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Título original: Le gest et Ia parole —technique et langage

Editions Albin Michel, 1964


Tradução de Vítor Gonçalves
Capa de Alceu Saldanha Coutinho
Reservados todos os direitos para os países da Língua Portuguesa

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O GESTO
E A PALAVRA
1-TÉCNICA E LINGUAGEM

ANDRÉ LEROI-GOURHAN
Capítulo V

O ORGANISMO SOCIAL

Biologia das sociedades

Até ao presente considerámos o homem com phyllum, isto é,


como sequência de indivíduos colectivos substituindo-se no tempo
e resultando no homo sapiens. Estes indivíduos específicos (austra-
lantropo, arcantropo, paleantropo) acompanharam o desenvolvi-
mento da técnica e da linguagem até ao ponto de afloramento no
homo sapiens. Com este último assiste-se a uma transformação que
parece imputável a uma modificação importante do aparelho cere-
bral. A coincidência destes factos com a aparição de um dispositivo
social baseado em valores culturais que fraccionam em etnias a
espécie zoológica humana deixou-se finalmente entrever, implican-
do um tipo novo de relações entre o indivíduo e o dispositivo de
agrupamento onde vai buscar a sua eficácia. Isto poderia fazer su-
por que a vida social aparece ao nível do homo sapiens, o que é
falso porque, por várias razões, temos de admitir que, mesmo nos
seus estádios mais primitivos, a antropiano é um ser social. Para
demonstrá-lo não é necessário recorrer aos antropóides que, sob
formas diversas, têm uma vida de sociedade organizada, porque os
casos de agrupamento para benefício mútuo entre os mamíferos,
mais largamente entre os vertebrados e mais largamente ainda em
todo o mundo vivo, são suficientemente numerosos para demons-
trar que há, na vida social, uma opção biológica fundamental, pela
mesma razão que na simetria bilateral por oposição à simetria ra-
dial, ou que na especialização do membro anterior para preensão.
A relação indivíduo-sociedade varia, no homem, na razão direc-
ta da evolução das estruturas tecnoeconómicas e é importante defi-
nir estas para compreender certas propriedades do corpo social nas
diferentes fases da evolução. A consequência mais directa do nível

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técnico sobre o grupo social diz respeito à própria densidade desse
grupo; a partir do momento em que a evolução intelectual cria valo-
res próprios do homo sapiens, a relação «nível técnico-densidade
social» torna-se o factor principal do progresso. No capítulo XIII
assistir-se-á à dominação do mundo exterior pelos símbolos, ao
encaminhamento para a constituição de um universo totalmente
humanizado. Presentemente, é suficiente mas indispensável tomar
consciência dos termos da dominação material do homem sobre o
meio e fixar, por conseqüência, as grandes fases do seu desenvol-
vimento técnico e econômico.
A análise das técnicas mostra que, no tempo, elas se comportam
à maneira das espécies vivas, gozando de uma força de evolução
que parece ser-lhes própria e ter tendência para as fazer escapar ao
domínio do homem. O que pode haver de inexacto na fórmula ba-
nalizada de «o homem ultrapassado pelas suas técnicas» não tem
dúvida, mas não deixa por isso de existir uma singular similitude
(em que já insisti por várias vezes) entre a palentologia e a evolu-
ção técnica (nomeadamente em Milieu et Techniques, pág.
357-361). Seria portanto de se fazer uma verdadeira biologia da
técnica, de se considerar o corpo social como um ser independente
do corpo zoológico, animado pelo homem, mas acumulando uma
tal soma de efeitos imprevisíveis que a sua estrutura íntima ultra-
passa em muito os meios de apreensão dos indivíduos. Este corpo
social desmesurado será o resultado de uma evolução progressiva
comparável e sincronizável com a do cérebro, ou outras razões, de
caracter não biológico, determinarão a forma tomada em menos de
dez mil anos pelas sociedades actuais? Um inventário rápido das
sociedades, tal como podemos reconstituí-las de idade para idade,
contribuirá talvez com alguns elementos para uma resposta.
Ao tomar como tema da primeira parte deste livro a história do
cérebro e da mão, tive o desejo de começar por um verdadeiro
princípio, visto que o homem é, primeiramente, perceptível na sua
realidade corporal e parece que a sequência normal seria medir-se
em primeiro lugar o resultado das acções da mão, isto é, aquilo que
o homem se fabricou para poder exercer o seu pensamento. Numa
actuação destas há um certo risco que é o de se desconhecer o que
existe de incorpóreo na realidade do homem. Dizer que não há cé-
rebro humano, por conseguinte pensamento humano, sem posição
vertical, elimina o facto de que não haveria posição vertical «hu-
mana» sem a tendência geral para o progresso adaptativo do siste-
ma nervoso central. A coincidência entre evolução da posição e a
do sistema nervoso para realizarem o homem é evidente, e o seu
destino humano surge como uma verdadeira vocação paleontológica
que poderia ser determinada pelo lento emergir do pensamento re-
flectido através dos tempos geológicos, numa perspectiva teilhar-
diana; mas, enquanto se pode dar provas materiais do primeiro ter-
mo, só se pode dar testemunhos metafísicos do facto de o pensa-

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mento poder ter guiado a evolução, o que leva o debate para um
terreno a que só imperfeitamente o método paleontológico está
adaptado. Quando se passa do plano paleontológico para o plano
etnológico, a situação é exactamente a mesma. Pode provar-se que
o equilíbrio material, técnico e económico influencia directamente
as formas sociais e, por consequência, a maneira de pensar, porém
não é possível erigir em lei que o pensamento filosófico ou religio-
so coincida com a evolução material das sociedades. Se assim fos-
se, o pensamento de Platão ou o de Confúcio parecer-nos-iam tão
curiosamente obsoletos como as charruas do primeiro milénio antes
da nossa era. Ora se um e outro podem parecer inadaptados às con-
dições sociais criadas pela evolução dos meios materiais, não dei-
xam por isso de conter conceitos que nos são acessíveis na actuali-
dade. A equivalência dos pensamentos humanos é um facto simul-
taneamente do tempo e do espaço: naquilo que não está ligado ao
domínio das técnicas ou ao seu contexto histórico, o pensamento de
um Africano ou o de um Gaulês são de uma completa equivalência
ao meu. Isto não significa que não tenham as suas particularidades
específicas mas simplesmente que, conhecido o seu sistema de refe-
rência, os seus valores são transparentes. Este facto é de uma or-
dem que não pode transpor-se para o mundo material, assim como
não se pode fazer caso da força expansiva do cérebro na evolução
do crânio. Cada domínio tem as suas vias de demonstração, o do
material na tecnoeconomia e história, o do pensamento na filosofia
moral ou metafísica; se justificados por os acharmos complementa-
res, esta complementaridade está numa real oposição.

Técnica, económica e social

Dizer que as instituições sociais são estreitamente solidárias


com o dispositivo tecnoeconómico é uma afirmação constantemente
verificada pelos factos. Sem que os problemas morais mudem
realmente de natureza, a sociedade modela o seu comportamento
com os instrumentos que o mundo material lhe oferece; os seguros
sociais não são mais imagináveis entre os caçadores de mamutes do
que a família patriarcal será pensável numa cidade industrial. O
determinismo tecnoeconómico é uma realidade que marca a vida
das sociedades profundamente o bastante para que existam leis de
estrutura do mundo material colectivo tão firmes como as leis mo-
rais que regem o comportamento dos indivíduos face a si mesmos e
aos seus semelhantes. Admitir a realidade do mundo do pensamen-
to em face do mundo da matéria, afirmar mesmo que o segundo só
está vivo por efeito do primeiro, nada retira ao facto de que o pen-
samento se traduz em matéria organizada e que esta organização
marca directamente, segundo modalidades variáveis, todos os esta-
dos da vida humana.

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A evolução dos ritmos e a organização espácio-temporal permi-
tirão mais tarde distinguir mais claramente a estreita conexão do
comportamento social e do aparelho tecnoeconómico, uma dialécti-
ca comparável à das relações do aparelho corporal e do pensamento
alcançado pelo sistema nervoso. Com todos os desvios que levam
ao que o grupo humano tem de matéria viva, é precisamente pelo
esqueleto tecnoeconómico que o estudo deve começar e foi neste
espírito que, há vinte anos, escrevi L'Homme et la matière.

Muitos trabalhos foram consagrados desde J. J. Rousseau ao


comportamento do homem «primitivos». Os dos séculos XVIII e
XIX eram deliberadamente orientados para uma demonstração de
ideologia política. Tratava-se menos de observar os Australianos ou
os Fueginos do que de traçar uma curva teórica das instituições
sociais, de demonstrar até que ponto a sociedade ocidental se afas-
tava e qual era a via a seguir para responder ao bem-estar social dos
homens futuros. O marxismo nasceu neste impulso inicial e aí se
manteve. A sociologia de acção política só retira da observação os
elementos necessários à demonstração prática. Quando, em fins do
século XIX, a sociologia dos primitivos tomou corpo, ia buscar
directamente o seu impulso ao movimento sociológico geral e, em
nós, Dürkheim, Mauss e Levy-Brühl foram buscar à observação
indirecta dos primitivos vivos os elementos de uma construção do
comportamento social elementar. A escola actual de Levi-Strauss,
com bases na antropologia social, esforça-se por renovar essas fun-
ções numa perspectiva inspirada pelas ciências exactas. No estran-
geiro, a evolução foi sensivelmente a mesma: salvo na escola russa,
dos historiadores da cultura material, a infra-estrutura tecnoeconó-
mica só interveio, as mais das vezes, na medida em que marcava de
maneira indiscreta a super-estrutura das práticas matrimoniais e dos
ritos. A continuidade entre as duas fases da existência dos grupos
foi penetrantemente expressa pelos melhores sociólogos, mas antes
como um desaguar do social no material do que como uma corrente
de duplo sentido cujo impulso profundo é o do material. De modo
que se conhece melhor as trocas de prestígio do que as trocas quo-
tidianas, as prestações rituais do que os serviços banais, a circula-
ção das moedas dotais que a dos legumes, muito melhor o pensa-
mento das sociedades do que o seu corpo.
Esta observação não tem de modo algum carácter depreciativo
em relação à sociologia ou à antropologia social, mas regista um
estado de facto: enquanto Dürkheim e Mauss defenderam luxuosa-
mente o «facto social total», consideraram a infra-estrutura tecno-
económica conhecida. Numa perspectiva dessas, toda a vida mate-
rial existe no facto social, o que é particularmente adequado à de-
monstração, como se verá na segunda parte, do aspecto especifica-
mente humano do grupo étnico, mas que deixa na sombra o outro
aspecto, o das condições biológicas gerais pelas quais o agrupamen-

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to humano se insere no que é vivo, em que se baseia a humanização
dos fenómenos sociais.
As duas faces da investigação do homem não se anulam mu-
tuamente, completam-se. Que o facto humano seja total é claro,
tanto num como noutro aspecto, mas é diferentemente sensível.
Para o sociólogo ou para o antropólogo social, o facto social é
totalmente humano, pois que atira o homem do cimo da vertente até
abaixo. Para quem praticasse uma «etnologia das profundidades», o
facto social apareceria como um facto biológico geral, mas total-
mente humanizado. Muitos esboçaram as fases teóricas desta hu-
manização, mas são pouco numerosos os que tentaram dar dela uma
imagem analítica. Comprovar com o zinjantropo que a humaniza-
ção começa pelos pés é talvez menos exaltante do que imaginar o
pensamento despedaçando as limitações anatómicas para se forjar
um cérebro, mas é um caminho bastante seguro. Para o edifício
social deve seguir-se a mesma via.

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O grupo primitivo

Os antropianos partilham com o conjunto dos primatas a posse


de uma dentadura curta, de molares trituradores, e de tubo digesti-
vo de estômago simples, com intestino de comprimento médio,
onde as fermentações assimiladoras das celuloses não exercem fun-
ção notável. O termo mais simples, fundamental, da economia
humana depende deste dispositivo de sobrevivêniia alimentar.
Pela sua organização, o homem está ligado ao consumo de ali-
mentos carnudos: frutos, tubérculos, rebentos, insectos, larvas. O
seu regime é, simultaneamente, retirado ao mundo vegetal e ao
mundo animal e foi o único entre os Primatas que desenvolveu o
consumo de carne dos animais. É, de facto, de maneira acidental
que os macacos capturam e consomem répteis ou aves. Tanto quan-
to a arquelogia permite julgar, esta situação é antiga, porque os
australantropos já eram caçadores, de modo que ao inverso dos go-
rilas de caninos enormes, comedores de rebentos e frutos, os mais
antigos antropianos são carnívoros e não têm caninos desenvolvi-
dos. Certamente não eram exclusivamente carnívoros e o facto de
que apenas tenham sobrevivido resíduos ósseos nas jazidas ilude
acerca do carácter preponderante da alimentação carnívora dos
homens fósseis. Quando se faz, mesmo para a Europa de há cem
anos, a lista dos grãos, frutos, caules, rebentos e cascas selvagens
que eram consumidos pelos camponeses e quando se lhe compara a
lista das plantas que cresciam entre nós, mesmo durante os rigores
glaciares, apercebemo-nos de que o homem de Neanderthal dispu-
nha de meios para consumir numerosos vegetais.
Este tipo de alimentação impõe uma primeira condição à forma
do grupo primitivo. Vegetais ou animais, os alimentos carnudos

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estão espalhados pela natureza e submetidos a importantes varia-
ções no decurso do ano. Se o homem tivesse possuído uma denta-
dura raspadora e um estômago de ruminante, as bases da sociologia
teriam sido radicalmente diferentes. Apto a consumir as plantas
herbáceas, teria podido, como os bisontes, formar colectividades
transumantes de milhares de indivíduos. Comedor de produtos car-
nudos, viu, desde o princípio, imporem-se-lhe condições de agru-
pamento muito precisas. Isto é, com toda a evidência, uma verifi-
cação banal, mas sem a qual não existe ponto de partida para o
estudo do agrupamento humano.

O território

De facto, a relação alimentação-território-densidade humana


corresponde, em todos os estádios da evolução tecnoeconómica, a
uma equação de valores variáveis mas correlativos; para o grupo
primitivo os termos mantêm entre si ligações idênticas, quer se trate
dos Esquimós, dos Bosquímanos, dos Fueginos, dos Pigmeus de
África ou de certos índios americanos. A constância é a tal ponto
rigorosa que os documentos pré-históricos só no mesmo sentido
podem ser interpretados. A alimentação está ligada ao conhecimen-
to aprofundado dos habitais animais e vegetais e a velha imagem da
«horda» primitiva errante é, certamente, falsa: um certo deslizar
progressivo do território do grupo é possível, a emigração acidental
e brutal é também possível, mas a situação normal é a frequentação
prolongada de um território conhecido nas suas menores possibili-
dades alimentares. O aspecto normal do território primitivo, do ter-
ritório dos australantropos ou dos arcantropos, será sem dúvida di-
fícil de definir, mas, a partir dos paleantropianos, a existência ates-
tada de cabanas ou tendas torna os termos comparáveis aos dos
primitivos actuais. Se aplicarmos aos australantropos e aos arcan-
tropos normas tiradas ao mundo animal chegaremos, aliás, a termos
muito vizinhos: o território dos primatas ou dos carnívoros pode ser
vasto, mas oferece pontos de fixação alimentar e de refúgio que não
existiriam numa superfície sem relevo e sem limites.
A frequentação do território implica a existência de trajectos
percorridos periodicamente. O grupo primitivo é normalmente
nómada, isto é, desloca-se segundo o ritmo de aparição dos recur-
sos, explorando o seu território num ciclo que depende, o mais
profundamente, das estações. Há, pois, uma relação complexa en-
tre a densidade dos recursos alimentares, a superfície diária das
deslocações de aquisição em torno de pontos de fixação temporária,
a superfície total do território, que é função do conhecimento sufi-
ciente dos pontos alimentares sazonais, equilíbrio entre a alimenta-
ção, o sentimento de segurança no habitai, as fronteiras de contacto
com os territórios dos outros grupos. Uma última relação se estabe-

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lece finalmente entre a massa alimentar, o número de indivíduos
que constituem o grupo e a superfície do território frequentado. A
densidade alimentar intervém como um factor imediatamente limi-
tativo do número de consumidores, a superfície territorial não é
menos limitativa, pois que o grupo só pode existir na medida em
que as deslocações diárias asseguram a coabitação ou que as deslo-
cações periódicas asseguram e alimentação de um número relativo
de indivíduos agrupados. Os números atingidos pelos primitivos
vivos são variáveis numa dupla medida, a dos recursos constantes e
a dos recursos periódicos. Os recursos constantes somente assegu-
ram a subsistência normal de um grupo limitado a algumas dezenas
de indivíduos, no máximo, normalmente entre dez e vinte. Os re-
cursos periódicos, como a abundância provisória de salmões e re-
nas, podem permitir o ajuntamento de vários grupos elementares. A
trama das relações sociais está, por consequência, na origem, inti-
mamente controlada pela relação território-alimentação. O Grupo
conjugai (gravura 67): em todos os grupos humanos conhecidos, as
relações tecnoeconómicas do homem e da mulher são de estreita
complementaridade: para os primitivos podemos dizer, mesmo, de
estreita especialização. Esta situação é tanto mais interessante quan-
to, ao contrário do território, não temos verdadeiro paralelo no
mundo animal superior. Entre os carnívoros, machos e fêmeas ca-
çam no mesmo grau, entre os primatas a busca alimentar é indivi-
dual e não oferece vestígios de especialização sexual. Talvez igno-
remos sempre a situação, a este respeito, dos mais antigos antro-
pianos e somente o raciocínio permite elaborar uma hipótese. O
regime alimentar humano implica duas ordens de operações muito
diferentes: a aquisição violenta da carne dos grandes animais e a
aquisição mais pacífica de pequenos animais, invertebrados e vege-
tais. Em todos os grupos primitivos vivos conhecidos, a caça cabe
normalmente ao homem, a colheita à mulher. Esta separação pode
ser explicada por um contexto religioso ou social, mas o seu carác-
ter orgânico é demonstrável pelo facto de que, segundo os povos, a
fronteira entre os domínios masculino e feminino é flutuante. Entre
os Esquimós as mulheres não caçam, mas entre certos índios do
Oeste americano a captura dos coelhos pertence-lhes; entre os Bos-
químanos os homens não colhem, em princípio, mas de facto parti-
cipam na busca e recolha dos produtos vegetais que são demasiado
raros para que as barreiras da especialização sexual resistam. Esta
surge, assim, como que baseada em caracteres fisiológicos. A
agressividade mais pronunciada dos machos, carácter frequente no
mundo animal, e a mais fraca mobilidade das mulheres explicam a
especialização na busca de uma alimentação dividida entre o animal
e o vegetal. O crescimento muito lento da criança torna as mulheres
naturalmente menos móveis e na base da sua dupla alimentação não
surge, para o grupo primitivo, outra solução orgânica do que a da
caça masculina e a colheita feminina. A humanização deste impera-

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tivo biológico reside nas modalidades socio-religiosas dele prove-
nientes para cada grupo humano. O fenómeno fundamental é real-
mente um fenómeno geral, que só é particular ao homem pelo ca-
rácter excepcional da sua alimentação: os limites por vezes muito
estritos da especialização, tudo o que ela implica de racionalização
tradicional das trocas alimentares entre o homem e a mulher mar-
cam, pelo contrário, a parte do fenómeno social totalmente huma-
no.

