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A gramática e o ensino de tradução

Daniel Fernando Rodrigues1

This paper aims at discussing the role of students’ beliefs regarding


grammar in a translation course. It was found that students consider
grammar to be the factor that leads them to make most of their
mistakes when translating a text from English into Portuguese.
However, no significant improvement was observed in students’
translations after a six-month grammar course offered to give them
explicit knowledge of some specific grammar points, which they
considered as being the most difficult ones. The reason for this may
be the fact that students traditionally fear grammar and see it as an
obstacle, disregarding other potential problems.

Palavras-chave: gramática, tradução, crenças

1 Introdução

Como professor das disciplinas de Língua Inglesa e Prática


de Tradução da turma do segundo ano do curso de Letras/Tradutor
e Intérprete de uma instituição superior de ensino, observei uma

1
A realização desta pesquisa não teria sido possível sem a colaboração do monitor
e aluno de iniciação científica Alexandre Werneck.
freqüente insatisfação, por parte dos alunos, com relação ao seu
nível de competência gramatical. Na verdade, era comum a queixa
de que a falta de “domínio” de certas estruturas gramaticais se
tornava a principal fonte de problemas dos alunos no momento da
tradução.
Várias pesquisas recentes realizadas tanto no Brasil quanto
no exterior têm dado bastante atenção para a questão das crenças
de alunos e professores em contextos escolares. As crenças dos
alunos são entendidas, neste artigo, como diferenças individuais
que podem influenciar no processo de ensino/aprendizagem
(BARCELOS, 2001; BORG, 2001). Assim sendo, as crenças que os
alunos possuem acerca de sua competência gramatical podem ter
forte influência na realização das atividades de tradução propostas
no decorrer do curso.
Para compreender essa sensação de falta de “domínio” da
gramática, é necessário que se considere o tipo de abordagem
adotado nas aulas de língua inglesa desses estudantes. Como um
dos principais objetivos dos alunos ingressantes em um curso de
Letras é conseguir se comunicar na língua estrangeira (CONSOLO,
2002; RODRIGUES, 2001, 2003), a abordagem utilizada na
instituição pesquisada é a Abordagem Comunicativa (doravante
AC), pois ela possibilita o uso da língua em diversas situações de
comunicação.
No entanto, com o surgimento da AC, novas concepções de
competência e desempenho foram estabelecidas fazendo com que
o ensino de línguas parasse de se preocupar apenas com a
gramática da língua e passasse a trabalhá-la de uma maneira mais
dinâmica, visando à sua aplicação direta em situações de
comunicação. As habilidades comunicativas começaram a ser
inseridas no curso de língua e o objetivo final não é mais ter um
aluno que domine completamente a gramática, mas que consiga se
comunicar efetivamente nas diversas situações de uso da língua
que virá a presenciar (RODRIGUES, 2002).
Os alunos, no entanto, embora tenham seus objetivos bem
definidos, ainda não conseguiram alterar suas crenças, que ainda
são fortemente sustentadas pela idéia de ser possível conseguir
“dominar” as estruturas gramaticais de uma determinada língua. No
caso dessa turma especificamente, a falta de explicitação
gramatical durante as aulas acabou gerando um outro problema,
uma vez que essa crença afetava suas traduções.
Por concordar com a afirmação de Pagano (2000, p. 11) de
que “as crenças dão lugar a expectativas que, quando não
plenamente satisfeitas, produzem ansiedade e sentimento de
insucesso e frustração”, decidiu-se dialogar com os alunos tentando
explicitar suas crenças para que pudessem analisá-las e, talvez, até
mesmo modificá-las. Como “o sentimento de insucesso e
frustração” não diminuía e começava a desestimular cada vez mais
os alunos, optou-se por oferecer-lhes aulas extras de língua inglesa
que enfocariam diretamente os tópicos gramaticais considerados os
mais problemáticos.
Essas aulas foram ministradas por um aluno-monitor,
orientado pelo professor responsável pela disciplina, e registradas
para que se pudesse fazer uma análise acerca da sua influência
nas crenças e na produção dos alunos participantes. Na próxima
seção, faço uma descrição da metodologia de pesquisa adotada
para a coleta de dados.

