pelo eco instintivo": o poeta seria apenas, no fundo, um acelerador de para que ele possa escolher um subconjunto aparentemente dotado de sentido,
partículas de linguagem,não faria nada mais do que reforçar a taxa de redundân- e ao qual nada o impede de conferir a priori uma antecedencia lógica ou
cia da linguagem habitual. É isso a "inspiração", que prescinde por inteiro do cronológica". Pobre Saussure, que via o anagrama por toda parte e emprestava
cálculo, bastando um pouco de "atenção" e de "instinto":"Será necessário que o seus fantasmas aos poetas!
exercício da poesia entre os antigos se aproxime mais do rito da obsessão do que Starobinski e os lingüistas não sonham: ao verificar a hipótese de Saussure
do impulso da palavra inspirada?" Podemos por certo admitir a restrição formal: ao infinito, eles a reduzem a zero. Para isso, bastaria atacar o conteúdo (a
"É verdade que a escansão tradicional submete a dicção do vate a uma regula- indução da palavra-tema, sua figuração positiva, suas metamorfoses) em vez de
ridade que é adequado qualificar de obsessiva. Nada impede de imaginar,já que julgar a forma. 0 contexto do poético rid() 6 a produção e sequer as variações
os fatos a isso se prestam, um conjunto adicional de exigências formais que combinatórias de um tema ou um "subconjunto" identificável. Se fosse, ele
obrigassem o poeta a utilizar duas vezes no verso cada um dos elementos fônicos.." entraria muito bem em efeito num modo universal do discurso (muito embora,
Mas dizer que o poeta seja um ressoador inspirado ou um calculador obsessivo nesse caso, já não se veja a necessidade do poético, seu estatuto diferencial,
nem o enlevo próprio a esse modo em oposição ao do discurso). 0 contexto
mais uma vez o mesmo tipo de interpretação: a formação de pares e o anagra-
ma são efeitos de ressonância, de redundância, de "imitação por aumento" etc. - do poético, precisamente por meio do trabalho anagramático, o ponto de não-
-retorno a qualquer termo ou tema que seja. Nesse ponto, a demonstracão ou
em suma, o poético 6 um jogo combinatório e,como toda linguagem
combinatória, o poético volta a ser um caso particular da linguagem:"Fbr que não
- processo nem pura-
não-demonstração da existéricia da palavra-chave 6 um falso problema não
porque, no fundo, de acordo com Starobinski, toda linguagem se articule sobre
-
veriamos no anagrama um aspecto do pTocesso da fala
mente fortuito nem plenamente consciente? Por que não existiria uma iteração, alguma espécie de número ou fórmula, mas porque, de qualquer maneira, 6 a
uma palilalia geradora, que projetariam e duplicariam no discurso materiais de
os nadificação desse número que constitui a forma do poético. E essa forma des-
uma primeira fala, ao mesmo tempo não pronunciada e não assassinada? Não crita por Saussure vale para toda a poesia, tanto a mais moderna como a mais
sendo regra consciente, o anagrama pode ainda assim ser considerado uma regu- antiga. 0 princípio dessa nadificação do número conserva sua plena inteligibi-
laridade (ou uma lei) em que o arbitrário da palavra-tema é confiado à necessi- lidade ainda que a existência dessa fórmula não possa ser verificada'. Simples-
dade de um processo".E a hipótese da palavra-tema, de sua rigorosa dispersão? mente esse número, que pode ter assumido na poesia arcaica a forma de uma
"É descobrir esta verdade tão simples: que a linguagem é recurso infinito e que,
palavra-tema, talvez já não seja na poesia moderna mais do que uma conste-
por trás de cada frase, dissimula-se o rumor múltiplo de que ela é retirada para se lação significante não isoldvel enquanto tal, talvez uma letra/carta ou uma
isolar diante de nos em sua originalidade" Mas então o que descobriu Saussure?
Nada.Teria sido a "vertigem de um erro"? Pior: uma platitude. Generalizada dessa 9. 0 mesmo acontece, de (palmier maneira, coni a hipótese da pulsão de morte ern Freud -
maneira, sua hipotese se reduz a nada. Eis como, em toda a "boa-f6" lingüística, inverificavel no limite, de acordo com sua própria opinião, no plano clinico, em seu process° e ern seu
conteúdo, porem revolucionária na forma como princfpio de funcionamento pstquico e anti-logos.
nega-se a diferença radical do poético. Saussure ao menos foi tomado por uma
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A EXTERMINAÇÃO DO NOME DE DEUS

fórmula perdidas para sempre, do tipo leclairiano, ou então inconsciente ou


ainda a "diferencial significante" de que fala Tel Quel.0 essencial, qualquer que
seja a fórmula, é não considerar o poético como seu modo de aparecimento,
mas como seu modo de desaparecimento. Nesse sentido, vale mais o fracasso
de Saussure do que conseguir provar a hipótese. Valem mais o fracasso e a
vertigem de Saussure, que ao menos mantem as exigencias do poético, do que
todas as banalidades que se contentam como o poético enquanto fato univer-
sal de linguagem
0 Imaginário
da Lingüística

.4.
Epreciso ver agora, independentemente de Saussure, como os lin
güistas lidaram com o poético e com a interrogação que ele impõe
A sua "ciencia". No cômputo geral, sua defesa diante do perigo é a

mesma que a dos defensores da economia política (e dos seus críticos marxis-
tas) diante da alternativa do simbólico nas sociedades anteriores e na nossa.

princípio de racionalidade -
Todos preferem diferenciar, modular suas categorias sem nada alterar em seu
sem nada mudar no arbitrário e no imaginário
que os leva a hipostasiar no universal a ordem do discurso e a ordem da
producão. Enquanto ciências, a lingüística e a economia política tem boas
razões para crer nessa ordem, visto que estão a serviço dela.
Desse modo, os lingüistas concedem que o arbitrário do signo sofre algum
-
transtorno no poético mas por certo não a própria distincão entre significante
e significado nem, portanto, a lei de equivalencia e a funcão de representação.
Na verdade, de certa maneira o significante representa, dessa vez, muito me-
lhor do que o significado, pois o "exprime" diretamente, segundo uma correla-
ção necessária entre cada elemento da substancia do significante e aquilo que
se considera que represente - em vez de a ele remeter arbitrariamente como
no discurso. Concede-se autonomia ao significante (Ivan Fonagy, Diogene, n.
51, 1965:"As mensagens conceituais transmitidas por intermédio dos sons dife-
rem necessariamente das mensagens pré-conceituais contidas no encadeamen-
to dos próprios sons e dos ritmos. Acontece de os dois coincidirem ou diver-
girem..:') -,
mas é no fundo porque ele encarna melhor, e não só por conven-
ção, porém em sua materialidade e em sua carne, aquilo que tem a dizer:
"Sentimos passar a brisa nos versos de SwinburneZ Em lugar de haver, como
é o caso na lingua conceitual, a unidade de primeira articulação, é o fonema,
a unidade de segunda articulação, que se torna representativa - mas a forma

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0 IMAGINARIO DA LINGIASTICA
A EXTERMINAQA0 DO NOME DE DEUS

significante, remete-la a um efeito de significação suplementar. Passa alguma


da representação não mudou. Trata-se sempre precisamente de remeter, não
mais por meio de termos da lingua ou da sintaxe, nem do conceito, porém por
outra coisa além do conceito, porém alguma outra coisa ainda - outro valor
atualizado pelo jogo do significante, porém valor ainda; o material significante
meio das vogais, das silabas, dos átomos de linguagem e de sua combinação
funciona em outro nível, seu nivel próprio, porém continua a funcionar: por
no ritmo, a uma presença elementar, a uma instância original das coisas (a
outro lado, Jakobson faz dessa função poética uma função da linguagem entre
"brisa" como processo primário!). Entre a substância da linguagem e a substan-
cia do mundo (o vento, o mar, os sentimentos, as paixões, o inconsciente: todo
outras, suplementar e não alternativa
do fato de o próprio significante ser
- mais-valia de significação decorrente
levado em conta como valor autônomo. 0
o"pré-conceitual"- na verdade já conceitualizada,embora isso não transpareça,
poético nos proporciona mais do que isso!
por todo um código da percepção), é sempre uma correlação positiva que está
Essa "presença a si mesmo" do significante é analisada em termos de re-
em jogo, um jogo de equivalencias entre ualores.
dundância, de eco interno, de ressonância, de recorrencia fônica etc. (Hopkins:
Assim, as vogais surdas valeriam pelo obscuro etc., e não mais teriamos aí
"0 verso é um discurso que repete parcial ou totalmente a mesma figura fônica".)
uma equivalência conceitual arbitrána, mas uma equivalência fônica necessária.
Ou então (M. Grammont, Traite" de phonetique, 1933): "Reconhece-se que os
Assim ocorre com o soneto das vogais de Rimbaud,e toda a exposição de Fonagy
poetas dignos deste nome possuem um sentimento delicado e penetrante do
sobre o "simbolismo" dos sons da linguagem (Diogène, n. 51, p. 78): todos concor-
valor impressivo das palavras e dos sons que as compõem; a fim de comunicar
dam em reconhecer que o i é mais ligeiro, mais rápido, menor que o u (ou) que esse valor aqueles que teem, ocorre-lhe amiúde representar em torno da pala-
okeor sac) mais duros do que o / etc."A sensação de pequenez associada com vra principal fonemas que a caracterizam, de modo que essa palavra vem a ser
a vogal i pode ser a resultante de uma percepção sinestésica subconsciente da
posição da lingua quando da emissão desse som -o r parece masculino (!) em
em suma o gerador do verso inteiro no qual figura".
Em tudo isso, o "trabalho" do significante aparece sempre como organiza-
razão do maior esforço muscular que exige na emissão, em comparação com o
/ alveolar e o m labial..:'Verdadeira metafísica de uma lingua original, tentativa
ção positiva, concorrente com a do significado
como
- ora coincidem, ora diver-
apenas a "uma corrente
desesperada de recuperar uma jazida natural do poético, um génio expressivo da
lingua, que bastaria captar e transcrever.
gem, para repetir Fonagy,
subjacente de significação" -
mas,