A polivalência técnica

O grupo primitivo é assim constituído por um número restrito


de indivíduos dos dois sexos, funcionalmente especializados e fre-
qüentando num ciclo periódico o território que corresponde ao equi-
líbrio das suas necessidades. Fundamentalmente, este grupo corres-
ponde a uma unidade de subsistência, pode estar periodicamente
ligado a outras unidades, mas está em condições de assegurar a sua
sobrevivência prolongada. O seu primeiro carácter é o de possuir
um conhecimento completo das práticas de natureza vital e de ser
tecnicamente polivalente. O grupo elementar, constituído por um
número reduzido de casais e sua descendência, entre os Esquimós,
os Australianos ou os Fueginos, oferece uma imagem global da
sociedade australiana, esquimó ou fuegina, sendo indispensável a
posse de toda a cultura material para a sobrevivência da colectivi-
dade no isolamento. Mais estreitamente ainda, a totalidade cultural
vital está incluída no grupo conjugai e repartida entre o homem e a
mulher. O casal, particularmente entre os Esquimós, pode efecti-
vamente encontrar-se isolado temporariamente de qualquer outra
unidade social. O facto de que no grupo primitivo a especialização
técnica não intervém no domínio das operações vitais corresponde
às próprias condições de economia primitiva em que cada parcela
social deve possuir o conjunto dos conhecimentos necessários à
sobrevivência. Normalmente, o grupo elementar comporta suficien-
tes indivíduos para que uma certa repartição das tarefas se faça
entre eles, encontrando os velhos ou os fracos as suas funções em
operações secundárias, mas esta especialização não põe em causa o
próprio fundamento do grupo polivalente em cada indivíduo.
O grupo primitivo elementar, a nível do homo sapiens, é im-
pensável isolado permanentemente, senão na abstracção que isola-
ria uma colectividade primordial dando origem, por desmembra-
mento, a várias unidades elementares. Normalmente, cada grupo
integra-se num dispositivo mais largo, constituído por vários outros
grupos com os quais efectua trocas a vários planos e em particular
no plano matrimonial. Os sociólogos e entre nós, particularmente
Levi-Strauss, distinguiram claramente o papel do dispositivo ma-
trimonial na organização das unidades secundárias a que a sociolo-

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gia tradicional chamava sumária, mas comodamente clãs. Distin-
guiram também, há muito tempo, a rede complexa das trocas de
produtos e de esposas e o papel das operações de aquisição e con-
sumo alimentares na normalização das relações entre grupos que
trocavam mulheres. Geração e alimentação são tecnoeconomica-
mente inseparáveis ao nível dos antropianos e os sistemas, frequen-
temente muito complexos, que humanizam o comportamento do
grupo sob estes dois aspectos fundamentais não passam do reflexo
de um facto que permanece normalmente biológico.
A ideia da promiscuidade sexual «primitiva» é tão inconsciente
no plano biológico como a da «horda errante». As sociedades ani-
mais têm para sua sobrevivência uma organização constante e pre-
cisa, que varia de uma espécie para outra, em função do equilíbrio
entre a sociedade e o seu meio. Nos capítulos precedentes foi de-
monstrado que a coerência neuroanatómica dos antropianos não era
menor do que a dos animais, o desenvolvimento de um aparelho
bioeconómico baseado na tecnicidade manual e verbal impõe uma
inscrição social também perfeitamente determinada, a existência de
uma célula fundamental coerente com as suas necessidades alimen-
tares e ligada às células vizinhas por uma rede de trocas, coerente
com as suas necessidades de reprodução. Entre os dois níveis de
agrupamento os factos de aquisição alimentar caracterizam prepon-
derantemente o grupo primário (casal ou família doméstica), os fac-
tos de aquisição matrimonial são dominantes no grupo largo (paren-
tesco, etnia).

As simbioses

As actividades técnicas complementares dos esposos constituem


um facto de simbiose, no sentido restrito, porque nenhuma fórmula
de separação é concebível, no plano tecnoeconómico, sem desuma-
nizar a sociedade. O grupo primitivo, para sobreviver, estabele-
ceu-se numa base tão estreita quanto possível, a simbiose de sobre-
vivência imediata detém-se, por isso, ao nível do casal, mas exis-
tem domínios da vida tecnoeconómica em que, nestas condições, a
sobrevivência estaria comprometida em prazo mais ou menos lon-
go; pelo menos, existem produtos, matérias ou objectos, considera-
dos como necessários, de que o grupo elementar não disporia. En-
tre os primitivos recentes a circulação de objectos manufacturados
ou de matérias-primas é um facto de anotação constante. Segundo
os seus próprios recursos, o pequeno grupo é, em bloco, especialis-
ta em relação aos seus vizinhos. Entre os Esquimós, o equilíbrio
repousava ainda há pouco, em grande parte, na circulação de lâm-
padas de pedra, de madeira para os cabos dos arpões e para os
trenós, de peles de rena para o vestuário de Inverno; entre os Bos-
químanos, as peles, os enfeites de pérolas recortadas dos ovos de

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avestruz; entre os Australianos, os boomerangs decorados e as lâ-
minas de pedra constituíram o objecto das trocas cuja interrupção
frequentemente teria correspondido a uma reformulação da sobrevi-
vência do grupo elementar. As trocas de alimentos, de objectos e
de matérias-primas, assim como de serviços, fazem parte do pró-
prio funcionamento do grupo de células matrimoniais que constitui
aquilo a que os velhos autores chamaram o clã, é uma fórmula de
equilíbrio tecnoeconómico, pelo menos tanto quanto de equilíbrio
social e nada autoriza a pensar que a partir do Paleolítico recente,
pelo menos, não tenha sido assim. Existem documentos para mos-
trar que certos sílices de qualidade excepcional circularam e come-
ça-se a perceber, com bastante nitidez, no estilo dos objectos
usuais, a existência de unidades regionais, de modo que um dispo-
sitivo territorial muito diferente daquele que se conhece pelos
exemplos recentes, não pôde existir de modo algum.
A ideia de um povoamento primitivo constituído por pequenas
hordas errando em percursos intermináveis, sem contacdos organi-
zados entre si, é contrária às regras mais simples da biologia. Para
todas as espécies a sobrevivência exige a organização simbiótica de
um número suficiente de indivíduos, quer em grupos coerentes e
numerosos para as espécies cujos recursos alimentares são maciços,
quer sob a forma de indivíduos alojados em territórios contíguos

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para as espécies de recursos dispersos. Vimos que o homem não
pôde sobreviver nem em rebanho, nem como indivíduo isolado e
temos de admitir que a forma específica do seu agrupamento, que
arrastou para todas as consequências sociológicas, é aquela que
ainda lhe conhecemos, sempre que as condições iniciais continua-
ram actuais. Esta forma específica implica a permanência, pelo
menos relativa, no território e a sua continuidade com outros terri-
tórios permanentes, para que se iniciem e prossigam os fenómenos
especificamente humanos da vida técnica, econômica e social.
Para os últimos quarenta mil anos, podemos considerar esta si-
tuação como certa; a passagem da espécie zoológica à «espécie
étnica» implica inevitavelmente um tal agrupamento dos homens.
Mas o que existia antes, quando ainda se não tinha afirmado o
pensameno do homo sapiens? Vimos nos capítulos III e IV a brusca
inflexão ascendente das curvas de evolução técnica no momento em
que o homo sapiens aparece e esta repentina evolução foi atribuída
ao desbloqueamento pré-frontal, ao acesso a um pensamento supe-
rior em que os símbolos intervêm como instrumentos no domínio
do meio exterior; um tal domínio, impensável sem linguagem, é
inconcebível sem uma organização social complexa. Se nos repor-
tarmos ao passado, que imagens poderemos ter da sociedade dos
pitecantropos ou dos australantropos? A existência de estereótipos
técnicos continentais, a ausência de dados acerca do modo de vida
real dão um carácter muito abstracto a qualquer consideração.
Somos naturalmente levados a comparar os grupos familiares dos
gorilas ou dos chimpanzés com a sua relativa coesão conjugai, o
seu dispositivo poligâmico, os seus territórios bastante estáveis e a
formação, por desmembramento, de grupos limítrofes. Nas espé-
cies superiores, em que o crescimento dos jovens é ainda mais len-
to, a organização social não pode afastar-se do tipo geral a que
pertence o homem actual. Podemos imaginar uma menor longevi-
dade das uniões matrimoniais, contornos mais fluidos para as limi-
tações mútuas dos membros do grupo, mas parece que a organiza-
ção fundamental da sociedade antropiana é, à partida, real e total-
mente, antropiana, solidamente fixada na sua forma por leis que
serão parafraseadas por culturas sucessivas, em termos de direito ou
de dogma, mas que devem a sua estabilidade a causas propriamente
biológicas.

Passagem à economia agrícola

No fim do Paleolítico, nas sociedades perimediterrânicas, pro-


duz-se uma conversão tecnoeconómica radical. Entre 8000 e 5000
anos a. C. o dispositivo tecnoeconómico baseado na agricultura e
na criação de gado aparece e as sociedades tomam uma forma to-
talmente diferente da que conhecem desde as origens. A escala geo-

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lógica, do último caçador de auroques aos escribas mesopotâmicos
vai apenas um instante e a ascensão a economias novas é uma ex-
plosão. Foi precisamente assim que o fenómeno foi considerado
durante muito tempo, pois que sucede ainda encontrarmos num
autor menção da «invenção» da agricultura. É numa ordem de
ideias vizinha que os pré-historiadores da geração precedente se
punham o problema de uma domesticação pelo menos parcial da
rena e do cavalo. O mundo primitivo e o mundo dos agricultores e
dos criadores de gado são aparentemente tão diferentes que, a me-
nos que imaginemos uma «intervenção», não vemos à primeira vis-
ta como se articulariam. Em Milieu et techniques distingui a impor-
tância do «meio favorável» no fenómeno da invenção e também o
carácter normalmente impessoal deste, Não há razões, no que diz
respeito à agricultura e criação de gado, para que as condições te-
nham sido anormais e temos de insistir na investigação das circuns-
tâncias em que a associação espontânea se pôde produzir. Grandes
passos foram dados nesta direcção, durante estes últimos dez anos:
a arqueologia do Próximo Oriente situava um dos berços mais anti-
gos das duas técnicas entre o Mediterrâneo e o mar Cáspio e parece
que se consegue agora, com as escavações do Norte do Iraque, da
Síria, Líbano, Palestina e Turquia, aprofundar o problema e possuir
já elementos para uma solução. Nos locais, agora célebres, de Jar-
mo, Shanidar, Zawi-Chemi, Çatal Hüyük, temos testemunhos, en-
tre 8000 e 6000 anos a . C , da passagem da economia primitiva dos
recolectores de cereais selvagens e dos caçadores de cabras à eco-
nomia dos cultivadores de trigo e dos criadores de cabras. Esta
passagem faz-se de maneira imperceptível; as foices estão presentes
antes da agricultura e só as estatísticas demonstram que as cabras
deixaram de ser caça. O exemplo iraquiano corresponde a uma
demonstração ideal, dado que em alguns séculos, sem convulsões
que comprometam a sobrevivência cultural, a transformação tomou
corpo, mas exige um exame comparativo para esclarecer o próprio
mecanismo da transformação.

A protocriação de gado

A aparição de uma criação de gado que possa servir de transição


da caça exige condições de meio favorável bastante particulares
porque supõe que caçadores e criadores mantenham relações de
algum modo pessoais. Encontram-se excluídos os herbívoros gran-
des migradores, cujos rebanhos desfilam uma ou duas vezes por
ano ao alcance das armas; são também excluídos os grandes herbí-
voros perigosos ou rápidos como o boi, o bisonte, o cavalo, ani-
mais das grandes extensões, de aproximação difícil, impossíveis de
conter. Quando analisamos os elementos da passagem possível à
criação de gado, damo-nos conta de que as condições do meio físi-

159
NEA NICOMEOIA

SHANlD.AR

CATAL HüYüK HALAF HASSUNA JARNO


HACILAR
MERSYN

AMUQ

BYBLOS

JERICHO
RENA

CARNEIRO - CABRA - BOI

lAOUE;

ZEBU
BÚFALO
co são ainda mais imperativas do que as condições biozoológicas e
que as oportunidades de ver nascer a criação de gado nas estepes da
África ou da Ásia Central foram muito frágeis. O estudo da situa-
ção geral dos criadores mais elementares que se conheça no mundo
actual esclarece mais completamente o problema. Os criadores de
renas do Norte da Lapónia e os do Extremo Oriente siberiano en-
contram-se num meio em que a rena vive ainda no estado selvagem;
o seu modo de exploração do rebanho doméstico é uma estreita
simbiose facilitada pelo meio geográfico. A Oeste como a Leste o
relevo montanhoso é cortado por vales rápidos que, nalgumas de-
zenas de quilómetros, canalizam e isolam as migrações dos reba-
nhos entre os altos pastos do Verão e as regiões baixas frequenta-
das no Inverno. Os mesmos rebanhos sobem e descem todos os
anos, enquadrados pelos pastores que asseguram a protecção dos
animais sem modificarem sensivelmente o seu comportamento na-
tural. As condições da passagem à criação de gado são asseguradas
pelo facto de se enquadrarem aqui nos limites do território do grupo
humano e se inserirem nos trajectos normais dos herbívoros e no
ritmo das campanhas de aquisição dos produtos vegetais comple-
mentares 12. As condições realizadas no Norte do Iraque para a
cabra correspondem exactamente às reunidas para a rena e há uma
forte probabilidade de que a proto-criação tenha nascido nas mon-
tanhas. O facto é tanto mais verosímil quanto o único grande
mamífero que os índios da América conseguiram criar é também,
precisamente, um herbívoro montês, o lama dos Andes. É possível,
finalmente, que condições muito aproximadas tenham sido encon-
tradas no Magdalenense, em torno do Maciço Central e nos vales
pirenaicos; as condições de maturidade não estavam talvez ainda
realizadas para a criação, mas as relações dos grupos de caçadores
com os rebanhos de renas transumando nos vales deviam traduzir
uma avançada familiarização.
O cão doméstico, que surge mais ou menos na altura em que
começa a criação de gado, desempenhou evidentemente um papel
muito importante. Batedores e caçadores, os canídeos têm um
comportamento muito próximo do caçador humano. Se bem que
nada se saiba ainda da origem do cão que faltava aos Magdalenen-
ses, compreende-se muito bem a conciliação que pode estabele-
cer-se entre o canídeo e o homem, na caça e depois na canalização
dos rebanhos.

A passagem da criação montanhesa da cabra ou do carneiro à


criação dos grandes herbívoros e do porco não está ainda elucidada.
Parece ligada, todavia, ao primeiro impulso dado pela proto-criação
de caprinos, porque se desenvolve um pouco mais tarde em auréola
em torno do lar inicial. Entre 6000 e 3000 anos a. C, o carneiro e
o boi, o porco, o burro e o cavalo, e, depois, no Indo, o búfalo, o

162
zebu e o elefante passam à criação e do Próximo Oriente passam à
Ásia, Europa e África (gravura 72). Neste movimento, o impulso
inicial é o único a pôr em causa porque, excepto para o lama da
América, qualquer criação constitui um bloco histórico coerente. A
principal aquisição, a aplicação a espécies novas, oferece menos
dificuldades do que a passagem da cerâmica à metalurgia. É inte-
ressante notar que, salvo a rena, cujas condições alimentares são
muito particulares, todos os herbívoros de criação são comedores
de erva propriamente ditos (bovídeos, carneiro, cavalo, camelo),
animais agrupados em sociedades densas, sobre um tapete vegetal
contínuo e cujo comportamento de fuga é o agrupamento. A acção
de batedores do pastor e seus cães aplica-se-lhes com eficácia. Os
comedores de folhas (cervídeos), vivendo em pequenas hordas sob
abrigos, cujo comportamento de fuga é a dispersão, permaneceram
excluídos da criação.

A proto-agricultura

É muito importante verificarmos que a agricultura aparece na


mesma época e nas mesmas regiões que a criação de gado. Se ti-
vermos em conta o que foi esclarecido relativamente à constituição
tecnoeconómica do grupo primitivo, este facto nada tem que nos
surpreenda. O grupo humano, nos seus fundamentos, repousa numa
economia alimentar mista e durante toda a sua Pré-História encon-
tra o seu equilíbrio na exploração complementar do mundo animal e
do mundo vegetal. Muito cedo, talvez desde a origem, foi obrigado
a fazer uma separação entre agricultores e pastores. De facto, po-
demos imaginar células primitivas de protocriadores dependendo da
colheita para os produtos vegetais e supor a existência de grupos
proto-agricultores completando o seu regime pela caça. A evolução
fez-se provavelmente no seio de comunidades vizinhas, deslisando
mais ou menos sincronicamente para a produção organizada de vege-
tais e animais. Se admitirmos que as condições de relevo relativamen-
te excepcionais do Próximo Oriente permitiram a canalização dos
rebanhos e a passagem à protocriação, temos de admitir também que
nas mesmas regiões estavam reunidas condições botânicas favoráveis
para permitirem a passagem à agricultura, mas sem que se tenha
forçosamente tratado das mesmas unidades étnicas.
Entre as inúmeras plantas selvagens de uso alimentar aquelas
cujos grãos são comestíveis desempenham um papel de primeiro
plano em toda a faixa temperada, mais particularmente na sua parte
meridional que cobre a África a norte do Trópico, o Médio Oriente, a
Ásia Central e a América. Antes do ressecamento actual, na época em
que se fez a passagem à proto-agricultura, a exploração periódica das
herbáceas de grão constitui certamente uma parte essencial da procura
alimentar. As gramíneas propriamente ditas têm lugar importante

163
entre estas plantas; apesar da pequenez dos seus grãos, representam
um alimento de alta qualidade nutritiva e de conservação prolongada.
Soube-se recentemente que as regiões do Próximo Oriente, em parti-
cular o Norte do Iraque, tiveram, desde meados do último período
glaciar, pelo menos, gramíneas de grãos grandes, ancestrais dos
cereais actuais. As condições fundamentais da exploração progres-
sivamente agrícola do trigo selvagem encontram-se, por conseqüên-
cia, realizadas nas próprias regiões em que a criação da cabra se
manifesta primeiro.
As modalidades da passagem de uma economia à outra são ain-
da hipotéticas, mas concebemos muito bem de que modo colectivi-
dades de caçadores-recolectores, dispondo de caça canalizada em
deslocações no interior dos vales e de uma planta selvagem agrupa-
da em vastos habitais, puderam ser levados a uma exploração vege-
tal cada vez mais íntima, sem modificar o seu equilíbrio. Do século
XVII ao início do século XX, os índios do Wisconsin, na região
onde actualmente se encontra Chicago, conheceram uma economia
que permite imaginarmos bastante bem as fases de tal evolução.
Em volta do lago Superior e do lago Michigan cresce nos pântanos
uma gramínea (Zizania aquatica), o arroz selvagem, que foi consi-
deravelmente explorada por diferentes tribos. As modalidades desta
exploração são particularmente instrutivas. Os Sioux Dakota, caça-
dores de bisontes e recolectores de plantas selvagens, organizavam
incursões na altura da maturação do arroz e recolhiam simplesmen-
te a planta que constituía apenas uma parte acessória da sua alimen-
tação. Os Menomini, índios algonquinos, caçadores da floresta e
recolectores de açúcar de ácer, viviam em íntima simbiose com o
arroz selvagem de que dependia a sua alimentação de Outono e
Inverno. Não praticavam a preparação do solo nem sementeiras e
limitavam-se a ligar as espigas em molhos, para proteger os grãos
contra as aves. As superfícies de arroz selvagem estavam distribuí-
das segundo um sistema fundiário muito elaborado. Factos seme-
lhantes de protecção e atribuição pessoal de habitais de plantas sel-
vagens são conhecidos noutros grupos primitivos.
O mecanismo de aparição de uma economia de tipo «neolítico»,
baseada pelo menos parcialmente em recursos vegetais sedentários
e em recursos animais nómadas a uma escala restrita, é relativa-
mente claro. A agricultura é solidária com a criação de gado e a
linha de separação entre a economia primitiva e a dos agricultores-
-criadores não é perceptível; existe uma verdadeira engrenagem.
Um pouco mais longe veremos que nas sociedades próximo-orien-
tais esta situação resolve-se bastante depressa na economia agríco-
la-pastoral exclusiva, mas, nas margens da faixa agrícola inicial, a
situação de partida (proto-agricultores ou protocriadores de econo-
mia equilibrada pela caça ou pela colheita) continuará a funcionar
para assegurar as transições necessárias. De facto, mais recentes
que as do Mediterrâneo, as primeiras populações agrícolas da Eu-

164
ropa foram postas em contacto com a agricultura e a criação de
gado entre 6000 e 4000 a.C. Receberam conjuntamente os cereais e
o gado, mas um e outro estão longe de ter desempenhado imedia-
tamente um papel fundamental. Em proporções variáveis segundo
as regiões, a nova economia encontra-se conjugada com as técnicas
da caça e da colheita tradicionais. Ficamos mesmo surpreendidos
por ver que, em certas estações neolíticas francesas, as ossadas da
caça são ainda tão numerosas quanto as do gado e o que sabemos
das plantas mostra que, na Idade do Ferro, uma parte não negligen-
ciável da alimentação assentava ainda em grãos selvagens. Será
certamente necessário rever os julgamentos sobre a «revolução»
agrícola que, à escala geológica, é um facto instantâneo mas que,
em relação às gerações que a conheceram, deve ter sido, senão
imperceptível, pelo menos muito discreta.

A agricultura e a criação de gado

Qualquer que fosse o carácter progressivo da adopção da eco-


nomia agrária e da forma de transições para a periferia, o processo
desencadeado no Mesolítico do Próximo Oriente, cerca de 8000,
transformou por completo, já em 5000, a estrutura das sociedades,
da Mesopotâmia à Turquia, Grécia e Egipto. A economia de base é
constituída mesmo antes da aparição da olaria (entre 6000 e 5000)
pela associação do trigo e da cevada com o carneiro, a cabra e o
porco e surgem as primeiras aldeias permanentes. As modalidades
culturais são já extremamente variadas e os documentos são ainda
insuficientes para estabelecer uma imagem pormenorizada do modo
de vida destes primeiros agricultores-criadores, colocados num
meio muito menos desértico do que depois se tornou. Podemos to-
davia atribuir-lhes a sedentarização, pelo menos durante uma parte
importante do ano, pois existem verdadeiras aldeias e uma organi-
zação que mantinha o gado num contacto pelo menos periódico
com o habitai fixo.
É provável que a fórmula da protocriação que obrigava o pastor
a seguir as transumâncias do seu rebanho esteja directamente ligada
à origem, a partir de um certo estádio de sedentarização agrícola,
da separação das populações próximo-orientais em fracções seden-
tárias e em fracções nómadas. A protocriação corresponde a um
equilíbrio que não rompe com as estruturas anteriores, pelo contrá-
rio, a sedentarização agrícola é um facto novo e as suas consequên-
cias são muito importantes. Podemos conceber proto-agricultores
presos, durante uma parte do ano, às superfícies de cereais selva-
gens, todavia a sedentarização só tem sentido a partir do momento
em que a sobrevivência do grupo dependa totalmente do grão culti-
vado. A fixação permanente é ditada simultaneamente pela vigilân-
cia dos campos e pela presença do stock alimentar 13.