2. Metodologia de pesquisa

Os dados foram coletados em um curso de extensão


oferecido aos alunos do 2° ano do curso de Letras/T radutor e
Intérprete de uma instituição particular de ensino. O curso não era
obrigatório, mas exigia-se uma freqüência mínima em 75% das
aulas para obtenção do certificado, sendo que a carga horária total
prevista era de 50 horas.
O monitor reunia-se com o orientador uma vez por semana,
quando eram discutidas questões com relação ao planejamento e à
condução do curso. Aspectos teóricos também eram discutidos para
que o monitor tivesse mais segurança do trabalho a ser realizado.
A metodologia adotada foi a seguinte. Primeiro foi dado aos
alunos um questionário que visava definir quais seriam os objetivos
específicos do curso e os seus principais problemas com relação à
competência lingüística em língua inglesa. Depois, foram mapeados
os pontos gramaticais que seriam trabalhados no curso, de acordo
com o levantamento realizado com os próprios alunos. Foram três
os tópicos escolhidos: voz ativa e passiva, presente perfeito e
verbos frasais.
Cada um desses tópicos foi trabalhado no mínimo no
decorrer de cinco semanas para que pudessem ser feitos diferentes
tipos de exercícios com cada um. Cada aula era dividida em quatro
momentos: verificação, explicitação, prática e confirmação.
No primeiro momento, o de verificação, pedia-se aos alunos
que fizessem uma tradução de um texto técnico autêntico que
continha a estrutura a ser trabalhada em vários parágrafos. Nesse
primeiro momento, os alunos deveriam trabalhar individualmente e
utilizar apenas o dicionário, se necessário. O monitor não oferecia
qualquer tipo de ajuda aos alunos, pois o objetivo era verificar se o
aluno realmente apresentaria problemas quanto ao tópico enfocado,
bem como a natureza de tais problemas.
O momento da explicitação ocorria, geralmente, na segunda
semana de cada tópico e consistia na apresentação explícita das
regras gramaticais dos tópicos mencionados. Eram utilizados
exemplos projetados em transparências e pedia-se aos alunos que
sistematizassem algumas regras, a partir dos exemplos fornecidos.
Neste momento, discutiam-se não apenas questões relacionadas à
estrutura gramatical, mas, principalmente, de utilização de certas
estruturas para produzir significados na língua.
O momento da prática ocorria geralmente após momentos
de explicitação. Eram dois os principais tipos de exercícios
utilizados para praticar as estruturas: traduzir e completar lacunas.
Esses dois momentos se alternavam por semanas até que os
alunos se sentissem à vontade com o tópico estudado.
O último momento, o da confirmação, tinha como objetivo
apenas servir como parâmetro para tentar verificar progressos
ocorridos depois dos momentos de explicitação e de prática. Pedia-
se para os alunos traduzirem um outro texto contendo novamente a
estrutura em questão em vários parágrafos. Posteriormente, foram
comparados os resultados das traduções no momento da
verificação e da confirmação a fim de buscar elementos que
indicassem o grau de desenvolvimento gramatical realmente
atingido.
Além disso, todas as aulas eram registradas em diários de
pesquisa escritos pelo monitor e por outros cinco alunos
participantes. O objetivo desses relatos era verificar a visão dos
alunos e do próprio monitor com relação ao curso e tentar identificar
possíveis sinais de mudança em suas crenças.