não poderia ser de outra maneira


seja
nem se
numa
for,
cogita
isso
em
perspectiva
leva
escapar
que
ao ser do discurso. E
só concebe o poético
Com efeito, tudo isso é codificado, e é tão arbitrário correlacionar o fonema como autonomização de uma das categorias funcionais da ordem do discurso.
"f' repetido com a brisa que passa quanto a palavra "mesa" com o conceito de jakobsoniana: a função
0 mesmo ilusionismo está presente na outra formula
mesa. Nada há de comum entre eles, não mais do que entre uma dada música poética projeta o princípio de equivalencia do eixo da seleção sobre o eixo da
e aquilo que ela evoca (paisagem ou paixão), exceto por convenção cultural, constitu-
combinação. A equivalencia é promovida à condição de procedimento
a não ser segundo um código. Que esse código se queira antropológico (vogais
"naturalmente" doces) em nada lhe altera o caráter arbitrario - que
inversamente,
a convenção
tivo da sequencia."Na poesia, cada sílaba é posta numa relação de equivalência
com todas as outras silabas da mesma seqüência; espera-se que toda tonicidade
por outro lado, pode-se por certo sustentar com Benveniste
impõe seja igual a toda outra tonicidade de palavra; assim, átono é igual a átono; longo
cultural muito forte que liga a palavra "mesa" com o conceito de "mesa"
(prosodicamente) igual a longo, breve igual a breve etc:'. Está claro que a adieu-
uma real necessidade, bem como que o signo no fundo nunca é arbitrário. Uma
lação não é mais a da sintaxe habitual, mas trata-se sempre de uma arquitetura
coisa é certa: o arbitrário fundamental não está na organizacão interna do
signo; está na imposição do signo como valor, ou seja, na pressuposição de
construtiva- nunca se imagina que possa entrar ern jogo na prosódia algo além
-
duas instancias e de sua equivalência segundo a lei tendo o signo o estatuto
da escansão de equivalentes. Jakobson contenta-se em substituir a ambivalència
do significante pela ambigüidade do significado.
de algo que "vale por", como algo que emana de uma realidade que nos faz um
Porque o que caracteriza o poético, e o distingue do discursivo, é a ambi-
sinal. Esta é a metafísica da lingüística, este é o seu imaginário, e sua interpre-
güidade: ambigüidade é uma propriedade intrínseca, inalienável, de toda
tação do poético ainda é assombrada por esse pressuposto.
mensagem centrada em si mesma; em resumo, constitui um corolário obriga-
Em contrapartida, no momento em que brande um esturjdo verdadeiro em
torio da poesia". Empson:"As maquinações da ambigilidade estão nas próprias
vez de pronunciar a senha "esturjão", substituindo o termo pelo referente, abo-
ralzes da poesia". Jakobson outra vez:"A supremacia da função poética sobre
lindo a separação entre os dois, Harpo Marx acaba de fato com o arbitrário e,
ao mesmo tempo, com o sistema da representação
cia: destruição do significante "esturjão" pelo seu
- ato poético por excelên-
próprio referente.
a função referencial não oblitera a referencia [a denotação], tornando-a ambí-
gua. A uma mensagem de duplo sentido corresponde um emissor duplicado,
um destinatário duplicado e, além disso, uma referencia duplicada". Logo, to-
Conceitual ou pré-conceitual, é sempre de "mensagem" que se trata, a
das as categorias da comunicação discursiva "participam do jogo" no poético
"aparencia da mensagem enquanto tar, por meio da qual Jakobson define
(todas, salvo, curiosamente, o código, de que Jakobson não fala: que é feito do
a função poética, não faz senão, ao dar autonomia a operação do material
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A EXTERMINKAO DO NOME DE DEUS 0 IMAGINARIO DA LINGOÍSTICA

código? Torna-se ele também ambfguo? Mas isso seria o fim da lingua e do significados" (A Obra Aberta). "Hai uma identificação, no material, entre o
lingüfstico). A ambigüidade não é perigosa. Ela não altera coisa alguma do
princfpio de identidade e de equivarencia, do principio do sentido como valor,
significante e o significado -o signo estético não se esgota no reenvio ao
denotatum, mas se enriquece, cada vez que é posto em jogo, com a maneira
limitando-se a fazer esses valores flutuar, a tornar difusas as identidades, a insubstituivel pela qual forma unidade com o material que lhe dá sua estrutura
complexificar a regra do jogo referencial sem aboli-la. Assim, emissor e desti-
natário ambfguos significam para Jakobson apenas o recuo do Eurru interno
-a significação volta continuamente ao signo e se enriquece assim com novos
ecos..:' Logo, o esquema é o de uma primeira fase referencial (denotativa),
mensagem em favor da relação autor/leitor: as posições dos respectivos su- seguida de uma fase de referência "harmônica" na qual atua uma reacão em
-
jeitos não se perdem; o que ocorre com elas, de alguma forma, é uma redução
os sujeitos tornam-se móveis no interior de sua posição de sujeito. Desse
cadeia "teoricamente ilimitada" - vindo daf a evocacão cósmica.
Essa teoria serve de ideologia de base a tudo o que se pode dizer do

mensagem -
modo, a mensagem se torna móvel, ambigua, no interior de sua definição de
todas as categorias (emissor, destinatário, mensagem, referente)
se movimentam, ganham impulso em sua posicão respectiva, mas a grade es-
poético (a própria psicanálise não lhe escapa): ambigüidade, polissemia,
polivarencia, polifonia de sentido- trata-se em todos os casos de uma irradia-
Oo de significado, de uma simultaneidade de significacões.
trutural do discurso permanece a mesma. Fonagy:"0 caráter linear do discurso oculta uma rica polifonia, um concerto
As "maquinacões da ambigüidade", por conseguinte, não mudam grande
harmônico de mensagens diferentes" (Diogène, n. 51, p. 104). Densidade sernan-
coisa a forma do discurso. Jakobson tem a seguinte fórmula audaciosa: "A tica da linguagem, riqueza de informacão etc.: o poeta "libera" todo tipo de
poesia não consiste ern adicionar ao discurso ornamentos retóricos: ela impli- virtualidade (tendo por corolário uma hermeneutica diferencial da parte do leitor;
ca uma total reavaliacão do discurso e de todos os seus componentes, sejam cada leitura "enriquece" o texto com suas harmonias pessoais).Todo esse mito se
eles quais forem". Audaciosa e ambigua, visto que os componentes (emissor/ apóia numa anterioridade "selvagem", pré-conceitual, numa virgindade do senti-
destinatário, mensagem/código etc.) não cessam de existir em sua separacão, do: "0 termo usual apropriado ao conceito, e que é a redução esquelética de
sendo simplesmente "reavaliados". A economia geral permanece a mesma: a todas as experiencias anteriores,é rejeitado pelo poeta, que se ve- face a face com
economia política do discurso. Em nenhum lugar esse pensamento avanca a uma realidade indomada, ainda virgem"-"a cada vez,é preciso recriar a palavra
ponto de atingir uma abolição das funcões separadas: abolição do sujeito da a partir de uma experiência pessoal intensa, revestir com carne viva o esqueleto
comunicacão (e, portanto, da distinção emissor/destinatário); abolição da
mensagem enquanto tal (e, portanto, de toda autonomia estrutural do código).
Todo esse trabalho, que plasma a radicalidade do ato poético, é aqui reduzido
-
da coisa em si, a fim de the conferir a realidade concreta da coisa para mim"
(ibid., p. 97) já não se sabe muito bem se é preciso despir ou vestir de novo
o conceito para encontrar a virgindade do poético! Seja como for, trata-se de
ao da "ambigüidade", a certa flutuação das categorias lingüísticas."Discurso no descobrir "as correspondencias secretas que existiam entre as coisas".
interior do discurso", "mensagem centrada em si mesma": tudo isso só serve Teoria "genial" e romântica, essa visão consegue hoje, paradoxalmente,
para cingir uma retórica da ambigiiidade. Ora, o discurso ambfguo, aquele que escrever-se novamente em termos informaticos. A "riqueza" polifônica pode ser
encara a si mesmo com o olhar vesgo (estrabismo do sentido), ainda é o descrita em termos de "aumento de informacão". No rave] do significado: a
discurso da positividade, o discurso do signo como valor. poesia de Petrarca constitui um imenso capital de informacão sobre o amor
No poético, pelo contrário, a linguagem se volta sobre si mesma a fim de
(Umberto Eco). No nivel do significante: certo tipo de desordem, de ruptura,
abolir-se. Ela rid() está "centrada" em si mesma, ela de descentra de si mesma.Ela
de negacão da ordem habitual e previsfvel da linguagem aumenta a taxa de
desfaz todo o processo de construtividade lógica da mensagem, resolve toda essa
informacão da mensagem. Haveria uma "tensão dialética" entre os elementos
especularidade interna que faz com que um signo seja um signo: algo de pleno, da desordem e a ordem que lhe serve de fundo no poético. Enquanto o uso
de refletido, de centrado sobre si mesmo e, a esse tftulo, efetivamente ambfguo. 0 mais provável do sistema lingüfstico nada geraria, o inesperado do poético, sua
poético é a perda desse fechamento especular do signo e da mensagem.
improbabilidade relativa, determina uma taxa máxima de informação. Mais
uma vez, o poético nos proporciona mais.
Dessa maneira, o imaginário semiológico concilia muito bem a polifonia
É no fundo a mesma metafisica que governa a teoria da forma artistica a romántica com a descricão quãntica."É em termos de encadeamento de pro-
partir do romantismo: a metaffsica burguesa da totalidade. 0 próprio da arte babilidades que a estrutura da poesia pode ser descrita e interpretada corn o
seria evocar "a faculdade de ser um todo, de pertencer a um todo maior que máximo de rigor.""Uma acumulacão superior ã freqüência média de certa clas-
inclui todas as coisas, e que não é senão o universo em que vivemos". Umberto se de fonemas, em que a combinacão contrastante de duas classes opostas, na
Eco faz sua essa cosmologia, transcrevendo-a de novo em termos lingüísticos: textura fônica de um verso, de uma estrofe, de um poema, desempenha o papel
essa totalizacão do sentido se faz pela "reação em cadeia e redução infinita de de uma 'corrente subjacente de significacão':'

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A EXTERMINAÇAO DO NOME DE DEUS 0 IMAGINAR1O DA LINGOÍSTICA

"A forma, na linguagem, apresenta uma estrutura manifestamente granular, teórica total do materialismo, sem poder, no entanto, saltar por sobre a própria
sendo suscetível de uma descrição quãntica" (Jakobson). Podemos comparar com sombra: não há transição "dialética" entre a ciéncia, mesmo no auge de sua crise,
isso Kristeva (Sémélotik.e,"Poesia e Negatividade", p.246:"As palavras não são enti- e alguma coisa que estaria além disso, razão por que a ciéncia está irremediavel-
dades indecomponíveis, mantidas pelo seu sentido, mas combinacões de atos mente separada, porque é sobre a denegacão (não a negacão dialética, mas a
significantes, fônicos e escriturais, que voam de palavra em palavra, criando assim denegação) disso mesmo que ela está fundada.0 materialismo mais rigoroso nun-
relacões insuspeitadas, inconscientes, entre os elementos do discurso; e esse ato de ca vai conseguir ir além do princípio de racionalidade do valor.
relacionar elementos significantes constitui uma infra-estrutura significante da lín-
gua". Todas essas fórmulas convergem para o ideal de um estado "browniano" da

da matéria física -
linguagem,de um estado emulsional do significante homólogo ao estado molecular
liberando "harmonias" de sentido como a fissão, ou a fusão,
liberam novas afinidades moleculares. 0 todo concebido como uma "infra-estrutu-
As análises de Tel Quel vão mais longe na desconstrucão do signo, chegando
a uma "liberação" total do significante. Paga a hipoteca do significado e da men-
sagem, não há mais "polissemia": é o significante que plural. Quanto maior a
.6

ra", uma "corrente subjacente", isto é, um estágio logicamente anterior, ou estrutu- "ambigüidade" da mensagem, tanto mais a intertextualidade do significante, que
ralmente mais elementar, do discurso, tal como da matéria.Visão cientificista "ma- se encadeia e se produz em sua pura lógica "materiarTexto sem fim do paragrama,
terialista" do discurso, em que o átomo e a molécula são equiparados propriamen- a significância é o verdadeiro nivel de produtividade da lingua, produtividade
te com a segunda articulacão da linguagem. E o estágio molecular ao estágio
-
poético estado original,anterior às organizações diferenciadas do sentido.Kristeva,
por outro lado, não tem medo de sua própria metáfora: ela diz que a ciéncia
para além do valor que se opõe à significacão do texto produzido.
Julia Kristeva, em "Poesia e Negatividade" (Sérneiotikê, p. 246ss.) é quem
mais se aproxima de um reconhecimento da forma do poético, ainda que a
moderna decompôs os corpos em elementos simples do mesmo modo como a supersticão de uma "producão materialista" do sentido faca com que ela, ao
lingüística (poética) desarticula a significacão em átomos significantes. reverter o poético à ordem semiótica, o censure como alternativa radical.
É aí que se constitui, ao lado da metafísica da primeira articulacão (metafí- Kristeva postula a ambivarencia do significado poético (e não a simples
sica dos significados, ligada ao jogo das unidades significativas), o que se poderia ambigüidade): ele 0- a um 95 tempo concreto e geral, engloba ao mesmo tempo
denominar a metaffsica da segunda articulacão, a do efeito de significacão infra- a afirmação (lógica) e a negação, enuncia a simultaneidade do possível e do