165
Não possuímos quaisquer planos completos de aldeias agrícolas
do primeiro período, mas as escavações destes últimos anos forne-
ceram, tanto na Mesopotâmia como na Turquia, Grécia, Líbano e
Israel, elementos importantes de estabelecimentos pré-cerâmicos e
do primeiro período da olaria (figura 73). Por outro lado, na Euro-
pa, no Ocidente como no Oriente, existem numerosos documentos
sobre os estabelecimentos dos primeiros tempos da penetração agrí-
cola. O esquema funcional é praticamente uniforme; contém células
de habitação de forma e materiais variáveis, agrupados em ordem
densa e não deixando transparecer edifícios que testemunhassem
diferenças sociais muito marcadas. Os conjuntos pré-urbanos da
Palestina, do Líbano e da Turquia puderam comportar santuários ou
casas mais ricas do que a média, todavia ainda não se lhes conhe-
cem verdadeiros palácios e as diferenças entre a base e o vértice da
escala social não têm a importância que mais tarde tomarão. Este
núcleo de povoamento está provido de estruturas protectoras, palis-
sadas ou muralhas, parques de gado, silos subterrâneos para grão.
O que é imediatamente sensível, por comparação com os grupos
primitivos, é a concentração de um número de indivíduos relativa-
mente elevado. As consequências da sedentarização agrícola são
uniformes em todas as regiões que atinge; corresponde à formação
de um grupo humano em que os indivíduos se contam às dezenas,
reunidos em volta de reservas alimentares e protegidos do meio
natural e dos seus semelhantes por um aparelho defensivo. Estas
consequências imediatas estão na origem da transformação comple-
ta que a este nível sofrem as sociedades humanas. Os sociólogos
fizeram há muito sobressair os traços mais marcantes desta trans-
formação: capitalização, sujeição social, hegemonia militar, e basta
destacar aqui os pontos que parecem interessar directamente à fun-
ção tecnoeconómica.

Sedentários e nómadas

A sedentarização agrícola provocou, nas sociedades em que


surgiu, uma separação entre agricultores-pequenos criadores de
gado e os nómadas-grandes criadores de gado, o que dá até ao pre-
sente um caracter particular a um número importante de civiliza-
ções, desde a África do Sul até Pequim. Na zona das savanas e das
estepes instaurou-se uma especialização de grupo que não deixa de
ter analogias com a que se encontra nas colectividades primitivas e
que, como no seu caso, é acompanhada de uma simbiose. Como no
casal primitivo, o vegetal e o animal separaram-se em dois grupos
técnicos complementares em que se encontra as mesmas razões
para menor ou maior mobilidade das fracções simbiosadas. Esta
nova bipartição no dispositivo tecnoeconómico é funcionalmente da
mesma natureza que as precedentes, mas difere delas constitucio-

166
nalmente de maneira profunda; para as sociedades agrícolas simbio-
sadas com sociedades pastorais não se trata já de um fenómeno
interessando fracções da mesma cultura e de nível técnico equiva-
lente, mas de sistemas tecnoeconómicos distintos, economicamente
ligados, mas separados em duas armaduras sociais, que já não são
matrimonialmente complementares mas frequentemente fechadas
uma à outra. À complementaridade do casal, à dos grupos aliados
num sistema de trocas, sobrepõe-se uma estrutura de um escalão
mais elevado onde duas sociedades distintas mantêm relações de
um tipo análogo. O facto que aqui vemos é comparável ao que
assinala os organismos vivos, nos quais, da base ao vértice da sé-
rie, os sistemas vegetativos passam da confrontação de células li-
vres à de organismos, pondo em coordenação um número conside-
rável de células agregadas. Este paralelo impô-se, aliás, ao espírito
do P. Teilhard de Chardin quando destrinçou a substituição do zoo-
lógico pelo social. É normal que às mesmas causas correspondam
os mesmos efeitos, pois que na origem dos caracteres próprios às
sociedades agrícolas pastorais reside a elevação da densidade de
população, determinada e tornada necessária pela produção alimen-
tar, causa e efeito da transportação das relações de complementari-
dade. Agricultores e pastores iniciam, a partir desse momento, o
desenrolar complexo da sua simbiose. Inseparáveis economicamen-
te uns dos outros, eles estão, segundo as sociedades e a corrente da
História, ora reunidos pelos laços de enfeudamento do pastor ao
agricultor, ora submetidos ao dispositivo inverso. Durante vários
milénios, da antiguidade bíblica às invasões dos Hunos e dos Mon-
góis ou aos movimentos dos Papeles ou dos Bantos de África, o
Mundo Antigo viveu uma parte importante da sua história nas al-
ternativas da complementaridade das duas economias.
A guerra. Esta complementaridade dos agricultores e dos pasto-
res revestiu frequentemente uma forma violenta; é uma outra carac-
terística que continua própria das formas actuais da economia.
Como para os factos precedentes, não se trata de um estado real-
mente novo mas de uma característica de base que mudou de escala
e de forma. Nas sociedades primitivas, o assassínio atinge os indi-
víduos no interior do sistema de alianças e a vendetta empenha
frequentemente as fracções em móbiles que são geralmente apenas
de caracter individual. A rivalidade pela aquisição de terrenos no-
vos, de produtos ou mulheres, surge entre fracções pertencentes a
dispositivos de aliança ou a etnias diferentes. Se não há qualquer
razão para atribuir menos agressividade aos primitivos, há lugar
para verificar que a agressão, por razões orgânicas, reveste-se neles
de um carácter muito diferente daquele que a guerra toma a partir
da existência de fortes unidades sedentárias. Entra então no leque
das inovações e até ao presente continua inseparável do progresso
da sociedade. O comportamento das comunidades a respeito da
agressão, no decurso da História, não se separou distintamente do

168
comportamento de aquisição senão numa época muito recente, na
medida em que, hoje, podemos entrever algo mais, para além dos
sinais precursores de uma mudança de atitude. Em todo o curso dos
tempos, a agressão aparece como uma técnica fundamentalmente
ligada à aquisição e no primitivo a sua função de ponto de partida
está na caça, em que a agressão e a aquisição alimentar se confun-
dem. Na passagem pelas sociedades agrícolas esta tendência ele-
mentar sofreu uma aparente distorção, pelo facto de que o disposi-
tivo social se inflectiu consideravelmente em relação ao desenrolar
biológico da evolução humana. O comportamento de agressão per-
tence à realidade humana desde os australantropos, pelo menos, e a
evolução acelerada do dispositivo social nada mudou no lento de-
senrolar da maturação filética. Entre a caça e o seu duplo, a guerra,
uma subtil assimilação se estabelece progressivamente, à medida
que uma e outra se concentram numa classe que nasceu da nova
economia, a dos homens de armas. Chaves da libertação da huma-
nidade primitiva, os cereais e o gado abrem o caminho do progres-
so técnico, mas de modo algum libertam da servidão genética e a
história desenvolve-se em três planos discordantes, o da história
natural, que faz que o homo sapiens do séc. XX seja muito pouco
diferente do homo sapiens de 300 a . C , o da evolução social, que,
com maior ou menor sucesso, ajusta as estruturas fundamentais do
grupo biológico às que nascem da evolução técnica, e o da evolu-
ção técnica, excrescência prodigiosa de onde a espécie homo sa-
piens retira a sua eficácia sem estar biologicamente na posse do seu
controlo. Entre estes dois extremos do homem físico e das técnicas,
das quais ele acaba por passar pelo simples instrumento, a media-
ção opera-se por edifício social cujas respostas são sempre um pou-
co atrasadas em relação às questões postas, e por conceitos morais,
sancionados por religiões ou ideologias cujas raízes mergulham na
moral social. Estes conceitos morais, pela contra-imagem que dão
do homem biológico, contribuem para criar a silhueta, ainda muito
abstracta, de um homo que teria ultrapassado o estado de sapiens.
O homem agrícola continua encerrado na mesma concha do dos
tempos obscuros da carnificina dos mamutes, mas a inflexão do
dispositivo económico que dele faz o produtor dos recursos fá-lo
também, simultaneamente, caçador e caça.

As classes sociais

O carácter avaro da produção animal e vegetal a nível agrícola e


pastoral é fundamental. Os cereais, as tâmaras ou as azeitonas imo-
bilizam o grupo em torno da sua área alimentar, como o rebanho
prende o nómada aos seus passos. As relações novas entre o stock
alimentar e o homem determinam, por um ajustamento indispensá-
vel das relações sociais, uma organização estratificada que é a pró-

169
pria fonte do progresso. Menos de 2000 anos decorridos após a
aparição das primeiras aldeias, apareciam já as primeiras cidades,
com o que elas pressupõem de chefes e de guerreiros, de servos e
de aldeãos avassalados. A teoria desta evolução foi elaborada já há
um século pelo materialismo histórico, mas importa sublinhar de
passagem que se trata de um caso de equilíbrio normal e não de
uma aberração patológica, como pretendiam as teorias dos primei-
ros sociólogos. Se as formas sociais seguem com sensível atraso a
adaptação tecnoeconómica, é porque se limitam a responder o me-
lhor possível ao insolúvel dilema da evolução filética e da evolução
técnica; através do incrível desperdício de homens e de recursos
que marca a História, o homem assume a função de ajustamento
entre os estados sucessivos.

A libertação do técnico

Há muito já que os pré-historiadores notaram a subitaneidade da


aparição das «invenções» maiores na história das sociedades ac-
tuais. Apenas consolidada a agricultura, aparece a cerâmica já mui-
to avançada, pois cerca de 3500 o metal e a escrita começam a
despontar; o que significa considerar que vinte e cinco séculos de
agricultura foram suficientes para que as sociedades orientais ad-
quirissem os fundamentos tecnoeconómicos sobre que repousa ain-
da o edifício humano, enquanto foram precisos trinta mil anos ao
homo sapiens para atingir o limiar agrícola. Esta transformação
implica a aparição, nos constituintes do grupo, de um elemento
inexistente nas sociedades primitivas: a possibilidade de cobrir o
consumo alimentar de indivíduos votados a tarefas que não se tra-
duzem imediatamente em produtos alimentares.
O progresso técnico entra de facto num ciclo influenciado pela
presença de produtos alimentares armazenáveis pelos agricultores.
Se não podemos compreender as primeiras civilizações do Próximo
Oriente sem fazer intervir os criadores no complexo evolutivo é,
contudo, no seio da fracção sedentária que deve ter-se iniciado o
processo. De facto, duas causas jogam nas «invenções» da cerâmi-
ca e dos metais: o ritmo dos trabalhos e a existência dos recursos
em stock. As operações artesanais pressupõem a possível libertação
de um número muito importante de horas, quer se trate de indiví-
duos produtores de alimentos, livres durante os intervalos dos tra-
balhos agrícolas, ou de verdadeiros especialistas totalmente dispen-
sados dos trabalhos alimentares. O carácter sazonal, versátil, dos
trabalhos agrícolas e a presença de uma massa alimentar que consti-
tui uma peça nutritiva sensivelmente constante realizam as condi-
ções de «meio favorável». Tal como a mão libertada dos australan-
tropos não permaneceu por muito tempo vazia, os tempos livres das
sociedades agrícolas preencheu-se rapidamente.

170
A sedentarização favoreceu o desenvolvimento de técnicas
como a da cestaria ou da tecelagem, que existiam, sem dúvida,
anteriormente mas que tomam, devido às necessidades agrícolas e à
diminuição da relação entre os despojos animais e a população, um
carácter de necessidade. A inovação principal incide, todavia, na
manipulação do fogo e é em torno das «artes do fogo» que se crista-
liza o progresso técnico. O princípio situa-se muito anteriormente,
porque o conhecimento acidental do cozimento das argilas era já
acessível ao Paleolítico. Além disso, os metais nativos, desde
35 000 anos a . C , haviam sido encontrados e recolhidos, sob a
forma de pirites de ferro ou de cristais de galena, pelos chatelperro-
nenses e pelos aurignacenses, com uma finalidade verosimilmente
mágico-religiosa. Estes conhecimentos não conduzem nem à cerâ-
mica, nem à metalurgia, porque as inúmeras horas divididas entre
os numerosos indivíduos necessários para que a invenção expluda
não estão à disposição do grupo primitivo.
Esta disponibilidade de tempo não é o único factor em causa;
existe, devido ao facto da elevação constante da população e ao
aumento das necessidades da colectividade, um verdadeiro «apelo à
inovação» que só se oferece a um grau muito baixo nas sociedades
de meio equilibrado. Estabilização no espaço e possibilidade de
aumentar localmente os recursos, aumentando o número dos indiví-
duos, criam um estado particular do meio interior que coincide com
a libertação do tempo. E nesta base que vai aumentando a bola de
neve do progresso acelerado das técnicas, num dispositivo social
constituído por unidades territoriais densas que comunicam entre si
pela rede de trocas pacíficas ou guerreiras.

A civilização

A passagem do Neolítico essencialmente rural à Idade dos Me-


tais coincide com o desenvolvimento de um dispositivo territorial
que é a sua consequência progressiva, a «civilização», no sentido
restrito, isto é, a intervenção da cidade no funcionamento do orga-
nismo étnico. A passagem foi certamente insensível. Por muito que
tentemos descobrir unidades semiurbanizadas cada vez mais anti-
gas, até aos limites da proto-agricultura, provavelmente jamais se
descobrirá a primeira cidade, mas é fácil retirar dos documentos
arqueológicos entre 6000 e 3000, da Mesopotâmia ao Egipto, os
elementos necessários à compreensão do fenómeno urbano.
A transição entre certas aldeias privilegiadas, edificadas sobre o
seu montículo natural e as primeiras cidades edificadas sobre os
tells, alteados pelas ruínas das aldeias precedentes, é realmente
imperceptível; a arqueologia mostra nas camadas deixadas pelas
ruínas sucessivas a permanência da ocupação a partir do Neolítico.
A civilização é caracterizada por um esquema funcional e não por

172
caracteres morfológicos nítidos desde a sua origem. Este esquema
corresponde a um grupo de aldeias ligadas organicamente a uma
aglomeração desempenhando a função de capital. Um dispositivo
destes pressupõe uma hierarquização social afirmada, o bloquea-
mento da autoridade e do capital do grão entre a mão de uma elite
constituída pelo poder simultaneamente militar e religioso. O facto
mais importante do ponto de vista tecnoeconómico é a entrada em
cena do artesão, porque neste repousa toda a evolução técnica.
A civilização repousa no artesão e a situação deste no dispositi-
vo funcional corresponde a factos que a etnologia ainda só muito
incompletamente definiu. A sua função, entre as funções funda-
mentais, é a que menos se presta às valorizações honoríficas. Atra-
vés de toda a história e em todos os povos, mesmo quando a sua
acção se integra intimamente no sistema religioso, ele figura nos
bastidores. Em relação à «santidade» do padre, ao «heroísmo» do
guerreiro, à «coragem» do caçador, ao «prestígio» do orador, à
«nobreza» dos próprios trabalhos rurais, a sua acção é simplesmen-
te «hábil». É ele quem materializa o que de mais antropiano existe
no homem, mas da sua história desprende-se o sentimento de que
ele representa apenas um dos pólos, o das mãos, nos antípodas da
meditação. Na origem da discriminação que fazemos ainda entre «o
intelectual» e «o técnico» encontra-se a hierarquia estabelecida en-
tre os antropianos, entre acção técnica e linguagem, entre a obra
ligada ao mais real da realidade e àquela que se apoia nos símbolos.
De facto, nas sociedades agrícolas, a fortuna e a posse monetária
estabelecem muito cedo uma escala paralela à das funções do pa-
dre, do chefe, do fabricante e do agricultor, mas mesmo hoje, em
que a divinização da invenção provoca o culto das técnicas, o mili-
tar veiculado num foguetão é heroicizado, enquanto o engenheiro
que o concebeu é apenas um grande servidor da ciência humana,
uma mão. É indispensável compreender o valor profundamente bio-
lógico de temas sociais tão banais para que a nossa curva ascensio-
nal não seja considerada um simples acidente do acaso ou um jogo
de uma misteriosa predestinação, porque o acaso actua num sentido
constante, desde as origens, e o mistério está no todo evolutivo e
não nas suas partes.
É também como um todo que se constitui o dispositivo inicial
da civilização. O sedentarismo resultante dos stocks agrícolas ori-
gina a formação de sociedades hierarquizadas e a concentração de
riquezas e do duplo poder religioso e militar nas capitais. Os chefes
e a sua capital são organicamente a «cabeça» do corpo étnico, por
uma imagem etimológica que traduz uma constituição na qual a
organização das funções representadas por grupos sociais hierarqui-
zados se substituíram à hierarquização infra-individual dessas fun-
ções no grupo primitivo. O dispositivo social deve a sua constitui-
ção em macrorganismos às mesmas fontes de todas as sociedades
vivas, dos corais à abelha; o organismo humano individual é tam-

173
bém ele construído segundo o mesmo plano, agregado de células
especializadas, reunidas em órgãos assegurando os diferentes secto-
res da economia vital. Por conseguinte, é normal que, quando eles
afectam uma forma complexa de agrupamento, os indivíduos civili-
zados têm tendência para cada vez mais tomarem a aparência de um
corpo cujas partes estão também cada vez mais presas ao conjunto.
O que caracteriza sempre o corpo social é que, se vai buscar as vias
da evolução à sua forma, dela escapa no ritmo do seu desenvolvi-
mento. De facto, o vértice da pirâmide pouco evolui: desde a fun-
dação das primeiras cidades mesopotâmicas, os progressos do pen-
samento religioso e filosófico são sensíveis, mas poderemos afirmar
que alguém pense (no sentido restrito) mais profundamente do que
Platão? Parece que muito cedo o homo sapiens goza plenamente das
suas possibilidades psíquicas para tentar aprofundar o imaterial e
que já nada mais lhe resta senão esperar que a deriva da evolução o
' conduza lentamente para perspectivas mais claras. Se o progresso
intelectual existe, é biologicamente ainda insensível e incide mais
sobre o alargamento dos meios e dos campos de especulação do que
sobre as possibilidades psicofisiológicas da sua penetração.
É inútil, inversamente, insistir sobre a libertação das técnicas
em relação ao ritmo de evolução biológica. Constituindo o orga-
nismo agrícola, a humanidade entra num processo de evolução ver-
tical que conduz directamente aos dias presentes. Num esquema
funcional muito simples (chefe, capital, poder monetário, fabrican-
tes, produtores rurais), as instituições sociais operam uma concilia-
ção abastardada entre o estado de princípio de uma ordem social
harmoniosa e o estado de facto largamente comandado pelos impe-
rativos tecnoeconómicos. As técnicas, destacadas do corpo do
homem desde o primeiro chopper do primeiro australantropo, imi-
tam numa cadência vertiginosa o desenrolar dos milhões de séculos
de evolução geológica, ao ponto de fabricarem sistemas nervosos
artificiais e pensamentos electrónicos. A fundação das primeiras
cidades e o nascimento do mundo civilizado marcam, por conse-
guinte, o ponto em que se inicia, de forma imperativa, o diálogo
entre o homem físico, tributário da mesma corrente dos dinossau-
ros, e a técnica, nascida do seu pensamento mas libertada do laço
genético.