3. Análise e discussão dos dados

Primeiramente, será apresentada uma análise dos


questionários respondidos pelos alunos antes do início do curso de
extensão. Em seguida, serão discutidos alguns aspectos
importantes acerca do desempenho dos alunos nas atividades
propostas no curso. Por fim, será feita uma correlação entre esses
resultados e os diários de pesquisa dos alunos e do professor-
monitor com a finalidade de buscar respostas para os problemas
encontrados.
O questionário possuía 10 perguntas abertas que visavam
mapear as necessidades e as expectativas dos alunos com relação
ao curso de extensão que lhes seria oferecido (ver Anexo).
Analisando as respostas dos alunos, pode-se dividir a turma em
dois grupos: o dos alunos que já conhecem bem a língua e querem
desenvolver técnicas de tradução e interpretação e o dos alunos
que apresentam problemas nas traduções, segundo eles, em
virtude da falta de conhecimento gramatical. A maioria dos alunos,
mesmo aqueles que já conhecem o idioma, considera a gramática
como sendo um ponto fraco na sua formação.
As próprias respostas dos alunos revelam certas
incoerências quanto ao que acreditam ser necessário para terem
um melhor desempenho no curso de Tradutor e Intérprete. Um
deles, por exemplo, diz que “gostaria que a aula fosse dada em
português para que (...) possa aprender e entender”. No entanto,
quando lhe foi pedido para dar uma sugestão para a elaboração do
curso, disse que seria preciso “ensinar e treinar bastante
conversação”. Seria de se esperar que um aluno que tivesse como
objetivo a conversação quisesse aulas dadas na língua-alvo, em
vez de na língua materna. Incoerências como essa foram
verificadas em quase todos os questionários, levando-nos a concluir
que esses alunos não possuem um objetivo realmente definido e
não tomam consciência da interferência negativa de suas próprias
crenças no processo de ensino/aprendizagem.
É forte a crença dos alunos de que o conhecimento
gramatical é essencial para que consigam traduzir bem. A resposta
de um dos alunos ao ser perguntado sobre sua maior dúvida
sintetiza o pensamento do grupo. Ele diz que seu maior problema é
“a gramática, pois sem ter um bom conhecimento, a tradução de um
texto nunca será boa”. Como o curso foi criado em virtude da
própria insatisfação dos alunos com suas traduções, podemos
concluir que o aluno responsabiliza a falta de conhecimento
gramatical pelo seu insucesso.
Os resultados obtidos durante o curso, no entanto, não
corroboram com essa crença. Como será mostrado a seguir,
embora tenha havido um estudo explícito sobre regras gramaticais
de alguns tópicos específicos, tal conhecimento não fez com que os
alunos conseguissem melhorar suas traduções.
Por questão de espaço, optou-se por analisar apenas um
dos três tópicos gramaticais abordados no curso: o uso do presente
perfeito. Quando fizeram a tradução de um texto contendo vários
verbos neste tempo, ainda na fase de verificação, os alunos
mostraram que conheciam o tempo verbal, embora tivessem
dúvidas sobre seu uso.
Durante a fase de explicitação, os alunos participaram
ativamente, indicando que o tópico realmente não lhes era
desconhecido. Reconheciam muitas das regras discutidas e suas
principais dúvidas se referiam ao uso das estruturas no contexto.
Isso indica que o problema real dos alunos não estava na falta do
conhecimento das estruturas como eles insistiam, mas sim na falta
de competência comunicativa, ou seja, na falta de capacidade de
uso das estruturas gramaticais conhecidas para a comunicação.
Mais uma vez é possível perceber que as crenças dos alunos com
relação às suas aulas de língua estão baseadas numa abordagem
estruturalista de ensino, em que o conhecimento lingüístico por si só
é importante. No entanto, como se verificou, na prática tradutória é
importante que o tradutor tenha conhecimento do uso da língua,
pois traduzir não significa simplesmente transpor estruturas
gramaticais de uma língua para outra.
Os resultados quantitativos mostram que na primeira
atividade o índice de acerto na tradução das estruturas gramaticais
foi de 45%, enquanto que na última atividade do mesmo tópico este
índice foi de 51%. Não foi verificado, portanto, nenhuma melhora
significativa no desempenho dos alunos após as quatro aulas de
ensino explícito e atividades práticas envolvendo o uso do presente
perfeito.
Os diários tanto dos alunos quanto do monitor relatam uma
sensação dos participantes de terem alcançado seus objetivos, ou
seja, os alunos, em geral, sentiam que seus problemas com relação
às estruturas gramaticais estudadas haviam sido superados. No
entanto, como demonstrado no estudo comparativo citado
anteriormente, o resultado prático do desempenho gramatical dos
alunos permaneceu quase inalterado.
Esses dados revelam o impacto que as crenças dos alunos
têm sobre seu processo de aprendizagem e nos alertam para a
necessidade de dialogar com eles, explicitando suas crenças para
que, desta maneira, possam estar conscientes do seu próprio
processo de formação.