discurso -
-estrutural, ligada ao jogo das unidades distintivas, dos elementos mínimos do
porém, mais uma vez, tomadas como valéncias positivas (assim como
impossível - longe de postular "concreto versus geral", ele reduz a pó essa cesura
do conceito: a lógica bivalente (0/1) é abolida pela lógica ambivalente. Disso
os átomos e as moléculas tém uma valéncia elementar), como materialidade decorre a negatividade particularíssima do poético.A lógica bivalente, a do discur-
rônica cuja ordenacão se dá em termos de encadeamento e de probabilidades. so, repousa na negacão interna ao julgamento, funda o conceito e sua equivalén-
Ora,o poético não se funda mais na articulacdo autõnoma do nível fonemático cia a si mesmo (o significado é o que é). A negatividade do poético é uma
do que na das palavras ou da sintaxe. Ele não joga a segunda articulação contra a negatividade radical que incide sobre a pm-5pda lógica do julgamento. Alguma coisa
primeira'. Ele é a abolicão dessa distincão analítica das articulacões na qual repousa "6" e não é aquilo que 6: a utopia (no sentido literal) do significado. A equivalén-
a discursividade da linguagem, sua autonomia operacional como meio de expres- cia da coisa a si mesma (e, é claro, também do sujeito) é volatilizada. Assim, o
seio (e como objeto da lingüística).De qualquer maneira, por que o nível fonemático
seria mais"materialista"que o do conceito lexical ou da frase? Uma vez que facamos
deles substãncias mínimas, o fonema, assim como o átomo, são referéncias idealis-
significado poético é o espaco em que "o Não-Ser se entrelaca com o Ser, e isso
de uma maneira completamente desnorteadora". Há, no entanto, o perigo
manifesto na própria Kristeva - -
de se tomar esse "espaco" como sendo ainda tópico
tas. Com a física do átomo, a única coisa que a ciéncia fez foi aprofundar sua e esse "entrelacamento" como sendo ainda dialético. Perigo de preencher esse
racionalidade positivista.Ela de forma alguma aproximou-se de um outro modo que espaco com todas as figuras substitutas:`A metáfora, a metonímia e todos o tropos
supusesse a exterminacão respectiva das posicões de objeto e de sujeito da ciéncia. inscrevem-se no espaco delimitado por essa estrutura semântica dúplice". Perigo
Talvez ela tenha hoje chegado aos seus confins, ao mesmo tempo que a uma crise da metáfora, de uma economia ainda positiva da metáfora. No exemplo citado, o
dos "móveis voluptuosos" de Baudelaire, o efeito poético não advém de um valor
1. E a ilusão de poder separar as duas articulações e eventualmente subtrair uma da outra. A erótico adicionado, jogos de fantasmas adicionais, nem de um "valor" metafórico
ilusão de poder reencontrar na linguagem, mediante o descarte da primeira articulação "significa- ou metonímino. Vem do fato de que, no curto-circuito dos dois nem o móvel
tiva", o equivalente aos sistemas de signos não-lingüísticos (gestos, sons, cores). Essa ilusão leva
Lyotard, Discours, Figure) a privilegiar de modo absoluto esse nível do visual, do grito, como
continua a ser móvel nem a voluptuosidade, voluptuosidade -o móvel passa a
transgressno espontnnea,sempre jn além do discursivo e mais próximo do figural. Ela permanece
ser voluptuoso e a voluptuosidade passa a ser móvel não resta nada dos dois
inabilitada pelo próprio conceito de dupla articulação, por meio do qual a ordem lingüística ainda campos separados do valor. Nenhum dos dois termos é poético em si mesmo e
encontra meios de se impor na interpretação daquilo que lhe escapa. muito menos o é a sua síntese: eles o são ao ser volatilizados um no outro. Não

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A EXTERMINAÇÃO DO NOME DE DEUS 0 IMAGINARIO DA LINGOÍSTICA

há relação entre o enlevo (poético) e a voluptuosidade enquanto tal. No prazer 0 empreendimento semiótico não passa de
amoroso, esta não é senão voluptuosidade - volatilizada em móvel, ela se torna
enlevo. E o mesmo ocorre com o móvel anulado pela voluptuosidade: mesma
uma maneira mais sutil de neu-
tralizar a radicalidade do poético e salvar a hegemonia do lingüístico (rebatizado
"semiótico"), não mais por meio da anexacão pura e simples, porém por trás da
reversão que prevalece sobre a posicão própria de cada termo. É nesse sentido ideologia da "pluralidade".
que vale a fórmula de Rimbaud:"É verdade literalmente, e em todos os sentidos".
A metáfora ainda não passa de transferência de um a outro campo do valor,
até a "absorção de uma multiplicidade de textos (de sentidos) na mensagem" A subversão do lingüístico pelo poético não pára ai: ela nos leva a pergun-
(Kristeva). 0 poético implica reversibilidade de um campo ao outro, logo, anu- tar se as regras da linguagem valem mesmo para o campo da linguagem no
lação dos seus respectivos valores. Enquanto na metáfora as valências se com- qual se baseiam, isto é, na esfera dominante da comunicação (do mesmo
binam, implicam-se mutuamente, intertextualizam-se de acordo com um jogo modo, o fracasso da economia em dar conta de sociedades anteriores leva-nos
"harmônico" (os "acordos secretos da linguagem), no enlevo poético eles se em contrapartida a perguntar se esses principios fern de fato algum valor para
anulam -a ambivarencia radical é não-varencia. nós). Ora, é verdade que a prática imediata da linguagem tem algo de refratário
Há, portanto, a regressão em Kristeva de uma teoria radical da ambivale'n- abstracão racional da lingüística. O. Mannoni o diz muito bem em "A Elipse
cia a uma teoria da intertextualidade e da "pluralidade de códigos". 0 poético e a Barra", em Clefs pour l'imaginaire, p. 35: "A linguística nasce da barra que

-
s6 de distingue do discurso, por conseguinte, pela "infinidade de seu código"
trata-se de um discurso "plural", não sendo o outro mais do que o caso limite
de um discurso monológico, discurso de um só código.Logo,há numa semiótica
de morrer de sua reunião -
ela mesma instaura entre significante e significado, e parece que corre o risco
precisamente aquela que nos remete sas conversas
corriqueiras da vida". É essa barra saussuriana que permitiu uma completa
geral lugar para dois tipos de discurso:"A prática semiótica da fala [o discurso] renovacão da teoria lingüística. Da mesma maneira, é por meio do conceito de
apenas uma das práticas semióticas possiveis" (Séméiotike, p. 276). A uma infra-estrutura material oposta à "superestrutura" que o marxismo instau-
semanálise atribui a si a tarefa de levar em conta todas essas práticas, sem rou algo semelhante a uma análise "objetiva" e revolucionária da sociedade. A
exclusividade, isto é, sem negligenciar a irredutibilidade do poético, mas sem cesura funda a ciência. É também da distinção entre teoria e prática que nasce
reduzir por causa disso a lógica do signo. Ela toma a si a constituição de uma uma "ciência", uma racionalidade da prática: a organizacão.Toda ciência, toda
"tipologia não redutora da pluralidade das práticas semióticas". Há uma racionalidade dura o tempo da duração dessa cesura. A dialética apenas a
intricacão das diferentes l6gicas do sentido: "0 funcionamento da fala está ordena formalmente, mas nunca a resolve. Dialetizar a infra-estrutura e a supe-
impregnado de paragramatismo da mesma maneira como o funcionamento da restrutura, a teoria e a prática ou o significante e o significado, a lingua e a fala:
linguagem poética é delimitado pelas leis da fala" (Ibid., p. 275).
Reencontramos aqui o equivoco de Starobinski com respeito a Saussure:
vão esforco de totalização -a ciência vive dessa cesura, e morre com ela.
A prática não-cientifica corrente, tanto lingüística como social, é de certo
tolerãncia respectiva do poético e do discursivo em nome de regras universais modo revolucionária precisamente porque não faz esse tipo de distincão. Assim
da linguagem (aqui, em nome de uma ciência "verdadeiramente materialista" como nunca fez a distinção entre a alma e o corpo, ao passo que toda a filosofia
chamada semiótica). Na prática, posicão redutora, repressiva. Porque não há e a religião dominantes vivem justamente dessa distincão, do mesmo modo a
entre o poético e o discursivo a distãncia que separa as duas articulacões uma
da outra - há entre eles um antagonismo radical. Um não é "infra-estrutura
significante" (de que o discurso l6gico seria a "superestrutura"?). E o discurso,
entre teoria e prática, entre infra-estrutura e superestrutura -
prática social, imediata, "selvagem", a nossa, a de todos, não faz a distincão
ela é por si mes-
ma, sem sobre isso deliberar, uma acão de transversalidade, para além da
o logos, não é um caso particular numa infinidade de códigos: ele é o código, racionalidade, burguesa ou marxista. A teoria, a "boa" teoria marxista, nunca
que leva ao fim a infinidade, é o discurso de fechamento que leva ao fim o analisa essa prática social real, ela analisa o objeto que criou para si mesma
poético, ao paragramático e ao anagramático. Inversamente, é sobre seu des- mediante a dissociação dessa prática numa infra-estrutura e numa superestru-
mantelamento, sobre sua destruição que a linguagem reata relações com a tura; ou ainda, ela analisa o campo social que cria para si mesma por intermé-
possibilidade da "infinidade". Com efeito, o termo "infinidade de c6digos" dio da dissociação entre teoria e prática. Ela jamais vai alcancar essa "pratica",
ruim: é ele que permite esse amálgama entre o um e o infinito da "matemática" visto existir apenas por t&la submetido a uma vivisseccão: felizmente, essa
do texto e sua distribuicão numa mesma cadeia. É preciso dizer, em temos de pratica começa a alcançá-la e a ultrapassá-la. Mas quando isso acontecer, será
incompatibilidade radical e de antagonismo: é sobre a destruicão do discurso o fim do materialismo dialético e hist6rico.

-
do valor que a linguagem reata relações com a possibilidade da ambivalência
ai está a revolução do poético com respeito ao discurso, e um não pode
deixar de ser a morte do outro.
Do mesmo modo, a prática linguistica imediata, cotidiana, a da fala e do
"sujeito falante", não se importa nem um pouco com a distingdo entre o signo
e o mundo (nem com a distinção entre significante e significado ou com a