A ascensão prometiana

O único domínio directamente em causa no desenvolvimento


das sociedades civilizadas é a metalurgia, mas a metalurgia seria
incompreensível se não a reintegrássemos no conjunto das artes do
fogo (cerâmica, vidraria, corantes, cal e gesso), que formam um
feixe indissociável. O erro, em matéria de invenção, seria acreditar
no facto único, genial, que retira do nado um corpo isolado. Uma

174
certa densidade é necessária para que o génio individual se exerça
sobre a matéria: foi num corpo de técnicas mobilizando durante
séculos indivíduos muito numerosos que a metalurgia pôde nascer.
A domesticação do fogo não é datável; apenas se sabe que os sinan-
tropos o mantinham e que os paleantropos o possuíam. A primeira
aplicação técnica que se conhece dele, exceptuando os usos culiná-
rios, remonta à aurora do Paleolítico Superior, cerca de 35 000
a.C. Desde esta época que há testemunho da calcinação dos ocres
ferruginosos, para deles obter diferentes tonalidades escalonadas
entre o amarelo-alaranjado e o vermelho-violeta. O tratamento dos
corantes ferruginosos pelo fogo preludia de muito longe as outras
aplicações, pois que nenhum documento permite pensar na aplica-
ção prática do cozimento das argilas, que, contudo, se produzia
acidentalmente nas lareiras dos habitantes das cavernas. É apenas
cerca de 6000, no Iraque, que estatuetas modeladas e fornos, mode-
lados em argila, parecem ter sido acidental mas frequentemente
cozidos e é só cerca de 5000 que a cerâmica propriamente dita
aparece e se espalha pelas primeiras sociedades agrícolas. Pela
mesma época o gesso faz a sua primeira aparição e, da Mesopotâ-
mia ao Mediterrâneo, a redução do sulfato de cal a gesso, pelo
fogo, fornece revestimentos do solo e das paredes.
Cerâmica e fabrico do gesso indicam um domínio já experimen-
tado das temperaturas entre quinhentos e setecentos graus e a possi-
bilidade de ultrapassar os mil para partes muito restritas e conve-
nientemente arejadas da lareira. Por conseguinte, podemos conside-
rar que, cerca de 4000 a . C , inúmeros oleiros ou caleiros manipu-
lam um fogo que progressivamente se encaminha para as qualida-
des requeridas para a redução dos óxidos metálicos a metal. A ma-
nipulação da cal tirada de calcários apropriados corresponde, por
acréscimo, à presença possível na lareira de um elemento químico
redutor, adequado a baixar o ponto de fusão do minério. O meio
favorável à aparição da metalurgia está, pelo menos virtualmente,
assegurado.
Temperatura e elemento redutor constituem dois dos três termos
da equação metalúrgica. O terceiro, o minério, também não está
ausente porque entre os corantes, além do ocre ferruginoso cuja
redução oferece dificuldades, aparece a malaquite, de alto teor em
cobre. Utilizada verosimilmente na maquilhagem, é comum no
Egipto, e se ainda nada conhecemos de concreto sobre a descoberta
da redução do cobre, sabemos, no entanto, que entre 5000 e 3000
os elementos para o obter estão reunidos, que depois de 3000 o
cobre se tornou vulgar, do Egipto à Mesopotâmia, e que em 2000,
no momento em que o ferro nasceu, o bronze ou o cobre se esten-
deram como mancha de óleo do Atlântico à China.
A coincidência da primeira metalurgia com as primeiras cidades
é mais do que um facto do acaso; é a afirmação de uma fórmula
tecnoeconómica, que contém já todas as consequências da história

175
das grandes civilizações. Tomada em elementos separados, a civili-
zação é incompreensível; considerá-la como a evolução de uma
ideologia religiosa ou política é realmente inverter o problema, ver
nele apenas o jogo de contingências tecnoeconómicas seria, aliás,
igualmente inexacto, porque se estabelece um ciclo entre o vértice e
a base: a ideologia escoa-se, de algum modo, para os moldes tec-
noeconómicos, a fim de lhes orientar o desenvolvimento, exacta-
mente como nos capítulos precedentes se viu que o sistema nervoso
se escoava para a forma corporal. Mas, ao nível em que se situa o
presente capítulo, parece que a base tecnoeconómica é elemento
fundamental. Poderemos, portanto, investigar como se verte a cor-
rente ideológica na qual o indivíduo tenta escapar ao domínio do
dispositivo material que o transforma cada vez mais em célula des-
personalizada, mas só se conseguiria apreender a epiderme se, pre-
viamente, se não desse do esqueleto e dos músculos da sociedade
uma imagem real. Os povos que conservaram a recordação deste
primeiro período das sociedades modernas tiveram consciência do
carácter ambíguo do organismo nascente, e não é sem motivo que o
mito prometiano reflecte simultaneamente uma vitória sobre os
deuses e um encadeamento e que a Bíblia, no Génesis, conta o
assassínio de Abel pelo agricultor Caim, construtor da primeira ci-
dade e antepassado do seu duplo Tubalcaim, primeiro metalúrgico.
O técnico é, por conseguinte, o mestre da civilização, porque é
o mestre das artes do fogo. É da lareira (que alguns séculos de
cerâmica lhe ensinaram a manipular) que sai o gesso e, logo a se-
guir, o cobre e o bronze. São as escórias e as lascas, resíduos da
elaboração metalúrgica, que suscitam o vidro. Porém, o artesão é
um demiurgo escravizado. Vimos antes que a sua posição no dispo-
sitivo tecnoeconómico é uma posição de subordinação: ele forja as
armas que os chefes usam, ele funde as jóias que as mulheres da-
queles põem, ele martela a baixela dos Deuses, Vulcano todo-pode-
roso, coxo e ridicularizado. É ele quem, ao longo de cinquenta
séculos, sem que os níveis ideológicos tenham realmente evoluído,
põe entre as mãos dos homens «capitais» os meios de realizarem o
triunfo do mundo do artificial sobre o da natureza. A atmosfera de
maldição em que, na maioria das civilizações, se inicia a história
do artesão do fogo é somente o reflexo de uma frustração intuiti-
vamente compreendida desde a origem.

A cidade

Cerca de 2000 anos a . C , do Egipto à Turquia, ao Indo, à Chi-


na, ao contorno norte do Mediterrâneo, existem cidades que valori-
zam o primeiro grande desenvolvimento da civilização. A sua estru-
tura é singularmente uniforme, mas tal não surpreende, pois que já

177
vimos que a cidade é somente o elemento expressivo do novo dis-
positivo funcional adoptado pela colectividade humana.
Em todas as épocas, e tanto na América como na Europa não
mediterrânica, ou na África Negra, sempre que o grupo, tendo
atingido o limiar agrícola, ultrapassa o limiar metalúrgico, toma
forma o mesmo dispositivo funcional. A cidade é a peça central.
Está encerrada na sua muralha defensiva, centralizada nas reservas
de cereais e no capital. As células que a animam são o rei ou o seu
delegado, os dignatários militares e os padres, servidos por um
povo de criados e escravos. Os artesãos formam no interior do dis-
positivo urbano uma série de células geralmente endógamas: a sua
sorte está ligada à das classes dirigentes, a sua condição, na sua
quase totalidade, não é exactamente a dos escravos, nem exactamen-
te a dos homens revestidos de toda a dignidade inerente a esta con-
dição. A cidade e os seus órgãos são articulados com os campos, de
onde retiram a sua matéria nutritiva e cuja coesão asseguram, atra-
vés de uma rede de intendentes, intermediários entre o rei e um
campesinato geralmente escravizado (gravura 76). Bastante rapi-
damente, um elemento social suplementar, o comerciante, indígena
ou mais vulgarmente estrangeiro, vem, com a aparição da moeda,
complicar o dispositivo fundamental sem lhe trazer modificações
estruturais profundas.
A evolução, desde o desenvolvimento das primeiras economias
agrárias, faz-se pois no sentido de uma sobressedentarização, em
consequência da formação de um capitalismo que é a consequência
directa da imobilização em torno das reservas de cereais. A imobi-
lização resulta na formação de um dispositivo defensivo que inevi-
tavelmente provoca a hierarquização social. Esta hierarquização
opera-se em bases normais, pois que, como um organismo vivo, o
dispositivo social possui uma cabeça em que se elabora a ideologia
do grupo, braços que lhe forjam os meios de acção e um vasto
sistema de aquisição e de consumo que satisfaz a manutenção e o
crescimento do grupo.

O desenvolvimento do organismo urbanizado (civilizado, no


sentido etimológico) arrasta inevitavelmente consigo tudo o que
existe de negativo nas sociedades actuais. De facto, só pode ser
eficaz na medida em que acentua a segregação social, forma que
toma neste organismo artificial a especialização celular dos seres
animados do mundo natural: proprietários, camponeses e prisionei-
ros fornecem uma gama tanto mais eficaz quão grande for a distân-
cia entre as suas funções. Ao nível das sociedades agrícolas, a in-
justiça social é a imagem negativa do triunfo sobre o meio natural.
A polarização dos especialistas na muralha defensiva da capital
é outro aspecto particular do dispositivo civilizado. O artesão, já
vimos, é consumidor de excesso alimentar, luxo inacessível às so-
ciedades primitivas, empréstimo feito pelo grupo sobre o seu capi-

178
tal, com vistas a meios de acção aumentados no futuro; a sua exis-
tência só é possível graças ao sobreequipamento da classe dominan-
te. Até agora este facto conserva toda a sua realidade e o presente
continua a mostrar que a investigação técnica é um luxo, que é
fruto de civilizações que, sob formas políticas opostas, dispõem de
um excesso de capital considerável e que se trata de uma operação
que visa ao sobreequipamento técnico de uma fracção dirigente da
colectividade. O artesão é, desde a origem, antes de mais, um fa-
bricante de armas, é também um joalheiro e só secundariamente um
fabricante de utensílios. Muito cedo o carpinteiro e o pedreiro,
construtores de palácios, dispuseram de utensílios metálicos, na
medida em que também eles estão ligados ao sobreequipamento do
grupo capital, mas é somente na idade do ferro, quando um minério
que existe em toda a parte permite o desenvolvimento de uma pe-
quena metalurgia rural, que o camponês substitui a charrua de ma-
deira por uma charrua metálica.
Talvez compreendamos melhor agora o que há de coerente nas
formas sociais de uma humanidade que mal cessou de ser a nossa e
como, desde a origem, o dispositivo tecnoeconómico agrícola con-
tém todos os elementos do progresso técnico e das dificuldades so-
ciais. O quadro não estaria completo se não se sublinhasse que o
desenvolvimento das primeiras cidades não corresponde somente à
aparição do técnico do fogo, mas que a escrita nasce ao mesmo
tempo que a metalurgia. Também aqui não se trata de uma coinci-
dência fortuita, mas de um carácter coerente. As primeiras socieda-
des sapienses, no Paleolítico Superior, manifestaram-se não só pelo
desenvolvimento extraordinário das suas técnicas em relação à dos
paleantropianos, mas também pela elaboração das primeiras nota-
ções gráficas. As sociedades agrícolas, logo que saem do período
de transição para revestirem a sua estrutura real, forjam-se em ins-
trumento de expressão simbólica à medida das suas necessidades.
Este instrumento, sabemo-lo através de inúmeros testemunhos, nas-
ceu como um utensílio de contabilidade e tornou-se rapidamente no
utensílio da memória histórica. Por outras palavras, é no momento
em que se começa a estabelecer o capitalismo agrário que surge o
meio de o fixar numa contabilidade escrita e é também no momento
em que se afirma a hierarquização social que a escrita constrói as
suas primeiras genealogias. Este aspecto gráfico do desenvolvimen-
to da memória humana será objecto do próximo capítulo.

Grescimento da cidade

Até ao fim do século XIII, o dispositivo tecnoeconómico nada


se modificou em relação ao da Antiguidade. Rodeada pelos cam-
pos, donde tira a substância nutritiva, articulada com o seu meio
rural e com o mundo longínquo através dos mercados e feiras «ex-

180
tramuros », a cidade encerra nas suas muralhas, em torno do núcleo
religioso e administrativo, os mercadores e os artesãos, num dispo-
sitivo em que os limites topográficos são tanto mais rigorosos quan-
to o espaço obriga a ombrearem-se indivíduos pertencentes a gru-
pos sociais muito diferentes. É na Europa que se inicia a evolução
para uma fórmula tecnoeconómica nova. Desde a Idade Média, nos
países de grande civilização da Ásia como da Europa, a especiali-
zação dos artesãos do fogo provocou, fora do dispositivo urbano, a
formação de centros metalúrgicos, cerâmicos ou vidreiros que mar-
cam a passagem do artesanato às estruturas pré-industriais. Se a
cerâmica conservou um carácter artesanal local, o mesmo não su-
cedeu com a metalurgia, cujas necessidades crescentes provocaram,
em pontos geográficos em que estava assegurada a coincidência do
combustível e do minério, uma concentração de especialistas que
prefigura uma forma nova de agrupamento: a cidade industrial
(gravura 81).
E muito difícil falar de factos que tocam tão de perto a história
contemporânea sem cair na banalidade: evocar a descentralização
metalúrgica, a formação de cidades que perderam todo o carácter
tradicional e que apenas são, em volta da fábrica, «aglomerados»
de trabalhadores reveste-se, contudo, de tanta importância e inte-
resse como o sublinhar o carácter proeminente da especialização
técnica no casal primitivo ou a coerência fundamental dos agricul-
tores e dos pastores na passagem à economia agrária. É tanto mais
importante quanto a revolução industrial foi nas sociedades agríco-
las a única transformação maior que se produziu em cinco milénios.
Tal consideração implica tratar-se de um facto cujas repercussões
em todo o edifício social são de importância comparável às da pas-
sagem à economia agrária. De facto, a descentralização metalúrgica
e a criação de unidades urbanas nas bacias hulhíferas e siderúrgicas
comandam a completa revisão de todo o edifício social, em menos
de um século, incluindo as estruturas religiosas. Se é banal fazer-se
alusão às convulsões determinadas pela revolução industrial, é ne-
cessário mostrar que essas convulsões não estão em contradição
mas em harmonia com o desenvolvimento funcional de um orga-
nismo sociotécnico artificial, a que imprimimos cada vez mais pro-
priedades que são como que o reflexo da organização viva. Tam-
bém não é inútil sublinhar que o problema agrário e o problema
metalúrgico surgiram desde 3000 anos a. C. e já em termos de
crises. Enquanto as sociedades agrícolas conservarem a sua estrutu-
ra inicial, o artesanato e depois a indústria continuarão a ser os
motores potentes e um pouco maléficos da evolução material, ao
serviço de uma sociedade que cada vez mais enquadra homens que
permanecem zoologicamente escravizados à sua natureza.

182
O ponto actual

A fórmula tecnoeconómica, no decurso destes últimos séculos,


mudou de escala sem modificar os seus termos. A minúscula cidade
próximo-oriental do segundo milénio, com os seus chefes, seus
funcionários, seu grupo artesanal, o seu mercado, o seu campo,
seus rebanhos, suas guerrazinhas, suas pilhagens e suas classes ti-
ranizadas que traziam o acréscimo indispensável ao desenvolvimen-
to de um dispositivo cuja cabeça, e só ela, marcava o nível atingido
pela sociedade; esta sociedade da Alta Antiguidade é, sem modifi-
cações, transponível para qualquer um dos grandes estados euro-
peus do século XIX, com esta diferença que o raio de acção se
estendeu de um hemisfério a outro, que o aparelho colonial forne-
cedor dos acréscimos substituiu a escravização dos camponeses
para lá da periferia. Em Milieu et Techniques mostrei a coerênci
abiológica do sistema «civilizado-bárbaro-selvagem» e o facto de
que o progresso material da humanidade permaneceu ligado até aos
nossos dias a este sistema. Este, como todo o organismo vivo,
comporta elementos aparentemente privilegiados e massas obscuras
cuja função, ao preço de um desperdício enorme, é fornecer a pe-
quena reserva de impulsos que permitem a passagem a uma fase
seguinte. Esta verdade biológica traduz-se no plano social em ter-
mos de justiça e de injustiça, o que de modo algum concorre para
dar solução a um problema de origem estritamente orgânica.
Em que medida esta fórmula inicial continua válida? Para que
desapareçam as limitações negativas nascidas do dispositivo tecno-
económico agrícola-metalúrgico, seria preciso que o homo sapiens
franqueasse uma nova fase biológica que o habilitariam talvez a
dominar a sua agressividade, sobre a qual repousam, muito mais do
que no progresso, os valores de justiça ou de injustiça. A diminui-
ção do potencial agressivo em correlação com o instinto de aquisi-
ção traduzir-se-ia, aliás, por uma diminuição equivalente da neces-
sidade de criar e, finalmente, do gosto de viver, porque o espírito
de criação e o de destruição não passam das duas faces, a brilhante
e a obscura, do mesmo fenómeno; contudo, aquilo que pode um dia
ser rompido é o círculo no qual a sociedade se encerrou quando o
homem se tornou na sua própria e quase única caça. Talvez fosse
necessário que a agricultura e a metalurgia dessem lugar a um outro
dispositivo tecnoeconómico, dispositivo cuja natureza, actualmen-
te, nem mesmo é concebível, dado que a alimentação humana con-
tinua baseada no vegetal e no animal e que o metal ainda é actual-
mente o primeiro servidor do progresso. A ideologia socialista há
mais de um século que se dedicou ao problema sem lhe esgotar as
incidências, particularmente interessantes quando se reconstitui a
perspectiva geral da evolução. De facto, desde o Paleolítico Supe-
rior mas, sobretudo, depois da agricultura, o mundo dos símbolos

184
(religiosos, estéticos ou sociais) sempre prevaleceu hierarquicamen-
te sobre o mundo das técnicas e a pirâmide social edificou-se de
maneira ambígua, dando proeminência às funções simbólicas sobre
a tecnologia, no entanto motor de todo o progresso. A ideologia
socialista tenta resolver este problema biológico subordinando a
sociedade à técnica, isto é, concedendo, à primeira vista, o triunfo
à mão.
Trata-se, na realidade, de uma saída ou isto não é senão um
impasse? A uniformidade de comportamento dos estados marxistas
como dos estados capitalistas, nesta via, dá em todo o caso a certe-
za da evolução para uma fórmula nova. Podemos interrogar-nos se
se trata realmente da evolução para um novo equilíbrio, no qual
todos os valores reencontrariam o lugar que lhes pertence na fórmu-
la antropiana (sendo o vértice, de facto, no cérebro e a base na
mão) ou se é somente a ruptura, pelo organismo artificial onde a
civilização se desenvolveu, do equilíbrio para que o homem é fisi-
camente constituído. Nesse caso, a fórmula banal e corrente do
«homem ultrapassado pelas suas técnicas» adquiria o seu estrito
valor.
É difícil, mesmo através dos teorizadores de uma e outra ideo-
logia, fazer-se uma ideia de um equilíbrio que consistiria em aumen-
tar indefinidamente o conforto material de indivíduos indefinida-
mente mais numerosos. As relações entre produção, consumo e
matéria deixam prever que o homem consome cada vez melhor,
mas de maneira irremediável, a sua própria substância, isto é, aqui-
lo que lhe vem do meio natural.
No estado presente, apesar dos esforços sociais e da descoloni-
zação, o grupo já planetarizado não tem uma forma diferente da
que ofereciam as pequenas sociedades mesopotâmicas de há quatro
mil anos, isto é (seja qual for a fórmula política), que uma estrita
hierarquização social hereditária ou selectiva condiciona os indiví-
duos a funções cada vez mais determinadas, que a economia mun-
dial repousa sempre na base de uma exploração do animal e do
vegetal, sem que enormes convulsões se tenham produzido, excep-
to à escala dos meios técnicos, que a indústria, herdeira do artesa-
nato primordial, ainda que tenha mudado de combustíveis, continua
a repousar no metal.

Em conclusão, o prodigioso triunfo do homem sobre a matéria


fez-se ao preço de uma verdadeira substituição. Ao equilíbrio zoo-
lógico vimos, no decurso da evolução dos antropianos, substituir-se
um equilíbrio novo, perceptível, desde os princípios do homo sa-
piens, no Paleolítico Superior. O grupo étnico, a «nação», substitui
a espécie e o homem, que permanece em corpo um mamífero nor-
mal e se desdobra num organismo colectivo de possibilidades prati-
camente ilimitadas em acumular inovações. A sua economia conti-
nua a ser a de um Mamífero altamente predador, mesmo depois da

185
passagem à agricultura e à criação de gado. A partir deste ponto, o
organismo colectivo torna-se preponderante de uma maneira cada
vez mais imperativa e o homem transforma-se no instrumento de
uma ascensão tecnoeconómica para que concorre com as suas idéias
e os seus braços. Assim, a sociedade humana torna-se na principal
consumidora de homens, sob todas as formas, ou pela violência ou
pelo trabalho. O homem ganha em assegurar progressivamente uma
tomada de posse do mundo natural, que deve, se projectarmos no
futuro os termos tecnoeconómicos da actualidade, terminar por uma
vitória total, esgotado o último poço de petróleo a fim de cozinhar
o último punhado de ervas, comidas com o último rato. Tal pers-
pectiva é menos uma utopia do que a verificação das propriedades
singulares da economia humana, economia sobre a qual nada deixa
transparecer, ainda que o homem zoológico, isto é, inteligente,
tenha um real controlo. Pelo menos já vimos que, em cerca de vinte
anos, o ideal de consumo foi atingido por uma certa desconfiança
na infalibilidade do determinismo tecnoeconómico.

186
Capítulo VI

OS SÍMBOLOS DA LINGUAGEM

No capítulo anterior considerei o desenvolvimento da organiza-


ção tecnoeconómica e a constituição de um dispositivo social inti-
mamente ligado à evolução das técnicas. Neste capítulo queria con-
siderar a evolução de um facto que surge com o homo sapiens no
desenvolvimento dos antropídeos; a aptidão para fixar o pensamen-
to através de símbolos materiais. Com efeito, se a arte figurativa e
a escrita foram já objecto de inúmeros estudos, as relações de inter-
ligação dos dois domínios são geralmente mal definidas e parece
que seria proveitosa a sua pesquisa numa perspectiva geral.
Na .terceira parte, os ritmos e valores serão considerados nos
seus aspectos estéticos, mas por agora (depois de longo desenvol-
vimento no qual a materialidade do homem foi a preocupação es-
sencial) não é inútil considerar por que vias materiais se construiu,
lentamente, o sistema que assegura à sociedade a conservação per-
manente dos produtos do pensamento individual e colectivo.