4. Considerações finais

Várias pesquisas recentes têm revelado a importância de se


considerar as crenças dos alunos nos contextos de ensino, uma vez
que elas podem ser determinantes para o sucesso da
aprendizagem. Muitos alunos e professores, no entanto, ainda não
tomaram conhecimento de suas próprias crenças e do seu impacto
no processo de ensino/aprendizagem de línguas.
Os resultados desta pesquisa mostram que as crenças dos
alunos os levaram a exigir um curso de extensão para aprofundar
seus conhecimentos acerca do que consideravam ser o maior
responsável pelo insucesso de suas traduções: a gramática. Os
alunos alegavam que nas aulas de língua inglesa do curso de
Tradutor e Intérprete a gramática não era aprofundada, uma vez
que o professor adotava a AC. No entanto, percebeu-se que o
problema real dos alunos não era na verdade a falta de
conhecimento das regras, mas sim a falta de uma competência
lingüístico-comunicativa que lhes permitisse usá-las.
Assim, concluímos que, na verdade, o que se faz necessário
é que os alunos, juntamente com seu professor, passem a refletir
sobre suas próprias crenças e analisem se elas realmente são
coerentes com o papel que pretendem desempenhar. Desta forma,
será possível definir melhor seus próprios objetivos e adotar os
princípios metodológicos que possibilitem alcançá-los.
Nesse caso específico, um curso de regras gramaticais,
embora considerado excelente pelos alunos, não trouxe nenhuma
alteração ao problema das traduções. Como o problema está
centrado no uso e não na estrutura da língua, é necessário que os
alunos se proponham a realizar mais atividades que lhes
possibilitem usar a língua de fato.
Um estudo mais aprofundado sobre as crenças de alunos de
tradução torna-se, portanto, urgente para que, com mais dados,
seja possível analisar e propor soluções que realmente contribuam
para diminuir esse problema.

5. Referências bibliográficas

BARCELOS, A. M. Metodologia de pesquisa das crenças sobre


aprendizagem de línguas: estado da arte. Revista Brasileira de
Lingüística Aplicada, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 71-92, 2001.
BORG, M. Teachers’ beliefs. ELT Journal, v. 55, n. 2, p. 186-88,
abr. 2001.

CONSOLO, D. A. Competência lingüístico-comunicativa:


(re)definindo o perfil do professor de língua estrangeira. In: VI
CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA, 2001,
Belo Horizonte. Anais. Belo Horizonte: ALAB, 2002. 1 CD-ROM.

PAGANO, A. Crenças sobre a tradução e o tradutor. In: ALVES, F.,


MAGALHÃES, C., PAGANO, A. Traduzir com autonomia:
estratégias para o tradutor em formação. São Paulo: Contexto,
2000, p. 9-28.

RODRIGUES, D. F. Percepção de alunos e professores de inglês


como língua estrangeira sobre o processo de ensino/aprendizagem
de vocabulário. Boletim da Associação Brasileira de Lingüística,
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____. O ensino de vocabulário em aulas de inglês como língua


estrangeira: foco na produção oral. São José do Rio Preto, 2002.
164 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) –
Universidade Estadual Paulista.

____. O perfil de alunos de língua inglesa ingressantes no curso de


Licenciatura em Letras: delimitando expectativas e metas para a
competência lingüístico-comunicativa. In: XXXIII SEMINÁRIO DO
GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO
PAULO, 2003, Taubaté. Estudos Lingüísticos XXXIII. (submetido)
Anexo

1. Qual a sua expectativa com relação a este curso?


2. Quais as habilidades que você espera desenvolver?
3. Qual sua preferência (gramática, vocabulário, tradução,
interpretação)?
4. Baseado na pergunta 3, que enfoque você gostaria de que fosse
dado ao curso?
5. Baseado na pergunta 3, que dúvidas você acha que tem?
6. Que estratégias você pretende usar para alcançar os resultados
esperados?
7. Qual a abordagem mais apropriada para o curso?
8. Como você gostaria de que a aula fosse dada?
9. Que tipo de texto você gostaria de traduzir?
10. Você tem alguma proposta, ou sugestão, para o curso?

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