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A EMI:MIN/VW Do NOME DE DEUS

arbitrariedade do signo etc.). Benveniste o disse e o reconhece, mas em termos


de lembranca, por ser precisamente esse o estágio que a ciência supera e deixa
bem para trás de si: só lhe interessa o sujeito linguistico,o sujeito da lingua, que
ao mesmo tempo o sujeito do saber: ele. Benveniste. Em algum lugar, contu-
do, é o outro que tem razão, aquele que fala aquém da distincão entre signo
e mundo, em plena "supersticdo" -é
verdade que, no essencial, ele sabe mais
disso, e com ele cada um de nós, bem como o próprio Benveniste, do que o
lingüista Benveniste. Porque a metodologia da separação entre significado e
0
Witz ou o Fantasma
significante não é melhor do que a metodologia da separacão almacorpo. É
o mesmo imaginário em ambos os casos. Num deles, a psicanálise2 veio dizer
do Econômico em Freud
o que ele era; no outro foi o poético que o disse. Mas no fundo nunca houve
necessidade da psicanálise nem do poético: ninguém jamais acreditou nisso,
exceto os próprios sdbios e os linginstas, da mesma forma como ninguém
jamais acreditou na determinacão em última instância pelo econômico, exce-
cão feita aos cientistas da economia e seus críticos marxistas.
Virtual, porém literalmente falando, nunca houue um sujeito lingiiístico, e
isso sequer poderia aplicar-se a nós que falamos quando apenas refletimos
pura e simplesmente o código da lingüística. Do mesmo modo como jamais
houve sujeito econômico, homo economicus: essa ficcão nunca foi inscrita Haverá uma afinidade entre o poético e o psicanalítico? Se é claro
senão num código e como nunca houve sujeito da consciéncia ou sujeito do que a forma poética (disseminação, reversibilidade, limitacão es-
inconsciente. Na prática mais simples, sempre houve algo que atravessa esses trita do corpus) é irreconciliável com a forma lingiiística (equiva-
modelos de simulação, que são, todos eles, modelos racionais; houve sempre rencia significante/significado, linearidade do significante, corpus indefinido),
uma radicalidade ausente desses códigos, de todas essas racionalizacões "ob- parece que ela recorta pelo contrário a forma psicanalítica (processo primário:
jetivas", que no fundo nunca deram lugar a não ser um único grande sujeito: deslocamento, condensacão etc.). No sonho, no lapso, no sintoma, no chiste,
o sujeito do saber, cuja forma é abalada a partir de hoje, a partir de agora, pela em toda parte em que trabalha o inconsciente, pode-se ler com Freud essa
fala indivisa3. No fundo, pouco importa que se saiba mais do que Descartes, distorcão da relacão significante/significado, da linearidade do significante, do
Saussure, Marx, Freud. caráter discreto do signo, essa distorcão do discurso sob o efeito do processo
primário, esse excesso, essa transgressão da linguagem em que se envolve o
fantasma e se marca o enlevo. Mas o que há do desejo e do inconsciente na
poética e até que ponto a economia libidinal dá conta deles?
2. Mas atenção: tudo isso vale para a própria psicandlise. Também ela vive do corte entre 0 poético e o psicanalítico não se confundem um com o outro. 0 modo
processos primários e processos secundarios e morreria com o fim dessa separação. E é verdade
simbaco não é o do trabalho do inconsciente. Interrogar o poético segundo
que a psicanálise é "científica" e"revolucionaria"quando explora todo o campo dos comportamen-

-
tos a partir dessa separação (do inconsciente). Mas talvez se perceba um dia que a prática real, Freud é, portanto, interrogar a psicanálise segundo o simbólico -
escapar
sempre a
A teoria
total, imediata, não obedece a esse postulado, a esse modelo de simulação analítica que a análise reversa, única que, por meio dessa reversão, permite
pratica simbólica está de imediato alem da distinção processos primarios/secundarios. Nesse dia, como exercício puro e simples de poder.
o inconsciente e o sujeito do inconsciente, a psicanalise e o sujeito do saber (psicanalítico) terão
A análise do chiste em Freud pode servir de fio condutor porque não hd
-
vivido o campo analítico terd desaparecido enquanto tal na separação que também ele institui
em proveito do campo simbólico
-
ha muitos indícios que permitem ver que issoki aconteceu. nele, por outro lado, diferenca teorizada entre o campo propriamente sintomá-
3. Essa fala nada tem que ver coin a acepção linguística do termo "fala" esta última é tico e o campo da obra, da "criacão artística" (o conceito de "sublimação",
(simbólica) nega j)or si só a distinção língua/fala -
tomada na oposição língua/fala [langue/pamle], na qual estd submetida à lingua. A fala indivisa

-
assim como a przitica social indivisa nega a
distinção teoria/prátíca. Se) a fala "lingüística" diz apenas o que diz mas uma tal fala jamais
como se sabe, padece de care-ncia de rigor e de idealismo hereditario). Isso ja
é um ponto importante: se o poema não 6 o lapso e sequer o chiste, falta algo
existiu, exceto no diálogo dos mortos. A fala concreta,atual,diz o que diz e tudo o mats ao mesmo na teoria do inconsciente para dar conta dele.
tempo. Ela não observa a lei do caráter discreto do signo, de separação de instâncias, falando a Ao contrário de Saussure, que não se incomoda corn o prazer poético,
todos os níveis a um só tempo, ou melhor ela desfaz o nível da língua e, portanto, a própria
lingüística. Esta, ern contrapartida, procura impor uma fala que não seja mais que a execução da nem mesmo com uma causa ou finalidade qualquer daquilo que descreve, a
língua, isto é, o discurso do poder. análise de Freud é funcional, é uma teoria do enteuo. O trabalho sobre o

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A EXTERMINAÇÃO 1)0 NOME DE DEUS 0 WITZ OU O FANTASMA DO ECONOMIC:0 EM FREUD

significante sempre é relacionado nela com a realização do desejo. E essa inconsciente (e de seu modo de representação), que se põe todo o problema
teoria do enlevo é econômica. 0 Witz, o chiste, vai mais aquilo que quer dizer, da economia libidinal e de sua crítica, na perspectiva de um enleuo que nada
e diz coisas,"libera" significacões que só existiriam sem ele ao preço de um teria que uer corn o econômico.
considerável esforco intelectual consciente -é essa elipse da distaincia psíqui- Freud, em Psicopatologia da Vida Cotidiana, diz sobre o lapso:"E. o desejo
do leitor que deforma o texto no qual ele introduz aquilo que lhe interessa e
ca que é fonte de enlevo. Ou ainda, a suspensão da censura, o desvio que
opera "libera" energias
as vinculadas ao superego e ao processo de repressão. o preocupa... Basta então que exista entre a palavra do texto e a palavra posta
"Liberacão" de afetos, desinvestimento de representações inconscientes ou pré- em seu lugar uma semelhança que o leitor possa transformar no sentido que
-conscientes, desinvestimento da instancia psíquica repressora,seja como for, o ele deseja". Trata-se, por certo, de um conteúdo latente, reprimido, que espera
enlevo emerge de um resto, de um incremento, de um quantum de energia que surjam e "aproveita" [profit] as fantasias, os interstícios, os pontos fracos do
diferencial, tornado disponível pela operacão do Witz. discurso lógico a fim de irromper. É no nível do discurso aquilo que acontece
Nesse sentido, a concisão, ou o novo emprego, sob diversas modalidades, do para o corpo no conceito de suporte: o desejo "aproveita" a satisfação da ne-
-
mesmo material,são características fundamentais do chiste sempre a economia
de esforco: com um se) significante, significa-se em múltiplos níveis, do mínimo de
cessidade fisiológica para investir libidinalmente essa ou aquela zona do cor-
po: ele desvia a função pura e simples (a lógica orgânica) rumo à realização
significante extrai-se o máximo de significações (por vezes contraditórias entre si). de desejo. Sim, mas precisamente: a articulação da necessidade e do desejo
Inútil insistir em inúmeras analogias com o modo poético:o reemprego do mesmo nunca foi esclarecida. Entre os dois termos assim postulados sem outra forma
material evoca o anagrama e a formacão de pares de Saussure, a limitacão neces- de processo, um da realização funcional determinada e o outro da realização
sária do corpus, e esse "máximo na energia dos signos" de que fala Nietzsche. Do pulsional indeterminada (quanto ao seu objeto), o conceito de suporte não
poeta, Freud tam bém, diz que "a orquestração polifônica permite-lhe emitir mensa- mais que conceito-passarela, que nada articula. A economia libidinal padece
gens no tríplice piano da consciéncia lúcida, do subconsciente e do inconsciente".
Em toda parte há uma parcela de energia "economizada" com relacdo ao sistema
aqui da mesma "colagem" que a economia política propriamente dita com o
conceito de necessidade: entre o sujeito e o objeto, há "necessidade"
a necessidade e o desejo, ha "suporte" (o mesmo ocorre na economia
- entre
lingüfs-
comum de distribuicão dos investimentos. No polígono de forcas que é o aparelho
psíquico, o enlevo é como a resultante de uma espécie de atalho, ou melhor, dessa tica: entre o significante e o significado,ou entre o signo e o mundo, há,ou não
transversalidade do Witz que, traçando uma diagonal através das diversas camadas há "motivação"). Todas essas colagens tern o charme discreto de uma ciência
do aparelho psíquico,alcanca com menos dispéndio seu objetivo,atingindo mesmo insolúvel: se a articulação é impossfvel, é que os termos estão malcolocados,
sem esforco objetivos imprevistos, deixando portanto uma espécie de mais-valia que sua própria posição é insustentável.Algures,sem dúvida, a autonomização
energética, o enlevo "de primeira", o "benefício de prazer". do desejo diante da necessidade, a do significante diante do significado, do
0 cálculo energetico tem como que um perfume de capital -o de uma sujeito diante do objeto, não passa de um efeito de ciência. Mas as economias
economia de poupança (Freud emprega com frequéricia esse termo) em que daf decorrentes tem uma vida difícil, elas não vão renunciar as oposições
regradas das quais vivem: oposição desejo/necessidade, inconsciente/consciente,
timentos ou de um excedente, porém jamais de um excesso -
o enlevo só se faria presente por subtracão, por falta, de um resíduo de inves-
ou ainda, de
coisa alguma: de um processo inverso de gasto, de abolição de energias e
processo primário/processo secundário... 0 próprio princfpio de prazer sera
outra coisa além do princfpio de realidade da psicanálise?
finalidades. Não falamos de início do "trabalho", nem mesmo do "significante", Contudo, é certo que a psicanálise fez estremecer a relação significante/
porque esse nível nunca tem primazia em Freud. Sua economia libidinal está significado, e num sentido próximo do poético. 0 significante, em vez de
fundada na existéncia de conteúdos inconscientes (afetos e representações) de manifestar o significado em sua presença, está numa relação inversa com ele:
uma repressão e de uma pro-dução [sic] do reprimido, de um cálculo de inves- ele o significa em sua ausencia, em sua repressão, de acordo com uma
timento que regula essa produção com o fim de instaurar o equilíbrio (resolu- negatividade que jamais aparece na economia lingüística. 0 significante man-
cão de tensões), de vinculacão/desvinculação de energias. E em termos de tém uma relação necessária (não-arbitrária) com o significado, mas como a
forcas e de quantum de energia que se faz e se fala o enlevo freudiano. No Witz presença talvez na ausencia de alguma coisa. Significando o objeto perdido e
ou no sonho, o jogo de significantes nunca constitui em si mesmo a articulação vindo em lugar dessa perda. Leclaire, em Psicanalisar, p. 65: "0 conceito de
do enlevo; o que ele faz é abrir caminho a conteúdos fantasmáticos ou repri- representação se situaria em psicanálise não, de maneira alguma, entre uma
realidade objetiva, de um lado, e sua figuração significativa, do outro, porém,
necessário algo como o desejo
-
estrita
-
midos. Trata-se de um "meio" que jamais é ele mesmo a "mensagem", visto ser
entenda-se: na teoria tópica e econômica
para falar com sua voz, do "Isso" que fala. 0 jogo do significante está
antes, entre uma realidade alucinada, de um lado, imagem mnésica de um obje-
to satisfatório perdido, e um objeto substituto, do outro, seja uma fórmula-
sempre nas entrelinhas do desejo. É af, ao redor desse "modo de produção" do -objeto, como a que constitui o fantasma, ou um artefato instrumental, como