O aparecimento do grafismo

Os primeiros testemunhos de grafismo põem-nos em presença


de um facto muito importante. Vimos nos capítulos II e III que a
técnica com dois pólos de muitos vertebrados abrangia nos antropí-
deos a formação de dois conjuntos funcionais (mão-utensílio e ros-
to-linguagem), fazendo intervir primeiro a motricidade da mão e da
cara na transformação do pensamento em instrumento de acção
material e depois em símbolos sonoros. O aparecimento do símbolo
gráfico no final dos paleantropos pressupõe o estabelecimento de
relações novas entre os dois pólos operacionais, relações essas ex-

187
clusivamente características da humanidade, no sentido restrito do
termo, isto é, como reflexo de um pensamento simbolizador na
medida em que nós o possuímos. Nestas novas relações, a visão
ocupa um lugar predominante nos conjuntos cara-leitura e mão-gra-
fia. Elas são exclusivamente humanas, pois mesmo dizendo que o
rigor do utensílio é conhecido em vários exemplos animais e da
linguagem que ela apenas desvia sinais vocais do mundo animal,
até ao aparecimento do homo sapiens, não existe nada comparável
com o traçado e a leitura dos símbolos. Portanto, podemos dizer
que se, na técnica e na linguagem da totalidade dos antropídeos, a
motricidade condiciona a expressão, na linguagem figurada dos an-
tropídeos mais recentes a reflexão determina o grafismo.
Os vestígios mais antigos remontam ao fim do Musteriense e
tornam-se abundantes no ano 35 000 a . C , no período de Chatel-
perron. Surgem ao mesmo tempo que os corantes (ocre e mangané-
sio) e os objectos de adorno. São linhas de cúpulas ou séries de
traços gravados em osso ou em pedra, pequenas incisões equidis-
tantes que testemunham o começo da figuração (afastado do concre-
tamente figurativo) e as provas de manifestações rítmicas mais an-
tigas. Nenhum sentido preciso se pode apreender nestes modestos
testemunhos (figura 82). Neles se pensou ver «marcas de caça»,
uma espécie de contabilidade, mas nenhuma prova substancial, no
passado ou no presente, fundamenta razoavelmente uma tal hipóte-
se. As únicas aproximações que podemos fazer são talvez com as
«churinga» australianas, que são pequenas placas de pedra ou de
osso gravado com motivos abstractos (espirais, linhas rectas e gru-
pos de pontos), figurando o corpo do antepassado mítico ou os lo-
cais onde se desenvolvia o seu mito (figura 83). Dois aspectos da
«churinga» parecem susceptíveis de nos guiar na interpretação das
«marcas de caça» paleolíticas: em primeiro lugar, o carácter abs-
tracto da representação que, como vamos ver, está igualmente pre-
sente na mais antiga arte conhecida, e, seguidamente o facto de o
«churinga» concretizar a recitação de encantamento (de que é o
suporte) e onde o celebrante, com a ponta do dedo, segue as figuras
ao ritmo da sua declamação. Assim, a «churinga» mobiliza as duas
fontes de expressão, as da motricidade verbal, ritmada, e a de um
grafismo arrastado no mesmo processo dinâmico. Dizer que as sé-
ries de incisões do Paleolítico Superior são assimiláveis à da «chu-
ringa», não está no meu pensamento, mas creio, pelas interpreta-
ções possíveis, que se pode pôr a hipótese de um dispositivo rítmi-
co com um carácter de encantamento ou declamatório.

Temos agora a certeza de que o grafismo começa não por uma


representação inocente do real, mas sim do abstracto. A descoberta
da arte pré-histórica, no fim do século XIX, fez surgir do estádio
«ingénuo» na arte, em que seria representado o que se via por uma
espécie de repouso estético. Rapidamente nos apercebemos, desde

189
o começo do século, que esta ideia era falsa e que era necessário
atribuir preocupação de caracter mágico-religioso à arte figurativa
do Quaternário (aliás como à dos homens, salvo excepções limita-
das aos estados de elevada maturidade cultural). No entanto, só
recentemente nos apercebemos de que os documentos magdalenen-
ses, nos quais se fundamentava a idéia do realismo paleolítico, re-
presentavam já um estádio tardio da arte figurativa, pois que se
escalonam entre 11 000 e 8000 a . C , enquanto o verdadeiro come-
ço se situa para além de 30 000 a.C. Particularmente interessante é
o facto de o grafismo não ter começado por uma expressão «servil»
e fotográfica do real, mas organizando-se, numa dezena de mil
anos, a partir de sinais que parecem ter exprimido primeiramente os
ritmos e não as formas. Com efeito, é apenas aproximadamente em
30 000 a.C. que aparecem as primeiras formas (gravuras 84 a 87),
limitadas a figuras estereotipadas, ou simplesmente alguns porme-
nores convencionais para a identificação do animal. Estas conside-
rações permitem fazer sobressair que a arte figurativa está, na sua
origem, directamente ligada à linguagem e muito mais próxima da
escrita no sentido lato do que a obra de arte. É a transposição sim-
bólica e não o decalque da realidade, isto é, existe uma distância
tão grande entre o traçado onde admitimos ver um bisonte e o bi-
sonte propriamente dito como entre a palavra e o utensílio. Para o
símbolo como para a palavra, o abstracto corresponde a uma adap-
tação progressiva do dispositivo motor de expressão a solicitações
cerebrais cada vez mais precisas. De tal modo que as figuras mais
antigas que se conhecem não representam cenas de caça, animais a
morrer ou cenas de família. São símbolos gráficos sem ligação des-
critiva, suporte de um contexto oral irremediavelmente perdido.
O facto de os documentos de arte pré-histórica serem muito
numerosos e de começarmos a poder tratar estatisticamente um con-
junto, cuja ordenação cronológica está definida em grandes linhas,
permite esclarecer, senão decifrar, o sentido geral das representa-
ções. Com muitas variantes, a arte pré-histórica gira em volta de
um tema provavelmente mitológico, onde se defrontam comple-
mentarmente imagens de animais e representações de homens e
mulheres. Os animais parecem corresponder a um par, opondo o
bisonte ao cavalo, e os seres humanos são representados por símbo-
los que são a figuração abstracta das características sexuais (gravu-
ra 91).
É muito importante ter podido determinar o valor do conteúdo
para poder compreender a ligação que une a abstracção e os primei-
ros símbolos gráficos.

O primeiro desenvolvimento do grafismo

As séries rítmicas de traços ou de pontos mantiveram-se até ao


fim do Paleolítico Superior. Paralelamente, a partir do Aurignacen-
se, aproximadamente em 30 000 a . C , ordenam-se as primeiras
figuras. Até à data, são as obras de arte mais antigas de toda a
história humana e apercebemo-nos com surpresa que o seu conteú-
do implica uma convenção inseparável de conceitos já altamente
organizados pela linguagem. Se o conteúdo é já muito complexo, a
execução é ainda balbuciante: as melhores representações mostram,
sem ordem, a sobreposição de cabeças de animais e de símbolos
sexuais já extremamente estilizados.
Na etapa seguinte, durante o Gravettiense, aproximadamente
em 20 000 a. C, organizam-se figuras já mais elaboradas. Os ani-
mais são simbolizados pela sua linha cervico-dorsal, à qual se jun-
tam os pormenores característicos da espécie (chifres de bisonte,
tromba de mamute, crina de cavalo, etc). O conteúdo dos conjun-
tos de figuras é o mesmo que o precedente, simplesmente a sua
expressão aperfeiçoou-se. No Solutrense, aproximadamente em
15 000 a. C, a técnica de gravação ou de pintura está na posse de
todas as fontes necessárias, as quais não são diferentes das do gra-
vador ou do pintor actual. O sentido das figuras não mudou e as
paredes ou placas decoradas apresentam inumeráveis variantes do
tema dos dois animais, da mulher e do homem. Produziu-se uma
curiosa evolução: as representações humanas parecem ter perdido

191
todo o carácter realista e ter-se orientado para triângulos, quadrilá-
teros, linhas de pontos ou traços de que, por exemplo, as paredes
de Lascaux estão cobertas.

Pelo contrário, os animais encaminham-se pouco a pouco para o


realismo das formas e do movimento. No entanto, estão ainda lon-
ge do Solutrense, apesar de tudo o que possa ter sido dito a respeito
do realismo dos animais de Lascaux. Domínio técnico e conteúdo
mitológico correspondem exactamente ao carácter das figuras da
«idade média paleolítica». Portanto, não podemos comparar estes
conjuntos aos frescos das basílicas ou à pintura de cavalete. São na
realidade «mitogramas», alto que se aparenta mais à ideografia do
que à pictografia, mais à pictografia do que à arte descritiva.

O Magdalenense, entre 11 000 e 8000 a. C, no momento dos


grandes conjuntos de Altamaria ou de Niaux, mostra, no que diz
respeito às figuras humanas, quer uma penetração ainda mais pro-
funda no ideograma quer, pelo contrário, um retrocesso categórico
no sentido da representação realista dos homens e das mulheres.

Os animais são incluídos numa corrente em que a habilidade


conduzirá, pouco a pouco, as figuras ao academismo das formas (é
o momento de Altamira), em seguida um pouco antes do fim, ao
realismo próximo das precisões fotográficas, no movimento e na
forma. É esta arte do último período que foi primeiramente conhe-
cida e que fez nascer a ideia do realismo primordial.
A arte paleolítica, pela sua grande expansão e abundância, for-
nece um testemunho insubstituível para a compreensão do que na
realidade é a figuração artística e a escrita: o que surge, a partir do
começo da economia agrícola, como duas vias divergentes, apenas
constitui uma única. É curioso verificar que, de repente, a expres-
são simbólica atinge, desde o Aurignacense, o seu mais alto nível
(gravuras 84 a 87). De certo modo, vimos a arte separar-se da escri-
ta e seguir uma trajectória que, partindo do abstracto, adquire pro-
gressivamente as convenções de formas e de movimento para atin-
gir, no fim da curva evolutiva, o realismo e soçobrar. Este cami-
nho, tantas vezes seguido pelas artes históricas, leva-nos a admitir
que corresponde a uma tendência geral, a um ciclo de maturação
onde o abstracto esteja realmente na base da expressão gráfica. No
capítulo XIV, será evocado o problema do retrocesso das artes para
o abstracto reflectido. Veremos que a procura de uma ritmia pura,
de um não figurativo na arte e poesia modernas, nascida da medita-
ção das obras de arte dos povos primitivos actuais, corresponde a
uma evasão regressiva, a uma fuga para o refúgio das reacções
primordiais, tal como aconteceu no começo.

192
A expansão dos símbolos

Acabamos de ver que a arte figurativa é inseparável da lingua-


gem e que nasceu da formação do conjunto intelectual fonação-gra-
fia. Consequentemente, é evidente que, desde o princípio, fonação
e grafismo têm o mesmo objectivo. Parte da arte figurativa, talvez a
mais importante, designarei aqui, por falta de melhor denominação,
como «picto-ideografia». Quatro mil anos de escrita linear fizeram-
-nos separar a arte da escrita e é necessário um esforço de abstrac-
ção e o conhecimento de todos os trabalhos etnográficos dos últi-
mos cinquenta anos para reconstruirmos em nós uma atitude figura-
tiva que foi e ainda é comum a todos os povos afastados da foneti-
zação e, sobretudo, do linearismo gráfico.
Os linguistas que se dedicaram ao estudo da origem da escrita
consideraram geralmente as pictografias, projectando nelas uma
mentalidade nascida da prática da escrita. É interessante verificar
que as únicas verdadeiras «pictografias» que conhecemos são recen-
tes e que a maior parte delas são de grupos que não possuíam a
escrita, mas apenas depois do contacto entre esses grupos e viajan-
tes ou colonos originários de países que possuíam a escrita (gravu-
ras 88 a 90). Também parece impossível servir-se da pictografia
dos Esquimós ou dos Índios como termo de comparação para com-
preender a ideografia dos povos anteriores à escrita. Era ainda fre-
quente ligar a origem da escrita aos processos de memorização dos
valores numéricos (incisões regulares, cordas ligadas, etc), apesar
de, na realidade, a linearização alfabética poder ter implicado, des-
de a sua origem, relações com dispositivos de numeração, que eram
forçosamente lineares. O mesmo não acontece no simbolismo figu-
rativo mais antigo. É por este facto que sou levado a considerar a
pictografia como algo distinto de uma forma infantil de escrita.
Ao nível do homem, num processo de análise cada vez mais
preciso, o pensamento reflectido é também abstrair da realidade
símbolos que constituem, paralelamente ao mundo real, o mundo
da linguagem através do qual e assegurada a tomada de consciência
da realidade. Este pensamento reflectido, que se exprimia concre-
tamente pela linguagem vocal e mímica dos antropídeos, provavel-
mente desde a sua origem, adquire no Paleolítico Superior o domí-
nio de representação, permitindo ao homem exprimir-se para além
do presente material. Nos dois pólos do campo operatório consti-
tui-se, a partir das mesmas fontes, duas linguagens: a da audição
que está ligada à evolução dos territórios coordenadores dos sons e
a da visão que está ligada à evolução dos territórios coordenadores
de gestos traduzidos em símbolos materializados graficamente. Isto
explicaria o facto de os mais antigos grafismos conhecidos serem a
expressão pura de valores rítmicos. De qualquer modo, o simbo-

193
lismo gráfico beneficia, relativamente à linguagem fonética, de
uma certa independência: o seu conteúdo exprime, nas três dimen-
sões do espaço, o que a linguagem fonética exprime na dimensão
única do tempo. A conquista adquirida com a escrita foi precisa-
mente a de fazer a expressão gráfica subordinar-se completamente à
expressão fonética, pelo uso do dispositivo linear. No nível em que
nos situamos ainda, a ligação da linguagem com a expressão gráfi-
ca é de coordenação e não de subordinação.
Assim, a imagem possui uma liberdade dimensional que a escri-
ta nunca terá: pode desencadear um processo verbal que terminará
na recitação de um mito, a que a imagem não está directamente
ligada, e cujo contexto desaparece com o recitador. Isto explica a
enorme expansão dos símbolos nos sistemas situados aquém da es-
crita linear. Os mais diversos autores, por ocasião de trabalhos so-
bre a China primitiva, sobre a Austrália, sobre os Índios da Améri-
ca do Norte ou sobre certos povos da África Negra, individualiza-
ram linhas de um pensamento mitológico em que a ordem do mun-
do se integra num sistema de correspondências simbólicas de uma
riqueza extraordinária. Muitos deles sublinharam a existência, nos
povos observados, de ricos sistemas de representação gráfica. Em
todos, salvo nos chineses, cujos documentos só entendemos os cor-
respondentes à passagem à escrita, se verifica a presença de grupos
de figuras coordenadas num sistema estranho à organização linear
e, por consequência, às possibilidades de uma fonetização contí-
nua. De certo modo, existe entre o conteúdo das figuras da arte
paleolítica e o das figuras dos Dogons de África ou pinturas em
madeira dos Australianos, em relação ao dispositivo de representa-
ção linear, a mesma distância que existe entre o mito e a recitação
histórica. Aliás, mitologia e grafismo multidimensional são nor-
malmente coincidentes nas sociedades primitivas e, se eu ousasse
utilizar o rigoroso conteúdo das palavras, seria tentado a equilibrar
a «mito-logia», que é uma construção pluridimensional repousando
no verbal, por uma «mitografia», que é o exacto correspondente
manual do verbal.

A parte mais longa da evolução do homo sapiens desenrolou-se


para formas de pensamento que para nós se tornaram estranhas,
apesar de se manterem subjacentes a uma parte importante do nosso
comportamento. Porque vivemos na prática de uma só linguagem,
cujos sons se inscrevem numa escrita que lhes está associada, difi-
cilmente concebemos a possibilidade de um modo de expressão em
que o pensamento disponha graficamente de uma organização, de
certo modo, resplandecente. Um dos factos mais surpreendentes no
estudo da arte paleolítica é o da organização de figuras nas paredes
das cavernas (gravura 91). O número de espécies animais represen-
tadas é pouco elevado e as suas relações topográficas são constan-
tes: bisonte e cavalo ocupam o centro dos painéis, cabritos-monte-

195
ses e cervídeos enquadram os anteriores, leões e rinocerontes si-
tuam-se na periferia. O mesmo tema pode repetir-se várias vezes na
mesma caverna. Encontram-se idênticas representações, apesar das
variantes, em numerosas cavernas. Trata-se, por consequência, de
uma representação intencional de animais de caça e não de uma
«escrita» ou de «quadros». Para além do conjunto simbólico das
imagens existiu forçosamente um contexto oral com o qual o con-
junto simbólico era coordenado e reproduziu os valores espacial-
mente. (gravuras 92 e 93). O mesmo se encontra quando os Austra-
lianos executam na areia figuras em espiral que exprimem simboli-
camente o desenvolvimento do mito do lagarto ou da formiga do
mel, ou quando os Ainos materializam num bocado de madeira
esculpida a récita mítica do sacrifício do urso (gravura 94).
Um tal modo de representação está ligado, quase por natureza,
ao simbolismo cósmico e a sua evolução será retomada no capítulo
XIII quando se tratar da humanização do tempo e do espaço. Este
modo de representação resistiu à aparição da escrita, sobre a qual
exerceu uma influência considerável nas civilizações em que a ideo-
logia prevaleceu à notação fonética (gravuras 95 a 97). Mantém-se
ainda vivo nas correntes de pensamento nascidas no começo da
expressão escrita linear e, em diferentes religiões, os exemplos de
organização espacial de figuras simbolizando um contexto mitoló-
gico, no sentido preciso dos etnólogos, são muito numerosos (gra-
vura 98). Há ciências em que a linearização da escrita é ainda um
entrave (suplantado nas fórmulas da química orgânica pela utiliza-
ção da equação algébrica-meio de quebrar o problema unidimensio-
nal) como nas figuras em que o fenómeno só intervém como co-
mentário ou onde o conjunto simbólico «fala por si só», como
acontece na expressão publicitária que atinge estados profundos,
infraverbais, do comportamento individual (gravura 99). Assim, se
a arte está intimamente ligada à religião, deve-se ao facto de a
expressão gráfica restituir à linguagem a dimensão do inexprimível,
a possibilidade de multiplicar as dimensões do facto nos símbolos
visuais instantaneamente acessíveis. A ligação fundamental da arte
e da religião é emocional, mas não de uma forma indefinida. Essa
ligação abrange a procura de um modo de expressão que restitua a
verdadeira situação do Homem no cosmos em que se inscreve como
centro e que ele, por agora, não tenta atravessar por raciocínio, em
que as letras fazem do pensamento uma linha penetrante, de longo
alcance, mas fina como uma linha.

A escrita e a linearização dos símbolos

Com precisão, não conhecemos nenhum sistema gráfico assimi-


lável, mesmo aproximadamente, à escrita linear, excepto nos povos
agricultores. Os exemplos clássicos dos Esquimós e dos índios das

197
planícies referem-se a grupos que criaram uma pictografia por con-
taminação com gente possuidora de escrita. Com efeito, o que dis-
tingue fundamentalmente o registo «mitográfico» é a sua estrutura a
duas dimensões, que se afasta da linguagem falada, cuja emissão é
linear. Pelo contrário, as sobrevivências do sistema de figuração
pluridimensional asseguram num grande número de escritas não
alfabéticas a charneira do primeiro sistema de notação. É o que se
verifica no Egipto, na China, nos Maias e nos Astecas. Nas suas
«escritas» poderíamos supor um ponto de partida pictográfico, nas
quais os símbolos figuram objectos concretos, como o boi ou um
homem em movimento, alinhados para corresponder à sequência da
linguagem. Salvo nas enumerações contáveis, na China proto-his-
tórica ou em placas do Próximo Oriente, não se conhece nenhum
testemunho pictográfico que tenha servido de raiz às escritas; e a
passagem faz-se de grupos de figuras mitográficas, simples «pintu-
ras rupestres» ou objectos de adorno, a símbolos lineares já profun-
damente comprometidos na fonetização.
A hipótese pictográfica supõe a partida do nada, a ideia inicial
de alinhar as imagens para as fazer corresponder à sequência da
linguagem. Seria uma hipótese admissível se não existisse ante-
riormente qualquer outro sistema simbólico, mas que pode ser falsa
se aplicarmos a regra do meio favorável e se admitirmos uma pas-
sagem progressiva e não uma ruptura. A emergência da escrita não
se faz a partir do nada gráfico, como a agricultura não existiu sem a
intervenção dos estádios de evolução anteriores. A dada altura o
sistema de representações organizadas de símbolos míticos e o de
uma contabilidade elementar parecem conjugar-se — conjugação
essa variável segundo as regiões do globo — para dar origem aos
sistemas de escrita sumérios ou chineses primitivos, nos quais as
imagens extraídas do repertório figurativo comum sofreram uma
simplificação importante e se ordenam umas a seguir às outras. Não
originam ainda verdadeiros textos, mas permitem uma enumaração
de seres vivos e de objectos. A simplificação das figuras, determi-
nada pelo carácter pouco monumental e provisório dos documentos,
foi a origem do afastamento progressivo do contexto que essas figu-
ras evocavam materialmente. Símbolos com significações extensí-
veis tornaram-se sinais, verdadeiros utensílios ao serviço de uma
memória na qual se introduz o rigor da contabilidade.
A constituição de actos contabilizáveis ou genealógicos escritos
é estranha ao dispositivo social primitivo e é apenas depois da con-
solidação dos organismos agrícolas urbanizados que a complexida-
de social se traduz pela aparição de documentos dignos de crédito
acerca dos homens ou dos deuses. Se nos é fácil conceber uma
contabilidade na qual se alinham números e desenhos simplificados
de animais ou de medidas de cereal, a linearização de sinais picto-
gráficos exprimindo acções e não objectos é difícil de conceber sem
intervenção do fenómeno fonético. Com efeito, o «mitograma» é já
um ideograma, o que podemos dar-nos conta pelo que ainda sobre-
vive no pensamento actual: a justaposição de uma cruz, de uma
lança ou de um junco com uma esponja na ponta é suficiente para
desencadear a ideia da Paixão de Cristo. A imagem é estranha a
qualquer notação oral fonetizada, mas, pelo contrário, é dotada de
uma extensabilidade que a escrita não possui, contém todas as pos-
sibilidades de exteriorização oral desde a palavra «Paixão» até aos
mais vastos comentários sobre a metafísica cristã. Deste modo, a
ideografia é anterior à pictografia e toda a arte paleolítica é ideográ-
fica.

Por outro lado, é fácil conceber um sistema que alinha três tra-
ços para simbolizar um boi, sete para um saco de cereal. Neste caso
a fonetização é espontânea e a leitura inevitável. Provavelmente é a
única forma de pictografia que esteve na origem da escrita. Logo
imediatamente ao seu aparecimento a escrita deve ter confluído

201
com o sistema ideográfico existente. Esta confluência espontânea
explicaria o facto de as antigas escritas do Mediterrâneo, Extremo
Oriente ou da América começarem por notações numéricas ou de
calendário e de nomes de divindades ou individualidades na forma
de figuras agrupadas à maneira de mitogramas sucessivos. As escri-
tas egípcia, chinesa e asteca são conhecidas com filas de mitogra-
mas fonetizados e não na forma de pictogramas alinhados (gravuras
100 a 102). A maior parte dos autores recentes percebeu perfeita-
mente a dificuldade da etapa de transição da pictografia à escrita
fonetizada, mas não parecem ter entendido a ligação que existe en-
tre o antiquíssimo sistema de notação mitográfica, que implica uma
ideografia para além das dimensões orais e uma escrita que parece
fonetizar-se a partir de números e quantidades.

A escrita chinesa

O número de escritas que conduziram a sistemas fonéticos com-


pletamente elaborados é muito restrito, apesar da variedade de es-
critas fonéticas conhecidas. Com efeito, as escritas americanas
morreram antes de se poderem ter desenvolvido para além dos pri-
meiros estádios. A escrita do Indo não deixou descendente conhe-
cida. Uma vez criadas as escritas do Próximo Oriente, não houve
necessidade, salvo excepções, doutras, e as línguas eurasiáticas
passaram directamente às escritas de sílabas, de consoantes e aos
alfabetos. Das civilizações antigas apenas o Egipto e a China de-
senvolveram sistemas ideográficos fonetizados. O Egipto perdeu
progressivamente, a partir do século VII. a. C, uma grande parte
do seu arcaísmo e a China fez chegar até nós o único sistema que
conservou mais do que uma dimensão nos símbolos gráficos.
O sistema chinês combina os dois aspectos opostos da notação
gráfica. É uma escrita no sentido de cada carácter conter os elemen-
tos de seu «fonetismo» e ocupar linearmente, relativamente aos
outros caracteres, uma posição que permite ler oralmente as frases.
No entanto, a referência fonética da palavra é aproximada, isto é,
um ideograma que apenas serve para representar um som, etapa que
as línguas com letras também conheceram. Com mais subtileza, o
chinês corresponde aproximativamente ao estádio do trocadilho grá-
fico ou charada pelos quais lemos «ele veria» nos símbolos ile-ver-
hail. Por muito imperfeito que este utensílio seja, pela multiplici-
dade de sinais, assegurou uma notação fonética de linguagem satis-
fatória. Mas é necessário salientar que apenas a tradição oral pode
assegurar a manutenção do fonetismo e que sem ela os caracteres
chineses seriam para sempre impronunciáveis, mesmo se possuís-
semos o registo da língua falada. A escrita chinesa, no seu papel
fonético, corresponde às regras de uma escrita, pois regista sons
cuja ordem reconstitui a sequência da linguagem.

203
Do ponto de vista linguístico, o chinês é considerado como uma
escrita de palavras em que cada sinal representa não uma letra, mas
um som de uma palavra. A situação é ambígua, pois a palavra chi-
nesa que era polissilábica tornou-se monossilábica no decurso dos
séculos, de que resultou: a) que a escrita literária é praticamente
uma sucessão de palavras-sílabas dificilmente compreensíveis sem
o recurso à leitura visual ou mental dos sinais correspondentes; b)
que a língua falada agrupando monossílabos reconstitui numerosos
dissílabos ou trissílabos que originam que da notação escrita da
língua falada se chegue a uma escrita silábica. Nestes dois aspec-
tos, o chinês mostra bem que a escrita nasceu do complemento de
dois sistemas: o dos «mitogramas» e o da linearização fonética. A
adaptação um pouco forçada e frequentemente trabalhosa do chinês
ao fonetismo e o facto de, finalmente, lhe corresponder relativa-
mente bem preservaram-no numa forma particular de notação mito-
gráfica e não simplesmente de reminiscência de um estado picto-
gráfico.
Com efeito, as mais antigas inscrições chinesas (dos séculos
XI-XIII a. C.) apresentam-se, como as primeiras inscrições egíp-
cias e como os glifos astecas, sob a forma de figuras em pequenos
grupos caracterizando um objecto ou uma acção com um halo que
ultrapassa largamente o sentido restrito que adquiriram as palavras
nas escritas lineares. Transcrever em letras ngan (a paz) e kià (a
família) corresponde a enunciar conceitos reduzidos à sua essência
e que sugerem a ideia destas palavras. Dar a idéia de paz colocando
um mulher sob um telhado dá uma perspectiva «mitográfica» pro-
priamente dita, pois que não corresponde nem à transcrição de um
som nem à representação pictográfica de um acto ou de uma quali-
dade, mas ao agrupamento de duas imagens que jogam com toda a
profundidade do seu contexto étnico. O facto é ainda mais sensível
quando observamos o agrupamento um telhado e um porco figuran-
do a família, num resumo onde toda a estrutura tecnoeconómica do
grupo familiar da China arcaica aparece em pano de fundo.
Assim, poderíamos pensar que pouco distingue esta escrita da
pictografia, se entendermos por pictografia a sucessão de desenhos
figurando acções ou objectos para além do fonetismo. A escrita
chinesa aproximar-se-ia aparentemente dela pelo seu princípio se-
gundo o qual metade do caracter é pictográfico, a outra metade
fonética. Mas isso seria restringir abusivamente o seu sentido e ver
nos caracteres chineses apenas um indicativo de categoria (radical)
ligado a uma partícula fonética. Basta tomar um exemplo actual
como a «lâmpada eléctrica» para nos apercebermos da flexibilidade
que estas imagens conservam (gravura 103). Tien-k'i-teng para o
indivíduo que fala apenas «lâmpada eléctrica». A oposição de três
caracteres «relâmpago-vapor-luminoso» para o leitor atento sobre
um mundo de símbolos que auréolam a imagem banal da lâmpada
eléctrica: a faísca saindo de uma nuvem de chuva para o primeiro

204
caracter; o vapor que ascende da marmita de arroz para o segundo;
o fogo e um recipiente ou o fogo e a acção de subir para o terceiro.
Imagens sem dúvida parasitas e susceptíveis de dar ao pensamento
um caminho difuso, sem relação com o objecto da notação, sem
interesse quando se trata de um objecto moderno, mas este exemplo
banal serve para fazer sentir em que pode ter consistido um pensa-
mento ligado à evocação de esquemas multidimensionais difusas,
por oposição ao sistema que fechou progressivamente as línguas no
fonetismo linear.

É interessante notar que, na língua chinesa, a convergência da


notação ideográfica e da notação fonética, por intermédio de ideo-
gramas destituídos de sentido, aprofundou, de certo modo (des-
viando-a), a notação mitográfica, criando entre o som notado (ma-
terial poético audível) e a sua notação uma relação rica de símbolos
que dão à poesia e à caligrafia poética chinesa extraordinárias pos-
sibilidades. O ritmo das palavras é equilibrado pelo dos traços em
imagens com relações complexas onde todas as partes de cada ca-
rácter e os caracteres de um a outro encerram uma série de alusões '
em volta das palavras.
Os dois aspectos ideográficos e fonéticos da escrita chinesa são
a tal ponto complementares e estranhos um ao outro que cada um
deles, fora da China, deu origem a sistemas de notação diferentes.
O empréstimo feito pela escrita chinesa ao japonês é difícil de defi-
nir em termos perceptíveis ao espírito europeu (gravuras 104 e
105). As duas línguas estão muito mais longe do que o latim do
árabe e a escrita chinesa adere à língua japonesa aproximadamente
como se nos esforçássemos a escrever o francês colocando em fila
os selos do correio cuja imagem principal se aparentasse sensivel-
mente do sentido das palavras a transcrever. Todo o sistema grama-
tical, assim como o registo fonético. O empréstimo de caracteres
fez-se num plano estritamente ideográfico. O fonetismo japonês
aderiu aos sinais, mas destituiu-os do seu som em chinês — exac-
tamente como o número três é legível em diversas línguas, mas
com um fonetismo diferente. Assim, no empréstimo não são dez os
sinais como nós para os números, mas milhares de sinais que dei-
xam o sonoro da língua fora da escrita. A matéria ideológica é
limitada aos conceitos, para além de qualquer flexão gramatical,
individualizável. Para compensar esta carência o japonês extraiu do
chinês, no século VIII da nossa era, quarenta e oito caracteres utili-
zados apenas pelo seu valor fonético e forjou um repertório de no-
tação fonética que se registou nos ideogramas; de modo que se o
chinês, num dispositivo de elementos pluridimensionais, introduziu
em cada grupo de figuras que formam um caracter um correspon-
dente fonético, o japonês despojou os caracteres do seu fonetismo
para posteriormente lhes atribuir a cada um deles sinais fonéticos
distintos (dos que possuíam na língua chinesa).

206
O sistema chinês e o sistema japonês são considerados pouco
«práticos», inadequadas ao objecto proposto que é a tradução gráfi-
ca da linguagem oral. Na realidade uma tal apreciação só é válida
na medida em que a linguagem escrita é destinada a traduzir eco-
nomicamente noções pobres, mas precisas, cujo ajustamento linear
assegura a eficácia. A linguagem das técnicas e da ciência corres-
ponde a estas características e os alfabetos satisfazem-na. Parece
ser possível não esquecer os outros processos de expressão do pen-
samento, particularmente aqueles que traduzem a flexibilidade das
imagens, o halo das associações, tudo o que gravita em torno de um
ponto central de um conceito de representações complementares ou
opostas. A escrita chinesa representa um estado de equilíbrio na
história humana; o de uma escrita que, apesar de tudo, permitiu
traduzir mais ou menos fielmente as matemáticas ou a biologia,
sem desprezar a possibilidade ao mais velho sistema de expressão
gráfica, justaposição de símbolos que, embora não criando frases,
representa grupos de imagens significativas.

O grafismo linear

É inútil fazer um historiai das escritas lineares. A partir das


escritas sumero-acadianas, que desde antes de 3000 a. C. compor-
tavam um grande número de ideogramas em evolução para uma
transcrição fonética, chegou-se às escritas de consoantes, de que o
fenício é o mais antigo exemplo, aproximadamente em 1200 a. C,
a que se segue o alfabeto grego do século VIII a. C. Esta evolução
contínua passou por todas as etapas possíveis: desde a representa-
ção realista de um objecto para traduzir a palavra que a ele se apli-
cava, à mesma representação para transcrever noutras palavras o
som equivalente segundo o sistema de resumo ou de simplificação
que torna o objecto primitivo inidentificável transformando-o num
símbolo estritamente fonético e posteriormente ao agrupamento de
símbolos distintos para transcrever os sons associando letras. Esta
evolução foi descrita frequentemente. É muito justamente a glória
das grandes civilizações, pois foi ela quem lhes deu o instrumento
do seu progresso.
Existe, efectivamente, um elo imediato entre a evolução tec-
noeconómica do conjunto das civilizações mediterrânicas e euro-
péias e o utensílio gráfico que elas aperfeiçoaram. Vimos anterior-
mente que o papel da mão, como meio de criação de utensílio,
equilibrava o papel dos órgãos faciais, meios de criação da lingua-
gem verbal. Vimos também que a dado momento, pouco antes da
aparição do homo sapiens, a mão se iniciava no seu papel de cria-
ção de um modo de expressão gráfica equilibrando a linguagem
verbal. A mão tornava-se, assim, criadora de imagens, de símbolos
não directamente dependentes do encadeamento da linguagem ver-

208
bal, mas paralelas. Foi nesta etapa que se constituiu a linguagem
que, por falta de melhor designação, designei por «mitográfica»,
porque a natureza das associações mentais, que ela suscita, é de
ordem paralela à do mito verbal, estranha a uma especificação rigo-
rosa das coordenadas espacio-temporais. No seu estado inicial, a
escrita conserva, em larga medida, parte desta visão pluridimensio-
nal; mantém-se apta a suscitar imagens mentais precisas, mas
cheias de significado e susceptíveis de se poderem orientar em vá-
rias direcções divergentes. Se a evolução anatómica do homem
cedeu lugar à evolução dos meios técnicos, a evolução global de
humanidade nada perdeu da sua coerência. O homem de Cró-Ma-
gnon possuía um cérebro que valia talvez o nosso (pelo menos nada
prova o contrário), mas ainda longe de estar em estado de se ex-
primir utilizando as possibilidades do seu aparelho neurónico; a
evolução é, acima de tudo, a dos meios de expressão. Nos primatas
existe um equilíbrio coerente entre as acções da mão e as da face e
o macaco usa admiravelmente este equilíbrio até ao ponto de fazer
jogar a seu modo o papel de instrumento de transporte alimentar
que a sua mão, ainda utilizada para a marcha, não pode realizar.
Nos antropídeos primitivos a mão e a face afastam-se contribuindo
respectivamente com o utensílio e a gesticulação e com a fonetiza-
çáo na pesquisa de um novo equilíbrio. Quando surge a figuração
gráfica, o paralelismo restabelece-se: a mão tem a sua linguagem
cuja expressão se liga à visão; a face possui a sua linguagem ligada
à audição, entre os dois reinos este halo confere um carácter pró-
prio ao pensamento anterior à escrita propriamente dita — o gesto
interpreta a palavra, esta comenta o grafismo.
No estádio do grafismo linear que caracteriza a escrita, a rela-
ção entre os dois campos evolui novamente: a linguagem escrita
fonetizada e linear no espaço subordina-se completamente à lingua-
gem verbal, fonética e linear no tempo. O dualismo verbal gráfico
desaparece e o homem dispõe de um aparelho linguístico único,
instrumento de expressão e de conservação de um pensamento,
cada vez mais canalizado para o raciocínio.

Restringimento do pensamento

A passagem do pensamento mitológico ao racional fez-se pro-


gressivamente e num sincronismo completo com a evolução do
agrupamento urbano e da metalurgia. Podemos situar aproximada-
mente em 3500 a. C. (dois mil anos antes da aparição das primeiras
aldeias) os germes mesopotâmicos iniciais de escrita. Dois mil anos
depois, em 1500 a. C, os primeiros alfabetos consonânticos apare-
cem na Fenícia e, em 750, surgem os alfabetos de vogais na Gré-
cia. Em 350, a filosofia grega está em pleno desenvolvimento.

209
Sobre a organização do pensamento primitivo, possuímos tes-
temunhos difíceis de interpretar, quer por se tratar de explorar do-
cumentos pré-históricos muito fragmentários, quer por os documen-
tos sobre o pensamento dos Australianos ou dos Bosquímanos nos
chegarem filtrados pelos etnógrafos, que nem sempre fizeram a sua
própria análise. O que sabemos a esse respeito é a favor de um
processo em que a oposição entre os valores se ordena numa lógica
de participação que, por vezes, fez considerar o raciocínio dos pri-
mitivos como «pré-lógico». O pensamento primitivo parece mo-
ver-se num espaço e num tempo constantemente postos em causa
(ver capítulo XIII). A livre coordenação entre a linguagem verbal e
as figurações gráficas é certamente uma das fontes deste pensamen-
to cuja organização espacio-temporal é diferente da nossa e implica
uma continuidade permanente entre o sujeito pensador e o meio
sobre o qual se exerce esse pensamento.
A descontinuidade surge com a fixação agrícola e as primeiras
escritas. O seu fundamento está na criação de uma imagem cósmica
cujo pivot é a cidade. O pensamento dos povos agricultores em
dimensões umas vezes espaciais outras temporais a partir de um
ponto de referência, omphalos, em torno do qual gravita o céu e se
ordenam as distâncias. O pensamento da Antiguidade pré-alfabética
é resplandecente como o corpo do ouriço ou da estrela-do-mar,
começa a adquirir a locomoção rectilínea nas escritas arcaicas cujos
meios de expressão continuam, salvo para a congratibilidade, ainda
muito difusos. O enclausurar do mundo na teia dos símbolos «exac-
tos» está apenas esboçado e o pensamento atinge, no Mediterrâneo
ou na China de há mil anos antes da nossa era, o ponto culminante
da sua riqueza no manejo do seu pensamento mitológico. O mundo
é então o da calote celeste ligada à Terra por uma trama de corres-
pondências ilimitadas, idade de ouro de um conhecimento pré-cien-
tífico que deixou como que uma recordação nostálgica até aos tem-
pos actuais.

O movimento determinado pela sedentarização agrícola contri-


buiu, como vimos, para uma acção cada vez mais restrita do indi-
víduo sobre o mundo material. Este triunfo progressivo do untensí-
lio é inseparável do da linguagem. Trata-se, na realidade, de um
fenómeno, assim como a técnica e a sociedade, num mesmo plano,
são um mesmo assunto. A linguagem encontra-se no mesmo plano
que as técnicas a partir do momento em que a escrita passa a ser
apenas um meio de registar foneticamente o encadeamento do dis-
curso e a sua eficácia técnica é proporcional à eliminação do halo
de imagens associadas que caracteriza as formas arcaicas de escrita.
É, portanto, no sentido dum restringimento das imagens para
uma rigorosa linearização dos símbolos que a escrita tende. Pos-
suindo o alfabeto, o pensamento clássico e moderno possui mais do
que um meio de conservar na memória o resultado exacto das suas

210
aquisições progressivas nos diferentes domínios da sua actividade;
dispõe de um utensílio pelo qual o símbolo pensado se submete à
mesma notação na palavra e no gesto. Esta unificação do processo
expressivo implica a subordinação do grafismo à linguagem sonora,
reduz o desperdício de símbolos que é ainda característico da escri-
ta chinesa e corresponde ao mesmo processo seguido pelas técnicas
no decurso da sua evolução.
Corresponde também a um empobrecimento dos meios de ex-
pressão irracionais. Se considerarmos que esta via seguida pela
humanidade até à época actual é perfeitamente favorável ao seu
futuro, isto é, se confiarmos inteiramente nas consequências da fi-
xação agrícola, esta perda do pensamento simbólico multidimen-
sional deve ser considerada apenas como um melhoramento na evo-
lução dos equídeos, quando os seus três dedos se reduziram a um
único. Se, pelo contrário, considerarmos que o homem realizaria a
sua plenitude num equilíbrio em que manteria contacto com a tota-
lidade do real, poderíamos interrogar-nos se o óptimo não é rapi-
damente ultrapassado a partir do momento em que o utilitarismo
técnico encontra, numa escrita completamente canalizada, aos
meios para um desenvolvimento ilimitado.