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A EXTERMINAÇA0 DO NOME DE DEUS 0 WITZ OU O FANTASMA DO ECONÔMICO EM FREUD

o pode ser um fetiche".A equivaréncia lingüística se perde porque o significante integrante da instancia repressora. Porém, em sua ordem, ela tem razão: nunca
está no lugar de outra coisa que já não existe ou que nunca existiu. Portanto, participaria da lingua algo que não obedecesse ao princípio da não-contradi-
ele jamais volta a ser o que e: o objeto-fetiche,em sua identidade vacilante,não da identidade e da equivaléncia.
faz senão metaforizar o que foi para sempre negado: a ausência de falo na Não se trata de salvar a lingüística, mas de ver que aqui Benveniste é clari-
mãe, a diferenea entre os sexos. vidente acerca da escolha a fazer (ele só é por outro lado tão clarividente porque
A demarcaeão entre a significaeão psicanalítica e a lingüística é bem for-
mulada por O. Mannoni (Clefs pour l'imaginaire,"A Elipse e a Barra", p. 46):"Ao
trata-se de defender o seu campo da incursão dos outros - ele tolera que exista
alhures uma "superfície simbólica", mas essa superfície "pertence ao discurso, não
introduzir o significante, fazemos oscilar o sentido. E não porque o significante lingua"-, fique cada um em sua posieão e a lingua será bem protegida!): não
traga consigo uma coleeão de significados que possam ser descobertos por podemos nos contentar com 'intetpretar' a elipse e a barra saussuriana, a fim de
uma semantica do tipo tradicional. Mas porque interpretamos a elipse de reverter o signo ao processo primário, para fazé-lo entrar em análise. É preciso
Saussure como se ela mantiuesse uazio o lugar do significado, lugar que só pode abalar toda a arquitetura do signo, é preciso abalar sua equaeão, e não basta
ser preenchido nos diferentes discursos de que um significante único é então multiplicar as incógnitas. Ou então é necessário supor que a psicanálise ainda se
a parte comum... Se também despojarmos o significante do peso do significa- conforma com alguma parcela de certo modo de significaeão e de representaeão,
do, não o fazemos para entregá-lo as leis que a lingüística descobre em todo com certo modo do valor e da expressão: trata-se com efeito daquilo que "signi-
discurso manifesto, mas para que se possa dizer que obedece a lei do processo fica", esse significado "vazio" de Mannoni -o lugar do significado permanece
primário, por meio do qual ele escapa, ainda que por um breve momento, marcado, é o dos conteúdos móveis do inconsciente.
restrieão do discurso aparente, que sempre tende à univocidade, ainda quando Se, portanto, estamos, com o significante psicanalítico, fora da equivalencia
explora um equívoco". Passagem notável, mas o que é esse significado "ern lógica, nem por isso estamos fora, nem além, do valor. Porque aquilo que ele
branco", que vai ser preenchido por sucessivos discursos, o que é esse representa em seu "breve momento" sempre é por ele designado perfeitamente
significante "liberado" para ser posto na jurisdieão de outra ordem? Sera possí- como valor in absentia, sob o signo da repressão. Esse valor não transita mais
vel aplicar um tal "jogo" as categorias lingüísticas do significante e do significa- logicamente pelo significante; ele o assombra fantasmaticamente.A barra que os
do sem fazer ir pelos ares a barra que as separa? separa mudou de sentido, mas ainda assim permanece: há sempre de um lado o
Essa barra é o elemento estratégico: é ela que funda o signo em seu prin- significado em potencia (o conteúdo de valor irresolvido, reprimido) e, do outro,
cípio de não-contradieão e seus constituintes como valores. Essa estrutura um significante, ele mesmo instal-Ida erigida enquanto tal pela repressão.
coerente, não podendo injetar-lhe coisa alguma (ambivalència, contradieão, Para ser explícito, já não há equivaléncia, mas também não há ambivalen-
processo primário). Benveniste aperfeieoa claramente as coisas na crítica que cia, isto é, dissolueão do valor. Aí reside a diferenea com relação ao poético,
faz ao Gegensinn der Urworte (Sobre os sentidos opostos nas palavras primiti- no qual essa perda do valor é radical. Nada de valor, mesmo ausente ou repri-
vas)."É a priori improvável que as linguas, por mais arcaicas que sejam, esca- mido, para alimentar um significante residual na forma de sintoma, de fantas-
pem ao princípio de contradieão. Supondo-se que exista uma lingua na qual ma ou de fetiche. 0 objeto-fetiche não é poético, precisamente por ser opaco,
`grande' e 'pequeno' sao designados de modo idéntico, tratar-se-ia de uma lin- bem mais saturado de valor do que qualquer outro, porque nele o significante
gua em que a distineão entre 'grande' e 'pequeno' lido tem literalmente senti- não se desfaz, sendo pelo contrário fixado, cristalizado por um valor eterna-
do... Porque é contraditório imputar ao mesmo tempo a uma lingua o conhe- mente escondido, para sempre alucinado como realidade perdida. Não há
cimento de duas noeões contrárias e a expressão dessas noeões de maneira meio de desbloquear esse sistema, para sempre estagnado na obsessão do
idêntica" (Problemas de Lingiifstica Geral, t. I, p. 82). E isso é justo: a ambiva- sentido, na realizaeão de desejo perverso que vem preencher de sentido a
lência nunca é da ordem da significaeão lingüística."Sendo próprio da lingua- forma vazia do objeto. No poético (o simbólico), o significante se desfaz de
gem exprimir apenas o que é possível exprimir", é absurdo imaginar um sen- modo absoluto, ao passo que, no psicanalítico, ele apenas se agita sob o efeito
tido não afetado por alguma distilled() ou, inversamente, um significante que
quisesse dizer tudo:"Imaginar um estágio da linguagem.., no qual certo objeto
seria denominado como sendo ele mesmo e simultaneamente um outro qual-
primidos -
dos processos primários, distorce-se de acordo com as dobras dos valores re-
mas distorcido, transversal ou em estofo (point de capiton), resta
uma superfície indexada à realidade revolta do inconsciente; no poético, ele
quer, e onde a relaeão de contradieão seja permanente e tudo seria si mesmo difrata e irradia no processo anagramático, já não cai sob o golpe da lei que
e diferente de si mesmo, portanto nem si mesmo nem outro, é imaginar uma o erige, nem sob o golpe do reprimido que o vincula, já nada tem a projetar,
pura quimera:' Benveniste sabe do que fala, visto que toda a racionalizaeão ainda menos a ambivaléncia de um significado reprimido. Ele não passa de
lingüística existe precisamente para impedir que isso aconteea.A ambivaléncia
do reprimido não se arrisca a aflorar na ciencia lingüística, porque esta é parte
disseminaeão, absolvieão do valor - e isso é vivido sem a sombra de uma
angústia, no enlevo total. A iluminaeão da obra ou do ato simbólico encontra-

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A EXTERMINAÇAO DO NOME DE DEUS
0 WITZ OU O FANTASMA DO ECONÓMICO EM FREUD

se nesse ponto de não-reprimido, não-resíduo, não-retorno - lá onde são


ou no
resto (só o resto permite a produção e a reprodução1) seja esse resto o não
partilhado simbolicamente que entra na troca de mercado e no circuito de equi-
suspensas a repressão e a
fetiche, a repetição incessante
entraves a morte e a
repetição

dissolucão
do
incessante
interdito
do sentido.
e
do
do -
sentido
valor
no

fantasma
onde atuam sem valencia da mercadoria ou o que não se esgota na circulação anagramática do
poema e entra então no circuito da significação, ou ainda, pura e simplesmente,
"Captar no que foi escrito um sintoma do que foi assassinado" (Nietzsche, o fantasma, isto é, aquilo que não conseguiu resolver-se na troca ambivalente e
Para Além do Bem e do Mal). Proposição psicanalítica por excelencia: tudo o na morte, que, por esse motivo, resolve-se nesse precipitado do valor inconsciente
que "quer dizer" alguma coisa (e, singularmente, o discurso científico em sua individual, de stock reprimido de cenas ou de representacões que se produz e se
"transparencia") tem por funcão ocultar.E aquilo que ele oculta vem assombrá-
-lo, numa pequena porém irreversível subversão de seu discurso.Eis o lugar do
reproduz segundo a incessante compulsão de repeticão.
Valor de mercado,valor significado, valor reprimido/inconsciente -
tudo isso
se faz daquilo que resta, do precipitado residual da operacão simbólica; é esse resto
psicanalítico, esse não-lugar relativo de todo discurso lógico.
Mas o poético nada oculta, e nada o vem assombrar. Porque aquilo
que sempre é reprimido e assassinado é a morte. Aqui, a morte é atualiza-
esse -é
-
que em toda parte se acumula e alimenta as diversas economias que nos regem a
vida.lr além da economia e,se mudar a vida tem um sentido, não pode ser senão
exterminar o resto em todos os domínios,é aquilo de que o poético é o
da no sacrifício do sentido. 0 nada, a morte, a ausencia, é abertamente
dito e resolvido: enfim a morte se manifesta, finalmente ela é simbolizada, modelo, graças à sua operacão sem equivalência, sem acumulação, sem resíduo.
ao passo que não é mais do que sintomática em todas as outras formações Voltando ao Witz, não seria possível supor que o enlevo seja, não o efeito
discursivas. Isso significa, é claro, a derrocada de toda a lingüística, que de "economia", de ganho de potencial resultante da "elipse da distãncia psíqui-
vive do traço de equivalencia entre o que é dito e o que isso quer dizer, ca", nem a irrupção de sentido sob o sentido na ordem do discurso ou a
mas igualmente o fim da psicanálise, que vive, por sua vez, do traço da re- realidade mais profunda que imp-6e a suposta dualidade das instãncias psíqui-
pressão entre o que é dito e o que é assassinado, reprimido, negado, fan- cas: a finalidade da "outra cena" que se produziria por meio da torcão sobre
tasmatizado, indefinidamente repetido no modo da denegação: a morte. aquela, a finalidade do reprimido que ressurgiria como valor psíquico da pró-
Quando, numa formacão social ou numa formação lingüística, a morte pria separacão das instãncias (hipótese tópica) e o corolário da vinculação/
fala, se fala e se troca num dispositivo simbólico, a psicanálise não mais desvinculação de energias de que resultaria num momento dado essa mais-
tem coisa alguma a dizer. Quando Rimbaud diz, na Estadia no Inferno,"E valia libidinal que tem por nome enlevo (hipótese econômica)?
E não se pode supor que o enlevo advem, pelo contrário, do fim da sepa-
verdade literalmente, e em todos os sentidos", isso quer dizer também que
não há sentido oculto, latente, nada de reprimido, nada por trás, nada para ração desses campos separados, vem de um ponto aquém da discriminação
das instãncias e, portanto, do jogo diferencial dos investimentos e, desse
a psicanálise. É a esse preço que todos os sentidos são possíveis.
"A linguistica nasce do trace, que ela mesma instaura entre significante e
modo, de um ponto aquém da psicanálise e de sua ordem lógica.
Efeito de conflagração, de curto-circuito (Kurzschluss), de encaixe forçado
significado,e parece que corre o risco de morrer de sua reunião"(0.Mannoni).
Também a psicanálise nasce do traço que ela mesma instaurou, sob a lei da de campos separados (fonemas, palavras, papéis, instituicões) que só tinham
sentido, até então, enquanto separados, e que perdem seu sentido nessa apro-
castracão e da repressão, entre aquilo que é dito e aquilo que é assassinado
ximacão brutal a que se veem obrigados? Não se encontra aí o Witz, o efeito
(ou"entre uma realidade alucinada e urn objeto substituto",Leclaire,Psicanalisar,
de enlevo, no qual o sujeito enquanto separado também perde, não só na
p. 65), e também corre o risco de morrer de sua união.
distancia reflexiva da consciência como de acordo corn a instãncia do incons-
Não haver resicluo não significa apenas que já não há significante nem
ciente? A abolição do superego nesse instante, do esforco que ele faz a fim de
significado, significado por trás do significante ou dos dois lados de um traço
manter a disciplina do princípio de realidade e de racionalidade do sentido,
estrutural que os distribui; significa também que já não há, como na interpre-
não significa apenas o apagamento da instancia repressora em proveito da
tação psicanalítica, instãncia reprimida sob uma instãncia repressora, latente
instãncia reprimida, mas o apagamento simultãneo das duas. É nesse aspecto
sob manifesto, processos primários brincando de esconder com processos se-
que há algo de poético no Witz e no cômico, algo que se acha além da ressur-
cundários. Não há significado,seja ele qual for, produzido pelo poema, nem há
reição compulsiva do fantasma e da realização de desejo. -
"pensamento do sonho" por trás do texto poético ou fórmula significante
Freud cita Kant: "Das Komische ist eine in nichts zergangene Erwartung"
(Leclaire), libido ou algum potencial energético que de alguma maneira se
("0 célmico é uma expectativa que se resolve na negação, que se dissolve em
insinuasse nos processos primários e ainda testemunhasse de algum modo um
economia produtora do inconsciente. Não há mais economia libidinal do que
há economia polftica - nem, é claro, economia lingüística, isto é, economia
politica da linguagem. Porque o econômico, ou seja lá o que for, funda-se no
1. Cf. Charles Malamoud:"Sur la notion de reste clans le brahmanisme, Wiener Zeitschrift far die

Kunde Sadasiens, vol. XVI, 1972.