Para além da escrita: o audiovisual

A escrita alfabética conserva, no pensamento, um certo nível de


simbolismo pessoal. Com efeito, na escrita, a visão conduz a uma
reconstrução do som que se mantém individual e, numa margem
reduzida mas segura, a uma interpretação pessoal da matéria fonéti-
ca. Mais ainda, as imagens desencadeadas pela leitura mantêm a
imaginação do leitor, propriedade de riqueza variável. Mudando de
plano, substituindo os símbolos ideográficos por letras, o alfabeto
não abule todas as possibilidades de recriação. Por outras palavras,
se a escrita alfabética satisfaz as necessidades da memória social
(ver capítulo VII), conserva no indivíduo o benefício do esforço de
interpretação que a mesma exige.
Podemos interrogar-nos se a escrita não está já condenada, ape-
sar da importância crescente da matéria impressa actualmente. Em
meio século, o registo sonoro, o cinema e a televisão intervieram
no prolongamento da trajectória que tem a sua origem antes do
Aurignacense. Dos touros e cavalos de Lascaux aos sinais mesopo-
tâmicos e ao alfabeto grego, os símbolos figurados, passando do
mitograma ao ideograma e do ideograma à letra, e a civilização
material apoia-se em símbolos nos quais a relação entre a cadeia de
conceitos emitidos e a sua reconstrução se torna cada vez mais pre-
cisa. O registo do pensamento e a sua reconstituição mecânica limi-
tam ainda mais esta relação e devemos interrogar-nos sobre quais as

211
consequências que um tal restringimento implica. Curiosamente, o
registo mecânico das imagens seguiu, em menos de meio século, a
mesma trajectória que a palavra tinha seguido em alguns milhares
de anos. É, efectivamente, nas imagens visuais as duas dimensões
que, pela fotografia, primeiramente se aplica a reprodução automá-
tica. Seguidamente, como se interpôs a escrita, a palavra tem a sua
fixação mecânica com o fonógrafo. Até este ponto, os mecanismos
de assimilação mental não sofreram nenhuma distorção: puramente
estática e visual, a fotografia deixa tão livre a interpretação como a
do homem paleolítico frente aos bisontes de Altamira. Por seu lado,
o fonógrafo impõe uma cadeia auditiva à qual se liga uma visão
mental livre e pessoal.

O cinema mudo não modificou sensivelmente as condições tra-


dicionais: apoia-se em ideogramas sonoros, vagos, fornecidos por
um acompanhamento musical que preserva o efeito entre a imagem
imposta e o indivíduo. Com o cinema sonoro e a televisão as condi-
ções modificaram-se profundamente, pois eles mobilizam simulta-
neamente a visão do movimento e a audição, isto é, implicando a
participação passiva de todo o campo da percepção. A margem de
interpretação individual é, então, profundamente reduzida, pois que
o símbolo e o seu conteúdo se confundem num realismo tendente
para a perfeição e que, por outro lado, a situação real assim criada
deixa o espectador fora de toda a possibilidade de intervenção acti-
va. Trata-se, assim, de uma situação diferente da do neanderthalen-
se, pois a situação é completamente diversa, assim como a de um
leitor, pois que a primeira é totalmente vivida, quer em visão quer
em audição. Nestes dois aspectos as técnicas audiovisuais surgem
como um estádio novo na evolução humana, um estádio que impli-
ca o específico do homem — o pensamento reflectido.
Do ponto de vista social, o audiovisual corresponde indubita-
velmente a uma aquisição, pois permite uma informação precisa e
actua sobre os indivíduos informados através de vias que imobili-
zam todos os seus meios de interpretação. A linguagem segue a
evolução geral do colectivo e corresponde ao condicionamento cada
vez mais perfeito das células individuais. Poderemos pensar tra-
tar-se, no plano individual, de um verdadeiro retrocesso a estádios
anteriores à figuração? Certo é que a escrita constitui uma adapta-
ção extraordinariamente eficaz do comportamento audiovisual, que
é o principal modo de percepção do homem, mas é um retrocesso
considerável. A situação que se tende a estabelecer representaria
assim um aperfeiçoamento, pois que economizaria o esforço da
«imaginação» (no sentido etimológico). Mas a imaginação é a pro-
priedade fundamental da inteligência, e uma sociedade em que a
propriedade de forjar símbolos enfraquece perderia a sua proprieda-
de de agir. Daqui resulta, no mundo actual, um certo desequilíbrio
ou mais exactamente a tendência para o mesmo fenómeno que ca-

212
racteriza o artesanato: a perda do exercício da imaginação nas ca-
deias operatórias vitais.
A linguagem audiovisual tende a concentrar a elaboração total
das imagens nos cérebros de uma minoria de especialistas que
transmitem aos indivíduos matéria totalmente figurada. O criador
de imagens, pintor, poeta ou narrador técnico sempre constituiu,
mesmo no Paleolítico, uma excepção social, mas a sua obra manti-
nha-se inacabada, pois solicitava a interpretação pessoal, indepen-
dentemente do nível do observador da imagem. Actualmente, a
separação, altamente proveitosa no plano colectivo, está em vias de
realização numa pequena élite, órgão de «digestão» intelectual en-
quanto as massas são os órgãos de assimilação pura e simples. Esta
evolução não afecta apenas o audiovisual, que apenas é o resultado
de um processo geral que engloba o todo gráfico. De início, a foto-
grafia não trouxe modificação na percepção intelectual das ima-
gens, como qualquer inovação apoiou-se no preexistente: os primei-
ros automóveis foram as carruagens sem cavalos e as primeiras fo-
tografias de retratos e movimentos, sem cor. O processo de «pré-
-digestão» apenas se verifica a partir da difusão do cinema, que
modifica completamente a concepção da fotografia e do desenho
num sentido pictográfico, propriamente dito. O instantâneo despor-
tivo e a banda desenhada contibuem, como o «digerido», para a
separação, no corpo social, entre o criador e o consumidor de ima-
gens.
O empobrecimento não se verifica nos temas, mas no desapare-
cimento das variantes de imaginação pessoais. Os temas de literatu-
ra popular (ou sabedoria) sempre foram em número muito limitado;
não é, portanto, extraordinário ver o mesmo super-homem forte e
belo, a mesma mulher fatal, o mesmo colosso mais ou menos estú-
pido entre os Sioux e os bisontes, em plena Guerra dos Cem Anos,
a bordo de um navio pirata, num ruidoso bólide na perseguição de
gangsters, entre dois planetas, numa nave espacial. A repetição
incansável do mesmo stock de imagens corresponde a essa fraca
imaginação que deixa nos indivíduos o exercício de sentimentos
que gravitam em volta da agressividade ou da sexualidade. Não é
de duvidar de que as bandas desenhadas traduzem muito melhor a
acção que as velhas imagens de Epinal. Nestas últimas, o soco era
um símbolo inacabado, o gancho do super-homem, com aspecto de
traidor, nada adiciona à precisão traumática; tudo se torna uma rea-
lidade absolutamente nua, a absorver sem esforço.
A linguagem foi nesta última parte considerada no mesmo plano
que a técnica, com uma incidência puramente prática, como resul-
tado da evolução biológica humana. O equilíbrio inicial entre os
dois pólos do campo de relação liga a evolução do homem à de
todos os animais que partilham as suas operações, entre a acção da
face e a do membro anterior, mas liga-se também implicitamente à
existência da linguagem e das técnicas manuais. A evolução cere-

213
bral, tal como a podemos reconstituir raciocinando, permite a cons-
ciencialização das novas técnicas, do elo existente entre a posição
vertical, a libertação da mão e o desenvolvimento de áreas cere-
brais, que são condição necessária ao exercício das possibilidades
físicas do desenvolvimento de uma actividade humana. A nível ce-
rebral, a intimidade das duas manifestações da inteligência humana
é tal que, apesar da falta de testemunhos fósseis, somos forçados a
admitir, desde a origem, a realidade de uma linguagem de natureza
diferente das dos animais, resultado da reflexão o gesto técnico e o
simbolismo fónico. Esta hipótese, para os homens anteriores ao
homo sapiens, desde os longínquos australantropos, adquire a sua
comprovação quando verificamos o sincronismo estreito que existe
entre a evolução das técnicas e a da linguagem; mais ainda quando
verificamos a que ponto, mesmo no plano da expressão do pensa-
mento, a mão e a voz se mantêm intimamente solidárias.
Com efeito, enquanto o desenvolvimento das técnicas materiais
se acelera prodigiosamente com o homo sapiens, a arte alfabética
mostra, conjuntamente, que o pensamento atinge um grau de abs-
tracção que implica um estado de linguagem igualmente evoluído.
Desde aí, a figuração gráfica ou plástica surge como um meio de
expressão de um pensamento simbolizador de tipo mítico, caracte-
rizado por um suporte gráfico juntamente com uma linguagem ver-
bal, mas independente da notação fonética. Se as línguas do Paleo-
lítico final não deixaram vestígios, a mão dos que falam deixou
testemunhos evocando sem ambiguidade um estado de actividade
simbólica correspondente, inconcebível sem linguagem, e activida-
des técnicas também inconcebíveis sem uma fixação intelectual
verbalizada.
De etapa em etapa, o paralelismo mantém-se e aquando da se-
dentarização agrária desencadeia-se o funcionamento de um dispo-
sitivo social hierarquizado e especializado, as técnicas como a lin-
guagem adquirem impulsos sincrónicos. Se a actuação topográfica
do córtex cerebral dos antropídeos implica, portanto, a estruturação
topográfica do superorganismo urbano, traduz a mesma contiguida-
de. Enquanto o sistema económico se desenvolve no sentido de um
capitalismo de cereais e da metalurgica, desenvolve-se conjunta-
mente nas ciências e nas escritas. Ao mesmo tempo que no aglome-
rado das cidades as técnicas marcam o ponto de partida para o
mundo actual e que o espaço e o tempo se organizam numa rede
geométrica que abrange o céu e a Terra, o pensamento racional
sobrepõe-se ao pensamento mítico, lineariza os símbolos e obri-
ga-os progressivamente a seguir o encadeamento da linguagem ver-
bal até ao ponto em que a fonetização gráfica atinge o alfabeto.
Desde o começo da história escrita, como nos estádios anteriores, a
ligação «reflexão da linguagem» técnica é perfeita e, ela se liga
todo o nosso desenvolvimento. Através da linguagem, a expressão
do pensamento encontra um instrumento de possibilidades infinitas

214
com a utilização dos alfabetos, subordinando completamente o grá-
fico ao fonético, mas todas as formas anteriores se mantêm em
diversos graus, e, como veremos neste livro, parte do pensamento
afasta-se da linguagem linearizada para apreender o que escapa à
simples notação.
A relação entre os dois pólos da figuração, entre o auditivo e o
visual, modifica-se consideravelmente, quando se passa à escrita
fonética, mas conserva intacta a capacidade individual de visualizar
o verbal e o gráfico. A etapa actual é marcada pela integração au-
diovisual, por um lado, que utiliza uma expressão nova em que a
interpretação individual perde em grande medida as suas possibili-
dades, e, por outro lado, pela separação social das funções de cria-
ção de símbolos e de recepção de imagens. Também aqui a com-
pensação entre a técnica e a linguagem é nítida. O utensílio deixa
precocemente a mão para dar lugar à máquina: na última etapa,
palavra e visão sofrem um processo idêntico, graças ao desenvol-
vimento das técnicas. A linguagem que o homem tinha deixado nas
obras executadas pela mão, pela arte e pela escrita, marca a sua
última separação, confiando à cera, à película, à banda magnética,
as funções íntimas da fonação e da visão.

215
NOTAS
1. Lucrécio, De Natura Rerum — cerca de
1282-1285

Arma antigua, manus, ungues, dentesque fuerunt


Et lapides, et item syharum fragmina rami Poste-
rius ferri vis est, aerisque reperta: Sed prior aeris
erat, qu am ferri cognitus usus.

«As armas antigas foram a mão, as unhas e os den-


tes Assim como as pedras e também pedaços dos
ramos das florestas

Depois vieram o ferro e o bronze:


Mas o uso do bronze foi conhecido antes do uso do
ferro.»

Esta citação é piedosamente transmitida há quase um século e eu não gostaria de


faltar à tradição. Convém, todavia, notar que ela não significa, para o papel que se
pretende fazê-la desempenhar, absolutamente nada. Colocando o bronze antes do
ferro, Lucrécio exprime uma tradição ainda viva na sua época, mas os dois versos
em que se lhe atribui a intuição de uma Idade da Pedra são interpretados pelos
autores com muita generosidade. Ao dizer que o homem se serviu primeiro das
unhas e dos dentes, Lucrécio faz uma suposição, aliás falsa, pois que a característi-
ca dos mais antigos antropianos é estarem privados de garras e caninos. Falando de
«pedras», é certo que ele pensava apenas em pedras brutas e nada autoriza a atribuir
a lapis o sentido de pedra talhada. Pelo contrário, fragmen tem o sentido exacto de
pedaço quebrado, o que indica formalmente que Lucrécio não pretendeu dizer mais
do que: «O armamento dos antigos eram as suas mãos, unhas, dentes, pedras (que
apanhavam para as atirar) e os ramos, que quebravam nas florestas.» Estamos muito
longe do enunciado profético que G. de Mortillet atribui, em 1883, ao «poeta livre-
-pensador de Roma.»

2. N. de Maillet morreu em 1738 e o seu manuscrito foi publicado em 1748, em


Amesterdão, com o título Telliamed, anagrama do nome do autor. É, por conseguin-

219
te, um autor do primeiro terço do século XVIII e as suas posições teóricas são
notáveis. Sob a forma de uma conversa entre um filósofo da índia e um missionário,
o autor, que havia sido cônsul no Egipto e amador fervoroso das ciências da nature-
za, dedicou-se aos problemas da natureza do globo e da origem do homem. Sob
uma forma que seguramente não ultrapassa os conhecimentos geológicos do início
do século XVIII, encontramos nesta obra, anterior às de Buffon, pontos de vista
muito singulares sobre a evolução. A espessura das camadas de terreno e a presença
dos fósseis são consideradas como sinal de enormes convulsões cuja idade é consi-
derável; de Maillet não hesita em considerar que cada um dos seis dias do Génesis
teria podido durar cem mil anos! Sobre a origem dos animais, o seu livro abre
perspectivas curiosas, pois que, numa teoria cujos termos é fácil criticar mas que
hoje, no fundo, é inatacável, faz sair todos os animais aéreos, incluindo o homem,
dos animais marinhos. A maneira como ele os faz adaptarem-se é bastante sumária e
para o homem teve necessidade de recorrer à transição das sereias... No entanto,
quando três quartos de século mais tarde Lamarck falou da hereditariedade dos cara-
teres adquiridos, continuará a exprimir o mesmo pensamento, ainda que com o
arsenal de dados científicos próprios da sua época, que, também aquele, está hoje
muito ultrapassado. No início do século XVIII, a meditação geológica só pode ainda
exercer-se sobre um tempo despido de espessura e é normal que Telliamed, um
pouco brutalmente, transforme em aves os peixes que o infortúnio havia feito chegar
às margens de terra firme: «... os canais das suas natatórias... prolongaram-se e
revestiram-se de pêlos... o pêlo formado por essas películas também se alongou,
insensivelmente a pele revestiu-se de penugem, as pequenas asas que tinham sobre o
ventre... transformaram-se em pés...» (Telliamed, edição de 1755, p. 167). O lado
fabuloso do livro, o ataque deliberado que constitui contra os textos sagrados, fize-
ram que fosse combatido com vigor e, no século XVIII, era fácil demonstrar que os
sóis não podiam dar origem aos planetas, que os homens não tinham a sua origem
no mar e que os fósseis eram indiscutíveis traços do Dilúvio. Mais tarde, o progres-
so científico fez parecer delirante o produto das reflexões de Telliamed, contudo,
quando se coloca estas reflexões na corrente intelectual da época, é difícil negar a
N. de Maillet o mérito de ter compreendido que os astros evoluíam na sua estrutura,
que os tempos geológicos eram imensos, que o homem seguia a mesma via de todo
o mundo vivo e que todos os vertebrados terrestres estavam submetidos a uma evo-
lução a partir dos peixes.

3. Boucher de Perthes: Portrait de l'homme antédiluvien. Antiguités celtiques,


T. 2, 1857, p.90:
«... assim deve ser com o homem anterior ao dilúvio: sem ser menos inteligente
do que nós, poderia, sob uma aparência diferente da nossa, manifestar essa inteli-
gência e, como nós, estar intelectualmente à cabeça da criação terrestre. Aqui, bra-
ços mais ou menos longos, pernas mais ou menos frágeis, e mesmo um maxilar
mais ou menos saliente, nada provam, nem a favor nem contra. Isto é tão verdade
que se tem visto seres de gênio que teriam passado por cretinos se os tivéssemos
apreciado unicamente pela sua conformação...»
T.3, p. 459:
«... adoptámos os machados, acreditaremos também nas ferramentas. Estou
convencido de que, nesta mesma especialidade, há grandes descobertas a fazer e
que um dia a colecção dos nossos utensílios e ferramentas primordiais será conside-
rada com toda a atenção que merece, porque as ferramentas são as nossas primeiras
provas de razão, os nossos primeiros títulos de homens, títulos esses que nenhuma
outra criatura terrestre pode mostrar.»

4. «Antropomorfismo» é aqui entendido no seu sentido estrito e deixa os maca-


cos ditos «antropóides» ou «antropomorfos» no pitecomorfismo. Antropomorfo
quer, assim, dizer realmente, «com forma de homem» e engloba todos os antropia-
nos, incluindo os australantropos.

220
5. Os factos anatómicos expostos neste capítulo foram condensados a partir da
tese de doutoramento em ciências do autor, «Équilibre mécanique du crâne des
vertébrés terrestres», defendida na Faculdade de Ciências de Paris em 1955, e ac-
tualmente em impressão. Foram escolhidos entre os documentos que podem entrar
numa perspectiva de evolução para o homem e desenvolvidos nessa perspectiva.

6. Os antropólogos distinguem no crânio, o cranium, edifício completo com a


mandíbula, e o calvarium, que é o crânio sem a mandíbula mas com a face. Distin-
guem também a calvaria, que é a caixa craniana sem a face, e a calva, que se limita
à calota craniana sem a base. Esta terminologia é de pura comodidade prática por-
que é baseada no estado mais ou menos completo em que os crânios exumados
chegam ao anatomista.

7. Não será de mais insistir no interesse das investigações sobre a tecnicidade


no mundo animal, nem sobre o valor de alguns poucos exemplos de utensílios de
que se dá testemunho, todavia deve evitar-se a atitude antropocentrista que falseia
os problemas.
Os casos de ferramentas animais são raríssimos e cita-se sempre, numa piedosa
amálgama, os da amófila e seu pequeno bastão, da cabra que sabia coçar-se, agar-
rando num ramo com a boca, da macaca de Darwin, que quebrava nozes com uma
pedra, dos macacos que atiram pedras, do pássaro-jardineiro. De facto, estas mani-
festações são espectaculares apenas porque se parecem com o que o homem faz,
mas não diferem em nada de essencial de tudo o que é tecnicidade em todo o mundo
animal, inclusive o homem, e maravilharmo-nos com isso é nada mais do que re-
gressar às tocantes considerações dos naturalistas do século XVIII sobre a abelha
industriosa ou sobre a económica formiga. Do mesmo modo poderíamos considerar
a marcha bípede e, em vez de restingirmos a comparação aos raros momentos em
que o gibão anda de pé, reunir num panorama único os dinossauros bípedes, o tatu,
o pangolim, o gerbo, o canguru, o cão adestrado, isso apenas mostraria uma das
soluções, para a marcha, que o homem partilha com o mundo dos vertebrados. O
inventário das soluções comuns é indispensável para situar uma parte do problema
humano, para estabelecer em que é que o homem não passa de um caso entre outros;
ao fazê-lo, apenas se estabelece uma componente. Estabelece-se uma outra conside-
rando a situação do homem no interior das espécies com acção manual importante e
uma terceira situando-a em relação ao movimento geral de deriva que arrasta os
sistemas nervosos para uma crescente complexidade. Estabelecer-se-á ainda outras
para se chegar a uma resultante segundo cujos termos o homem apareceria como um
todo único no mundo animal, mas de quem todos os elementos são largamente
partilhados.

8. O médico alemão François-Joseph Gall (1758-1818) conheceu, com a freno-


logia, um êxito de popularidade e de duração que não podem, em biologia, disputar-
-lhe senão Cuvier e Darwin. A sua teoria, exposta em vários trabalhos, está formu-
lada no título da sua principal obra: Sobre as Funções do Cérebro e sobre as de
cada Uma das Suas Partes, com Observações sobre a Possibilidade de Reconhecer
os Instintos, as Tendências, os Talentos ou as Disposições Morais e Intelectuais dos
Homens e dos Animais pela Configuração do Seu Cérebro e da Sua Cabeça. Foi
violentamente atacada desde a sua origem e o ridículo com que se tentou cobri-la foi
factor importante do seu sucesso persistente. As demonstrações de Gall, o carácter
dos critérios afectivos que utilizou, deixam poucas ilusões sobre o valor objectivo
da sua teoria e os anatomistas ou os fisiologistas deram-lhe imediatamente a sorte
que merece, mas a sedução que oferecia aos espíritos menos científicos era forte. As
«bossas» da filogenitura, da benevolência, da conscienciosidade ou da destrutivida-
de, distinguíveis no crânio, ofereciam um campo fácil à ironia de uns, à necessidade
de mistério científico de outros, e permaneceu na nossa linguagem «ter a bossa da
inteligência ou das viagens».

221
As razões da longa sobrevivência da teoria frenológica seriam interessantes de
analisar. O segredo do condicionamento total dos génios, dos criminosos e dos
idiotas está ligado ao do antepassado-macaco e prende-se ao problema sempre pre-
sente em nós do destino humano. A violência dos ataques científicos contra Gall e o
repetido recrudescimento a seu favor, ao nível da vulgarização, têm fontes psicoló-
gicas comuns. Podemos perguntar-nos, além disso, se a teoria frenológica não de-
senvolverá uma realidade paracientífica evidente.
Quando se despe o seu trabalho de todo o aparelho demonstrativo que é sem
fundamento, restam várias afirmações não desprovidas de valor no seu ponto de
partida. Gall defendeu a especialização dos diferentes territórios cerebrais, o que se
tornou actualmente banal. Ele pretendia que cada órgão se prolonga no sistema
nervoso até ao córtex cerebral, o que é actualmente admitido. Pensava que muitos
dos traços psicológicos são condicionados pelo físico, o que está também ao abrigo
de qualquer crítica e dele podemos fazer, à vontade, um transviado ou um precur-
sor. Como a de N. de Maillet em meados do século XVIII, a sua obra parece agora
ridícula e cientificamente não utilizável, mas as suas ideias foram largas e a sua
intuição penetrante. Podemos dizer de todos aqueles que partem para a aventura
científica que são constrangidos, na percepção intuitiva de uma relação entre duas
ordens de factos, a introduzirem uma demonstração geralmente infantil; é uma cen-
sura que se dirige tanto aos pioneiros do evolucionismo como aos da paleontologia
humana.

9. A lenda da «apófise geni» é um bom exemplo do desejo de tudo explicar a


partir do que se possui, por pouco que se possua. A apófise geni, na face interna do
queixo, é uma eminência onde se insere o músculo genioglosso, que é um dos
motores da língua. A sua inserção é bastante diferente entre os diferentes mamífe-
ros, mas se as apófises geni aparecem somente nos antropianos, o músculo genio-
glosso desempenha nos ruminantes, por exemplo, uma função muito importante na
mobilidade da língua. As apófises geni, nos antropianos, estão aliás submetidas a
sensíveis variações individuais e nos Paleantropos certas mandíbulas têm-nas mais
desenvolvidas que outras. O maxilar de La Naulette, descoberto em 1866, tem-nas
frágeis. Única mandíbula paleantropiana conhecida na época, ela serviu de base a
uma teoria sobre a linguagem de que G. de Mortillet dá, em Le Préhistorique,
1883, p. 250, um surpreendente resumo:
«Todos os homens, mesmo os mais inferiores, sabem servir-se da palavra, mas
terá sido sempre assim? O maxilar de La Naulette responde: «Não!»»
Depois de ter feito falar este maxilar sem linguagem, o autor acrescenta: «A
palavra ou linguagem articulada produz-se por séries de movimentos da língua. Es-
tes movimentos operam-se sobretudo pela acção do músculo inserido na apófise
geni. Os animais privados da palavra não têm apófise geni. Por conseguinte, se esta
apófise falta no maxilar de La Naulette, significa que o homem de Neanderthal e o
homem chelense não possuíam a palavra...»
Não sabemos o que admirar mais na habilidade que faz da apófise geni a condi-
ção necessária e suficiente da linguagem, do rigoroso desprezo das leis da forma-
ção, que em 1880 eram no entanto conhecidas, ou do paradoxo que resulta, dado
que o genioglosso constitui a maior parte do músculo da língua, na negação da
existência de uma língua como órgão, no chimpanzé ou no vitelo. Não menos sur-
preendidos podemos ficar com o homem a quem se deve a primeira classificação
racional das épocas pré-históricas pela ligeireza com que, contra o seu próprio sis-
tema, assimila Neanderthal e chelense.

10. Uma teoria sobre o desenvolvimento sincrónico da técnica e da linguagem


foi concebida pelo antropólogo russo V. V. Bounak, em termos que estão bastante
próximos dos que propus, mas sobre dados tecnológicos muito gerais e a partir de
uma reconstituição das fases que vão do não sinal à linguagem gramaticalmente
construída. E particularmente interessante verificar que a via muito diferente segui-

222
da aqui através da integração do gesto e do símbolo fónico resulta numa construção
relativamente aproximada. Cf. Bounak V.V., 1958.

11. A palavra primitivo designa aqui o estado tecnoeconómico dos primeiros


grupos humanos, isto é, a exploração do meio natural selvagem. Cobre por conse-
guinte todas as sociedades pré-históricas anteriores à agricultura e à criação de gado
e, por extensão, aquelas que, muito numerosas, prolongaram o estado primitivo na
História até aos nossos dias. Os etnólogos há muito que criticam este termo que é
constantemente contradito pelos factos sociais, religiosos ou estéticos e que, por
esta razão, tomaram uma coloração pejorativa, contudo não o abandonaram, à falta
de um termo que designasse de maneira global os povos sem escrita, afastados das
«grandes civilizações». Aparece, todavia, mais frequentemente enquadrado por as-
pas. O sentido aqui adoptado é, pelo contrário, concreto e fundamentado, dado que
faz afastar dos primitivos todos os grupos cuja economia repousa na exploração
artificial do meio natural. Além disso corresponde a características comuns e parti-
culares dos grupos exclusivamente caçadores-pescadores-agricultores.

12. A aparição ou a adopção da criação de gado está ligada à interferência de


dois sistemas de valores: os caracteres biológicos e biográficos da espécie criada e o
nível tecnoeconómico do criador. Os caracteres biológicos explicam que o cão, ba-
tedor e caçador de faro, tenha sido domesticado de preferência aos felinos, caçado-
res de espera e inúteis ao homem em tal exercício. O mesmo se passa com os
cervídeos, cujo comportamento de fuga é a dispersão, ao contrário dos bovídeos,
que continuam reunidos e são susceptíveis de ser dirigidos em rebanho. Os caracte-
res geográficos jogam de maneira importante quando se opõe a curta migração em
altitude dos rebanhos de renas lapões e o imenso circuito em latitude dos caribus
americanos. A interferência do sistema tecnoeconómico é sensível, por exemplo, no
caso da rena, criada diferentemente pelos Tchukchi, verdadeiros proto-criadores e
pelos Tunguzes ou Lapões do Sul, verdadeiros criadores, influenciados pela vizi-
nhança dos cultivadores-criadores da Sibéria ou da Escandinávia. O número muito
pequeno dos animais de criação mostra que estas condições são restritas, que não
puderam aparecer espontaneamente senão em muito poucos lugares e que só se
referem a animais bem determinados.

13. A criação de gado, em relação à economia agrícola, oferece as seguintes


divisões:
A: ligação do criador com um animal conservado no seu biótopo e comporta-
mento naturais. Situação de protocriação, em que a colheita e a caça desempenham
função muito importante. Actualmente limitada a alguns grupos de criadores de
renas da Sibéria Oriental.
B: ligação do animal a um criador nómada, simbiosado a colectividades agríco-
las, correspondendo à criação pastoril em que predomina o boi, o carneiro ou o
camelo. Burros, cavalos ou cabras estão associados. Corresponde às extensões her-
báceas do mundo antigo e implica uma simbiose criador-agricultor em duas etnias
normalmente exogâmicas (Turcos, Mongóis, Tuaregues, Papeles, Saracatsans da
Europa Oriental).
C: ligação do animal a um agricultor sedentário:
a) manutenção do animal em colectividades densas (rebanhos). Criação semi-
pastoril: a própria sociedade agrícola especializa temporariamente ou em permanên-
cia os seus pastores (Malgaxes, Massa do Chade, pastores dos Alpes e dos Pirenéus,
cow-boys e gaúchos da América).
b) manutenção do animal em pequenas colectividades. Criação agrícola: a fa-
mília especializa parcialmente os seus pastores (crianças e velhos) na vigilância do
gado no perímetro agrícola (forma mais corrente da criação europeia comum em
numerosas sociedades fora da Europa).

223
LEGENDAS DAS GRAVURAS
El para E3 começou já e a face (sessenta graus) está em desequilíbrio com a base
(sessenta e sete graus). A desaparição dos dentes do siso (63) traduz uma verdadei-
ra distorção do edifício craniano, à procura de uma fórmula de construção dificil-
mente conciliável com a manutenção da posição direita; esta situação de sobreevo-
lução é comparável à do cão lulu (24).

64.
Quadro do comprimento relativo de gume utilizável obtido num quilo de sílex em
diferentes épocas do Paleolítico.

65.
Gráfico que traduz, durante o quaternário, a relação entre o aumento de volume
cerebral e a evolução técnica (comprimento relativo do gume por quilo de matéria e
variedade dos tipos de utensílios).

66.
Quadro do enriquecimento dos tipos de utensílios durante o Paleolítico.

Capítulo V

67.
Esquema representando o casal primitivo, célula fundamental do grupo, partilhan-
do complementarmente o conjunto dos conhecimentos étnicos.

68.
O grupo nómada de economia primitiva percorre ciclicamente o seu território.
Mantém trocas matrimoniais e económicas com os grupos vizinhos complementares.

69.
Carta do sistema económico dos Bosquímanos Naron. No primeiro grau, o grupo
familiar funciona como na gravura anterior no quadro da etnia. As trocas atingem
gradualmente os outros Bosquímanos, os Bantos e os brancos.

70.
Carta do sistema de relações económicas dos Esquimós entre a Idade Média e a
eliminação das estruturas tradicionais. As trocas, de vizinhos para vizinhos, asegu-
ravam a circulação das matérias-primas vitais (marfim, peles, madeira), a de pro-
dutos manufacturados locais (lâmpadas e marmitas de pedra, cobre nativo) e a dos
produtos de origem asiática, indiana ou europeia (cachimbos, tabaco, objectos de
ferro).

71.
Carta de repartição dos principais estabelecimentos aglomerados, correspondendo
às formas proto-agrícola e agrícola primitiva no Mediterrâneo Oriental e no Pró-
ximo Oriente.

72.
Difusão dos bovídeos e ovicaprídeos. A partir do centro euro-asiático, as espécies

233
bos, ovis e capra ocuparam todas as regiões onde a sua adaptação era possível,
assimilando verosimilmente uma parte das raças locais selvagens. No limite norte
do biólopo, a rena domesticada iniciou o processo, enquanto, no sul, o zebu nas
regiões áridas, o búfalo nos pântanos e o iaque no Tibete completaram a infiltração
dos bovídeos.

73.
a. Plano de uma parte da aldeia neolílica de Çatal Hüyük, na Anatólia (segundo J.
Mellaart). Datando do início do VI milênio, esta aldeia conta-se entre os mais
velhos estabelecimentos sedentários, de economia agro-pastoril.
b. Plano de uma parte da cidade de Mohenjo-daro, no Indo-II milénio.

74.
Esquema funcional do grupo agrícola elementar. O dispositivo vital é partilhado
entre os indivíduos reunidos por sexo num certo número de fórmulas sociais basea-
das na família por extensão. O sistema assegura uma certa margem de especializa-
ção, em particular através das classes etárias. O grupo agrícola é completado em
numerosos casos desde a Idade do Bronze por um grupo individual ou colectivo
restrito: o artesão (ferreiro ou oleiro, pedreiro, tecelão, etc).

75.
Organização espacial dos grupos agrícolas. Cada grupo está fixado, pelo menos
relativamente, no seu território e mantém com os grupos vizinhos trocas que podem
chegar à aliança matrimonial ou restringir-se às trocas materiais. Os artesãos
mantêm entre si um sistema de relações do mesmo tipo, que pode chegar a cobrir
vastas regiões e acompanhar-se de uma estrita endogamia.

76.
Esquema funcional do dispositivo citadino. A cidade desempenha a função de cen-
tro do território e insere-se num grupo de aldeias agrícolas do tipo da gravura
anterior, donde retira os seus recursos, e que assegura a coesão. O poder central
(1 > está ligado às funções militares (2), religiosas (3) e jurídicas (4), que têm
tendência para se especializarem em indivíduos ou classes distintas. Os mercadores
(5) constituem um grupo cuja segregação, em relação às classes dirigentes, é va-
riável, a sua acção indirecta e suas alianças conferem-lhes sempre uma notável
importância. Os artesãos (6) e o pequeno comércio estão completamente isolados
das classes dirigentes de quem são dependentes, mas uma parte dos seus elementos
assegura a sua promoção pela permeabilidade da classe dos mercadores.

77.
Quadro das artes do fogo, mostrando à escala das temperaturas os laços entre as
técnicas do metal, da cerâmica e da vidraria.

78.
Plano da cidade assíria de Khorsabad (século VIII a. C).

79.
Plano da cidade de Aigues-Mortes.

80.
Esquema funcional do dispositivo industrial do século XIX. O dispositivo pré-
-industrial constitui a base da implantação. A capital (a) comporta as mesmas divi-
sões da gravura 76, mas a função industrial está representada por um grupo (7)
ligado ao comércio (5) e directamente em relação com o poder central, qualquer

234
que seja a forma do estado. As aldeias agrícolas continuam a funcionar segundo o
dispositivo antigo, providas de uma representação artesanal e de pequeno comér-
cio; ligam-se (c, d) a capitais regionais, onde se realizam os souks e as feiras. A
transformação reside na criação de centros industriais (b), ligados ao quadro tra-
dicional por uma rede de vias de transporte. Isolado a princípio, dada a necessária
proximidade de matérias e de energia (b'), o centro industrial prolifera ao longo
das vias férreas e determina a aparição de subúrbios cuja população proletária se
não inscreve já nos quadros tradicionais.

81.
a) Plano da aglomeração de Creusot. Vê-se a agregação industrial ao longo da via
férrea e os bairros residenciais em proliferação desordenada. 1: indústria; 2: cons-
trução densa; 3: construção menos densa; 4: espaços verdes.
b) Desenvolvimento progressivo de Leão. Vê-se, em redor da cidade antiga junto
ao Saona e ao Ródano, a extensão geométrica da cidade de 1850-71, crescendo em
direcção à via férrea o apêndice de Villeurbanne, de trama irregular (fins do século
XIX)e depois a proliferação recente.

Capítulo VI
82.
Incisões em ossos paleolíticos, ditos «marcas de caça»,
a) Chatelperronense; b; Aurignacense; c: Solutrense.

83.
Churingas australianos (segundo Spencer e Gillen). 1: os círculos a representam
árvores e os círculos ponteados os passos dos dançarinos; as linhas d representam
os paus com que se bate ritmicamente e e os movimentos dos dançarinos; 2 e 3:
churinga de um chefe de tótem da formiga do mel. a: olho, b: intestinos, c: pintura
sobre o seu peito, d: costas, e: pequena ave aliada da formiga do mel. Pode verifi-
car-se, em apoio de 82, que as representações ligadas a um contexto verbal e
gestual como as dos churingas podem ser despojadas de todo o caracter figurativo
realista.

84.
Gravura do Aurignacense 1 do abrigo de Cellier (Dordonha). E um dos muito raros
documentos figurativos mais antigos datados com certeza. Vê-se ali uma cabeça,
presumivelmente de cavalo, um símbolo feminino e incisões regulares.

85.
Gravura do Aurignacense IV de La Ferrassie (Dordogne), representando um ani-
mal (quebrado), um símbolo feminino e ponteados regulares.

86.
Gravura provavelmente gravettiana de Gargas (Altos Pirenéus), figurando um ca-
valo e um símbolo feminino.

87.
Gravura magdalenense de Combarelles (Dordonha), figurando os mesmos assun-
tos. Verifica-se, para um mesmo tema, o realismo crescente dos elementos do mito-
grama.

235
88 a 89.
Pictograma esquimó do Alasca, gravado numa lâmina de marfim, inícios do século
XX. De um lado (88) vê-se um acampamento de Verão: quatro tendas e um homem
junto de uma colina. Voltando a placa (89), vê-se, na mesma linha do solo, um
acampamento de Inverno: uma morsa, uma canoa de pele voltada sobre o suporte e
uma casa de Inverno, em forma de cúpula e com um longo corredor de entrada. O
objecto constitui uma mensagem, que se deixava no campo abandonado, para in-
formar os visitantes eventuais acerca da direcção tomada. Só os Esquimós do Alas-
ca e numa época recente (século XIX) utilizaram os pictogramas.

90.
Pele de bisonte dos Sioux (fim do século XVIII), onde está figurada pictografica-
mente a narrativa de uma expedição de guerra.

91.
Composição mitográfica da gruta de Niaux (Ariège), Magdalenense. Vê-se um ca-
brito-montês, um bisonte e um cavalo do mesmo tamanho, um grande cavalo acom-
panhado por um bisonte e um cabrito-montês de pequeno tamanho, um grande
bisonte entre cujas patas se encontra um cavalo pequeno, um bisonte e um cavalo
iguais: os bisontes têm uma série de ferimentos simbólicos. O caracter mitográfico
do conjunto exclui a leitura directa.

92.
Gravura rupestre proto-histórica de Val Camonica (Itália), representando um vea-
do acompanhado por símbolos enigmáticos. Como para a figura precedente, só o
conteúdo oral poderia explicitar o significado deste grupo.

93.
Gravura rupestre proto-histórica de Val Camonica (Itália). O conjunto aproxima-se
de um pictograma pelo seu carácter narrativo (trabalhador seguido por persona-
gens munidos de enxadas que cobrem o grão semeado), mas não existe «enredo»,
como numa sequência pictográfica.

94.
Taça comemorativa do sacrifício de um urso. Ainas de Sacalina. Executadas em
cada festa do urso, estas taças serviam de recordação e testemunho.

95.
Japão. Ex-voto. Vê-se o gesto de bater as palmas para atrair a atenção da divinda-
de antes de formular o voto.

96.
Japão. Ex-voto. Dois atuns (Katsu-o) estão representados para exprimir a ideia de
obtenção (Katsu).

97.
Japão. Ex-voto. Deposto no templo para corrigir um bêbado. O polvo, que se torna
vermelho depois de cozido em cerveja de arroz, é o símbolo da intemperança.

236
98.
a. Polinésia Tubuai. Estatueta figurando o mito da criação dos deuses e dos ho-
mens pelo grande deus do Oceano.
b. França, século XVI. Correspondência entre o zodíaco e as partes do corpo
do homem.

99.
Cartaz publicitário em que diferentes símbolos figurativos (mulher de pescador,
caixa de conserva, abre-latas) tecem uma rede com a representação do peixe.

100.
Hieróglifos egípcios da IV (a) e das XXI dinastias (b). Notar a linearização exacer-
bada dos símbolos fonéticos mais recentes.

101.
Manuscrito maia. Fragmento de uma representação das cerimónias do começo e do
fim do ano. Os sinais numéricos alinhados e as figuras mitológicas estão integradas
na mesma composição.

102.
Manuscrito representando o início da migração dos Astecas. Da esquerda para a
direita: 1) Numa ilha, Aztlan está sentado, hieróglifos representam o seu nome e as
seis tribos. 2) A travessia dos Astecas. 3) A data num rectângulo. 4) A marcha,
representada por pegadas, conduz à cidade de Colhuacan, figurada pelo seu hieró-
glifo. 5) Oito outras tribos, representadas pelo hieróglifo e um homem que fala.
Esta inscrição é uma sequência de mitogramas parcialmente fonetizados, ligados
entre si por uma trama pictográfica.

103.
Escrita chinesa: a) grafias arcaica e moderna de uma meada de fibras (pictogra-
fias); b) junção de uma meada e da representação do movimento da lançadeira, em
grafia arcaica e moderna, significa a ordem, a sucessão (Ideografia); c) junção da
meada e de um signo Tcheu; o elemento pictográfico desempenha papel classifica-
tório (ideia de fibras), o outro elemento é simplesmente fonético: Tcheu, papel; d)
grafia arcaica de tecto; e) tecto — mulher = paz: f) tecto —fogo = desastre; g)
tecto —porco = dispositivo doméstico, família; h) i) j) tien-K'i-Teno, ampola eléc-
trica; tien; faísca = chuva = relâmpago; K'i: vapor = nuvem — arroz; teng:
lâmpada = fogo — subir — pedestal.

104.
Escrita japonesa: a) dois caracteres chineses: song-chan, montanha dos pinheiros;
b) leitura japonesa: matsu-yama expressa em caracteres silábicos; c) fragmento de
um texto teatral comportando caracteres chineses ligados por uma argamassa sin-
táctica em caracteres silábicos cursivos e anotados por elementos fonéticos.

105.
Fragmento de um texto popular budista comportando: a) a notação fonética japone-
sa chiker-sho (os animais), ji (os próprios), toku (obtêm), dai (a grande), chi-e
(sabedoria); b) os sete caracteres chineses correspondentes ao texto fonetizado; c)
o desenho de um animal (sho), de um édredon (toku), de um planalto (dai), de seios
(chi) e de uma casa (e), restituindo aproximativamente o texto.

237

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