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A EXTERMINAÇA0 DO NOME DE DEUS 0 Wrrz OU O FANTASMA DO ECON6MICO EM FREUD

nada:'). Ou seja: onde havia alguma coisa, não ha mais nada


o inconsciente. Onde havia uma finalidade qualquer (mesmo
- nem mesmo
inconsciente) ou
regra de revolucão de um significante sobre si mesmo que vem a centelha de
prazer, no Witz ou no poema. Pouco importa a "riqueza" do sentido ou os
um valor (mesmo reprimido), já não há coisa alguma. 0 enleuo é a hemorragia sentidos múltiplos. Pelo contrário: é o significado que faz muitas vezes o prazer
do valor, a desagregacão do código, do logos repressivo. No cômico, é o impe- do Witz ser relativamente pobre,são os significados que vêm acabar com o jogo
rativo moral dos códigos institucionais (situações, papéis, personagens sociais) ao salvaguardar o sentido. Enquanto nos lapsos de tempo infinitesimais do
que é suspenso; no Witz, é o imperativo moral do próprio princípio de identi- retorno do significante sobre si mesmo, no tempo dessa anulação, há uma
infinidade de sentidos, uma virtualidade de substituição indefinida, um gasto
o "inconsciente". A definição da faca (da não-faca) de Lichtenberg
- -
dade das palavras, e do sujeito, que se anula. Para nada. Não para "exprimir"
manifes- insano e ultra-rápido, um curto-circuito instantãneo de todas as mensagens,
mas eternamente não significadas. 0 sentido não é apreendido: ele permanece
tacão de espírito radicalmente poético dá uma idéia dessa explosão do
sentido sem reflexdo. Uma faca existe enquanto existem separadamente, e são em estado de circulação, de centrifugacão, de "revolucão" - tal como os bens
na troca simbólica: incessantemente dados e devolvidos, eles jamais caem sob
nomeáveis separadamente, uma lamina e um cabo. Se suspendermos a sepa-
a instãncia do valor.
racão entre os dois (e só se pode reunir lãmina e cabo em seu desaparecimen-
to, o que constitui o chiste de Lichtenberg), não há propriamente nada mais
exceto o enlevo. A "expectativa" da faca diria Kant, a expectativa prática, mas
,
-
também a expectativa fantasmática (sabe-se o que a faca pode "querer dizer"), Freud fala em toda parte da "técnica" do chiste, que ele distingue do pro-
resolvem-se em nada. E não se trata de um processo primário (deslocamento, cesso fundamental da seguinte maneira:"A técnica do Witz consiste em empre-
condensacdo), já não há irrupcão de qualquer coisa por trás da lãmina ou do gar uma só e mesma palavra de duas maneiras, uma primeira vez em seu
cabo, não há nada por trás desse nada. Fim da separacão, fim da castracão, fim sentido próprio, uma segunda vez decomposta em sflabas à feição de uma
da repressão, fim do inconsciente. Resolucão total, enlevo total. charada", mas isso é apenas "técnica". 0 mesmo acontece com o novo empre-
0 exemplo de Lichtenberg não é um caso particular.Se examinarmos com go do mesmo material; todas essas técnicas se resumem a uma só categoria, a
condensacão: "A condensação continua sendo a categoria à qual se acham
atencão, veremos que todos os exemplos de absurdo lógico (que é o limite do
Witz, e o lugar no qual o enlevo é mais agudo) retomados por Freud
caldeirdo, a torta, o salmão à maionese, a pele de gato furada em lugar dos
- o subordinadas todas as outras. Uma tendência à compressão, ou melhor,
parcimônia, domina todas essas técnicas.Tudo parece ser, como o diz Hamlet,
olhos, a chance que a crianca tem de encontrar ao nascer uma mãe que se questão de economiaZ 0 que escapa aqui a Freud é o fato de as "técnicas" do
ocupe dela -, todos esses exemplos poderiam ser analisados da mesma ma- Witz serem por si mesmas fonte de prazer. No entanto, ele o afirma (Le mot
neira, como duplicação de uma identidade ou de uma racionalidade que se d'esprit et ses rapports avec l'inconscient [0 Chiste e sua Relação com o Incons-
volta para si mesma a fim de desagregar-se e anular-se, como absorcão de um ciente], col. Nees, p. 180), mas para acrescentar em seguida (p. 196): "Come-
significante em si mesmo sem um vestígio de sentido. camos a compreender que aquilo que descrevemos como técnica do Witz são
"Eifersucht ist eine Leidenschaft, die mit Eifer sucht, was Leiden schafft" antes as fontes nas quais o Witz vai buscar o prazer... A técnica particular,
(intraduzível enquanto Witz:"0 ciúme é uma paixão que busca obstinadamen- própria ao Witz, consiste ern proteger essas fontes, geradoras de prazer, contra
te aquilo que faz sofrer"). Reemprego do mesmo material e, logo, prazer por o instrumento da crítica, que inibiria esse prazer... Desde a origem, ela tem por
deducão de energia? Mas o proprio Freud admite que o novo emprego do missão suspender as inibicões intrínsecas e reabrir as fontes de prazer que
mesmo material é também o mais difícil, continuando a ser mais simples dizer essas inibicões haviam interdito". Assim, em toda parte, aquilo que poderia
duas coisas diferentes com a ajuda de significantes diferentes. 0 que muda surgir da própria operacão do Witz é remetido a uma "fonte" original de que o
o fato de essas duas coisas serem ditas simultaneamente. Mas o essencial, então, Witz não é mais, por conseguinte, do que um meio técnico.
essa abolicao do tempo de desdobramento do significante, de sua sucessivi- 0 esquema é o mesmo para o prazer do reconhecimento e da recordacão
dade -o prazer vem não da adicão de significados com o mesmo significante (Ibid., p. 183):"Reencontrar o conhecido um prazer, e ser-nos-ia fácil reencon-
.6

(interpretacdo economista), mas da aniquilacão do tempo lógico da enunciação, trar nesse prazer o da parcimônia, de relacioná-lo com a economia de esforço
o que equivale à anulacdo do próprio significante (interpretacão antiecono- psíquico. 0 reconhecimento é em si um prazer em razão da reducão do gasto
micista). Por outro lado, o Witz "Eifersucht etc:' constitui por certo uma espécie psíquico... A rima, a aliteração, o refrão e outras formas de repeticão de sons
de par saussuriano: ele realiza no nível de uma frase e de sua "antifrase" [sic] verbais análogos, na poesia, utilizam a mesma fonte de prazer, o reencontro do
aquilo que Saussure disse de cada vogal e de sua contravogal no verso.A regra conhecido". Mais uma vez, essas técnicas,"tão estreitamente aparentadas com
opera aqui no nível do sintagma inteiro, ao passo que atua em Saussure para a do emprego múltiplo do mesmo material no Witz", não tém sentido por si sós:
elementos não significativos (fonemas ou dífonos), mas é sempre da mesma elas se acham subordinadas ao ressurgimento de um conteúdo mnésico (cons-

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A ExTERMINAQ/o DO NOME DE DEUS 0 WITZ OU 0 FANTASMA DO ECON6MICO EM FREUD

ciente ou inconsciente: pode ser um fantasma originário, de infância etc.) de Toda interpretação do Witz, tal como do poético, em termos de "liberação"
que não passam de meio de expressão2. de fantasmas ou de energia é falsa. Quando o significado irrompe e circula em
todos os sentidos (simultaneidade de significados vindos das diferentes cama-
2.E nessa redução, nessa primazia da economia do inconsciente, que reside a impossibilidade, das do psíquico, transversalidade do significante sob o golpe dos processos
para Freud, de teorizar um dia verdadeiramente sobre a diferença entre o fantasma e a obra de primários), não rimos nem nos alegramos: trata-se da angústia, da alucinação
arte. Ele poderia dizer que tudo aquilo que analisava tinha sido intuído pelos poetas antes dele ou
e da insanidade. A ambigilidade e a polissemia são angustiantes, porque a
ainda (na Gradiva) que não há prevalencia da psiquiatria sobre o poeta e que este pode muito
bem,"sem nada tirar da beleza de sua obra" (!), exprimir corn toda profundidade um problema obsessão do sentido (a lei moral da significação) aí permanece de modo inte-
inconsciente. 0 ato poético continua adicional, sublime mas adicional. J.-F Lyotard tenta secundar gral, ao passo que o sentido claro e unívoco não lhe respondem mais. 0 enlevo
Freud no tocante a isso, dando toda a importância à distinção entre fantasma e obra, porém dá-se ao contrário pelo fato de todo imperativo, toda referência de sentido
procurando articulá-las rigorosarnente. Ele denuncia de início todas as interpelações ern termos de
(manifesto ou latente) ter sido expulsa, o que só é possível na reversibilidade
"liberação" do fantasma. Liberar o fantasma é absurdo, porque este 6 interdição do desejo e
porque é da ordem da repetição (6 bem o que produz hoje com a "liberação" do inconsciente: exata de todo sentido - não na proliferação, mas na reversão minuciosa de
-
liberam-no enquanto reprimido e interdito, isto 6, sob o signo do valor, de um sobrevalor inverso
mas sera possível que isso seja a "Revolução"?). Lyotard diz:"0 artista luta por desembaraçar-
se no fantasma o que é propriamente processo primário, e que não é repetição" (DErive à partir
todo sentido. 0 mesmo se aplica à energia: nem sua "liberação" explosiva nem
sua desvinculação, nem apenas sua deriva nem sua "intensidade" são enlevo -
de Marx et Freud, p. 236)."Para Freud, a arte deve ser situada com referencia ao fantasma.., só o somente a reversibilidade é fonte de enlevo.3
artista não esconde seus fantasmas, mas lhes clá forma em objetos efetivamente reais, e, em acres- Quando rimos ou nos alegramos, é que, de uma ou de outra maneira, uma
cimo [!], a apresentação que ele faz daqueles é uma fonte de prazer estetico" (p.56). Essa teoria
tem em Lyotard polos "revertidos": o fantasma do artista não se produz na realidade como jogo,
torção ou retorção do significante ou da energia adveio para criar o vazio. É o
como reconciliação, como realização de desejo; ele se produz na realidade como contra-realidade, que exemplifica a história do homem que perde a chave numa ruela escura e
só intervindo na falta da realidade, falta que corrige.'A função da arte não é oferecer um simulacro que a procura sob o poste por ser esta a sua única oportunidade de encontrá-
real de realização do desejo, mas mostrar por meio do jogo de suas figuras a que desconstrução
-la. Podemos dar a essa chave perdida todos os sentidos ocultos (mãe, morte,
preciso dedicar-se, na ordem da percepção e da linguagem, para que uma figura da ordem
inconsciente se deixe adivinhar por sua própria evitação (apresentação do processo primário):' falo, castração etc.), por outro lado indecidíveis, o que não tem importância:
Mas de que maneira o fantasma,sendo interdição do desejo, pode desempenhar de súbito esse o vazio de uma razão lógica que se duplica exatamente para se destruir,
papel subversivo? Aplica-se a ele o mesmo que aos processos primários:"Diferença com relação ao
sonho, ao sintoma: na obra, as mesmas operações de condensação, deslocamento e figuração que,
sendo no vazio assim criado que explodem o riso e o enlevo (e não porque
no sonho e no sintoma, tem por fim travesta O desejo por ser ele intolerável, são, na expressão,
empregados para desmembrar a"boa forma", o processo secunddrio,a fim de exibir o informe, que
desordem da ordem inconsciente" (p. 58) Como compreender que os processos primários pos-
Freud o diz muito bem: "Entfesselung des Unsinns" -
nesse vazio "enleva-se e erige-se o reprimido do verbo, seu subsolo"[Lyotard]).
desencadeamento do
não-sentido. Mas o não-sentido não 6 o inferno oculto do sentido nem a emulsão
reprimido-
sam ser invertidos dessa maneira? Não estão eles também ligados à própria operação do desejo
ou serão eles, portanto, o modo de existencia de urn inconsciente nu e cru, um
inconsciente "infra-estrutural" intransponível? Nesse caso, Lyotard condenaria a si mesmo, ele que
de todos os sentidos reprimidos e contraditórios. É a reversibilidade minuciosa
de todo termo - subversão por reversão.
diz justamente:"nunca temos acesso aos processos primários.Tomar o partido do processo prima-
por meio dessa lógica interna do Witz que é preciso interpretar uma de
ainda um efeito dos processos secundários".
Ora, é bem isso que faz o artista:"Esse trabalho [do artista] pode ser equiparado ao do sonho suas características "externas": ele se partilha, não se consome sozinho, ele só
e, de modo geral, As operações do processo primário, mas ele os repete ao revertê-los, porque os tem sentido na troca. 0 dito espirituoso e a história chistosa são como bens
aplica à própria obra desse processo, isto 6, As figuras vindas do fantasma" (p. 65).
simbólicos, o champanhe, os presentes, os bens raros, as mulheres nas socie-
E, de maneira ainda mais radical:"0 artista é qualquer um para quem o desejo de ver a morte,
pagando o preço de morrer, é maior que o desejo de produzir"..."a doença não é a irrupção do dades primitivas. 0 Witz evoca o riso ou a reciprocidade de outra história
inconsciente, é essa irrupção e a luta furiosa contra ela. 0 genio alcança a mesma profundidade engraçada, ou mesmo um verdadeiro potlatch de histórias sucessivas. Conhece-
da doença, mas ele não se defende dela e, em vez disso, a deseja" (pp. 60-61), Mas de onde vem,
-se a rede simbólica de cumplicidade que dá coesão a certas histórias ou chis-
a não ser de uma reversão da "vontade", de uma "graça atual" inavaliável, essa aquiescencia
"crueldade" do inconsciente? E de onde vem o enlevo emanado desse ato, que deve por certo tes, que vão de um ao outro como antigamente a poesia.Tudo aqui responde
participar de algum modo da forma e não do conteúdo? Essa forma não está longe, em Lyotard, obrigação simbólica. Guardar para si uma história chistosa é absurdo, rid() rir
do vazio místico. 0 artista habitaria "um espaço desconstruído", um vazio, uma estrutura de aco-
lhimento da irrupção fantasmática -"o sentido vem em violação ao discurso,é força ou gesto no

-
campo das significações, ele faz silêncio. E, nessa abertura, o reprimido do verbo, seu subsolo, se
levanta e se erige". Esse vazio, esse silencio decantação antes da irrupção -é uma perigosa
3. 0 prazer, a satisfação, a realização do desejo são de ordem económica; o enlevo é de
ordem simbólica. E preciso fazer uma distinção radical entre os dois. Não há dúvida de que
analogia com o processo místico. Mos, sobretudo, de onde procedem eles? Qual é o processo da
"desconstrução"? Perceberemos então que ele nada tern que ver com o processo primário -
qual se atribui aqui um duplo papel incompreensivel: ele é os dois lados da reversào. Não seria
ao
a poupança, o reconhecimento, a elipse psíquica e a repetição compulsiva são fonte de
certo prazer (seja como for, entrópico, involutivo, a um só tempo "heimlich" e "unheimlich",
familiar e inquietante, nunca livre de angústia, porque ligado à repetição do fantasma. 0
melhor deixá-lo francamente do lado da repressão e da repetição, e retirar o ato poético de toda econômico é sempre cumulativo e repetitivo. 0 simbólico é reversível, resolução do acilmulo
contradependencia psicanalítica? e da repetição resolução do fantasma).

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A ExTERmiNA0O DO NOME DE DEUS 0 WM/. OU o FANTASMA DO ECTON6MIC70 EM FREUD

de uma delas é ofensivo, mas rir primeiro de sua pr6pria história tambern abala "objetiva", um ser substancial, alicerce molar, ou molecular, de pedra ou de lin-
sua maneira as sutis leis da troca4 guagem. Mas não vemos ser o ultimo golpe, e o mais sutil, do idealismo o encer-
Se o Witz se inscreve necessariamente numa troca simbólica, é porque ele ramento daquilo que o negava nessa substancialidade irredutível, legitimando-a
está ligado a um modo simbólico (e não econ6mico) do enlevo.Se ele dependes- assim como referencial adverso, como alibi, e conjurando-a assim num "efeito" de
se da "economia de gasto psíquico", não veríamos porque cada pessoa não riria realidade que vem a constituir o melhor suporte do pensamento idealista. A "coi-
sozinha, ou em primeiro lugar, de toda essa energia psíquica "liberada". É neces- sa", a "substância", a "infra-estrutura", a "matéria", nunca teve outro sentido. E a
sário, pois, que haja outra coisa além dos mecanismos econ6micos inconscientes, teoria "materialista" da linguagem cai na mesma armadilha de contradependéncia
algo que força a reciprocidade. Essa outra coisa é precisamente a anulação sim- idealista. Não é verdade que as palavras, uma vez saídas da representação, uma
Mica do valor. É porque os termos se trocam aí simbolicamente, isto 6, revertem- vez que perdem a razão do signo, tornam-se "coisas", encarnando então um esta-
-se e anulam-se em sua própria operação, que o po6tico e o Witz instituem uma tuto mais fundamental de objetividade, um "a mais" de realidade, um estágio
relação social do mesmo tipo. S6 os objetos privados de sua identidade, como as reencontrado da última instância. Não há pior contrasenso.
palavras, estão fadados à reciprocidade social no riso e no enlevo. Tratar as palavras "como coisas" para exprimir A coisa: o Inconsciente,
para materializar uma energia latente. É sempre a arapuca da expressão, embo-
TEORIA ANTIMATERIALISTA DA LINGUAGEM
Vemos perfilarem-se, na interpretação analítica do sonho, do Witz, das
talvez indizível -
ra o que 6 aqui positivizado como referencial seja o reprimido, o não-dito,
mas que, em algum lugar, retoma forças de instância, senão
de substância. 0 pensamento ocidental não suporta, e no fundo nunca supor-
neuroses e, por extensão, da poesia, urna teoria "materialista" da linguagem. 0 tou, o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor. São-lhe necessárias urna
que torna possível o trabalho do processo primário é o fato de o inconsciente tópica e urna econtirnica.É preciso que a absorção radical do signo inaugurada
tratar as palavras como coisos. O significante, escapando ao horizonte e à fina- no poético (e sem dúvida também no Witz) volte a ser o signo decifrável de um
não-dito, de uma coisa que talvez nunca permita que o seu número transpareça,
lho -
lidade do significado, volta a ser material puro, disponível para um outro traba-
material "elementar" disponível para as plasmações, transposições, encai-
xes forçados do processo primário. A substancia fônica da linguagem assume
mas que com isso obtern apenas um aumento de valor.Tenho a convicção de
que a psicanálise não é uma "vulgar" hermenéutica: ela é uma hermenéutica
a irnanéncia da coisa material, ela sai, no tocante a is.so (se é que essas fórmu- mais sutil, tendo em vista que, por trás da operação do material significante,
las tern sentido), da primeira articulação (unidades significativas) e talvez até sempre acontece outra coisa, um outro mundo, uma outra cena, cujos desvios
da segunda (unidades distintivas). Os sons (ou mesmo as letras) são concebi- um discurso especializado pode reapreender. 0 enlevo nunca é o de um con-
dos, portanto, como os atomos de uma substância não diferente da dos corpos. sumo puro e simples. Ele é sempre aquilo que se metaboliza de libido nessa
Pode parecer que há aí uma radicalidade intransponível da linguagem.Tratar operação, aquilo que se "fala" do fundo dos fantasmas, aquilo que se libera de
as palavras "como coisas" estaria no princípio da operação profunda da lingua- afeto.Em suma, esse material de linguagem é já finalizado por uma transforma-
gem, porque tem-se a impressão de que ja se disse tudo quando por fim se cão (aqui, uma transcrição) positiva, ele é posto antecipadamente sob a juris-
conseguiu descobrir uma base "materialista". Mas há aqui o mesmo materialismo dição da interpretação, que o envolve como sua razão analítica5. A "Coisa" se
que há em toda parte. O destino filosófico dessa teoria é operar urna simples oculta, e oculta outra coisa. Procuremos a força, procuremos o significante.
reversão do idealismo sem superar a especulação sem fim e por um simples jogo
de alternância. Assim é que os conceitos de "coisa" e "matéria", foijados negativa-
mente pelo idealismo como seu inferno, seu fantasma negativo, passaram tranqüi- Motivação profunda do signo/sintoma, consubstancialidade da palavra e
lamente ao estágio de realidade positiva, e mesmo de princípio revolucionário de da coisa, do destino de linguagem e do destino de pulsão, da figura e da força.
explicação, sem perder de todo a abstração que lhe vem de sua origem. 0 idea-
lismo fantasmatizou na repressão certa "matéria", e é esta, trazendo em si todos os
5.Toda matéria é uma matéria-prima.Quer dizer, seu conceito só aparece ern função de uma
estigmas da repressão idealista, que ressurge no materialism°. Interroguerno-nos
ordem de produNo. Todos os que se querem "materialistas" (científicos, sernióticos, históricos,
com rigor acerca do conceito de "coisa", mediante o qual desejamos cingir o além dialéticos etc.) devem lembrar-se disso. Mesmo o materialismo sensualista do século XVIII é o
da representação.Toda transcendéncia evacuada, resta uma matéria bruta, opaca, primeiro passo para uma "liberação" do corpo segundo a funNo prozer, corno InotJriaprirrla de
uma produção de prazer.
A matéria nunca é mars do que força produtiva. Mas a produção nada tern de "materialista",

-
4. Freud pensa, sempre nos termos da lógica da interpretação econOmica, que, se não rimos
imediatamente,é porque a iniciativa do Witz requer certo gasto psíquico logo, nenhum exceden-
te disponível para o prazer. Ele rnesino admite que isso não é muito satisfatório.
nem, por outro lado, de idealista.Trata-se de uma ordem e de um código, e nada mais. O mesmo
vale para a ciencia: trata-se de uma ordem e de um código que não é mars nem menos "mate-
rialista" do que a magia ou qualquer outra coisa

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A EXTERMINAÇAO DO NOME DE DEUS
O WITZ OU O FANTASMA DO ECON6MICO EM FREUD

Economia libidinal cujo princípio é sempre metaforizar (ou metonimizar), o precisamente a volatilização do estatuto respectiuo da coisa e do discurso. Ou
inconsciente, o corpo, a libido, o fantasma, numa desordem de linguagem. Na seja, ele visa à exterminação da linguagem como discurso, mas também como
motivação lingüística, é o arbitrário do signo que o cede a uma analogia posi-
tiva do significante e da coisa significada. Na motivação psicanalítica, é uma
materialidade - não reprimindo-a como o faz o discurso, mas levando-a em
consideração ate' anulá-la.
necessidade reuertida que vincula o significante desconstruído com um poten-
cial energético primário. A motivação aparece aqui como transgressão de uma
forma por um conteúdo insurrecional. É a surrealidade cega da libido que vem
Assim é que também Kristeva enuncia, a partir de Heráclito e de Lucrécio,
arrebentar o princípio de realidade e de transpare'ncia da língua. Assim é inter-
uma teoria materialista do significante: as palavras não exprimem o real (mó-
pretado, no melhor dos casos, o poético: é o ruído vital de Luciano Bério, é o
vel); elas são o real.Não pela mediação das idéias, mas pela consubstancialidade
teatro da crueldade de Artaud, estertor, grito, perda de fõlego, o encantamento
e a irrupção do corpo no espaço repressivo interiorizado da lingua. Irrupção de
(que é mais do que uma "correspondência") entre a coisa material e a substãn-
cia fônica da linguagem. Homologia com a psicanálise: se a linguagem deixa
pulsões parciais que voltam a superfície enquanto parciais, sob o selo da re-
pressão, transgressivas e regressivas ao mesmo tempo, porque essa liberação entrever o inconsciente, não é porque ela o exprime, mas porque tem a mesma
estrutura que ele, articula-se e fala da mesma maneira. Mesma cesura, mesma
não passa precisamente de liberação de um conteúdo reprimido, marcado
enquanto tal pela hegernonia da forma. cena, mesma "maneira" [façon], mesmo trabalho. Onde os antigos diziam o
fogo, a água, o ar, a terra, dizemos: a linguagem, o inconsciente, o corpo.
É melhor que a brisa de Swinburne, mas é sempre motivação e metáfora.
Mas dizer que a linguagem deixa entrever o fogo, a água, o ar, a terra (ou
Metdfora vitalista, energética, corporeísta, desse teatro da crueldade. E, portanto,
o trabalho do inconsciente) por ser ela mesma elemento, substância elementar
finalista em última instância, ainda que se trate de uma finalidade selvagem.
em afinidade direta com todas as outras é mais radical que toda "motivação"
Magia de urna "liberação" da força original (6 conhecida a afinidade muitas vezes
psiconaturalista e, ao mesmo tempo, está bem longe da verdade. Faz-se neces-
orgíaco -
escabrosa de Artaud com a magia e o exorcismo, e mesmo com o misticismo
Heliogábalo). A metafísica estd sempre nas entrelinhas, como no caso
sário dar um passo atrás: é com a condicão de ver que o fogo, a água, a terra,
o ar não são valores, nem elementos positiuos, que são metáfora da dissolução
da visão econômica/energética do processo inconsciente (isto é, simplesmente
do conceito de inconsciente): tentação metafísica da substantivizacão do I.C.S.
contínua do valor, da troca simbólica do mundo
mas anti-substancias, antimatérias
- que não são substancias,
é nesse sentido que se pode dizer que a
como colpo e, portanto, da finalidade de sua liberação. Ilusão contemporânea da
linguagem se une a eles, quando arrancada à lógica do signo e do valor. É isso
repressão que esboça o inconsciente como conteúdo, como força. É o triunfo da
que dizem os mitos antigos sobre os elementos, é esse o mito heraclitiano e
forma o fato de circunscrever aquilo que ela nega como conteúdo, bem como de
cingi-lo numa finalidade de expressão de conteúdo ou de ressurreição de forças.
nietzschiano do vir-a-ser-e é nesse aspecto que eles eram poéticos, e bem
superiores a toda interpretação analítica que transponha essa dissolução para
Nesse ponto, já não há diferença entre o lingüístico e o psicanalítico:
a instância oculta de um não-dito, transparecendo num não-dizer ou num outro-
sempre a mesma tentativa de fundar o poético na conaturalidade do discurso -dizer.
e de seu objeto:"A distância das palavras corn relação as coisas é revertida pelo Na operação simbólica, nada de referencial materialista, ainda que "in-
uso daquilo que há de 'coisa' na palavra, pela mediação de sua carne e do eco consciente". Trata-se bem mais de uma operação "antimaterial". Cuidado com
que sua carne pode produzir na caverna da sensibilidade, ao rumor que aí a science-fiction, mas é verdade que há alguma analogia entre uma partícula e
suscitaria a coisa" (Lyotard, Discours, Figure, p. 77). Desse modo, os linguistas
tentarão - no melhor dos casos - salvar o valor"simbólico" da sonoridade da
tese do arbitrario. Mais adiante: "A coisa não é 'introduzida na' linguagem, mas
sua antipartícula, cujo encontro resulta na anulação das duas (com, como por
acréscimo, uma energia fabulosa), e o princípio da vogal e de sua contravogal,
em Saussure, ou, de modo mais geral, o de qualquer significante e seu duplo
o arranjo desta faz desabrochar nas palavras e entre elas ritmos consonantes
anagramático que o abole: também nesse caso não resta nada além de um
corn aqueles que suscitaria no nosso corpo a coisa de que fala o discurso". Que fabuloso enlevo.
milagre torna consoantes a "coisa" e a palavra por meio do corpo? 0 ritmo? A Kristeva: "Nesse espaço outro, em que as leis lógicas da fala são violadas,
metáfora. Estd envolvida em tudo isso, corn efeito, uma economia positiva da
metdfora -a idéia de uma reconciliação entre a "coisa" e a palavra devolvida
o sujeito se dissolve e, no lugar do signo, é o choque de significantes que se
anulam um ao outro que se instaura. Uma operação de negatividade generali-
sua materialidade. Mas isso é falso. Se é verdade que o discurso lógico nega zada que nada tem que ver com a negatividade que constitui o juízo (Aufhebung)
a materialidade da palavra (o Wortkörper), o poético não é de maneira alguma,
nem com a negatividade interna ao juízo (lógica 0-1): uma negatividade que
por simples inversão, ressurreição da palavra como coisa. Longe de fazer apa- aniquila (budismo: sunyavada). Um sujeito zerológico, um não-sujeito que vem
recer a coisa, ele visa destruir a própria linguagem corno coisa. 0 poético assumir esse pensamento que o anula".

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A EXTERMINAÇÃO DO NOME DE DEUS
0 WITZ OU O FANTASMA DO ECONOMIC:0 EM FREUD

Ecom ALEM DO INCONSCIENTE


sejam, racionalizam à sua maneira, é a fantástica automatização do econõmico
incon A questão é a seguinte:seria possivel fazer do inconsciente, elevado ao nfvel de principio de realidade.
essa energia, esse
motiv potencial de afeto que, em sua repressão e pelo Mos isso também se aplica à psicandlise: sob os termos "inconsciente" e
seu trabalho, está na base do
tiva desregramento, do deslocamento "expressivo" da "trabalho do inconsciente", Freud reavalia como instância fundamental aquilo
ordem do discurso e opõe seu
nece processo primário aos processos secundários, uma
hipótese no processo do poé- que, também aí, resulta, na forma de psiquismo individual, de uma fratura do
cial e tico? E tudo evidentemente se sustenta: se o
inconsciente é essa instância irrever- simbólico. As relações conflituais consciente/inconsciente apenas traduzem a
formi. sivel, a dualidade processo primário/processo obsessão dessa separação mesmo do psiquico enquanto tal.A tópica freudiana
secundário é irreversivel, e o traba-
arreb lho do sentido só pode consistir no ressurgimento (1.C.S./PC.S./C.S) apenas formaliza e teoriza como dado original aquilo que
desse reprimido, em seu trans-
preta parecimento na instância repressora do discurso. resulta de uma desestruturação.
No tocante a isso, não há dife-
teatrc renca entre o poético e o neurótico, entre o poema As análises de Marx e de Freud são crfticas. Mas nem uma nem outra
e o lapso. Levamos em conta
e a ir a radicalidade da psicanálise: se "existem",
os processos primários estão atuando o é com respeito à separação respectiva de seu domfnio. Elas não tern cons-
pulse- em toda parte, e em toda parte são determinantes. ciência da cesura que as funda. Trata-se de sintomatologias criticas que, sutil-
Mas, inversamente, a simples
press hipótese de uma ordem diferente, de uma ordem mente, fazem do seu campo sintomático respectivo o campo determinante.
do simbólico que constituiria a
não economia do inconsciente, do interdito e da repressão, Processos primários, modo de produção: palavras "radicais", esquemas de
e que resolveria no essen-
enqu cial a propria distinção entre processo primário determinação irredutiveis. É a esse titulo que etas exportam seus conceitos
e processo secundário, essa sim-
ples hipótese basta para relativizar toda a perspectiva
1

psicanalftica, e não apenas e se imperializam.


Meta. em terrenos para ela marginais como naqueles
que ela invade soberanamente Marxismo e psicanálise tentam hoje misturar-se, intercambiar seus concei-
finali (antropologia, poética, politica etc.): em seu
próprio terreno, na análise psiquica, tos. Com efeito, logicamente, se eles dependessem da critica "radical", essa
Magik na neurose e na cura. Para retomar Mannoni,
não se exclui que a psicanálise, combinação deveria ser possfvel. Mas não é nada disso que acontece.Vemos
escat nascida da distinção entre processo primário e processo
secundário, morra um o fantasma e o fracasso do freudomarxismo em todas as suas formas. Ora, a
orgia dia da abolicão dessa distinção. 0 simbólico
é já aquilo que está além do incons- razão profunda do fracasso incessante dessa transferência de conceitos, aquilo
da vi ciente e da psicanálise, o que está além da economia
libidinal, bem como além de que ela não é senão metáfora desesperada, de um e do outro lado, é pre-
do o do valor e da economia politica.
cisamente o fato de o marxismo,assim como a psicanálise,só ter coere-ncia ern
Coin( É preciso ver que os processos
simbólicos (reversibilidade, dispersão sua circunscrição parcial (em seu desconhecimento), não sendo, por conse-
repre anagramatica, absorção sem resfduo) não se confundem
de modo algum com guinte, generalizáveis como esquemas de análise.
form os processos primários (deslocamento, condensação,
repressão). Há entre eles Nem sua "síntese" nem sua contaminacão: apenas sua ex-terminação res-
cingi uma oposição, ainda que um e outro se oponham
ao discurso lógico do senti- pectiva pode fundar uma teoria radical. O marxismo e a psicanálise estão em
do. É essa diferenca singular (também quanto
ao enlevo) que faz que um crise. É preciso forçar e precipitar sua crise respectiva, muito mais do que
semi sonho, um lapso, um chiste não sejam uma obra
ou um poema. Diferença entre escorá-los um por meio do outro. Eles ainda podem se fazer reciprocamente
e de o simbolico e o inconsciente libidinal, hoje
largamente apagada pela primazia
uso
que
da psicanálise, mas que é preciso resgatar
invasão de espacos em que ela nada tem a dizer:
- opor à psicanálise o interdito da
muito mal. Não é necessário nos privarmos desse espetáculo. Trata-se apenas
de campos criticos.

SLISC
tente
o simbolico, a antropologia (primitiva) -
nada souberam dizer, exceto em termos de redução,
o poético (a obra de arte),
sobre isso, Freud, assim como Marx,
um ao modo de produção
tese e o outro à repressão e à castração. Onde
a psicanálise e o marxismo fracas-
o ar sam, não é preciso querer fazer que eles deem
o salto do anjo (e da besta),
COM mas analisá-los sem piedade em função daquilo
que lhes escapa. Essas limita-
mila ções de urn e do outro são hoje os pontos estratégicos
de toda análise revolu-
metz cionária.
met( Marx cre reavaliar no econõrnico e em seu
processo dialético a instância
su fundamental. Ele reavalia na realidade, por meio
do econõrnico e de suas
a mi convulsões, aquilo que o obseda sintomaticamente:
a separocão dessa econo-
por mia enquanto instância. 0 que atravessa o econõmico,
o conflitualiza, na ver-
rece dade o lugar de contradições, o que essas contradições,
por mais violentas que

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